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Sobre a Atenção Básica.

Os cuidados primários de saúde no contexto da


Reforma Sanitária brasileira

Carlos Botazzo1

Como afirmei num artigo recentemente publicado (Botazzo, 2006), alguns


conceitos ao longo do tempo tornam-se problemáticos, isto é, ao invés de
propiciarem escalas de problematizações da realidade tornam-se eles mesmos
um problema teórico e prático. É que qualquer conceito ou elaboração teórica
deve antes de mais nada funcionar como “ferramenta”, seja para a produção
de novos conceitos ou idéias seja para a operacionalização de políticas, e com
este de Atenção Básica vem parecendo ter tomado o mesmo destino.

Nestes últimos meses, no âmbito do projeto de avaliação e monitoramento da


Atenção Básica, prevista no Proesf Fase III e que o Instituto de Saúde coordena
em São Paulo, essa questão foi colocada em muitos momentos, e os gestores
estaduais e técnicos nas coordenadorias de saúde são enfáticos quando
declaram que é preciso aprofundar o entendimento de tal categoria, e com isto
indicam ou ao menos tentam vincular alguns problemas práticos com a teoria
que hoje sustenta ou deveria sustentar a organização e a oferta de serviços de
saúde.

Admitir extensamente tal hipótese equivaleria dizer que as pessoas fazem mais ou
menos o que têm que fazer porque entenderam mais ou menos o que era para
ser feito. A despeito de que nos soe inverossímel é, todavia, conveniente não
abandonarmos por completo essa perspectiva.

Não que não haja uma definição do se está falando. Ao contrário, Atenção
Básica é palavra-chave no Sistema Único de Saúde e contam-se às dezenas
artigos e textos técnicos dedicados a elucidar o conteúdo teórico-prático do seu
enunciado.

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Pesquisador-científico do Instituto de Saúde de São Paulo. Texto preparado para a 11ª Sessão dos
“Seminários de Pesquisa em Saúde Bucal Coletiva, Integrando Serviços”, do Observatório de Saúde Bucal
Coletiva, apresentado em 22 de setembro de 2006.
Por outro lado, contam-se aos milhares as publicações internacionais sobre
cuidados primários ou atenção básica, e igualmente sobre promoção da saúde
ou políticas saudáveis, e no entanto resulta ao pesquisador ou ao leitor
interessado a impressão de que não se estaria tratando das mesmas coisas lá e
cá. Mas este seria, como em outros casos que concernem à saúde pública, um
problema brasileiro, porque a expressão Atenção Básica só existe em nosso país,
o que torna difícil comparar perspectivas e análises feitas em outros países.

Como as interfaces entre termos análogos são imediatas, e falamos nas


estratégias de promoção da saúde ou de cuidados primários, iniciarei retomando
alguns enunciados clássicos e sempre referências obrigatórias quando se tratam
dos serviços públicos de saúde. Acrescentarei algumas considerações sobre os
pressupostos políticos e ideológicos que marcaram o percurso da Reforma
Sanitária brasileira, sobretudo os que conduziram a crítica à concepção do
adoecimento humano como fenômeno natural, e concluirei com breves
comentários ao conceito de Atenção Básica em uso no Brasil.

Lembro que o movimento da Reforma Sanitária ele todo se estruturou tendo


como base a idéia da determinação social (relação estrutura-sujeito; sujeito-
história; estrutura-devir). Esta pode ser considerada como uma categoria forte do
ponto de vista heurístico, enquanto as derivações opostas do mesmo ponto de
vista (hábitos ou comportamentos individuais e práticas de risco) seriam fracas,
isto é, teriam menor capacidade explicativa e de generalização. Como desafio
teórico-político adicional, ponho a seguinte questão: teriam os brasileiros
sucumbido às fórmulas neoliberais no que concerne ao processo saúde-doença e
a correlata organização dos serviços?

