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31 39 53 79 1 121 15/1995 indice O IMAGINARIO DO IMPERIO Nota do director Juan Gil A apropriagao da ideia de Império pelos reinos da Peninsula Ibérica: Castela Antonio Manuel Hespanha Ascens&o e queda do imagindrio imperial Valentim Alexandre A Africa no imaginério politico portugués (séculos xIx-xx) Maria Irene Ramalho de Sousa Santos Um imperialismo de poetas. Fernando Pessoa e 0 imagindrio do Império Luis Moita Os centros e as periferias na ordem politica internacional Estudos Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gongalo Monteiro Vice-reis, governadores e conselheiros de governo do Estado da India (1505-1834). Recrutamento e caracterizagio social Arlindo Manuel Caldeira Poder e meméria nacional. Herdis e vildes na mitologia salazarista 143 157 17 191 199 Em debate: Abolicionismo (11) Joao Pedro Marques Avaliar as provas. Resposta a Valentim Alexandre Valentim Alexandre «Crimes and misunderstandings». Réplica a Joao Pedro Marques Ensino da Historia Luts Filipe Santos Os programas de Histéria no ensino secundario nas duas tiltimas décadas (1974-94) Leituras Recensées de Mafalda Soares da Cunha, Rui Santos, ¢ José das Candeias Sales Noticias A AFRICA NO IMAGINARIO POLITICO PORTUGUES (SECULOS XIX-XX)* Valentim Alexandre Instituto de Ciéncias Sociais da Universidade de Lisboa A historiografia sobre a questo colonial nos séculos XIX ¢ XX tem sido marcada, nas duas tltimas décadas, por uma reaccao contra a teoria do imperialismo nao econémico, até entéo dominante por influéncia sobretudo do livro de R. J. Hammond Portugal in Africa 1815-1910, que estabeleceu um padrao de interpretagio muito espalhado ¢ muito duradouro do colonialismo portugués: 0 que o filiava, nado cm razées econémicas, nesta perspectiva inexistentes ou de pouco peso, mas num comportamento de tipo nostalgico e sentimental, que viveria do passado, sonhando com a restauragio do prestigio perdido. Refutando esta tese, varios autores tém vindo a estabelecer pacientemente o mapa dos interesses econémicos portugueses ligados as colénias e a medir 0 seu grau de influéncia na politica dos governos de Lisboa. A tais trabalhos cabe pelo menos 0 mérito de demonstrarem que esse € um aspecto da realidade que ndo pode descurar-se — abalando defi- nitivamente a teoria do «colonialismo de prestigio», nos termos em que Hammond a formulava. Mas parece evidente que a simples constatagio de tais interesses nao permite concluir de imediato que eles sao «a forga motriz subjacente 4 expansio imperialista», como pretende Clarence-Smith na sua sintese O Terceiro Império Portugués. «Tal idcia, - escrevi na recensao que dediquei ao livro, — s6 poderia ser eventualmente aceite depois de sopesados todos os factores, de estudadas as condigdes em que surge e se desenvolve 0 projecto colonial para Africa, nas suas varias versdes € nas suas diversas fases € nas suas relagdes, nZo apenas com a economia, mas também com a politica portuguesa no seu todo»!, * Conferéncia proferida no ambito do semindrio O Imaginério do Império, que se realizou de 18 a 22 de Julho de 1994 no mosteiro da Arrabida. 40 Penélope: O imaginario do Império Seguindo a via assim tragada, 0 primeiro ponto que chama a atengio é 0 peso que a questo colonial assume na hist6ria portuguesa dos ultimos dois séculos ~ mais evidente em épocas de crise como o da partilha de Africa (entre varias outras), mas também muito clara nas fases de acalmia, estando sempre presente, nfo apenas num ou outro autor, neste ou naquele texto, mas no conjunto da argumentacio politica, pela relagio estreita que mantém com o problema central da identidade e da prdpria sobrevivéncia do pais. Por isso mesmo, todas as correntes do nacionalismo portugués se defrontam, de uma forma ou de outra, com a op¢io ultramarina. Nesta perspectiva, 0 projecto colonial é irredutivel ao simples jogo dos