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4 Singularidade e normalidade do Holocausto Alé enti, o mal — pois um nome tem que ser dado a essa ‘assombrosa conjuncdo de circunsténcias apenas aparente- ‘mente inesperadas — infiltrara-se aos poucos, em siléncio, em estdgios que pareciam inofensivos... Ainda assim, revendo ‘as coisas, fazendo uma andlise reiraspectiva, parecia dbvio ‘que 0 acimulo de sinais ndo resultava de mera casuatidade, Possuiam ao contrério, por assim dizer, una dindmica pré- ria, embora ainda secreta, como uma corrente subrerrdnea ‘que vai aumentando, encorpando ¢, de repente, impetosa- iene, aflora; bastava voltar atrds, & época em que surgivam cos primeitos sinais ameagadores, ¢ tragar um gréfico, wm quadro clinico, de sua irresistvel ascensto. Juan Goytisolo, Paisagens depois da batatha *Vocés nfo ficariam mais felizes se eu pudesse mostrar que todos os que perpetraram fo crime] eram loucos?” — pergunta o grande his- toriador do Holocausto, Raul Hilberg. Mas € exatamente isso que ele nao pode mostrar. A verdade que ele de fato mostra no traz nenhum alivio, & improvavel que deixe alguém feliz. Os criminosos foram pessoas educadas de sua época. Esta é a questo crucial sempre que indagamos o significado da Civilizagao Ocidental depois de Ausch- ‘wiz. Nossa evolugao foi além da nossa compreensio; j4 nao podemos fingir que temos pleno aleance do Funcionamento de nossa instituigdes sociais, estruturas buroeréticas e tecnologia. Isso 6 sem duivida mé noticia para os fil6sofos, socislogos, te6- Jogos ¢ todos os outros homens € mulheres cultos profissionalmente ‘ocupados em compreender e explicar. As conchasdes de Hilberg si 106 ‘Singuleridede normatidads do Holacausto 107 nificam que eles nao fizeram direito o seu trabalho: no podem explicar © que aconteceu ¢ por que, nem podem nos ajudar a compreender. Esta acusagdo ja & suim o bastante no que concerne aos cientistas (esta fadada a inquietar 05 estudiosos € pode mesmo mands-los, como se de volta & prancheta), mas nao £ em si motivo para alarme geral Houve, afinal, muitos outros acontecimentos importantes no passado ‘que nio compreendemos plenamente. As vezes isso nos irita, mas em getal nao ficamos muito perturbados. Afinal de contas — eis 0 nosso consolo — tais acontecimentos do passado S80 assunto de interesse académico. Mas serd que so? Nao © Holocausto que achamos dificil de entender em toda a sua monstruosidade, £ a nossa Civilizagdo Oci- dental que o Holocausto tarnou quase inconipreensivel — e isto numa época em que achamos ter chegado a um acordo com ela, em que perserutamos os seus mais fntimos impuisos ¢ desvendamos até as suas perspectivas, numa época em que sua expansio cultural atinge uma dimensao planetéria sem precedentes. Se Hilberg tem razi0 20 afirmar que nossas instituigées sociais mais decisivas nos escapam wo controle pritico e ao aleance mental, entio ndo si apenas os acadé- micos profissionais que devem se preocupar. Verdade, 0 Holocausto aconteceu hé quase meio século. Verdade, seus resultados imediatos estio ficando rapidamente para tras. A geragio que viveu essa expe- riéncia diteta praticamente jé desaparecen. Mas —e este é um terrfvel ¢ sinistro “mas” —~ aqueles aspectos de nossa civilizagao outrora familiares e que o Holocausto tornou de novo misteriosos ainda fazem bem parte de nossa vida, Nao foram eliminados. Também nlo 0 foi, portanto, a possibilidade do Holocausto. Desdenhamos tal possibilidade. Damos as costas a esses povcos ‘obcecados que se irritam com a nossa indiferengs. Reservamos para eles um nome especial, depreciativo — so os “ profetas