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© Autores, 2016 Capa Humberto Nunes Batoragao Vina Moller Revisio: Felicia Volkweis Reviso prifca: Miriam Gress Bator Ls Antnio Pai Gomes Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao CIP. DibliotecSria Responsavel: Denise Marl de Andracle Souza ~ CRB 10/960 a (Qualidade do lugar e cultura contempordnes: modos de sere hhabtaras cidades / organizade por: Paulo Afonso Rheingantz, Rosa Maia Leite Ribeiro Pedro e Ana Maria Szapiro, Porto Alegre: Sulina, 2016. 398 p; (Colegto Espago e Urbanidade), ISBN: 978-85-205-0753-7 1. Arquiteturs,2. Planejamento Urbano. 3. Ambiente Urbano. 4, Urbanismo. 5. Cultura Contemporinea, I. heinganz, Paulo Afonso. Il Pedro, Rosa Maria Leite Ribeiro. I Szapiro, Ana Maria cpp: 711.4 eDu:711.4 n “Todos os direitos desta edicao reservados 8 Editora Meridional Ltda. Av. Osvaldo Aranha, 440 cj, 101 ~ Bom Fim ep: 9035-190 Porto Alegre-RS ‘el: (51) 3311-4082 Fax: (51) 3264-4194 ‘wwvweditorasulina.combr ‘e-mail: sulina@editorasulinacom br Abril/2016 IMPRESSO NO BRASIL/PRINTED IN BRAZIL. Dedicamos este livro & memeria de Cléudia Rioja de Aragéo Vargas. _, UALIADE do sar ‘CULTURA coatemparines va dos recursos e dos bens comuns como a agua ¢ 0 ar (perguntem, por exemplo, aos habitantes de Pequim, de Teera, de Milo, de Roma, de Pa- ris, de Sarajevo, de Deli, que respiram um ar saturado de microparticu- as e de poluentes diversos, se nds estamos no arranjo ou no desarranjo com as forgas da natureza). Referéncias BOUCHET, C. La pleonexia chez, Isocrate. Revue des études anciennes, 1n, 109, p. 475-489, 2007. DODDS, E. R. Les Grecs et lirrationnel (1959). Paris: Flammation, 1977. DUFOUR, D-R. A cidade perversa. Rio de Janeiro: Civilizagéo Brasileira, 2013. 0 divino mercado: a revolucao cultural liberal. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2009, FREUD, S, Malaise dans la civilisation. Paris: Payot, 1929. LACAN, J. Léthique de la psychanalyse (1959-60). Paris: Seuil, 1986. LEVI-STRAUSS, C. Les structures élémentaires de la parenté. Pari 1949, PIKETTY, Thomas. 0 capital no século XXI. Rio de Janeiro: Intrinseca, 2014. UE, VERNANT, J-P. Les origines de Ia pensée grecque. Paris: PUF, 1962. Siléncio e tempestade no Rio de Janeiro. ete ete Ie uel tds Luis Antonio Baptista “Que importa a paisagem, ‘a Gléria, bala, a linha do horizonte? Oque eu vejoé obeco” (Manuel Bandeira) Insoléncias da arte Do solo de uma cidade ao norte da Europa, em dias de tempestade, de- tritos, restos de objetos do passado sao regurgitados da profundeza da terra, A tempestade os traz mais uma vez para a supertici dejetos interferem drasticamente na paisagem; portam o incbmodo de um acontecimento incontrolavel. Retornam sempre em condig6es tur- bulentas da natureza. Inundam o espaco, descaracterizam a superficie do solo, assim como tudo ao redor. 0 despejo dos objetos carcomidos pelo tempo, dos restos de matéria organica e inorganica é acompa- nhado pela emissdio de um som jamais ouvido. Os rastros do passado .. No chao os surpreendem. Ao norte da Europa, em dias de tormenta, o chao berra. Berro descrito por Didi-Huberman (2013, p.109), no intuito de apre- sentar uma inusitada provocagao da historia as imagens do contem- porneo. 0 berro ocorre no campo de concentragao de Auschwitz 1 fste texto é uma versio ampliada da palestra intitulada ‘siléncio e empestade no Rio de Janeiro, realizada no evento Yuri Firmera: TurvagSes Estratigrificas no Museu de ‘Arte do Rio de Janeiro em 2013, QUALIDADE do eae ‘CULTURA contempornea © que interpela este som as cidades? Qual perturbagao provocaria este vomito? 0 som que irrompe das entranhas da terra nao é audivel para qualquer escuta. Lixo indesejavel, estorvo para o antigo campo ée con- centrag&o, rufdos das intempéries da natureza sao impressdes registra- das por certa audi¢ao, Uma arte insolente poderd ouvi-lo, detectar seu murmirio, ampliar a sua estridéncia, ouvir seu siléncio. Atrevimento de uma determinada concepgao de arte tradutora dos objetos langados superficie em algo nao reduzido as rasuras deixadas pelos vermes, Parecem destrocos de rufnas anunciando a implosdo de uma verdade grandiloquente, vitoriosa; pedagos de verdade que promovem em sua dispersio a abertura produtora de um vazio, no qual a barbarie nio terd a nitidez. do nome, do lugar, de um rosto. Nao seriam simbolos de nada, metaforas de um episédio, assim como a representago do terror definitivamente conclufdo do fascismo. Cheiros, texturas, ruidos das esas vomitadas pela terra inquirem a linearidade do tempo. Aludem a radicalidade de uma estranha empiria. Sensagées diversas sobre o solo provocam estranhamento ao campo de concentragao mantido para cul- tuar certa modalidade de meméria, Culto ao lembrar sem hesitades, ‘sem sustos, ato que necessita da calmaria do espaco e do tempo para reviver o que passou, Porém, o chao fede quando a tempestade o revol- ve. Desconcertante empiria, Atento a esta empiria, alerta-nos Walter Benjamin (1987, p. 63): “Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Inter- preté-los ou utilizé-los, ets a questo”, Quais? Qual o desafio? Os objetos nao apodreceram totalmente, néo perderam o vigor dos gestos que participaram da feitura infinita das suas bordas. Infinito da maté marcada por incansdveis contatos, usos, impasses, passa- gens do cotidiano. Os dejetos gastos pelos anos contam hist terrompidas, narrativas pela metade; narram mortes do dia a dia e as astiicias para afronté-las. Retornam a superficie também em siléncio. Cortante