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A MODERNIDADE E A MODERNIZAGAO SAO COMPATIVEIS? O Desafio da Democracia Latino- Americana’ NORBERT LECHNER O DILEMA DA AMERICA LATINA No umbral do século XXI, a América Latina enfrenta o dilema de optar pela modernizacio, aceitando a exclusio de amplos setores da populacdo, ou privilegiar a integragZo social mesmo com o risco de permanecer 4 margem do desenvol- vimento econémico mundial. Trata-se de uma formulagio esquemitica que busca sim- plesmente delimitar os extremos. Na verdade, a modernizacio nao € uma op¢do que possamos escolher ou recusar; ela represen- ta 0 marco econémico e cultural de nossa época, estabelecendo o referencial obrigatrio para qualquer politica. Que se entende por modernizaco? Quando todos — esquerda e direita - se preten- dem modernos e alguns até pés-modernos, o termo est4 necessa- riamente eivado de ambigiiidade. Julgo conveniente distinguir entre modernizagéo e modernidade, entendendo por moderni- za¢ao o desenvolvimento da racionalidade instrumental, em con- * Tradugdo de Régis de Castro Andrade. 74 LUA NOVA — SAO PAULO ~ SETEMBRO 90 N® 21 traposigao a modernidade enquanto racionalidade normativa. Enquanto a modemidade aponta para a autodeterminagao politi- ca e para a autonomia moral, a modernizacio refere-se a previsi- bilidade e ao controle dos processos sociais e naturais. A relagio entre ambas contém uma tensdo inexoravel que caracteriza a época moderna, incluindo 0 debate sobre a pés-modernidade. Ao falar de tensdo jé estou insinuando nosso problema: nao po- demos eliminar um pélo da tensio em beneficio do outro. Temos de viver com ambos os momentos. A questio de fundo é se modernidade e modernizacao sio compativeis. A relagio entre moderniza¢io e modernidade adquire nova forca no horizonte do ano 2000 sob o impacto dessa "dialé- tica do capitalismo" que Osvaldo Sunkel acertadamente definiu como "“integracdo transnacional e desintegrag3o nacional"!, Esse Pprocesso contradit6rio se caracteriza por dois aspectos que confi- guram o mencionado dilema na América Latina. A primeira caracteristica € a de que as tendéncias de integragao transnacio- nal produzem os processos de desintegracao nacional. Esta dialé- tica, inicialmente introduzida pelos estudos sobre dependéncia, dé lugar ao novo dualismo da sociedade latino-americana. Ja nao se trata de um setor tradicional justaposto ao setor moderno e que possa ser simplesmente considerado como "obstéculo a0 desenvolvimento" deste Gltimo; trata-se de uma exclusio produ- zida pela propria modernizacéo. O novo dualismo se instala no mesmo e tinico marco espacial e temporal; a0 mesmo tempo, esse marco € deslocado pela segunda caracteristica do processo em curso, que consiste em potencializar a tensio entre moderni- zagio e modernidade, dividindo seus 4mbitos institucionais. Hoje, tanto as categorias da racionalidade técnico-instrumental (o cAlculo custo/beneficio manifestado na eficacia, produtividade, competitividade etc.) como os valores da racionalidade normati- va (soberania popular, direitos humanos) podem ser conside- rados normas universais. Entretanto, 0 mesmo nao acontece com as respectivas instituigées. Por um lado, as expressdes prOprias da modernizag¢ao como 0 mercado e 0 desenvolvimento cientifico- tecnolégico chegam a ser os mecanismos tipicos da integracéo transnacional; por outro lado, as instituigdes proprias da moder- Isunkel, Osvaldo, "Capitalismo transnacional y desintegracién nacional en la America’ Latina", in El Trimestre Econémico 150, abril-junho, 1971. A MODERNIDADE E A MODERNIZAGAO SAO COMPATIVEIS? 