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Seon) MCR METS MCE Eee fixou-se entre os indios, aprendeu ACR Weel ece ace RTT Ela epopéia do portugués Caramuru, fell aOR re MY Coes erent Sere MS Ou Mey MU en eo ee Pree RUE eR te DUNO ArT Soc suk ee ace gears ee eee Ok err la Pontes entre sociedades que até entao tudo separava. Na virada Con RCA rich Meeker ere oc TT cee UA oreo (acy intensificou o intercambio de povos distantes. “Cumpriu-se Ola Re 0 poeta Fernando Pessoa. i f 480-1520 Passagem do século Cette acco Dc onc eros ee rncen Remains A passagen do soculo: HBO+4SG0 [AS ORIGENS DA GLOBALIZAGAO 0 mestigo,o imperador eo indio México, primelros anos do século XVI. Cai ‘noite na aldela indigena de San Jun Teo- tihuacén, Percebe-se entre os clardes cinza & rosados do crepisculo a massa da piramide do Sol, cujos gigantescos vestigios foram res- peitados pelos séculos e pela conguista es- panhola bo So, o€ Teoma, Monca ctcou sa 10 A passagem do sécul: sess Em San Juén, um cronista relé as paginas que acaba de escrever. Don Fernando de Alva chit € certamente um dos primeiros grandes historiadores latino-americanos, se ime permitem esse anacronismo. Esse mestico se gaba de descender de uma familia real indt- gena e € por isso que demonstra tanto entu- slasmo em escrever sua Historia de la Nacién chichimeca.Don Fernando interroga-se sobre o ano 1500 e fica extasiado com "las maravillo- sas obras de Dios Nuestro Sefior y el muy gran orden y misterio que en sitienen”, Por que essa data é tdo crucial para a Europa e para 0 Novo ‘Mundo? Nosso mestico teria nos respondido, sem vaclar, que o ano 1500 testermunhara do 2. Escuruna fecourape ro A RSD 00 Sel, Remsera us eine fatos decisivos para a histéria da Europa e do México. Foi nesse ano, na cidade de Gand, que nasceu "el felicisimo y poderossi imo emperador don Carlos (de gloriosa memoria) nuestro Sefor, isto &, 0 futuro Carlos V. que ria contro- lara Espanha,a Itélia, Sacro Impétio Romano- Germanic ea maior parte do continente ame- ricano.Ora,nesse mesmo ano de 1500 nascia no Mé- xico,a milhares de léguas de Flandres, 0 do qual esse mestigo era um descen- Apassagem do século: uo sn0 11 dente direto, Esse principe, assim como o imperador Carlos, estava predestinado a um futuro excepcion: lijeron que este infante habia de recibir nueva ley y nuevas costum- bres, ser amigo de gentes extrafias y enemigo de su patria y nacién. De fato,0 principe Ixtixéchitl daria uma ajuda decis tadores do México e partciparia diretamente da vitoria do cristianis- imo contra a idolatra, Hoje, pode-se achar graca das especulacbes do mestico mexicano. Eevidente que essa milagrosa coincidéncia,esse "mistério" s6 existia ra imaginagao de don Fernando. Servia para melhor ligar 0 passado da América, © mais exatamente 0 do México, & historia ocidental, como se estivesse escrito que 0s indios iam se tomar cristdos e obe- decer ao rei da Espanha. Assim, o tempo indigena e 0 tempo cristdo convergiam de forma providencial. Antes mesmo de se unirem em 1519, ano da chegada de Hemdn Cortés 20 México, as duas historias, nas palavras de don Fernando, se refletiam como num espelho. De wm séeulo a outro Seremos atualmente mais capazes de ler 0 passado sem manipu- |o. ao sabor de nossos interesses ou das modas do momento? 0 ano 1500 marcou de fato para a Europa e para a América um salto para uma outra época? Se 0s cortes cldssicos da hist6ria européia fazem coincidir essa data com a passagem da Idade Média para os Tempos Modernos, nnada permite supor que essa mudanga de século tenha a priori um significado para o continente americano. Seré que podemos conti- har a crer que as pulsagdes de nosso calendério deveriam natural- mente ritmar 0 curso da histéria universal, e que uma mudanca de século no Ocidente teria necessariamente um significado e um alcan- ce para todas as sociedades do planeta? Tanto mais que, de forma relativamente inconsciente, acrescentamos a essas mudancas de sé- 1 Appassagem do sécul culo um toque de angiistia ede suspense, como se essas datas fossem secretamente portadoras do fim dos tempos ou anunciadoras de um milénio de paz e felcidade. No entanto, mesmo sabendo que duran- te milénios a América e a Europa seguiram trajetorias radicalmente diferentes, um velho eurocentrismo ainda nos leva a imaginar 0 pas- sado pelo prisma do Velho Mundo que estenderia a qualquer prego as histérias dos Outros no leito de Procusto da histéria da Europa e do cristianismo. Para dizer a verdade, os descobrimentos europeus s6 tém sentido pata os europeus,e as teras e povos que os europeus passamia conhecer jamais brotam do nada. Feitas essas ressalvas e toradas essas precaudes, 0 fato € que 0 ano 1500 reveste-se de um significado particular para uma frago— ainda infima — da América e para uma parte da Europa,a das penin- sulas ibéica e italiana. Nao s6 porque é 0 ano do surgimento oficial do Brasil na rota dos portugueses, mas sobretudo porque marca 0 peerfodo em que foi selado o destino comum dos dols continentes.De fato, em 1500 faz oito anos que hé presenca européia no Caribe: uma primeira tentativa de colonizacéo sobre a qual ninguém na época podia imaginar que seria 0 prelidio da conquista e da ocidentaliza- <0 de todo.um continente,e até,na realidade, uma das primeiras eta- pas da globalizacdo. Por mais que a histéria do mundo néo se reduza da Europa e & da expansdo européia, e por mais que a historia da ‘América ndo se limite ao exterminio das populagées indigenas,o que entdo se passava nessa parte do mundo era, e continua a ser hoje, exemplar em muitos aspectos. Portanto, convém observar a passagem do século, primeiramente, nessasilhas tropicais do Caribe, ali onde pela primeira vez populacoes em tudo distantes se encontram e se enfrentam, raramente para o bem, quase sempre para o mal HA outra razéo’ para ii jar nossa viagem pelo Caribe, Foi nesse ponto do mundo que se realizaram, para os indigenas e em dimensées Apassagem do século:ween0 13 feals, as previsdes do Apocalipse e o fim dos ‘tempos que os europeus esperavam ver surgir os lados do Oriente e do Império Otomano. 