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Bob Black

A Mentira no Estado...e
em outros lugares

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Bob Black

Precisamos de uma fenomenologia da mentira.


Como essência imanente e onipresente da nossa
sociedade, a mentira não merece menos; e já é hora de
ela ter o que merece. Vamos ser honestos, sobre a
desonestidade. Como eles nos enganam? Deixe-me
contar as formas.
Algumas formas de fraude , especialmente
aquelas exercidas cara a cara, são altamente refinadas.
Uma névoa fina desce sobre pessoas usando qualquer
uma de várias expressões idiomáticas compartilhadas,
que supõem estar dizendo algo quando estão apenas
emitindo sinais , barulhos, que provocam reações
similares. Na verdade, não passam de ruído.
A publicidade, o lenga-lenga New Age, a
conversinha mole pra pegar mulher em barzinho e os
jargões do marxismo são exemplos familiares. Muito mais
expressão do que comunicação, na melhor das hipóteses
eles dizem menos do que parecem dizer, e a melhor das
hipóteses é rara, nesses casos. A maioria das "lacunas"
nas fitas de Nixon não esta faltando.
A epítome da enganação consensual é a auto-
contradição transformada em jargão especializado, por
exemplo:
Casamento aberto
Governo revolucionário
Lei e ordem
Direito ao trabalho
Teologia da libertação
Escolas livres
...e assim por diante
No outro extremo (general Jaruzelski1, por

1 Primeiro-ministro da pôlonia de 1981 a 1985, chefe do Conselho de


Estado de 1985 a 1989 e presidente de 1989 a 1990.

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exemplo) da engambelação sofisticada está a


prevaricação pura e simples. Como cigarros, mas sem
mensagens de advertência, essas mentiras costumam vir
em pacotes. Políticos e padres permitem os exemplos
mais claros - exemplos aos quais não podemos nos
igualar. O mundo dos negócios (existe outro?) também
contém ocupações inteiras de profissionais da falsidade,
como vendedores e advogados. Há ramos, como da
energia nuclear e o da "defesa", que pressupõem mais do
que confundir de leve o consumidor comum: eles
sapecam mentiras gigantescas sobre uma população
ludibriada por questão de necessidade profissional. Ainda
sim, políticos são os mentirosos ideais. É para mentir
( além de dar ordens) que nós lhes pagamos, ou melhor,
que eles se pagam com nossos impostos. A diplomacia,
por exemplo, é apenas, o engôdo em traje de gala.
Quando dizemos que alguém esta sendo "diplomático",
queremos dizer que ele está contando mentiras para
aquietar algum conflito. Mas na diplomacia os governos
estão lidando com monopólios da violência iguais a eles,
portanto, mentem com mais cuidado do que em geral
têm com as populações que controlam. Políticos
frequentemente são ambíguos, mas raramente são sutis.
Por que não deixar as sutilezas de lado, quando você tem
a maioria dos homens armados de um país sob seu
comando?
Uma Grande Mentira original e exemplar, por
exemplo, está embutida em quase toda referência
pública ao "terrorismo". A verdadeira acepção da palavra
é o uso de violência contra não-combatentes para fins
políticos. Os esquadrões da morte na América Central ou
a distribuição de "brinquedos" explosivos feitos por
soviéticos a crianças afegãs, para que elas se mutilem,
são exemplos. A idéia é impor a própria vontade, não
pela coerção direta daqueles a serem controlados, mas
infundindo neles o medo, isto é , "terror". Não há mal
nenhum em ter uma palavra para denominar uma
atividade que, sejam quais forem seus prós e contras,

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difere em alguns aspectos da guerra, do crime, da


desordem civil etc.
São precisamente essas distinções que os políticos
e seus seguidores acadêmicos e jornalísticos ocultam
usando a palavra. Para eles, toda violência política,
vandalismo ou até um mero tumulto é " terrorismo, a
menos que os terroristas estejam usando uniforme.
Governos , portanto, não praticam o terrorismo, haja o
que houver, enquanto a violência contra o Estado e
sempre terrorismo, mesmo se consistir em ataques de
uma força militar contra outra. Os massacres conduzidos
pelos salvadorenhos auxiliares dos EUA; os bombardeios
israelenses de campos de refugiados palestinos ou o
sequestro de reféns libaneses; até o holocausto em
Camboja e no Afeganistão, lamentados de maneira tão
hipócrita, ou os assassinatos em prisões sul-africanas,
por serem todos chacinas santificadas pelo Estado, não
constituem atos terroristas. O terrorismo não é tanto uma
questão de destruição e morte quanto de correção
indumentária. Soldados são terroristas que tiveram o
cuidado de se vestir para o sucesso. Isso basta que os
gerentes da opinião pública durmam tranquilamente,
embora não necessariamente tanto quanto o presidente
Reagan, quando, apesar do bombardeio de pacientes
psiquiátricos em Granada e do fuzilamento de operários
cubanos da construção civil, ele relatou que, como de
costume, dormira bem.
É notável como esse esquema é eficaz. Os outrora
perseguidos sandinistas eram terroristas até o momento
mágico em que suplantaram Somoza. O presidente
Robert Mugabe era um "terrorista" negro até se
transubstanciar em estadista Zimbabwiano. Quando
xiitas tomam reféns americanos, eles são terroristas.
Quando israelenses tomam reféns xiitas, trata-se de uma
violação da lei internacional, talvez, motivo para uma
crítica contida mas de modo algum é terrorismo. Apesar
de sua crueza hipócrita, a farsa do terrorismo tem sido
bem aceita. O bonequinho dos comandos em ação ,

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aposentado por alguns anos depois da Guerra Que Não


Ousa Dizer Seu Nome, está de volta. Agora ele combate
terroristas.
Que as autoridades, como os autoritários que as
invejam, mentem sistematicamente não é nenhuma
novidade. Karl Kraus e George Orwell o disseram. Mas
elas refinaram, ou ao menos aumentaram, seus
embustes. Nossa complexa sociedade, baseada no
consentimento por coerção, criou modos de manipulação
tão avançados que a falsidade pode ser minimizada, até
eliminada sem, que a verdade venha à tona. O sistema
simplesmente nos inunda com informações tão triviais
que chega a merecer o nome desgastado de "dados", até
que os poucos assuntos de importância real sejam
expulsos da mente. A escala e a estrutura da sociedade
evitam que as pessoas experimentem imediatamente a
ela ou umas às outras. O conhecimento é fragmentado
em ilhas artificiais e confiado a especialistas endógamos.
No mundo acadêmico, essas exclusividades merecem as
conotações sadomasoquistas da denominação que
recebem, "disciplinas".
A divisão social da mão-de-obra - estilhaçando
uma vida que deveria ser experimentada integralmente
em "papéis" padronizados a força -, estendida a
consciência, se reproduz ao mesmo tempo que oculta sua
passagem.
Regras e papéis nos tornam tão intercambiáveis
quanto os bens cuja produção é a nossa destruição. Não
admira que, como Karl Marx observou uma vez antes de
se tornar um político, a única linguagem compreensível
que temos é a linguagem das nossas posses conversando
entre si. Precisamos de outra. E precisamos de ocasiões
sem pressa e sem pressões para um repouso sem
palavras. A revolução requer uma expressão idiomática
anti idiotia que expresse o até agora indizível. O amor
que não ousa dizer seu nome tem vantagens sobre o
outro, caluniado por rótulos, cujo nome é tomado em vão

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e nunca devolvido aos seus donos legítimos.


A corrupção da linguagem promove a corrupção da
vida. É na verdade o seu pré-requisito.
Um primeiro passo rumo à paz e a liberdade -
impossível agora, sob a sociedade de classes e sua arma,
o Estado - é chamar as coisas por seus verdadeiros
nomes. Assim, a diferença entre os agentes do complexo
militar-industrial-político-jornalistico e a arraia-miúda que
a mídia difama como "terroristas" é apenas a diferença
entre o atacado e o varejo. Guerra é assassinato. Imposto
é furto. Conscrição é escravidão. Laisse-faire é
totalitarismo. E (diz Debord), "num mundo realmente de
ponta-cabeça, o verdadeiro é um momento falso".

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Será a Guerra – contra


a droga – a Saúde do
Estado?

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Neste momento, nos Estados Unidos da América,


2.700.000 pessoas estão presas (o maior índice per
capita do mundo). Todas as semanas são mais 1.600 as
pessoas que entram na prisão para além das que saem.
Mais de 40% dos presos estão lá por crimes não-violentos
relacionados com drogas. Nas políticas da maioria dos
governos do mundo o combate à droga assume crescente
protagonismo. O seguinte artigo, escrito por Bob Black –
anarquista e advogado de profissão –, lança uma visão
diferente sobre este fenômeno. Ainda que baseada no
contexto norte-americano, com ajustes de pormenor e de
escala, a argumentação poderá ser extrapolável a outros
países.
Ninguém alguma vez fez observação mais
importante em sete palavras do que Randolph Bourne: “A
guerra é a saúde do estado” (Resek, 1964 :71). A guerra
tem sido o motor principal da extensão do poder estatal
na Europa ao longo de 1000 anos, e não só na Europa. A
guerra alarga o estado e aumenta a sua riqueza e os
seus poderes. Promove obediência e justifica a repressão
sobre dissidentes, redefinida como deslealdade. Serena
tensões sociais dirigindo-as para fora, para um estado
inimigo que simultaneamente faz, claro, exatamente o
mesmo com semelhantes consequências. Da perspectiva
do estado há só uma coisa errada nas guerras: elas
terminam.
Que as guerras terminam é, em última análise,
mais importante do que o facto de elas terminarem em
vitória ou derrota. Ocasionalmente a derrota tem como
consequência a destruição do estado, como aconteceu
com os impérios Otomano e Austro-húngaro após a
Primeira Guerra Mundial, mas não frequentemente, e
mesmo quando isso sucede, esses estados dão origem a
outros estados. O sistema estatal não só dura, como
prevalece. Normalmente a guerra vale bem o risco — não
para os combatentes ou para os civis sofredores, claro,
mas para o estado.
A paz é, mais uma vez, um outro assunto. A

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consequência imediata poderá ser a recessão ou a


depressão, como após a Revolução Americana ou a
Primeira Guerra Mundial, cujas dificuldades são tão mais
humilhantes quando recaem sobre a população que
“ganhou” a guerra e que ingenuamente supõe ir partilhar
os frutos de uma vitória que pertence ao estado, não ao
povo. O regime pode prolongar artificialmente o clima de
repressão e sacrifício, como fizeram os Estado Unidos
fabricando o Red Scare (Pânico Vermelho) após a Primeira
Grande Guerra, mas cedo o povo suplicaria por aquilo
que Warren Harding lhe prometera, o regresso à
normalidade. Os vencidos, é certo, raramente se saem
tão bem como o Japão ou a Alemanha ocupadas se
saíram após a Segunda Guerra Mundial, mas mesmos os
alemães inicialmente conheceram a fome.
Houve épocas em que alguns estados estavam
quase sempre em guerra, como acontecia na Roma
republicana, cujas oligarquias, tal como Livy (1960)
repetidamente demonstrou, estavam bem conscientes de
como a guerra consistia numa válvula de escape para
dissipar conflitos de classe. As guerras coloniais servem
bem este fim já que são travadas longe de casa e
normalmente empreendidas contra antagonistas que,
apesar de corajosos, são largamente inferiores em
termos militares.
O império britânico nos séculos dezoito e
dezanove é um bom exemplo. Congestionados com a
riqueza do capitalismo comercial (em breve
inimaginavelmente engrandecida pela revolução
industrial), seguros pela sua insularidade, escudados pela
maior armada do mundo, com uma robusta e desumana
classe dirigente, sábia da arte de governar, o estado
britânico poderia suportar uma guerra quando dela
precisasse. Existiam, no mercado, completos
mercenários, tais como os Hessianos. E os inimigos de
ontem eram as tropas de hoje. Os irlandeses,
repetidamente esmagados no século dezassete, eram
uma fonte. Começando em 1746, os ingleses

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aniquilariam a sociedade e a cultura dos escoceses,


recrutando depois regimentos de entre os que
sobreviveram. Viriam a repetir estes “métodos
econômicos” na Índia, em África, em todo o lado. E
depois existiam as fontes ingleses de dispensáveis: os
camponeses expulsos das terras pelo emparcelamento, e
os pobres da cidade. Não deixariam saudades, e havia
sempre mais de onde estes vieram.
Mas os tempos mudaram. Alguns estados
possivelmente podem continuar, por algum tempo,
agindo à moda antiga – talvez a Sérvia, Coreia do Norte,
Iraque – mas os Estados Unidos não, no mínimo por duas
razões: somos demasiado escrupulosos, e somos
demasiado pobres. Demasiado escrupulosos no sentido
em que, enquanto Saddam Hussein se vangloriou antes
da segunda Guerra do Golfo*, a América é uma
sociedade que não consegue tolerar 10.000 mortos. Ele
tinha razão, embora isso não lhe tenha valido de nada já
que foi incapaz de infligir 10000 ou mesmo 1000 mortos.
Granada e Panamá foram um divertimento, mas mesmo
guerras de dois tostões como o Líbano e Somália já não o
foram, e ninguém tem mais estômago para uma guerra
no Haiti ou na Bósnia. Os americanos estão a perder
rapidamente o seu gosto por guerras mediáticas, para já
não falar das verdadeiras guerras.
E demasiado depauperados para qualquer guerra
suficientemente longa para produzir um efeito durável no
índice de popularidade de um qualquer presidente. O
ataque ao Iraque foi o ponto de viragem. Como
habilidosamente a manipulação das massas ocorreu, os
americanos somente foram para a frente com a guerra
na condição de que os “aliados” pagassem. Mesmo
mentes pouco capacitadas estão conscientes que a parte
de leão dos seus impostos federais vai para pagar dívidas
de guerra e gastos militares dos quais eles nunca
colherão quaisquer benefícios. A contrapartida para as
vidas numa fotogênica guerra de alta tecnologia é
dinheiro. Custa mais, imensamente mais, do que alguma

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vez a guerra custou. Mas os Estados Unidos não têm


mais, imensamente mais riqueza do que alguma vez
tiveram. Têm progressivamente menos e menos e menos.
Mesmo com as forças maciças da ABC, NBC, CBS,
CNN e todo o resto dos grandes media por detrás (Black,
1992), e apesar de uma esmagadora vitória que deveu
tanto à sorte como ao engenho, George Bush tornou-se o
primeiro presidente americano a ganhar uma guerra e a
perder uma eleição — para um fumador de erva e
mulherengo que não cumpriu o serviço militar.
Deste modo o regime é apanhado no que os
marxistas costumavam chamar de “contradição”. Precisa
de guerra, já que a guerra é a saúde do estado, mas
(com efémeras excepções ocasionais) não consegue
suportar tanto ganhar como perder guerras. Mas que tipo
de guerra é possível travar, com um custo tolerável, que
evite esta dupla armadilha — uma guerra que não possa
ser ganha ou perdida?
A “Guerra Contra a Droga”. Que não é uma
verdadeira guerra, claro, mas apenas aquilo que os
alemães chamariam um “sitzkrieg”, uma falsa guerra.
Antes venderam-nos a guerra para acabar com todas as
guerras. Agora vendem-nos uma guerra interminável.
Tal é a utilidade, para o estado, da Guerra Contra a
Droga. Não pode ser perdida, já que não existe um
inimigo a derrotar. E por incontáveis razões não pode ser
ganha. O governo não consegue interditar mais do que
uma fracção da cocaína, heroína, marijuana e outras
drogas que, ao ilegalizá-las, o governo fez subir o seu
preço até ao ponto de valer a pena traficá-las. E alguma
droga, tal como a marijuana e o ópio, é facilmente
produzida dentro dos Estados Unidos. Dezenas de
milhões de americanos já se entregaram ao consumo de
drogas ilegais, incluindo o Presidente. Os filhos não veem
qualquer razão para não experimentar aquilo que os pais
já consumiram, independentemente daquilo que os pais
agora preguem. As crianças tendem a não prestar

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atenção aos pais quando sabem que estes estão a


mentir. Para além disso, há sempre o álcool.
E nos subúrbios, tal como nos guetos, ilegalizar as
drogas fez disparar o seu preço até níveis tão altos que
prendendo vendedores não tem qualquer efeito no lado
da oferta. Tirar um vendedor de droga das ruas apenas
abre uma vaga para outro empresário. Na verdade, é
prática corrente dos vendedores fazer com que os seus
competidores sejam presos, com o fim de ganharem uma
parcela adicional de competitividade. Mas não faz mais
diferença quem trafica a droga ou quem dirige o estado.
De facto, até podem ser as mesmas pessoas! A Guerra
Contra a Droga é a saúde do estado.
Porque apenas é uma falsa guerra, a Guerra
Contra a Droga é fiscalmente comportável. O governo
pode gastar tanto mais ou tanto menos quanto desejar,
já que o resultado será sempre o mesmo. Mesmo os
custos para o contribuinte são disfarçados, divididos
como são por governos federais, regionais e locais, e
confundidos com financiamento ao sistema de justiça. A
maior despesa individual, as prisões, é aquela que a
maior parte das pessoas erradamente interpretam como
a melhor coisa que o governo faz por elas. Suportar este
erro é um equívoco acerca sobre qual é o produto do
sistema de justiça criminal. Não é o controlo do crime, se
é que tal pudesse ser medido com alguma exatidão, não
há qualquer prova de que a imposição da lei em geral
reduza o crime (Jacob, 1984). O produto são índices de
criminalidade (Black, 1970), que são uma função, não do
nível de criminalidade, mas do nível de imposição da lei.
Daí que as autoridades possam fabricar uma “onda de
criminalidade” se quiserem mais dinheiro, ou abrandar o
controlo se quiserem obter algum crédito por fazerem
exatamente o oposto. Tirando eles próprios e os seus
superiores hierárquicos, os únicos beneficiários daqueles
100 000 polícias adicionais que o Presidente Clinton quer
colocar nas ruas serão os vendedores de donuts.