siléncio. Sao objetos desenhados por uma particular concep- @ Since tompestade no Ro de Janet. Insolenia da art 9 cidade, do de meméria. Meméria desinteressada da conclusividade do era uma vez, avessa ao contar 0 outrora como se esse narrar fosse imune aos perigos do agora? Os restos regurgitados anunciam a meméria que , monta, desmonta, interrompe a continuidade de uma narrativa suflada por acontecimentos ines- perados, pelo acaso, por urgéncias, 0 vomito realiza no campo de con- et em diego ao futuro; interrupgio centragao de Auschwitz uma descontinua concepsao de histéria. Berro ¢ siléncio provocam drasticamente 0 territério que céhta 0 passado ‘como o era uma vez. dos contos de fadas, como o lugar dos mitos, dos feitos vitoriosos de uma hist6ria oficial, Para a meméria do campo de concentragao, 0 fascismo acabou. 0 berro diz nao. 0s objetos parecem se rebelar aos que os reduzem a indicios do que sucedeu restrito a lixo, a dados objetivos que os classifiquem sem hesitago, ou a restos de consumo de uma barbérie, As coisas regurgi tadas turvam 0 reconhecimento das suas fungdes remotas. Embagam tambéma localizagao geogréfica e a data precisa de um massacre. Atur- dem intempestivamente o presente, retirando-o da mera transigao en- tre tempos. “Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Interpreté-los ou utilizé-los, eis a questo”, Qual o impasse? 2 Arelagio entre passado eo agora se inspira na ese VI da Histbria de Walter Benjamin: ‘Artcular o passado historicamente nfo significa conhecé-Io tal como ele propriamente fol. Significa apoderar-se de uma lembranga tal como ela lampeja num instante de perigo, Importa ao materialismo histérico capturar uma imagem do passado como ela Inesperadamente se coloca para o sujelto histrco no instante do perigo..] 0 dom de atear a0 passado a centelha da esperanca pertence somente Aquele historiador que est, perpassado pela convieglo de que também os mortos nao estario seguros diante do Inimigo, se ele for vitorioso.E esse inimigo nao tem cessado de vencer’. Tee traduzida por Jeanne Marle Gagnebin e Marcos Lutz Muller, publicada em Lowy, M. (2005, p. 65). $3 Para Benjamin, na tese XVI da Histérla,“o materialism historico nfo pode renunciar a0 conceito de um presente que nao é transigo, mas no qual o tempo estanea e ficou. im6vel, Pois esse conceito define exatamente o presente em que ele escreve historia, para si mesmo. 0 Historicismo arma a imagem eterna do passado, o materialismo hist6rico, uma experiéncia com o passado que se firma af ‘nica. le detxa aos outros se desgastarem com a prostituta ‘era uma vez’ no prostibulo do Historiismo. Ele permanece senhor de suas forsas: vrilo bastante para fazer explodir o continuo da historia” (Lowy, 2005, p. 128). , QUALIDADE do ugar CULTURA conterporines Assolado pela tempestade, o campo de concentragdo da lugar a outros espacos, a tempos diversos desdobrados por gestos inconforma- dos marcados nos dejetos. O desdobrar que se repete em modulagdes variadas expulsando do gesto a face nitida da vitima, do heréi, do sig- 1. Os cacos de coisas, de matéria orgénica, assombram quando langados ao solo borrando a paisagem congelada como se 0 nificado preci mundo estivesse em trégua. Insolentes, enfrentam o tempo das origens € das conclusdes. Sao fragmentos de embates mitidos, de uma trama infima, insignificante, para as lutas das datas oficiais.* Fragmentos de atos incansaveis. Maculam espacos puros, assépticos, onde inexiste po- rosidade incitadora de paradoxos. Nos dias de mau tempo, 0 chao berra essilencia, Cheiros, sons, texturas produzem estranhamento no corpo de quem 0s vislumbra e os escuta; estranhamento forjado por uma arte sensivel a forga destrutiva das tormentas. Libertéria destruigéo’ Res- pondem com vigor quem os vistumbra, desacomodam 0 olhar do ob- servador atento a indicios de fatos consumados. Resposta incbmoda ao conforto do olhar do pesquisador de objetos mortos que nao respon- dem ao olhar: Os restos vivem, apesar dos vermes, Seria um episédio restrito ao solo polonés? 0 que afirmaria 0 berro as cidades onde o tem- po caminha acelerado em diregao ao amanha? 4 Walter Benjamin afirma na tese III da Historia: O cronista que narra profusamente ‘0s acontecimentos, sem distinguir grandes e pequenos, leva com isso a verdade de que nada do que alguma vez aconteceu pode ser dado por perdido para a historia’ (Lowy, £2008, p. 54), Sobre os pequenos acontecimentos, Jeanne Marie Gagnebin (1992, . 44) acrescenta: ‘A atividade critica e salvadora do pensamento exercer-se-ia, segundo Benjamin, ndo tanto nos amplos vos totalizantes da razio, mas, muito mais,naaten¢0 concentrada e despojada no detalhe & primeira vista sem importancia, ou ext80 no estranho, no extremo, no desviante de que nenhuma média consegue dar cont 5 Segundo Benjamin (2004, p. 217), "9 caréter destrutivo no vé nada de duradouro. Mas por isso mesmo vé caminhos por toda a parte, mesmo quando outros esbarram ‘com muros ou montanhas. Como, porém, vé por toda parte um camino, tem de estar ‘sempre a remover coisas do caminho. Nem sempre com brutalidade, ds vezes fé-o com requinte. Como vé caminbos por toda a parte, esti sempre na encruzilhada, Nenhum momento pode saber o que o préximo trari, Converte em ruinas tudo o que existe, nfo pelas ruinas, mas pelo caminho que as atravessa’ - Silencio e tempestade no Rode Jane Insolncis da art cidade, Ao norte da Europa algo acontece, reverberando para outras cidades do mundo. O regurgitar da terra ultrapassa fronteiras, extra- pola os fatos