0 primeiro chogue dos mundos A descoberta das "Indias" da- ta de outubro de 1492. Bem mais que 0 ano 1500, essa data costu- mava ser conside- rada a verdadeira linha divis6ria en- ‘tre a época medieval e os Tempos Modernos.A 3.48 Mostaent, noticia do descobrimento espalhourse depres SNOMED sa pela Europa da época. Um tratado impresso «1521 em Sevitha em 1493 afimava que ‘no hay 9*#TeRRawHcox0: gente tan bérbara, aunque sea en las Indias Svmsurrnnene ny remota, que ya de ‘tan prosperos vencimien- _assactes comtrioos tos sa ignorante"! No inicio do século XVI,nos Te smes stows teritérios dominados pela coroa de Castel, espalhou-se a idéia da novidade absoluta do acontecimento:nunca se via algo assim desde o nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo E preciso imaginar essas ilhas na véspera da chegada das primerascaravelas. ‘ns que cuitivam a mandioca,abatata-doce,o mitho € 0 algodo, que conhecem a arte dos mares e se deslocam de ilha er des pirogas. Poderosos 1a em gran- ciques" & frente de 14 A passagem do século: mitfades de servos naborias, querretos que entre um combate e ‘outro entregam-se ao jogo de bola ou batey, os bohites que absorvem a fumaca do tabaco para ver os ancestais,curar as doencas ou con- ‘versar com os deuses. A bem da verdade, nada sabemnos da vida coti- diana dessas populacées, de suas esperancas.e de seus medos.S6 nos restam migalhas de informagées e as impressées recolhidas pelos europeus que se aventuraram por esse mundo a partir de outubro de 1492. As primeiras imagens so paradisiacas: uma vegetacao exuberan- te, guas limpidas, aves raras,produtos cobicados — aloés,canela —, ctiaturas nuas, bonitas e acolhedoras. Exageros de viajantes impres- sionados pela magia dos trépicos, clichés inspitados no Paraiso terres- 20 do paraiso” — para retomaro titulo do grande livro de Sérgio Buarque de Holanda — nasce nos anos 1490 nessas terras jamais vistas. Os primeiros tempos também surgem sob o signo do ure. AS ni antes de mais nada, entusiasmantes: te,essa ias que os conquistadores levam para a Espanha séo,, Se coge el oro cavando a la orila del rio, De inmediato,en efecto, brota el agua a borbotones; primero mana algo turbla, después, a poco de recobrar su color cristalino, quedan a la vista los granes de oro que estén posados en el fondo por su pesantez, de mayor y menor peso que una dracma de oro, de los que Hojeda en persona cogié muchisimos. Lo més mara rfa de escriir de no haberlo escuchado a un hombre bajo juremen- 50 ain es lo que me avergonza~ to: al golpear con un mazo una roca que esta junto al monte, se der- ram6 gran cantidad de oro por doquier brill «on resplandor inenarrable? ‘on centellas doradas Explica-se 0 tom exaltado dos primeiros visitantes que anunciam icos:e-los prestes a se torna- 5 mas présperos y més ricos principes del mundo”.* Outras tum futuro esplendoroso aos Reis Cat rem has como a Guadalupe pareciam ter em abundéncia almécega,gen- gibre, incenso e sandalo,riquezas mais que suficientes para darem a dupla coroa de Castela e Aragio ‘os meios de exercerem uma voca- ‘s30 mundial J4 em 1496, depois das tenta- tivas malogradas em Navidad ¢ Isabela, surge primeira cidade européia da América: So Domin- 905, com seu plano em forma de tabuleiro de xadrez, 0 qual serd reproduzido pela maioria das cidades das {n- dias ocidentais. Uma sociedade colonial, a pri- meira da América, af se implanta no dltimo decénio do século XV. Ela é urbana, & imagem dda que os espanhdis deixaram em sua terra, apressados em criar nessasilhas as villas, isto 6, vilarejos onde convivem, num semblante de cendtio e de vida 8 européia, embora essas localidades, quase sempre sem futuro, sejam fundadas e abandonadas com idénticarapidez. E que em poucos anos as realidades locais se encarregam de dissipar os entusiasmos dos primeiros tempos e de desmentir os balangos triunfais que Colombo e seus partidérios espar thavam. Quase sempre falta aos recém-chega- dos 0 mais estrito necessério e eles s8o inca- pazes de satistazer as préprias necessidades. ‘Até mesmo Colombo deve suplicar aos Rei ‘Apassagem do século:tae.si 15 4. Cusovho Covoue Naso e145 Gino, Ica, Pomusa, Maoene «Gua, orca quran exe0goes mak Nove Muro. Et 1500, 49 anes 16 A passagem do século wan Catdlicos que Ihe enviem o mais depressa possivel os objetos e mer- cadorias mais elementares. Aids, o Almirante revela-se um pifio ad- ‘ministrador, 0 primeiro regime colonial, uma experiéncia improvisa- da cujos erros ¢ falhas tiveram um custo humano considerdvel. J& fem 1494 chegam criticas & Espanha, Acumulam-se as queixas contra © Almirante, ‘publicando que no habia oro [1 y que todo era burla cuanto el almirante decia"S A evangelizacio inicia-se com extrema lentido, por falta de intérpretes. A explorago das novas terra pare- ce cada vez mais uma iniiativa t8o drdua quanto dispendiosa.Os Reis Catélicos, que em 1494 cogitam em enviar mil homens para "poblar tas Indias", mudam de opiniao, voltam atrés e, no ano seguinte, cor- tam esse total pela metade,exigindo que sejam repatriados os bandi- dos e 05 parasitas E, em 1495, aparentemente o monopélio de que Colombo gozava vai por égua abaixo: outros espanhéis recebem autorizacéo “de ir a descubrir otras isas y tierra firme a la parte de las Yndias en el Mar Oceéno"? Nesse mesmo ano, Colombo resolve despachar quinhentos es- cravos indigenas para Cadiz. Na falta de ouro e de prata,a Hispaniola tem um capital em recursos humanos pronto para ser explorado, as- sim como se havia feito nas Canérias, deportando os guanchos, assim como 08 portugueses praticavam havia anos na costa da Africa. O sonho das montanhas auriferas se dissipa para dar lugar ao tréfico de escravos, embora Colombo também anunciasse o enwio de “br fuestete y cobre" O brasil era esse pau de “brasa" do qual o Bra alguns anos mais tarde, despacharé carregamentos intelros para a Europa. Enquanto nas ilhas a autoridade do Almirante € cada vez mais contestada, na Espanha os soberanos catdlicos preocupam-se com a legalidade do trafico de escravos e com o custo da empreitada tran- satlantica em relagdo as quantias investides. As ilhas, agora, jé n8o fazem muito sucesso na Europa. Numerosas s80 as desercdes. Deve- Apassagem do século:wse1s20 17 se garantir aos que aceitam partir possibllidade de voltarem “en as primeras caravelas que de las Yndias vinieren’. No mais das vezes, 60 candidatos & viagem preferem desaparecer antes do embarque, ‘do sem ter embolsado o adiantantento que Ihes dao. As indias esta- vam longe de responder as esperancas materiaise as ilusdes que se criaram, Quanto aos indias, sua sina foi catastréfica, Aids, quem se preocu- ppava com isso? Foi preciso esperar 0 domingo do Advento de 1511,e © sermao de grande repercussio do dominicano Antonio de Mon- tesino, "la Voz que clama en el desierto", para que o naufragio fisico € espiritual das populagdes indigenas fosse publicamente criticado diante dos colonos europeus. Muito cedo 0 entusiasmo religioso do ‘Almirante fez Isabel, Catélica,vslumbrar a grandiosa possibilidade da conversio dos indigenas. "Otra cosa no me falta para que sean todos christianos salvo no se lo saver dezir ni predicar en su lengua.”