Orlando Figes
A TRAGÉDIA DE UM POVO
A R EVO LU Ç ÃO RU S S A
1891‑ 1924
Tradução de
Valéria Rodrigues
Título original: A People’s Tragedy: The Russian Revolution
© 1996, Orlando Figes
Edição portuguesa © 2017, Publicações Dom Quixote
Mapas: James Sinclair
Reservados todos os direitos.
Revisão: GoodSpell
Paginação: Joana Amaral
Impressão e acabamento: CEM
1.ª edição: Outubro de 2017
Depósito legal n.º 430 566/17
ISBN: 978‑972‑20‑6370‑8
I. A Dinastia..................................................................................................... 39
O czar e o seu povo .................................................................................... 39
O miniaturista............................................................................................ 51
O herdeiro.................................................................................................. 61
Conclusão...................................................................................................... 889
Notas............................................................................................................. 905
Bibliografia..................................................................................................... 929
Índice Onomástico ........................................................................................ 957
Introdução à Edição do Centésimo Aniversário
o colapso do sistema soviético, podia, ao menos, ser vista como uma traje‑
tória completa – com um início, um meio e, agora, um fim –, passível de
um estudo mais permissivo, sem as pressões da política contemporânea ou
as intenções restritivas da sovietologia, a estrutura político‑científica na qual
a maior parte dos estudos ocidentais da revolução foram escritos quando a
União Soviética era viva.
Entretanto, a abertura dos arquivos soviéticos permitiu novas abordagens
à história da revolução. A minha foi a de usar histórias pessoais de indivíduos
normais cujas vozes tinham sido perdidas nas histórias da época da Guerra
Fria (tanto soviéticas como ocidentais), que se tinham focado nas abstratas
«massas», classes sociais, partidos políticos e ideologias. Tendo trabalhado nos
arquivos soviéticos desde 1984, incomodava‑me o facto de ainda não terem
sido encontradas revelações inquietantes acerca de Lenine, Trotsky ou até de
Estaline, que era o mais procurado por quem chegava recentemente às salas
de leitura. Mas entusiasmava‑me a oportunidade de trabalhar com os arquivos
pessoais de figuras menores da revolução – líderes secundários, trabalhado‑
res, soldados, oficiais, intelectuais e até camponeses – em quantidades muito
maiores do que fora anteriormente permitido. A abordagem biográfica que
acabei por adotar em A Tragédia de Um Povo não teve apenas a intenção de
acrescentar «interesse humano» à narrativa. Ao tecer as histórias destes in‑
divíduos, quis apresentar a revolução como uma série dramática de aconte‑
cimentos, que não eram controlados pelas pessoas que neles participavam.
As figuras que escolhi tinham uma característica em comum: com planos para
influenciar o curso da História, todas elas foram vítimas de consequências
imprevistas. Ao concentrar‑me nelas, o meu intuito foi reconstituir o trágico
caos da revolução, que varreu tantas vidas e destruiu tantos sonhos.
A minha conceção da revolução como uma «tragédia do povo» tinha tam‑
bém o propósito de funcionar como um argumento acerca do destino da
Rússia: a sua incapacidade de ultrapassar o passado autocrático e de estabili‑
zar enquanto democracia em 1917; o mergulho na violência e na ditadura.
As causas dessa falha democrática, parecia‑me, estavam enraizadas na história
do país, na fraqueza da classe média e das instituições civis e, acima de tudo,
na pobreza e no isolamento dos camponeses, a vasta maioria da população da
Rússia, cuja revolução agrária eu tinha estudado em pormenor no meu pri‑
meiro livro, Peasant Russia, Civil War (1989).
Quando A Tragédia de Um Povo saiu, alguns críticos acharam o livro de‑
masiado sombrio no seu balanço do potencial democrático da revolução.
Parte dessa reação teve origem na visão marxista de Outubro de 1917 como
uma revolta popular baseada numa revolução social que perdeu o seu caráter
democrático somente após a morte de Lenine, em 1924, e a ascensão de Esta‑
line ao poder. Outra parte decorria das esperanças democráticas depositadas
na Rússia pós‑soviética por uma variedade ampla de grupos interessados,
Introdução à Edição do Centésimo Aniversário 15
da qual o país se possa unir: alguns veem‑na como uma catástrofe natural,
outros como o começo de uma grande civilização, mas o país como um todo
continua incapaz de fazer as pazes com o seu legado violento e contraditório.