do ca0s”, do juizo final. E facil desprezar seus angustiados alertas. J4 no somos vigilantes? Nao condenamos a violencia, a imoralidade, a crueldade? Nao aplicamos todo 0 nosso engenho e 0s nossos consideriveis recur- 308, cada vez, maiores, para combaté-las? Além disso, ha seja 1d 0 que {or em nossas vidas que indique a mera possibilidade de uma catés- trofe? A vida esté melhorando e ficando mais confortavel. No geral, noses instituigdes patecem firmes. Contra o inimigo estamos todas protegidos, e nossos amigos certamente nio fario nada de mau. Confiados, de tempos em tempos ouvimos falar de atrocidades que Algum povo no muite civilizade e por isso mesmo espiritualmente 08 Modemidade ¢ Holocousie afastado comete contra vizinhos igualmente bérbaros. Os eués massa- cram um milho de ib6s, depois de chamd-os de vermes, criminosos, ladrSes € sub-humanos sem cultura;? os iraquianos envenenam com: gis seus concidadios curdos sem sequet s¢ dat ao trabatho de insul- Uelos antes; grupos do povo tamil massacram cingaleses; etfopes exterminam eritreus; ugandenses exterminam a si mesmos (ou foi 0 contririo?), Tudo isso € triste, claro, mas o que fem a ver conosco? Se isso tudo prova alguma coisa, certamence prova como € ruim ser diferente de nds ¢ como € bom estar sio e salvo atrés do escudo de, nossa civilizagfo superior. ‘© pomio até © qual nossa complacéncia pode acabar se revelando refratiria fica evidente se Iembrarmos que, ainda em 1941, 9 Holo- causto no era esperado; que, dado 0 conhecimento entao existente dos “ fatos”, niio era de esperar-se; e que, passado apenas um ano, sua realidade deparava-se com a incredulidade geral. AS pessoas recusa- vamn-se a acreditar nos fatos gritantes diante dos seus olhos. Nio que fossem cbtusas ou tivessem md vontade. Apenas, nada do que tinham visto antes as havie preparado para acreditar. Por tudo 0 que conheciam e acreditavam, o assassinato em massa para o qual ainda nem tinham rome era pura e simplesmente inimagindvel. Em 1988, € de novo inimaginavel, Mas cm $988 sabemos o que nao sabfamos em 1941: que também o inimagindvel deve ser imaginado. © problema Ha duas razdes pelas quais 0 Holocausto, 20 contrario de muitos outros temas de estudo acsdémico, nao pode ser visto como assunto de interesse exclusivamente académico ¢ pelas quais o problema que levanta nao pode set tedveido a matéria de pesquisa histérica © contemplacao filos6fica, ‘A primeira € que, mesmo sendo pleusivel que o Holocausto, “como acontecimento histérico fundamental — a semelhanga da Re- volugao Francesa, da Descoberta da América ou da roda — tenha mudado 6 curso da hist6ria subseqllente” com toda a certeza mudou ppouco, se & que mudou, o curso da histéria subsequente de nossa consciéncia coletiva ¢ autopercepeiio. Causou poueo impacto visivel nna imagem que fazemos do significado e da tendéncia histérica da civilizagio moderna. Deixou as ciéncias em geral, € a sociologia em particular, virtualmente intactas € iméveis, exceto pelas dreas ainda Singuleridade e normalidade de Helocauste 109 marginais da pesquisa especializada e por alguns alertas abscuros ¢ sinistros sobre as propensées métbidas da modernidade. Ambas ¢x- ‘eogdes mantidas consistentemente & distincia do cinone da pritica sociol6gica, Por essas razBes, niio avangou muito nossa compreensio dos fatores © mecanismos que um dia tomnaram possfvel o Holocausto, E com essa compreensdo nao muito desenvolvida do que se passou meio século airs poderemos estar mais uma vez despreparados para notar © decodificar 05 sinais de alerta — se estiverem agora, como estiveram entio, flagrantemente exibidos