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Eugenio Rail Zaffaroni A questao criminal Tradugao Sérgio Lamarao Revisao da tradugao Antonio Almeida Editora Revan & que pretendia fazer todas as mudangas a partir do poder, desde cima, com 0 lema tudo para o povo, tudo pelo povo, mas sem o povo. Houve outros principes menos sagazes, que preferiram seguir em frente, e contra os quais se ergueram os revolucionarios, radicalizan- do o discurso critico do sistema penal em maior ou menor medida, de liberais a socialistas. 7. O utilitarismo disciplinador Em geral, 0 Iminismo penal se nutriu de duas variantes opos- SH, embora muitas vezes coincidentes em seus resultados priaticos: 0 empirismo e 0 idealismo. Com a permissao dos mais finos historiadores da filosofia, que nés obtivemos sem consult4-los, pode-se dizer que houve, no Iuminismo, uma convergéncia de vias de conhecimento ou acesso 4 verdade: uns a buscavam mediante a verificagao na realidade material e outros através da dedugao de uma ideia dominante. Sem nos aprofundarmos muito, poderiamos afirmar que se acha- vam em germe os elementos que em seguida teriam de se separar entre aqueles que s6 aceitavam o que resultava da observagio, medigio e experimentagao, e aqueles que partiam de uma primeira ideia ilumina- dora, que lhes servia de guarda-roupa no qual acomodar as roupagens do mundo, as vezes sob pressio. oon No campo criminoldgico, essa dupla corrente deu lugar a duas ee ordens teGricas: 0 utilitarismo disciplinador e 0 contratualismo (ou tal- a aS ne vez, Os contratualismos, em todas as suas variantes). Os utilitaristas tinham como base que era necessario governar proporcionando a maior felicidade ao maior numero de pessoas. A cabe- ¢a mais visivel dessa corrente foi o inglés Jeremy Bentham, personagem de vida longa, cujo esqueleto vestido se encontra em uma vitrine no co- légio que ajudou a fundar, embora se diga que a cabega foi mumificada e em seu lugar se colocou uma de cera. Parece que acontece alguma coisa com as cabecas daqueles que elaboram teorias criminoldgicas, pois se co- menta que a de Lombroso esta conservada em formol em um museu em Turim. Por sorte, faz tempo que se perdeu o costume de se dispor das ca- begas dos crimindlogos post-mortem, embora isso seja sempre preferivel a que outros o fagam ante-mortem por eles. Mas voltemos ao nosso ponto. Bentham concebia a sociedade como uma grande escola, na qual devia impor-se a ordem, ou seja, a chave era a disciplina e, para tl, 52 © governo devia repartir prémios e castigos: como € 6bvio, os prémios oporcionavam felicidade e os castigos dor e, como também parece bvio, o ser humano saudavel e equilibrado devia preferir os primei- s, com sua felicidade, e nao os castigos, com sua dor. Por isso, ele leveria abster-se de cometer delitos. Todavia, delitos eram cometidos, que indicava que 0 infrator nao estava bem, ou seja, que nao era su- icientemente ordenado, dado que escolhia a dor. Era como a crianga lesobediente, que obriga a professora a chamar os pais e lhes informar jue algo esta acontecendo com ela. Hoje o psicdlogo intervém, e se ele €é bom pode chegar a descobrir que 0 menino é mais inteligente que os pais e a professora; ha cinquenta anos ele corria 0 risco de o deixarem bobo com uns eletrochoques, e, ha duzentos, Bentham queria colocar © adulto a quem acontecia alguma coisa em um invento arquitet6nico ‘que chamou de pandptico, que era um aparato para disciplind-lo. Va- mos, porém, por partes. E evidente que Bentham se deparava com o problema da impu- nidade da grande maioria dos delitos e bancava o distraido a respeito da seletividade do poder punitivo, raz4o pela qual tratava de resolver a questio postulando que as penas deviam ser mais graves quanto maior fosse a impunidade, o