interesses econémicos - embora também lhe nao seja por inteiro alheio. Tanto a tese do «impcrialismo econémico» como a do «colonialismo de prestigio» parecem prejudicadas, como o estara também qualquer outra explicagao de natureza monocasual que se pretenda sobrepor a um fenémeno to complexo como a expansio imperial em Africa. Por isso mesmo, tentando evitar interpretagdes redutoras, recorremos na nossa andlise ndo ao conceito de ideologia (que temete para um conjunto estruturado de nogdes com um certo grau de coeréncia interna), mas ao de mifo, entendido como modo de apreender a realidade no seu todo, de a pensar ¢ de a sentir, integrando factores econdmicos € nao econémicos e, em qualquer deles, tanto os aspec- tos racionais como os irracionais. Dois desses mitos tero tido um papel central como sustenticulos do projecto colonial. O primeiro deles — a que chamaremos 0 «mito do Eldo- tado» — tem como pano de fundo a crenga inabalavel na riqueza das coldnias de Africa, na sua extrema fertilidade, nos tesouros das suas minas por explorar. Dominante logo nos primciros anos do liberalismo, apés 1834, 0 tema aparece-nos entao em dezenas de artigos, nos periédicos de todas as facgdes politicas, servindo de base a defesa do projecto colonial como via privilegiada para a regeneragio da nagao, compensando a perda do Brasil. Sob formas menos primérias, mais claboradas — voltadas para um Eldorado longinquo, no qual se cumpriria o destino da nagdo, que recuperaria final- mente 0 estatuto de grande poténcia ~, 0 mito persiste ao longo de todo 0 império, ganhando um cardcter estrutural. Um segundo tema ideolégico — que designaremos pelo «mito da heran- ga sagrada» — vé na conservagio de toda e qualquer parcela do territério ultramarino um imperativo hist6rico, tomando os dominios sobretudo como testemunhos da grandeza dos feitos da nagdo, que no os poderia perder sem se perder. Geralmente latente, 0 tema vem A superficie sempre que se configuram casos de perigo e de iminéncia de perda, real ou suposta, de Alexandre: Africa, séculos x1x-xx 41 qualquer das possessdes ou de zonas sobre que se reivindicava a soberania portuguesa, contribuindo para afastar a tentagao de abandono, nfo sé da via colonial em si, mas também de cada um dos territérios em particular, por mais dificil que se afigurasse a sua exploragao ¢ conservagao. ‘Também o «mito da heranga sagrada» tem um cardcter permanente, estrutural, que Ihe resulta da sua estreita relagio com dois elementos de fundo do nacionalismo portugués: a consciéncia, sempre presente nas elites politicas, da vulnerabilidade de Portugal (que as torna especialmente sensi- veis 4s ameacas externas); ¢ sobretudo a ideia, muitas vezes expressa, de que a propria sobrevivéncia da nagio dependia da existéncia do império, como contraponto necessario 4 forga de atracgao da Espanha no conjunto da Peninsula Ibérica. Ligado, como vemos, a uma determinada imagem do pafs, 0 projecto colonial implica igualmente uma certa visio dos povos a ele submetidos (no nosso caso, sobretudo da Africa e dos Africanos), visio de sujeito a objecto, marcada do mesmo modo pelo nacionalismo, que toma modalidades e aspec- tos diversos consoante as conjunturas, flutuando entre o etnocentrismo e formas mais ou menos explicitas de racismo. Durante uma longa primeira fase, que dura até aos anos 70 do século XIX, a imagem das sociedades africanas € profundamente influenciada pela ideologia esclavagista de Antigo Regime — uma ideologia que repousava, em primeiro lugar, na negagao de qualquer vida cultural (ou mesmo, nas formulas mais radicais, de qualquer trago de humanidade) as sociedades do interior da Africa - esse sertdo «sepultado na barbérie», onde «nem a luz da religio nem a da civilizagdo» penetrava, onde era «tudo escravo dos chefes ¢ das paixdes selvagens»; essa «populacdo selvagem», em «estado de grande embruteci- mento», que nao