MEIRELES
OBRA
POÉTICA
Nota Editorial
AFRÂNIO COUTINHO
Poesia do Sensível e do- Imaginário
Notícia Biográfica e Bibliografia
DARCY DAMASCENO
Fortuna Crítica
MÁRIO DE ANDRADE, ÜSMAR PIMENTEL, CUNHA LEÃO,
JosÉ PAULO MOREIRA DA FONSECA
MENOTTI DEL PICCHÍA, NUNO DE SAMPAIO,
PAULO RÓNAI, MURILO MENDES, JOÃO GÀSPAR SIMÕES
Xilogravuras de
ÜRACIELA FUENSALIDA
EPITÁFIO DA NAVEGADORA
A Gast6n Figueira
CHÃo VERDE e mole. Cheiros de selva. Babas de lodo. Que sopro forte e profundo!
Que sopro de acabamento!
A encosta barrenta aceita o frio, toda nua. Que sopro de fim de mundo!
Carros de bois, falas ao vento, braços, foices.
Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva.
Da varanda do colégio,
Casebres caindo, na erma tarde. Nem existem do pátio do sanatório,
na história do mundo. Sentam-se à porta as mães descalças. miravam tal sortilégio
"f: tão profundo, o campo, que ninguém chega a ver que é triste.
A roupa da noite esconde tudo, quando passa ... olhos quietos de meninos,
com e·speranças humanas
Flores molhadas. última abelha. Nuvens gordas. e com terrores divinos.
Vestidos vermelhos, muito . longe, dançam nas cercas.
Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze. A tardinha serenada
Debaixo da ponte, a água suspira, presa ... foi dormindo, foi dormindo,
despedaçada e cal~da.
Vontade de ficar neste sossego toda a vida:
bom para ver de frente os olhos turvos das palavras, Só numa ruiva amendoeira
para andar à toa, falando sozinha, uma cigarra de bronze,
enquanto as formigas caminham nas árvores ... por brio de cantadeira,
girava em esquecimento
à sanha enorme do vento,
DESCRIÇÃO forjando o seu movimento
num grave cântico lento ...
AMANHECEU pela terra
um vento de estranha rnmbra,
que a tudo declarou guerra.
VELHO ESfILO
Paredes ficaram tortas,
animais enlouqueceram
e as plantas caíram mortas. CORPO MÁRTIR, conheço o teu mérito obscuro:
tu soubeste ficar imóvel como o firmamento,
O pálido mar tão branco para deixar passar as estrelas do espírito,
levantava e desfazia ardendo no seu fogo e voando no seu vento ...
um verde-lívido flanco.
Corpo mártir que és dor, que és transe, que és silêncio,
E pelo céu, tresmalhadas, e onde, obediente, vai batendo o coração,
iam nuvens sem destino, sei que foste esquecido e, quando um dia te acabares,
em fantásticas brigadas. não é por ti que _os olhos chorarão.
MEIRELES, - 6
162 CECILIA MEIRELES / OBRA POí:TICA VAGA MúSICA 163
Ninguém viu que tu foste o solo e o oceano dócil . há mãos de amor para a tua ausência.
que sustentou jardins e embalou tanta viagem, E esse é o vestígio que não se some:
que distribuiu o amor, e mostrou a beleza, resto de todos, teu próprio resto.
dando e buscando sempre a sua própria imagem. Coisa que passas, como é teu nome?
Pássaro da lua,
por que estás aqui ?
Nem a canção tua
precisa de ti! PONTE
FRÁGIL ponte:
CANÇÃOZINHA DE NINAR arco-íris, teia
de aranha, gaze
O MAR o convalescente mira. de água, es·puma,
- Que pena, que pena no seu mirar! -- nuvem, luar.
Como quem namora, suspira, Quase nada:
e quell} tem medo de se en_a morar. quase
a morte.
Água, que pareces um ramo de flores,
o nome dos humanos amores Por ela passeia,
mora na espuma do mar ... passeia,
sem esperança nenhuma,
O céu o convalescente mira. meu desejo de te amar.