que nao parece muito razoavel, porque ninguém tem a culpa da torpeza ou Da referéncia do Estado ao repartir o poder punitivo. Para disciplinar os desobedientes descontrolados, Bentham se irritava com os mais bobos, que eram os enganados pelo poder. Mas prossigamos. Para Bentham, o delito coloca em evidéncia um desequilibrio, produto da desordem pessoal do infrator, que deve ser cor- tigido. Para isso, projetou a referida prisio chamada pandéptico, com estru- tura radial, para que o preso saiba que sera observado a partir do centro e por olhos magicos a qualquer momento. Desse modo, ele seria introdu- 2 zido na ordem e, ao final, acabaria se tornando seu préprio vigilante, isto op" €, comeria o guardiao (é mais delicado dizer que 0 introjetaria). Essa ideia era tomada de alguns médicos que asseguravam ser a _doenga mental também produto da desordem e por isso os manicémios deviam ocupar-se do disciplinamento dos doentes, colocando-os para 8} trabalhar, na conviccao de que a ordem fisica redundaria na ordem men- tal. Dessa perspectiva, nao importa que o trabalho dos presos ou dos loucos seja ou nao rentdvel ou util, porque é um valor disciplinador em si mesmo, como podia ser o famoso quebrar pedras. O disciplinamento devia ser levado a cabo na medida do taliao, ou seja, de uma dor equivalente 4 provocada pelo delito. A obssessao 53 pela retribuicao exata levou Mr. Jeremy a projetar uma maquina de agoj. tar, para que a intensidade da dor fosse uniforme e nao ficassse entegue ao arbitrio do carrasco. Ainda que a guilhotina nao tenha sido inventadg por ele (foi criada na Franga), o certo é que ela foi imaginada respon. dendo ao mesmo critério. As leis penais sao feitas hoje em dia pelos assessores dos legis. ladores, de acordo com a agenda definida pelos meios de comunicagio de massa, mas no comego do século XIX as projetavam os penalistas e, quando estes tomaram a ideia de Bentham, acabaram elaborando cédi- gos penais com penas fixas e longas listas de agravantes e atenuantes, prevendo percentuais para cada um. Assim foi redigido, por exemplo, 0 primeiro cédigo penal do Brasil, em 1831, € seus comentadores ano- tavam os dificeis calculos matematicos para cada caso, porque nao se conheciam as calculadoras e nem todos os juizes haviam obtido boas notas no secundario. Bentham presenteava seu modelo a todo o mundo, tendo, in- clusive, mantido correspondéncia com Bernardino Rivadavia. Houve panopticos em muitas cidades da América Latina, 4s vezes completos e outras semi-radiais, em geral porque Oo orgamento nao era suficiente para fazé-los completos. Alguns subsistem, convertidos em museus ou mercados (como em Recife e em Ushuaia), ou funcionando como prisio —o de Quito, construido no século XIX pelo ditador Gabriel Garcia Mo- reno e por cujas celas passaram quase todos os politicos equatorianos do século seguinte, sem contar com o fato de as turbas, instigadas pelos conservadores, terem arrancado o lider liberal Eloy Alfaro desse presidio e o linchado, em 28 de janeiro de 1912. Cabe esclarecer que os pandpticos nunca funcionaram como Bentham havia imaginado, pois logo os presos descobriram sua légica e a superlotacgdo fez com que a visdo fosse interrompida com os miltiplos obstaculos. O disciplinarismo dos utilitaristas deu muito o que falar nos anos setenta do século passado, quando Foucault o considerou diretamente um modelo social e, na Italia, Dario Melossi e Massimo Pavarini publica- ram um livro intitulado Carcere e fabrica, em que destacam uma matriz comum com o disciplinamento para a produgao fabril nas origens do industrialismo. Um professor argentino, Enrique Mari, contribuiu para enriquecer essas reflexSes entre nds. Os utilitaristas nio admitiam que existisse nenhum direito na- tural anterior 4 