75 nidade, como o Estado democratico, ficam restritas a uma esfera nacional. Quer dizer, a modernidade sofre um déficit institucional para enfrentar a dinadmica da modernizacio. Pode o Estado responder simultaneamente as exigéncias de uma ineludivel integragao transnacional e da integracZo nacional? A DINAMICA DA MODERNIZACAO ‘A modernizagao da lugar, num mesmo processo, a duas tendéncias contradit6rias: integragio e marginalizagio. Mais precisamente: a modernizagao impulsiona uma integracdo trans- nacional que provoca a marginalizacdo tanto de amplos setores sociais como de regiGes inteiras. Antes de fazer um esbo¢o dessa dinamica, entretanto, convém destacar o carater imperativo da modernizagao. Trata-se de um imperativo no sentido de que nao existem alternativas viaveis de desenvolvimento econémico. Ne- nhum pais e muito menos um pais latino-americano pode entrin- cheirar-se em suas fronteiras nacionais sem condenar-se ao sub- desenvolvimento. A transnacionalizagéo dos mercados e das ino- vagdes tecnolégicas transformaram a racionalidade instrumental na racionalidade predominante, Ela se torna uma norma uni- versal em sentido duplo: como principio orientador da acio so- cial e enquanto valor objetivado em produtos (tecnologia), como um padrao objetivo. A modernizacio é atualmente um critério necessario de desenvolvimento econémico; ademais — e€ isso € decisivo - € uma norma legitimadora do processo politico. Trata- se de um valor cultural aceito geralmente e isto condiciona a dinamica mencionada acima. A medida que se considera a integracdo transnacional uma necessidade legitima, a marginali- za¢4o decorrente aparece como mal menor, indesejado porém aceito. Ou seja, nao se trata de repudiar a exclusdo mas de atenua- la, Voltarei ao contexto cultural mais adiante. Vejamos agora a marginalizac¢do econémica da América Latina como resultado da integracao transnacional. Sua expresso mais dramatica €, sem divida, a divida externa. A mesma inde- pendéncia dos fluxos financeiros em relago aos processos pro- dutivos que acelera a integracdo transnacional da regido nos anos 70, provoca, na década de 80, a "crise da divida", e a conseqliente 76 LUA NOVA — SKO PAULO — SETEMBRO 90 N® 21 marginalizacio da América Latina. £ sabido como os pagamentos de juros e amortizagao freiam ou distorcem os ajustes estruturais que permitiriam melhorar a participagio da regio no comércio mundial. Em conseqiiéncia, as exportagées latino-americanas (ex- ceto a do Brasil) continuam sendo fundamentalmente agricolas e mineiras, ou seja, produtos de dinamismo e valor decrescente em relagao as manufaturas. Basta lembrar a evolucdo dos termos de troca internacionais. Atualmente a América Latina exporta 100 em volume e recebe 74 em valor, enquanto os paises industriais exportam 100 e recebem 124 em valor. A deterioracao da posicao comercial est4 vinculada ao atraso tecnol6gico da regio. A res- peito, limito-me a citar um artigo recente de Castells e Laserna”; "O novo intercambio desigual na economia internacional nao se realiza entre bens prim4rios e produtos industrializados, mas entre bens e servigos com diferentes componentes tecnoldgicos". Esta tendéncia marginaliza as economias latino-americanas 4 medida que "ndo podem importar alta tecnologia porque nao exportam suficientes produtos industrializados e néo podem exportar produtos industrializados porque sua base industrial € obsoleta, por falta das indispensaveis importagdes de alta tecno- logia". O hiato tecnolégico, por sua vez, dificulta o aumento da produtividade e conseqiientemente da competitividade. Ficam evidentes os desafios da integrac4o transnacional; a América Latina somente superar sua posigao periférica se alcancar os pa- drées internacionais impostos pela integra¢ao transnacional. Pois bem, podem as sociedades latino-americanas enfrentar os custos econémicos da moderniza¢ga4o sem considerar seus custos sociais? Esta dificuldade vincula a democratizagio na América Latina aos processos que estZo ocorrendo na Europa Central, relagdo que nao poderemos abordar aqui, porém que deveremos ter presente. Os indicadores sobre a marginalizacio da regio no seu conjunto, se corretos, distorcem o quadro se nao levarmos em conta a especificidade da atual reestruturacio mundial, quer dizer, seu carater segmentado. A integracdo transnacional segmenta as sociedades nacionais, gerando "mercados" diferentes, nado apenas economicamente mas também politica e culturalmente, de acor- do com seu grau de internacionalizacao. Esta segmentagao trans- 2castells, Manuel e Laserna, Roberto, ‘La nueva dependencia. Cambio tecnolégico y reestruturacién socioeconémica en Latinoamerica', in David & Goliath 55, CLACSO, Buenos Aires, julho, 1989, pp. 5 € ‘A MODERNIDADE E A MODERNIZAGAO SAO COMPATIVEIS? 