ocorridos no campo de concentragao ao norte da Europa Artes insolentes fazem do estranho bramido um sinal de alerta para as cidades onde o tempo avanca avidamente em diregdo ao novo. Utopias de cidades projetadas pelo mercado sao postas 4 prova. A insoléncia ‘traduz o rumor em sinal de perigo para o passado ameagado de ser em- balsamado, de calar, de nao interpelar o presente em momentos de im- passe. Dejetos carcomidos berram, apesar dos vermes, Objetos e restos de corpos, de utensflios do campo de concentragao polonés retornam, transtornando a paisagem congelada em uma data precisa. Turvam 0 horizonte do territério, destroem limites, sujam 0 espaco com tempos anacrénicos ainda pulsantes. A escuta de uma arte insolente retira este retorno a superficie da mudez, ow da tagarelice das imagens e palavras banalizadas. Amplia 0 murmirio, intensifica o berro e o siléncio. Qual insoléncia? 0 que esta tempestade tem a nos dizer sobre a cidade de ‘So Sebastido do Rio de Janeiro? Para arquitetos e estudiosos da subjetividade, nao existiria unanimidade em definir o porqué da arte na produgdo de suas obras; discordam quando a literatura, ou qualquer arte das imagens, recusa a fungao de expressar, representar, ornamentar os atributos da condi- 40 humana, Segundo os que defendem a fungao de expressao e de re- presentacdo, seria um estorvo a recusa do desvendamento de sonhos e mistérios do humano; um desperdicio, caso ela nao ratifique os atribu- tos do Sujeito Universal, promova a satide da urbe e da psique. Inexis- \do estas fungdes, ela seria intitil. Defendem a busca da bela forma, da esséncia do ser representada nas linhas das metrépoles humanizadas, ou nos sonhos e tormentos da alma, Utilidade fecunda para o autoco- nhecimento, afirmam, Localizam claramente o que é a beleza e o hor- ror. Usufruem e estimulam o prazer do estranhamento de uma obra, desde que o sujeito que a vislumbra mantenha-se incélume, Incitam 0 estranhar o mundo, o estranhar a si mesmo, porém, apés 0 desconcerto , QUALIDADE do lunar CULTURA contampordnea do estranhamento, corpo, sujeito e o mundo retornariam ilesos, Cida- de e subjetividade, nesta escolha, necessitariam da arte para realiza- rem a procura das suas inquebrantaveis verdades. Nenhum escéndalo, fracasso, interrupsdo inesperada poria em questao 0 propésito desta pesquisa. Assemelhar-se-ia a busca sagrada da redencao°, da procura do parafso, da harmonia perdida. 0 artista ganharia a aura dos seres, especiais; converter-se-ia no artifice de uma vida bela, educaria os sen- tidos dos insensiveis, revelaria mistérios desconhecidos para o homem. comum. “Sighos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Interpreté-los ou utili- ziclos, eis a questdo”. Como? Para determinados fazedores de cidades, a negagao da ida ao encontro das verdades imaculadas é bem-vinda. A inutilidade da arte em descobrir, revelar emogées seria a matéria-prima para a feitura das suas obras. 0 fracasso da missao pedagégica de busca da bela forma, da revelagao do ja existente, ou do que vird, sero ferramentas para pers- crutar verdades desejosas de estabilidade. O fazer cidades nao teria apartada do mundo pleno de © conforto de um modelo, de uma ide paradoxos, dos destinos tragados por um Sujeito Universal. operaria experimentagdes inconformadas, despossu(das do sossego de ser fruto da luz de uma razio, ou da inspiragao de um dom especial da alma a desprezar os processos de artesanato de uma verdade. A auréo- la do artista missionario, do maldito, do rebelde seria também inttil. Profanadores, fazedores laicos, ignoram a auséncia ou a morte de um we fazer 6 Sobre o criar 8 semelhanga do ato religioso, Maurice Blanchot (1987, p. 219-220) argumenta: "Criador é 0 nome que o artista reivindica, porque acredita ocupar assim 0 lugar delxado vazio pela auséneia dos deuses. Ambicao estranhamente enganadora, [-] Criador s6 se converte em atributo divino por exceléncia no alvorecer do periodo acelerado da histéria em que o homem se torna puro eu, mas também trabalho, realizagdo eexigéncia de uma realizagdo objetiva.Oartista quese diz criadornaorecolhe ‘a heranga do sagrado, ele insere somente em sua heranga o principio supereminente de sua subordinagao™ Em relagdo ao valor de culto da arte, sobre a aura ver Benjamin (20126, p.37). - Sill evempestade no Rio de Janeiro. Tnsolncias da arte cidade, ente divino que justifique 0 sopro da criagao. Ndo preencheriam o va- deixado pela morte de Deus com atributos do humano sacralizado. 0 vazio sera bem-vindo. Sao artesa s de formas atentos a faléncia das promessas, a pobreza de experiéncias’, a inoperancia das mensagens conclusivas para 0 alcance da felicidade, ou para dissipar o insuporté- vel de uma dor. Atenco e vulnerabilidade ao mundo que os atraves- sa, € 08 produz neste atravessamento, fundamentam o artesanato de suas obras, A insoléncia da produgao desta estética laica é indiferente as transgressdes do estabelecido na busca do novo; diferenciar-se-ia da isso de resisténcia reativa ao que a incomoda; opée-se ao ato valen- te, heroico, formulador da resposta justa, da mensagem salvadora, da verdade necesséria. Insolente, é atenta ao vazio insuflador de outras formas € ao fracasso das éticas e das estéticas assentadas na eter dade. 0 que afirmaria esta arte que despreza ornamentos da alma ea salvagao do Sujeito? Por que o berro da terra? Lamenta o escritor argentino que a palavra poeta seja hoje em dia associada ao criador de versos liticos. Os antigos, segundo Jorge Luis Borges, o definiam como um fazedor, isto é, aquele que conta uma hist6ria, Diz Borges (2000, p. 51): “uma histéria na qual todas as vozes da humanidade podem ser encontradas - néo somente a lirica, a pesa- rosa, a melancélica, mas também as vozes da coragem e da esperanca’. 