sociedade e sobre 0 qual esta nao pudesse avangar. Os 54 direitos deviam ser respeitados unicamente porque sua lesao havia pro- vocado mais dor que felicidade. Era claro que o utilitarismo de Bentham encerrava uma concep- cio criminolégica, pois fincava a etiologia do delito na desordem da pes- sod e, por conseguinte, surgia dai uma politica destinada a combaté-lo mediante 0 disciplinamento, que importava a pena talional no curioso aparato inventado. Se bem que Bentham tenha se desenvolvido na Gra-Bretanha e rechacado a ideia do contrato social e do direito natural anterior a sociedade, foi condecorado pelos revoluciondrios franceses, pois repre- tempo. 55 8. Os contratualismos Vimos que nas obras tradicionais se costuma afirmar que 4 ea minologia nasceu na segunda metade do século XIX, ou seja, qua” 7 obteve reconhecimento académico como saber independente. 0 ™ 56 J ce n curioso, porém, € que essas obras nao 86 se calam sobre tudo 0 que eo, latamos até agora a respeito dos séculos anteriores, como também, nao™»' podendo ignorar 0 pensamento do século XVIII e da primeira parte do ioe século XIX, preferem afirmar que este nao era criminol6gico. E muito curiosa essa posi¢ao, porque faz parecer que a crimino- logia assim entendida nao s6 se comporta como uma familia que oculta seus antepassados pouco apresentaveis, bem como nega todo parentes- co com os que nao pode ocultar, porque a vizinhanga os conheceu bem e as comadres do povoado se lembram deles.(Realmente, trata-se de uma ciéncia 4 qual é necessdrio recordar que seu ber¢o foi um cortigo iluminado a querosene,) Se bem que os autores dos discursos acerca da questdo criminal, provenientes das corporagées de fildsofos de primeirissima linha ou de juristas que seguiram seus pensamentos, se tenham dedicado a criticar © poder punitivo de seu tempo e a propor reformas legislativas, nao se pode ignorar que eles se apoiavam numa criminologia, pois partiam de certa concepg¢ao do delito e do delinquente e, portanto, atribuiam a origem do delito a determinadas razdes e propugnavam penas dirigidas a elimina-lo ou a reduzi-lo. Para isso, necessitavam partir de uma certa ideia do ser humano e da sociedade. Por outro lado, como propunham reformas ao sistema penal, eram fortemente criticos do poder punitivo de seu tempo. Tudo isso, sem dtivida, é criminologia, pois dificilmente se pode negar que a critica ao poder punitivo, a forma em que € exercido, a suas modalidades etc. © seja. os Essa negacio da dimensao criminolégica dos filésofos e juristas eo do Iluminismo do penalismo liberal obedece a uma fabula inventada’ oe em fins do século XIX por Enrico Ferri, que foi o mentor do positivismo wk italiano, de grande fama em seu tempo e de quem falaremos com mais “ke detalhe. Como bom positivista, Ferri considerava-se 0 porta-voz dos do- nos da ciéncia, afirmando que antes dele e seus partidarios nao tinha havido senao escuridao, metafisica e charlatanismo. Chegou a afirmar est Re que tudo o que antes se havia dito acerca da questao criminal era espi- an ritismo, mas, com muitissima habilidade e pretendendo tributar-lhe uma homenagem, chamou a todo o saber precedente de escola classica, para erigir-se, ele mesmo, no lider da nova escola, da scuola positiva. A invengao de uma escola cldssica, que abarcava tudo o que fora pensado desde o século XVIII até as torpezas do positivismo racista das 57 Ultimas décadas do século XIX, foi a melhor fabula de Ferri, tt0 bem sucedida que ainda é repetida nos manuais dos nossos dias. Nao posso deixar de recordar que assim me explicava, na Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires, um professor que usava polainas e cha- péu de palha a Maurice Chevalier, se declarava positivista e se referia ao presidente da Reptiblica como