Cuidados primários de saúde

Cuidados primários dizem respeito aos principais problemas de saúde da


comunidade, por meio dos quais são proporcionados serviços de proteção, cura
e reabilitação, conforme as necessidades. Incluem educação, prevenção e
controle de doenças transmissíveis e infecciosas, endêmicas ou epidêmicas,

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alimentação adequada, saneamento, provisão de água potável, cuidados de
saúde materno-infantil e planejamento familiar, tratamento adequado de
doenças e lesões comuns e acesso a medicamentos essenciais (OMS, 1978).

Esta enunciação clássica de cuidados primários transita com grande facilidade


no campo da saúde em todo o mundo e ainda hoje a Conferência de Alma-Ata,
a despeito de que se tenha realizado no longínquo século XX e num país
desaparecido, é o evento internacional mais lembrado pelos trabalhadores da
saúde, gestores, estudantes etc em seu trabalho cotidiano, e citação obrigatória
em artigos e outros textos sanitários.

Como acontece freqüentemente nesses casos, os pressupostos nos quais o


documento se assenta, bem como suas considerações finais, são elididas no
comentário erudito e depois não fazem parte do senso comum, de tal modo que
o conceito se resume a uma frase e a argumentação política que cerca a
Declaração de Alma-Ata passa despercebida.

De fato, a Conferência enfatizou a saúde como um direito humano fundamental


e a mais importante meta social mundial, que os governos têm responsabilidade
pela saúde dos seus povos, que existem desigualdades chocantes e inaceitáveis
na situação de saúde entre nações e internamente nos países, que o nível de
saúde de todos os povos do mundo deve ser tal que lhes permita levar uma vida
social e economicamente produtiva, que os cuidados primários são cuidados
essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas,
cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao
alcance universal de indivíduos e famílias, que esta oferta deve-se dar mediante
plena participação social e a um custo que a comunidade possa suportar, que
são parte integrante tanto do sistema de saúde do qual constituem a função
central e o foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico da
comunidade, que a promoção e a proteção da saúde dos povos é essencial
para o contínuo desenvolvimento econômico e social e contribui para a melhor
qualidade de vida e para a paz mundial e, por último mas não esgotando o
assunto, que com a extensão de tais cuidados poder-se-á atingir um nível
aceitável de saúde para todos os povos mediante o melhor e mais completo uso

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dos recursos mundiais, dos quais uma parte considerável é atualmente gasta em
armamentos e conflitos militares. Para tanto, a Conferência concitou à ação
internacional e nacional urgente e eficaz para que os cuidados primários de
saúde fossem introduzidos, desenvolvidos e mantidos “de acordo com a letra e o
espírito desta Declaração”.

Estas palavras conservam o vigor e a atualidade transcorridos 28 anos,


completados agora em 12 de setembro, e nos conduzem a refletir sobre as
relações entre saúde e política porque, na singeleza de sua formulação, os
cuidados primários escondem a complexidade de que se revestem e que os
tornam recorrentemente objeto de discussões e controvérsias, mesmo em países
com políticas de saúde estruturadas, como é o caso brasileiro.

Devíamos pensar se a despolitização da saúde que vivenciamos de modo agudo


nestes últimos anos, despolitização que se dá como medicalização e
tecnificação do SUS, não seria reflexo da manutenção das desigualdades sociais,
políticas e econômicas em nossa sociedade, pois a despeito dos formidáveis
avanços que verificamos em nosso sistema público de saúde, esbarramos o
tempo todo com a insuficiência de recursos e problemas gerenciais e
administrativos de monta, além das opções estratégicas que foram adotadas na
última década. A própria OMS reconhece que os cuidados primários não tiveram
o desenvolvimento mundial esperado. O relatório do Secretário Geral, divulgado
por ocasião dos 25 anos de Alma-Ata, reconhece que em muitos Estados-
membros a implementação dos cuidados primários é incompleta ou não atinge
os resultados esperados, que os problemas podem ser atribuídos à ausência de
diretivas práticas, a lacunas no nível da direção e à falta de engajamento
político, a recursos insuficientes ou aos propósitos irrealistas suscitados por tal
modelo de cuidados. O fato, continua o relatório, que os cuidados primários de
saúde não atinjam a população alvo, isto é, as populações pobres e grupos
desfavorecidos, se explica igualmente por um certo número de outros fatores
políticos e sócio-econômicos complexos (OMS, 2003). Ou seja, com George Bush
ou sem ele, a saúde pública continua a ser perpassada pelos conflitos políticos,
econômicos e ideológicos, e a bascular entre Reforma e Revolução.