? Na verdade, a crstianizagdo nunca esteve na ordem do dia, Por outro lado, é conhecida a série das desgracas que enfraque- ‘em e depois dizimam os autéctones: epidemias e subalimentacéo, ‘massacres e maus-tratos,exploragio desenfreada dos sobreviventes, destruiggo do meio ambiente e dos modos de vida tradicionais, de- Portagdes macigas. passagem de um século a outro serd nas ilhas lum inferno que jogara no nada civilizacbes e geraces de indigenas. ‘Arauaques, tainos, caraibas, sociedades inteitas pagaram por essa aventura atroz, Mal foram descobertas, do de imediato engolidas.. Mal enraizada, frégil, instével, incontrolével e incontrolada, a Jovem sociedade colonial é incapaz de ser outra coisa além de uma maquina de destruira fauna,a flora @ 08 homens: os ind) bbém os europeus, dos quais uma parte sucumbe ao clima, as doencas — assflis, as febres — e as mas condigdes de vida. Os animais vin- dos da Europa também participam da Conquista e do desastre,Os por- 2S largados pelos invasores destroem as culturas de subsisténcia e a as tam 18 A passagem do século: waos0 fome corréi populagdes as quais os espanhdis mal delxam tempo de se ocuparem de seus afazeres agricolas, Exangues, esgotados e priva- dos de sistema de defesa imunol6gica,os habitantes das ilhasnéo ofe- recem a menor resisténcia as doencas novas de que s4o portadores os brancos e, com eles, os negros. Como todos os outros amerindios, durante dezenas de milénios os ilhéus tinham vivido sem nenhum contato com o resto do mundo. Esse isolamento os expés a todos os micrdbios e a todos os virus levados pelas caravelas. A variola, a malé- ria eliminaréo aqueles que seréo temporariamente poupados dos maus-tratos. Ao se desencravar a América, assinava-se 0 atestado de bite deles. A partir de 1508, a desertificacdo humana incita a exploracao do viveiro das Bahamas: essa deportacao macica introduz quarenta mil indigenas em Hispaniola. Quatro anos depois, as reservas humanas das Bahamas também estéo esgotadas. A coroa comove-se com a situagéo, mas é impotente diante da extensdo do desastre e da difi- culdade de intervir numa terra tao distante. Perdeu o controle da situagao, cujos ecos sinistros Ihe chegam do Oceano, As medidas pro- postas pela coroa de Castela sdo tardias, inadaptadas ou inaplicaveis. Vozes autorizadas da administragéo espanhola prognosticam para 1520 a extingéo da populacao indigena. No se enganam muito. ‘Quando Las Casas,o grande defensor dos indios, comeca sua cruzada em favor dos indigenas e denuncia a situagao das ilhas, ja é tarde demais. Diante da destruigao da populagao autéctone, uma nova solucéo, vai se impor: importar negros da Africa portuguesa e do Cabo Verde, ” pedindo autorizacao ao rei de Portugal. € em 1518 que tem inicio 0 ‘rAfico de negros da Africa para a América espanhola, depois que as primeira licengas de importacio foram concedidas aos feitores ge- noveses é aos circulos préximos do novo rei de Castela, o futuro Car- los V. Outra decisdo também tera importancia ¢: Se os religio- Apassagem do século:sanist 505 hieronimitas,enviados para governar Hispaniola, nao so capazes de controlar a situacéo, conseguem desenvolver a industria acucarel- Fa que fizera uma timida aparigdo nas ilhas ja na segunda viagem de Colombo, Em 1515, um médico de S80 Domingos manda buscar nas ilhas Canarias, as suas custas, especialistas em plantio de cana-de- agicar"Molé e hizo azucar primero que otto alguno".” Ao retornar 8 Espanha o cronista Oviedo iia ter o privilégio de entregar ao mori- bbundo rei Fernando as primeiras caixas de cana-de-acticar. Alguns anos depois, um primero ingenio comecaria a funcionar em regime continuo no vale de Nizao, Os investimentos nao tardariam a se mul- tiplicar,em especial nos arredores da cidade de S40 Domingos, onde a5 chuvas,a fertilidade dos solos ¢ das lorestas ainda vitgens ofere- cam excelentes condices. Uma populacdo autéctone reduzida a nada — ela teria passado de um milhao a cinco mil —, acicar, negros: um novo futuro para as Antihas esta progressivamente se criando, Negros, agucar e, como pano de fundo, o desaparecimento da populagio indigena: isso faz Pensar na colonizagéo do Brasil, que ainda esta balbuciando. Mas luma outra América — 0 México — jé desponta na mira dos castelha- nos. Em 1519, 8 frente de uma pequena frota e de uma armada, Hernan Cortés se langa 8 conquista do México, A aventura das ilhas é exemplar para toda a América, espanhola, inglesa ou portuguesa, pois al se desenvolve um roteio que se repro- duziré em varias outras regides do continente americano: caos esbanjamento, incompeténcia e desperdicio, ndiferenca, massacres e epidemias. A experiéncia serviré pelo menos de ligao 3 coroa espa- hola, que tentard praticar no resto de suas possesses americanas uma politica mais racional de dominagéo e de exploracao dos ven- cidos: a instalagdo de uma lgreja poderosa, dominadore e préxima dos autéctones, asim como a instalag8o de uma rede administra va densa e o envio de funcionsrios zelosos, que evitardo a repeticio i i 10 A passagem do sécul: rates da catéstrofe antilhana, Mas esses esforcos nao conseguirdo conter os efeitos mortiferos das epidemias nem temperar 0 caos generalizado, gerado pela conquista militar e pela crise morta das civilizacoes panicas." 