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Para além disto, até um certo ponto a Guerra


Contra a Droga paga-se a si mesma. Tal como os
exércitos que costumavam subsistir largamente “através
do terreno”, pilhando as zonas que atravessavam,
também os guerreiros da droga amontoam os seus cofres
com o saque de bens confiscados. E isto só a nível formal
e legal. À margem da lei, claro que a polícia sempre
confiscou muito mais droga do que aquela que chega à
sala de provas. É improvável que os vendedores ou os
drogados protestem (o cenário clássico: um polícia faz
uma busca ilegal na rua. Ele encontra algo. Pergunta,
com cortesia, “Isto é seu?” e a resposta é sempre “Não”).
Alguma droga a polícia vende por sua conta. Alguma
consomem-na eles próprios. E alguma utilizam para
“tramar” (colocar drogas na posse de suspeitos
vendedores ou adicionar mais droga àquela que foi
encontrada para converter um delito menor num crime
grave) (Knapp Commission, 1973).
Ainda de uma outra maneira, a Guerra Contra a
Droga oferece um dos benefícios de uma verdadeira
guerra sem os seus custos e riscos. Toda a verdadeira
guerra é um holocausto de liberdades cívicas (Murphy,
73). Mesmo ao nível formal e legal, a segurança nacional
— um chamado “interesse obrigatório do estado” —
tende a impor-se aos direitos fundamentais, pelo menos
até que o tiroteio pare. Entretanto vigilantes patrióticos
levam a cabo as castrações, os linchamentos, e os
incêndios — o trabalho demasiado sujo para o estado
fazer mesmo numa suposta emergência de guerra, mas
não demasiado sujo para o estado não fazer vista grossa
depois. Os Estados Unidos durante a Primeira Guerra
Mundial e durante o Red Scare é um exemplo; a Itália que
os liberais deixaram que os fascistas tomassem, depois
de os deixarem, à margem da lei, esmagar socialistas,
comunistas e anarquistas, é outro. Mas a paz regressa e o
terreno legal perdido é, na sua grande parte, recuperado
ou mais terreno ainda é retirado. Uma vez que o estado
tenha demolido irreparavelmente a oposição radical,

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pode muito bem repor direitos constitucionais para os


impotentes sobreviventes e gozar o calor da sua própria
glória anunciada, desfilando a sua tolerância quando esta
já não fizer qualquer diferença.
A falsa guerra é muito mais eficaz. Não pode ser
conduzida sem massivas invasões de propriedade e
limitações da liberdade. O mais importante direito
individual implicado, e ameaçado pela Guerra Contra à
Droga é a Quarta Emenda [da Constituição], que proíbe
buscas e apreensões injustificadas. Este corpo legal
efetivamente começou durante a Proibição e hoje é,
como afirma Fred Cohen, “conduzido pelas drogas.” Os
direitos de qualquer pessoa são definidos pelos direitos
que a Justiça de má vontade concede aos delinquentes
de casos de droga.
Outros direitos são, também, reduzidos. Sob a
legislação de confisco, propriedade individual é retirada
sem um processo ou justa compensação. Aplicada a
nativos americanos e outros, a legislação sobre droga
interfere com a liberdade de religião; como a prática
comum de forçar condutores embriagados a participar
em “reabilitações” para os doutrinar com dogmas
religiosos dos Alcoólicos Anônimos. Até a campanha
contra a posse de armas é uma consequência indireta da
Guerra Contra a Droga. A proibição tornou a droga uma
comodidade muito valiosa: no interior das cidades, de
longe uma das mais valiosas comodidades. Entretanto, os
toxicodependentes roubam para suportar o seu vício. O
resultado é uma corrida ao armamento e um clamor pelo
controlo das armas. Uma proibição conduz a outra.
Para o criminoso, o último desafio é o crime
perfeito. Para o estado é a legislação perfeita. Será a
proibição?
Talvez não. A proibição da droga é atualmente muito mais
popular do que a proibição do álcool alguma vez o foi,
mas dentro da memória viva, a descriminalização foi um
séria possibilidade. Poderá tornar-se assim novamente se

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a histeria anti-droga continuar a crescer até chegar a um


ponto impossível de suportar. E provavelmente crescerá,
porque a Guerra Contra a Droga foi institucionalizada.
Várias agências e organizações têm direitos adquiridos
sobre a sua ilimitada expansão, embora isso seja, não só
impossível, como destituiria o estado da grande
vantagem da Guerra Contra a Droga sobre a verdadeira
guerra: a sua previsibilidade e exequibilidade. À medida
que alguns órgãos governamentais crescem e crescem,
sobra menos e menos para os outros. Já que a vitória, tal
como a derrota é impossível, não existirão nunca
“dividendos de paz” para repartir. O estado está,
provavelmente, já a gastar mais fundos da sociedade
civil do que seria consentâneo com os seus interesses a
longo prazo. Se mais e mais for tirado, o parasita matará
o hospedeiro — ou o hospedeiro matará o parasita.
Eventualmente o estado poderá sucumbir ao seu
próprio sucesso. O estado é gigantesco. E é burocrático.
Isto significa que está intrinsecamente subdividido por
funções (ou por aquilo que era inicialmente considerada
uma divisão do operariado por funções: de facto,
jurisdição sobreposta e conflituosa é comum e tende a
crescer com o tempo). Mesmo quando a mão esquerda
sabe o que a mão direita faz, pode não ser capaz de fazer
nada acerca disso. A cooperação entre agências torna-se
mais difícil quando que se torna mais frequente e mais
necessária. “A complexidade da acção em conjunto frusta
a ação ou o seu objectivo” (Pressman & Wildausky,
1984).
É muito difícil administrativamente reduzir o
orçamento de um gabinete, mas é fácil aumentá-lo. Os
gabinetes resistem ferozmente aos orçamentos “zero-
based” — isto é, partindo do zero, tem que haver uma
rejustificação anual de cada linha do orçamento
apresentado — como se tratasse do reinvento da roda. E
é difícil as altas autoridades identificarem áreas para
redução de custos, se quiserem apenas, já que a própria
raison d’être da organização burocrática é a deferência

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para com os peritos institucionais. A maneira fácil é


tomar o anterior orçamento como o presumível próximo;
são apenas desvios do status quo, não o status quo em
si, que necessitam de justificação. O gabinete,
preenchido com supostos peritos, é ele próprio a fonte
usual de justificação para desvios, e os desvios são
sempre na direcção de mais dinheiro e mais poder para o
gabinete. O que vai para cada gabinete vai para todos.
Daí o governo cresce.
Referindo a forma como a competição entre
trabalhadores faz descer os salários para todos eles,
Fredy Perlman (1969) observou: “A prática diária de todos
anula os objetivos de cada um.” Tal como acontece com a
competição entre agências pelo dinheiro dos impostos.
As implicações a longo termo da Guerra Contra a Droga
são, para o estado, ameaçadoras. Quanto mais o estado
estende o seu controlo sobre a sociedade, menos
controlo ele tem sobre si mesmo, quanto mais o estado
absorve a sociedade, mais fraco como entidade
responsável por uma colectividade ele se torna. Ele
desintegrase num pluralismo autoritário remanescente
do feudalismo, ainda que carecendo do seu charme
romântico. Algumas agências engordam à custa da
Guerra Contra a Droga, mas muitas não. As que
engordam são as primeiras a seguirem os seus próprios
caminhos. A procuradora-geral Janet Reno não teve
controlo sobre o Bureau of Alcohol, Tobacco and Firearms
quando este exterminou os Branch Davidians para
ganhar o que equivalia a nada mais do que um guerra de
“gangs”: mas ela tomou a responsabilidade. A Drug
Enforcement Administration é igualmente tão
independente como o FBI de Hoover e a CIA de qualquer
um.
Para o estado, outra consequência adversa
inevitável da Guerra Contra a Droga é a corrupção (Sisk,
1982). Não que a corrupção seja necessariamente uma
coisa má para o estado. Até certo ponto, as extorsões
policiais a vendedores de droga, chulos e outros

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empresários extralegais beneficiam o estado de diversas


formas. Quanto mais os polícias recolherem em
privilégios e confiscos, menos têm que ser pagos em
salário. Os polícias cujos superiores sabem que eles estão
envolvidos em extorsão (como decerto sabem já que eles
próprios a isso se dedicam também) (Chambliss, 1988)
fazem vista grossa a não ser que, por alguma razão,
tenham necessidade de se livrar de um polícia em
particular. A corrupção é, pois, uma ferramenta de
gestão.
Mas alguns polícias tornam-se demasiado gananciosos e
vão longe de mais. A maioria são “comedores de erva”
(subornados) que aceitam aquilo que lhes aparecer, mas
alguns são “comedores de carne” (extorsionários) —
corrupção ativa — que ativamente buscam ou montam
oportunidades de corrupção, como os detectives da
Special Investigative Unit retratados no filme Serpico
(Daley, 1978; Knapp Commission, 1973). Os comedores
de erva dão cobertura aos comedores de carne (o
“código de silêncio”) já que todos têm algo a esconder.
Até recentemente, os administradores de polícia e os
seus aliados acadêmicos julgaram poder manter a
corrupção sob controlo através de várias reformas
institucionais, a maioria das quais foram inicialmente
propostas pela Comissão Knapp (Sherman, 1978). Talvez
as reformas resultassem, excepto numa coisa: na Guerra
Contra a Droga. A corrupção está de regresso, mesmo na
NYPD* reformada por Knapp (Dombrink, 1988). Já que as
penalizações são mais severas e os lucros do tráfico de
droga são mais altos, a proteção que a polícia vende dita
um preço maior (Sisk, 1982). A corrupção motivada pela
droga é o sector em maior crescimento nos abusos de
conduta da polícia (Carter, 1990).
Para o estado, o problema da corrupção
descontrolada é que ela não pode ser confinada ao
espaço onde os benefícios excedem os custos. O estado
necessita da polícia para um bocadinho de imposição
seletiva da lei e, mais importante que isso, para controlo

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social — logo que a situação exija furar uma greve,


evacuar squatters, suprimir tumultos, reprimir
dissidentes e manter o tráfego a circular. Mesmo nestes
tempos sofisticados, em que a manipulação é a
estratégia de controlo mais em voga, frequentemente
não há substituto para a arma e o cassetete.
Mas os polícias que impõem leis contra a droga
ficam indisponíveis para impor outras leis. Tem havido
um expansão tremenda no trabalho de polícias à paisana
nos anos recentes (Marx, 1988), inevitavelmente
acompanhada de mais corrupção (Girodo, 1991). Os
polícias, como trabalhadores, são particularmente difíceis
de gerir pois estão normalmente sós, não controlados. Os
detectives, especialmente, estão numa posição de
poderem ser reservados acerca das suas atividades
(Skolnick, 1975; Daley, 1978), e mais controlo do tráfico
de droga significa mais trabalho à paisana e de detective.
Estes polícias estabelecem a sua própria agenda.
Os escândalos de corrupção desmoralizam a
polícia a ilegitimam o estado. A maioria das pessoas
obedece à lei na maior parte do tempo, não porque
receiem ser punidas se não o fizerem, mas porque
acreditam no sistema. Assim que deixem de acreditar,
deixarão de obedecer — não só às leis que não importam
(como “não consuma drogas”) como também àquelas
que importam (como “pague os seus impostos”). E,
ironicamente, operações anticorrupção comprometem a
eficácia policial em outras áreas (Kornblum, 1976).
O estado adquiriu um peso tão grande que esse
peso começa a quebrar as suas fundações. Não é o tipo
de elefantismo que pode ser aliviado através da
privatização. Não importa quem recolhe o lixo. O que
importa é quem tem as armas. A essência da soberania
— os meios para impor a ordem — está deteriorada. O
cancro é inoperável. Os estado pode bem morrer de uma
overdose.

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Tecnofilia, uma Doença

Infantil

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Se o patriotismo é, como disse Samuel Johnson, o


ultimo refugio de um canalha, o cientificismo é desde já o
primeiro. É a única ideologia que, agora em versão
ciberidiota, projeta a aparência e a sensação de
futuridade em quanto conserva atitudes e valores
essenciais para manter as coisas exatamente como
estão. Continue zapeando!
A afirmação abstrata de "mudança" é
conservadora, não progressista. Ela privilegia toda
mudança , aparente ou real, de estilo ou substancia,
reacionário ou revolucionário. Quanto mais as coisas
mudam - em especial as que mudam - , mas elas
continuam iguais. Mais rápido, mais rápido, Speed Racer!
( mas continue andando em círculos).
Pela mesma razão , privilegiar o progresso também é
algo conservador. O progresso é a noção de que a
mudança tende ao aprimoramento, e de que o
aprimoramento tende a ser irreversível. Contratempos
locais acontece quando a mudança é interrompida ou
desviada ( "o éter", "flogisto" ), mas a tendência secular
é avante ( e secular). Nada das muito errado por muito
tempo , então nunca ha um motivo importante para não
continuar fazendo o que se esta fazendo. Vai dar tudo
certo. Como um jurista já disse em outro (porém
assombrosamente similar) contexto, as rodas da justiça
giram devagar, mas moem direitinho.
Como o seu pseudônimo sugere Walter Alter é um
alto sacerdote consagrado do progresso ( mas será que
ele sabe que , na Alemanha, "alter " significa "mais
velho"?). Ele desdenha o passado para melhor perpetuá-
lo. Seu jeito de escrever só em minúsculas - que
modernista! - era inovador quando e. e. cummings o
lançou há oitenta anos. Talvez o próximo avanço de Alter
seja abandonar a pontuação, apenas algumas décadas
depois que James Joyce o fez. E 3 mil anos depois que os
romanos fizeram ambas as coisas, o ritmo do progresso
pode ser estonteante.
Para Alter , o futuro é um programa que Karl Marx

20
Bob Black

e Júlio Verne mapearam num século anterior. A evolução


é unilinear, impelida pela tecnologia e, por alguma razão
estranha, moralmente imperativa. essas ideias já eram
velhas quando Herbert Spencer e Karl Marx as
formularam. O positivismo de Alter não implica nenhum
melhoramento em relação ao de Conte, que se
desmascarou ao fundar um igreja positivista. e se o
materialismo mecânico é, na verdade, uma regressão do
marxismo para o estalinismo. como ficção científica ruim,
só que menos divertido, o alterismo é uma ideologia do
século XIX declamada no jargão do século XXI. (Um dos
poucos fatos sobre o futuro a um só tempo certo e
reconfortante é que ele não falará como Walter Alter, não
mais do que o presente fala como Hugo Gernsback. )
Alter não escreveu uma só palavra da qual Newt Gingrish
ou Walt Disney, descongelado, discordaria. Os
"engenheiros sociais de gabinete" estão do seu lado; ou
melhor, ele esta do lado deles. Eles não pensam como
ele - algo que mal pode ser chamado de pensamento -
mas querem que pensemos como ele. O único motivo
pelo qual não incluem na sua folha de pagamento é: por
que lhe pagar se ele está disposto a fazer isso de graça?
"A sobrecarga de informações é relativa a
capacidade de cada um " entoa Alter. é certamente
relativa à dele. Ele salta da tecnologia à antropologia à
historia e vice-versa, como os átomos do modelo do
universo " mesa de bilhar" newtoniano, no qual os
cientistas , diferentemente de Alter , não acreditam mais.
A vastidão de sua ignorância assombra , e o mundo
perplexo, pode apenas perguntar, com Groucho Marx :
"Há mais alguma coisa sobre a qual você não saiba
absolutamente nada?" Se o sindicalismo é (como um
tirador de sarro definiu) fascismo sem entusiasmo, o
alterismo é empirismo sem provas. Ele exibe a toga da
razão sem citar nenhum motivo para fazê-lo. Espera que
aceitamos sua rejeição da fé por pura fé. Afirma
ferozmente que fatos são fatos , e não menciona
nenhum. Alter esta nervoso demais para ser articulado,

21
Bob Black

mas pelo menos ofereceu uma lista de inimigos - embora


como o senador McCarthy, prefira lançar denuncias
vagamente categóricas de dar nomes aos bois. No topo
da lista estão os "antropo-românticos" "primitivo-
nostálgicos", que também são, ou estão ajudando e
consolando, os "antiautoritários" da "anarco-esquerda".
Para o leitor leigo, essas palavras compostas misteriosas
são tentativas calculadas de inspirar um vago receio,
sem comunicar nenhuma informação a respeito de quem
esteja denominando exceto que são lacaios dos
engenheiros sociais do gabinete e inimigo da civilização.
Mas porque os engenheiros sociais de gabinete iriam
querer destruir a civilização na qual prosperam à custa
da maioria de nós, o resto?
Se religião significa reverencia por algo não
entendido, Alter é fervorosamente religioso. Ele confunde
ciência com conhecimento codificado (isso era a historia
natural, tão decrépita quanto a frenologia há muito
tempo). A ciência é uma pratica social com métodos
distintos, não uma acumulação de "fatos" oficialmente
verificados. Não existem fatos puros, fora de contexto. Os
fatos são sempre relativos a um contexto. Os fatos
científicos são relativos a uma teoria ou um paradigma
( isto é, a um contexto formalizado). Os elétrons são
partículas ou são ondas? Nem uma coisa nem outra, e
ambas, de acordo com Niels Bohr - depende de para
onde você estiver olhando e por quê. Os postulados e
teoremas da geometria euclidiana são "verdadeiros"?
Eles correspondem muito bem a boa parte do universo
físico, mas Einstein achava que a geometria não-
euclidiana de Riemann descrevia melhor fenômenos
cruciais como a gravitação e a deflexão dos raios
luminosos. Cada geometria é internamente coerente;
cada uma é incoerente com a outra. Nenhum fato ou
fatos concebíveis poderiam resolver essa discrepância.
Por mais que desejassem transcender a incoerência, os
físicos aprenderam a conviver com as incomensuráveis
teorias da relatividade e da física quântica porque ambas