conhecia «nenhum dever social», nem o «sentimento do amor a familia» ou 0 «amor do préximo». Libertando alguns negros deste «mundo primitivo», a compra de escravos no interior — 0 «tesgate», na velha terminologia colonial, que continuava a aplicar-se — teria de ver-se, ao fim e ao cabo, como um acto humanitario, permitindo salvar a vida aos prisioneiros de guerra, aos criminosos, sujeitos a tortura € & morte nas suas sociedades de origem, ¢ submetendo-os a influéncia benéfica da civilizagao. O outro dos grandes temas de ideologia esclavagista estava na natureza que atribufa ao negro em si — pintando-o como ser «essencialmente indo- lente», «inteiramente bogal», dado 4 embriaguez e ao roubo, dotado de uma «grosseira sensualidade» e de uma aversio inata pelo trabalho. Este quadro fornecia as premissas para a concluséo fundamental da teoria: a de que 0 2 Penélope: O imagindrio do Império africano nao se prestava a servir voluntariamente, sendo sempre necessario obrigé-lo «a receber a educagao do trabalho»?, E certo que, a par desta ideologia, uma outra se afirma, tributdria do pensamento iluminista, que vé na escravatura uma instituic¢do altamente maléfica, a abolir logo que possfvel, e nos Africanos seres decerto atrasados, devido a circunstancias hist6ricas acidentais, mas capazes de progredir e de se integrarem como cidadaos no corpo nacional. Mas esta corrente — perso- nificada em S4 da Bandeira - é extremamente minoritaria durante a maior parte do século XIX: s6 na década de 70 se detecta uma viragem, com a emergéncia de novas elites politicas e intelectuais que, mais abertas aos ventos do exterior ¢ mais conscientes da necessidade de modernizar os processos de explorago colonial, viam na persisténcia dos factos de escrava- tura uma mancha na imagem de nagio civilizada e europeia que queriam para Portugal. Miraculosamente, 0 «lundtico» $4 da Bandeira dos anos 50 ¢ 60, geralmente atacado pelas suas «manias» filantrépicas, vé-se agora recu- perado como simbolo ¢ testemunho dos sentimentos anti-esclavagistas do Pafs: ele € 0 «Wilberforce portugués», «infatigavel paladino da liberdade», atacando «em suas tiltimas fortificagdes a ideia velha, que permitia a escra- vizagio do homem pelo homem». Tendo como seu principal expoente politico o ministro Andrade Corvo, que é também o seu teorizador mais importante, esta nova tendéncia ganha expresso juridica com a aboligéo do trabalho servil nas colénias decretada em 1875 — a primeira medida abolicionista promulgada pelo parlamento liberal portugués (todas as outras haviam emanado do poder executivo). Mas 0s seus efeitos sao, em fim de contas, superficiais: preocupados em primeiro lugar com a imagem e a retérica, essas mesmas clites deixam subsistir quase sem resisténcia formas de trabalho forgado préximas da escravatura. E sobretudo, 0 impulso humanista e liberalizante esgota-se rapidamente, afectado pelas pressdes nascidas da partilha de Africa e pela forte reacgo nacionalista por elas provocada em Portugal. Neste contexto, 0 «mito da heranga sagrada» ganha novos contornos, passando a justificar, nado apenas a conservagdo dos antigos territérios colo- niais, mas também a expansao para zonas até entdo nao ocupadas, a partir de uma perspectiva maximalista para a qual toda a regiao do Congo ¢ ainda outras vastas terras de Africa estavam naturalmente votadas ao dominio portugués, por direito de descoberta ¢ pela influéncia af exercida histo- ticamente. Assim tomava corpo 0 novo mito: a cspoliag¢ao do império por parte da Gra-Bretanha. Alexandre: Africa, séculos xix-xx B As mesmas pressdes externas, em particular o Ultimatum britanico de 1890, contribuem decisivamente para sacralizar 0 império: j4 actuante, como referimos, nas décadas anteriores, 0 «mito da heranga sagrada» alcanga agora um predominio avassalador, derrotando em definitivo as correntes mais pragmiticas que aceitavam a recomposi¢a’o € mesmo a redugao do territério imperial. Doravante, 0 projecto colonial é o elemento central do nacionalis- mo portugués, remetendo-se a sua eventual contestagdo para a categoria ético-juridica da traig&o a patria. A mesma crispagao atinge a questo racial: contra os poucos que pre- tendiam ver no indigena o melhor «aliado» de Portugal em Africa, vai impor- -se a opinido dos que preconizam a ocupagao militar através de uma «guerra de terror ¢ de exterminio cuja meméria se conserve por muitas dezenas de anos como tradigio de pais para filhos». Por outro lado, a modernizacao toma um novo curso, pondo de lado o humanitarismo liberal dos anos 70, tido agora por ingénuo e utépico, e por isso pouco eficaz, e rendendo-se ao «darwinismo social», 4s novas formas de racismo «cientifico» em voga na Europa. Torna-se corrente falar em ragas superiores ¢ inferiores, dominantes e dominadas (estando estas tltimas destinadas a desaparecer, nas versées mais radicais), adoptando-se como critério de hierarquizagio um certo nt- mero de indices elaborados pela antropologia fisica, nomcadamente os que tendiam a relacionar a conformagao do craneo com as capacidades intelec- tuais. Pretensamente cientificos, tais indices permitiriam chegar 4 conclusaéo de que o negro ocupava na escala animal um lugar intermédio entre o homem e o gorila. O melhor exemplo desta perspectiva encontramo-lo em Oliveira Martins, um dos primeiros e decerto o principal teorizador do «darwinismo social» no nosso pais, num texto retirado do seu livro O Brasil ¢ as Colénias Portuguesas’: “Sempre 0 preto produziu em todos esta impressio: é uma crianca adulta. A precocidade, a mobilidade, a agudeza prépria das criangas nao Ihe faltam; mas essas qualidades infantis nao se transformam em faculdades intelectuais superiores. Resta educd-los, dizem, desenvolyer e germinar as sementes. «Nao haverd, porém, motivos para supor que esse facto do limite da capacidade intelectual das ragas negras, provado em tantos e tao diversos momentos ¢ lugares, tenha uma causa intima e constitucional? Ha decerto, abundam os documentos que nos mostram no negro um tipo antropolo- gicamente inferior, nao raro préximo do antropéide, e bem pouco digno do nome de homem. A transigéo de um para 0 outro manifesta-se, como se sabe, em diversos caracteres: 0 aumento da capacidade da cavidade cerebral, a diminuigao inversamente relativa do craneo e da face, a abertura do Angulo 4 Pentlope: O imagindrio do Império facial que dai deriva, ¢ a situagao do orificio occipital. Em todos estes sinais 0s negros se cncontram colocados entre o homem e¢ o antropéide». No fundo, estamos perante os velhos estercétipos da teoria esclavagista tradicional, agora revestidos das novas roupagens «cientificas» exigidas pela modernidade. Assim como outrora a imagem que se transmitia do negro servia para justificar o trafico de escravos ¢ a escravatura, também o racismo «cientifico» facilitava a Oliveira Martins a defesa de uma politica colonial «sem escriipulos, preconceitos nem quimeras» (nas suas préprias palavras)* contra a «filantropia» utépica do humanismo liberal. Esta forma de racismo estreme encontra um terreno particularmente favorével na geragio que, ao dobrar do século, vai dar os primeiros Passos para a ocupagio militar dos territérios ultramarinos. A ideia da inferioridade inata ¢ imutavel do negro serve, nomeadamente, de suporte a uma teoria da «sujeig¢ao» implicita em muitos textos da época e formulada abertamente por Eduardo da Costa, ao tempo acatado como o principal doutrinador dentre os militares da geragio de 1895. Reagindo contra 0 «assimilacio- nismo» que, a seu ver, teria caracterizado a politica colonial portuguesa no século XIX, Costa preconiza a instauragdo de um «regime despético ate- nuado» nas possessdes, com a concentracio de todos os poderes nas maos do ministro € dos governadores, devendo os indigenas