7 Insergio internacional da América Latina (porcentagens sobre o total mundial nos anos 80) ‘América Estados Japao Repablica Latina Unidos Federal da Alemanha 1. Populacao 8,0 5,0 2,5 13 2. PIB 7,0 27094 5,8 3. Produto manufaturado 6,0 18,0 11,7 94 4, Bens de capital 3,0 14,7 11,1 9,6 5. Engenheiros e cientistas 24 174 128 34 6. Recursos de pesqu sa e desenvolvimento tecnol 18 30,1 10,2 67 7. Exportagao de manufaturas 18 121 14,2 15,4 Fonte: Divisio Conjunta CEPAL/ONUDI de Indastria € Tecnologia, a partir de dados da UNESCO, Anudrio Estatistico, varios anos; ONUDI, Banco de Dados e Nagdes Unidas, Anudrio Demogrdfico, 1986 (ST/ESA/STA /SER. R:/16), Nova YORK, 1988, publicagao das Nagdes Unidas n® 20 E/F 87, XIILI; National Science Foundation, International Science and Technology Data, UPDATE, 1986, Washington, 1986. Conferéncia de F. Fajnylber: America Latina ante los nuevos desafios del mundo en transicién. Seminfrio da Comissio Sul-americana de Paz, Santiago, julho, 1989. nacional altera a estrutura social de nossos paises de tal modo que ultrapassa 0 marco habitual de andlise. Mas, mesmo super- ficialmente, € evidente que as elites em Santiago, Caracas ou Sao Paulo tém - econémica e culturalmente — um estilo de vida muito mais parecido a grupos equivalentes em Nova York ou Madri que a setores vizinhos de sua pr6pria cidade. As distdncias sociais em nossos paises néo apenas aumentam, mas sao modificadas qualitativamente de tal maneira que se altera o carater das desi- gualdades sociais. Surge uma nova "heterogeneidade estrutural’. Atualmente, a sociedade latino-americana j4 nao € um “arquipé- lago" de ilhas econémicas, étnicas, culturais relativamente desco- nexas, mas uma ordem segmentada. E isto altera o carater da excluso social. Um terco da populagdo latino-americana esté excluida dos mercados formais de trabalho e/ou vive abaixo dos niveis minimos de subsisténcia. Nossas sociedades continuam sendo dualistas. Porém, j4 nao € mais o antigo dualismo tradi- cional-moderno, onde o setor tradicional tinha uma vida a parte do setor moderno. H6je em dia, os setores excluidos compar- tilham do "modo de vida" moderno. So marginais, nao por seus valores ou aspiracdes, mas em relacio a0 processo de moderni- 78 LUA NOVA ~ SAO PAULO ~ SETEMBRO 90 N® 21 zagio que, dado o peso crescente do fator capital (incluindo a tecnologia), € incapaz de integr-los, gerando um desemprego estrutural. Quero dizer, pensando no Chile: além da continuidade historica do problema da marginalidade, tal como o tivemos na década de 60, hoje nos defrontamos com um novo tipo de exclusio, produto do proprio processo de modernizacao. Jé nao se trata de um setor 4 margem do sistema capitalista, mas de setor incorporado passivamente. Assemelhamo-nos a "sociedade de dois tercos" dos paises industrializados, onde um terco da popu- lacao tornou-se "supérflua", vivendo dos subsidios estatais que a populacio ativa proporciona. Enquanto aqueles paises tem a tarefa inédita de reorganizar uma sociedade para a qual o trabalho esta deixando de ser o principio constitutivo, nossos pai- ses enfrentam ademais, a curto prazo, a tarefa urgente de assegu- rar ao terco excluido niveis minimos de integracao por meio da aco estatal. A dificuldade é maior pelo fato de devermos articular ambos os objetivos. MODERNIZACAO SEM MODERNIDADE Aceitamos a modernizagéo como um marco obrigatério para qualquer politica no sentido de que poe Cimpée) um conjun- to de condigdes de alcance transnacional ao desenvolvimento social. Assumir tal condicionamento nao significa entretanto aceitar um "modelo" Gnico de modernizagao. Trata-se de um pro- cesso historicamente determinado, definido por fatores especi- ficos3. Precisamente porque todas as forcas politicas invocam a necessidade de modernizagio, é indispens4vel precisar que tipo de modernizacio preferimos. Embora pareca inadequado compa- rar diferentes caminhos, dadas as especificidades