22
Bob Black

(quase) funcionam. A física newtoniana ainda é bastante


eficaz dentro do sistema solar, onde há alguns "fatos"
(como a precessão de Mercúrio) não conformes com a
relatividade einsteiniana, mas esta última é , certamente,
a teoria preferida para aplicação ao resto do universo.
Dizer que uma é verdadeira e outra é falsa é como dizer
que um Toyota é verdadeiro e um modelo T é falso.
Teorias criam fatos - e os destroem. A ciência é
simultaneamente, e necessariamente, progressista e
regressista. Diferentemente de Walter Alter, a ciência não
privilegia uma ou outra direção. Não existe um universo
passivo, preexistente, "organizado, padronizado , previsto
e palpável" esperando por nosso toque de Prometeu. Até
o ponto onde o universo é ordenado - um ponto que, até
onde sabemos, talvez nem fique muito longe - nós é que
o tornamos ordenado. Não apenas no sentido óbvio de
que formamos famílias e construímos cidades ,
ordenando nossos próprios meios de vida, mas
meramente pelo poder padronizador da percepção, pelo
qual resolvemos um amontoado de dados sensoriais
numa "tabela" na qual, "na verdade", há apenas uma
multidão de partículas ínfimas e principalmente espaço
vazio.
Alter esbraveja contra a obnose, seu malformado
neologismo que significaria ignorar o óbvio. Mas ignorar o
óbvio é, "obviamente", o pré-requisito da ciência. Como
diz S.F.C. Milson, " as coisas óbvias não podem estar
levemente erradas: como o movimento do Sol, elas só
podem estar fundamentalmente erradas". Óbvio que o
Sol gira ao redor da Terra. Óbvio que a terra é plana.
Óbvio que a mesa diante de mim é sólida, e não como os
místicos da física atômica alegam , quase que apenas um
espaço vazio. óbvio que partículas não podem também
ser ondas. Óbvio que os caçadores-coletores trabalham
mais do que os assalariados contemporâneos. Óbvio que
a pena de morte diminui a criminalidade. Mas nada é
mais óbvio, se algo ainda o é, do que o fato de que todas
essas afirmações são falsas. OU seja, elas não podem ser

23
Bob Black

qualificadas como "fatos" dentro de nenhuma estrutura


que até seus próprios defensores reconheçam como sua.
Der fato, todos os defensores (já que tais opiniões ainda
têm alguns) defendem de forma estridente, como Alter,
uma estrutura positivista-empírica na qual sua falsidade
é patente.
Portanto, para entrar em detalhes, avancemos
para o passado. Alter espuma contra o que chama
"apego romântico a uma existência 'mais simples' ,' mais
pura' no passado, ou em sociedades primitivas ou
'orientais' contemporâneas". Espera aí. Ninguém, que eu
saiba, está misturando sociedades primitivas passadas
ou presentes com sociedades "orientais"
(presumivelmente as civilizações da China e da Índia e
suas ramificações no Japão, Coreia, Birmânia, Sudeste da
Ásia, Indonésia, e por ai vai). Tais sociedades"orientais"
se parecem muito com a sociedade que os "anarco-
esquerdistas" querem derrubar - a nossa - , do que com
qualquer sociedade primitiva. Ambas têm Estado,
mercado, estratificação social e religião controlada por
sacerdotes, coisas ausentes em todas as sociedades
grupais extrativistas e em muitas sociedades tribais. Se
sociedades primitivas e orientais têm características
comuns de qualquer importância para sua argumentação
( se ele tivesse se dado ao trabalho de argumentar), Alter
não as identifica. Para Alter, é uma "realidade implacável
que a direção inata de qualquer cultura senciente, no
sentido de ampliar o seu bem-estar, será sempre
aumentar a aplicação de extensões às ferramentas
disponíveis". Culturas não são "sencientes"; isso é reificá-
la e mistificar sua natureza. Tampouco elas têm
necessariamente qualquer "direção inata". Como ex-
(ou cripto)marxista - ele é um ex-(?) seguidor de Lydon
LaRouche em sua fase stalinista, da Congregação
Nacional de Comitês trabalhistas - Alter não tem
desculpas para desconhecer isso. Embora Marx estivesse
interessado principalmente em um modo de produção - o
capitalismo - o qual, argumentava, tinha uma direção
inata, ele também identificou um "modo der produção

24
Bob Black

asiático" que não a tinha; Karl Wittfogel elaborou essa


percepção em seu Oriental Despotismo. Nosso visionário
profetiza que "se esse aumento cessar, a cultura
morrerá". Isso nós sabemos que é falso.
Se Alter esta correto, o regresso de uma sociedade
a uma tecnologia amais simples é um ato
inevitavelmente suicida. Antropólogos discordam. Para
Alter, é uma questão de fé que a agricultura seja
tecnologicamente superior ao extrativismo. Mas os
ancestrais dos índios das planícies eram agricultores
sedentários ou semi-sedentários que abandonaram
aquele estilo de vida porque a chegada do cavalo tornou
possível (não necessária) a opção de uma vida mais
simples de caça que eles devem ter considerado
qualitativamente superior. Os Kpelle, da Libéria, se
recusam a mudar do cultivo seco para o cultivo inundado
de arroz, seu principal alimento, como os "especialistas"
em desenvolvimento econômico recomendam. Os Kpelle
têm plena consciência de que o cultivo inundado
(irrigado) de arroz é muito mais produtivo do que o seco.
Mas o cultivo seco é conduzido comunalmente, com
cantoria, festa e bebidas, de uma forma impossível no
cultivo inundado - e é um trabalho muito mais fácil, numa
"estação de trabalho" muito mais sadia e confortável. Se
a cultura deles "morrer" em decorrência dessa escolha
eminentemente ponderada, será um assassinato, não um
suicídio. Se progresso, para Alter, significa exterminar
pessoas porque nós podemos e porque elas são
diferentes, ele pode pegar seu progresso e enfiar naquele
lugar. Defendendo da ciência ele a difama.
Até a história da civilização ocidental (a única que nosso
futurista etnocêntrico leva a sério) contradiz a teoria de
Alter da vontade de potência tecnológica. Por bem mais
de mil Anos, a civilização clássica floresceu sem
nenhuma "aplicação de extensões às ferramentas
existentes" significativa. Até mesmo quando a ciência
helênica ou romana avançava, isso não se estendia,
normalmente , à sua tecnologia. Ela criou o motor a

25
Bob Black

vapor e em seguida esqueceu o brinquedinho, como a


China (outro exemplo contrário ao alterismo) inventou a
pólvora e a usava para espantar os demônios -
provavelmente seu melhor uso. Claro que as sociedades
antigas chegaram ai fim , mas todas chegam: como disse
Keynes, a longo prazo estaremos todos mortos.
E eu tenho minhas suspeitas quanto à expressão
"extensão a ferramenta". Não tem algo a ver com o
produto anunciado nas contracapas de revistas pornôs?
Alter deve estar mentindo, não apenas enganando,
quando reitera o mito hobbesiano de que "a vida
primitiva é curta e brutal". Ele não poderia nem mesmo
saber da existência daqueles que rotula como antropo-
românticos sem saber também que eles demonstraram o
contrário disso, convencendo seus colegas cientistas. A
palavra " primitivo" é, para muitos fins - inclusive este-,
vaga e generalizante demais para ser útil. Pode
denominar desde as poucas sociedades sobreviventes
baseadas na caça e no extrativismo, até os camponeses
de minorias étnicas em vias de modernização nos
Estados do Terceiro Mundo (como os índios do México e
do Peru). A expectativa de vida é um exemplo. Alter quer
que seus leitores suponham que a longevidade é uma
função da complexidade tecnológica e social. Não é, e
tampouco é o oposto disso. Como Richard Borshay Lee
verificou, os Kung San ("homens da floresta"), de
Botsuana, têm uma estrutura populacional mais próxima
daquela dos Estados Unidos que daquela de um país
típico do Terceiro Mundo, com sua maioria camponesa. A
vida dos extrativistas não é tão curta assim. Só
recentemente a expectativa de vida média das nações
metropolitanas privilegiadas ultrapassou os índices pré-
históricos.
Quanto a vida dos primitivos ser "brutal", trata-se
obviamente de um juízo moral, não científico, se
comparada à dos habitantes de Detroit, por exemplo. Se
a brutalidade se refere a qualidade de vida , os
extrativistas, como Marshall Sahlins demonstrou em "As

26
Bob Black

primeiras sociedades da afluência", trabalham muito


menos e têm muito mais vida social e festas do que nós
modernos. Nenhum deles recebe ordens de uma chefe
babaca, nem levanta antes do meio-dia, nem trabalha
cinco dias por semana, nem... - bem, já deu pra entender.

Alter observa, com perversidade, que "bem poucas


sociedades aborígines vêm sendo criadas e adotadas por
aqueles que a elogiam" Não diga. E dai? Tais sociedades
nunca foram criadas, elas evoluíram. As mesmas forças
industriais e capitalistas que estão extinguindo as
sociedades aborígines existentes contrapõem obstáculos
poderosos à formação de outras. O que nós deploramos é
justamente termos perdido a capacidade de recriá-las.
Alter só está animando a torcida dos porcos. Como eu
disse, eles até lhe pagariam (mas não muito bem,
provavelmente), se ele já não estivesse fazendo isso de
graça.
Admita-se que antropólogos e "anarco-
esquerdistas" ocasionais romantizam, sob certos
aspectos, a vida primitiva de vez em quando, mas nada
que se compare à escala em que Alter falsifica dados
etnográficos. Richard Borshay Lee e Marshall Sahlins
representam hoje a sabedoria convencional em relação a
sociedades baseadas na caça e no extrativismo. Eles não
romantizam nada. Não precisam. Um romântico ou uma
romântica alegaria que a sociedade primitiva que ele ou
ela estuda é virtualmente livre de conflitos e violência,
como Elizabeth Marshall Thomas fez em seu livro sobre
os San/Homens da Floresta, The Harmless People. As
observações posteriores e mais minuciosas de Lee
estabeleceram índices de homicídio per capita entre os
San não muito abaixo daqueles dos Estados Unidos
contemporâneos. Sahlins deixou claro que o preço de
uma vida folgada e com abundância de alimentos, para
os caçadores-coletores, era a impossibilidade de
acumular qualquer propriedade que não deixe de ser um
grande sacrifício, é um juízo de valor, não uma
descoberta cientifica - e Alter é tão cego para essa

27
Bob Black

distinção quanto qualquer monge medieval.


Alter praticamente só faz referência específica a
Margaret Mead, "uma sectária semi-analfabeta
especializada em 'alterar amostras' quando elas não s
encaixam na sua doutrina preexistente" (jamais
especificada). Mead tinha pouca prática antes de sua
primeira incursão no trabalho de campo em Samoa, mas
chamar a autora de vários livros bem escritos e de
sucesso de "semi-analfabeta" fica aquém até do semi-
analfabetismo, é burrice e pronto. Eu quase diria que
Alter é um sectário semi-analfabeto que altera os fatos,
mas na verdade ele é um sectário semi-analfabeto que
ignora os fatos.
As principais conclusões de Mead foram que os
samoanos eram sexualmente liberais e, em relação aos
americanos do Entre-guerras, mais cooperativos do que
competitivos. Mead - pupila bissexual da antropóloga
lésbica Ruth Benedict - pode ter projetado seu próprio
liberalismo sexual nos nativos. Mas etnografias modernas
(como a de Mangaia, de Robert Suggs), bem como fontes
históricas da época do capitão Cook em diante,
confirmam que a maioria das sociedades insulares do
Pacífico estava realmente mais próxima do idílio
hedonista relaxado que Mead pensou ter visto em Samoa
do que de algum show de horrores hobbesiano. Alter
vocifera contra o romantismo, a subjetividade, o
misticismo - os suspeitos de sempre - , mas não quer
encarar os fatos reproduzidos regularmente sobre a
sociedade primitiva. Ele está de contradizendo.
Se as descobertas de Mead relativas à sexualidade
e ao amadurecimento foram revisadas por trabalhos de
campo posteriores, sua caracterização da competição e
da cooperação nas sociedades que ela estudou não o
foram. Por qualquer padrão, nossa sociedade moderna
capitalista e de Estado é o que estatísticos chama de
desvio - uma mutação, uma aberração, um monstro - a
uma distância extraordinária da maioria das observações,
do tipo que joga a variância longe da variação. Não

28
Bob Black

existem "padrões duplos fazendo críticas extremas contra


todos os fatores burgueses [sic], capitalistas,
espetaculares, de mercado" - o distanciamento é apenas
tão extremo quanto o distanciamento da comunidade,
como foi experimentado pela maioria das sociedades de
hominídeos nos últimos milhões de anos. É como se Alter
quisesse dizer que uma régua tem preconceitos por que
ela estabelece que objetos de um metro ou mais são
mais longos do que aqueles que têm menos de um
metro. Se isso é ciência, prefiro o misticismo ou a morte.
Alter insinua , sem demonstrar, que Mead
falsificou provas. Mesmo que ela tenha falsificado,
sabendo que muitos cientistas ilustres, entre eles Gallileu
e Gregor Mendel, falsificaram ou embelezaram relatos de
suas experiências para substanciar conclusões que agora
são universalmente aceitas. Mendel, para piorar a
situação, era um monge católico, um "místico", de acordo
com a demonologia de Alter, e no entanto fundou a
ciência da genética. Alter, longe de fundar uma ciência,
nem mesmo dá a indicação de começar a entender
qualquer uma delas.
Os méritos e deméritos da etnografia de Margaret
Mead são menos do que periféricos à polêmica de Alter.
Não foi Mead quem descobriu e relatou que caçadores-
coletores trabalham muito menos do que nós. Há algo
muito fora de controle num maníaco por controle que
insiste em taxar de fascistas ideias que não aceita ou
entende. Nada que eu diga para denunciar esse tipo de
oportunismo masturbatório será forte demais. "Fascista"
não é, como Alter supõe, um nome de uso geral,
sinônimo de "mim não gosta". Uma vez escrevi um
ensaio, "Feminism as Fascism", que ocasionou grande
indignação, embora continue bastante válido. Mas eu não
me incomodei, porque tinha sido bastante cuidadoso e
específico ao identificar os paralelos precisos entre
fascismo e o chamado feminismo(radical) - cerca de meia
dúzia. São meia dúzia de analogias a mais do que
aquelas que Alter identifica entre o Fascismo e o anarco-

29
Bob Black

esquerdismo ou a primato-nostalgia. Os únicos anarco-


esquerdistas com quaisquer afinidade demonstráveis ao
fascismo ( ao qual, na Itália, forneceram muitos recrutas)
são os sindicalistas, uma seita moribunda, os últimos
anarquistas a compartilhar o cientificismo retrógrado de
Alter. É Alter, e não seus inimigos, quem pede "um corpo
orientador e coeso de conhecimentos e de experiências
como estrutura de referência" - apenas uma estrutura de
referência repare bem - para "diagramas e manuais", ou
seja, para ritmos de marcha. Acontece que existem
fascistas de verdade neste nosso mundo imperfeito.
Vulgarizando o termo e se dizendo contra os fascistas,
Alter (que está longe de ser o único a fazer isso) na
verdade os equipa com um sistema de camuflagem.
Os artistas , uiva Walter, "não acreditam que a
tecnologia seja uma coisa intrinsecamente boa". Eu não
ligo muito para aquilo em que os artistas acredita,
especialmente se Alter for um exemplo, mas essa
suposta opinião deles lhes dá crédito. Eu imaginaria que
é óbvio, ignorar o óbvio, acreditar na tecnologia
"intrinsecamente ", não vê-la como o meio para um fim,
ou fins, para os quais ela é vendida, e sim como uma
espécie de fim em si mesmo sem utilidade alguma para
ninguém. "Arte pela arte" é um credo discutível, mas pelo
menos fornece arte, que agrada alguns por sua beleza. A
tecnologia como fim em si mesma não faz sentido algum,
como o monstro do dr. Frankenstein. Se "tecnologia pela
tecnologia" não é a antítese da razão, então não sei o
que é razão, e prefiro não saber.
Os caçadores-coletores anarco-comunistas (porque
é isso, para ser exato, o que eles são) do passado e do
presente são importantes. Não (necessariamente) por
suas bem sucedidas adaptações específicas ao habitat, já
que por definição elas não são generalizáveis, mas por
demonstrarem que a vida já foi, e pode ser, radicalmente
diferente. A questão não é recriar aquele estilo de vida
(embora possa haver algumas ocasiões de fazê-lo), mas
reconhecer que, se uma vida totalmente contraditória à

30
Bob Black

nossa é viável a ponto de ter um histórico de milhões de


anos, então talvez outros meios de vida contraditórios ao
nosso sejam viáveis.
Para um esquizofrênico do século XXI, rico e de
bom gosto, Alter tem um vocabulário assombrosamente
limitado. Ele acredita que palavras infantis como "bem" e
"mal" significa algo mais do que "mim gosta" e "mim não
gosta", mas se ele vê algum outro sentido nelas não
compartilhou essa abundância com o resto de nós. Ele
acusa seus inimigos escolhidos de "infantilismo e
vingança contras os pais", ecoando o autoritarismo de
Lênin (Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo) e
Freud, respectivamente. Futurista típico - e os futuristas
originais aderiram ao fascismo -, está cerca de um século
atrás de Heisenberg, Nietzsche e do resto de nós. O
moralismo é retrógrado. Você quer algo? Não me diga
que você esta "certo" e eu estou "errado. Pouco me
importa do que Deus ou Papai Noel gostam, muito menos
se fui bom ou mau menino. Diga-me apenas o que eu
tenho que você quer, e por que eu deveria dá-lo a você.
Não posso garantir que concordaremos, mas a
articulação seguida de negociação é a única maneira
possível de resolver uma disputa sem coerção.
Como Proudhon disse, "eu não quero nenhuma
lei , mas estou disposto a negociar".
Alter se apega à "realidade física" objetiva - matéria em
movimento - com a mesma fé de uma criança que se
agarra à mão de sua mãe. E a fé, para Alter e para
crianças de todas as idades, é sempre seguida pelo
medo. Alter (para citar Clifford Geertz) "teme que a
realidade suma, a menos que acreditemos bastante
nela". Ele nunca experimentará uma crise edipiana
porque jamais crescerá a este ponto. Um mundo
mecânico é o único que ele consegue entender. Ele acha
que o sistema solar, na verdade, é um planetário. Não
tem tolerância alguma para a ambiguidade, a
relatividade, indeterminação - tolerância alguma, de fato,
para a tolerância.