esse gringuinho. Outro professor, nao tio pitoresco, continuou falando a mesma coisa até o final da ditadura. Por via das diividas, esclareco que foi no século passado, mas nao no XIX, porque tudo passa muito rapido e repito que nado sou nenhum fendme- no biolégico. oy O certo € que resulta inadmissivel que os utilitaristas e todas as a *variantes do contratualismo, os kantianos, os hegelianos, os krausistas, Fe Mos déspotas ilustrados de calcas brancas e peruca e os descamisados Mfg? revolucionarios, todos juntos, formassem wma escola, além do mais fun- *p dada por um marqués milanés gordinho, do final do século XVIII, e que tenha durado mais de cem anos, estendida por paises que se matavam alegremente entre si. Foi sem dtivida a melhor brincadeira de Ferri, na qual c: inclusive seus oponentes. Se Ferri esta em algum lugar, com sua oratéria envolvente e seus cabelos revoltos, continuaré gozando com seguranca do éxito de sua ocorréncia. Se nos afastarmos dessa armadilha tramada pelo velho positivista e prescindirmos da imagindaria escola cldssica, 0 que encontramos é um conjunto de discursos mais ou menos funcionais A classe em ascensio dos industriais, comerciantes e banqueiros, para seu enfrentamento com 0 poder hegeménico das nobrezas nos paises da Europa central e do norte. Nao podemos passar em revista aqui todos esses discursos, que por certo sao interessantissimos, tanto para o direito penal quanto para a criminologia. Limitando-nos a esta, podemos afirmar que, em conjunto, eles representaram uma forte corrente critica ao exercicio arbitrario do poder punitivo, baseada na experiéncia das arbitrariedades e crueldades de seu tempo, dominado pelas nobrezas. Todos eles, valendo-se dos elementos filos6ficos de sua época, repensaram profundamente o concernente a questao criminal. O utili- tarismo mais puro ficou na Gra-Bretanha, enquanto que no continente os pensadores deduziram suas visdes e propuseram suas reformas pre- ferencialmente a partir da outra vertente do I/uminismo, quer dizer, do contratualismo. ram NY 58 Obviamente que nenhum destes pensadores acreditava seria- mente que uns tantos seres humanos, adornados com folhinhas de par- reira nas partes pudendas, houvessem se reunido num escritério para firmar um contrato e fundar a sociedade, como hoje poderiam fazer uns bons comerciantes mais protegidos. Eles eram muito inteligentes para _as.ye acreditar em algo semelhante. O contrato era, para eles, uma meld, ws uma figura da imaginagao para representar graficamente a esséncia ou a natureza da sociedade e do Estado. Essa corrente foi a que predominou na Europa continental para enfrentar os idedlogos do Antigo Regime, que se valiam, por sua vez, de outra metafora, pois para eles a socieda- a de era um organismo natural, com uma repartigio de fungdes que nao oe podia ser alterada nem decidir seu destino pela escolha da maioria dea suas células. Todo 0 organicismo social, inclusive os que renascem no ™ presente, é essencialmente antidemocratico: as células que mandam sao as do cérebro, e as das unhas devem conformar-se com sua fungao de nao incomodar; qualquer preten: ao contrario nao é, para qualquer organicismo social, mais do que caos contra a lei natural. Para o racionalismo contratualista, a sociedade nao era em nada natural, mas sim produto de um artificio, de uma criagdo humana, ou 59 seja, de um contrato que, como tal, podia ser modificado e até mesmo rescindido, como acontece com qualquer contrato quando a vontade soberana das partes o decide Nesse marco, podemos afirmar que 0 pensamento critico acerca da questdo criminal alcangou um de seus momentos de mais elevado contetido pensante com os discursos dos contratualistas do Iuminismo. O marqués gordinho, que, segundo a fabula do velho