Carlos Botazzo1
Admitir extensamente tal hipótese equivaleria dizer que as pessoas fazem mais ou
menos o que têm que fazer porque entenderam mais ou menos o que era para
ser feito. A despeito de que nos soe inverossímel é, todavia, conveniente não
abandonarmos por completo essa perspectiva.
Não que não haja uma definição do se está falando. Ao contrário, Atenção
Básica é palavra-chave no Sistema Único de Saúde e contam-se às dezenas
artigos e textos técnicos dedicados a elucidar o conteúdo teórico-prático do seu
enunciado.
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Pesquisador-científico do Instituto de Saúde de São Paulo. Texto preparado para a 11ª Sessão dos
“Seminários de Pesquisa em Saúde Bucal Coletiva, Integrando Serviços”, do Observatório de Saúde Bucal
Coletiva, apresentado em 22 de setembro de 2006.
Por outro lado, contam-se aos milhares as publicações internacionais sobre
cuidados primários ou atenção básica, e igualmente sobre promoção da saúde
ou políticas saudáveis, e no entanto resulta ao pesquisador ou ao leitor
interessado a impressão de que não se estaria tratando das mesmas coisas lá e
cá. Mas este seria, como em outros casos que concernem à saúde pública, um
problema brasileiro, porque a expressão Atenção Básica só existe em nosso país,
o que torna difícil comparar perspectivas e análises feitas em outros países.
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alimentação adequada, saneamento, provisão de água potável, cuidados de
saúde materno-infantil e planejamento familiar, tratamento adequado de
doenças e lesões comuns e acesso a medicamentos essenciais (OMS, 1978).
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dos recursos mundiais, dos quais uma parte considerável é atualmente gasta em
armamentos e conflitos militares. Para tanto, a Conferência concitou à ação
internacional e nacional urgente e eficaz para que os cuidados primários de
saúde fossem introduzidos, desenvolvidos e mantidos “de acordo com a letra e o
espírito desta Declaração”.
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Promoção da saúde
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laboratório ou na comunidade, são a promoção da saúde, a prevenção de
doenças e o prolongamento da vida”. Toda essa atividade, finalmente, será
cercada pelo conceito nuclear de história natural de qualquer doença no
homem, e esta naturalização justamente é que marca o caráter reacionário da
obra, posteriormente denunciado pelo movimento da Reforma Sanitária. A ele se
contrapôs o da determinação social.
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Alguns críticos insistem em que a fragilidade deste modelo é que ele serviria
apenas para as doenças transmissíveis mas não para as crônicas e
degenerativas, crítica que me parece imprópria. No texto mesmo são fornecidos
abundantes exemplos de aplicação dos três níveis de prevenção para doenças
crônicas. O caso é que os autores arrolam dentre os tais fatores quase que a vida
social do homem por inteiro – trabalho, educação, renda, salubridade,
habitabilidade, sociabilidade – justo esses fatores que não se deixam dominar por
qualquer política e que pudemos identificar acima no caso dos embaraços dos
cuidados primários, não bastasse a experiência que todos nós temos com eles,
pois esses tais fatores são presentes no cotidiano da saúde aqui e agora. Outra
vez uma concepção ingênua.
Valia que se debruçasse melhor sobre este e os demais relatórios para que não se
cometam erros de interpretação grosseiros. Mas o caso é que de então para cá
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emergem, ganham força e prestígio propostas e dispositivos focados nos
“sujeitos”, cujos significados são bem traduzidos pelo binômio: os profissionais da
saúde devem ser mais humanos; os pacientes mais responsáveis. Foi fundamental
para essa virada a redescoberta do Relatório Lalonde e a introdução das suas
principais categorias e justificativas na discussão contemporânea sobre políticas
de saúde. Marc Lalonde era Ministro da Saúde do Canadá quando, em 1974,
preocupado com a situação de saúde dos canadenses e com os crescentes
gastos com serviços de cura e reabilitação, propôs novas estratégias para o
enfrentamento dos problemas do sistema nacional de saúde daquele país. Mais
falado do que lido, o texto é a expressão das responsabilidades de um homem
de Estado. Ele se debruça sobre os determinantes da saúde e os distribui em 4
categorias: a biologia humana; o ambiente; os estilos de vida; e a organização
da assistência. É por meio da análise de tais determinantes que Lalonde dará
ênfase à promoção da saúde e proporá a reorganização do sistema público
canadense com ênfase no médico de família.
Nesta altura Alma-Ata não havia ocorrido, os Estados Unidos ainda se contorciam
com os resultados da Guerra do Vietnã e no Brasil a ditadura militar corria solta e
se preparava para a distensão lenta, gradual e segura, Cecília Donnangelo
preparava os originais do Saúde e Sociedade e, junto com pequeno grupo de
sanitaristas, iniciava a crítica à política nacional de saúde. Nem aqui nem no resto
do mundo se teve maiores cuidados ou preocupações com as preocupações
dos canadenses. No entanto, o relatório veio a cumprir seu papel histórico no
Brasil, quase duas décadas depois de nascido, porque ele, e de um certo modo,
expressava o ponto de vista do Estado acerca do processo saúde-doença e, ao
retirar os conflitos sociais da arena, fornecia ao governo brasileiro um modelo
político e tecnologicamente viável, justo no momento em que o Brasil
desregulamentava sua economia e se abria por completo à reengenharia neo-
liberal.