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Promoção da saúde

Na esteira da Declaração de Alma-Ata, a OMS promoveu algumas conferências


internacionais com vistas a discutir estratégias que poderiam favorecer ou
propiciar a operacionalização dos cuidados primários. Destas conferências,
merece destaque especial a primeira, realizada em Ottawa em 1986, pois nela se
toma originalmente a promoção da saúde como eixo e na Carta promulgada se
definem cinco campos de ação: políticas públicas saudáveis, ambientes
favoráveis à saúde, reforço da ação comunitária, desenvolvimento de
habilidades pessoais e reorientação do sistema de saúde. As conferências
subseqüentes (Adelaide, 1988; Sundsvall, 1991 e Jacarta, 1997) discutiram os três
primeiros campos, e os relatórios produzidos permitem inferir as mudanças
conceituais e políticas que aos poucos foram sendo introduzidos no arcabouço
dos cuidados primários (Buss, 2000).

Promoção da saúde tem sua história inequivocamente vinculada a Hugh Leavell


e Gurney Clark, respectivamente da Harvard School of Public Health e da
Columbia School of Public Health. Eles assumem uma definição formulada por
Winslow em 1920, o qual dizia que “saúde pública é a ciência e a arte de evitar
doenças, prolongar a vida e desenvolver a saúde física, mental e a eficiência”, e
simplesmente substituem o verbo “desenvolver” por “promover”, e então
propõem o que para eles seria a definição de medicina preventiva, ficando assim
o enunciado: “saúde pública é a ciência e a arte de evitar doenças, prolongar a
vida e promover a saúde física e mental e a eficiência” (Leavell & Clark, 1976).

Não há tempo nesta apresentação para comentar os significados e as


conseqüências deste enxerto lingüístico, bastando por ora assinalar que existem
diferenças práticas notáveis entre a ação de desenvolver e a de promover.
Porém, realizada a transmutação, logo adiante apresentam o enunciado
decorrente com o qual firmarão toda a sua famosa obra e os não menos famosos
níveis de prevenção: os objetivos finais de toda atividade médica, odontológica
e de saúde pública, dirão eles, “seja ela exercida no consultório, na clínica, no

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laboratório ou na comunidade, são a promoção da saúde, a prevenção de
doenças e o prolongamento da vida”. Toda essa atividade, finalmente, será
cercada pelo conceito nuclear de história natural de qualquer doença no
homem, e esta naturalização justamente é que marca o caráter reacionário da
obra, posteriormente denunciado pelo movimento da Reforma Sanitária. A ele se
contrapôs o da determinação social.

Apesar de reputado como reacionário, tal conceito não foi completamente


abandonado pelos profissionais de saúde. Seria honesto admitir que a obra de
Leavell & Clark não é exatamente e nem completamente reacionária; ao
contrário, marca um inequívoco avanço para as práticas de saúde dos
americanos, se levamos em conta as características do sistema nacional de
saúde ianque, e busca comprometer os praticantes privados do seu país com a
situação e as necessidades de saúde da população. Menos que reacionária, é
antes ingênua. Transparece no texto a correspondência entre “natural” e
“lógico”, e então é como se estivessem dizendo: “é lógico que uma doença
dada qualquer, se deixada ao seu livre curso, assumirá tais características
previsíveis que poderão conduzir a certo número de eventos, até chegar a um
dado desfecho também ele previsível”. Eles se baseiam no conhecimento clínico
e na fisio-patologia experimental e só assim podem dizer da “lógica” com que
evoluirá determinada patologia, como que uma certa racionalidade se
acercasse das doenças.