7 Benjamin argumenta a provvel abertura politica engendrada pela pobreza da cexperiéncia; “Pobreza de experiéncia: a expresso no significa que as pessoas sintam a nostalgia de uma nova experiéncia, Nao, o que elas anselam ¢ libertar-se das cexperiéncias, anseiam por um mundo em que possam aflemar de forma tio pura e clara sua pobreza, a exterior e também a Interior, que daf nasca alguma coisa que se veja. E também nao sio sempre ignorantes ou inexperientes, Multas vezes 60 contrério que se verifica:tiveram de engolir tudo isso, a ‘cultura’ e ‘o Homem e ficaram saturadas cansadas* (Benjamin, 2012a, p. 89). Katia Muriey (1986, p.75) acrescenta: “Este Aeclinio da experiéncia equivale ao processo de perda da aura, entendida justamente como o contetido de experiéncia de arte. Quando Benjamin satida uma nova barbie ‘ua quebra aurstica da obra de arte ndo 6, portanto, com vistas a uma dissolugao da cultura. £, antes, constatagao de que, jé tendo ocorrido essas rupturas, Impoe-se fazer ‘explodir uma tradigao que 56 existe enquanto fardo de tesouros, atrelado as costas da hhumanidade que, imobilizada pelo seu peso, ndo pode utlizi-los' s, QUALDADE do lugar CULTURA conterporanea Homero, na Iifada e na Odisséia, narra as sagas de Ulisses, cujos mitos, destinos tracados pelos deuses s4o implacavelmente enfrentados. A voz do narrador desconheceria a soberania do eu, a lirica de uma alma que se expressa na confiss4o das suas virtudes, ou angiistias. Méltiplas vozes comporiam a épica de Homero, vozes do exilio, do mar, da guerra, da coragem, das cidades a dissipar da origem do poema o espelhamen- to da alma do autor, ou de sua época. Homero realizou na Ilfada e na Odisséia urdiduras de vozes, de emogées humanas e inumanas até hoje recontadas. Na obra do poeta grego temos, a luz de Borges, 0 contar do fazedor que urde, descostura, tece vozes miiltiplas que o mundo 0 inquire. Vozes sem sujeito afirmadas na intensidade da sua Aispée, e singularidade; intensidade que solicita ao artesdo 0 estar atento aos desafios afirmados pela matéria-prima do artesanato, matéria que o in- ‘Signos precur- quiriré, assim como a verdade que move a sua criagio. sores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Interpreté-los ou utilizé-los, eis a questao”. Qual impasse? O escritor argentino no seu lamento ndo desejaria reencontrar na antiguidade riquezas perdidas da literatura. Borges almeja a tessi- tura da polifonia de vozes do contador de historias como posstbilidade de escape & criagdo sacralizada do narrador, Artesanato que desaloja 0 poeta da solidao divinizada do eu que se exprime e confessa. Arte do fazer que requer atengao e vulnerabilidade ao mundo como implacdvel alteridade; atenco aos contégios, aos apelos, que o desafiarao em seu artesanato, Vulnerdvel ao fora de si mesmo, desfalcado da proteséo dos deuses, ou dos mistérios da vida interior, a urdidura da narrativa nao manterd ileso os limites do eu, ou a conclusividade da historia a ser contada. Perigosa proposta a literatura e ao narrar. Maurice Blanchot (2005, p. 139) elucida este perigo: “Borges compreende que a perigo- sa dig grande autor absorto em suas mistificagées sonhadoras, mas a de nos lade da literatura nao é a de nos fazer supor, no murdo, um fazer sentir a aproximagao de uma estranha poténcia, neutra e impes- Silico etempestade no Rode ane. Insolence da arte ade, soal’ Estranha poténcia laica, passivel de realizar-se quando a aura do criador, ou do mundo entendido como espaco exterior no qual o sujeito supée dialogar, é destruida. 0 fazedor aproximar-se-ia do narrador artesao de Walter Ben- jamin (1994, p. 221): “podemos ir mais longe e perguntar se a relagao entre o narrador e sua matéria ~ a vida humana ~ nao seria ela prépria uma relagio artesanal. Nao seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiéncia ~ a sua e a dos outros ~ transformando-a num produto sélido, titi e tinico?", A utilidade proposta por Benjamin afasta-se da eficacia da promogao do autoconhecimento do leitor, da comunicagao eficiente ou da arte do narrar como formulagéo de uma mensagem edi- ficante. A utilidade da narrativa como um processo artesanal seria um chamamento & continuidade do contar a histéria, de refazé-la atenta aos perigos do agora, nao permitindo o esgotamento do fim da histéria; desdobramento que dilui o protagonismo de um tinico corpo, de uma dor localizada em pronomes pessoais, assim como as formas para eli- miné-las, Gagnebin (1994, p. 72) acrescenta ao carter utilitario da nar- rativa uma forma de narrar que possul “varias seqiiéncias diferentes, varias conclusdes desconhecidas que ele pode ajudar nao s6 a escolher, ‘mas a inventar, na retomada e na transformagao por muitos de uma narrativa 8 primeira vista encerrada na sua solidao’. Isolamento sagra- do do eu aprendiz de Deus, que Maria Gabriela Llansol (2014, p.17), no intuito de destrogé-lo, propée: “tirar o d de deus, e chamar eus ao que for a diferenca que o prive de ser a sua vontade’, Privagao forjadora da diferenca, & luz de Blanchot, como estranha poténcia neutra, impessoal, encontrada quando um contagio, um apelo irreconhecfvel se realiza no chamamento distante do mundo divino. Mundo das multiplicidades provisoriamente dispersas a espera de um corpo; multiplicidade com- posta por eus sem sujeito, sem forma definida, disponiveis para monta- gens sempre provisérias,finitas, “porque o inimigo nao tem cessado de vencer”, Mundo dos dejetos de um Deus harménico implodido quando a falta de ar resulta da privacdo das fissuras, passagens, vazios produ: sg QUAUDADE do lugar CULTURA conterporines dos pela hist6ria. Da implosio temos 0 apelo que destroga o sujeito in- célume em seu contorno perene. Dos destrogos, o perigoso contigio do canto das serelas narrado por Ulisses poderd acontecer, um fragmento regurgitaria da terra, o chao berra, ¢ isso tudo podera ser narrado. No mundo da privagao da vontade de um ente, de um mito, as cidades sao urdidas, destru(das, tecidas por vozes inomindveis com- postas por afetos, siléncios, agruras, atos de terror, embates encanta- mentos inesgotiveis.