hist6ricas, existem configuragées exemplares que ilustram as alternativas. Chile representa de modo emblemitico um caminho particular de moderniza¢ao: modernizagio sem modernidade. O regime militar utiliza um cAlculo exclusivamente técnico-instru- mental das "vantagens comparativas" € inibe toda reflexio nor- mativa sobre tal reestruturagio da sociedade. Uma modemizagio 3Ver, entre outros, de Touraine, Alain, "Modernidad y especificidades culturales", in Revista Intemacional de Ciencias Sociales 118, UNESCO, Paris, dezembro, 1988 (0 nimero inteiro € dedicado 20 tema). A MODERNIDADE E A MODERNIZACAO SAO COMPATIVEIS? 79 econémica tem lugar (fechamento de indéstrias obsoletas, diversificagdo das exportagées, informatizacao incipiente, novos mecanismos financeiros etc.), que intensifica a inser¢ao do Chile (em termos produtivos, e sobretudo de expectativas de consumo) no mercado mundial. O desenvolvimento capitalista abarca nao apenas sua dimensio internacional; além disso, ele completa o processo de “capitalizacao" integral das relagdes sociais. O Chile € uma sociedade completamente capitalista, 0 que modifica a natureza da populacdo marginal. Mais exatamente: existe uma notavel modernizagio a custa da exclusio de amplos setores sociais que permanecem estruturalmente 2 margem do mercado (desemprego) e da protegio estatal (servicos piblicos). Desta dinamica da modernizagéo devemos reter dois aspectos. Por um lado, a exclusio social nao pode ser aceita como legitima. Tanto do ponto de vista liberal ou marxista como, especialmente, do ponto de vista da tradi¢do crista da América Latina, a ordem se baseia numa idéia de comunidade que nao aceita 0 apartheid. Apesar dessa recusa "em principio", por outro lado aceita-se a existéncia de uma populagdo marginal. A exclusio € consentida pelos proprios setores excluidos 4 medida que aparece como uma espécie de "lei natural" ou justificada como mal passageiro. De fato, a ofensiva neoliberal se apdia em ambos os argumentos: apresenta-se como a cria natural e exclusiva de modernizagao e apresenta a marginalizagdo como um problema somente econémico, além de transit6rio. Conhecemos 0 fracasso do modelo neoliberal em sua pretensio de resolver economicamente a "situagio de pobreza extrema"; esse modelo, pelo contrario, conseguiu aumentar as desigualdades. Os nimeros oficiais sobre a distribuigio de renda nos Ultimos trimestres de 1978 ¢ 1988 respectivamente, no Chile, falam por si proprios. Enquanto se observa um leve incremento da participagdo na renda dos 10% de familias mais pobres, que sobem de 1,28% em 1978 para 1,63% em 1988, todos os demais diminuem sua proporgio na participagio da renda, exceto os 10% mais ricos, cuja participagao na renda total passa de 36,5% em 1978 para 46,8% em 19884. Isto significa dizer que 0 aumento da renda no diltimo decénio beneficiou quase exclusivamente o setor mais rico da populagao chilena. Diante da miséria pro- Ainstituto Nacional de Estatisticas, Encuesta Suplementaria de Ingresos, Santiago, setembro, 1989. 80 LUA NOVA ~ SKO PAULO - SETEMBRO 90 N® 21 duzida pela modernizagao neoliberal, compreendemos que a estratégia de modernizacao nao € uma decisio técnica neutra. O problema nao é apenas econémico. Por sua amplitude e duragio, as desigualdades afetam a legitimidade da ordem. Durante anos, a doutrina neoliberal justificou a exclusio social como um sacrificio transit6rio e a populagio compartilhou dessa nova fé No progresso, baseada em expectativas de recompensa. Tais espe- rangas de ascensio individual e integracao social so, entretanto, derrubadas pela crise da divida nos comecos dos anos 80. Seu efeito principal consiste em quebrar a relagao presente-futuro. Neste momento, a exclusio torna-se insuportavel e deslegitima a ordem estabelecida. A crise demonstra dramaticamente que o futuro escapa ao cAlculo custo-beneficio, Nem tudo é calculavel e esta imprevisibilidade questiona a hegemonia de fato do mer- cado. A medida que o c4lculo custo-beneficio individual confessa sua precariedade, se revaloriza a responsabilidade social pelo futuro, que volta a ser visto