Em certo sentido, nada muito diferente das considerações de Canguilhem (1988),


para quem a doença tem curso previsível e o patológico não se opõe ao normal
mas é, antes, sujeito a leis gerais. Além disto, Leavell & Clark pensam a doença
como multicausada e em processo, atribuem grande influência aos fatores que
interagem na pré-patogênese das doenças - grosseiramente sócio-econômico-
culturais-políticos -, afirmam estar aí no tratamento destes fatores o xis da questão
e a realização acabada da medicina preventiva, e são esses objetos que
concernem à promoção. Junto com a proteção específica, constitui um primeiro
nível, dito de prevenção primária.

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Alguns críticos insistem em que a fragilidade deste modelo é que ele serviria
apenas para as doenças transmissíveis mas não para as crônicas e
degenerativas, crítica que me parece imprópria. No texto mesmo são fornecidos
abundantes exemplos de aplicação dos três níveis de prevenção para doenças
crônicas. O caso é que os autores arrolam dentre os tais fatores quase que a vida
social do homem por inteiro – trabalho, educação, renda, salubridade,
habitabilidade, sociabilidade – justo esses fatores que não se deixam dominar por
qualquer política e que pudemos identificar acima no caso dos embaraços dos
cuidados primários, não bastasse a experiência que todos nós temos com eles,
pois esses tais fatores são presentes no cotidiano da saúde aqui e agora. Outra
vez uma concepção ingênua.

Chamemos esses fatores, mais o homem junto, de determinantes sociais do


processo saúde–doença, a prata da casa da Saúde Coletiva. Como campo de
práticas de saúde e de investigação, a Saúde Coletiva não pode grande coisa
com esses determinantes, é verdade, mas concorda que é neles que se funda a
saúde no homem. E, se tomados na esfera da determinação, Saúde Coletiva e
Cuidados Primários de Saúde não se excluem nem se opõem, antes são
condição de possibilidade um para o outro.

Deixemos Leavell & Clark em paz. A promoção da saúde só será específico


objeto de interesse dos formuladores de políticas muito tempo depois, quando já
o Consenso de Washington ganhava força e dimensão internacionais. Com a
Conferência de Ottawa sobre promoção da saúde se inicia a viragem sutil que
toma as práticas dos sujeitos como referência central para a formulação de
políticas de saúde, e não mais a “sociedade”. Agora a promoção é enunciada
como o processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria da
sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle
deste processo, isto é, o desenvolvimento de conhecimentos, atitudes e
comportamentos favoráveis ao cuidado da saúde tanto em nível individual
quanto coletivo (Buss, 2000).

Valia que se debruçasse melhor sobre este e os demais relatórios para que não se
cometam erros de interpretação grosseiros. Mas o caso é que de então para cá

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emergem, ganham força e prestígio propostas e dispositivos focados nos
“sujeitos”, cujos significados são bem traduzidos pelo binômio: os profissionais da
saúde devem ser mais humanos; os pacientes mais responsáveis. Foi fundamental
para essa virada a redescoberta do Relatório Lalonde e a introdução das suas
principais categorias e justificativas na discussão contemporânea sobre políticas
de saúde. Marc Lalonde era Ministro da Saúde do Canadá quando, em 1974,
preocupado com a situação de saúde dos canadenses e com os crescentes
gastos com serviços de cura e reabilitação, propôs novas estratégias para o
enfrentamento dos problemas do sistema nacional de saúde daquele país. Mais
falado do que lido, o texto é a expressão das responsabilidades de um homem
de Estado. Ele se debruça sobre os determinantes da saúde e os distribui em 4
categorias: a biologia humana; o ambiente; os estilos de vida; e a organização
da assistência. É por meio da análise de tais determinantes que Lalonde dará
ênfase à promoção da saúde e proporá a reorganização do sistema público
canadense com ênfase no médico de família.