por toda parte, A segunda razio é que, o que quer que fenha acontecido 20 “curso da hist6ria”, ndo aconteceu muita coisa aqueles produtos da historia ‘que com toda a probabilidade continham 0 potencial do Holocausto — ou pelo menos nao podemos ter certeza do contrério. Até onde se sabe (ou, melhor, até onde nao se sabe), eles podem ainda estar entre nds, & espera de uma oportunidade. S6 podemos suspeitar que as condigdes que um dia deram origem ao Holocausto nao foram radi calmente transformadas, Se havia algo em nossa ordem social que tomou possivel 0 Holocausto em 1941, n3o podemos ter certeza de ue foi eliminado desde ento, Um ntimero cada vez. maior de estu- iosos renomados € respeitados nos alerta de que é melhor no sermos, complacentes. ‘A ideologia ¢ 0 sistema que deram origem a [Auschwitz] per- ‘manecem intactos. Isso significa que a propria nago-Estado est fora de controle e € capaz de desencadear atos de canibalismo social em escala sequer sonhada. Se ndo for controlada, cla pode consumir toda uma civilizagio pelo fogo. Ela nfo pode carregar uma missio humanitaria; suas transgressdes nido podem ser con- troladas por cédigos legais ou morais, ela no tem conscigncia. (Harry L. Feingole)* Muitas caracteristicas da soviedade “civilizada” contempordnea encorajam o fécil recurso a holocanstos genocidas... © Estado certitorial soberano reivindice, como parte integral de sua soberania, o direito de cometer genocidio ou promover massacres genocidas de povos sob o seu governo e... 8 ONU, para todos os efeitos priicas, defende esse direito. (Leo Kuper)> Dentro de certos limites estabclecidos por questdes de poder politico e mititar, © Estado moderno pode fazer 0 que bem entende Aqueles sob sou controle. N3o hi limite ético-moral que 0 Estado no ne Modernidade # Holaceusto possa transcender para fazer 0 que quiser, porque mio hé poder €tico-moral mais alto que o Estado. Em matéria de ética e moralidade, 1 situagio do indivfduo no Estado moderno € em principio rigorosa- ‘mente equivalente 4 do prisioneiro em Auschwitz: ou age de acordo com os padrées dominantes de conduta impostos pelos que detém a autoridade ou se arrisca a todas as conseqiléncias que eles queiram in A exisigncia agora esté reconhecidamente cada vez mais dé acordo com os principios que governavam a vida € a morte em ‘Auschwitz, (George M. Kren ¢ Leon Rappoport)* Esmagados pelas emogdes que mesmo uma leitura superficial dos rnimeros do Holocausto ndo pode sendo despertar, alguns dos autores citados so propensos a exagerar. Algumas das suas afirmagoes so incriveis e sem diivida de um alarmisino indevido. Podem ser mesmo contraproducentes: se tudo © que conhecemos é como Auschwitz, entio pode-se viver com Auschwitz © em muitos casos viver até razoavelmente bem. Se os principios que regeram a vida e a morte dos prisioneiros de Auschwitz eram semelhantes aos que nos regem agora, entao por que toda essa grita, 1oda essa lamentago? Na verdade, seria de bom alvitre evitar a tentago de usar as imagens desummanas do Holocausto a servigo de uma posigao partidarista sobre conflitos humanos maiores ou menores mas no geral corriqueitos, de rotina. O exterminio em massa foi a forma exitema de antagonismo € optessao, mas nem (odos 0s casos de opressio, &dio € injustiga comunitarios sio “como” 0 Holocausto. A similaridade premeditada ¢ portanto superficial € mau guia para a andlise de causas. Ao contrério do que sugerem Kren e Rapoport, ter que optar pela conformidade ou arcar ‘com as conseqiiéncias da desobediéncia nao significa necessariamente viver em Auschwitz, ¢ 0s ptinefpios pregados e praticados