31
Bob Black

Alter parece não ter aprendido nada da ciência


além de um pouco de jargão bastante mal empregado.
Ao denunciar o "mau método científico" e a "intuição"
quase na mesma exalação de mau hálito , ele explicita o
quanto ignora o pluralismo do método científico. Até um
positivista tão resoluto quanto Karl Popper distinguia o
"contexto de justificação", que ele supunha implicar a
aderência a uma ortodoxia demonstrativa um tanto
rígida, do "contexto da descoberta", no qual , como Paul
Feyerabend alegremente observou, "vale tudo". Alter
revela o quão completamente por fora está ao fazer
referência casual aos "verdadeiros métodos de
descoberta". Não existem verdadeiros métodos de
descoberta, apenas métodos úteis. Em princípio, ler a
Bíblia ou tomar LSD são práticas tão legítimas, no
contexto da descoberta, quanto fuçar publicações
técnicas regularmente. Não importa se Arquimedes
realmente obteve inspiração pulando na banheira, ou se
Newton a conseguiu vendo uma maçã cair. O que importa
é que nesses - quaisquer - gatilhos da criatividade são
possíveis e, se forem eficazes, são desejáveis.
A intuição é importante não como uma faculdade
oculta confiável, mas como uma fonte de hipóteses em
todos os campos. E também de vislumbres ainda não
prontos para serem formalizados, se é que algum dia o
serão, mas que são ainda assim significativos e
heurísticos no contextos das disciplinas hermenêuticas,
as quais com todo o direito se recusam a aceitar que algo
não passível de quantificação seja místico. Muitas
disciplinas já aceitas no panteão das ciências ( como a
biologia, a geologia e a economia) teriam sido abortadas
por esse dogma anacrônico. " Considerar a fonte"é o que
Alter chama de "método científico ruim ". Ouvimos falar
muito (demais)do conflito entre evolucionismo e
criacionismo. Basta um conhecimento superficial da
história intelectual ocidental para reconhecer que a
teoria da evolução é uma secularização da escatologia
que distingue o cristianismo de outras tradições
religiosas. Mas o fato de que o cristianismo foi o contexto

32
Bob Black

da sua descoberta é um motivo bem pouco científico


para rejeitar a evolução. Ou, por que não dizer, para
aceitá-la.
Alter não é o que finge ser, um paladino da razão
atacando as hordas irracionalistas. A única coisa que os
nomes na sua lista de inimigos têm em comum é o fato
de estarem nela. Ayn Rand, cuja defesa histérica da
"razão" era o alterismo sem o jargão de ciência popular,
tinha um rol de irracionalidades que incluía
homossexuais, liberais, cristãos, anti-semitas, marxistas,
expressionistas abstratos, hippies, tecnófobos, racistas e
fumantes de maconha (mas não de tabaco). A lista de
Alter (certamente incompleta) inclui sadomasoquistas,
New Agers, antropólogos, esquizofrênicos,
antiautoritários, fundamentalistas cristãos, engenheiros
sociais de gabinete, fascistas, protocubistas... Intimem
suspeitos inesperados. Alter só faz esse jogo de acusação
porque não tem extensões às ferramentas em número
suficiente.
"Quantas vezes por dia você realmente avança em
questões importantes, de forma intuitiva?" Palavras
sábias - e também um bom argumento para mandar esse
cara plantar batatas. Aqui esta outra charada, sr. Leitor
ou sra. Leitora: quantas vezes por dia você realmente
avança em questões importantes, NÃO IMPORTA DE QUE
FORMA? Quantas vezes por dia você "avança em
questões importantes" - intuitiva, irônica, intelectual,
impulsiva, impassivelmente ou seja lá de que forma for?
Ou você sente, um dia após o outro, que um dia vem
após o outro, e é só? Que as únicas "questões
importantes" que afetam você se é que existem, são
decididas,se é que são, pelos outros? Já notou sua falta
de capacidade de mapear o seu próprio destino? Já notou
que seu acesso à realidade "virtual" aumenta na mesma
proporção em que você se distancia (um gesto prudente)
da realidade factual? Que fora trabalhar e pagar você não
tem absolutamente nenhuma utilidade para esta
sociedade, e não pode esperar que ela conserve você, se

33
Bob Black

um dia não conseguir fazer uma dessas duas coisas? E ,


finalmente, por acaso a gritaria tecnofílica e
tecnocapitalista de Walter Alter pode ajudar você, de
alguma forma, a interpretar o futuro, e muito menos -
mais importante também - a mudá-lo?

34
Bob Black

Ritos da Esquerda

35
Bob Black

Na astronomia, "Revolução" se refere a uma volta


ao mesmo lugar. Para a esquerda, parece significar mais
ou menos a mesma coisa. O esquerdismo é literalmente
reacionário. Assim como os generais estão uma guerra
atrasados, os esquerdistas estão sempre em busca de
uma revolução. Eles veem como bem-vindas porque
sabem que já nasceu fracassada. São vanguardistas
porque sempre estão atrás de seu tempo. Como todos os
líderes, os esquerdistas são menos intragáveis quando
seguem seus seguidores, mas, em certas crises, eles
tomam a frente para fazer o sistema funcionar. Se a
metáfora esquerda/direita tem algum significado, ele só
pode ser que a esquerda fica à esquerda da mesma coisa
da qual a direita fica à direita. Mas e se "revolução"
significar sair da linha?
Se não houvesse direita, a esquerda teria que
inventá-la - e muitas vezes o fez. (Exemplos: A histeria
calculada com os nazistas e a KKK, que concede a esses
covardes retardados a notoriedade de que precisam; ou
qualquer denunciazinha comum da Maioria Moral¹ que
torna inúteis ataques grosseiros às verdadeiras fontes de
tirania moralista - A família, a religião em geral e a ética
do trabalho adotada tanto pelos esquerdistas como pelo
cristãos.) A direita, da mesma forma, precisa da
esquerda: sua definição operacional é sempre
"anticomunismo" ou seus vários sinônimos baratos.
Assim, a esquerda e a direita pressupõem e recriam uma
à outra. Um efeito negativo dos tempos difíceis é que
eles tornam a oposição fácil demais, como (por exemplo)
a atual crise econômica, que é encaixada em categorias
marxistas arcaicas, populistas ou sindicalistas.
A esquerda, portanto, se posiciona para cumprir
seu papel histórico de reformista desses males
incidentais (embora agonizantes), os quais, devidamente
abordados, escondem as injustiças essenciais do sistema:
a hierarquia, o moralismo, a burocracia, a mão-de-obra
assalariada, a monogamia, o governo, o dinheiro. (O
marxismo poderá ser um dia algo mais do que a maneira

36
Bob Black

sofisticada de o capital pensar sobre si mesmo?)


Considere o epicentro reconhecido da crise atual: o
trabalho. O desemprego é ruim. Mas a isso não se segue,
fora do dogma direito-esquerdista, que o emprego seja
bom. Não é. O "direito ao trabalho", talvez um slogan
adequado em 1848, está obsoleto em 1982. As pessoas
não precisam de trabalho. Nós precisamos é da
satisfação das necessidades de subsistência, por um
lado, e, por outro, de oportunidade de atividade criativa,
de convivência, educativa, diversificada e apaixonante.
Vinte anos atrás, os irmãos Goodman estimaram que 5%
do trabalho existente na época atenderia às
necessidades mínimas de sobrevivência, um indicie que
deve ser mais baixo hoje; obviamente, ramos inteiros de
atividade não servem para nada mais do que atender às
finalidades predatórias do comércio e da coerção. Essa é
uma infra-estrutura ampla a ser modificada para criar um
mundo de liberdade, comunidade e prazer no qual a
"produção" de usos-valores seja o "consumo" de
atividades gratificantes livres. Transformar o trabalho em
brincadeira é um projeto para um proletariado que rejeita
essa condição, não para esquerdistas que não têm mais
o que conduzir.
O pragmatismo, como rápido olhar no seu
fundamento torna óbvio, é uma armadilha ilusória. A
utopia não passa de senso comum. A escolha entre o
"pleno emprego" e o desemprego - escolha à qual a
esquerda e a direita colaboram entre si para nos confinar
- é a escolha entre Gulag e a sarjeta. Não admira que,
depois desses anos todos, uma população sufocada e
sofredora esteja cansada da mentira democrática. Há
cada vez menos pessoas que querem trabalhar - até
entre aquelas que têm motivos para temer o desemprego
- e cada vez mais pessoas que querem fazer maravilhas.
Por favor, vamos fazer barulho para obter concessões,
redução de impostos, amostras grátis, pão e circo - por
que não morder a mão que nos alimenta, se seu sabor é
excelente? - mas sem ilusões.

37
Bob Black

A pérola (sur)racional da verdade dentro da


mística ostra marxista é esta: a "classe trabalhadora" é o
lendário "agente revolucionário", mas somente se,
parando de trabalhar, abolir as classes. "Organizadores"
perenes, os esquerdistas não entendem que os
trabalhadores já foram definitivamente "organizados" por
- e só podem ser organizados para - seus chefes.
"Ativismo" é idiotice quando enriquece nossos inimigos e
lhes dá poder. O esquerdismo, esse parasita de símbolos
doloridos, teme a deflagração do incêndio do Wilhelm
Reichstag2, que vai consumir seus partidos e sindicatos
junto com as corporações, exércitos e igrejas atualmente
controladas por seu ostensivo oponente. Hoje em dia,
você precisa ser estranho para ser efetivo. O
esquerdismo cinzento, com suas listas de antagonismo
obrigatórios (contra ismos, aquilismos, e aquiloutrismos:
contra tudo, menos o esquerdismo) não tem nenhum
humor, nenhuma imaginação; portanto, não pode
preparar revoluções, só golpes, que mudam as mentiras,
mas não a vida. Mas o ímpeto de criar é também um
ímpeto destrutivo. Mais um esforço, esquerdistas, se
quiserem ser revolucionários! Se vocês não se revoltarem
contra o trabalho, estarão trabalhando contra a revolta.

2 Brincadeira com o incêndio que destruiu o prédio do parlamento


alemão (Reichstag) em 1933 e Wilhelm Reich, psicanalista
marxista freudiano.

38
Bob Black

Meu Problema com o

Anarquismo

39
Bob Black

O anarquismo sempre foi problemático, para mim.


Ele me ajudou a atingir uma perspectiva antiestatista e
anticapitalista incondicional em meados da década de
70, e no entanto minha primeira declaração pública sob
aquela perspectiva explicava por que eu não me
identificava com o anarquismo. Pela definição do
dicionário sou um anarquista, mas o dicionário é só o
inicio do saber. Ele não pode levar coerência para onde
contradições abundam ou reduzir diferenças a uma
unidade, chamando-as pelo mesmo nome.
Quando uma idéia é lançada na história, parte
cada vez maior de seu significado vem de sua
experiência. Apelos saudosistas para retornar aos
princípios originais provam isso, porque também fazem
parte da historia. E, da mesma forma que nenhuma seita
protestante conseguiu realmente recriar a Igreja
primitiva, nenhum fundamentalismo anarquista
subsequente jamais restabeleceu, ou pôde restabelecer,
o anarquismo puro no modelo bakunista, kropotikista ou
outros. qualquer coisa que tenha entrado de maneira
relevante na pratica dos anarquistas tem lugar no
fenômeno processual anarquista, sendo ou não
logicamente deduzível dessa história , ou até mesmo
contradizendo-a. Sabotagem, vegetarianismo,
assassinato, pacifismo, amor livre, cooperativas e greves
são todos aspectos do anarquismo que os detratores
anarquistas tentam menosprezar como atividades
antianarquicas.
Chamar a si mesmo de anarquistas significa se
predispor à identificação com uma gama imprevisível de
associações, um conjunto que raramente significara a
mesma coisa para duas pessoas, inclusive para dois
anarquistas. (A mais previsível delas é a menos exata:
um cara que explode bombas. Mas anarquistas já
lançaram bombas, e alguns ainda lançam).
O problema dos anarquistas é que eles acham que
concordaram sobre aquilo a que todos eles se opõem - o
Estado - quando na verdade só estão de acordo sobre o

40
Bob Black

nome que lhe dão. Seria possível provar que os maiores


anarquistas não eram, em absoluto, anarquistas. Godwin
queria que o estado murchasse, mas gradualmente, e
não antes que o progresso do esclarecimento preparasse
as pessoas pra se virarem sem ele. Isso na verdade,
parece legitimar o estatismo existente e culminar na
idéia banal de que, se as coisas fossem diferentes, não
seriam as mesmas. Proudhon, que serviu na legislatura
nacional francesa, acabou chegando a uma teoria do
federalismo que nada mais era a devolução da maior
parte do poder de estado aos governos locais. As
comunas livres de Kropotkin podem não ser nações-
estados, mas certamente parecem cidades-estado.
Naturalmente, nenhum historiador deixa de achar ridícula
a afirmação de Kropotkin de que as cidades medievais
eram anarquistas.
Se alguns dos maiores anarquistas, vistos de
perto, parecem um tanto aquém de alguma consistência
a respeito do próprio princípio definidor do anarquismo -
a abolição do Estado - é muito surpreendente que alguns
dos luminares menos importantes sejam, por sua vez,
pouco brilhantes. Para quem o ver de fora, O Grande
Sindicato Único - que também defende o dever do
trabalho - é um enorme Estado, e totalitário ainda por
cima. Algumas "anarcofeministas" são queimadoras de
livros. Dean Murray Bookchin abraçou a politica de
terceiro partido3 e o estatismo municipal,
assustadoramente ao movimento/milícia protofascistas
Posse Commitatus4, que quer abolir todo governo acima
do nível de condado. E o "governo invisível" dos
militantes anarquistas de Bakunin é, na melhor das
hipóteses , uma escolha infeliz de palavras,
especialmente saindo da boca de um maçom.
3 "third party" , no original, é a forma como são conhecidos nos
EUA quaisquer partido políticos que não sejam republicanos ou
democratas.
4 Movimento de extrema direita que se opõe ao governo dos EUA
e defende um localismo radical. Não há uma organização
nacional, e as unidades locais são autônomas.

41
Bob Black

Os anarquistas não se entendem sobre trabalho,


industrialismo, sindicalismo, urbanismo, ciência,
liberdade sexual, religião, e um sem numero de coisas
mais importantes, especialmente quando tomadas em
conjunto. Há mais pontos discordante do que qualquer
coisa que os una. Cada um dos "encontros" anuais do
anarquismo norte americano que aconteceram entre de
1986 a 1989 - a primeira vez que a maioria desses
anarquistas viu um ao outro frente a frente - , resultou
numa hemorragia dos desiludidos. Ninguém quer saber
de organizar o próximo, embora alguns encontros
regionais tenham dado bons resultados.
Mas apesar dos demagogos, doutrinários e débeis
mentais, parte da imprensa anarquista, conseguiu
ventilar um pouco o movimento, para alegria não só dos
cabeças-de-vento, e o oxigênio é antiséptico. Os
anarquistas, ou melhor, os anarquistas marginais, muitas
vezes sabem o que carregar e o que deixar para trás .
Uma familia de heteroxias que denominei anarquismo
"Tipo 3" ou "watsoniano" abriu muito espaço entre os
tradicionalistas nos últimos anos. Os Tipo 3, a categoria
dos inclassificáveis, enriquecem seu anarquismo (ou seja
la o que for) com empréstimos do neoprimitivismo ( ou
então do neofuturismo!), do surrealismo, do
situacionismo, das religiões piadistas (discordiana,
ciência mooreana, Sub-Genius), da cultura punk, da
cultura da maconha e da cerveja e da cultura beat.
Alguns anos atrás , os proletaristas, em minoria,
lançaram uma campanha de ódio aos Tipo 3, entre outros
- pendurando neles ( ou devo dizer lumpendurando?) a
pecha imbecil de "neo-individualistas". nós somos
parasitas sociais, místicos, masturbadores e de maneira
geral, selvagens sem moral. Sim, mas eles são
universitários com capacetes de construção de grife.
Os anarquistas... ruim com eles, pior sem eles.
Como informei uma vez a Demolition Derby, os
anarquistas podem ser péssimos camaradas, mas são
ótimos clientes. Em 1985 fiquei tão enojado de todos eles

42
Bob Black

que rompi meus laços de vez. Com o passar dos anos,


isso perdeu o sentido, porque ficou difícil de dizer
exatamente o que era " anarquista" o suficiente para
merecer ser boicotado. Agora eu faço uma analise caso a
caso.
Este texto é uma galeria de vilões. A alguns dos
anarquistas que eu respeito, como Ed Lawrence e Hakim
Bey , mostrei minha estima em outros artigos. enquanto
isso , eu retomo a luta contra a terminologia. Sou
anarquista ou não sou? Como Feral Faun e outros, eu me
viro contrapondo " anarquia " a "anarquismo". Mesmo se
essa distinção " pegar", como chamar os respectivos
partidos? Eu sugiro o seguinte: que os "anarquia-istas" se
autodenominem anarcos5, uma palavra cuja primeira
ocorrência conhecida - em Paraíso Perdido - de Milton! -
antecede anarquista em nove anos. é melhor porque,
como a distinção corresponde monarca e monarquista,
ela designa não aquilo em que nós acreditamos, mas o
que somos , até onde nosso poder permite: poderosos
em nós mesmos.
Por vezes demais os anarquistas me passaram
sermão pedindo que eu evitasse as "rivalidades" e
"conflitos internos" para combater melhor "o verdadeiro
inimigo", expressão com que se referem a alguma
abstração convenientemente remota como o capitalismo
ou o Estado. Que arrogante, para pessoas que me
acusam de ser arrogante, me dizer que elas enxergam
meus verdadeiros inimigos melhor do que eu. Já refutei o
argumento quando me foi apresentado na sua forma
mais sedutora - a lisonjeira sugestão de que meus
inimigos não são dignos de mim. Posso dispensar a
versão padrão , mais tosca dele, como uma trama cínica
e egoísta para escapar das minhas criticas,
redirecionando-as. Embora possa ter sido proposto de
boa fé, é bobagem.
Zorro e Tonto estão cercados pelos índios. Zorro

5 "anarchs" no original.