- Que pena, que pena no seu mirar!
Como quem vai morrer, suspira,
e quem tem medo de ressuscitar. Céu que miro?
- alta neblina.
Nuvem, que pareces um ramo de flores, Longo horizonte,
o nome dos humanos amores - mas só de mar.
mora no hálito do ar ...
E esta ponte
que se arqueia
EMBÀLO como uin suspiro,
- tênue renda cristalina
ADORMEÇO ·EM 1'1 minha vida~ será possível que transporte
- flor de sombi:a e de solidão a algum lugar?
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação. Por ela passeia,
passeia
Não pergunto mais o motivo, meu desejo .de te amar.
não 1pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão. Em franjas de areia,
chegada do fundo
Adormeço em ti minha vida, lânguido do mundo,
imóvel, na noite, e · sem voz. às vezes, uma sereia
A lua, em meu peito perdida, vem cantar.
vê que tudo em mim somos nós. E em seu canto te nomeia.
166 CECILTA MEIRELES J OBRA POÉTICA
VAGA MúSICA 167
Por isso, a ponte se alteia,
e para longe se lança, DESPEDIDA
nessa frágil teia,
- invisível, fina ADEUS,
renda cristalina que é tellljpo de marear!
que a morte balança,
torna a balançar ... Por que procuram pelos olhos meus
rastros de choro,
(Por ela passeia direções de olhar?
meu desejo de te amar.)
Quem fala em praias de cristal e de ouro,
abrindo estrelas nos aléns do mar?
.J
Quem pensa num desembarcadouro?
VISITANTE - f: hora, apenas, de marear.
QUEM DESCE ao adormecimento Quem chama o sol? Mas quem procura o vento?
ql!e me envolve e em que me perco, e âncora? e bússola? e rumo e lugar?
feito um vento abrindo um cerco Quem levanta do esquecimento
de penumbras, num jardim, esses fantasmas de perguntar?
e toca o meu pensamento
com uma lâmina de aurora Lenço de adeuses, já perdi. . . Por onde?
e escreve-me, indo~me emb~ra: - na terra, andando, e só de tanto andar .. .
"Vive! e lembra-te de mim"? ' Não faz mal. Que ninguém responde
b a um lenço movido no ar ...
Quem, do mar do esquecimento
busca_ areias de lembrança, ' Perdi meu lenço e meu passaiporte,
mas tao sem força e esperança - senhas inúteis de ir e chegar.
que outra vez volve ao seu fim
mira seu rosto, um momento ' Quem lembra a fala da ausência
à luz do meu sonho triste, ' num mundo sem correspondência?
compreende que não existe,
e pergunta: "Por que vim?" Viajante da sorte na barca da sorte,
sem vida nem morte. . . •
Adeus,
GAITA DE LATA que é tempo de marear!
PERGUNTA
CANTIGA DO VÉU FATAL
POR CAUSA do teu ch~éu, SE AMANHÃ perder o meu corpo,
por causa do teu vestido, será possível que ainda venha,
vais matando teu marido. e que ao pé de ti me detenha ·
como um levíssimo sopro?
Quem dirá que por um véu
se arma tamanho alarido E essa minha humilde presença
de ficar homem perdido! te despertará como um grito?
E pensarás no pálido, hirto
Que se levanta um escarcéu, fantasma que ainda em ti pensa?
por esse fino tecido
de alças de silêncio urdido! Ou teu sono será tão doce
que o meu arreipendido espectro,
Por causa do teu chapéu, sofrendo por chegar tão perto,
por causa do teu vestido, volte no vento que o trouxe?
vai morrendo teu marido!
Teu rosto é um jardim, na sombra.
