Venho, desde há muito, mas de forma mais efetiva desde a realização do doutorado,1 me
dedicando a um projeto de pesquisa cuja amplitude talvez me faça carregá-lo pelo resto da vida: o
de vislumbrar, em suas diversas nuanças, a constituição da civilização camponesa que emerge ao
primeiro plano da cena histórica no alvorecer da Idade Média. Em meio a esse quadro histórico tão
apaixonante e polêmico – por ser ele, inclusive, o da famosa transição da Antigüidade ao Medievo
(séculos IV/VIII) – digamos que eu tenha definido como fio condutor da análise o fenômeno da
afirmação e expansão de novas formas de dominação social e, é claro, das manifestações de
resistência que foram opostas a esse processo. Poderíamos dizer o mesmo de outra forma, a partir
do ponto de vista dos atores sociais: trata-se da imposição da dominação aristocrática e da
resistência que lhe foi oposta pelo campesinato. Convém, desde já, esclarecer que tais fenômenos –
dominação e resistência – não são manifestações episódicas, irregulares, explosões momentâneas
reveladoras de um problema conjuntural que afeta uma dada sociedade. Ao contrário, são
expressões cotidianas, características e essenciais ao funcionamento de todo e qualquer sistema
social não igualitário, e são, portanto, fenômenos históricos intimamente associados. Toda
expressão de poder supõe a dialética de sua contestação!
Ora, este “objeto de estudo de minha eleição” nada tem de simplório em sua caracterização,
ou ao menos eu preciso crer rigorosamente nisso já que me proponho a dedicar o que espero que
sejam longos anos de vida que tenho pela frente ao seu estudo. E, de fato, não há desserviço maior
que possamos prestar à sua história, e à reflexão teórica que ele envolve, do que lhe subordinar à
visão muito pobre e reducionista decorrente de fórmulas como a do “marxismo vulgar”: de sua
palheta decorreria um quadro panorâmico da civilização da Alta Idade Média pintado em cores
simples e traçado grosseiro, revelando, no fundo da cena, os camponeses vergados, exauridos pelo
peso extremo das exigências senhoriais, elas próprias impostas por meio de manifestações
cotidianas de violência aberta e deflagrada.
A crítica que acaba de ser feita não supõe, de minha parte, e segundo uma expressão que os
menos jovens aqui presentes talvez conheçam, a intenção de “jogar fora o bebê junto com a água
suja do banho”! De minha parte afirmo desconhecer, tendo em vista a temática que me mobiliza, e
que lhes divulguei há pouco, qualquer corpo teórico mais vigoroso e profícuo, elaborado até o
presente momento, do que o marxismo, desde que ele, como qualquer outro corpo teórico, não seja
assimilado de forma acrítica e dogmática.
Para ser coerente com o que acabo de afirmar, chamo a atenção de vocês para uma breve
referência do autor de O Capital, vigorosa e propícia a vários desdobramentos. No volume I dessa
obra,2 de cerca de 1867, Marx se refere às características essenciais das formas pré-capitalistas de
produção, dentre as quais eu destaco a sua observação de que este tipo de economia é estranho às
mistificações econômicas que acompanham a produção mercantil e o uso da moeda. Elas seriam, no
entanto, marcadas pela onipresença das representações religiosas, aquelas típicas das antigas
religiões “naturais ou populares” que expressam a estreiteza das relações sociais e as limitações da
vida material, ou seja, a extrema proximidade física que caracteriza as relações estabelecidas pelos
homens entre si e com a natureza. Peço a vocês que retenham na memória essa referência, porque
vou retomá-la daqui há pouco. E, para lhes ajudar, recorro a uma variante dessa formulação, de
certo menos incômoda e mais palatável para os medievalistas, porque devida a Jean-Claude
Schmitt:
1
Realizado entre os anos de 1998 e 2002, no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de São Paulo,
sob orientação do Prof. Dr. Hilário Franco Junior.