Da mesma maneira, não foi possível alcançar um consenso sobre o que
fazer com o fundador do estado soviético. Iéltsin e a Igreja Ortodoxa Russa
apoiaram iniciativas para fechar o Mausoléu de Lenine na Praça Vermelha, em
Moscovo, onde o corpo preservado está exposto desde 1924, e enterrá‑lo ao
lado da sua mãe no Cemitério de Volkovo, em São Petersburgo, como ele pró‑
prio desejara. Mas os comunistas falaram mais alto e estavam mais organizados
contra essa iniciativa, pelo que o assunto ficou por resolver. Putin opunha‑se
à ideia de retirar o corpo de Lenine do Mausoléu, argumentando que tal iria
ofender as gerações mais velhas, que tanto se tinham sacrificado pelo sistema
soviético, implicando que estas gerações tinham acarinhado ideais falsos.
Com tamanha confusão e divisão, as comemorações da Revolução em
2017 serão provavelmente silenciosas. É igualmente provável que o mesmo
aconteça no Ocidente, onde a memória da Revolução Russa recuou no nosso
consciente histórico, em parte como resultado da perda de interesse dos media
desde o fim da Guerra Fria, visto que o nosso foco foi redirecionado para o
Médio Oriente e para a questão do extremismo islâmico; e talvez também em
parte pela nossa crescente preocupação com os direitos humanos, que domina
o discurso moral sobre a mudança política e que nos tornou menos compreen‑
sivos em relação à força emotiva de outros valores, como é o caso da justiça
social e da redistribuição de bens, que fomentam a violência revolucionária.
Mas, como os acontecimentos dos últimos anos têm demonstrado, a época
das revoluções ainda não acabou. As «revoluções coloridas» nos Balcãs, na
Ucrânia, na Geórgia e no Líbano, a Primavera Árabe e a Euromaidan da Ucrâ‑
nia relembram‑nos da importância que as manifestações em massa podem
ter no derrubar dos governos, muitas vezes através do uso de violência. Em
todos estes movimentos, há lições a serem retiradas a partir de comparações
com 1917. O uso das redes sociais para organizar multidões, por exemplo,
teria sido aplaudido por Lenine. Da mesma forma que os revolucionários
olhavam para os jacobinos no século xix, também os bolcheviques se torna‑
ram os modelos a seguir por todos os movimentos revolucionários do século
xx, da China ao Irão, tanto como para os terroristas da atualidade. Todos os
métodos usados pelo ISIS – o uso da guerra e do terror para criar um estado
revolucionário, a devoção fanática e a disciplina militar dos seus seguidores e o
recurso genial à propaganda – foram primeiro dominados pelos bolcheviques
na Guerra Civil Russa.
Não devemos ser complacentes e acreditar que nenhuma revolução poderá
ameaçar as democracias liberais ocidentais. O recente aumento de movimen‑
tos populistas em massa pela Europa fora deve lembrar‑nos de que as revo‑
luções podem rebentar de forma inesperada: nunca estão demasiado longe.
20 A Tragédia de Um Povo
Este livro levou mais de seis anos a ser escrito e estou eternamente grato para
com muitas pessoas.
Devo agradecer, principalmente, a Stephanie Palmer, que suportou longas
horas de trabalho egoísta, fins de semana e feriados estragados por horas extra
e um comportamento quase sempre intratável do marido, muito além do que
seria justo tolerar. Em troca, recebi da parte dela amor e apoio em grau muito
maior do que merecia. A Stephanie cuidou de mim ao longo dos anos sombrios
de uma doença debilitadora que sofri nas primeiras fases de produção do livro e,
além de seu próprio fardo de trabalho pesado, assumiu mais do que seria a sua
quota justa na tarefa de dar atenção às nossas filhas, Lydia e Alice, depois do seu
nascimento em 1993. Por gratidão, dedico‑lhe este livro.