pela matoria dos Estados contempordneos nio bastam para transformar seus cida- dios em vitimas do Holocausto. ‘A verdadeira causa de preocupagio, que ndo pode ser facilmente negada ou descartada como conseqiéncia natural embora enganadora do trauma pés-Holocausto, esta em outra parte, Pode ser colhida em dois fatos relacionados. Primeiro, processos ideativos que por sua propria Wégica interna podem levar projetos de genocidio € 05 recursos téonicos que ermitem a sua efetivacdo, nfo apenas se revelaram plenamente com- pativeis com a civilizagio moderna, como foram condicionados, cria- Singueridade « normalidede do Holocousio my dos ¢ fomecidos por ela, © Holocausto nao s6, misteriosamente, evitou © choque com as normas e instituigées sociais da modernidade, mas foram essas normas © instituigdes que o tornaram factivel. Sem a civilizagao moderna e suas conquistas mais fundamentais, ndo teria havido Holocausto. Segundo, mostraram-se ineficazes todas essas redes intricadas de controle e equilfbrio, barveiras ¢ abstéculos que o processo eivilizador cexigiu ¢ que, como esperamos ¢ confiamos, nos defenderiam da vio~ lencia e coibiram todas as forgas superambiciosas inescrupulosas. Quando chegou a hora do assassinato em massa, as vitimas se viram sozinhas. No apenas se haviam iludido com uma sociedade aparen- temente pacifica e humana, legalista e ordeira — seu senso de segu- ranga seria um fator poderosfssimo da sua ruina. Para colocar as coisas claramemie, hi razbes para a gente se preocupar, porque sabemos agora que vivemos num tipo de sociedade que tornou passtvel o Holocausta ¢ que ndo teve nada que pudesse evitilo, S6 por essas razdes ja seria necessirio estudar as ligles do Holocausto. Tal estudo € muito mais que um tributo A memoria de milhées de seres trucidados, muito mais que um acerto de contas com 19 assassinos ¢ muito mais que a cura das feridas morais ainda abertas, ddas testemunhas passivas ¢ silenciosas. Obviamente, © préprio estudo, mesmo o mais diligente, nao é garantia suficiente contra a volta dos assassinatos em massa e de espectadores indiferentes. No entanto, sem esse estudo sequer sabe- rfamos a que ponto tal volta ¢ provivel ou improvével Genocidio adicional © assassinato em massa no é uma invengio moderna. A histéria esté ccheia de antagonismos entre comunidades seitas, sempre mutuamente rejudiciais © potencialmente destrutivos, muitas vezes degenerando em aberta violncia, que por vezes leva a0 massacre e, em alguns casos, ao extermfnio de populagdes € culturas inteiras. Diante disso. parece negar-se a singularidade do Holocausto. Em especial, sua intima ligagio com a modernidade, a “afinidade eletiva” entte 0 Holocausto ¢ a civilizagio modema. O fato sugere, a0 coniratio, que 0 Sdio Ccomunitério mortifero sempre esteve entre nés e provavelmente nunca deixard de existir; ¢ que nesse ponto a Gnica importancia da moder- niidade foi que, a0 conteério do que prometia e da expectativa gene- ne Moderidede ¢ Holocausto ralizada, nfo apavou suavemente as arestas sabidamente Asperas da coexisténcia humana e portanto nao pos um fim definitive & desuma- nidade do homer para com o homem. A modetnidade nfo cumprin © prometido. Ela falhou. Mas nfo é responsével pelo Holocausto, uma vex que © genocidio acompanha a histéria da humanidade desde 0 inicio. [Nao € esta, porém, a ligko contida no Holocausto, Sem davida o Holocausto foi mais um episédio na extensa série de tentativas ¢ na série bem mais curta de éxitos em matéria de assassinatos em massa. ‘Também tem aspectos que nao compartilha com nenhum dos casos. de genocidio anteriores. S40 esses