Morre com cara de réu, Teu sonho, flor sob a lua.
pensando em cada pedido Por aquela que foi tua,
que tem de ser atendido. que orvalho em teus olhos tomba?
há uma estrela imensa a brilhar. e espera que se desprendá º ' excessivo, úmido orvalho
É de prata e de ouro! pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento 1
Como está tão perto! a libertasse, poném a desprenderia ,do galho,
Não mOiiras agora,
- que a estrela da aurora e nesse temor e esperança aguarda o mistério transida
veio ver teu rosto - assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
banhado de luar! há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.
ALUNA · MEMÓRIA •
CONSERVO-TE o meu sorriso A José Osório
1para, quando me encontrares,
veres que ainda tenho uns ares MINHA FAMÍLIA anda longe,
de aluna do paraíso .. . com trajos de. circunstância:
uns converteram-se em flores,
Leva sempre a minha imagem outros em pedra, água, líquen; 1
a submissa rebeldia alguns, de tanta distância,
dos que estudam todo o dia nem têm vestígios que indiquem
sem chegar à aprendizagem ... uma cer1a orientação.
- e, de salas interiores, Minha família anda longe,
por altíssimas janelas, - na Terra, na Lua, em Marte -
descobrem coisas mais belas, uns dançando pelos ares,
rindo-se dos professores ... outros perdidos no chão.
172 CECILIA MEIRELES / OBRA POÉTICA VAGA MúSlCA 173
2
Tuoo VAI e vem.
Sou como todas as coisas: Para as estrelas altíssimas,
e durmo e acordo na tua cabeça, olho da sombra melancolicamente,
com o andar do dia e da noite, enquanto ela dorme,
o abrir e o fechar das portas. pálida e quieta,
toda paralela:
Tudo é monótono, tudo é para ser esquecido. as pálpebras, os braços, os pés.
Quero ficar em ti, único.
Um cílio não lhe estremece.
No tumulto dos acontecimentos, No límpido til da sua narina
pensarás: "Ele, porém, é imóvel". nem se sente o embalo do ar que alimenta o sonho.
"Ele, ele é diferente" - pensarás, no meio das reipetições.
E debaixo de seus olhos estão países
Tudo rodará e cairá, de habitantes fluidos,
pelas vertentes desse teu imaginar, que mudam de rosto e voam!
que sobe sempre. E ela mesma comparece entre eles!
E falam-se, reconhecem-se, entendem-se!
Pois eu quero estar parado e sem nenhuma alteração,
sem te responder nem chamar, sem te dar nem pedir. Tão longe!
Sem relação com as outras coisas. Nem as estrelas chegam a esses lugares instáveis,
de onda e nuvem, por onde as palavras e os fantasmas
Eu, puramente eu. misturam seus olhos, caminhando por dentro de si!
E assim talvez te inquietes.
Talvez fiques mais proxima, Sua sombra, seu rastro,
e indagues, e te comovas, e até mesmo sem querer,
e te esqueças de todo o resto por aí ficam também, perdidos.
e te gastes por mim. Expostos.
178 CECfLIA MEIRELES / OBRA POP:TICA VAGA MúSICA 179
Porventura estarei também algumas vezes Ela bordava, cantando.
nesses vagos aléns E a sua canção dizia
que a esperam, .c hamam e levam? a história que ia ficando
Outros olhos meus a acompanharão, sem que me lembre, por sobre a tapeçaria.
por entre os ares que a abraçam,
que a envolvem, que a bebem? Veio um pássaro da altura
e a sombra pousou no pano,
Oh! porque eu sei que ela é · bebida por um remoto lábio como no mar da ventura
inalcançável, a vela do desengano.
esta que dorme aqui, pálida e paralela, Ela parou de cantar,
esta que jaz, fina e doce, desfez a sombra com a mão,
como um vestido de seda caído. depois, seguiu a bordar
na tela a sua canção.
Se eu gritar s.eu nome,
se bater no seu peito, liso e frágil, Vieram os ventos do oceano,
então, num SU5!piro vagaroso, roubadores de navios,
regressará de onde estava. e desmancharam-lhe o pano,
Levantará as pálpebras, para dizer que chegou. remexendo-lhe nos fios.