* 0 inesgotével tramado no mundo da imanéncia no qual a morte é presente; onde a historia se faz cortante, Vulnerdvel a este contégio, diz Llansol (20011, p. 121), “perguntar ‘quem sou’ & ‘uma pergunta de escravo; perguntar ‘quem me chama’ é uma pergunta de homem livre’, Interrogacao insolente que faz da cidade um campo minado, assentamento perigoso para os mitos que sustentam a univer- salidade da ética e da estética indiferentes & falta de ar propiciada pelo esgotamento de safdas de um impasse. “Quem me chama’, indagagéo desalojadora do sujeito encarcerado em si mesmo que teria a chance de ofertar aberturas, vazios, para que epifanias cotidianas, estranha- ‘mentos implacéveis acontecam. “Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Interpreté-los ow utilizé-los, eis a questo’, 0 que seria chamado quan- do os dejetos irrompem o solo? Walter Benjamin (1996, p. 215), no intuito de apresentar as as- ticias de um peculiar enfrentamento politico, afirma: “O conto de fadas ensinow ha muitos séculos & humanidade, e continua ensinando hoje as criangas, que 0 mais aconselhdvel é enfrentar as forgas do mundo itico com astiicia e arrogancia’. O personagem do tolo na literatura, os ‘Maria Bsther Maciel, naandliseda prosapoéticade Llansol,afirma:"aescritallansoliana abre-se também as linhas de fuga de uma subjetividade no necessariamentedefinida pela razZo critica ou pelo phatos Iiico, mas complexifcada pelo que Félix Guattari chamaria de polifonias, contrapontos, orquestragdes ritmos. Uma subjetividade polifOnica, em resumo, através da qual os ‘eus’ sfo chamados a um combate, a um drama’ (Maciel, 2004, p. 136). Since tempestade no Ro de lane. Insoléncias de art cidade. jogos infantis’, certos poetas, segundo o fildsofo berlinense, nao tolera- riam a obediéncia ao final de uma histéria inspirada na eternidade de um mito, Enfrentam com astticia repetindo, desfazendo formas, acom- panhados pelos sustos e alegrias da criagao. A violéncia do mito na sua inquebrantavel verdade é enfrentada."® Nao brincariam de artifices divinos. A criagdo neste jogo requer atengdo ao mundo dos dejetos, dos restos, para o manuseio incansével das formas, sempre usurpadas no seu desejo de permanéncia. As criancas, segundo Benjamin (1996, p. 237-238), [.] se sentem atrafdas irresistivelmente pelos detritos, onde quer que eles surjam, [..] Nesses detritos, elas reconhecem 0 rosto que 0 ‘mundo das coisas assume para elas, e s6 para elas, Com tais detritos, ‘do imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e residuos em uma relagao nova e original 9 Jeanne Marie Gagnebin (2014, p. 175) apresenta uma valiosainformacao sobre 0 jogo Infantil: “quando Benjamin e Klossowski vertem juntos para o francés 0 texto da ‘Obra, de arte na época da reprodutibilidade técnica, escolhem para o conceito aleméo de Spielraum ~ literalmente, espago de jogo ou lugar para a brincadeira ~ um equivalente francés com ressonancia muito mals polticas: champ d'action, Esse champ d'action immense et insoupgonne, que Benjamin vislumbra para o cinema, s6 pode realizar- se como novo espago estético se a humanidade nio perder de vista a exploragio e a transformagao de um outro espago de jogo ~ 0 campo da politica, Somente essa alianga, Aecisiva entre espago de jogo estético e campo de acto politica permite uma lita efetiva Contra as forgas do fascismo e da dominagio total” Sobre o jogo infantil, vera prosa“A ‘meia’ (Benjamin, 2004, p. 105). 10 Claudia Castro (2011, p. 140), & luz das andlises de Benjamin sobre as relagdes entre arte e forgas miticas,afirma: "toda obra tem como tarefa justamente liberar-nos das forgas miticas das quais participa a aparéncla, da ambiguidade enganadora que se encontra atrés de toda imagem de uma ‘vida bela. Sob o olhar atento do crtico, a obra de arte deve nos conduzir a verdade, ou seja, ao carter eminentemente histérico da experiéncia humana, sua dimensio antes de tudo temporal, marcada pelo Inacabamento, pela finitude’, Sobre as forgas mitieas, acrescenta Jeanne Marie Gagnebin (2014, .57-58),"o mitio eo mito nio designam uma época da humanidade defintivamente superada pela racionalidade, mas sim um fundo de violencia que ‘sempre ameaga submergir as construgées humanas, quando estas repousam sabre a ‘obediéncia as convengées sociais”, QUALIDADE do lar ‘CULTURA conternporinea A solidez do mito 6 implodida. Desfalcadas da protegao dos en tes divinos, da arrogancia do eu ou da razao, respondem ao apelo do rosto do universo das coisas. A ilusdo desmedida, a fantasia desatenta as forgas do mundo seriam inoperantes para o enfrentamento a violén- cia do mito, Atengao e vulnerabilidade ao fora de si mesmo sio funda- mentais para estes fazedores de narrativas. No jogo dos infantes, dos tolos e de certos poetas, 0 rosto do mundo das coisas os chama, con- vocagiio insufladora do jogo, do ficcionar, do narrar feito por retalhos, dejetos, oss0s. Do solo de uma cidade ao norte da Europa, em dias de tempes- tade, detritos, restos de objetos do passado so regurgitados da pro- fundeza da terra. Em dias de tormenta, 0 chao berra. “Signos precur- sores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de ondas. Interpreté-los ou utilizd-los, eis a questo”. 