ser regidos por um estatuto especial que tivesse em conta a sua situacio e as suas faculdades. «As razdes antropolégicas, as razdes sociais, ~ escreve, valendo-se da auto- tidade de Oliveira Martins, entre outros, - mostrando a disparidade de caracteres étnicos, de usos ¢ de instintos e a inferioridade manifesta do selvagem, evidenciam a necessidade de aplicar diferentes sistemas de gover- no a ragas tao diversas e de manter nas mios dos mais civilizados, como dos mais dignos, a tutela dos mais selvagens ¢ primitivos, como de uma classe desgragada ou incompleta da sociedade humana»’, Também a educagaio deveria ser diferenciada, ndo apenas nos meios, mas nos préprios fins: no cabendo ao «indigena» mais do que o papel de «auxiliar» do colonizador, como trabalhador e operario, a sua instrugfo deveria ter um cardcter pro- fissional, em escolas primérias agricolas ¢ de artes ¢ oficios®. Quanto as misses — cuja accio podia prejudicar o dominio portugués, por dar aos negros os «sentimentos de prépria dignidade e da liberdade do seu corpo e do seu espirito» -, competir-lhes-ia compensar esse risco, incutindo aos Africa- nos que convertiam o «respeito pela nacio dominadora» e edificando-os «nas vantagens que, do seu dominio, resultam para o pais e civilizag3o a que pertencem»’, Alexandre: Africa, séculos xix-xx 45 Com modulagées diversas, estes temas manter-se-o vivos na idcologia colonial portuguesa pelas décadas seguintes; mas raramente a «teoria da sujei¢do» voltard a ser apresentada de uma forma tao crua. Passada a fase mais aguda da ocupacao militar, a sujeigao persistira como elemento inerente a toda e qualquer situagao colonial; longe de lhe dar relevo, a ideologia de futuro elaborada tenderé a relativiz4-lo e a sublimé-lo. ‘Tanto na Reptiblica como na primeira fase do Estado Novo (até 4 Segunda Guerra Mundial), as teorizagdes mais correntes do facto imperial conferem ao par dominagao/ /sujeic¢do um cardcter transitério, um simples momento na via que levava 4 formagdo do «Portugal maior», da «nagdo una» espalhada pelos varios con- tinentes, cadinho onde se fundiriam os diversos povos e as diferentes ragas. Entre muitas outras, as versdes de Norton de Matos e de Armindo Monteiro — sem divida, os dois mais importantes politicos ¢ idedlogos do colonialismo portugués, na Repiiblica e no Estado Novo, respectivamente — constituem bons exemplos dessa perspectiva. Para Norton de Matos, o ponto central de todo o projecto ultramarino, base da «finalidade histérica» de Portugal, estava na criacdo da «mais {ntima, a mais estreita ligago da Metrépole e de as Colénias Portuguesas, por forma a constituir e a construir para sempre uma tnica Nagdo», devendo cada colénia ter «sempre presente que amanha, ligada, cada uma delas, como parte integrante de um grande Império, ao Portugal da Europa, as outras colénias portuguesas, constituiraé um dos principais factores, o melhor dos elementos do ressurgimento ¢ da grandeza da Patria, prolongamento da nacionalidade, brilhante receptaculo da nossa lingua, campo vastissimo 4 expansdo da nossa civilizago que saberemos levar ao mais alto ponto das civilizagdes humanas ¢ que ser4 abengoada pelos povos primitivos que a Histéria nos entregou para os elevarmos até nés»*, Nio era muito diferente, neste ponto, 0 pensamento de Armindo Mon- teiro, que via na colonizagao a «fungao histérica da Nagao Portuguesa, sua esséncia organica»? (como ficou consignado no Acto Colonial de 1930), tendo como fim Ultimo a «criagdo da harmonia politica, do equilfbrio geral eco- némico, financeiro ¢ social» entre a metrépole e o ultramar. Partindo embora de uma concepgio imperial, Monteiro acentuava igualmente a relagio intima entre o «conjunto dos territérios e populagdes portuguesas», tomados «como um todo - uma solidariedade», partes j4 da «nossa patria, corpo e alma de Portugal»'®. Tal como para Norton, a politica colonial deveria estar voltada para a «intensa nacionalizacdo dos homens ¢ das coisas» ¢, em particular, para a «criagio de uma mentalidade portuguesa entre os indigenas»"'. 