aspectos que merecem especial atengao. Eles tiverdm um nftido sabor modemo. Sua presenga sugere ‘que a modemidade contribuiu para o Holocausto mais de forma direta do que por sua propria fraqueza e inépcia. Sugere que o papel da civilizagio moderna na perpetragdo e extensdo efetiva do Holocausto foi um papel ativo, ndo passivo. Sugere que o Holocausto foi tanto tum produto como um fracasso da civilizagio modema. Como tudo mais que se faga & maneira moderna — racional, planejada, cieniti- ‘camenie fundamentada, especializada, elicientemente coordenada & ‘executada — o Holocausto superou ¢ esmagou todos os seus supostos equivalentes pré-modemos, expondo-os comparativamente como pri- mitivos, perduldrios ¢ ineficientes. Como tudo 0 mais na ttossa socie- dade modema, 0 Hotocausto foi um empreendimento em todos os aspectos superior, se medido pelos padrdes que esta sociedade pregou ¢ institucionalizou, Paira bem acima de epissdios anteriores de geno- cfdio, da mesma forma que a fabrica moderna esté muito acima da antiga oficina do artesio ou que a fazenda mecanizada, com seus tratores, ceifeiras-debulhadoras e pesticidas, supera em muito a velha raga, com seu arado puxado a cavalo e a capina de enxada. Em 9 de novembro de 1938, teve luger na Alemanha um aconte- cimento que passou para a hist6ria com o nome de Kristaltnach Lojas. lares © templos judeus foram atacados por uma multidao des- governada, embora oficialmente encorajada e sub-repticiamente eon- (rolada, Houve destruigto, incéndios, vandalismo. Cerca de cem pes- soas foram mortas, A Noite dos Cristais foi o nico pogrom em larga ‘scala ocorrido nas cidades da Alemenha durante todo 0 Holocausto. Foi também 0 nico episédio do Hotocausto que seguiu a tradigao secular da violéncia de turba contra os judeus. Nao diferiu muito dos pogroms anicriores; praticamente nada 2 destaca na extensa lista de violencia desse tipo que vai da Antigilidade, passando pela Idade Singueridade © normalidods do Holocousto ns Média, até as quase contemporaneas mas ainda em grande parte pré-modernas Russia, Poldnia ou Roménia. Se 0 que os nazistas fizeram com os judeus tivesse sido apenas Noites de Cristal e coisas, do género, s6 teriam acrescentado mais um pardgrafo, um capftulo no ‘maximo, & erénica em varios volumes de emogdes que degeneram em violencia, grupos de linchamento, soldados que saqueiam e estupram ao invadir cidades. Mas ndo foi isso que aconteceu. E nao foi o que aconteceu por uma simples razio: por mais Kristallndichte que ocorressem, nao se poderia conceber nem realizar dessa forma o assassinato cm massa na escala do Holocausto. ‘Vejam os mimeras. O Estado alemio exterminou seis mithdes de judeus apronimadamente, A média de 100 por dia, isso levaria ‘quase 200 anos. A violéneia de turba assenta-se numa base psicol6gica errada, na emogio violenta. As pessoas podem ser rmanipuladas até a firia, mas a fliria no pode ser mantida par 200 anos. As emogies ¢ sua base psicologica tém uma duragao natural; a luxuria, mesmo a da sede de sangue, ¢ em algum momento saciada. Aim disso, as emogdes S80 notoriamente instaveis, podem mudar. No se pode confiar em uma multido de linchadores. por vezes eles podem ser movidos peta simpatia, — digamos, pelo sofrimento de uma crianca. Para se exterminar ‘uma “raga” é essencial matar as suas criangas, © assassinato integral, abrangente, exaustivo exigia a subst {wigéo da turba por uma buroeracia, @substituigdo da raiva grupal pela obediéncia & autoridade. A burocracia requerida seria efi- ciente, quer exercida por anti-semitas exttemados, quer por mo- derados, o que amptiava consideravelmente 