Esta tese é, sem dúvida, sujeita a controvérsias, mas desde já quero fazer o
registro e aguardar seu posterior desenvolvimento. Para os propósitos atuais, não
deixa de ter significado a preocupação introdutória de Lalonde com os
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canadenses, lá onde ele diz que é mais fácil convencer uma pessoa a pagar
uma consulta ao médico que moderar seus hábitos insidiosos, e se queixa do
estilo de vida dos seus concidadãos que, livres, têm por costume escolher o
próprio veneno (Lalonde, 1974).
Nada mais eloqüente para a criminalização do paciente. Ou, como diz Buck
(1985), na conclusão da crítica devastadora que faz ao relatório, a “ênfase
excessiva na responsabilidade individual para a saúde tem por efeito incrementar
o sentido de alienação entre pessoas que já sofrem por sua posição marginal na
sociedade. Isto, literalmente, é ajuntar ao insulto a injúria”.
Atenção básica
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universalidade, acessibilidade, continuidade, integralidade, responsabilização,
humanização, vínculo, eqüidade e participação social” (MS, 2003).
O enunciado é de 2003, com a particularidade de que o SUS se organizava antes
dele há mais de uma década, caso não de todo raro onde milhares de pessoas
praticam determinada coisa sem que dela se tenha elaborado o conceito.
Ajunta-se depois que tal atenção se desenvolve na rede básica de serviços de
saúde, à qual compete, para além da promoção e da proteção específica,
identificar e tratar ou então prover o nível ótimo de atendimento que o caso
requer, encaminhando para serviços especializados (Instituto de Saúde, 2006).
Deixarei aos meus colegas de mesa a tarefa de comentar mais extensamente
este conceito, e seguramente o Prof. Eugênio Vilaça e o Jorge Kayano saberão
aproveitar a oportunidade e nos enriquecerão com suas contribuições. Por
prudência, no entanto, tomarei para mim caminho menos espinhoso e finalizarei
estas notas.
O Observatório de Saúde Bucal Coletiva propiciou condições extremamente
favoráveis para a prática de certa escuta institucional, constituídas nas reuniões
técnicas e políticas com equipes e coordenadores municipais de saúde bucal,
gestores locais e regionais e usuários, e também propiciou tal escuta o Proesf III,
coordenado pelo Instituto de Saúde, e que trata exatamente de avaliar e
monitorar a atenção básica no SUS. São nesses espaços que emergiram duas ou
três observações que julgo relevantes neste contexto.
De início, e como ponto de partida para esta reflexão, toma-se Atenção Básica
como um conceito-ferramenta. Neste preciso sentido, é sua capacidade
operativa que deve ser realçada. Desde quando, na última década, se começou
a falar em AB, esta definição não foi aceita com tranqüilidade, estando sujeita a
controvérsias. Mas antes deveria ser relembrada a distinção conceitual e prática
entre atenção à saúde e assistência à saúde, sendo que esta última se dirige aos
indivíduos em suas necessidades clínicas, enquanto atenção, já englobando a
dimensão clínica, dirá respeito à prevenção de agravos (Botazzo et al, 1988;
Narvai e Frazão, 1994).
Uso o termo prevenção singelamente, do latim prævenio, prævenire (preceder,
tomar a dianteira, antecipar ou frustar), e aqui se radicam as possibilidades
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práticas da educação e da promoção da saúde, da proteção específica, do
diagnóstico precoce, do tratamento e da limitação do dano e da reabilitação,
em escalas ou níveis crescentes. Sem dúvida, é melhor não adoecer; porém, se
adoecemos, a intervenção precoce ou ainda que feita numa altura qualquer do
processo, tem a possibilidade de evitar a piora do quadro e limitar o dano. Neste
sentido, e ainda que tenham se equivocado no geral, resgato os três níveis de
prevenção e os cinco níveis de aplicação de Leavell & Clark, mesmo porque têm
o mérito de não isolar a prevenção numa ponta do processo mas, ao contrário,
tornam a prevenção uma prática universal posto que sempre é possível evitar
maiores danos em qualquer altura de uma doença.
Dever-se-ia remover do conceito do MS a colocação “que devem resolver a
maioria dos problemas de saúde da população (de maior freqüência e
relevância)”, pois é resultado esperado, ou produto, e assim não deveria fazer
parte do enunciado geral. Por absurdo, a ninguém ocorreria montar operações
de tal envergadura “para não resolver”. Além disso, se o enunciado explicita uma
“maioria de problemas” deveria igualmente explicitar “a minoria” deles que não
vem a ser objeto desta atenção. Ainda quanto a esta inclusão – isto é, a de um
resultado dentro do enunciado geral – é preciso esclarecer do ponto de vista de
qual Sujeito se está considerando freqüência e relevância, se do Gestor ou se do
Paciente, pois há diferenças significativas entre ambos esses sujeitos e podem não
coincidir as necessidades de um e do outro, ou o quê seja freqüência e
relevância para um e outro.