Ferri encabegava essa escola era Cesare Beccaria, um funciondrio milanés que publicou, em 1764, um famoso livrinho (Dos delitos e das penas), 0 qual desen- cadeou uma série de trabalhos anélogos em toda a Europa, propondo profundas reformas quanto as garantias e aos limites ao poder punitivo, ‘Além de ser o avé do inesquecivel autor de promessi sposi - Ales- sandro Manzoni -, Beccaria era um homem tranquilo e acomodado, que nunca mais voltou a escrever nada sobre a questao criminal e que dedicou © resto de sua vida a questdes como a unificagao dos pesos e medidas. Seus pressupostos antropoldgicos nao sao de todo claros, porque também era tributdério de Hume, © que, em alguma medida, o aparen- tava com as raizes do utilitarismo, mas 0 certo é que foi oportunissimo, algo assim como a bofetada intelectual mais contundente ao poder pu- nitivo da nobreza. Através da tradugao francesa do abade Morellet, ele foi divulgado por toda a Europa pelo velho Voltaire, que havia declarado guerra ao poder punitivo francés, assumindo a defesa postmortem de Calas, um protestante executado, falsamente acusado da morte de seu filho, supostamente para que este nao se convertesse ao catolicismo. Algo muito parecido havia olcorrido um século antes em Praga com um judeu, mas este nao teve a sorte de encontrar 0 seu Voltaire. Em fungio das ideias iluministas, comegaram:a ser sancionados Cédigos, isto 6, foram abolidas as recopilag6es caéticas de leis € tratou-se de concentrar toda a matéria em uma dinica lei, redigida de forma siste- mAtica e clara, conforme um plano ou programa racional. Essa tendéncia legislativa era uma derivacao do enciclopedismo, que havia levado 2 redagao da Enciclopedia na Franga pré-revolucionaria, ou seja, a tentar concentrar sistematicamente, em um tinico livro, todo o saber da época. Desse modo, procurava-se dar clareza e que todos soubessem, com base na lei prévia, o que era e o que nao era proibido, substraindo- -o da arbitrariedade dos juizes. Os revolucionarios franceses quiseram levar isso até o extremo de substituir as oragGes nas escolas pelo cédigo penal, para que todos 0 soubessem de cor. Menos mal que ninguém teve a ideia de fazer o mesmo com os 4.000 artigos do nosso Cédigo Civil. 60 ». Quanto ao processo, os julgamentos se tornaram ptiblicos. Fou- cault destaca a mudanga: no Antigo Regime, os julgamentos eram secre- tos e as execugoes ptiblicas; desde fins do século XVIII os julgamentos passaram a ser ptiblicos e as execugdes secretas. O espetaculo era o julgamento e nao a execugao, levada a cabo privadamente e a qual po- 3 diam assistir somente alguns convidados especiais. E claro que com 0 julgamento publico a tortura foi abolida. ra Nao deixa de ser importante a redugdo da pena de morte ea | thu” supressio das penas corporais. Até esse momento, falava-se das penas @* naturais, Ou seja, que, além dos agoites, havia uma sobrevivéncia da pena no 6rgao que se havia sido usado no fato: a lingua do perjuroedo ge blasfemo, a mao do ladrao € na violagao € na sodomia vocés deduzirio ¢*oR? qual. A partir do século da razdo, a coluna vertebral das penas passou %SPye*" a ser a privacao da liberdade. Indo contra 0 que usualmente se cré, a prisio é um invento euro- peu bastante recente e difuundido pelo neocolonialismo, pois antes do sé- culo XVIII era usada pelos devedores morosos e como prisio preventiva, 6 n : x A we isto é,a espera do julgamento. A privagao de liberdade como pena central 2 Yee, é um produto do Iuminismo, seja pela via do utilitarismo (para impor a te“ ordem interna mediante a introjegio do vigilante) ou do contratualismo #4" (como indenizagdo ou reparagao pela violagao do contrato social). Este ultimo é interessante e nao em vao o gordinho Beccaria de- dicou parte de sua vida a