E - como quem vem à janela - Ela pôs -as mãos por cima,
para perguntar o que lhe querem. Por quê? tudo compôs outra vez:
a canção pousou na rima,
E eu mirarei com mágoa seus olhos claros, recém-chegados. e o bordado assim se fez.
E alguma coisa estará faltando nela,
que nunca, nunca se há de recuperar. Vieram as nuvens turvá-la.
Recomeçou de cantar.
E, ao longe, sentirei, transtornados, No timbre da sua fala
inconsoláveis como eu, havia um rumor de mar.
tontos de sua solidão, O sol dormia no fundo:
os ares que se afeiçoavam à sua figura, fez-se a voz, ele acordou.
subitamente devolvida ao meu poder. Subiu para o alto do mundo.
E ela, cantando, bordou.
A DONA CONTRARIADA
MODINHA
ELA ESTAVA ali sentada, TuAs PALAVRAS antigas
do lado que faz sol-posto, deixei-as todas, deixei-as,
com a cabeça curvada, junto com as minhas cantigas,
µm véu de sombra no rosto. desenhadas nas areias.
Suas mãos indo e voltando
por sobre a tapeçaria, Tantos sóis e tantas luas
rparavam de vez em quando:. brilharam sobre essas linhas,
e, então, se acabava o dia. das cantigas - que eram tuas
das palavras - que eram minhas!
Seu vestido era de linho,
cor da lua nas areias. O mar, de língua sonora,
Em seus lábios cor de vinho sabe o presente e o passado.
dormia a voz das sereias. Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado.
180 CECILIA MEIRELES / OBRA POÉTICA VAGA. MúSICA 181
CANÇÃO A CAMINHO DO CÉU Encosto-me a ti, que és margem
de uma areia de silêncios
FORAM MONTANHAS? foram mares? que acompanha pelo tempo
foram os números ... ? - não sei. verdes rios transparentes:
Por muitas coisas singulares, tua sombra, nos meus braços,
não te encontrei. tua frescura, em meus dentes.
E te esperava, e te chamava, Nasce a lua nos meus olhos,
e entre os caminhos me perdi. passa pela minha vida .. .
Foi nuvem negra? maré brava? - e, tudo que era, resvala
·E era por ti! 1para calmos ocidentes.
Caminhos de ar vão levando
As mãos que trago, as mãos são estas. pura e nua essa que andava
Elas sozinhas te dirão com as roupas mais diferentes.
se vem de mortes ou de festas
meu coração.
Olham pássaros, das nuvens,
Tal como sou, não te convido entre a luz dos mundos finries
a ires !Para onde .eu for. e a das estrelas cadentes.
E o orvalho da sua música
Tudo que tenho é haver sofrido vai recobrindo o meu rosto
pelo meu sonho, alto e perdido, com um tremor que eu conhecia
- e o encantamento arrependido nos meus olhos já levados,
do meu amor. idos, perdidos, ausentes ...
Narciso, eu sei que não sorrias para o teu vulto, dentro da onda: ANTES QUE o SOL se vá,
sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhava - como pássaro perdido,
gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso, também te direi adeus,
Soledad.
a estátua de cristal que, sobre a tarde, a ' contemplava,
florindo-a para sempre, com o seu efêmero so~riso . ..
Terra morrendo de fome,
pedras secas, folhas bravas,
ai, quem te pôs esse nome,
ID1LIO Soledad! f
sabia o que são palavras.
CoMo EU preciso de campo,
de folhas, brisas, vertentes, Antes que o sol se vá,
encosto-me a : ti, que és árvore, - como um sonho de agonia,
de onde vão caindo flores cairás dos olhos meus,
soQ-re os meus olhos dormentes. Soledad!
182 CECILIA MEIRELES / OBRA POltTICA VAGA MÚSICA 183
L
. .