Neil Belton, da Jonathan Cape, desempenhou um papel fundamental na
preparação deste livro. O Neil é o editor dos sonhos de qualquer escritor. Leu
cada capítulo em cada uma das versões e comentou‑os em longas e detalhadas
cartas, na mais fina prosa. As suas críticas foram sempre acertadas, o seu co‑
nhecimento sobre o assunto constantemente surpreendente e o seu entusiasmo
inspirador. Se há um leitor ao qual este livro se dirige, é a ele.
A segunda versão foi lida também por Boris Kolonitskii, durante vários
encontros nossos em Cambridge e São Petersburgo. Estou‑lhe muito grato
pelos seus muitos comentários, que resultaram em aperfeiçoamentos do texto.
24 A Tragédia de Um Povo
E espero que, embora este tenha sido um trabalho unilateral, possa ser o começo
de uma parceria intelectual duradoura.
Tenho uma grande dívida de gratidão para com duas mulheres extraordiná‑
rias. Uma é a minha mãe, Eva Figes, mestre na arte narrativa do passado, que
sempre me deu bons conselhos sobre como praticar tal ofício. A outra é a agente
Deborah Rogers, que me prestou um grande serviço ao intermediar o casamen‑
to com a editora Jonathan Cape.
Na Cape, duas outras pessoas merecem agradecimentos especiais. Dan
Franklin leu o livro com sensibilidade e inteligência na fase final de produção.
E Liz Cowen analisou todo o texto, linha a linha, sugerindo melhorias com um
cuidado meticuloso. Estou profundamente agradecido a ambos.
Pela assistência na preparação do texto final, quero agradecer também a Clai‑
re Farrimond, que me ajudou a verificar as notas, e a Laura Pieters Cordy, que
trabalhou para além do que devia para inserir as correções. Devo também agra‑
decimentos a Ian Agnew, que desenhou os esplêndidos mapas.
Os últimos seis anos foram um período estimulante para a pesquisa histórica
na Rússia. Gostaria de agradecer aos funcionários de muitos arquivos e biblio‑
tecas russos onde a pesquisa deste livro foi concluída. Devo muito ao conheci‑
mento e aconselhamento de incontáveis arquivistas, em número grande demais
para poder nomeá‑los um a um. Mas há uma exceção, Vladimir Barakhov, dire‑
tor do Arquivo Gorki, que foi mais do que generoso com seu tempo.
Muitas instituições me ajudaram na pesquisa para este livro. Agradeço à Aca‑
demia Britânica, ao Leverhulme Trust e – embora a parceria não tenha sido pos‑
sível – também ao Woodrow Wilson Center, em Washington, pelo seu generoso
apoio. O Trinity College em Cambridge, ao qual pertenço, uma faculdade tão
generosa quanto rica, foi de enorme valia, concedendo‑me bolsas e licenças para
estudos. Entre os Holy and Undivided Fellows, devo agradecimentos especiais
aos meus colegas Boyd Hilton e John Lonsdale, por me substituírem em au‑
sências frequentes; ao inimitável Anil Seal, pelo seu grande apoio; e sobretudo
a Raj Chandavarkar, pela sua crítica tão arguta e amizade leal. Finalmente, na
Faculdade de História, estou, como sempre, grato a Quentin Skinner pelos seus
esforços em meu benefício.
O melhor da Universidade de Cambridge é a qualidade dos seus alunos.
Ao longo dos últimos seis anos tive o privilégio de ensinar alguns dos alunos
mais brilhantes na minha disciplina especial sobre a Revolução Russa. Este livro
é, em grande medida, resultado dessa experiência. Muitas foram as ocasiões em
que deixei a sala de aula à pressa para pôr no papel ideias que surgiram a partir
de discussões com os meus alunos. Mesmo que esta contribuição não possa ser
reconhecida nas notas, espero que aqueles que lerem este livro o tomem como
um tributo da minha gratidão.
Cambridge, novembro de 1995
I.
A Dinastia
Numa manhã fria e assolada pelo vento, em fevereiro de 1913, São Petersbur‑
go celebrou 300 anos de governo Romanov sobre a Rússia. Há semanas que o
povo vinha falando sobre o grande evento e todos concordavam que, enquan‑
to vivessem, jamais voltariam a ver algo tão esplêndido. O poder majestoso
da dinastia seria ostentado, como nunca antes, com pompa e extravagância.