0 ‘que esta tempestade tem a nos dizer sobre a cidade de Sao Sebastiéo do Rio de Janeiro? Tralhas insurgentes 0 pano de prato amarelado sobrevive silencioso sob as estru- turas de madeiras. Frigideiras, gavetas, ventilador enferrujade, perna da boneca quebrada, vaso sanitrio, entre outros objetos, respondem ao olhar do visitante. Eles revidam o olhar do observador na exigéncia de siléncio, Na exposicdo de Yuri Firmeza", 0 Rio de Janeiro contrasta com a paisagem emoldurada por hist6rias definitivamente conclufdas. Nos escombros da sua obra, 0 alarido dos sons reconheciveis do dia a dia, a palavra indicadora da fungao precisa do utensilio cotidiano séo [i Detalhessobrea exposicode uri Firmezarealizadano Museudo Riodejanciro(MAR) fem 2013 encontram-se no enderego . Since tempestade no Rode Janeiro, Ineolneias da arte cidade postos prova. 0 pano de prato amarelado sob o peso da madeira apela por espanto; recusa concluir 0 que tem a dizer. Apelo urgente, acom- panhado de um desacomodador estranhamento. 0 tecido embaga 0 reconhecimento de pistas sobre o seu proprietério, da sua origem ou da sua utilidade, Carcomido, murmura anonimamente. Parece dizer que ainda vive, apesar de tudo, Narra fragmentos de cenas em que 0 cor- oa corpo com o poder persiste incansével. Insinua atos desbotados realizados por uma meméria atenta aos perigos do agora quando se apropria de um passado inacabado. Quais perigos? O siléncio dos objetos contrasta com a cidade ruidosa do video sobre a revitalizagao da zona portuéria. Imagens coloridas, luminosas, no intuito de proclamar o futuro da cidade feliz. Felicidade anunciada pelo tempo que nao interfere na assepsia da utopia da cidade necessita- da de uma nova vida. Assepsia dos sonhos vividos alheios as impurezas dos becos e encruzilhadas, onde encontros e desencontros produzem 0 infinito de uma cidade, de um rosto ou de um corpo. Imagens produzi- das do alto, indiferentes ao impacto do solo modulado por asperezas, fendas, que nao permitem 0 conforto de um corpo sereno, Na tela da publicidade do projeto Porto Maravilha, a paisagem carioca perde suas rrugas e sombras; desfaz-se do vigor dos seus paradoxos. Cidade espe- téculo, Jovem ¢ eterna, a urbe brilha vista do alto. No tecido amarela- do, nos outros objetos que o acompanham, encontram-se fracassos das promessas da felicidade feitas pela ordem urbana, murmirios andni- ‘mos, alegrias passageiras, lutas infimas, restos da historia do cotidiano que pulsam em seus fragmentos. No desbotado do pano existiriam ges- tos de variaveis intensidades, como as luzes e sombras de uma cidade usada, No chao, a cidade lateja. Na pega publicitaria sobre a revitalizagao da rea portuaria, imagens seduzem, na promessa da efetivarao de sonhos do Rio de Ja- neiro. 0 prefixo ‘re~’ sentencia que a cidade voltaré a viver. O ontem es- taria morto. 0 passado seria uma citagao decorativa presente na arq tetura, no mobiliario urbano, na intitulada alma da cidade conve sg QUALIADE do tugar ‘CULTURA contempornes em mercadoria. 0 prefixo ‘re-’ anuncia a criagao da aura do novo. 0 Rio de Janeiro seré outro. Vende-se certa modalidade de estilo de vida justificado na modernizagao da urbe. A meméria que inspira este neg6- cio celebra o progresso que sepulta definitivamente os restos mortals, do outrora. A aura do novo nao suporta o tempo interferido pelo acaso, 6 tempo atravessado por outros tempos, feito por embates incansaveis realizados na superficie do solo. As auras niio suportam 0 desassossego das ruas. A cidade revitalizada vende uma vida renovada, 0 novo que jo da invencao humana atente ao in- tolerdvel. 0 prefixo ‘re-’ nao admite a forga de um berro, de uma pala- nao suporta o transgressivo se vra, de um siléncio, de uma passagem que nao saiba dizer o seu nome. As tralhas de Yuri dizem com insoléncia nao a esta cidade mercadoria. Aposta na modulagao, na aspereza do solo que perturba a serenidade do olhar. Deseja a superficie, Interrompe a ida acelerada das imagens publicitérias a desprezar a cidade suja por usos e desusos dos embates cotidianos. 0 quea matéria organica e inorginica expelida pela terra do norte da Europa tem a dizer sobre a serenidade do olhar que desdenha um chao que berra? 0 que a terra expeliria? No Morro da Providéncia, moradias foram demolidas paraa rea- \¢80 do projeto de revitaliza¢ao da 4rea portudria. A sigla SMH 6 a marca pichada pela prefettura nas casas que sero destrufdas, Poeira, entulho, tralhas substituirdo a forga da palavra e do siléncio na urdi- dura da meméria dos moradores. Tecelagem feita por muitos fios, por tempos diversos no artesanato intermindvel. 