como construgio coletiva, motivando a demanda por democracia, Nao é em vao que recordamos a grande obra de Polanyi>; no Chile, sio as imposicdes do merca- do, com suas tendéncias de desagregacao e exclusio, que provo- cam reagdes de solidariedade, reivindicando a defesa do coletivo €, portanto, a interven¢do do Estado e o restabelecimento da institucionalidade democratica. A COMPLEXA REVALORIZACAO DA DEMOCRACIA A reflexdo precedente insinua alguns elementos politico- culturais que convém destacar. Em primeiro lugar, recordo a vigéncia que adquire a idéia de modernizacao como valor cultu- * ral. A alta valoragdo da modernizagao € not6ria, mesmo por par- te de governos tio diversos como o de Alfonsin e de Pinochet; a moderniza¢io torna-se 0 simbolo de bem-estar material. A novi- dade na América Latina reside no fato de que agora a moderni- zacio € identificada com a integragio transnacional, associando- se 0 desenvolvimento nacional 2 economia mundial. Nao s6 a dendncia do imperialismo arrefeceu ford da América Central, Spolanyi, Karl, La gran transformacién (1* ed. 1944) Juan Pablo Editor, México, 1975. ‘A MODERNIDADE E A MODERNIZAGAO SAO COMPATIVEIS? 81 como a proposta de um Estado nacional-popular desvinculado do capitalismo mundial e de suas relagdes de dominacao® se chocaria com a opinido publica prevalecente. Conseqiientemente, reiterando a premissa inicial, nio podemos renunciar 4 moder- nizagio por razdes econdmicas, nem tampouco por motivos culturais. Em segundo lugar, o valor atribuido 4 modernizacio altera 0 cardter da marginalizagio dela decorrente. A exclusio de parte importante da populagio nao € aceita em termos politico- institucionais, mas como um fenémeno social. Esta legitimidade factual depende a) de que nao exista uma barreira oficial entre integrados e marginalizados (apartheid) e b) da promessa de recompensa, ou seja, de uma imagem de futuro. Observa-se aqui um elemento de racionalidade normativa: a referéncia a uma ordem alternativa, a um futuro diferente. A modernizacao é um processo socialmente valorizado porquanto implica uma reflexio normativa que remete a exclusio presente a uma integracio so- cial futura, Vale dizer, a dinamica da modernizacio se apoia, defi- nitivamente, numa nogao do coletivo, da comunidade. Tais no- g6es sio difusas e de dificil institucionalizagio, afetando desde o inicio 0 processo de modernizacao, sempre exposto a explosdes de frustragao e rebeldia social. Em resumo, acredito que os pro- blemas da América Latina nao estéo tanto no déficit de moderni- zagao — que existe — mas na precariedade de sua modernidade. A pesquisa social sobre a América Latina costuma privi- legiar um enfoque societal, analisando os processos e estruturas politicas em fun¢ao das mudangas sociais. Todas as posicdes ideologicas, da esquerda revolucioniria a direita neoliberal, ten- dem a tomar a mudanga social como foco de suas perspectivas. Quer dizer, atribui-se a politica um carater fundamentalmente ins- trumental, a servigo de um ou outro principio de reorganizacao social, Tal enfoque desconhece e desvirtua outras dimensdes da politica; ndo leva em conta, em particular, a constituigo norma- tiva e a expressio simbélica de uma ordem coletiva’. Esse ambito politico remete ao mesmo fendmeno da marginalizagio. Quando falamos de pobres ¢/ou setor informal, aludimos a varidveis econémicas — renda e emprego - a partir de uma concepcio Sver, por exemplo, de Amin, Samir, "El Estado y el desarrollo: construcci6n socialista 0 construcci6n nacional popular”, in Pensamiento Iberoamericano 11, Madsi, janeiro-junho, 1987. TRemeto a meu livro: La conflictiva y nunca acabada construccién del orden deseado, CIS-Siglo XXI, Espanha, Madri, 1986. 