0 espectro de possi- veis funcionsrios; as ages deles no seriam ditigidas pela paixzo, ‘mas por rotinas de organizagio; ela s6 faria distingBes para as quais estivesse programada, nio as que os funcionarios fossom tentados a fazer, digamos, entie ctiangas e adultos, dovtor € ladrio, inocente ¢ culpado; seria senstvel A vontade da autoridade ‘dltima por meio de uma hierarquia de responsabilidades — fosse qual fosse aquela vontade.” A raiva ea firia sao deploravelmente primitivas e ineficazes como instrumentos de exterminio em massa. Elas normalmente se exaurém antes que se conclua a tarefa. Nao se podem erguer grandes projetos sobre essa base, Certamente no projetos que visem para aiém de efeitos momentaneos como uma onda de terror, a ruptura de uma vetha 4 Modernidade © Holocausio ordem, abrindo terreno para uma nova. Gengis Khan e Pedro, 0 Eremita, néo precisavam de tecnologia moderna nem de métodos cientificos modemos de coordenagio e administragéo. Stélin ¢ Hitler precisavam. So aventureiros e diletantes como Gengis Khan e Pedro, © Biemita, que foram desacreditados por nossa sociedade racional, modema, ¢ postos de lado. Foi para os praticantes de genocidio fri, completo e sistemético como Stalin e Hitler que a moderna sociedade racional preparou o camino. © mais notével nos casos modernos de genocidio é, simplesmente, sua escala. Em nenhuma outra oportunidade, fora os regimes de Hitler ¢ Stélin, tanta gente foi assassinada em to pouco tempo. Esta mio foi, porém, a tnica novidade, talvez nem mesmo uma novidade bisica, mas apenas um subproduto de outras caracterfsticas mais fundamen- tais. O assassinio em massa contemporineo caracteriza-se, por um Jado, pela auséneia quase absoluta de espontaneidade e, por outro, pelo predominio de um projeto cuidadosamente caleulado, racional. E marcado pela quase completa eliminacdo da contingéncia e do acaso, assim como pela independéncia face &s emocdes grupais ¢ as motiva- ‘gBes pessoais. Sobressai-se pelo papel marginal ou de mera tapeagio, dissimulado ou decorativo, da mobilizagio ideolégica, Mas, antes € acima de tudo, destaca-se pelo propésito, As motivagdes homicidas em geral, ¢ a5 do extermfaio em massa ‘em especial, (@m sido muitas e variadas. Vio do puro célculo sangue-frio de um Iucro competitive até 0 dio iguelmente puro © desinteressado, quer dizer, a heterofobia, A maioria das rivalidades ccomunitarias € campanhas genocidas contra aborigenes est& segura- mente entre esses dois pélos. Se acompanhada de uma ideologia, a heterofobia nfo vai muito além de uma visio de mundo que se resume na férmula “ou eles ou nds” © no preceito “no hé lugar para os dois”, ou “indio bom é indio morto” . Espera-se que o adversério siga Principios-modelo apenas se isso Ihe for permitido. A maioria das ideologias genocidas assenta-se numa simetria tortuosa de falsas in- tengoes ¢ agbes. O genocidio realmente modemo é diferente. E genocidio com um propésito. Livrar-se do adversério ndo é um fim em si, E um meio para atingir determinado fim, uma necessidade que decorre do objetivo ‘timo, um passo que se deve dar caso se queira chegar um dia A meta final. O fim em si mesmo é a visdo grandiosa de uma sociedade methor ¢ radicalmente diferente. O genocidio. moderno & um elemento de Singularidade © normelidede do Holocovsio us engenharia social, que visa a produzir uma ordem social conforme um projeto de sociedade perfeita. Para os que langam e executam genocfdios modernos, a sociedade € objeto de planejamento e projeto conscientes. Pode ¢ deve-se fazer mais pela sociedade do que mudar um ou varios dos seus detalhes, melhoré-la