Nesta altura Alma-Ata não havia ocorrido, os Estados Unidos ainda se contorciam
com os resultados da Guerra do Vietnã e no Brasil a ditadura militar corria solta e
se preparava para a distensão lenta, gradual e segura, Cecília Donnangelo
preparava os originais do Saúde e Sociedade e, junto com pequeno grupo de
sanitaristas, iniciava a crítica à política nacional de saúde. Nem aqui nem no resto
do mundo se teve maiores cuidados ou preocupações com as preocupações
dos canadenses. No entanto, o relatório veio a cumprir seu papel histórico no
Brasil, quase duas décadas depois de nascido, porque ele, e de um certo modo,
expressava o ponto de vista do Estado acerca do processo saúde-doença e, ao
retirar os conflitos sociais da arena, fornecia ao governo brasileiro um modelo
político e tecnologicamente viável, justo no momento em que o Brasil
desregulamentava sua economia e se abria por completo à reengenharia neo-
liberal.

Esta tese é, sem dúvida, sujeita a controvérsias, mas desde já quero fazer o
registro e aguardar seu posterior desenvolvimento. Para os propósitos atuais, não
deixa de ter significado a preocupação introdutória de Lalonde com os

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canadenses, lá onde ele diz que é mais fácil convencer uma pessoa a pagar
uma consulta ao médico que moderar seus hábitos insidiosos, e se queixa do
estilo de vida dos seus concidadãos que, livres, têm por costume escolher o
próprio veneno (Lalonde, 1974).

Nada mais eloqüente para a criminalização do paciente. Ou, como diz Buck
(1985), na conclusão da crítica devastadora que faz ao relatório, a “ênfase
excessiva na responsabilidade individual para a saúde tem por efeito incrementar
o sentido de alienação entre pessoas que já sofrem por sua posição marginal na
sociedade. Isto, literalmente, é ajuntar ao insulto a injúria”.

Atenção básica

A atenção básica significa alguma coisa situada entre a promoção da saúde e a


reabilitação, inclusive, se tomamos os níveis de prevenção de Leavell e Clark
como referência. Assim, iria desde prover condições ambientais, nutricionais e
educacionais adequados e exames preventivos às pessoas e grupos sociais, até a
cura e a reabilitação dos acometidos.
O Ministério da Saúde brasileiro, pesando a realidade nacional e os princípios
organizativos do Sistema Único de Saúde, considerando que Atenção Primária,
mesmo amplamente aceita em todo o mundo, pode se prestar a reduções ou
que seja pouco efetiva na resolução dos problemas de saúde da população, e
ainda que há necessidade de construir identidade institucional própria, propôs
outra denominação e formulou o seguinte enunciado: “Atenção Básica é um
conjunto de ações de saúde que englobam a promoção, prevenção,
diagnóstico, tratamento e reabilitação. É desenvolvida através do exercício de
práticas gerenciais e sanitárias, democráticas e participativas, sob a forma de
trabalho em equipe, dirigidas a populações de territórios (território-processo) bem
delimitados, pelas quais assumem responsabilidade. Utiliza tecnologias de
elevada complexidade e baixa densidade, que devem resolver os problemas de
saúde das populações (de maior freqüência e relevância). É o contato
preferencial dos usuários com o sistema de saúde. Orienta-se pelos princípios da