Quando o jubileu se aproximou, dignitários de partes remotas do império rus‑
so lotaram os grandes hotéis da capital: príncipes da Polónia e das terras bálti‑
cas; sumos sacerdotes da Geórgia e da Arménia; mulás e chefes tribais da Ásia
central; o emir de Bukhara e o cã de Khiva. A cidade fervilhava de visitantes
vindos das províncias, e os transeuntes bem vestidos que sempre circulavam
em torno do Palácio de Inverno viam‑se agora suplantados em número pelas
massas sujas – camponeses e operários nas suas túnicas e gorros, mulheres
envoltas em trapos com lenços cobrindo a cabeça. A avenida Nevsky Prospekt
experimentou os piores congestionamentos de trânsito da sua história quando
para lá convergiram elétricos, carruagens puxadas a cavalos e trenós. As ruas
principais estavam enfeitadas com as cores imperiais, branco, azul e vermelho;
as estátuas foram cobertas com grinaldas e fitas; e retratos dos czares, numa
linhagem que remontava a Mikhail, pendiam das fachadas de bancos e lojas.
Sobre as linhas do elétrico foram passados fios de luzes coloridas, que acen‑
diam à noite com as palavras «Deus Salve o Czar» ou ainda com uma águia de
duas cabeças e as datas 1613‑1913. Pessoas de fora da cidade, muitas das quais
nunca tinham visto luz elétrica, erguiam os olhos e ficavam maravilhadas. Ha‑
via colunas, arcos e obeliscos de luz. Em frente à Catedral de Kazan havia um
pavilhão branco a abarrotar de incenso, bromélias e palmeiras, que tiritavam
na atmosfera do inverno russo.
Foi na Catedral de Kazan que o ritual começou, com uma missa solene de
ação de graças celebrada pelo patriarca da Antioquia – vindo da Grécia espe‑
cialmente para a ocasião –, por três metropolitanos russos e por 50 sacerdotes
de São Petersburgo. A família imperial deixou o Palácio de Inverno em car‑
ruagens abertas, escoltada por dois esquadrões dos guardas de Sua Majestade
e por cavaleiros cossacos de cafetãs negros e boinas vermelhas do Cáucaso.
40 A Tragédia de Um Povo
Era a primeira vez que o czar cavalgava em público desde a revolução de 1905
e a polícia não pretendia correr riscos. O percurso foi ladeado pela Guarda
Imperial magnificamente adornada com as suas boinas típicas de hussardos
húngaros e uniformes escarlates. As bandas militares tocaram com estron‑
do o hino nacional e os soldados deram vivas quando a cavalgada passou.
Do lado de fora da catedral, procissões religiosas de várias partes da cidade
amontoaram‑se desde cedo. A multidão imensa, uma floresta de cruzes, íco‑
nes e estandartes, ajoelhou‑se quando uma das carruagens chegou mais perto.
No interior da catedral estava a classe dominante da Rússia: grão‑duques e
príncipes, membros da corte, senadores, ministros, conselheiros de Estado,
parlamentares da Duma, funcionários públicos destacados, generais e almi‑
rantes, governadores de província, presidentes de câmara, líderes de zemstvos
e marechais pertencentes à nobreza. Praticamente não havia um só peito sem
medalhas cintilantes ou uma estrela de diamante; dificilmente se encontraria
umas pernas que não estivessem cingidas por uma espada. Tudo reluzia à luz
de velas – os iconostásios de prata, as mitras dos sacerdotes ornadas de joias e a
cruz de cristal. No meio da cerimónia, duas pombas desceram da escuridão da
cúpula e pairaram por vários momentos sobre as cabeças do czar e do seu filho.
Deixando‑se levar pela exaltação religiosa, Nicolau interpretou o voo das duas
aves como um símbolo da bênção divina à Casa dos Romanov.
Enquanto isso, nos distritos operários, as fábricas foram encerradas e o dia
foi considerado feriado. Os pobres fizeram fila na porta das cantinas munici‑
pais, onde foram servidas refeições gratuitas em comemoração do aniversário.