43
Bob Black

diz : " Parece que desta nós não escaparemos, velho


amigo". E Tonto diz: " Nós quem, cara pálida? "
O verdadeiro inimigo é a totalidade dos limites
físicos e mentais com os quais o capital, a sociedade de
classes, o estatismo ou a sociedade do espetáculo
desapropriam o dia-a-dia, do nosso tempo de vida. O
inimigo verdadeiro não é um objeto separado da vida. É a
organização da vida por poderes distanciados dela e
voltados contra ela. O aparato , não o seu quadro de
funcionários, é o inimigo verdadeiro. Mas pelos
apparatchiks, e mediante eles, e todos os outros que
participam do sistema, que a dominação e a falsidade se
tornam manifestas. A totalidade é a organização de todos
contra cada um e de cada um contra todos. Ela inclui
todos os policiais, todos os assistentes sociais, todos os
funcionários de escritórios, todas as freiras, todos os
colunistas de segunda pagina, todos os chefões do trafico
de drogas , de Medellin a UpJohn6, todos os sindicalistas e
situacionistas.
Isso não é retórica, para mim , é algo que inspira
as minhas escolhas. Implica que posso esperar encontrar
ações e, opiniões e personalidades autoritárias entre os
anarquistas como em qualquer outro lugar. "Camaradas"
não são meus camaradas - nem eu sou, nos meus piores
momentos, meu próprio camarada - quando eles, ou eu,
nos comportamos como " o inimigo verdadeiro". Não
existe inimigo verdadeiro fora das açoes humanas.
E que lugar melhor para os autoritários se
aninharem do que entre os anarquistas, tão facilmente
absorvidos por rótulos, tão facilmente deslumbrados por
valores chamativos de produção, e tão facilmente
confundíveis perante os fatos? Embora ela seja só um
tipo ideal, a personalidade autoritária esta quase que
completamente realizada em anarquistas como Jon
bekken, Michael Kolhoff, Chaz Bufe, Fred Woodworth e

6 Gigante farmacêutica criada em 1886, cujos ativos foram


adquiridos recentemente pela Pfizer.

44
Bob Black

Chris Gunderson, e em antiautoritários como Caitilin


Manning, Chris Carlsson, Adam cornford e Bill Brown.
( Antiautoriatario, que historia essa palavra poderia
contar. Como disse Bill Knot, "Se antisséptico bucal
falasse...")
Se os anarquistas são capazes de atitudes
autoritárias e de incoerência ideológica, eu não devo
chamá-los cegamente de camaradas, mas do que
chamaria de camarada um guarda rodoviário ou um
vendedor de carros usados. O rotulo não é uma garantia.
Um motivo importante para minha dissociação do
anarquismo em 1985 foi impedir qualquer reivindicação
da minha lealdade ou isenção de critica , baseada no
farto de que "nós" estamos do mesmo lado. Para um
verdadeiro camarada as criticas seriam bem-vindas.
Falar das minhas rivalidades, em geral, é
bobagem. Embora não exista separação definitiva entre o
pessoal e o político, especialmente, quando se é uma
pessoa tão política quanto eu, rixas predominantemente
pessoais não tem lugar neste livro. Um argumento não se
torna rivalidade só porque eu o levo além do costumeiro
estagio do monólogo ou porque outro cara começa a me
xingar. Ideólogos que não têm capacidade ou maturidade
para defender com profundidade suas opiniões deveriam
guardá-las para si próprios, especialmente quando
publicam revistas.
Fui acusado de abuso de força pelos atentado
contra os editores anarquistas Fred Woodworth e "Spider
Rainbow". É difícil dizer. Spider Rainbow de fato secou e
morreu, mas a cada minuto nasce outro dele. Woodworth
continua agonizando, porque nada que não tenha
realmente vivido pode morrer: eu escavei a múmia e
suas momices. A medida adequada do valor de minhas
palavras não é a envergadura de meus assuntos. Eles
não precisam ser importantes para serem úteis, para
variar.

45
Bob Black

Sobre o Anarquismo e
outros Impedimentos
para a Anarquia

46
Bob Black

Atualmente não há a necessidade de produzir


novas definições do que é o anarquismo - seria difícil
superar aquelas concebidas há muito tempo por vários
eminentes estrangeiros já falecidos. Nem precisamos nos
demorar nos bem conhecidos anarco-comunismo e
anarco-individualismo, nem nos demais, os livros cobrem
tudo isso. Mas o problema é que não estamos hoje mais
perto da anarquia do que estavam em seu tempo
Godwin, Proudhon, Kropotkin e Goldman. Há muitas
razões, mas aquelas que merecem maior reflexão são as
que os anarquistas mesmo geram, já que estes
obstáculos - se há algum – podem ser removidos. É
possível, mas não provável.
O que considero, segundo meu julgamento, depois
de anos de comprometimento, e em contextos de
espantosa atividade no meio anarquista, é que os
anarquistas são a principal razão - suspeito, uma razão
suficiente - pela qual a anarquia permanece como um
epíteto sem uma oportunidade de ser realizada. Muitos
anarquistas são, francamente, incapazes de viver de uma
maneira autônoma e cooperativa. Uma boa parte deles
não são muito brilhantes. Tendem a ler seus próprios
clássicos e a literatura produzida pelo próprio grupo,
excluindo um conhecimento mais amplo do mundo em
que vivem. Essencialmente tímidos, se associam com
outros iguais a eles com o conhecimento tácito de que
nada medirá as opiniões dos demais nem atuará contra
praticamente nenhum estandarte de inteligência crítica;
que nada de seu, ou seus, ganhos individuais estará irá
muito além do nível prevalecente; e, sobretudo, que nada
desafia as regras da ideologia anarquista.
O anarquismo não é em grande medida um
desafio à ordem existente, anteriormente é uma forma
sobre especializada de acomodar-se nela. É um modo de
vida, ou um anexo de uma, com sua mistura particular de
recompensas e sacrifícios. A pobreza é obrigatória, e pela
mesma razão se exclui a pergunta sobre se este
anarquista pode ser alguém na vida ou um fracassado,

47
Bob Black

apesar da ideologia. A história do anarquismo é uma


história incomparável de derrota e martírio, os
anarquistas ainda veneram seus antepassados feitos de
vítimas, com uma devoção mórbida que levanta a
suspeita de que os anarquistas, como todos os demais,
pensam que o único anarquista bom é um morto. A
revolução – a revolução vencida – é gloriosa, mas
pertence aos livros e panfletos. Neste século – a Espanha
em 1936 e a França em 1968 são casos sumariamente
claros – o arrebatamento revolucionário surpreendeu ao
oficial, os anarquistas organizados chegaram tarde e
inicialmente não apoiaram as propostas, ou ainda pior. A
razão disso não se encontra longe; não é que esses
ideólogos foram hipócritas (alguns o eram), mas eles
trabalhavam em uma rotina diária de militância
anarquista, alguns deles esperavam inconscientemente
suportar indefinidamente, já que a revolução não era
imaginável realmente no aqui e agora, por isso eles
reagiram com medo e em atitude defensiva quando os
eventos se distanciaram de sua retórica.
Em outras palavras, se lhes permite escolher entre
anarquismo e anarquia a maioria dos anarquistas irão
optar pela ideologia do anarquismo e sua subcultura ao
ter que dar um perigoso salto ao desconhecido, dentro de
um mundo de liberdade estatal. Mas desde que os
anarquistas são as únicas críticas confessas do estado
como tal, estes populares temerosos da liberdade
deveriam assumir, inevitavelmente e de maneira
proeminente, ou ao menos publicitária, seus lugares em
qualquer insurgência que fosse genuinamente
antiestatal. Eles são seguidores, encontraram os líderes
de uma revolução que ameaçará seus status
estabelecidos não menos do que podem fazer os políticos
e os proprietários. Os anarquistas podem sabotar a
revolução, conscientemente ou de outra maneira, que
sem eles poderiam ter abolido o estado, repetindo sem
pausa aos antigos debates entre Marx e Bakunin.
De fato, os anarquistas que assumiram esse nome

48
Bob Black

não tem feito nada para mudar o estado, não com


escritos cheios de verborreia ilegível, e sim com o
exemplo contagioso de outra maneira de se relacionar
com as demais pessoas. Quando os anarquistas
conduzem as questões do anarquismo são a melhor
refutação das pretensões anarquistas. Na realidade, as
duas “federações” de trabalhadores mais organizadas da
atualidade na América do Norte têm entrado em colapso
por tédio e amargura, e uma coisa boa também, porque a
estrutura social informal do anarquismo, que o atravessa,
é ainda hierárquica. Os anarquistas se submetem
placidamente ao que Bakunin chamou de “governo
invisível”, que no caso consiste nos editores (de fato se
não no nome) de um maço das maiores e mais
duradouras publicações anarquistas.
Estas publicações, apesar das diferenças
ideológicas aparentemente profundas, de antemão seus
leitores têm posições similares de “papai sabe o que é
bom” assim como um acordo de cavaleiros para não
permitir ataques entre eles que exporiam as
inconsistências e por outra parte minaria o interesse da
classe comum na hegemonia da gente comum
anarquista. Por incrível que pareça, você pode criticar
facilmente ao Fifth Estate e o Kick It Over em suas
próprias páginas nas quais criticam, digamos, a
Processed Wolrd7. Cada organização tem mais em comum
com qualquer outra do que têm com qualquer
desorganizado. A crítica anarquista do estado, se só os
anarquistas as entendem, é sem dúvida um caso especial
de crítica contra a organização. E inclusive a certo nível
as organizações anarquistas se dão conta disso.
Os anti-anarquistas podem concluir que se não há
hierarquia e coerção, a deixem sair em público,
mostrando claramente como é. Ao contrário dessas
autoridades (os direitistas “libertários”, os minarquistas,

7 Nome de diferentes revistas anarquistas dos Estados Unidos, as


primeiras de tendência primitivista, no entanto a segunda tem um
caráter mais anarco-sindicalista.

49
Bob Black

por exemplo) eu persisto obstinadamente em minha


oposição ao estado. Mas não porque, como os
anarquistas reflexivamente declaram, o estado não seja
“necessário”; as pessoas comuns desacreditam essa
verdade anarquista e a consideram absurda, como
devem fazê-lo. Obviamente, em uma sociedade
industrializada como a nossa, o Estado é necessário. O
ponto é que o Estado criou as condições nas quais é de
fato necessário, desapossando os indivíduos de seu
poder, de se associarem voluntariamente no dia a dia. De
maneira mais fundamental, as bases do Estado (trabalho,
moralismo, tecnologia industrial, organizações
hierárquicas) não são necessárias senão como antíteses
para a satisfação de nosso desejo e necessidades reais.
Desafortunadamente, a maioria das tendências do
anarquismo apoia essas premissas, mas opondo-se a sua
conclusão lógica: o Estado.
Se não houvesse anarquistas o Estado teria que
inventá-los. Sabemos que em muitas ocasiões ocorreu
exatamente isso. Necessitamos de anarquistas sem as
travas do anarquismo. Então, e só então, podemos
começar a obter um fomento sério da anarquia.

50
Bob Black

Teses sobre o Grouxo-

Marxismo

51
Bob Black

1
Groucho-marxismo, a teoria da revolução cômica,
é muito mais que um projeto para a luta de classes:
como uma luz vermelha numa janela, ele ilumina o
destino inevitável da humanidade, a sociedade
desclassificada8. G-Marxismo é a teoria da folia
permanente. (Aí, garoto! Até que enfim, eis um ótimo
dogma).
2
O exemplo dos próprios Irmãos Marx mostra a
unidade da teoria e prática marxista (por exemplo,
quando Groucho insulta alguém enquanto Harpo depena
sua carteira ). Além disso, o marxismo é dialético (Chico
não é o clássico comediante dialético?). Comediantes que
fracassam em sintetizar teoria e prática (para não
mencionar aqueles que fracassam totalmente em pecar)
são não-marxistas. Comediantes posteriores, fracassando
em entender que a separação é “o discreto charme da
burguesia”, decaíram para meras gafes, por um lado, e
mera tagarelice, por outro.
3
Como o G-Marxismo é prático, seus feitos não
podem nunca ser reduzidos ao mero humor,
entretenimento ou “arte”. (Os estetas, afinal de contas,
estão menos interessados na interpretação da arte do
que na arte que interpreta.) Depois que um genuíno
marxista assiste a um filme dos Irmãos Marx, ele diz para
si mesmo: “Se você achou isso engraçado, preste
atenção à sua vida!”.
4
G-marxistas contemporâneos devem
decididamente denunciar o “Marxismo” vulgar, de
imitação, dos Três Patetas, Monty Python, e Pernalonga.
Em vez do marxismo vulgar, devemos retornar à

8 No original, déclassé.

52
Bob Black

autêntica vulgaridade marxista. Retoficação9. serve


igualmente para aqueles camaradas desiludidos que
pensam que “a linha correta” é o que o tira faz quando
manda eles pararem no acostamento.
5
Marxistas com consciência de classe (isto é,
marxistas conscientes de que não possuem nenhuma
classe) devem rejeitar a “comédia” anêmica, da moda,
narcisista, de revisionistas cômicos como Woody Allen e
Jules Feiffer. A revolução cômica já ultrapassou a mera
neurose – ela é risonha mas não risível, discriminante
mas não discriminatória, militante mas não militar, e
aventurosa mas não aventureira. Os marxistas percebem
que hoje você deve olhar no espelho de uma casa
assombrada de parque de diversões para se ver da forma
que você realmente é.
6
Embora não totalmente desprovido de vislumbres
de insight marxista, o (sur)realismo socialista deve ser
distinguido do G-Marxismo. É verdade que Salvador Dali
deu uma vez a Harpo uma harpa feita com arame
farpado; no entanto, não há nenhuma evidência de que
Harpo alguma vez a tenha tocado.
7
Acima de tudo, é essencial renunciar e execrar
todo sectarismo cômico como o dos trotskos eqüinos.
Como é bem sabido, Groucho repetidamente propunha o
sexo mas se opunha às seitas. Para Groucho, havia uma
diferença entre ser um trotsko e estar louco para
“trotar”10. Além disso, o slogan trotsko “Salários para o
Trabalho Eqüino” cheira a reforma, não a folia. Os
esforços trotskos para reivindicar Um dia nas Corridas e
9 “Rectumfication”, neologismo bricalhão que Black inventou a partir de
“retificação” e “reto” (rectum, canal do ânus).
10 Trocadilho aqui intraduzível entre “Trots” (trotskistas) e “hot to trot”
(excitado para trepar), sem esquecer a brincadeira com os eqüinos pois
“to trot” significa trotar.

53
Bob Black

Os Gênios da Pelota como de sua tendência devem ser


indignadamente rejeitados; na verdade, A Mocidade é
Assim Mesmo está mais na velocidade deles11.
8
O assunto mais urgente que os G-Marxistas
confrontam hoje é a questão do partido12, que - ao invés
do que pensam “marxistas” ingênuos, reducionistas – é
mais que apenas “Por que não fui convidado?” Isso nunca
foi impedimento para Groucho! Os marxistas precisam de
seu próprio partido disciplinado de vanguarda, pois eles
são raramente bem-vindos aos de qualquer outro.
9
Guiadas pelos dogmas fundamentais do
desbehaviorismo e do materialismo histérico, as massas
inevitavelmente abraçarão, não apenas o G-Marxismo,
mas também mutuamente uns aos outros.
10
O Groucho Marxismo, então, é o tour de farce da
comédia. Como seguramente se diz que Harpo falou: “Em
outras palavras, a comédia será revoltosa ou não será!”
Tanto por fazer, tantos para fazê-lo! Sobre seus Marx,
está dada a largada!13

11 Um dia nas Corridas (A Day in the Races) e Os Gênios da Pelota (Horse


Feathers) são filmes dos Irmãos Marx, enquanto A Mocidade é Assim
Mesmo (National Velvet) é um velho drama onde Liz Taylor atuou ainda
garota.
12 Mais um trocadilho neste texto pleno deles: “party” é tanto partido
quanto festa em inglês. Para entender a piada melhor, leia o parágrafo
com os dois significados, substituindo onde houver “partido” por
“festa”.
13 Outro trocadilho praticamente intraduzível, desta vez com a exclamação
que dá início a competições de corrida : “On your marks, get set –go!”
aqui trocada por “On your Marx, get set – go!”.

54
Bob Black

Teses sobre o
Anarquismo depois do
Pós-modernismo

55
Bob Black

1
Anarquismo, n.1. A doutrina que diz que a
sociedade estatal é possível e desejável. Obsoleto. 2.
Regra feita pelos anarquistas.
2
Anarquismo, compreendido corretamente, não tem
o que fazer com padrões e valores em um sentido moral.
Moralidade implica na ideia de que o Estado foi feito para
a sociedade: uma limitação alienante na liberdade, e uma
inversão de fins e meios. Para anarquistas, os padrões e
os valores são melhores compreendidos - isto é, são os
mais úteis - como aproximações, atalhos, conveniências.
Podem sumariar alguma sabedoria prática ganhada pela
experiência social. Então novamente, podem ser os
servidores das ordens da autoridade, ou formulação útil
que, em outras circunstâncias, já não servem a finalidade
do anarquista, ou alguma finalidade boa.
3
Falar de padrões e de valores do anarquista, então,
não é necessariamente sem sentido - mas envolve riscos,
riscos frequentemente deixados de lado. Em uma
sociedade saturada pela cristandade e suas tradições
seculares, o risco é que o tradicional uso absolutista
destas palavras moralistas impregnará a maneira de
como os anarquistas as usam. Você tem padrões e
valores ou eles têm você? É geralmente melhor (mas,
naturalmente, não necessariamente ou absolutamente
melhor) para os anarquistas que evitem o vocabulário
traiçoeiro do moralismo e apenas digam diretamente o
que querem, porque o querem, e porque querem que
todos queiram. Ou seja, pôr as cartas sobre a mesa.
4
Como padrões e valores, os "ismos" anarquistas,
velhos e novos, são considerados melhor como recursos,
não requisitos. Eles existem para nós, não nós para eles.