198 CECíL/A METRELES / OBRA POÉTICA V AG'A MúSJCA 199
Rosto sério De um lado das águas, de ·uri1 lado da morte,
das ondas do mundo . tua sede brilhou nas águas escuras.
Bóiam no fundo E hoje, que barca te socorre?
ramos de mistério. Que deus te abraça? Com que deus lutas?
(Doce peso
desta sonolência ... Eu, nas sombras. Eu, pelas sombras,
Leve cadência com as minhas perguntas.
de amor e desprezo . .. ) Para quê? Para quê? Rodas tontas,
em campos de areias longas
e de nuvens muitas.
CHORINHO
..
VAGA MOSICA '.?.01
'.?.00 CECILIA MEIRELES / OBRA POÉTICA
É assim como entre nós, Figura sem rosto, caminhante do mundo.
Sem asa nenhuma, (Há névoa.)
sem vela nenhuma, Minhas palavras são folhas soltas no ar espesso,
para me salvar. indo e vindo à toa, olhando apenas para si mesmas.
Ao longe, são noites, No peso do ar fatigante, remam as minhas mãos e despedaçam-se.
de perto, são noites, É sempre longe, mais longe. É sempre e cada vez mais longe.
quem se há de chamar? Oh! se existisse um limite!
Já dormiram todos, (Há névoa.)
não acordam outros ...
Água. Vento. Luar. Filtra-se por meus olhos a cinza da noite silenciosa.
Caminha pelo meu sangue com o passo pegajoso da sua vida acre.
O trilho da terra Pousa em meu coração. Descansa. Adere à minha vida guardada . . .
para onde é que leva, (Há névoa.)
luz do meu olhar?
Que abismos aéreos E no entanto, em minha memória, ainda existe uma espécie de
de reinos aéreos [música!
para visitar!
Na beira do mundo, 2
do sono do mundo
me quero livrar. Deve ser o meu rosto, que se reflete por todos os lados.
E em cima - é a lua, E, então, a doçura da noite, com seu plácido nível de aquário
no meio - é a nuvem,. 11 entra em perturbação, e as coisas submersas temem perder-se.
e embaixo - é o mar!
Assustarão por acaso os meus braços? Não - porque embora
[paralelos
e imóveis, e com essa emoção das estátuas quebradas,
DA BELA ADORMECIDA erguem as mãos em flor, pousam os pulsos no meu peito
como sobre um menino morto.
(Tudo mais é tranqüilo assim:
cada recordação acorda suaves ritmos;
e a carne sonha ser pluma, e o sangue flui dormente de felicidade ,
(HÁ NÉVOA.) , misturando ternuras de luar, transparências de água, metamorfoses
Um beijo seria uma borboleta afogada_ em marmore. de terra em aroma .)
Uma voz seria raiz perfurando cegueiras.
As paredes unificaram feitios e cores (Há névoa) . É certo que se desprendem fantasmas: hirtos santos, parentes tristes,
e mesmo as janelas abertas estão fechadas com armmhos homens desconhecidos, mulheres de longe, que esperaram ser amadas,
e as soleiras revestidas de musgos, líquens, pelúcias brancas. e outros ainda, que não são gente - e contemplam segundo a sua
[condição.
E fundiram-se as montanhas (Há névoa), dissolveram-se no ar
[os mortos astros. Mas quem ouve esse deslizar entre muros serenos?
As areias povoaram-se de avestruzes, ursos brancos, beduínos, Quem sente essa respiração mais fina e essa presença mais tênue
imóveis, sentados, esperando. que a impa1pável luz das estrelas?
(Há névoa) Entre água e céu invisíveis, Ah! só .meu rosto, dentro da noite, produz, decerto, espanto imenso.
su~endem-se os navios, desfigurados em ouro difuso. Ele, apenas, de olhos abertos, de êrmo lábio,
E as árvores encanecem, numa inesperada velhice. criança apoiada nas nuvens, erguida em pontas de pés, preparando
Se uma flor ~air, não poderá dizer "Boa noite!" a nenhuma outra, [o salto dos tempos:
porque, de ramo a ramo, erram distâncias invencíveis.