As lojas de penhores foram cercadas por multidões excitadas pelos rumores
de que teria havido uma concessão especial permitindo ao povo reaver os seus
objetos de valor sem o pagamento de taxas de juro. Quando esses boatos se
revelaram falsos, as massas enfureceram‑se e várias lojas de penhores ficaram
com as janelas partidas. As mulheres reuniram‑se do lado de fora das cadeias
da cidade, na esperança de que os seus entes queridos estivessem entre os dois
mil prisioneiros amnistiados por ocasião da celebração do tricentenário.
Durante a tarde, grupos enormes afluíram ao centro da cidade para um muito
esperado espetáculo de son et lumière. Barraquinhas ao longo do caminho vendiam
cerveja em caneca, tortas, bandeiras dos Romanov e lembranças. Houve feiras e
concertos nos parques. Ao cair da noite, a avenida Nevsky Prospekt transformou
‑se numa massa sólida de pessoas. Todos os rostos se voltaram para o alto quando
o céu se acendeu com o brilho e as cores do fogo‑de‑artifício e das luzes, que cruza‑
ram a cidade por cima dos telhados para em seguida pousarem fugazmente sobre
monumentos importantes. O pináculo dourado do Almirantado brilhou como
uma tocha contra o céu negro e o Palácio de Inverno foi intensamente ilumina‑
do por três grandes retratos de Nicolau II, Pedro, o Grande, e Mikhail Romanov.
A família imperial permaneceu na capital para mais uma semana de rituais
de homenagem. Houve receções pomposas no Palácio de Inverno, onde lon‑
A Dinastia 41
* Bertrand Russell lançou mão de ideia similar quando, numa tentativa de explicar a Revolução
Russa a Lady Ottoline Morrell, observou que, embora o despotismo bolchevique fosse terrível,
parecia o tipo certo de governo para a Rússia: «Para entender, basta perguntar‑se como é que as
personagens de Dostoiévski devem ser governadas.»
44 A Tragédia de Um Povo
essa noção. Tal como o seu pai, Alexandre III, ele fora educado para manter os
princípios do governo pessoal, mantendo o poder na corte, e para desconfiar da
burocracia, como se esta fosse uma espécie de «muro» rompendo o vínculo na‑
tural entre o czar e o seu povo. Essa desconfiança pode ser explicada pelo facto
de, durante o século XIX, a burocracia imperial ter começado a emergir como
uma força tendente à modernização e à reforma. Os burocratas tornavam‑se
cada vez mais independentes da corte e cada vez mais próximos da opinião
pública. E isso, na perspetiva dos conservadores, levaria necessariamente a exi‑
gências revolucionárias por uma Constituição. O assassinato de Alexandre II
em 1881 (após duas décadas de reformas cautelosas) parecia confirmar a tese
dos conservadores de que havia chegado a hora de combater a deterioração
do sistema. Alexandre III (que certa vez afirmou que «desprezava a burocracia e
brindava com champanhe a sua destruição»)3 instituiu o regresso a formas pes‑
soais de governo autocrático nas duas esferas de governo, central e local. E para
onde seguia o pai, o filho devia acompanhá‑lo.
O modelo autocrático de Nicolau era quase inteiramente moscovita. O seu
czar favorito era Alexei Mikhailovich (1645‑76), e o nome que deu ao seu
herdeiro foi inspirado na admiração por este antepassado. Nicolau imitava a
piedade serena de Alexei Mikhailovich, a qual lhe teria assegurado, dizia‑se,
a convicção de governar a Rússia segundo a sua própria consciência religiosa.
Além disso, gostava de justificar as suas políticas alegando que a ideia lhe «fora
sugerida» por Deus. Segundo o conde Witte, um de seus ministros mais es‑
clarecidos, Nicolau acreditava que «o povo não tem influência sobre os factos,
que Deus tudo dirige e ainda que o czar, como um ser escolhido por Deus,
não deve aconselhar‑se com ninguém e apenas seguir a sua inspiração divina».