46 Penélope: O imaginario do Império O que mais ressalta nestes textos, e em muitos outros da mesma época, é 0 seu nacionalismo exacerbado, de indole quase religiosa, ¢ o misticismo imperial que o acompanha: a crenga ¢ a visdo de um futuro de grandeza e harmonia que resgataria todas as dificuldades, todas as misérias do presente. No fundo, estamos ainda perante o «mito do Eldorado», mas numa nova versdo, onde os interesses econdmicos, embora presentes, cedem o lugar central a preocupagées de ordem politica, consubstanciados na «grandeza da nagao». Como sempre, o exacerbamento do nacionalismo tendia a reduzir o outro — neste caso, o negro - ao papel de simples objecto, de simples receptaculo (no melhor dos casos) dos valores da civilizagio europeia, de que, Portugal seria o transmissor. A exemplo do que j4 acontecera no século XIX, também nesta fase é raro que se manifeste a consciéncia de que as socieda- des africanas sejam elas mesmas portadoras de valores, de uma cultura propria: elas so os povos primitivos, proximos da animalidade, incapazes de por si s6 produzirem qualquer coisa de valido no processo civilizacional. ‘Tomando mais uma vez Norton de Matos e Armindo Monteiro como para- digmas das principais correntes do pensamento colonial entre as duas guer- ras mundiais, verificamos que a imagem do negro que nos transmitem é muito semelhante: para ambos, ele € um elemento de ragas primitivas, na maioria ainda em estado selvagem, entregues 4 miséria, A superstigo ¢ a ignorancia, cabendo a Portugal, por imperativo hist6rico, a tarefa de as «elevar» e de as chamar A civilizagio". Mas ja ha diferengas conceptuais importantes quando sc passa 4 natu- reza do atraso africano. Para Armindo Monteiro, essa situagao é estrutural: estamos perante racas inferiores, parte delas destinadas a desaparecer, por «insusceptiveis de aperfeigoamento», outras — as «capazes de compreende- rem a beleza de uma disciplina e de a ela se sujeitarem» — que ficariam, «para povoar a selva, dando a Patria trabalhadores agricolas ¢ soldados que em Africa Ihe sao preciosos»". Por seu lado, Norton recusa a situagio de inferioridade permanente a que assim se votariam os negros, remetidos aos trabalhos manuais sob a direcg%o dos brancos: na sua perspectiva, as duas ragas deveriam desenvolver-se separadamente, em paralelo e sem se cruza- tem, até ao dia longinquo — daf a séculos — em que seria possivel operar-se a sua fusio"*. F clara a filiago das concepgdes de Norton de Matos na corrente do pensamento liberal e humanitério oitocentista, marcadamente etnocéntrico, enquanto Armindo Monteiro esté mais proximo da ideologia de cariz racista que se impusera em finais do século XIX (sem, contudo, a desposar por Alexandre: Africa, séculos XIX-Xx 47 completo). Mas as diferengas entre os dois pontos de vista esbatem-se de novo, quando passam das teorizagées gerais sobre a finalidade tiltima da colonizagao — ou seja, do plano mitico — para a consideragao das politicas concretas a seguir de imediato: neste caso, o que ressalta é sobretudo a ideia comum da necessidade de um dominio férreo por parte do Estado portugués, secundado por uma politica indigena de teor paternalista. Quer isto dizer que os lagos entre o plano mitico ¢ 0 da realidade so dos mais ténues; ¢ que o «mito do Eldorado», que serve de mito motor da acgio na metrépole (contribuindo para criar a «mfstica» imperial), nao passa, quanto a situagao colonial, de um simples mito de justificagao ideolégica. Tanto estas fungdes como a propria formulagao dos mitos se alteram no periodo posterior a Segunda Guerra Mundial - uma época em que o império conhece transformagdes importantes, que vio do arranque econdémico de Angola e Mocgambique (relativo, mas