0 cenério de certo passa- 12 Sobre a revitalizario da érea portuéria do Rio de Janeiro, especificamente a relagdo entre patrimdnio histérico e cotidiano, Leopoldo G. Pio (2013, p. 19) afirma: "O patriménio é entendido no apenas como forma superior de cultura e expressao de singularidade cultural, mas como bem criador de rentabilidade em diversos setores da economia, Nesse sentido, no diseurso do poder publica, ‘autenticidade’ do patrimanio Ihe atribui centralidade na légica do mercado e do turismo cultural, pasando a desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento e diferenciagao da area. [LJ] Tals discursos refletom pouca preocupagio com o cotidiano dos moradores [J Na verdade, a cultura é vista nos documentos oficiais como um conjunto de bens que podem ser utilizados como cenérios para atividades culturals [.J, mas principalmente aquelas que se legitimam pela sua rentabilidade” Since tempestade no Ra dene, Inslenls da arte cidade do comega a ganhar vida através do prefixo ‘re-” A favela revitalizada terd um colorido centro histérico. Albergues, restaurantes, mirantes sio edificados para que o Rio de Jan fios da meméria dos seus moradores sai de cena para ndo macular 0 cenario. 0 passado encerrado seré pedagogicamente divulgado para todos. A cidade finalmente comegard a viver. Nos restos dos utensilios, nas rufnas das moradias do Morro da seja visto do alto. A trama dos Providéncia, as imagens tremem, Estremecimento, segundo Maurice Blanchot (2010, p. 66), “daquilo que oscila e vacila; ela sai constante- mente de si prépria, pois nao hé nada onde ela seja ela prépria, sempre j@ fora de si’, Tremor da auséncia de um suporte, de um corpo fixo, tre- mor do movimento a recusar 0 pouso, a representagao de algo assen- tado na clareza da sua identidade. Parecem vibrar na afirmacdo que \da esto vivas, que apesar do cansago suas hist6rias no estariam encerradas. 0 perigo do agora as faz.tremer no apelo de outro pasado, assim como de outro presente. Tremura™? que suspende conclusdes so- brea agonia eo renascimento da urbe. 0 tecido amarelado do Morro da Providéncia esquiva-se de ser sombra da cidade espeticulo; nega per- tencer & urbe narrada por um tempo sem carne, 0 tremor das imagens das tralhas embaga a paisagem carioca repleta de serenidade e orgulho. Objetos gastos por afetos, embates, dores, préticas inventivas, turvam a jade luminosa que viré. Recusam a espera do futuro. Tremem silen- ciosamente. Possuem um corpo sujo por insisténcias de longas déca- das. A histéria do embelezamento do Rio de Janeiro, de Pereira Passos até a atualidade, produziu entulhos, baniu diferenciadas impurezas, iluminou becos, retirou o lixo das ruas para nao contaminar a alma da cidade; porém, o lixo treme, insiste em interferir na mensagem apazi- ‘guadora do cartao postal. Que siléncio interromperia a luminosidade de uma cidade feliz? 0 que 0 vomito da terra do norte da Europa tem a dizer sobre esta felicidade? 113 Ver ensaio Da semelhanga a semelhanga’, de Didi-Huberman (2015, p.117),em que autor utiliza a contribuigo de Maurice Blanchot sobre o tremor da imagem, QUALDADE do lugar CULTURA contemporanea Na antiguidade, existiram duas modalidades de siléncio, Roland Barthes (2003) os diferencia em tacere, o siléncio verbal, o nao falar, ¢ silere, 0 siléncio empregado para os objetos, para a noite, para o mar, 0 vento, Nuances, movimentos da natureza e dos objetos seriam ressal- tados por esta modalidade de silenciar. Tacere contrastaria com silere, que designaria, além da auséncia de rumores da natureza e dos abje- tos, 0 ainda nao, o que esta por vir, a virtualidade das formas. Segundo Barthes (2003, p. 49), silere seria “a virgindade intemporal das coisas, antes de nascerem ou depois de desaparecerem”, Na exposicao de Yuri Firmeza, 0s objetos sao apresentados silenciosamente; revela-nos 0 ainda no, a virtualidade de formas e de histérias por vir; indica-nos a “virgindade intemporal” dos utensflios cotidianos na negagao de uma data precisa da sua origem e do seu fi des, So inacabados apesar dos usos e desusos que abrandam as suas arestas. Aguardam, "virgens’, 0 uso de uma atitude. O silere das tralhas do Morro da Providéncia aproxima-se do sil@ncio da poesia afirmado por Maurice Blanchot (2005, p. 330): poesia se torna entéo o que seria a miisica, se reduzida & sua esséncia silenciosa: um andamento e um desdobramento de puras relagées, isto 6, mobilidade pura’, Do amontoado de restos, dos despojos criados por Yuri, cada objeto silenciosamente recusaria 0 ruido das identidades, da sina dos exclufdos e da sua localizagao. Seriam desdobramentos de re- ages, propostas de infinito, um infinito criado por passagens de afetos e de muita luta, No pano de prato amarelado sob o peso da estrutura de madeira, tramas impessoais incitam a mobilidade proposta por Blan- chot, arrancando-nos da inércia fomentada pela compacidade de uma narrativa; inquire a imobilidade que permite o reconhecimento da dor, assim como das suas utilida- ou da alegria, do outro, mas ndo se deslocaria de si demarcada por seu limite. 0 siléncio dos despojos desdobra a narragao, destréi fronteiras de territérios, intensifica nuances de corpos e rostos sem nome incitan- do-nos.a inventar incansavelmente o presente. Sao objetos do silere que dissolvem a compacidade dos limites do espago e do tempo de qual- Silo tempestade no Rode Jane. Insolncls da arte cidade, quer cidade. Nos entulhos do Morro da Providéncia, o siléncio nos con- voca a estranhar a aura da cidade feliz. No video publicitario, o alarido das imagens prossegue na venda da urbe banida dos seus paradoxos. A cenografia colorida dos becos e encruzilhadas amansa a impertinéncia dos seus atravessamentos e passagens. 0 que tem a dizer o regurgitar da terra do norte da Europa para a cidade maravilhosa? 