aqui e ali, curar algumas das suas aflig6es mais problemé- ticas. Podem e deve ser estabelecidas metas mais ambiciosas ¢ radieais; a sociedade pode e deve ser refeita, forgada a conformar-se a um plano geral cientificamente concebido. E possivel criar uma sociedade objetivamente melhor do que a que “apenas existe” — isto €.a que existe sem intervencdo consciente. Invariavelmente, fié uma dimensto estética nesse projeto: o mundo ideal a ser criado confor- ma-se aos padrSes de uma beleza superior. Uma vez construfdo, seré nisamente satisfat6rio, como uma, obra de arte perfeita; serd um mundo que, nas imortais palaveas de Albert, nenhum acréscimo, tedugo ou alteragto poderd melhorar. a visio de um jardineiro, projetaca em tela de tamanho plane- Lério. Os pensamentes, sentimentos, sonhos e impulsos dos projetistas dese mundo perfeito so conhecidos de todo jardineito digno desse nome, embora talvez em escala um tanto menor. Alguns jardineiros odeiam as ervas daninhas que estragam seus projetos — uma feiira no meio da beleza, desordem na serena ordenag2o. Outros no s80 nada emocionais: trata-se apenas dé um problema a ser resolvido, uma tarefa a mais. O que ndo faz diferenga para as ervas: ambos os 5 as exterminam. Se indagados ¢ com tempo para refletir, ‘05 dois concordariam que as ervas devem morrer nio tanto pelo que sii, mas pelo que deve set o belo e organizado jardim, A cultura modcma é um canteito de jardim. Define-se como um projeto de vida ideal e um arranjo perfeito das condigdes humanas. ‘Constr sua prépria identidade desconfiando da natureza, Com efeito, define a si mesma e & natureza, assim como a distingao entre as duas, or sua desconfianga endémica cm relago & espontaneidade © seu anseio por uma ordem melhor, necessariamente artificial. A parte 0 plano geral, a ordem artificial do jardim precisa de instrumentos © ‘matérias-primas. Também precisa de protegdo contra a ameaga impla- cavel de — dbvio — uma desordem. A ordem, concebida original- mente como um projeto, determina o que & um instrumente, 0 que é matéria-prima, o que é indtil, o que é irrelevante, © que é pe gue € uma erva daninha e © que € uma praga. Classifica todes os elementos do universo pela relagdo que tém com ela. Tal relacio € 0 ns Modernidade # Holocovel nico sentido que thes concede ¢ tolera — € a tnica justificativa para 08 atos do jardineiro, diversos como as proprias relagdes. Do ponto de vista do plano geral, todas as agbes sfo instrumentais, enquanto todos 0s objetos de agao so coisas que facilitam ou estorvam o plano. © genoeidio modemo, como a cultura moderna em geral, € um trabalho de jardineiro. E apenas uma das muitas tarefas que precisam cempreender as pessoas que tratam a sociedade como um jardim, Se 0 projeto de um jardim define © que € erva daninha, hé ervas daninhas ‘em todo jardim. E ervas daninhas devem ser exterminadas. Eliminé-las nio € uma tarefa destrutiva, mas criativa. Que nfo difere em esséncia de outras atividades que se somam para a construgio © manuten cde um perfeito jardin. Todas as visbes da sociedade como urn ja definem parte da populagae como ervas daninhas. Que. como quai quer ervas daninhas, devem ser segregadas, contidas, impedidas de proliferar, removidas € mantides fora dos limites da sociedade; se todos esses meios se revelarem insuficientes, elas devem ser mortas. As vitimas de Hitler ¢ de Stalin nfo foram mortas para a conquista e colonizagae do territério que ocupavam. Muitas vezes foram mortas de uma maneira mecanica, enfadonha, sem 0 estimulo de emogies humanas — sequer do ddio. Foram mortas por nko se adequarem, por uma ou