unificagdo de pesos e medidas. Na Revolucao Industrial, era fundamental a atividade mercantil e para ela era neces- sdrio resolver as diferengas que o caos de pesos e medidas diferentes provocava em cada pais. A unificagao facilitava 0 comércio. A unificagao das penas também facilitava sua medida, superava 0 caos prévio das penas naturais e permitia medi-las todas em tempo. Como se entende que um homicidio valha de oito a 25 anos e um furto de um més a trés anos? O que é isso? Dois juizes procedendo como comerciantes que vendem pena por metro (ou por anos) no mos- trador da justica? Por estranho que parega, nao é mais do que um efeito do contratualismo que perdura até o presente. Quem viola um contrato (nao cumpre o que esta acordado nele) deve indenizar. Se me comprometo a vender algo e nao entrego a coi- sa em seu momento, devo indenizar o comprador pelo dano que lhe ocasionei. Se nao pago voluntariamente reparando esse dano, me em- bargam e sequestram bens e os executam, fazendo-se, desse modo, a cobranga. Pois bem, se nao cumpro com o contrato social e cometo um 61 delito, devo indenizar. Como? Com o que? Ora, com o que posso ofere. cer no mercado, ou seja, com minha capacidade de trabalho. Dai que a pena me prive de oferecer meu trabalho no mercado durante mais ou menos tempo, segundo a magnitude de minha infragig ao contrato (delito) e o consequente dano. Até mesmo a pena de morte entra nesta légica tao particular, pois opera como uma confiscagio geral de bens; dai que também tenha desaparecido a pena de morte agravada com 4 tortura. Pode parecer ins6lito, mas essa € a origem da ideia da unificagao das penas em tempo de privagao de liberdade, que em seguida se cobrirg com outras racionalizagdes até nos parecer, a pouco mais de dois séculos de distdncia, como normal e quase 6bvia. Rapidamente nos acostumamos as coisas mais rebuscadas e quando nos perguntam por que, a resposta é sempre foi assim, embora nao tenha sido sempre nem muito menos assim, Na pratica, tampouco, funcionou desse modo, mas sim que os europeus viram, desde muito cedo, que seu problema nao era com os “ameacadores”, e que a prisdo nao atingia a todos, por mais miserdveis que fossem e por mais alta que tenha sido a taxa de mortalidade nelas registrada. Como eram paises neocolonialistas, 0 primeiro que fizeram 8" foi tirar de cima os incémodos e envié-los para suas coldnias. Essas penas de relegagdo ou transporte foram aplicadas particularmente pela Gra-Bretanha e pela Franca. Os ingleses mandavam seus indesejaveis para a Australia, onde os prisioneiros eram destinados aos colonos, em um regime muito parecido com as encomiendas da nossa colonizacio, embora com melhor destino, porque, ao que parece, muitos sobrevive- ram e seus descendentes povoaram 0 continente 9. Os contratualismos tornam-se problematicos FS 5. Na realidade, os contratualistas se ocupavam em imaginar e pro- gre r aa aua_ee centr ‘2? Bramar o Estado e a questao criminal tornava-se central para eles, por- ss que o que planificavam conforme suas concep¢ées era o proprio poder. * Essa intima e inseparavel relacao do poder com a criminologia foi o que se perdeu de vista na tiltima metade do século XTX, quando se quis fazer da criminologia uma questao cientifica e asséptica, estranha ao podere a6 oR Separada da ideia mesma de Estado. Essa tendéncia nao foi abandonada Ps SS até a atualidade e hoje retoma grande forga em toda a construgio da Meee tealidade midiatica. Se 62 Como era de se esperar, houve varios contratuali metifora do contrato permitiu construir diferentes imagens do E fundadas também em ideias dispares do ser humano (antropologias fi- Josdficas, diriamos hoje). Desde os albores modernos dessa metifora notou-se essa dis- paridade, que comegou na Gra-Bretanha no