2
Karl Marx, O Capital: crítica da economia política, vol. I, São Paulo, Editora Abril Cultural, 1983.
3
Jean-Claude Schmitt, “Une histoire religieuse du Moyen Âge est-elle possible?” Préfaces, 19, 1990, p. 77-78.
4
Jean-Claude Schmitt, “‘Religion populaire’ et culture floklorique”, Annales E.S.C., 31e année, n.5, 1976, p.946.
5
Antonio Gramsci, Prison notebooks, New York, International, 1971.
6
José Vives(ed), Concílios Visigóticos e Hispanoromanos, Madrid, CSIC, 1963.
7
Apud Stephen McKenna, Paganism and Pagan Survivals in Spain up to the Fall of the Visigothic Kingdon,
Washington D.C., The Catholic University of America, 1938, p. 121.
8
Maurice Godelier, L’idéel et le materiel. Pensée, économies, sociétés, Paris: Fayard, 1984.
9
Perspectiva ainda recentemente assumida por Jacques Le Goff, “Maravilhoso”, in Jacques Le Goff & Jean-Claude
Schmitt (coords.), Dicionário Temático do Ocidente Medieval, II, São Paulo, EDUSC, 2002, p. 113.
10
Op. cit., col. 15: “(...) quicumque sunt uel undecumque aduenerint, siue ex antris, siue ex omnibus locis, siue ex
fissuris petrarum, siue ex locis fluminum atque fontium (...).”
11
Id., Oratio super eum qui in itinere progreditur, col. 93: “Et cum securi atque saluati ad loca sibi desiderata
peruenerint, ymolent tibi hostiam laudis, future semper gratie debitores.”
12
Id., Benedictio Uue, col. 169: “Non quod his indigeas, Domine, quia omnia reples et contines.”
13
Id, Benedictio Seminis, col. 166: “(...) qui omnium seminum gignendi serendique atque fructificandi condicionem
dedisti; te deprecamur, ut pius ad precem nostram respicias, et ita demum in serendis seminibus amplificatam gratiam
tribuas; ut centupliciter augmentada magisque recurrentibus annis reddas fecunda.” Segundo o editor, todas as
fórmulas de bênçãos e preces encontradas neste capítulo do Liber Ordinum são específicas da liturgia visigótica.
14
Id., Benedictio Primitiarum, col. 168: “(...) pomorum uel quodcumque generis alimenti, quod tibi offerimus famuli
tui; (...) pro qua re petimus clementiam tuam, Domine Deus noster, ne sol urat, ne grando cedat, ne tempestas excutiat;
sed, te protegente, ad maturitatem perducas, ut populus tuus benedicat te per omnes dies uite sue.”
15
Id., Benedictio Graneas (sic), col. 167: “(...) ut germinaret terra erbam, et ad maturitatem perduxisti.”
16
Id., Benedictio nouarum falcium uinearum, col. 167: “Te supplices exoramus, eterne inmense Deus, ut quicquid
falces iste per chrisma benedictionis tue peruncte incidendo tetigerint, tue benedictionis gratiam in germine uitis et
pomorum infundere digneris, (...) et fructus eorum ubertate repleas.” O editor afirma não ter encontrado nenhuma
fórmula semelhante nas liturgias do período.
17
Id., Benedictio retis, col. 174: “Non eum sinas aduersantium arte aliqua inligare, nec uerbis incantantium pessimis
inretiri.”
18
Id., col. 174: “Presta nobis, Deus, ut huius retis exhibitione repleamur, et gratie tue muneribus gratulemur.”
19
Id., Benedictio fontis, cols. 29-30: “(...) montibus pressa non clauderis, scopulis inlisa non frangeris, terris diffusa
non deficis (...) gestata nubibus imbre iucundo arua fecundas.”
20
Id., Oratio uel Benedictio putei noui, cols. 173-174: “(...) ut tibi semper sanctificatori et saluatori omnium Domino
gratias agere mereatur.”