0s sonbos do Almirante Ha um abismo incomensurével entre a realidade sordida das ilhas 5. Covouso aromanoo € © que precupa Colombo ou os letrados europeus na virada do século XV, Se 1500 € um ano sombrio para Crist6vo Co- lombo, que volta a Castela preso em correntes, as decepgdes do navegador tém pouco a ver com 0s tormentos das populacdes antlhanas, © mundo de Colombo — um mundo que ele construiu medida que foifazendo suas desco- bertas — e 0 dos cientistas europeus tentam fazer uma sintese dos saberes da Antiglida- de, das especulacées da cosmagrafia medie- val e das conquistas proporcionadas pelas ex- ploracdes portuguesas. Como todo debate de idéias, esse ajuda a nos aproximarmos do pen- samento da época. ficou 0 “descobrimento” de Cris- tévdo Colombo? O que ele procurava do outro lado do Oceano? Nem sempre &fécl saber, pois teoriasintuigdes e esperangas messisnicas nao param de se atropelar na cabeca do genovés. A passagem do século Sabe-se que Cristovao Colombo néo descobre a América, pois imagi- na estar chegando a A: de Cipango (0 Japao), perto da costa dda China e da corte do Grao-Cé. Que procurava’ As “Ilhas Douradas", Tarsis e Ofr, de onde safram as fabulosas riquezas que o rei Salomao cexplorara, Cristévao Colombo nao alegava que Ofir era simplesmen- spaniola, hoje ilha do Halt? Alds,o Almirante era um ‘homem obstinado. Convencido de ter chegado ao continente asistico quando desembarcou em Cuba, ele obrigou seus par harem de sua idéia fia, Em sua terceira viagem (1498), tentou ating! ha famosa, de Taprobana, que os AAntigos haviam mencionado, Na verdade, ele descobriu uma terra sobre a qual escreveu: Esta tierra de acd es otro 05 Reis Catélicos:"Vuestras Alteza: lembrando 0 papel que fora o sé mundo’. Transmitiu a n nen acé un otto mundo’, nuevo cielo das, um mundo onde brilhavam outras estrelas, desconhecidas dos 2uropeus, como esse Cruzeiro do Sul que os portugueses tinham des- coberto no Atlintico Sul, Portanto, Colombo imaginava navegar nos tastros dos geégrafos da Antigilidade, dos ujas afirmagdes ele podia ir verificando ao longo de suas expedicdes. ‘Mas nao teria o Almirante empreendido todas essas viagens para confirmar as escritos deixados pelos antigos? “Vuestras Altezas tienen acd un otro mundo [...]. Del nuevo cielo y tierra me hizo mense Como compreender essa dupla afirma- 60? A formula sintetiza 0 objetivo dltimo que o Almirante que fixar para suas viagens e reflete o clima de excitacéo intelectual e ‘mental que reinava no fim do século XV. Para Colombo e seus contem- Poraneos, 0 sentido uitimo das coisas s6 podia ser religloso: tudo inio e dos Ptolomeu, 2 Apassagem do século: wie-1520 estava obrigatoriamente na Biblia, o passado o presente, Aos olhos do genoves,o significado de sua descoberta estava na realizaco de ‘uma profecia do Antigo Testamento.O Almirante se convencera de que © profeta Islas conheea as terras novas das quaisfalara em diversos trechos da Biblia sala teria inclusive dado a entender que era a Espanha que as evangelizaria, Assim sendo, a para nao dizer metafisica, da Espanha e a de Colombo eram a mesma, "Para la ejecucion de la ‘empresa de las Indias", proclama Colombo em 1501,"no me aprove- ché razén ni matematica ni mapamundos:llenamente se cum que di tou uma citacdo do Apocalipse de so Joao: lo Isafas."* E, como se isso nao bastasse, 0 Almirante acrescen- vviun nuevo cielo y una Messianismo e final dos tempos ‘A teferéncia & profecia de Isafas coloca o descobrimento fuma perspectiva messianica;o advento da nova terra e do novo céu devia acontecer no meio da paz universal: "Lobo y cordero a una pastarén, y ellen comerd paja con el buey, més la serpiente tendré polvo por alimento’.'* Avido por precisées,o Almirante chegara inclusive a cal cular que o fim do mundo ocorreria ao final de 155 anos." Diante disso, os esforcos de Colombo ganham pleno significado, E nao é por acaso se a imaginagao do Almirante se inflama nos i mos anos do século, uma época tao fértil em inquietagdes escatol gicas.A descoberta geografica permitirialevar a bom termo 0 gran- de projeto com que os cristaos sonhavam desde sempre. Colombo esperava apoderar-se das riquezas da India para reconquistar a cidade de Jerusalém e talvez até reconstruit 0 Templo de Salomao, Os titulos recebidos pelo Almirante — "Almirante del mar Oceéno y Visorey y Gobernador de las islas que se han descubierto en las Yndias"” — o confortavam na idéia de que ele devia cumprir uma Apassagem do século:se0 isi) 3 missdo excepcional. 0 cosmégrafo cataléo Jaime Ferrer de Blanes no o saudava como "a eleito da Divina Providéncia"? Dizia ele: Breve estareis, pela graca divina, no sinus magnus perto do qual ficou o santo corpo do glarioso Tomé. 0 que a verdade suprema afr- 'ma sera realizado, a saber, o mundo inteiro estard sob a autoridade cde um s6 pastor e de uma s6 lei” Mas ai surge mais um detalhe enigmdtico: que o Almirante tenha tido obsessao pela conquista de Jerusalém, como a maioria dos crs- 105 de seu tempo, néo é nada surpreendente. Colombo, porém, pre= tendia conseguir a reconstrucéo do Templo de Jerusalém, "teedificar la Casa del monte Sién’.” De que modo interpretar um projeto tao Pouca ortodoxo? Pois essa preacupacao era tipica dos judeus, e nao dos crstaos. Se o Templo de Jerusalém tinha sido destruldo, era para Punir a perfidia dos judeus que haviam se recusado a reconhecer 0 Messias. Os istdos acreditavam que o Templo seria reconstruido no final dos tempos, mas pelo préprio Anticristo:"El Anticisto reedifica- ‘la antigua Jerusalén, en fa cual ordenaré que se le adore como a lun Dios"2* Por outro lado, a reconstrugdo do Templo era uma das esperancas alimentadas pelas populacSes judaicas geracdo apés ge- ‘ago. Assim sendo, como explicar que o Almirante tenha se entu- slasmado por essa novas thas? ciativa que ele financiaria com as riquezas das ‘Sem transformar obrigatoriamente Colombo num italiano de ori- gem judaica, pode-se pensar que a influéncia dos conversos, esses judeus convertidos @ forca ao cristanismo, era tao ativa na sociedade castelhana que suas idéias Impregnavam outros melos, nao necessa- riamente suspeitos de serem judaizantes. Messianismo e milenarismo aproximavam as religides do Livro tanto quanto as separavam. Nao ‘nos esquecamos também de que nessa época os financistas conver- 595 eram influentes em torno do rei Fernando de Aragio e que tive- 14 A passagem do século: ra50 ram um papel considerével na preparacéo das expedigées atlanticas na colonizacao do Caribe 0 mistério das ithas novas As interpretacées do Almirante também devem ser colocadas no contexto das hipéteses que eram formuladas sobre as ilhas recém- descobertas,e na efervescéncia intelectual provocada por esse acon- tecimento.Por volta de 1494,na corte de Castela,sbios e humanistas sustentavam tearias tio fantasiosas quanto as de Colombo. Alguns colocavam as ihas no golfo Pérsico, identificando os indigenas das, Antlhas com os habitantes da Aftica oriental; outros falavarn das Hespérides. Os Reis Cat Colombo se era verdade que havia por Id dois invernos e dols verdes ppor ano, como na fabulosa Taprobana, a mais afastada das ilhas das Indias, segundo os antigos.0 cronista Pedro Martyt,um italiano insta- lado na corte de Isabel, identificava a ilha de Hispaniola com uma itha chamada Antiglia.Outros afirmavam o contrérlo:a Antila,descoberta utrora pelos portugueses, no era a Hispaniola. Ela havia servido de refigio aos espanhdis que fugiam dos sarracenos, mas desde entio rninguém a encontrara A geografia da Antigiiidade nao parava de inspirar hipéteses aos navegadores @ aos letrados. Muito se falou de Taprobana, essa ilha igantesca que acabamos de evocar. Era a Taprobana que Colombo procurava em sua terclra viagem,e foi nos rastos do Almirante que se lancaram outros navegadores como Vicente Yafiez Pinz6n (1499- 1500), Diego Lepe (1499-1500) e Alonso Vélez de Mendoza (1500- 1501). Nenhur,é claro, descobriré a Taprobana, mas se chegard,oque {8 &alguma coisa, costa de uma terra que serd chamada de Brasil No entanto, foi preciso aceitar 0 ébvio, Existia de fato um outro continente.