final do século XVII, pre- nunciando o processo de indust Ao e a acumulagao primitiva de capital, Ali se enfrentaram 0 contratualismo de Hobbes e 0 de Locke. Para Hobbes, em seu famoso Leviata, a origem da sociedade se encon- eitos dos quais tinham trava em um contrato, mas celebrado entre s do as folhas de parreira, porque tinham as maos ocupadas com garro- tes para se matarem com singular prazer entre eles. Em certo momento, eles teriam se dado conta de que nao era bom negécio o que estavam fazendo, baixaram os machetes e se puseram de acordo em dar todo 0 » poder a um deles, para que terminasse a guerra de todos contra todos. gy Gqo Como, na realidade, isso era pouco verificavel, este fildsofow* 4" A medida que (cujos retratos © mostram um pouco mefistofélico, embora ia ficando mais velho, ia ganhando a cara de um bom velhinho), nao sabia onde encontrar um exemplo de grupo humano em semelhante condigado, mas afirmou que ainda existiam na América. Os hobbesianos atuais possivelmente o situam em algum planeta de estranha galaxia, a muitos anos-luz de nés, cujos hipotéticos habitantes podem se ofender no futuro, tanto como nés, hoje em dia. E 6bvio que o conceito do ser humano de Hobbes nao era muito edificante, pois 0 concebia como um ente movido pela ambigao de po- der e prazer. O depositario do poder em seu contrato nado tomava parte deste, razdo pela qual os que Ihe haviam dado 0 poder ndo poderiam reclamar-lhe nada, porque, do contrario, reintroduziriam 0 caos, ou seja, a guerra de todos contra todos. Por outra parte, como antes do contra- to o que existia era 0 caos, > havia direitos anteriores ao contrato e todos derivavam deste, de modo que, caso se negasse a autoridade do depositario, todos os direitos desapareciam. Desse modo, Hobbes nao aceitava direito algum de resisténci: opressao, embora nao explicasse 0 que aconteceria quando o deposita- tio do poder, que continuava sendo humano, se movesse, exercendo-o conforme a tendéncia natural 4 ambigdo de poder e gloria e desconhe- cesse qualquer limite legal imposto pelo contrato. Sua resposta era que qualquer opressao € preferivel ao caos, o que escutamos toda vez que se quer converter a politica em filme de terror. 63 Para manter essa curiosa paz, Hobbes exigia que as penas fos. sem estritamente legais e se aplicassem mecanicamente, salvo aos inj. migos, que eram os dissidentes que se queixavam e os colonizados que estavam em estado selvagem. Para Locke (a julgar por seus retratos, no meu bairro o chamariam Se de John, o fracote), o contrato era diferente, pois antes de sua celebracio “ houve um estado de natureza em que os humanos tinham direitos tes nao estavam assegurados, e por isso decidiram celebrar 0 contrato como ., garantia. Para isso entregaram o poder a alguém, mas o deixaram submet- 2 ¥-do ao contrato. Devem obedecer a este, embora nao gostem de fazé-lo, mas ante *" quando ele viola 0 contrato e nega esses direitos anteriores, reintroduzindo se © estado de incerteza prévio, ai surge 0 direito de resistencia ao opressor. Com toda certeza, o conceito de ser humano do fracote John nao era tao negativo como o de Hobbes e, além do mais, a ideia que mani- pulava do estado de natureza era mais digna de crédito. Como se pode ver, Locke € uma das mais destacadas expressoes ®. | do liberalismo politico e, no fundo, o inspirador das declaragées de di- reitos das ultimas décadas do século XVIII. Nesses anos finais do século XVIII o debate inglés de quase cem anos antes se reproduziu com fineza na Alemanha, ao aprofundar-se a investigagao acerca da razAo e seus limites. Era natural que um século que fora caracterizado como da razdo se perguntasse finalmente quais eram sua natureza e seus limites. As tentativas mais elaboradas de res- ponder a isso