outra razo, 0 esquema de uma sociedade perfeita. Sua morte nao foi umn trabalho de destruiglo, mas de criagao. Foram eliminadas Para que uma sociedade humana objetivamente melhor — mais efi- ciente, mais moral, mais bela — pudesse ser csiada, Uma sociedade Comunista. Ou uma sociedade Ariana, racialmente pure. Nos dois casos, um mundo harmonioso, livre de conflitos, décil aos governantes, ordeiro, controlado, Pessoas manchadas pela inerradicével praga do seu passado ou origem nfo podiam se adequar a esse mundo impecével, saudavel e brithante. Como ervas daninhas, sua natureza ndo pod ser alterada. Elas nao podiam ser melhoradas ou reeducadas. Tinham ue ser eliminadas por tazdes de heteditariedade genética ov ideol6gica ~ por razdo de um mecanismo natural, resistente, imune ao proces- samento cultural Os dois casos mais notéries e extremos de genocfdio modemo foram figis a0 espitito da modemidade. Nao se desviaram da rota principal do processo civitizador. Forama as mais consistentes e desi- nibidas expressdes desse espirito, Tentaram alcancar os objetivos mais ambiciosos do processo civilizador, que a maioria dos outros processos apenas beirou, no necessatiamente por falta de boa vontade, Mostra- ram o que os sonhos de racionalizagao, planejamento ¢ controle € 0 Singutaidade e normalidede do Holoccusto 17 ‘que 08 esforgos da moderna civilizagio so capazes de re forem abrandados, refreados ou neutralizados, Esses sonhos @ esforgos tém estado conosco hé muito tempo. Eles fizeram proliferar 0 vasto ¢ poderoso arsenal de tecnologia e técnicas gerenciais. Deram origem a instituigdes que servem 20 dnico propésito de instrumentalizar 0 comportamento humano a tal ponto que qualquer objetivo pode ser perseguido com eficiéncia € vigor, com ou sem dedicagto ideolégica ou aprovagio moral da parte dos que 0 perse- guem, Legitimizam © monopélio dos governantes sobre os fins eo confinamento dos governados a0 papel de meios. Definem a mui das agdes como meios e os meivs, como subordinago — 20 fim Ultimo, aqueles que o estabelecem, & suprema vontade, ao saber supra-individual. Enfatizemos que isso nfo significa que vivemos todos, no dia-a- dia, segundo os principios de Auschwitz. Pelo fato de o Holocausto ser moderno, nao segue que a modemidade € um Holocausto. O Holocausto é um subproduto do impulso modemo em diregio a um ‘mundo totalmente planejado ¢ controlado, uma vez que esse impulso deixe de ser controlado e corra a solta. A maior parte do tempo, a modemidade € impedida de chegat a esse ponto. Suas ambicoes chocam-se com 0 pluralismo do mundo humano; elas nao se realizam por falta de um poder absoluto suficientemente absoluto e de um agente monopolista suficientemente monopolista para conseguir des- prezar, deixar de lado ou esmagar toda a forga auténoma @ portanto Compensatoria e suavizanie. izar se N30. Peculioridade do genocidio moderne Quando 0 sonho modemisia abragado por um poder absoluto capaz, de monopolizar veiculos modernos de ago racional, e quando ¢ss¢ poder alcanea libertar-se do efetivo controle social, 0 que se segue & © genocidio. Um genocfdio modemo — como 6 Holocausto. © cur- to-citeuito (€ quase uma tentacdo dizer: 0 encontro casual) entre uri elite de poder ideologicamente obcecada ¢ as tremendas facilidades de aso racional ¢ sistémica desenvoividas pela sociedade moderna € de ocorréncia relativamente rara, Quando ocorre, no entanto, si0 revelados certos aspectos da modemnidade que, em circunstancias diferentes, so menos visiveis e podem, portanto, ser facilmente des cartados por “teorizagio

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