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universalidade, acessibilidade, continuidade, integralidade, responsabilização,
humanização, vínculo, eqüidade e participação social” (MS, 2003).
O enunciado é de 2003, com a particularidade de que o SUS se organizava antes
dele há mais de uma década, caso não de todo raro onde milhares de pessoas
praticam determinada coisa sem que dela se tenha elaborado o conceito.
Ajunta-se depois que tal atenção se desenvolve na rede básica de serviços de
saúde, à qual compete, para além da promoção e da proteção específica,
identificar e tratar ou então prover o nível ótimo de atendimento que o caso
requer, encaminhando para serviços especializados (Instituto de Saúde, 2006).
Deixarei aos meus colegas de mesa a tarefa de comentar mais extensamente
este conceito, e seguramente o Prof. Eugênio Vilaça e o Jorge Kayano saberão
aproveitar a oportunidade e nos enriquecerão com suas contribuições. Por
prudência, no entanto, tomarei para mim caminho menos espinhoso e finalizarei
estas notas.
O Observatório de Saúde Bucal Coletiva propiciou condições extremamente
favoráveis para a prática de certa escuta institucional, constituídas nas reuniões
técnicas e políticas com equipes e coordenadores municipais de saúde bucal,
gestores locais e regionais e usuários, e também propiciou tal escuta o Proesf III,
coordenado pelo Instituto de Saúde, e que trata exatamente de avaliar e
monitorar a atenção básica no SUS. São nesses espaços que emergiram duas ou
três observações que julgo relevantes neste contexto.
De início, e como ponto de partida para esta reflexão, toma-se Atenção Básica
como um conceito-ferramenta. Neste preciso sentido, é sua capacidade
operativa que deve ser realçada. Desde quando, na última década, se começou
a falar em AB, esta definição não foi aceita com tranqüilidade, estando sujeita a
controvérsias. Mas antes deveria ser relembrada a distinção conceitual e prática
entre atenção à saúde e assistência à saúde, sendo que esta última se dirige aos
indivíduos em suas necessidades clínicas, enquanto atenção, já englobando a
dimensão clínica, dirá respeito à prevenção de agravos (Botazzo et al, 1988;
Narvai e Frazão, 1994).
Uso o termo prevenção singelamente, do latim prævenio, prævenire (preceder,
tomar a dianteira, antecipar ou frustar), e aqui se radicam as possibilidades

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práticas da educação e da promoção da saúde, da proteção específica, do
diagnóstico precoce, do tratamento e da limitação do dano e da reabilitação,
em escalas ou níveis crescentes. Sem dúvida, é melhor não adoecer; porém, se
adoecemos, a intervenção precoce ou ainda que feita numa altura qualquer do
processo, tem a possibilidade de evitar a piora do quadro e limitar o dano. Neste
sentido, e ainda que tenham se equivocado no geral, resgato os três níveis de
prevenção e os cinco níveis de aplicação de Leavell & Clark, mesmo porque têm
o mérito de não isolar a prevenção numa ponta do processo mas, ao contrário,
tornam a prevenção uma prática universal posto que sempre é possível evitar
maiores danos em qualquer altura de uma doença.
Dever-se-ia remover do conceito do MS a colocação “que devem resolver a
maioria dos problemas de saúde da população (de maior freqüência e
relevância)”, pois é resultado esperado, ou produto, e assim não deveria fazer
parte do enunciado geral. Por absurdo, a ninguém ocorreria montar operações
de tal envergadura “para não resolver”. Além disso, se o enunciado explicita uma
“maioria de problemas” deveria igualmente explicitar “a minoria” deles que não
vem a ser objeto desta atenção. Ainda quanto a esta inclusão – isto é, a de um
resultado dentro do enunciado geral – é preciso esclarecer do ponto de vista de
qual Sujeito se está considerando freqüência e relevância, se do Gestor ou se do
Paciente, pois há diferenças significativas entre ambos esses sujeitos e podem não
coincidir as necessidades de um e do outro, ou o quê seja freqüência e
relevância para um e outro.
Mas só é possível pensar desta forma se aceitamos um sistema de saúde com
acesso universal e atendimento integral e equânime. O que complica numa
atenção assim pensada é imediatamente qualificá-la como básica, termo que
entre nós tem significado “nivelar por baixo” e também basilar, um primeiro nível
ou estágio, a base sobre a qual algo se assenta. É como se alguém se
perguntasse: e haveria SUS depois da Atenção Básica? Continuariam o acesso
universal, o atendimento integral e a eqüidade presentes e efetivos neste outro
lugar construído além da base, isto é, o prédio todo, lá onde se encontram as
ações de média e alta complexidade?