foram levadas a cabo por Inmanuel Kant, com suas duas investigagOes ou criticas, sobre a razdo pura e a razao pratica. Dizem que Kant levava uma vida extremamente metdédica, a ys ponto de as comadres de sua Monterrey (nao era mexicano, mas é isso ‘e" que Kénigsberg significa, embora ninguém o traduza) sabiam que de- viam deixar de fazer fofoca comegar a preparar a comida porque Herr Professor havia passado. O certo € que o pobre era uma maquina de pensar e escrever. Estava mais proximo de Hobbes do que de Locke, embora meus colegas penalistas o destaquem como 0 pai do liberalismo penal. Nao obstante, admitia que, se a resisténcia se transmutava em re- volugao e estabelecia outro governo, a discussdo estava encerrada e era preciso apoiar 0 novo. Para conservar 0 contrato e nao voltar ao estado de guerra de todos contra todos (estado de natureza), Kant defendia a necessidade da pena talional, com a qual vinha, por uma via curiosa, coincidir com a medida da pena dos utilitaristas. 64 to Houve, nesse tempo, um jovem brilhante que, partindo da filosofia kantiana, afastou-se de seu autor e com seus préprios fundamentos apro- ximou-se mais de Locke. Era Anselm von Feuerbach, 0 pai do muito mais conhecido Ludwig Feuerbach. Nao obstante, o velho foi muito fora de série. Aos 23 anos escreveu algumas obras maravilhosas, superando a Kant no juri- dico, porque, por sorte, teve que se dedicar 4 questao criminal quando o pai lhe cortou as provisGes porque tivera um filho fora do casamento. Devido a esse feliz acidente biolégico, tivemos um penalista genial, que defendeu o direito de resisténcia 4 opressao e a ideia de direitos anteriores ao contrato, aprofundando a separagdo da moral e o direito iniciada por Thomasius e seguida por Kant, segundo alguns com maior éxito do que este ultimo. tas e nem todas santas -, destaca-se seu cddigo para a Baviera, de 1813. ®™ Ele é importante para nés porque Carlos Tejedor, quando foi encarrega- do de redigir o primeiro projeto de cédigo penal argentino, tomou como modelo este codigo e nao o de Napoleao, que era o mais empregado. Desse modo, Feuerbach € 0 av6 do pobre cédigo que hoje foi com- pletamente demolido ao compasso dos tiros de canhao obedientes aos meios de comunicagio de massa. Nos tempos de Feuerbach nao havia televisio, mas igualmente nao péde suprimir o delito da sodomia (como Napoledo o havia feito). Ele degradou-o a contravengio menor e 0 jus- tificou de modo muito curioso: disse que, se todos a praticdssemos, a humanidade acabaria. E claro que ele nao acreditava nisso, mas também nessa €poca havia meios de comunicagao e agenda midiatica. E algo mais do que pitoresco recordar que nos tltimos anos de vida, Feuerbach se interessou por um adolescente, ao qual protegeu, que apareceu perambulando perdido, que crescera encerrado numa tor- » ; ; a Entre as coisas que Feuerbach fez em sua vida — que foram mui- ws W re e cuja origem nunca se conheceu. Ele foi batizado de Kaspar Hauser e Reet sua hist6ria deu lugar a uma novela e a varios filmes. Era inevitavel que alguém que acreditasse em um estado de natureza anterior ao contrato se interessasse por esse personagem. Chamou de crime contra a huma- nidade o que fora feito com ele e, embora nunca se tenha provado que fosse o herdeiro da coroa, o certo € que pouco depois da morte de Feu- erbach o pobre Kaspar foi atravessado por uma espada numa esquina. As mas linguas dizem que o préprio Feuerbach morreu envene- nado por causa de seu protegido, mas tudo indica que isso nao passa de uma lenda, sendo o mais provavel que sua morte tenha sido causada por hipertensao, pois era gordinho, parece que nao se privava de nada e, além do mais, tinha um cardter bastante corrompido. 65

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