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es, monlogos, inserts, encontros e entrevistas abertas Marina Vlady; as clssicas vistas de guindastes e autopistas
pela narrao no percurso da personagem exploram essa so tambm Deserto vermelho, mas de um modo brechtiana-
nova paisagem e situao humana. mente seco, sem o discreto pathos angustiado de Antonioni.
Amalgamam-se a lucidez semiolgica, esprito de inves- Atravs da linguagem do cinema, as imagens da cidade-mer-
tigao da vida desses trabalhadores pobres e consumistas, cadoria revestem-se de histria humana. E citaes e comen-
e ainda a busca por uma contemplao existencial de tom trios eruditos entram a, ao rs do cho, colocados na boca e
baziniano mesmo que, no lugar da montagem proibida, es- nas situaes prosaicas desse mundo sem aura.
tejam agora a colagem e a ruptura, fsica e lingustica, com a Mais do que metalinguagem, uma busca inquieta, refle-
continuidade e com o pretenso testemunho indicial da ima- xiva, sobre a justa distncia, o modo de operao, dentro
gem. Como demonstrou Ismail Xavier em sua anlise da cena da linguagem, para evidenciar as coisas mesmas, situando
do lava-rpido (que revisita o Caf da manh do beb, dos Lu- o homem, em harmonia, entre elas: objetivo de escritor e
mire, com um automvel no centro das aes), agora tudo de pintor, a um s tempo potico e poltico. Godard toma
linguagem; mas mesmo assim, lateja ali, no mundo das su- para o cinema moderno o programa de Francis Ponge, o poe-
perfcies lisas e brilhantes do consumo, a presena humana. ta que faz falar as coisas por mltiplas, infinitas, descries
Esse carter duplo de cada fragmento, tensionado por sen- de fragmentos do mundo.
tidos divergentes, parece ser o princpio da dialtica da com- Deslocamentos constantes de sentidos j dados, pela
posio do filme: as entrevistas evocam o cinema-verdade experimentao de novas relaes entre eles. Talvez Adorno
de Crnica de um vero (1961), mas pela franca encenao de pedisse a Godard as mesmas mediaes que cobrava de Ben-
trechos de uma enquete do Nouvel Observateur, os closes fron- jamin, mas Duas ou trs coisas realiza a proposta adorniana
tais de Juliette so ficcionalmente pasolinianos, mas sua per- do ensaio como experimentao conceitual.
manncia em tela nos d um vislumbre documental da atriz leandro saraiva
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