real) ao aumento da emigragio para Africa e & guerra colonial. Apesar de tudo, numa primeira fase o principal impulso 4 mutagdo ideolégica vem do exterior, pela via das pressdes inter- nacionais no sentido da descolonizagio: para se lhes contrapor, 0 regime do Estado Novo vai enveredar pelo caminho da assimilagao, dando as coldnias 0 estatuto de provincias ultramarinas, solidarias entre si e com a metrépole como «parte integrante do Estado portugués» (nas palavras da revisao consti- tucional de 1951). No plano jurfdico-institucional, esta viragem em pouco mais se traduziu do que em modificagées terminolégicas. Mantém-se, nomeadamente, o Estatuto do Indigena, que retirava a cidadania 4 esmagadora maioria da po- pulagdo negra. $6 em 1961 ele ser4 abolido, j4 no contexto da guerra colonial; mas mesmo ent&o nado desaparecem os efeitos de uma perspectiva dife- renciadora: como Silva Cunha reconhecer4 mais tarde, ainda nas eleigdes de 1973 se adoptou no Ultramar um «critério selectivo» no recenseamento, nao se inscrevendo senao os que haviam assimilado inteiramente as nossas concepgées politicas"’, E sabido, alids, que a consagragio constitucional da teoria da assimiliagio provocou fortes resisténcias no interior do préprio regime, bem expressas desde logo no parecer da Camara Corporativa sobre o projecto de revisio'®. Nos anos seguintes, sio miiltiplos os indicios da persisténcia da corrente de teor racista dominante na primeira metade do século. E assim possivel, em plena década de 50, vermos reaparecer nas palavras de Marcello Caetano os velhos esteredtipos dos negros como dissipadores, imprevidentes ¢ bébados"”, «de habitos milenarmente estagnados»'*, naturalmente votados a servirem «como elementos produtores enquadrados ou a enquadrar numa economia 48 Penélope: O imagindrio do Império dirigida pelos brancos»”, por razdes que tinham a ver com a sua inferiori- dade racial, historicamente comprovada: «Os pretos em Africa tm de ser dirigidos ¢ enquadrados por europcus mas sao indispensdveis como auxiliares destes (...). Pode num caso ou noutro uma familia europeia em Africa prescindir do trabalho dos indigenas: em conjunto, a economia africana nfio pode passar sem ele. Por outro lado os Africanos no souberam valorizar sozinhos 0s territérios que habitam ha milénios, nao se hes deve nenhuma invengao dil, nenhuma descoberta técnica aproveitavel, nenhuma conquista que conte na evolugao da Humanidade, nada que se pareca ao esforgo desenvolvido nos dominios da Cultura ¢ da Técnica pelos europeus ou mesmo pelos asiaticos»*”, A mesma ideia do vazio cultural afticano surge em varios outros textos de altas personagens do regime: a comegar pelos do proprio Oliveira Salazar, para quem 0 colonialismo tudo dera a Africa: a paz, 0 convivio das popula- gGes, o crescimento demografico, a descoberta das riquezas do continente e «o contacto com a civilizagao cujos segredos lhes desvendou e colocou ao seu dispor»?!, ‘Também para Américo Tomas — que, nio sendo um teérico, nos revela de forma mais crua 0 pensamento corrente neste dominio — a Africa nao passava de uma regido sem histéria, povoada por «tribos selvagens, que Portugal a muito custo procurara civilizar e cristianizar». Nesta perspectiva, a independéncia concedida aos «nativos, quase totalmente imaturos, incul- tos e, em grande parte ainda selvagens», nao passaria de um retrocesso”. Mas o regime abriu também espaco politico a uma teoria mais elaborada, em defesa da integragio consagrada constitucionalmente — 0 luso-tropica- lismo. Formulada j4 nos anos 30 por Gilberto Freyre — ¢ mal recebida entéo pelos idedlogos do Estado Novo -, a doutrina trazia como principal novidade a dupla valorizagao do contributo dos nativos amerindios e da populagio negra para a formagao da civilizagao tropical brasileira, e da capacidade dos Portugueses para se

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