€ ¢ ai, a vésperas do ano 1500, que a expresséo "Novo icos também se intrometiam, perguntando a Apassagem do século: eis 2s Mundo" comega a aparecer nos textos dos cronistas antes de ser popularizada nos de Amético Vespuicio.® Essas discusses podem nos parecer um tanto obscuras e inttels. Elas nos recordam que os europeus do final do século XV nao imagi- avam de jeito algum o mundo e os continentes como o fazemos hoje. Revelam sobretudo a velocidade vertiginosa com que 0 co- ‘nhecimento do planeta evoluiu nese final do século XV. Todos os saberes se juntam a fim de contribuir para situar geograficamente 05 descobrimentos e projetar Castela numa concorréncia furiosa com 0 vizinho Portugal. Num reino que se abre ao humanismo do Renascimento a seu culto dos autores antigos, as velhas crencas medievais estdo se unindo aos saberes mais recentes para dar novas ambigGes aos Rels Catdlicos.De fato,é 0 amdlgama entre o antigo eo ‘modesno que da tanta forca a esse projeto politico, da mesma forma ue dinamizou a empreitada colombiana, Demoremo-nos um instan- te nessa Espanha que ainda nao sabe que conhecerd no século XVI 0 apogeu de sua grandeza (0 destino extraordindrio do reino de Castela No fim do século XY, Sevilha e Medina del Campo estavam em via de se tornarem os postos avancados europeus da América. Era ali que 05 frequeses e os curiosos podiam se extasiar dlante dos primeiros Indios, os guacamayes e os hutias trazidos das ilhas, Em 1500, Medina del Campo tem feiras présperas que mantém lacos com todas as grandes pracas financeiras da Europa. Em 1500, Sevtha jé conta com uarenta mil habitantes. Embora a cem quildmetros do mar, o porto de Guadalquivr jé estave de olho num tréfego atlantico ainda am- Plamente em méos dos portugueses. Na época, a prosperidade de ‘Sevilha vern de suas terras rieas em cereals, vinhos, ollvals ¢ frutas. A cidade importa peixes portugueses, especiarias do Oriente e tecidos 26 A passagem do século: see 6. Soma: A Toe ot (Oe eas mance 26 Guaonquve suo XV, 05 rates 0 bos 99 Ca de Flandres. Uma imponente catedral, cons- truida sobre 2 antiga mesquita, domina os cas abarrotados do Guadalquivr. Em 1503, 05 Rels Cat6licas criam a Casa de la Contratacién, no modelo da Casa da India de Lisboa. Essa agén- cia governamental tem a misséo de controlar 0 tréfego na Espanha e no Novo Mundo, ¢ inc sive possui um escritério de hidrografia e uma escola de navegacdo que emprege Vespucio como piloto mayor. Em pouco tempo, 0 ritmo das frotas que subiriam 0 Guadalquivir fara a fortuna dos sevilhanos, assim como influencia~ ria a atividade das feiras e 0 mercado de cém- bio de Medina del Campo. Mas seré preciso fazer a conquista do México,e depois a do Peru, para que Sevilha se tore a porta obrigatéria do Novo Mundo. Em 1500, Isabel, a Catélica, tem 49 anos. 56 Ihe restam quatro anos de vida. Nada predis- Apassagem do século: oss 27 punha seu reino a co- nhecer um destino ame- ricano, Na verdade, a segunda metade do sé- culo XV fora para Cas- tela um tempo de softi- dade e, depois, de consoli- dado, sob 0 comando dessa mulher bela e enérgica que subira a0 trono em 1474.0 casa- mento de isabel com 0 rel Femando de Aragio introduzira um vinculo dindstico entre os dois mentos ¢ insta reinos ibéricos. Reforcou uma Castela que, em 1492, conquistou a cidade de Granada: uma vitéria dos cristdos que anunciou 0 fim do di ‘mo reino muculmano da Espanha e da Europa, Para Isabel e os castelhanos, 0 aconteci- mento era, sem a menor duvida, bem mals significative do que a primeira viagem de Crist6vao Colombo. A tomada de Granada fol extraordindria, Nas palavras do cronista ita- liano Pedro Martyr, Granada, a "Cidade Ver- melha’, a ex-capital dos nastides, era a mais linda cidade da Europa Veneza esté cercada pelo mar por todo lado; Florenca, cingida de mantanhas, sofre sempre terriveis invernos, ¢ Roma (@) cons- ‘antemente fustigada pelo vento do Sul que 7. Granaoa:0 Avanos Os estamos ave os roe aces eo Avtawana, cu 28 A passager do século: 10109 ‘raz oar pestilento da Africa, e abafada pelas emanacées das teres pantanosas do Tibre. Granada, ao contri, goza de um outono eter no, Os arredores s8o tdo delcadamente omamentados que evocam 0s Campos Elisios pelos quais a agua corre continuamente:® Mas outras razbes menos poéticas faziam dessa vitéria uma data crucial da histéria da Espanha,O ano de Granada, 1492, fol também o dda expulsio dos judeus, com muitos deles indo para Portugal em busca de uma terra mais hospitaleira, A vitoria contra o Isid e a solu- 4s80 da "questo judaica’ nos leva as obsessdes da época. Os Reis Catélicos faziam uma cruzada, tanto quanto uma politica de expan- so militar A idade de ouro do messianismo espanhol™® Nesse fim de século, as expectativas milenaristas do Almirante éencontravam, pois, um eco na Espanha de Isabel e de Fernando, onde circulavam indimeras profecias.