202 CECILIA MEIRELES / OBRA POÉTICA VAGA MúSICA 203
Todos esparariam que perguntasse; mas não pergunta. ai, de náufragos!
(Responder também não responde.)
Então, a noite se faz imensamente triste, e há um desespero sobre
[a vida. Embarcara no primeiro,
dera em altos rochedos,
E não se sente mais o mundo, e a sombra ondula em formas instáveis, dera em mares de gelo,
onda partida com o vento, enlouquecendo e atraindo ... e partira-se ao meio .. ;
Em cima, vai ficando o céu. Tão grande. Claro. Liso. Parece angústia espremida
Ao longe, desponta o mar, depois das areias espessas. de meu negro coração,
As casas fechadas esfriam, esfriam as folhas das árvores. - pelos meus olhos fugida
As pedras estão como muitos mortos: ao lado um do outro, mas e quebrada em minha mão.
[estranhos.
E ele pára, e vira a cabeça. E mira com seus olhos de homem. Mas é rio, mais profundo,
sem nascimento e sem fim,
Não é nada disso, porém ... que, atravessando este mundo,
passou por dentro de mim.
Alta noite, diante do oceano, senta-se o animal, em silêncio.
Balançam-se as ondas negras. As cores do farol se alternam.
Não existe horizonte. A água se acaba em ténue espuma.
Não é isso! Não é isso!
Não é a água perdida, a lua andante, a areia exposta .. . RODA DE JUNHO
E o animal se levanta e ergue a cabeça, e late. . . late .. .
A M. H. Vieira da Silva
E o eco responde.
SENHOR São João,
Sua orelha estremece. Seu coração se derrama na noite. me venha ajudar,
Ah! para aquele lado apressa o passo, cm busca do eco. que as minhas mazelas
eu quero deixar,
e os reinos da terra
perder sem pesar!
IMAGEM
MEU CORAÇÃO tombou na ' vida No fogo do chão,
tal qual uma estrela ferida no fogo do ar,
pela flecha de um caçador. queimei meus pecados
para lhe agradar!
Meu coração, feito de chama,
em lugar de sangue, derrama O seu carneirinho
um longo rio de esplendor. prometo enfeitar
com rosas de prata,
Os caminhos do mundo. agora, jasmins de luar,
ficam semeados de aurora, servir-lhe de joelhos
não sei o que germinarão. bem doce manjar!
Não sei que dias singulares
cobrirão as terras e os mares, Em águas de rio,
nascidos do meu coração. em águas de mar,
Senhor São João,
me venha banhar!
no vosso doce regaço, POR MIM, e por vós, e por mais aquilo
com o vosso coração perto que está onde as. outras coisas nunca estão,
do meu, no mesmo compasso, deixo o mar bravo e o céu tranqüilo: -
quero solidão.
enquanto ándatn as estrelas Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
na curva dos seus bailados,'_,,_ E como o conheces? - me perguntarão.
e ao longe nuvens e ventos - Por não ter palavras, por não ter imagens.
galopam, enamorados,. Nenhum inimigo e nenhum irmão.
e o mar e a térra sombrios Que procuras? Tl!ldo. Que desejas? - Nada.
sofrem no silente ,espaço, Viajo sozinha com o meu coração.
porque os humanos suspiros Não ando perdida, mas desencontrada.
não vêm ao vosso regaço!" Levo o meu rumo na minha mão.
LAVRADEIRA de ternuras,
trago o peito atormentado
pelas eternas securas
de tanto campo lavrado. NARRATIVA
ANTIGA
cantiga A MULHER E O SEU MENINO
da amiga
deixada. A Fernanda de Castro
"Vento do tempo
quebrou meu s~io ~
para o arrancar.
A mim, deixou-n;ie.
A ele, levou-o.
(Há algum lugar?)
ORÁCULO
A Carlos Queiroz