82 LUA NOVA — SAO PAULO ~ SETEMBRO 90 N® 21 politica: emprego pleno e renda minima. A exclusio somente adquire seu significado moderno dentro dos parametros dessa normatividade. Isso nao implica cair no outro extremo e cultivar © “politicismo". Esta na hora de estabelecer a relacdo entre Politica e sociedade enquanto tensao inevitavel e irredutivel. Nes- te sentido, vejo na precariedade da modernidade na América Latina um apelo para que consideremos prioritarias as reformas politicas e, concretamente, a reforma do Estado. Somente conse- guiremos processar e dirigir a dinamica transnacional da moder- nidade 4 medida que sejamos capazes de desenvolver uma normatividade que dé conta da nova realidade social. O debate sobre as reformas politicas € lento e incerto e, por enquanto, apenas pode sinalizar alguns dilemas. O primeiro e decisivo avanco na Gltima década consistiu na recuperacdo tematica e na defesa pratica da democracia, Por anos tinhamos desdenhado a democracia formal, pois consideravamos a igualdade de cidadania incompativel com as desigualdades sécio- econdmicas. Privilegiavamos a mudanga social como premissa necess4ria e suficiente para chegar a uma democracia substantiva. Pois bem, 0 mesmo processo acelerado de mudangas, que sola- pou as certezas tradicionais e, acima de tudo, a experiéncia autoritéria, provocou uma revalorizacéo da institucionalidade democritica. Hoje a crenca no idedrio democratico est4 fora de divida. Porém nao € mais do que um primeiro passo, importante, fragil. Os surtos recorrentes de descontentamento social nas capitais latino-americanas chamam a atencdo sobre situagées de desigualdade que se expandem ao invés de diminuir. Devemos reconhecer 0 fato de que a exclusio de um terco da populacio, produto da modernizacao, é e sera a realidade de nossos paises. Nao existe atualmente alternativa para a dinamica da moderni- za¢io e isso implica abandonar uma dupla ilusao: considerar a marginalizagdo como um obstaculo ao desenvolvimento e, a partir dai, fazer de sua solucdo um objetivo politico. Pelo con- trario, como vimos, a exclusdo social transforma-se em momento estrutural préprio da integragao transnacional e torna invidvel uma politica de "desenvolvimento com eqiidade"®. Como disse brutalmente Peter Glotz, uma politica de desenvolvimento pode obter o apoio do capital € 0 respaldo do eleitorado com 20% de 80 artigo de Fajnzylber, Fernando “Las economias neoindustriales en el sistema centro-periferia en los ochenta", in Pensamiento Iberoamericano 11, Madri-janeiro-junho, 1987, apresenta uma boa introdugdo ao debate. A MODERNIDADE E A MODERNIZACAO SAO COMPATIVEIS? 83 desemprego, porém, nao com 40% de inflac4o®. A situacdo da América Latina nao € tao diferente, apesar da hiperinflagdo em varios paises. Nao apenas os circulos tecnocraticos como também a opiniao piblica concede maior prioridade a integragio transnacional que a segmentagao social. Este €, em conclusio, 0 contexto a partir do qual devemos pensar numa politica realista de consolidagéo democratica. Como conceber a democracia quando seu fundamento classico - a integracdo nacional — parece dissolver-se sob 0 impacto (externo e interno) da modernizacao? Um aspecto que se sobressai na América Latina nos anos 80 € a revalorizacdo da institucionalidade democratica, seja como recusa politica da ditadura, seja como reflexo de mudangas sociais. Quero destacar esse segundo aspecto, embora faitem-nos estudos detalhados das repercussées que poderiam ter as transformagées sociais da Gltima década na esfera politica. Nao obstante, sdo evidentes os processos de secularizagio e individua- lizagdo e, conseqiientemente, a crescente diferenciagéo social em todos os paises da regiao. A erosio das velhas identidades coletivas costuma ser caracterizada, negativamente, como atomi- zagao, sem levar em conta a riqueza potencial que ela significa. A injuriada privatizagio implica também o questionamento de categorias antiquadas ¢ formas obsoletas, gerando relacdes novas e mais complexas. Finalmente, descobrimos a diversidade de nossas sociedades como um mundo de possibilidades abertas. Para essa nova sensibilidade, a institucionalidade democratica nao pode deixar de ser atraente, porquanto permite expressar e explicitar a heterogeneidade social. Pois bem, no mesmo momento em que se consagra a democracia como institucionalizagéo do conflito e negociagao de interesses, esses interesses perdem seu perfil especifico. Segura- mente existem demandas "duras", sobretudo