Mas só é possível pensar desta forma se aceitamos um sistema de saúde com
acesso universal e atendimento integral e equânime. O que complica numa
atenção assim pensada é imediatamente qualificá-la como básica, termo que
entre nós tem significado “nivelar por baixo” e também basilar, um primeiro nível
ou estágio, a base sobre a qual algo se assenta. É como se alguém se
perguntasse: e haveria SUS depois da Atenção Básica? Continuariam o acesso
universal, o atendimento integral e a eqüidade presentes e efetivos neste outro
lugar construído além da base, isto é, o prédio todo, lá onde se encontram as
ações de média e alta complexidade?
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O caso é que o enunciado de Atenção Básica se resolveria pela crítica à primeira
parte da enunciação, quando exatamente se afirma tratar-se de um conjunto de
ações de saúde. Não há para quê nem quais seriam suas finalidades sociais,
nenhuma transcendência. São ações de saúde voltadas para problemas de
saúde, e, assim, limítrofes na sua apreensão medicalizada. E medicalizadas ficam
a promoção da saúde tanto quanto são naturalmente medicalizados os
esquemas de proteção específica e o diagnóstico precoce. Os cuidados
primários, ao contrário, são definidos como articulados ou necessários às
condições econômicas e sociais, e já sabemos o quanto custa mover as
estruturas colocadas neste nível de determinação. Daí decorreria seu fracasso ou
seu êxito parcial. Atenção Básica, por sua vez, protege-se das injunções políticas
e ideológicas da saúde pública, como diria Donnangelo (1983), o que quer dizer
proteger-se dos conflitos da vida social genérica, porque, na forma de ações de
saúde, deixa do lado de fora o que não é conveniente ao sistema.
Não há como escapar a esses conflitos porque, queiramos ou não, os conflitos
sociais, que vêm a ser o doente com sua doença e tudo aquilo de que ele é o
portador e o denunciante, transpassam a porta de entrada do sistema – qualquer
porta – e no seu interior mesmo promovem o desarranjo da sua ordem, e não há
trabalhador da saúde que não sofra a pressão do entorno onde se localiza sua
unidade de trabalho (Botazzo, 1999).
Parece que foi deste modo que conseguimos conciliar tendências, o que apenas
mantém em certa artificialidade o conceito de Atenção Básica. O Sistema Único
de Saúde foi concebido em toda sua generosidade, visto no âmago de um
Estado democrático e inclusor, como parte de um projeto nacional e de
sociedade cuja meta fundamental era a superação das desigualdades sociais,
justo no momento em que o mundo se encaminhava para o outro lado. Entre
1985 e 1988, enquanto cuidávamos de redemocratizar o país e construir uma
nova constituição, prosperava a doutrina Reagan-Thatcher e já davam os
primeiros frutos as políticas neo-liberais e a imposição do Estado-Mínimo.
E hoje, num momento da nossa história em que não há projeto de Nação nem de
Sociedade, mas predominam as regras do Mercado, e quando as práticas
republicanas sucumbem ao mais vulgar patrimonialismo, devemos nos indagar
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sobre o futuro do SUS. Como afirma Mendes (1996), “o SUS, entendido como
processo social em marcha, não se iniciou em 1988 (...) nem deve ter um
momento definido para seu término, especialmente se esse tempo está dado por
avaliações equivocadas que apontam para o fracasso dessa proposta. Assim, o
SUS nem começou ontem e nem termina hoje”.
A Conferência de Alma-Ata explicitou a necessidade de prover o adequado
financiamento dos cuidados primários e não deixou de considerar que os custos
sociais para promover a boa saúde poderiam ser sustentados por meio de
esforços gerais, nacionais e internacionais, com uma nova ordem mundial
baseada na paz e na cooperação entre os povos. Foi além, ao considerar que
por meio do desarmamento se gerariam recursos vultosos para promover o
desenvolvimento e o bem estar da sociedade.
O Brasil não apresenta gastos militares significativos nem se acha em estado de
beligerância com seus vizinhos, de modo que a alguns ocorreria pensar que a nós
este raciocínio não se aplica. No entanto, se os gastos militares dos países centrais
aumentam incessantemente, aumentam sem parar os gastos brasileiros com a
dívida pública. Hoje, gasta-se quase o dobro com o pagamento de juros em
relação ao que é consumido pelos serviços de saúde, com a transferência de
bilhões de dólares anualmente ao sistema financeiro e aos especuladores
internacionais.
É do couro que sai a correia, são os pobres que sustentam os ricos, são os países
periféricos que sustentam os países centrais, pela transferência dos seus
excedentes agrícolas e de parte considerável da poupança nacional. Enquanto
por aqui não há guerra, ajudamos a sustentar guerras alheias, enquanto
mantemos nossa seguridade social estropiada, garantimos a seguridade social
dos países mais ao norte.
Por enquanto, por aqui não há guerra....
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