0 que aconte- ceria ao solo apés uma inesperada tempestade? Que tempestade? Didi-Huberman alerta-nos que o campo de Auschwitz da atuali- dade, com os arames farpados renovados, a reconstituigo dos objetos no intuito de retratar a realidade dos anos 1940, os produtos vendi- dos para que o nazismo nao seja esquecido, corre o risco de neutralizar a forga desacomodadora da meméria. Segundo o historiador da arte francés, apesar do mérito de lembrar 0 horror nazista, 0 campo corre o risco de afirmar-se como “museu de Estado”, Afirma Didi Huberman (2013, p. 105): Auschwitz ‘museu de Estado; e assim é melhor. A questéo toda esta em saber de que género de cultura esse lugar de barbérle tornou-se 0 cespaco piiblico exemplar [..J. Mas 0 que dizer quando Auschwitz deve ser esquecido em seu préprio lugar, para constituir-se como lugar ficticio destinado a lembrar Auschwitz? Perigoso desafio para uma politica da meméria que aposta no desdobramento de narrativas nao emudecidas pelo fim. Museificar 0 passado delegaria aos mortos a impossibilidade de interrogar 0 nos- so olhar, a exigir-nos atitudes as suas inquirigdes sobre 0 que vemos ou calamos. 0 horror estaria banido para sempre. Do museu terfamos 6 lugar adequado para escavarmos 0 passado, 0 posto neutro para a Jembranca. Benjamin (2004, p. 220) oferta-nos mais uma adverténcia para escaparmos no ato do lembrar, do desprezo pela provavel forga do imu- sitado do presente: QUALIDADE do gar CULTURA contzmperdnea E no ha divida de que aquele que escava deve fazé-lo guiando-se por mapas do lugar: Mas igualmente imprescindivel 6 saber enterrar apa de forma culdadosa e tacteante no escuro da terra, E engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer inventério dos achados, e no for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado. [..] 0 da indicagao exacta do lugar onde o investigador se apoderou dessas recordagées, Didi-Huberman, inspirado em Benjamin, firma que ¢ museu do campo de concentragao polonés periga ter a fungo de realizar a pedagogia da lembranga de um ontem conclufdo e do presente como mera transig&o ao que viré, Aquele que escava nao colocard a prova os seus mapas, 0 seu presente, assim como 0 corpo e o olhar na exploragio do passado."* Afirma Didi- Huberman (2013, p. 130): "Daf nao épreten- so minha, observando esse solo, fazer emergir tudo que ele esconde. Interrogo as camadas de tempo que terei de atravessar antes de alean- sé-lo, E para que ele venha juntar-se, aqui mesmo, ao movimento - inquietude - de meu préprio presente”. No Morro da Providéncia, um colorido centro histérico apresenta o passado visto do alto da cidade. Na superficie, a histria treme e berra O berro da ética Alerta Walter Benjamin (2012b, p. 123): *Faga-se arte, perega © mundo, diz 0 fascismo”. Do perecimento do mundo, signos precur- sores, pressentimentos, nosso organismo-como batidas de ondas. Ordem e harmonia neutrali- nais de perigo ndo atravessariam dia e n 14 Sobre o ato de escavar, Jeanne Marie Gagnebin (2012, p.34),Insplrada em Benjamin, afirma: "0 arqueélogo nao pode temer remover a terra do presente, isto ¢, colocar talvez.em perigo as eificacées que ali se erguem. Deve ficar atento a pequenns restos, a detrtos, rregularidades do terreno que, sob sua superficie aparentemeste lisa € ordenada, talvez assinalem algo do passado que foi ali esquecido e soterrado" Silencio e tompestade no Rode anc Insolncis da arte a cidade, zariam sinais, signos, pressentimentos de que algo poder acontecer. Do legado da arte fascista seria intitil a coragem e a atengao para 0 uso 0, de um mito, de uma utopia. Montagens ou urdiduras seriam vetadas. As batidas de ondas no corpo, aludindo ao coletivo poroso feito por inten- sidades do mundo, nao sinalizariam nenhum sinal de alarme. Sagrada, transformadora, afirmar-se-ia a arte. Do mundo morto restaria o corpo perpassado por idelas, ou por nada, cabendo-Ihe apenas contemplar a eternidade da cidade. Desta eternidade, nenhum atrevimento impedir ao seu habitante a resposta sobre o que ele 6, e 0 que deverd ser. A cida- de nao o deixard sem resposta, Seu rosto terd o infinito da Natureza, da Ideia, dos mitos do outrora, ¢ do presente, avesso as montagens e des- montagens dos restos, das narrativas, que ficaram na metade do cami- ho. Da arte fascista é ofertado o mito do amanha do novo homem, de uma nova cidade, apartados do mundo onde a morte, o jogo insolente, a hist6ria dissipam-se juntos ao rumor das batidas de ondas no corpo. 0 que mostraria a insoléncia de certa arte a esta proposta? dos pedagos, dos fragmentos frutos da implosao de um ente di 0 “museu de Estado’, em certas ocasides, sofre inusitado desa- fio. 0 passado vivo no contato com o solo irrompe no campo, desafian- do o tempo continuo que segue em frente desprezando as asperezas e acontecimentos da superficie do solo, Inusitada tempestade que pos- sibilita, no contato com o chao, uma singular aposta ética, Didi-Huber- man (2013, p. 128-129) afirma: 0s curadores deste mais que paradoxal museu de Estado chocaram-se ‘com uma dificuldade inesperada e dificilmente administravel: na zona que cerca os crematérios IV e V na orla do bosque de bétulas, a propria terra regurgita constantemente vestfgios das chacinas, As inundagées provocadas pelas chuvas, em particular, trouxeram incontévels lascas « fragmentos de ossos & superficie, de maneira que os responsdveis pelo sitio se viram obrigados a aterré-lo para cobrir essa superficie que ainda recebe solicitagdes do fundo, que ainda vive do grande trabalho da morte [..]. fm Birkenau, o solo do Kanada I, "vomita ainda

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