* Os novos horizontes descortinados pelos descobrimentos atlanticos e a vit6ria de Granada eram, muito naturalmente, interpretados em terros religiosos.A empresa m: ‘ma tinha elementos de sobra para seduzir os Reis Catélicos,abrindo- thes extraordinérias perspectivas de futuro:converter as almas desses rmithoes de indigenas escravos do deménio e construir um império transoceanico que se tomasse o prime ii visivel do mundo. Toda a visdo Imperialista se expressava na época por meio de ‘uma linguagem metafisica e escatolégica que explorava as velhas crencas sobre a domina¢éo do mundo, ofim dos tempos eo triunfo do cristianismo. Jé em 1493, em Roma, na corte do papa Alexandre ‘VI — um valenciano da familia dos Borja" — 56 se falava do fabulo- so destino reservado aos Reis Catdlicos.” A alianca do Lego de Caste- la edo Cordeiro dos Borja, respectivos emblemas das duas familias, elo de uma soberani Apassagem do sécule: oss evocava uma famosa ima- lagrosa coexisténcia dos dois animais, "durmien- do en el mismo cubi nal precursor da vinda do Messias. Era pelo menos 0 ‘que afirmava o embaixador dos Reis Catélicos a0 sumo pontifice, apoiando-se em profecias atribuidas a santo Isidoro e a santa Br papa, Isabel e Fernando de- viam vencer todos os outros monarcas do mundo, ¢ a descoberta de Crist6vo Colombo, tanto quan- toa queda de Granada, eram de fato a prova da missdo providencial que os aguardava nes- taterra Em Roma, as especulagdes messiénicas circulavam a todo vapor. Inspiravam as aren- 925 dos diplomatas e conferiam as especula- Ges sobre o futuro a forca dos textos sagra- dos. As afirmacdes feitas diante da Curia romana repercutiam as pretenses espanho- las e encontravam uma acothida favorével nos meios letrados da capital pontifical. Um orador nao chegou até a afirmar que a queda de Granada havia sido 0 aconteci- mento mais glorioso ocorrido desde 0 nas- cimento de Jesus Cristo? 0 titulo de "Reis B Issn, 4 Carduca Nasco 14 sts com Fema oe ‘Atacko a 1469, 08 00M 0: CAST BM 147 econgusao eno o¢ Gasass Eu 1800 re 49 anes, Monte qu aos 8 30 A passagem do século: stat Catélicos" que o papa outorgara a Isabel e Fernando nao significa- va "monarcas universais"? Os humanistas que cercavam 0 marido de Isabel também sabiam cultivar essas ambigoes messianicas. Nascido em 1452,trés anos depois de sua esposa, Fernando, 0 Catdlico,reforcou o poder real, controlou as ordens mi Esse soberano admirado por Maquiavel tinha como emblema oné g6tdio desfeito, um simbolo antigo que permitia augurar que ele dominatia a Asia e faria a reconquista de Jerusalém, Joachim de Flore — um monge do século XIl a quem se atributam profecias de todo tipo — nao chegara a anunciar pessoalmente que a Cidade ares e conquistou Népoles em 1504. Santa seria tomada pelos espanhdis?” Era essa fabulosa conquis- ta que a queda de Granada prefigurara. Depois da tomada de Mélaga, os Reis Catélicos teriam apenas de conquistar a Africa para acabar de vez com o Isl. Fernando, até a hora de sua morte, viveu convencido de que nao morteria sem ter reconquistado @ Terra Santa, Especulava-se sobre o futuro com base nos milagres, leribrando- se 05 prodigios que haviam acompanhado a guerra de Granada, pois durante a campanha a peste e 0 frio glacial tinham mitagrosamente poupado o campo dos cristdos.” Outro personagem do reino,o car- deal Cisneros, ria juntar-se a essa galeria messidnica, por ocasido da expedigdo a Ora (1509). Profecias de inspiragao joachimita anuncia- var que o cardeal “estava convocado para se tornar esse pastor ange- Jicus que, a partir de Jerusalém enfim libertada, reformaria a igreja inteira"2” Mas parece que @ opinido publica espanhola nao se dispos a seguir seus dirigentes até 0 Egito e Jerusalém.” ‘As esperancas politicas e 0s sonhos messianicos dos Reis Catblicos ‘também eram a traduco dos éxitos que eles acumularam.Excelentes relacdes com Alexandre VI permitiram-Ihes negociar seu futuro impé- rio mundial nas melhores condigdes. Em 28 de junho de 1493,0 papa Apassagem do século:re.si0 1 publicou a bula Intercaetera, antedatada de 4 de maio de 1493: ela ‘outorgava a isabel e Femando todos os territérios descobertos ou a descobrir em diregdo das Indias, mais além de uma linha situada a em léguas a oeste dos Acores e do Cabo Verde. Mas o rei de Portugal, Jo3o I, protestou contra a decisdo do papa « conseguiu @ abertura de negociacbes que terminaram com a assi- natura do Tratado de Tordesilhas,em 7 de junho de 1494:0 mundo foi dividido em dois hemisférios por um meridiano que passava a 370 léguas a oeste das ilhas do Cabo Verde, Portugal obtinha a secao oriental etrancava 0 acesso da Aftice negra aos castelhanos, enquan- 10.05 espanhaisreservavam para so setor ocidental” Esse gesto imperiaista fora preparado por uma série de bulas dadas pelo papa a Portugal e pelo Tratado de Alcégovas-Toledo, assi- nado entre Lisboa e Castela (1479-1480). Como divide o mundo de acordo com crtérios geométricos — seguindo uma linha que vai de um pélo a outro, sem nenhum respeito pelos direitos dos povos que ram separados —, foi esse tratado, sem a menor diivida, a certido de nascimento da globalizacéo. Precisava-se de toda a ciéncia dos sabios ibéricos,além de todo 0 entusiasmo messisnico e da sede de poder que animavam seus respectivos soberanos, para imaginar essa decisio de alcance planetétio. ‘Mas os Reis Catélicos ignoravam que o futuro iria se encarregar de dar razéo 3s suas mais ambiciosas esperancas. Dessa vez, foi menos @ mao da Providéncia do que os efeitos imprevistos de uma politica dindstica que ultrapassava as fronteiras da Peninsula bem da verdade, de inicio esteve-se a beira da catdstrofe quan- herdeiro Juan morreu em 1497, 20s dezenove anos, se de seu casamento com Margarida da Austria. As can- Bes de Juan del Enzina, um dos maiores musicos espanhdis da <ép0ca,exprimem com um desespero contido a tristeza que se apode- rada corte e de Castela, 2 A passagem do século: tan150 Toda Espata sin ventura, todos te deven llorar. Despoblada de alegria, para nunca en ti tomer, tormentos, penas, dolores te vinieron a pobiar..® Quem herdaré 0 trono de Castela? Miguel, iho do rei de Portugal, que iria teunir sob seu manto os trés reinos de Portugal, Aragio e Castela? O destino decidiu de outra forma, Miguel more em 1500 €6 Joana, 2 Louca, filha dos Reis Catdlicos, que se torna a herdeira das cduas coroas. Em 1496, ela se casara com o arquiduque Filipe, o Belo, herdeiro dos poderosos duques de Borgonha. Em 1500, em Gand, nasce Carlos, filho dessa unigo. $6 vinte anos depois se saberé que essa data & capital. Em 1506, o jovern principe herdava os Paises Baixos, Luxemburgo, Artois, Flandres e a Borgonha. A morte de Fernando de Aragao, em 1516, fez dele o rei de Castela, Népoles e Aragao;trés anos depois, seria eleito rei dos romanos,o que Ihe vale- tia cingir a coroa do Sacro lmpério Romano-Germanico. A heranca espanhola passava &s méos daquele que, para nés,se tornard oimpe- rador Catlos V.No seu distante México, um século mais tarde, o cronis- ta mestigo Alva Ith rnascimento. céchitl saberé rememorar a importancia desse A Itdlia