56
Bob Black

Não importa se eu, por exemplo, possa ter encontrado


mais coisas no situacionismo do que no sindicalismo,
visto que um outro anarquista encontrou mais coisas no
feminismo ou no marxismo ou no Islã. Onde nós já
visitamos e mesmo de onde viemos é menos importante
do que onde nós estamos e onde, se em qualquer lugar,
nós estamos indo - ou se nós estivermos indo ao mesmo
lugar.
5
O “tipo 1” se refere ao anarco-esquerdismo. O
“tipo 2” se refere ao anarco-capitalismo. O “tipo 3” se
refere ao meta-típica. O anarquista “tipo 3” rejeita
categoricamente a categorização. Sua “existência
precede sua essência” (Sartre). Para ele, nada é
necessariamente necessário, e tudo é possivelmente
possível. Pensa que o imediatismo é demasiado longo.
“Ela voa nas asas estranhas” (Shocking Blue). A esposa
de Winston Churchill queixou-se uma vez sobre sua
bebedeira. Churchill respondeu que tinha dado mais foras
no álcool do que o álcool tinha dado nele. O anarquista
“tipo 3” dá mais foras no anarquismo do que o
anarquismo nele. E tenta abandonar mais a vida do que a
vida abandonar ele. Uma amável, pensativa e auto-
afirmativa orientação predatória tem mais aplicações
práticas que a ingenuidade e a imaginação do “tipo 3”
lhe sugerem.
6
Primeiramente, a rejeição dos princípios da
aplicação universal tem aplicações universais. Na prática,
todo indivíduo tem suas limitações, e a força das
circunstâncias varia. Não há nenhuma fórmula para o
sucesso, nem mesmo o reconhecimento de que não há
nenhuma fórmula para o sucesso. Mas a razão e a
experiência identificam determinadas áreas de previsível
futilidade. É fácil e aconselhável, por exemplo, os
anarquistas se absterem da política eleitoral. É preferível,
mas frequentemente não é possível, se abster do

57
Bob Black

trabalho, embora seja geralmente possível se engajar em


alguma resistência anti-trabalho sem correr riscos. Crime,
mercado negro, e sonegação de impostos são
alternativas muitas vezes mais reais, ou então se junte à
participação no sistema do estado-sancionado. Todos têm
que avaliar suas próprias circunstâncias com a cabeça
aberta. Faça o melhor que puder e tente não ser pego. Os
anarquistas já têm mártires demais.

7
O anarquismo está em transição, e muitos
anarquistas estão experimentando a ansiedade. É muito
fácil advogar a mudança do mundo. A conversa é fiada.
Não é fácil você mudar a pequena parcela que tem
contato. As diferenças entre as tendências anarquistas
tradicionais são irrelevantes porque as tendências
anarquistas tradicionais são elas mesmas irrelevantes.
(Para as finalidades atuais vamos negligenciar o “tipo 2”,
anarquistas do livre mercado que parecem não ter
nenhuma presença visível, exceto nos Estados Unidos, e
mesmo lá têm pouco diálogo, e menos influência que o
resto de nós.) A rede mundial, irreversível, e o longo
declínio da esquerda precipitou a crise atual entre os
anarquistas.
8
Os anarquistas estão tendo uma crise da
identidade. São ainda, ou somente, a asa esquerda da
asa esquerda? Ou são algo mais, ou mesmo alguma
coisa? Os anarquistas sempre fizeram muito mais para o
repouso da esquerda do que o repouso da esquerda fez
para eles. Todo a dívida do anarquista à esquerda foi há
muito paga completamente. Agora, finalmente, os
anarquistas estão livres para serem eles mesmos. Mas a
liberdade é uma briga, prospecto incerto, visto que as
velhas manias, os clichês e os rituais esquerdistas, são
tão confortáveis quanto um par de sapatos velhos

58
Bob Black

(sapatos de madeira inclusive). O melhor é que, desde


que a esquerda já não representa qualquer tipo da
ameaça, os anarco-esquerdistas não estão em perigo
quanto a repressão do estado quando recordam e
reativam seus antepassados, glórias míticas. Isso é
aproximadamente tão revolucionário quanto um fumante
acabado, e o estado tolera ambos pela mesma razão.
9
Quão anárquico é o mundo, então? Por um lado,
muito anárquico; por outro, de modo algum. É muito
anárquico no sentido que, como Kropotkin argumentou, a
sociedade humana, a própria vida humana, sempre
depende muito mais da ação cooperativa voluntária do
que de qualquer coisa às ordens do estado. Sob um
severo regime estadista - a antiga União Soviética ou a
cidade de Nova Iorque nos dias atuais - reger a si próprio
depende de violações difusas de suas leis para
permanecer no poder e manter a vida. Por outro lado, o
mundo não é em todo anarquista, porque não existe
população humana, qualquer que seja o lugar, que não é
sujeita a algum grau de controle pelo estado.
A guerra é demasiado importante para ser perdida
pelos generais, e a anarquia é demasiado importante
para ser perdida pelos anarquistas. Cada tática é válida,
por qualquer um que tenha inclinação a fazê-la, embora
erros provados - tais como votar, proibir livros
(especialmente os meus), violência gratuita, e aliar-se
com a esquerda autoritária - são melhor evitados. Se os
anarquistas não aprenderam como revolucionar o mundo,
esperançosamente aprenderam algumas maneiras de
como não fazê-lo. Isto não é bastante, mas é alguma
coisa.
10
Falar de prioridades é uma melhoria no discurso
dos padrões e dos valores, como a palavra incendiada
com os excedentes moralistas. Mas, outra vez, você tem

59
Bob Black

prioridades, ou as prioridades têm você?


11
O auto sacrifício é contra revolucionário. Qualquer
um capaz de se sacrificar por uma causa é capaz de
sacrificar qualquer outra pessoa por esta mesma causa.
Consequentemente, a solidariedade onde exista auto
sacrifício é impossível. Você não pode confiar em um
altruísta. Você nunca sabe quando ele pode cometer
algum ato desastroso de benevolência.
12
“A luta contra a opressão” - que frase fina! Uma lona de
circo grande o bastante para cobrir cada causa
esquerdista, palhaçada de qualquer forma, e o menos
relevante é a revolução da vida cotidiana, o melhor.
Múmia livre! Independência para Timor Leste!
Medicamentos para Cuba! Não às minas terrestres! Não
aos livros sujos! Viva Chiapas! Salve as baleias! Nelson
Mandela livre! – sem demora, já fizeram, agora são uma
cabeça do estado, e irá a vida de todo anarquista ser
sempre a mesma? Todos são bem-vindos sob o
grandioso, com uma condição: que ele refreie toda e
qualquer crítica de todos os outros. Você assina minha
petição e eu assinarei o seu…
Mantendo a imagem pública de uma luta comum
contra a opressão, os esquerdistas escondem, não
somente sua fragmentação real, incoerência e fraqueza,
mas – paradoxalmente - o que realmente compartilha:
aquiescência nos elementos essenciais do
estado/sociedade de classes. Aqueles que são satisfeitos
com a ilusão de comunidade são relutantes em arriscar
perder suas satisfações modestas, e talvez mais, indo
para as coisas reais. Todas as democracias
industrializadas avançadas toleram uma oposição leal
esquerdista, que é cumprida desde que os tolere.

60
Bob Black

A Abolição do Trabalho

61
Bob Black

Ninguém jamais deveria trabalhar!14

O trabalho é a fonte de quase todos os sofrimentos


do mundo.
Praticamente qualquer mal que se possa mencionar
vem do trabalho
ou de se viver num mundo projetado para o
trabalho.

Isso não significa que precisamos parar de fazer


coisas. Significa criar um novo estilo de vida baseado na
brincadeira; em outras palavras, uma revolução lúdica.
Com "brincadeira", quero dizer também festividade,
criatividade, convívio, comensalidade e talvez até arte.
Brincar é mais do que brincar como crianças, por mais
que isso tenha seu valor. Eu clamo por uma aventura
coletiva de alegria generalizada e exuberância
livremente interdependente. Brincar não é algo passivo.
Sem dúvida, precisamos de muito mais tempo do que
temos agora para o ócio e a folga totais,
independentemente de renda ou ocupação; mas, uma
vez recuperados da exaustão causada pelo emprego,
todos nós queremos agir.
A vida lúdica é totalmente incompatível com a
realidade existente. Pior para a "realidade", o buraco
gravitacional que suga a vitalidade daquele pouco na
vida que ainda a distingue da mera sobrevivência.
Curiosamente - ou talvez não -, todas as velhas
ideologias são conservadoras porque acreditam no
trabalho. Algumas delas, como o marxismo e a maioria
dos tipos de anarquismo, acreditam no trabalho ainda
mais ferozmente porque acreditam em bem pouca coisa
além dele.

14 Este ensaio surgiu como discurso em 1980. Uma versão revista e


ampliada foi publicada como panfleto em 1985, e na primeira edição de
Abolition of Work and Other Essays (Loopanics Unlimited, 1986). Ele
também apareceu em muitos periódicos e antologias, entre eles
traduções em francês , alemão , italiano, holandês, e esloveno.

62
Bob Black

Os liberais dizem que devemos acabar com a


discriminação nos empregos. Eu digo que temos que
acabar com os empregos. Os conservadores apoiam leis
de direito ao trabalho. Seguindo o genro rebelde de Karl
Marx, Paul Lafargue, eu apóio o direito à preguiça. Os
esquerdistas são a favor de pleno emprego. Como os
surrealistas - só que eu não estou brincando -, sou a
favor do pleno desemprego. Os trotskistas fazem
agitação em nome da revolução permanente. Eu faço
agitação em nome do deleite permanente. Mas se todos
os ideólogos (como de fato eles fazem) defendem o
trabalho - e não apenas porque planejam fazer com que
outros trabalhem por eles -, estranhamente eles relutam
em dizer isso. Falam sem parar de salários, jornadas,
condições de trabalho, exploração, produtividade,
rentabilidade. Falam de tudo, menos do próprio trabalho.
Esses especialistas, que se oferecem para pensar por
nós, raramente divulgam suas conclusões sobre o
trabalho, por mais que ele tenha relevância na vida de
todos nós. Entre eles, esmiúçam os detalhes. Sindicatos e
patrões concordam que devemos vender o auge de nossa
vida em troca de sobrevivência, embora discordem
quanto ao preço. Os marxistas acham que devemos ser
comandados por burocratas. Os liberais acham que
devemos ser comandados por homens de negócios. Às
feministas não importa qual a forma de comando,
contanto que as comandantes sejam mulheres. Está claro
que esses traficantes de ideologias têm diferenças sérias
sobre como dividir o espólio do poder. Também está claro
que nenhum deles tem objeções ao poder em si, e todos
querem nos manter trabalhando.
Você deve estar se perguntando se estou
brincando ou falando sério. Estou brincando e falando
sério. Ser lúdico não é ser ridículo. Brincadeiras não
precisam ser frívolas, embora frivolidade não signifique
trivialidade; muitas vezes, deveríamos levar frivolidade a
sério. Eu gostaria que a vida fosse um jogo - mas um jogo
de apostas elevadas. Eu quero jogar a sério.

63
Bob Black

A alternativa ao trabalho não é apenas inatividade.


Ser lúdico não é estar quaalúdico15. Por mais que eu
valorize o prazer do torpor, ele nunca é mais
recompensador do que quando pontua outros prazeres e
passatempos. Tampouco estou promovendo a válvula de
escape gerenciada e cronometrada chamada "lazer",
longe disso. O lazer é o não-trabalho em nome do
trabalho. O lazer é o tempo gasto se recuperando do
trabalho e na frenética, porém vã, tentativa de esquecer
o trabalho. Muitas pessoas voltam tão esgotadas das
férias que ficam ansiosas para voltar ao trabalho e poder
descansar. A principal diferença entre o trabalho e o lazer
é que trabalhando pelo menos você é pago por sua
alienação e exasperação.
Não estou fazendo nenhum jogo retórico. Quando
digo que abolir o trabalho, quero dizer exatamente isso -
mas quero dar meu recado definindo termos de forma
não idiossincráticas. Minha definição resumida de
trabalho é o trabalho forçado, ou seja, a produção
compulsória. Ambos os elementos são essenciais. O
trabalho é a produção garantida por meios econômicos
ou políticos, pela recompensa ou pela punição (um tipo
de recompensa que é apenas a punição por outros
meios). Mas nem toda criação é trabalho. O trabalho
jamais é um fim em si mesmo, ele é feito em prol de
algum produto ou resultado que o trabalhador (ou, mais
frequentemente, outra pessoa) obtém dele. É isso que o
trabalho é, necessariamente. Defini-lo é desprezá-lo. Mas
o trabalho, em geral, é até pior do que sua definição
determina. A dinâmica da dominação intrínseca ao
trabalho tende, com o tempo, a se tornar mais elaborada.
Em sociedades avançadas, empesteadas pelo trabalho, aí
incluídas todas as sociedades industriais, tanto as
capitalistas como as "comunistas", o trabalho
invariavelmente adquire outros atributos que acentuam a
sua perversão.
15 Quaalude é um dos nomes comerciais da metaqualona, substância
utilizada como tranquilizante, de efeito sedativo e hipnótico. Seu uso
como droga era bem difundido nos anos 60 e 70.

64
Bob Black

De maneira geral - e isso é até mais verdadeiro


nos países "comunistas" do que nos capitalistas, já que
naqueles o Estado é quase o único empregador e todos
são empregados -, trabalho é emprego, isto é, mão-de-
obra assalariada, o que significa que você se vende a
prestações. Portanto, 95% dos trabalhadores norte-
americanos trabalham para alguém (ou algo). Em Cuba,
na China ou em qualquer outro modelo alternativo que se
possa citar, a cifra correspondente beira os 100%.
Somente os bastiões camponeses do Terceiro Mundo -
México, Índia, Brasil, Turquia -, que vivem um clima
constante de guerra iminente, abrigam temporariamente
concentrações significativas de agricultores que
perpetuam o acordo tradicional da maioria dos
trabalhadores nos últimos milênios, o pagamentos de
impostos (= extorsão) ao Estado, ou de aluguel a
latifundiários parasitas, para que eles os deixem em paz
em outras questões. Até esse acordo perverso está
começando a parecer mais interessante que aqueles que
temos hoje no Primeiro Mundo. Todos os trabalhadores
industriais e de escritório são empregados e submetidos
a um tipo de vigilância que assegura a servilidade.
Mas o trabalho moderno tem implicações piores.
As pessoas não só apenas trabalham, elas têm
"empregos". Uma pessoa desempenha uma única tarefa
produtiva o tempo todo sob a ameaça de um "ou
senão..." Mesmo quando a tarefa tem algo de
intrinsecamente interessante (caso cada vez mais raros
nos empregos) a monotonia de sua exclusividade
obrigatória drena todo o potencial lúdico. Um "emprego"
que poderia mobilizar a energia de algumas pessoas, por
um tempo razoavelmente limitado e apenas por prazer,
torna-se um fardo para aqueles que têm que fazê-lo 40
horas por semana, sem voz ativa sobre como ele deve
ser feito, para enriquecer proprietários que não
contribuem em nada para o projeto, e sem oportunidade
de compartilhar tarefas ou dividir o trabalho entre
aqueles que realmente precisam fazê-lo. Esse é o

65
Bob Black

verdadeiro mundo do trabalho: um mundo de


incompetência burocrática, de assédio sexual e
discriminação, de chefes cabeças-de-bagre explorando e
fazendo de bodes expiatórios seus subordinados, os
quais - por qualquer critério racional ou técnico -
deveriam estar dando ordens. Mas o capitalismo, na
realidade, subordina a maximização racional da
produtividade e do lucro às exigências do controle
organizacional.
A degradação que a maioria dos trabalhadores
sofrem no emprego é a soma de indignidades variadas,
que pode ser denominada "disciplina". Foucault faz
parecer complexo esse fenômeno, mas ele é bastante
simples. A disciplina consiste na totalidade dos controles
totalitários no local de trabalho - vigilância, tarefas
repetitivas, ritmo de trabalho imposto, cotas de
produção, horário para entrar e para sair e por aí vai. A
disciplina é o que a fábrica, o escritório e a loja têm em
comum com a prisão, a escola e o hospital psiquiátrico. É
algo historicamente original e horripilante.
Estava além da capacidade de ditadores
demoníacos de antigamente como Nero, Gêngis Khan e
Ivã o Terrível. Mesmo com todas as suas más intenções,
eles não dispunham de mecanismos para controlar seus
súditos tão completamente quanto os déspotas
modernos. A disciplina é o modo de controle moderno,
distintamente diabólico - é uma intrusão inovadora que
precisa ser contida na primeira oportunidade.
Assim é o "trabalho". A brincadeira é exatamente
o oposto. A brincadeira é sempre voluntária. O que
poderia ser uma brincadeira se torna trabalho quando é
forçado. Isso é um axioma. Bernie de Koven definiu
brincadeira como a "suspensão de consequências". Isso é
inaceitável se implica que a brincadeira é inconsequente.
A questão não é que a brincadeira não têm
consequências. isso é desvalorizar a brincadeira. A
questão é que as consequências, quando existem, são

66
Bob Black

gratuitas. Brincar e dar são ações bem próximas. São


duas facetas - comportamental e transacional - do
mesmo impulso: o instinto lúdico. Elas têm o mesmo
desprezo aristocrático por resultados. Aquele que brinca
obtém algo da brincadeira, e é por isso que brinca. Mas a
recompensa central é a experiência da atividade em si
(seja ela qual for). Alguns estudiosos das brincadeiras,
até atentos para outros aspectos como Johan Huizinga
(Homo Ludens), definem-nas como jogar, ou seguir
regras. Eu respeito a erudição de Huizinga, mas rejeito
enfaticamente essa limitação. Existem muitos bons jogos
(xadrez, beisebol, Banco Imobiliário, bridge) que são
regidos por regras, mas brincar é muito mais do que se
divertir com jogos. A conversa, o sexo, a dança, as
viagens - essas praticas não t6em regras, mas
definitivamente são brincadeiras. E pode-se brincar com
as regras tão facilmente quanto qualquer outra coisa.
O trabalho ridiculariza a liberdade. A versão oficial
é que todos temos direitos e vivemos numa democracia.
Outros desafortunados que não são livres como nós têm
que viver em Estados policiais. Tais vítimas obedecem a
ordens, por mais arbitrárias que sejam, ou sofrem as
consequências. As autoridades as mantêm sob vigilância
regular. Burocratas do Estado controlam até os menores
detalhes do dia-a-dia. Os funcionários que as oprimem
respondem apenas a seus superiores públicos ou
particulares. De qualquer forma, a discordância e a
desobediência são punidas. Informantes relatam tudo
regularmente às autoridades. Tudo isso deve ser muito
ruim.
E é mesmo, embora não seja nada mais do que
uma descrição do local de trabalho contemporâneo. Os
liberais, conservadores e libertários que se lamentam
pelo totalitarismo são fingidos e hipócritas. Há mais
liberdade em qualquer ditadura moderadamente
"desestalinizada" do que num local de trabalho
americano normal. Num escritório ou numa fábrica,
encontra-se o mesmo tipo de hierarquia e disciplina que