de tipo econémico; a seguir, demandas sociais (satde, educagéo, moradia, previ- déncia) e, crescentemente, demandas relativas 4 ordem (droga, criminalidade). Parece-me, entretanto, que as demandas tornam- se crescentemente difusas e sequer chegam a ser formuladas pela dificuldade de nomed-las e por falta de quem as possa satisfazer. Nao € mais do que uma intuigao, dificil de comprovar em pes- Gotz, Peter, Manifiesto por una nueva izquierda europea, Ed. Pablo Iglesias, Siglo XXI, Espanha, Madri, 1987 ¢ Paramio, Ludolfo, Tras el diluvio. La izquierda ante el fin de siglo. Siglo XXI, Espanha, Madri, 1988, apresentam uma saudivel revisio dos dogmas da esquerda. 84 LUA NOVA ~ SAO PAULO — SETEMBRO 90 N° 21 quisas de opiniao pablica; suspeito, porém, que existem muitas demandas nao expressas que tém a ver com questées de sociabi- lidade, seguranga, certeza. O mesmo processo de modernizagio que dissolveu os antigos lagos de pertinéncia a determinado grupo e de familiariedade recria demandas de sentido e identi- dade coletiva. Mas estas jé nao se deixam expressar em termos de finalidade hist6rica ou interesse de classe, nem reconhecem o discurso individualista-utilitarista do neoliberalismo. Também no campo de subjetividade encontramo-nos em um periodo de transigao em que o velho e 0 novo convivem confusamente. Quero aprofundar a questao do clima cultural porque acredito que isso possa dar conta nao apenas da fragilidade da institucionalidade democritica, como da precariedade da moder- nidade na América Latina. Uma caracteristica de nossa cultura politica, pelo menos no Chile, € a oscilacéo permanente entre a apologia do consenso e uma luta de morte entre o Bem e o Mal!0, Se o conflito social € visto como enfrentamento entre o Bem e 0 Mal, nao existe compromisso possivel e somente a exterminagao do herege permite restabelecer a boa ordem. O medo da guerra civil provoca, por outro lado, a exaltagio do con- senso. Por consenso nao se entende um acordo entre interesses particulares mas a fusio social: 0 desejo sublime de dissolver-se no todo, Sua figura emblemitica é a nagdo, unidade natural (a quem se pertence predeterminadamente) e abstrata (prescindin- do de diferengas particulares). Pois bem, esta idéia de comunida- de nacional impede tanto a representagao de interesses particu- lares quanto a confrontacio de alternativas. Em resumo, nao permite a concepeio criativa do conflito e evidentemente condi- ciona uma imagem de democracia. A revalorizagio da demo- cracia na América Latina nio significa primordialmente a aspira- ¢a0 de uma comunidade restituida? Ao mesmo tempo que a idéia de nagao enfraqueceu-se sob 0 impacto da segmentacao transnacional!!, a demanda de 10, analise de Rosanvallon, Pierre "Malaise dans represéntation", in Furet, Julliard e Rosanvallon: La république du centre, Calmonn-Levy, Paris, 1988; ver particularmente pp. 156 ss., chama a atengZo para a semelhanga com a Franga, 11gm uma pesquisa realizada em Santiago, 85% dos entrevistados concordavam que “na verdade a diferenga entre as populagdes pobres © as elites seja to grande que parecem ser dois paises distinios" (4% discordavam). Ao contrério, somente 39% dos entrevistados concon! 171 *embora se fale muito das’ diferengas entre os chilenos, no final estamos A MODERNIDADE E A MODERNIZAGAO SAO COMPATIVEIS? 85 consenso continua presente. Sob esse rétulo politico aglutinam-se aqueles desejos difusos mencionados anteriormente. A expressio de tais sentimentos, por balbuciante que seja, tende a deslocar a reivindicagao de interesses materiais ou, pelo menos, Ihes impri- me uma forte carga subjetiva. Acredito que, no fundo, a demanda de consenso cristaliza a busca de sentimentos compartilhados, a comunidade de sentimentos!?. Se minha intui¢ao est4 certa, encontramo-nos face a um quadro problemitico. A maioria dos cidaddos de nossos paises prefere a democracia a qualquer outro sistema. Concretamente, esta preferéncia pareceria estar motivada por um sentimento comunit4rio: a democracia € identificada com comunidade. Surge entdo a pergunta: sera que o enraizamento afetivo da democracia