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O caso é que o enunciado de Atenção Básica se resolveria pela crítica à primeira
parte da enunciação, quando exatamente se afirma tratar-se de um conjunto de
ações de saúde. Não há para quê nem quais seriam suas finalidades sociais,
nenhuma transcendência. São ações de saúde voltadas para problemas de
saúde, e, assim, limítrofes na sua apreensão medicalizada. E medicalizadas ficam
a promoção da saúde tanto quanto são naturalmente medicalizados os
esquemas de proteção específica e o diagnóstico precoce. Os cuidados
primários, ao contrário, são definidos como articulados ou necessários às
condições econômicas e sociais, e já sabemos o quanto custa mover as
estruturas colocadas neste nível de determinação. Daí decorreria seu fracasso ou
seu êxito parcial. Atenção Básica, por sua vez, protege-se das injunções políticas
e ideológicas da saúde pública, como diria Donnangelo (1983), o que quer dizer
proteger-se dos conflitos da vida social genérica, porque, na forma de ações de
saúde, deixa do lado de fora o que não é conveniente ao sistema.
Não há como escapar a esses conflitos porque, queiramos ou não, os conflitos
sociais, que vêm a ser o doente com sua doença e tudo aquilo de que ele é o
portador e o denunciante, transpassam a porta de entrada do sistema – qualquer
porta – e no seu interior mesmo promovem o desarranjo da sua ordem, e não há
trabalhador da saúde que não sofra a pressão do entorno onde se localiza sua
unidade de trabalho (Botazzo, 1999).
Parece que foi deste modo que conseguimos conciliar tendências, o que apenas
mantém em certa artificialidade o conceito de Atenção Básica. O Sistema Único
de Saúde foi concebido em toda sua generosidade, visto no âmago de um
Estado democrático e inclusor, como parte de um projeto nacional e de
sociedade cuja meta fundamental era a superação das desigualdades sociais,
justo no momento em que o mundo se encaminhava para o outro lado. Entre
1985 e 1988, enquanto cuidávamos de redemocratizar o país e construir uma
nova constituição, prosperava a doutrina Reagan-Thatcher e já davam os
primeiros frutos as políticas neo-liberais e a imposição do Estado-Mínimo.
E hoje, num momento da nossa história em que não há projeto de Nação nem de
Sociedade, mas predominam as regras do Mercado, e quando as práticas
republicanas sucumbem ao mais vulgar patrimonialismo, devemos nos indagar

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sobre o futuro do SUS. Como afirma Mendes (1996), “o SUS, entendido como
processo social em marcha, não se iniciou em 1988 (...) nem deve ter um
momento definido para seu término, especialmente se esse tempo está dado por
avaliações equivocadas que apontam para o fracasso dessa proposta. Assim, o
SUS nem começou ontem e nem termina hoje”.
A Conferência de Alma-Ata explicitou a necessidade de prover o adequado
financiamento dos cuidados primários e não deixou de considerar que os custos
sociais para promover a boa saúde poderiam ser sustentados por meio de
esforços gerais, nacionais e internacionais, com uma nova ordem mundial
baseada na paz e na cooperação entre os povos. Foi além, ao considerar que
por meio do desarmamento se gerariam recursos vultosos para promover o
desenvolvimento e o bem estar da sociedade.
O Brasil não apresenta gastos militares significativos nem se acha em estado de
beligerância com seus vizinhos, de modo que a alguns ocorreria pensar que a nós
este raciocínio não se aplica. No entanto, se os gastos militares dos países centrais
aumentam incessantemente, aumentam sem parar os gastos brasileiros com a
dívida pública. Hoje, gasta-se quase o dobro com o pagamento de juros em
relação ao que é consumido pelos serviços de saúde, com a transferência de
bilhões de dólares anualmente ao sistema financeiro e aos especuladores
internacionais.
É do couro que sai a correia, são os pobres que sustentam os ricos, são os países
periféricos que sustentam os países centrais, pela transferência dos seus
excedentes agrícolas e de parte considerável da poupança nacional. Enquanto
por aqui não há guerra, ajudamos a sustentar guerras alheias, enquanto
mantemos nossa seguridade social estropiada, garantimos a seguridade social
dos países mais ao norte.
Por enquanto, por aqui não há guerra....

Muito obrigado a todos!

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