Defendo o sono sempre que posso. No brinco. No posso brincar. Sou um ex-
insone e sei bem o que custa. S insones verdadeiros valorizam o sono com o
respeito que o sono merece.
Tudo comeou sem explicao racional. Certo dia, o sono foi embora.
Contemplei o tecto do quarto durante uma noite inteira. Vieram mais duas.
terceira, a minha vontade era morrer. O problema da insnia no est
propriamente na noite. A noite simples: a escurido amiga dos olhos, o
silncio uma cano de embalar para uma cabea cansada. O problema do
insone so os dias: o terror do dia que chega, a luz que vai furando as persianas
do quarto como balas de ouro que trazem consigo o rudo do mundo. Carros.
Sirenes de polcia. Vozes. Conversas. Telefones que tocam. Telefones que
imaginamos tocar. E a certeza - a longa certeza - de que a noite chegar. E, com
a noite, a evidncia de uma nova cruzada. Uma solitria cruzada. No existe
solido comparvel do insone. Na vida normal, conhecemos pessoas,
perdemos pessoas. Ficamos ss. Tudo bem. Ou tudo mal. Mas a solido do
insone uma solido desabitada de pessoas. Somos ns e ns e ns. O mundo
dorme e ns somos ss.
Disse que tudo comeou sem explicao racional. Minto. Lembro agora que a
insnia veio com o medo. Da morte, claro. No sei se li demasiado Shakespeare
para saber que os crimes, como em 'Macbeth', se cometem noite. Adormecer
para qu se o sono s traz esquecimento? Se o sono um simulacro da morte?
Melhor no dormir. Melhor no morrer. O caso cientificamente interessante -
disse o analista. O caso mitologicamente relevante - diz Peter Barber, em
artigo recente para o 'Financial Times'. Como relembra o autor, os filhos de Nyx,
a deusa grega da noite, eram Hypnos e Thanatos. O Sono e a Morte. S depois
chegou Morfeu, o deus dos sonhos, o filho do Sono.
No mais. Conta Peter Barber, em tom ctico mas ligeiramente festivo, que o
sono e os sonhos podem ser relquias no espao de dez anos. A cincia no
pra. O mundo tambm no. E uma plula pode resolver o problema dos
homens. Dos homens que dormem. E dos homens que no dormem. A ideia
mimetizar quimicamente o sono, proporcionando o que apenas obtemos com
oito ou dez horas de travesseiro: descanso.
Dias para trabalhar, explica Barber, porque as novas viglias no se faro sem
trabalho. A lgica impoluta: viver mais consumir mais; consumir mais
trabalhar mais. Nenhuma pausa, nenhum silncio. Como formigas sem inverno.
Como formigas de um vero permanente.