67
Bob Black

existe numa prisão ou num mosteiro. De fato, como


Foulcault e outros demonstraram, prisões e fábricas
forma criadas maios ou menos ao mesmo tempo, e seus
operadores conscientemente emprestaram as técnicas
de controle uns dos outros. Um trabalhador é um escravo
em meio período. O chefe diz quando ele deve chegar,
quando deve ir embora e o que deve fazer durante a
jornada. Ele diz quanto trabalho alguém deve fazer, e
com que rapidez. Tem liberdade para levar seu controle a
extremos humilhantes, regulamentando, se assim
desejar, o que alguém deve vestir ou com que frequência
deve ir ao banheiro. Com poucas exceções, pode demitir
alguém por qualquer motivo, ou sem motivo. Põe dedos-
duros e supervisores para espionar as pessoas e acumula
um dossiê para cada empregado. Retrucar é chamado de
"insubordinação", como se o trabalhador fosse uma
criança malcriada, e não só leva à demissão da pessoa,
como também impede que ela obtenha um seguro-
desemprego. Sem necessariamente endossar a prática,
vale ressaltar que crianças, em casa e na escola,
recebem praticamente o mesmo tratamento, justificado,
no caso delas, por sua suposta imaturidade. Que
argumento usar no caso de seus pais e professores que
trabalham?
O sistema de dominação humilhante que descrevi
rege mais da metade das horas de vigília da maioria das
mulheres e da grande maioria dos homens há décadas,
durante a maior parte de sua vida. Para certos fins, não é
muito enganador chamar nosso sistema de democracia,
capitalismo ou -melhor ainda - industrialismo, mas seus
verdadeiros nomes são fascismo de fábrica e oligarquia
de escritório. Quem disser que essas pessoas são "livres"
está mentindo ou é burro.
Você é o que você faz. Se você faz um trabalho
chato, idiota ou monótono. O trabalho é uma explicação
muito melhor para a crescente cretinização que nos cerca
do que até mesmo mecanismos claramente
imbecilizadores como a televisão e a educação. Pessoas

68
Bob Black

que são arregimentadas por toda a vida, entregues ao


trabalho pela escola e delimitadas pela família no início e
pelo asilo no fim, estão acostumadas à hierarquia e
escravizadas psicologicamente. Sua aptidão para a
autonomia está tão atrofiada que o medo da liberdade
está entre suas poucas fobias embasadas racionalmente
O treinamento para a obediência no trabalho contamina
as famílias que elas criam, gerando assim outras formas
de reprodução do sistema, e contamina igualmente a
política, a cultura e tudo o mais. quando se drena a
vitalidade das pessoas no trabalho, elas ficam
predispostas a se submeter à hierarquia e à
especialização em tudo. Estão acostumadas a isso.
Estamos tão próximos ao mundo do trabalho que
não conseguimos ver o que ele faz conosco. Temos que
confiar em quem o vê de fora, de outras épocas e de
outras culturas, para entender quão extrema e patológica
é a nossa situação atual. Houve uma época, em nosso
próprio passado em que a "ética do trabalho" teria sido
incompreensível, e talvez Weber estivesse no rumo certo
quando associou o aparecimento dessa ética em uma
religião, o calvinismo, que, se tivesse surgido hoje e não
há quatro séculos, teria sido imediatamente e
adequadamente rotulada como seita. Seja como for, só
precisamos usar a sabedoria da Antiguidade para pôr o
trabalho em perspectiva. Os antigos viam o trabalho
como o que ele é, e a visão deles prevaleceu, apesar dos
fanáticos calvinistas, até ser deposta pelo industrialismo -
mas não antes de receber a aprovação de seus profetas.
Vamos fingir por um momento que o trabalho não
transforma as pessoas em submissos estupidificados.
Vamos fingir, desafiando qualquer psicologia plausível e a
ideologia de seus propagadores, que ele não tem efeito
algum na formação do caráter. E vamos fingir que
trabalho não é chato, cansativo e humilhante como todos
de fato sabemos que é. Mesmo assim, o trabalho ainda
seria um insulto a todas as aspirações humanistas e
democráticas, penas porque usurpa tanto de nosso

69
Bob Black

tempo.
Sócrates dizia que trabalhadores braçais são maus
amigos e maus cidadãos porque não tem tempo de
cumprir as responsabilidades da amizade e da cidadania.
Ele tinha razão. Por causa do trabalho, não importa o que
estejamos fazendo, estamos sempre olhando para o
relógio. A única coisa "livre" no chamado tempo livre é
que ele é livre de custos para o chefe. O tempo livre é
dedicado principalmente a se preparar para o trabalho.
Tempo livre é um eufemismo para o modo peculiar como
a mão-de-obra, como fator de produção, não apenas de
transporta sozinha, à sua própria custa, de casa para o
trabalho e do trabalho para casa, mas também assume
primariamente a responsabilidade pela sua própria
manutenção e conserto. O carvão e o aço não fazem isso.
Tornos e máquinas de não fazem isso. Não admira que
Edward G. Robinson, num de seus filmes de gângster,
tenha exclamado: "Trabalho é para otário!"
Tanto Platão como Xenofonte atribuem a Sócrates
e, obviamente, compartilham com ele a consciência dos
efeitos destrutivos do trabalho sobre o trabalhador, como
cidadão e como ser humano. Heródoto identificou o
desprezo pelo trabalho como um atributo dos gregos
clássicos no auge de sua cultura. Para citar apenas um
exemplo romano, Cícero disse que "quem troca sua força
de trabalho por dinheiro se vende e se coloca na classe
dos escravos". Tal franqueza é rara hoje em dia, mas as
sociedades primitivas contemporâneas que gostamos
tanto de menosprezar forneceram porta-vozes que
iluminaram antropólogos ocidentais. Os Kapauku de Irian
Ocidental16, de acordo com Pospoli, têm uma noção de
equilíbrio na vida e a seguem trabalhando apenas dia
sim, dia não, sendo o dia de descanso "para recobrar
energia e saúde perdidas". Nossos ancestrais do século
XVIII, já a meio caminho andado em direção ao dilema
atual, ao menos tinham consciência do que nós
esquecemos: o lado negativo da industrialização. Sua
16 Parte ocidental da Nova Guiné, que esta sob controle da Indonésia.

70
Bob Black

devoção religiosa à "Santa Segunda" - que estabeleceu,


na prática, a jornada de cinco dias entre 150 e 200 anos
antes de sua consagração legal - era o desespero dos
primeiros proprietários de fábricas. Eles demoraram para
se submeter à tirania da campainha, a precursora do
relógio de ponto. De fato, durante uma ou duas gerações,
foi necessário substituir homens adultos por mulheres,
acostumadas a obediência, e crianças, que podiam ser
moldadas para se adequar às necessidades industriais.
Até os camponeses explorados do ancien régime
conseguiam arrancar uma quantidade considerável de
tempo do controle dos senhores feudais. De acordo com
Lafargue, um quarto do calendário dos camponeses
franceses era devotado a domingos e dias santos e as
cifras de Chayanov referentes a aldeias da Rússia
Czarista - que não era nenhuma sociedade progressistas -
mostram igualmente que entre um quarto e um quinto
dos dias do camponeses eram devotados ao descanso.
Controlando em nome da produtividade, obviamente,
ficamos muito atrás dessas sociedades retrógradas. Os
Mujiques explorados se perguntariam por que ainda
trabalhamos. É uma pergunta que também deveríamos
nos fazer.
Para entender a enormidade da nossa
deterioração, todavia, considere a condição humana mais
primitiva, sem governo nem propriedade, quando
vagávamos como caçadores-coletores. Hobbes supunha
que a vida era, naquela época, suja, brutal e curta.
Outros presumem que a vida era uma luta desesperada e
incessante pela subsistência, uma guerra declarada
contra uma natureza impiedosa, em que a morte e a
calamidade esperavam os desafortunados ou todos os
que não estivessem à altura do desafio da luta pela
existência. Na verdade, tudo isso era uma projeção do
medo do colapso da autoridade governamental em
comunidades desacostumadas a existir sem ela, como a
Inglaterra de Hobbes durante a Guerra Civil. Os
compatriotas de Hobbes já haviam encontrado formas

71
Bob Black

alternativas de sociedade, que ilustravam outros estilos


de vida - na América do Norte, em particular -, mas elas
já estavam longe demais da experiência deles para
serem compreensíveis. (As camadas mais baixas, mais
próximas da condição dos índios, as entendiam melhor e
muitas vezes achavam atraentes. Durante todo o século
XVIII, colonizadores ingleses desertaram para viver em
tribos indígenas ou, quando capturados em guerra,
recusavam-se a voltar para as colônias. Já os índios
desertavam para ir viver em assentamentos dos brancos
com a mesma frequência com que alemães ocidentais
escalavam o muro de Berlim vindos do lado ocidental.). A
versão da "sobrevivência dos mais aptos" - a de Thomas
Huxley - do darwinismo descrevia melhor as condições
econômicas da Inglaterra vitoriana do que a seleção
natural, como o anarquista Kropotkin demonstrou em seu
livro Apoio Mútuo (Kropotikin era um cientista - geógrafo -
que havia tido uma oportunidade grande e involuntária
de fazer um trabalho de campo ao ser exilado na Sibéria;
ele sabia o que estava dizendo). Como na maior parte da
teoria social e política, a história que Hobbes e seus
sucessores contavam era, na verdade, uma autobiografia
não reconhecida.
O antropólogo Marshall Sahlins, pesquisando
dados sobre caçadores-coletores contemporâneos,
desbancou o mito hobbesiano em um artigo intitulado
"The Original Affluent Society" ("Idade da Pedra,
Sociedade da Abundância"). Eles trabalham muito menos
do que nós, e o trabalho deles é difícil de distinguir do
que nós consideramos brincadeira. Sahlins concluiu que
"caçadores e extrativistas trabalham menos do que nós,
e, em vez de ser uma atribulação contínua, a busca de
alimento é intermitente, o lazer é abundante e há uma
quantidade maior de sono diurno per capita por ano do
que em qualquer outra condição de sociedade". Eles
trabalhavam em média quatro horas por dia, isso se
estavam mesmo "trabalhando". O "trabalho" deles, como
nós o vemos, era especializado e exercitava suas

72
Bob Black

capacidades físicas e intelectuais; o uso de mão-de-obra


não-especializada em grande escala, como Sahlins diz, é
impossível fora do industrialismo. Portanto, ele satisfazia
a definição de brincadeira criada por Friedrich Schiller -
como sendo a única ocasião em que o homem realiza sua
completa humanidade pondo "em jogo" ambos os lados
de sua natureza bilateral, pensar e sentir. Como ele
disse: "O animal trabalha quando a privação é a
motivação de sua atividade e brinca quando a plenitude
de sua força é essa motivação, quando a vida
superabundante é seu próprio estimulo à atividade".
(Uma versão moderna - e dubiamente
desenvolvimentista - é a contraposição de Abraham
Maslow entre motivação "para deficiência" e "para
crescimento".) A brincadeira e a liberdade são, em
relação à produção, co-extensivas. Até Marx, que figura
(por mais que tenha boas intenções) no panteão
produtivo, observou que "o reino da liberdade começa
apenas quando o ponto em que o trabalho, sob a
compulsão da necessidade e da utilidade externa, for
ultrapassado". Ele não chegou a ser capaz de identificar
esta feliz circunstância, a abolição do trabalho, como o
que ela é - é um tanto anormal, afinal, ser a favor dos
trabalhadores e contra o trabalho. Mas nós podemos
fazê-lo.
A aspiração de regredir ou progredir para uma vida
sem trabalho é evidente em qualquer história social ou
cultural séria da Europa pré-industrial, entre elas England
in Transition, de M. Dorothy George, e Cultura Popular na
Idade Moderna, de Peter Burke. Pertinente, também, é o
ensaio de Daniel Bell "O trabalho e Seus
Descontentamentos". Foi o primeiro texto, creio eu, a se
referir à "revolta contra o trabalho" com todas as letras e
que, se tivesse sido entendido, teria sido uma importante
correção da complacência normalmente associada ao
livro no qual se encontra, O Fim da Ideologia. Nem seus
críticos nem seus entusiastas notaram que a tese de Bell
para o fim da ideologia não sinalizava o fim da

73
Bob Black

turbulência social, mas o início de uma fase nova e não


mapeada, não limitada e não formada pela ideologia. Foi
Seymour Lipset (em O Homem Político, não Bell, quem
anunciou, na mesma época, que os "problemas
fundamentais da Revolução Industrial forma resolvidos",
apenas alguns anos antes de que os descontamentos pós
ou meta-industriais dos estudantes universitários o
levassem a trocar a Universidade da Califórnia em
Berkley pela relativa (e temporária) tranquilidade em
Havard.
Como Bell nota, mesmo com todo entusiasmo de
Adam Smith pelo mercado e pela divisão de trabalho, ele
mostra em A Riqueza das Nações que estava mais alerta
para (e era mais honesto sobre) o lado espinhoso do
trabalho do que Ayn Rand, os economistas de Chicago ou
qualquer um dos imitadores baratos do próprio Smith na
atualidade. Como ele observou: "O entendimento da
maioria dos homens é formado necessariamente por seus
empregos comuns. O homem que passa a vida
desempenhando umas poucas operações simples [...]
não tem ocasião de exercer o seu entendimento. [...] Em
geral, ele se torna tão estúpido e ignorante quanto é
possível para uma criatura humana". Aí, em poucas
palavras, está a minha crítica ao trabalho. Bell,
escrevendo em 1956, na Era de Ouro da imbecilidade de
Eisenhower e da auto-indulgência americana, identificou
o desorganizado e inarticulável mal-estar da década de
70 e das seguintes, aquele que nenhuma tendência
política é capaz de dominar, aquele identificado no
relatório do Departamento Americano de Saúde,
Educação e Bem-Estar Social, "Work In America", aquele
que não pode ser explorado e que, portanto, é ignorado.
Esse problema é a revolta contra o trabalho. Ele não
aparece nos textos de nenhum economista do Laissez-
faire - Milton Friedman, Murray Rothbard, Richard Posner -
porque, nos termos deles, como se dizia em Perdidos no
Espaço, "não tem registro".
Se tais objeções modeladas pelo amor à liberdade,

74
Bob Black

não convencem humanistas de visão utilitária ou até


mesmo paternalista, há outras que eles não podem
ignorar. O trabalho faz mal à saúde, para tomar
emprestado o título de um livro. De fato, trabalho é
extermínio em massa ou genocídio. Direta ou
indiretamente, o trabalho vai matar as maiorias das
pessoas que leem estas palavras. Entre 14 mil e 25 mil
trabalhadores são mortos anualmente, neste país, no
trabalho. Mais de 2 milhões ficam inválidos. Vinte a 25
milhões se ferem todo ano. E essas cifras se baseiam
numa estimativa bastante conservadora do que constitui
um acidente de trabalho. Portanto, ela não contabiliza o
meio milhão de casos de doenças ocupacionais por ano.
Eu consultei um texto médico sobre doenças
ocupacionais que tinha 1.200 páginas. Ele mesmo mal
arranhava a superfície. As estatísticas disponíveis
contabilizam casos óbvios, como os 100 mil mineiros que
contraem pneumoconiose, dos quais 4 mil morrem todo
ano. O que as estatísticas não mostram é que dezenas de
milhões de pessoas têm suas vidas encurtadas pelo
trabalho - o que é a definição de homicídio, no fim das
contas. Considere os médicos na casa dos 50 anos que se
matam de trabalhar. Considere todos os outros
workaholics.
Mesmo que você não morra ou fique aleijado
enquanto trabalha, isso pode muito bem acontecer
enquanto você vai para o trabalho, volta do trabalho,
procura trabalho ou tenta esquecer o trabalho. A grande
maioria das vítimas dos desastres de automóvel se
acidenta enquanto cumpre uma das atividades impostas
pelo trabalho, ou então é morta por alguém que
desempenha uma delas. A essa contagem adicional de
mortos devem ser somados as vítimas da poluição da
industria automobilística e do alcoolismo e da
dependência de drogas induzidos pelo trabalho. Tanto o
câncer como as doenças cardíacas são males modernos
normalmente causados pelo, direta ou indiretamente,
pelo trabalho.

75
Bob Black

O trabalho, portanto, institucionaliza o homicídio


como um meio de vida. Todos acham que os cambojanos
eram loucos por se exterminarem, mas por acaso somos
diferentes? O regime de Pol Pot pelo menos tinha uma
visão, ainda que embaçada, de uma sociedade
igualitária. Nós matávamos pessoas às centenas de
milhares (no mínimo) para vender Big Macs e Cadillacs
aos sobreviventes. Nossas 40 ou 50 mil fatalidades
anuais nas estradas são vítimas, não mártires. Elas
morreram a troco de nada - ou melhor, morreram pelo
trabalho. Mas não vale a pena morrer pelo trabalho.
O controle da economia pelo Estado não é a
solução. O trabalho, na melhor das hipóteses, é mais
perigoso nos países socialistas do que aqui. Milhares de
trabalhadores russos foram mortos ou feridos construindo
o metrô de moscou. Chernobyl e outros desastres
nucleares acobertados até recentemente fazem Times
Beach17 e Three mile island18 - mas não Bhopal19 -
parecerem um treinamento antiaéreo numa escola
primária. Por outro lado, a desregulamentação da
economia, atualmente na moda, não vai ajudar e
provavelmente vai atrapalhar. Do ponto de vista da
saúde a da segurança, entre outros, o trabalho teve seu
pior momento nos dias em que a economia se
aproximava mais do laissez-faire. Historiadores como
Eugene Genovese argumentavam de forma convincente
que - como os defensores do escravagismo insistiam na
Pré-Secessão - operários assalariados nos estados
americanos do Norte e na Europa viviam pior do que os
escravos nas fazendas do Sul. Nenhuma reconfiguração

17 Cidade nos EUA que foi contaminada por dioxina, uma substância
tóxica, durante os anos 70, e teve que ser completamente evacuada em
1982
18 Outra cidade norte-americana, sede de uma usina que sofreu um
princípio de acidente nuclear em 1979.
19 Cidade da Índia, que em dezembro de 1984, foi contaminada por 40
toneladas de gazes tóxicos, devido a um vazamento na fábrica de
agrotóxicos norte-americana Union Carbide Corporation. O episódio, que
matou quase 30 mil pessoas e feriu meio milhão , é considerado o pior
acidente industrial da história.