dos negocios e do bumanismo A da peninsula Ibérica, pois desde a Idade Média os aragoneses nutriam uma voca- «Bo mediterranea e de longa data estavam implantados no sul da eno reino de Napoles. Em 1494, franceses e aragoneses tinham lutado para conquistar janga de Castela e Aragio aproximara a acabou seus dias cercado por uma corte brilhante, Al- guns anos depois, esmaga- dos em Gaeta, os franceses renunciavam a0 reino e se contentavam com o Milanés. Com seus 150 mil habitan- tes, Napoles era a cidade mais povoada da Europa do Renascimento, Os navios se amontoavam na som brade seus castelos onde tre- mulavam centenas de ouro- pes, enquanto a fumaca do Vestivio, com suas encostas cobertas de vinhe- dos, impressionava os visitantes, Mas Népoles também era uma cidade de humanistas e le- trados, como prova 0 papel desempenhado por Sannazaro ou pela academia fundada por ‘acon era tenido por uno de los liteatisimos y doctos hombres de italia"? Em 1500 Roma tem trinta mil habitantes. é «a capital da crstandade, um dos focos mais at vos do Renascimento,e tem ruinas antigas que rninguém deixa de visitar. Um papa valenciano, Alexandre VI Borgia, uma forte colonia espa- nhola, embaixadores de Castela apalxonados pelo humanismo comprovam as relacées es- treitas que unem a capital pontifical e a pe- ninsula Ibérica. Entre um escindalo e outro, Apassagem do século:sanrs0 33 8. Roma: 0 nane ‘Agno VI Bora Rookea Boxes fr ro. NscH0 ane 91 1492, 2 68 05 e150, Foxe que H2& (Oceano eu Casa Pomc, 4 A passagem do século: = ressoavam na corte pontifciaos apelos para @ cruzada contra os turcos, procurando 0 papa Borgia mobilizar os principes da crstandade, Em 1500, as festas do Jul 10 de europeus, cate m também cutiosos, bandidos e prostitu dos para aproveitar uma ocasigo t3o excepclo- nal de ver gente e encher os bolsos.Cidade pie- dosa ou nova Babildnia? Em todo caso, Roma continua a ser uma cidade de arte: aquela em ‘que Alexandre VI confia a Pinturicchio a deco- ragSo das seis salas do apartamento Borgia no Vaticano, aquela em que,em 1506, abrem-se os ‘anteiros de obras da nova bastlica de Séo Pe- dro sob a direco de Bramante, Mais a0 norte, da Toscana a Veneza, de Pi- dos negécios cuja influéncia é tao internacional quanto a da Igreja dos papas. Banqueiros genoveses, mer- Apassagem do sécul: cadores florentinos e ve- nnezianos estendem sua econémica e finan- ceira sobre toda a Europa € penetram até no Egitoe Fo Oriente Médio, Bem implantados, eles domi- ham 05 circuites comer- ciais, as frotas e as redes de informacéo da Europa medieval Veneza, com cem mil habitantes em 1500, € 0 maior arsenal da Europa, Cidade que tem uma base em suas possessées na terra firme, ela continua a ser, antes de mais nada, 2 porta do Oriente, cuja evolucéo politica acompanha | da Laguna vive io de produtos orientais e da venda das especiarias que consegue no Egito ¢ no Levante. Nesse fim de século,a progresséo xorével dos turcos no Medi No Adritico & alarmante, send om a maior atencdo.A ca do com 0 oriental e como breve irupcao dos portugueses no oceano Indico. Mas Veneza também & a cidade do pin- tor Bellini e de Aldo Manuzio, cuja gréfica Publica nada menos do que 27 edicées prin- eps de autores gregos entre o fim do século XV e inicio do XVI, Reftigio dos letrados bizan- tinos que fugiram da conquista turca,a cidade da Laguna esté em via de se to 36 A passagem do século: 9100 centros mundiais para onde convergem e onde se imprimem as noti- clas trazidas pelos exploradores atlanticos. Génova, a grande rival de Veneza, dominava 0 Mediterraneo 0 dental. Que se poderia compreender da carreira de Crist6véo Colombo sem a implantagdo de seus compatriotas genoveses nos portos da Europa atlantica? Mas também convém lembrar que desde 1440 0s genoveses se interessam pelas expedicdes portuguesas na costa de Africa. nstalados em Lisboa, Sevilha, Madera e nas Cansrias, (9s genoveses acompanham a expanséo ma interessam pelas financas dos Estados da peninsula. Genova é a pri ‘meira praca bancéria da Europa. Por ultimo, a Italia do Renascimento também exporta artistas € letrados para reinos a cata de cultura humanista e de novidades. E 0 caso de Leonardo da Vinci, atraido pela corte do rei da Franca, € € 0 caso, bem antes dele, do cronista milanés Pedro Martyr d'Anghiera, que aceitou de bom grado a oferta que he fizera um arstocrata cas- telhano para se estabelecer na Espanha, ima dos ibéticos e se Essa onipresenga dos itaianos explica que sejam encontrados tanto em Sevilha,assistindo de camarote a0 descobrimento do Novo ‘Mundo, como em Lisboa, onde embaixadores e espides recolhem todo tipo de noticia sobre a Africa negra e a India. Na corte dos Reis Catdlicos ou confortavelmente instalado em sua casa de Sevilha, a partir de 1493, 0 milanés Pedro Martyr d'Anghiera segue com regula- ridade os acontecimentos do outro lado do Atléntico, 0 humanista que ele écoleta informagoes de primeira mo e também encontra os ‘marinheiros,interroga os navegadores e os descobridores, enquanto ppassam entre suas maos os primelros produtos trazidos do Novo Mundo, Pedro Martyr n8o péra de escrever Suas cartas difundem, prl- meiro em Roma e na Italia, as noticias da expansao castelhana. Logo serao traduzidas em todas as grandes linguas européias. Pelo tom da correspondéncia, a vivacidade e a cutiosidade de seu es ito, esse ‘Apassagem do século: e510 37 mmilanés se comporta como um jornalista avant la lettre, sempre preo- cupado em abordar todos os assuntos, sempre com pressa de infor- mar © quanto antes seus ilustres cortespondentes italianos. Pedro Martyr é, sem nenhuma divida, uma das testemunhas privilegiadas dessa época de mudancas e descobrimentos. Junto com Colombo, um outro italiano — o fiorentino Amético Vespiicio — teve participacio direta nas expedicées castelhanas pportuguesas, Mas também teve um papel essencial para difundir as descobertas, Foi ele, muito em especial, que langou o termo "Novo Mundo", antes de dar seu nome 8 América.Como explica em sua carta ‘Mundus Novus, em agosto de 1504:"Es licito lamarlo Nuevo Mundo, ya que nuestros antepasados no tuvieron de él conacimiento alguno yy e5 cosa muy nueva para todo el que la oye". A Vespucio atribuira- se até mesmo textos que, tudo indica, vinham de oficinas florentinas 4 especializadas na fabricacéo, impressao e venda de informagoes sensacionalistas sobre 0 Novo Mundo. Foram elas que fomeceram 40s italianos,e depois aos europeus, as noticias exéticas que o publ 0 adorava.