pode ser acolhido e expresso pela institucionalidade demo- cratica? Ou seja: podem as instituicdes e procedimentos demo- craticos, necessariamente formais, dar conta do sentimento de comunidade como sua base subjetiva de legitimidade? A relagao entre institucionalidade e cultura politica é complexa. & dificil compatibilizar a democracia representativa com uma idéia forte de consenso. Esta idéia implica uma visio monista da sociedade, inibindo uma representagao de interesses particulares. Mesmo a identificagdo partidaria fica submetida ao influxo da idéia de comunidade e costuma, portanto, afirmar sua identidade na contraposi¢io amigo-inimigo, Bem e Mal. Nao ha lugar para conceber alternativas no interior do sistema. Nao € s6 dificil, porém, criar um sistema forte de partidos; uma vez criados, podemos antecipar que os modernos partidos de massa com sua tendéncia a burocratizacio e desideologizagao (catch-all-parties) erodem as identidades coletivas!3. Dito de outra forma: uma idéia predominante de comunidade elimina a distancia indispen- savel entre o ambito social e a esfera politica. Em nome da comu- nidade, 0 Estado tende a ocupar a sociedade, ou 4 sociedade todos unidos" (58% discordavam). Ver FLACSO, Encuesta comparativa, agosto, 1987 y el andlisis de Bato, Rodrigo, Transicién y cultura politica en Chile, FLACSO, Documento de Trabajo 390, Santiago, 1988. 12 Face a individualizagao poderia ocorrer um "retorno a tribo” representando uma solidariedade p6s-moderna segundo Maffesoli, Michel, *La solidarité postmodern’, in La Nouvelle Revue Socialiste 6, Paris, setembro, 1989. A nogio de comunidade sustentada pelo fundamentalismo religioso nada tem a ver com esta aspiragao. 13Ver Offe, Claus, Partidos politicos y nuevos movimientos sociales, Ed. Sistema, Madri, 1988. 86 LUA NOVA ~ SAO PAULO ~ SETEMBRO 90 N° 21 invade 0 Estado, Em ambos os casos, invoca-se um principio extraconstitucional para transgredir as regras legais. Constitu- cionalmente, prevalece uma "legitimidade mediante legalidade"; 6 legitima toda autoridade ou decisao geradas pelos procedimentos formais devidamente estabelecidos. Em um segundo nivel, entre- tanto, opera uma “legitimidade de contetdo", baseada em interes- ses e valores considerados vitais, Estes nao apenas sinalizam, em casos extremos, um limite externo a legitimidade legal; mais importante € 0 fato de servirem como critérios de eficiéncia para julgar, no dia-a-dia, os objetivos politicos e medir 0 desempenho governamental. Isto implica, concretamente, lembrando-se da cultura politica prevalecente, uma constante presséo sobre o governo e o Estado no sentido de que satisfagam sentimentos de comunidade. Essa tarefa € complexa, porquanto nio se trata de interesses calculaveis, mas de sentimentos imprecisos de materia- lizagio volatil. A institucionalidade democritica est4 preparada Para processar e negociar interesses; por outro lado, sera ela eficiente para responder a tais sentimentos difusos? Por enquan- to, parece que s4o precisamente essas aspiracdes as que nao apenas motivam a preferéncia pela democracia mas também permitem neutralizar suas ineficiéncias e fracassos. Conseqiien- temente, ndo as descartemos em nome de uma Realpolitik; pelo contrario, descubramos seu potencial normativo, que pode chegar a ser subversivo, certamente, mas também um fator de estabilizagdo. Em todo caso, este me parece ser 0 credo com o qual pode e deve contar a institucionalidade democratica. Fis aqui o paradoxo: a revalorizagio da democracia na América Latina se ap6ia em uma cultura que privilegia o con- senso e a comunidade, ou seja, uma legitimagao cultural que, por outro lado, dificulta precisamente a consolidacao de uma demo- cracia representativa. Nisto se baseia o déficit institucional de modernidade que mencionamos antes, AO mesmo tempo, esta cultura politica representa um recurso indispens4vel a medida que gera uma imagem de futuro que permite postergar a satisfacdo das necessidades. NORBERT LECHNER € doutor em Ciéncia Politica e diretor da FLACSO (Santiago do Chile).

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