76
Bob Black

das relações com a entrada em cena de burocratas e


homens de negócios parece fazer muita diferença no
momento da produção. A implementação séria até
padrões um tanto vagos, que a Administração Americana
de Segurança e Saúde Ocupacionais teoricamente
poderia pôr em vigor, provavelmente levaria a economia
a um impasse. Os agentes da lei, aparentemente, têm
consciência disso, já que nem tentam flagrar a maioria
dos malfeitores.
O que eu disse até agora não deveria causar
controvérsias. Muitos trabalhadores estão fartos do
trabalho. Há índices altos e crescentes de faltas,
rotatividade, furtos e sabotagens, greves anárquicas e
corpo mole em geral no trabalho. Pode algum movimento
rumo a uma consciente, e não apenas visceral, rejeição
do trabalho. E, no entanto, a sensação que prevalece,
universal entre chefes e seus agentes e também
difundida entre os próprios trabalhadores, é que o
trabalho é inevitável e necessário.
Eu discordo. Agora é possível abolir o trabalho e
substituí-lo, nos casos em que ele tem finalidades úteis,
por uma variedade de novos tipos de atividades livres.
Abolir o trabalho requer atacá-lo em duas frentes, a
quantitativa e a qualitativa. Por um lado, o lado
quantitativo, precisamos cortar de forma maciça a
quantidade de trabalho que está sendo feito. Atualmente,
a maior parte do trabalho é inútil ou coisa pior, e
deveríamos simplesmente acabar com ela. Por outro lado
- e acho que essa é a parte crucial e a novidade
revolucionária -, precisamos pegar o trabalho que
permanece útil e transformá-lo em uma variedade de
passatempos lúdicos e artesanais, indistinguíveis de
outros passatempos prazerosos exceto pelo fato de que
resultam em produtos finais úteis. Certamente isso não
os deveria tornar menos atraentes. Aí, todas as barreiras
artificiais do poder e da propriedade poderiam cair. A
criação poderia tornar recreação. E todos poderíamos
parar de sentir medo um dos outros.

77
Bob Black

Não estou sugerindo que a maior parte do trabalho


possa ser salva dessa forma. Mas, também, a maior parte
do trabalho nem vale o esforço. Somente uma pequena e
cada vez menor fração do trabalho tem qualquer
propósito útil, independentemente da defesa e da
reprodução do sistema trabalhista e de seus apêndices
políticos legais. Trinta anos atrás, Paul e Percival
Goodman estimavam que apenas 5% do trabalho então
realizado - presume-se que essa cifra, se estava certa,
deva ser mais baixa agora - satisfaria nossas
necessidades mínimas de alimentos, vestimenta e
moradia. Era apenas uma estimativa ponderada, mas o
argumento centra é bem claro: direta ou indiretamente, a
maior parte do trabalho atende aos propósitos
improdutivos do comércio e do controle social. De cara, já
podemos libertar dezenas de milhões de vendedores,
soldados, gerentes, policiais, corretores de ações,
sacerdotes, advogados, professores, senhorios,
seguranças, publicitários e todos que trabalham para
eles. Há um efeito bola de neve, já que, toda vez que se
põe algum figurão para descansar, seus lacaios e
subalternos também são libertados. Assim, a economia
implode.
Quarenta por cento da força de trabalho é formada
por trabalhadores de colarinho branco, a maioria dos
quais tem alguns dos empregos mais tediosos e idiotas
que já foram criados. Ramos inteiros, como o securitário,
o bancário e o imobiliário, por exemplo, consistem em
nada mais do que o gerenciamento da papelada inútil.
Não é por acaso que o "setor terciário", o de serviços,
está crescendo, enquanto o "setor secundário" (a
indústria) está estagnado, e o "setor primário" (a
agricultura) quase desaparece. Como o trabalho só é
necessário àqueles cujo poder ele garante, trabalhadores
são transferidos de ocupações relativamente úteis para
outras relativamente inúteis, como medida para garantir
a ordem pública. Qualquer coisa é melhor do que nada.
Por isso você não pode ir para casa só porque terminou o

78
Bob Black

serviço mais cedo. Eles querem o seu tempo em medida


suficiente para se apoderar de você, mesmo quando não
têm necessidade da maior parte dele. Senão, por que a
jornada semanal média não diminuiu mais do que alguns
minutos nos últimos 60 anos?
A seguir, podemos passar o facão na produção
propriamente dita. Chega de indústria bélica, energia
nuclear, junk food, desodorante íntimo feminino - e,
sobretudo, chega de indústria automotiva. Um Stanley
Steamer ou um modelo T20 ocasionais são até aceitáveis,
mas o auto-erotismo do qual dependem pocilgas como
Detroit e Los Angeles está fora de cogitação. De cara,
sem nenhum esforço, virtualmente resolvemos a crise de
energia, a crise ambiental e outros variados problemas
ambientais insolúveis.
Finalmente, precisamos acabar com aquela que é
de longe a ocupação com mais funcionários, com a
jornada mais longa, o salário mais baixo e algumas das
tarefas mais tediosas que existem. Refiro-me às donas de
casa que fazem o trabalho doméstico e criam filhos.
Abolindo o trabalho assalariado e alcançando o pleno
desemprego, sabotamos a divisão sexual do trabalho. O
núcleo familiar que conhecemos é uma adaptação
inevitável à divisão do trabalho imposta pelo trabalho
assalariado moderno. Gostando ou não, do jeito que as
coisas estiveram nos últimos 100 ou 200 anos era
racional, do ponto de vista econômico, que o homem
sustentasse a família, que a mulher de matasse no fogão
e no tanque e proporcionasse ao marido um porto seguro
num mundo desalmado. Também fazia sentido que as
crianças marchassem para os campos de concentração
juvenis chamados "escolas", sobretudo para saírem da
barra da saia da mamãe - mas de forma que ainda
fossem mantidas sob controle - e, de forma secundária,
também para que adquirissem os hábitos de obediência

20 Automóveis do início do século XX. O Stanley Steamer foi um dos


últimos modelos movidos a vapor e o Modelo T foi o primeiro automóvel
produzido em série por John Ford.

79
Bob Black

e pontualidade tão necessários aos trabalhadores. Se


quiser se livrar do patriarcado, livre-se do núcleo familiar,
cujo "trabalho invisível"21 não-remunerado, como diz Ivan
Illich, possibilita o sistema de trabalho que torna a família
necessária. Ligadas a essa estratégia antinuclear estão a
abolição da infância e o fechamento das escolas. Há mais
estudantes em período integral do que trabalhadores em
período integral neste país. Precisamos das crianças
como professoras, não como alunas. Elas têm muito a
contribuir para a revolução lúdica porque sabem brincar
melhor do que os adultos. Adultos e crianças não são
idênticos, mas vão se tornar iguais por meio da
interdependência. Somente a brincadeira pode acabar
com o conflito de gerações.
Eu ainda nem mencionei a possibilidade de
diminuir bastante o pouco trabalho que resta
automatizando-o e tornando-o cibernético. Todos os
cientistas, engenheiros e técnicos libertados das
preocupações com a pesquisa bélica e a obsolência
programada vão se divertir pensando em meios para
eliminar a fadiga, o tédio e o perigo de atividades como
mineração. Sem dúvida, eles encontraram outros projetos
para ocupar seu tempo. Talvez montem um sistema
mundial realmente inclusivo de comunicação multimídia
ou fundem colônias espaciais. Talvez. Pessoalmente, não
sou louco por bugigangas. Eu não gostaria de viver em
um paraíso de botões. Não quero robôs escravos que
façam tudo; quero eu mesmo fazer as coisas. Existe,
penso eu, lugar para uma tecnologia que economize
trabalho, mas um lugar modesto.
Os antecedentes históricos e pré-históricos não
são muito animadores. Quando a tecnologia produtiva
passou da caça e do extrativismo para a agricultura e
depois para a indústria, o trabalho aumentou, enquanto
as habilidades e a autodeterminação diminuíram . A
evolução ulterior do industrialismo acentuou o que Harry
21 "Shadow Work", no original. Título de um livro de Ivan
Illich, de 1981.

80
Bob Black

Braverman chamou de degradação do trabalho.


Observadores inteligentes sempre tiveram consciência
disso. John Stuart Mill escreveu que todas as invenções
para poupar trabalho já criadas nunca pouparam um
único momento de trabalho. Karl Marx escreveu que
"seria possível escrever uma história das invenções,
surgidas desde 1830, com a finalidade exclusiva de
fornecer ao capital armas contra a revolta da classe
trabalhadora". Os técnofilos entusiastas - Saint-Simon,
Conte, Lênin, B. F. Skinner - sempre foram também
autoritários desavergonhados, ou seja, tecnocratas.
Deveríamos ser mais do que céticos em relação às
promessas dos místicos do computador. Eles trabalham
feitos burros de carga; provavelmente, se lhes dermos
poder, trabalharemos como eles. Porém, se eles tivessem
quaisquer contribuições particulares mais prontamente
subordinadas aos propósitos humanos do que à corrida
tecnológica, Vamos ouvi-los.
O que eu realmente quero ver é o trabalho virar
brincadeira. Um primeiro passo é descartar as noções de
"emprego" e "ocupação". Até atividades que já têm
algum conteúdo lúdico perdem a maior parte dele ao
serem reduzidas a empregos que certas pessoas, e
somente aquelas pessoas, são forçadas a fazer, excluindo
todo o resto. Não é estranho que trabalhadores agrícolas
labutem dolorosamente nos campos, enquanto seus
patrões saem do ar condicionados de seus escritórios
todo fim de semana para fuçar nos jardins de suas casas?
Num sistema de deleite permanente, vamos testemunhar
uma Era de Ouro do diletantismo que vai pôr o
Renascimento no chinelo. Não haverá mais empregos,
apenas coisas a serem feitas e pessoas para fazê-las.
O segredo de transformar o trabalho em
brincadeira, como Charles Fourier demonstrou, é agendar
as atividades úteis para tirar vantagens das coisas que
várias pessoas, em vários momentos, de fato gostam de
fazer. Para que seja possível que algumas pessoas façam
coisas de que poderiam gostar, será suficiente erradicar

81
Bob Black

as irracionalidades e distorções que sobrecarregam tais


atividades quando elas são reduzidas a trabalho. Eu, por
exemplo, gostaria de dar algumas ( não muitas) aulas,
mas não quer o estudantes forçados e não estou afim de
bajular pedantes patéticos por uma cadeira.
Segundo, há coisas que as pessoas gostam de
fazer de vez em quando, mas não por muito tempo, e
certamente não tempo todo. Você pode até gostar de
cuidar de crianças por algum tempo para curtir a
companhia delas, mas não tanto tempo quanto os pais.
Os pais, por sua vez, ficariam profundamente gratos pelo
tempo livre que você lhes proporcionaria, embora
possam ficar nervosos se passarem tempo demais longe
de seus rebentos. Essas diferenças entre indivíduos são o
que torna uma vida de brincadeiras livres. O mesmo
princípio se aplica a muitas outras áreas de atividade,
especialmente as mais primitivas. Assim, muita gente
gosta de cozinhar quando pode fazer isso a sério e a seu
bel-prazer, mas não quando está apenas abastecendo
corpos humanos para o trabalho.
Terceiro - se tudo o mais estiver de acordo - certas
coisas que são insatisfatórias se você as faz sozinho, em
ambientes desagradáveis, ou sob o comando de um
superior, são prazerosas, ao menos por algum tempo,
quando tais circunstâncias mudam. Isso provavelmente
se aplica, em alguma medida, a qualquer trabalho. As
pessoas usam sua genialidade tão desperdiçada para
transformar em jogo as tarefas menos convidativas da
melhor forma que podem. Atividades que atraem alguns
nem sempre atraem todos os outros, mas todos, ao
menos potencialmente, têm uma variedade de interesses
e um interesse pela variedade. Como diz o ditado, "tudo
pelo menos uma vez". Fourier era mestre em especular
sobre como pendores aberrantes e perversos poderiam
se tornar úteis em sociedades pós-civilizadas, no que ele
chamava de Harmonia. Ele achava que o ditador Nero
teria sido um bom sujeito se, quando criança, pudesse ter
extravasado seu gosto pela carnificina trabalhando num

82
Bob Black

abatedouro. Crianças que notoriamente adoram rolar na


sujeira poderiam ser organizados em "pequenas hordas"
para limpar banheiros e esvaziar o lixo, com medalhas
para quem se destacasse. não estou defendendo
exatamente esses exemplos, mas o princípio subjacente,
que para mim faz todo o sentido como dimensão de uma
transformação revolucionária geral. Tenha em mente que
não precisamos pegar o trabalho que existe hoje, tal
como é, e associá-lo às pessoas adequadas, algumas das
quais teriam que ser de fato perversas.
Se a tecnologia tem um papel em tudo isso, é
menos o de automatizar o trabalho até fazê-lo
desaparecer e mais o de abrir novos campos para
"recriação". Até certo ponto, podemos querer retroceder
ao artesanato, o que Willliam Morris considera um
provável de desejável efeito da revolução comunista. A
arte seria tirada das mão dos esnobes e colecionadores,
abolida como departamento especializado que atende a
um público de elite, e suas qualidades de beleza e
criação seriam devolvidas à vida integral, da qual foram
roubadas pelo trabalho. É esclarecedor pensar que as
urnas gregas que inspiram odes e que exibimos em
museus foram usadas, em sua época, para armazenar
óleo de oliva. Duvido que nossos artefatos do dia-a-dia se
saiam tão bem no futuro, se ele chegar a existir. A
questão é que não existe progresso no mundo do
trabalho; na verdade é o contrário. Não deveríamos
hesitar em furtar o passado no que ele tem a oferecer: os
antigos nada perdem, e nós enriquecemos.
A reinvenção do cotidiano significa marchar para
além dos limites dos nossos mapas. Existe, é verdade,
mais especulação sugestiva do que a maioria imagina.
Além de Fourier e Morris - e até sugestões , aqui e ali, em
Marx - há os textos de Kropotkin, dos sindicalistas Pataud
e Pouget, dos velhos (berkman) e novos (Bookchin)
anarco-comunistas. Communitas, dos irmãos Goodman, é
exemplar para ilustrar as formas que decorrem de
funções específicas (propósitos), e há algo a ser

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Bob Black

aproveitado nos arautos muitas vezes nebulosos da


tecnologia alternativa/adequada/intermediária/de
convívio, como Schumacher, e especialmente Illich,
depois que desligamos suas maquinas de fazer fumaça.
Os situacionistas - representados em A Arte de Viver Para
as Novas Gerações de Vaneigem, e na Internacional
Situacionista - Antologia - são tão impiedosamente
lúcidos que chegam a entusiasmar, embora nunca
tenham condicionado o apoio às regras dos conselhos de
trabalhadores e à abolição do trabalho. Melhor a
incongruência deles, entretanto, do que qualquer versão
existente de esquerdismo, cujos devotos pretendem ser
os últimos campeões do trabalho, já que sem trabalho
não haveria trabalhadores, e, sem trabalhadores, quem
restaria para a esquerda se organizar?
Portanto, os abolicionistas estarão praticamente
por conta própria. Ninguém pode dizer no que resultará
liberar a energia criativa embotada pelo trabalho. Tudo
pode acontecer. O cansativo problema do debate entre
liberdade e necessidade, com suas nuances teológicas,
se resolve na prática quando a produção de valores de
uso é coextensiva à fruição de atividades lúdicas
deliciosas. A vida se tornará um jogo, ou melhor, muitos
jogos, mas não um jogo sem resultados como é agora.
Um encontro sexual bem-sucedido é o paradigma da
atividade produtiva. Os participantes potencializam os
prazeres um do outro, ninguém faz pontos e todos
ganham. Quanto mais você dá, mais você recebe. Na
vida lúdica, o melhor do sexo vai se diluir na melhor
parte do cotidiano. A brincadeira generalizada leva à
libidinização da vida . O sexo, por sua vez, poderá se
tornar menos urgente e desesperado, e mais lúdico. Se
jogarmos as cartas certas, todos poderemos obter mais
da vida do que colocamos nela; mas só se jogarmos a
sério. Trabalhadores do mundo... relaxem!

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Bob Black

Sobre o Autor:

"Bob Black é um sátiro anarquista, corrosivo e


subversivo como esta mistura pode ser... Seu
humor visionário provocativo tem a ferocidade e o
tempero de um Mark Twain ou um Ambrose
Bierce." - Booklist

"Uma corda esticada sobre o abismo entre


Friedrich Nietzsche e Sid Vicious." - David
Ramsey-Steele

"Black supera qualquer ensaísta politico vivo... o


trocadilho mais rápido do Oeste." - Hakim Bey

Bob Black rejeitou desde o início os


caminhos habituais à 'intelectualidade séria'. Ao
invés disso, tornou-se famoso pelos cartazes
anarquistas/situacionistas/absurdistas que criou à
frente da "Última Internacional", entre 1977 e
1983. Publicou a Abolição do Trabalho e Outros
Ensaios (1985), Fogo Amigo (1992), Abaixo do
Subterrâneo (1994) e Anarquia Depois do
Esquerdismo (1996) sendo um dos pioneiros da
divulgação do situacionismo e da crítica a
esquerda cizuda nos Estados Unidos. Sua
capacidade singular de criar jogos de palavras,
aliada ao humor ácido e ao conhecimento teórico
faz dele um dos grandes nomes do anarquismo
heterodoxo da atualidade.22
22Textos retirados do site Protopia (http://pt-br.protopia.wikia.com).
Agradecemos aos tradutores e alimentadores do site.

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