¥ Essa manipulaco das informagées também é um dos avangos da modernidade no limiar do século XVI, Em 1500, as redes de comunicacdo ocidental séo fundamentalmente italianas,e conse Quiréo responder aos desafios apresentados pelos novos mundos que os navegadores exploram e descrevem. A febre apocaliptica do ano 1484 Nesse fim de século, as expectativas milenaristas que floresciam icos no poupavam a Itlia dos humanistas e do Renascimento. Seria falso opor uma Espanha mistica a uma Italia entregue de corpo e alma ao culto da mercadorla, das artes e da ra- 240. Na verdade, é em Florenca, em pleno coracéo da Peninsula, nos tiltimos anos do século XV, que eclode 0 movimento espiritual do dominicano Savonarola, a partir do famoso convento de San Marco 38 A passagem do século: rst que © pintor Fra Angelico decorara tdo magni- ficamente. Antes de nos debrucarmos sobre as prevsbes do monge de Florenca, e mis ainda sobre seu co, examinemos as esperancas mes- do Quatrocentos. 10 muito bem ara Els constituiam uma tra gada na peninsula italiana Fazia dois séculos que, baseadas nos ensinamentos do monge francisca- no Joachim de Flore — morto em 1202 —, as crengas e profecias ndo paravam de proiferar.Es- Decomoo cou srnses _€ Monge anunciara que uma Nova Era do Espi- be Fas Ants 3t _ito precederia as convulsbes do final dos tempos. 12. Fone: Transrcunacho, San taco s, _Suas previsbes milenaristasinspiraram uma série de textos que he foram atribuidos e,em sequida, se espalharam por toda a Europa. Até mesmo se chegou a escrever que o pensamento joachi- mita moldara os temores e as I. esperanas da humanidade By, curopéia durante séculos a fio.” Outros ensina- mentos apocalipticos se lgavam aos textos do profeta Daniel ou a0 Apocalipse de séo Joéo — que era cha- mado Livro da Re- velagdo. Essas leituras seimpunham a qual- quer um que quises- se decifrar os sinais A passagem do século: waeis0 39 dos tempos a fim de descobrir a data do fim do mundo e prever a forma que ela assumitia, ‘como no resto da Europa, duas vies do futuro dividiam 0s espirtos. Alguns sustentavam a idéia de um milénio que seria mar- cado pelo reino de Cristo na Terra. Essa visio otimista do milenarismo Coexistia com uma interpretagdo mais francamente pessimista, que ‘anunciava a ifninéncia do fim dos tempos e recusava a idéia do milé- nio de paz. Sao Vicente Ferrer fazia parte dos pessimistas que procu- ravam obstinadamente identificar a presenca do Anticristo no ‘mundo, jé que ele seria o sinal precursor do fim dos tempos. ‘Mas néo era o ano 1500 que ria excita as especulacdes e desper- tar as angustias, pois para muitos italianos e europeus outra data parecera fatidica. Uns vinte anos antes, astrélogos, santos, sébios tinham anunciado que o ano 1484 seria de convulsées que mudariam ahistéria do crstianismo e do mundo. Paradoxalmente, foi uma fonte ‘do crista que determinou 0 ano 1484 como o da grande transforme- 80. Traduziram-se em latim 0s textos de um astrénomo arabe do século IX, Albumasar Seus litores,no final do século XV, estavam con- vencidos de que a conjuncao de Jupiter e Saturno anunciava para esse ano um acontecimento extraordinario ou inovacées espeta- culares que afetariam o cristianismo. A Internacional dos sabios — que reunia astrélogos como Paul de Middelburg ou Johannes Lichtenberger,a servigo da corte do imperador Frederico Il,humanis- tas como Marsilio Ficino, flésofos neoplatonicos como Cristoforo Landino —tinha especulado a nao mais poder sobre os efeitos dessa conjungéo astra Um erudito, hoje bastante esquecido, mas na época famoso na Peninsula italiana — Giovanni Nanni, também conhecido com 0 no- me de Annius de Viterbo —, teve aqui um papel de primeiro plano. Esse dominicano,que por volta de 1500 tinha fama de ser o melhores Pecialista em Anticrsto?* foi um te6logo influente nos pontifcados | 4 Apassagem do sécul: aes de Sisto IV e Alexandre VI, Nomeado em Roma chefe do Palécio Sacro «em 1499, fol encarregado pelo papa de vigiar a ortodoxia de todos os textos preparados pela administragao pontifical. Em 1480, Annius de Viterbo publicara uma obra intitulada Dos futuros triuntos dos cristdos contra os sarracenos.® 0 texto foi uma espécie de best-seller em seu género; cito edigdes se sucederam no final do século XV. Rene os medos e as obsess6es da época, abordando figuras maiores da tura apocaliptica, como o Imperador do fim dos tempos e o Papa angélico. Ali estéo lado a lado tanto as especulagées astrolégicas de ‘Albumasar, uma seleco das profecias de Joachim de Flore, as refle- xGes do misterios(ssimo Hermes Trismegisto, como a interpretacio ‘que o autor dava dos textos do Apocalipse, Annius de Viterbo explica- vva que os turcos eram a Besta do Apocalipse, e Maomé,o Anticrsto.0 i castigava a Igreja para punt-la dos cismas que a tinham dividido das heresias que haviam proliferado. Annius prediziasucessivamen- te a derrota dos maometanos, a ressurrelcdo universal, a regeneracdo da Igreja e 0 inicio de um milénio terrestre que veria “um novo céu e uma nova terra sob a forma da santa cidade de Jerusalém e do Taberndculo de Deus".® Segundo Annius de Viterbo, 0 milénio seria seguido de uma nova ressurreicao dos mortos, logo antes do fim do mundo, a Nao é de espantar se aqui encontramos as formulas que entusias- ‘maram Crist6vo Colombo e seus partidérios mais chegados: "um ‘novo céu e uma nova terra". Da mesma forma, o apelo & cruzada con- ‘tra 0s turcos coincidia com as preocupacdes dos Rels Catélicos e as fences do papa Alexandre VI. Na sua bula da Cruzada de 1500, 0 Pontifice néo hesitava em castigar os turcos com epitetos demonia- cos: "Inimigos do nome de Cristo, gente muito pérfida, sedenta de sangue ctistao Os textos de Annius de Viterbo tiveram tanta reper- ussdo que influenciaram os grandes pintores da época, como Luca Signorelli, ao decorar a catedral de Orvieto, Pintoricchio, quando pin- Apassagem do séculor ase ee ee ee ‘ou os apartamentos Borgia no Vaticano (1492-1494), ¢ até as cenas apocalipticas de Rafael na Stanza de Eliodoro, ‘Mas outros monges também tinham se especializado no fim dos tempos e na chegada do Antictisto: santo Antonino, arcebispo de Florenca (1446-1449), sdo Vicente Ferrer, a quem se atribui De fine ‘mundi. Nessa compilagdo publicada em 1477, 0 santo descrevia a €época que a lgreja entdo vivia como uma “idade de ferro", um tempo

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