Tamanha era a admiração de Nicolau pelos costumes semi‑asiáticos da Idade
Média, que tentou introduzi‑los na sua corte. Ordenou que se mantivesse a
grafia de antigas formas eslavas em documentos oficiais e publicações, mes‑
mo depois de essas já terem desaparecido da literatura russa. Empregava a
palavra Rus’, o velho termo moscovita para as terras centrais da Rússia, e não
Rossiia, expressão usada pelo império e que havia sido adotada por Pedro,
o Grande. Não gostava do título Gosudar Imperator (Imperador Soberano),
também introduzido por Pedro, pois isso implicava que o autocrata nada mais
fosse do que o primeiro funcionário do Estado abstrato (gosudarstvo). E dava
preferência ao antigo título czar (derivado do grego, kaisar), que remontava
à era bizantina e carregava conotações religiosas de governo paternal. Nico‑
lau também brincava com a ideia de fazer com que todos os seus cortesãos
usassem longos cafetãs, iguais aos dos velhos boiardos moscovitas (apenas o
custo da indumentária o fez recuar). O ministro do Interior, D. S. Sipiagin,
autor da ideia, tinha os seus aposentos decorados no estilo moscovita. Numa
ocasião, recebeu o czar – que apareceu mascarado de Alexei – com todos os
rituais da corte do século XVII, seguidos por um banquete tradicional russo e
A Dinastia 45
parecia sugerir que o governo era uma barreira entre o povo e o seu czar, a
quem o povo veria com devoção cega porque fora escolhido por Deus. [...]
Os amigos mais próximos do czar na corte convenceram‑se de que o sobera‑
no tudo podia, fiando‑se no amor ilimitado e na lealdade suprema do povo.
A Dinastia 47
Os ministros do governo, por outro lado, não se compraziam com esse tipo
de autocracia; nem a Duma, que continuamente buscava controlar o poder
executivo. Ambos eram da opinião de que o soberano deveria reconhecer as
mudanças ocorridas desde o dia em que os Romanov se tornaram czares de
Moscovo e senhores dos domínios russos.
ricos. E essa é a razão por que o povo russo sempre aclama o seu czar com tal
fervor entusiástico, seja no Teatro Marinsky, em São Petersburgo [...] ou à sua
passagem pelas cidades e aldeias.»11
«Agora pode ver‑se que cobardes são aqueles ministros», disse a imperatriz
Alexandra a uma dama de companhia logo após o jubileu. «Estão sempre a
assustar o imperador com ameaças de revolução e você teve oportunidade de
constatar o contrário com os seus próprios olhos: basta aparecermos e imedia‑
tamente os corações são nossos.» Se os rituais do jubileu pretendiam criar a
ilusão de uma dinastia poderosa e estável, então convenceram poucas pessoas,
exceto a corte. Os Romanov tornaram‑se vítimas da sua própria propagan‑
da. Nicolau, em particular, voltou da sua excursão às províncias convicto da
autoilusão de que «o meu povo ama‑me». Isso despertou um novo desejo de
viajar pelo interior da Rússia. Falava de uma viagem de barco Volga abaixo,
uma visita ao Cáucaso e à Sibéria. Encorajado pela crença na sua própria po‑
pularidade, começou a procurar maneiras de se aproximar do sistema de go‑
verno pessoal que tanto admirava na antiga Moscovo. Estimulado pelos seus
ministros mais reacionários, chegou a considerar a total dissolução da Duma,
ou transformá‑la num órgão meramente consultivo, como a Assembleia da
Terra (Zemskii Sobor) dos séculos XVI e XVII.
Observadores estrangeiros simpatizantes da monarquia eram facilmente
conquistados pela retórica otimista. «Nenhum futuro parece tão confiante ou
tão brilhante», anunciou o The Times de Londres em relação às perspetivas
dos Romanov, numa edição especial sobre o jubileu. Convencido da devoção
do povo ao czar, o jornal relatou que uma série de selos postais com retratos
dos governantes Romanov tinha sido impressa para marcar o tricentenário,
mas fora retirada, porque alguns funcionários monárquicos dos correios se
recusaram a colocar o carimbo sobre aqueles rostos venerados. «Esses escrú‑
pulos leais e eminentemente respeitáveis», concluiu o The Times, «são típicos
da mente das vastas massas do povo russo». Estes sentimentos eram ecoados
pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico. «Nada podia exceder a
afeição e a devoção à pessoa do imperador demonstradas pela população sem‑
pre que Sua Majestade aparecia. Não há dúvida de que nesse forte apego das
massas [...] à pessoa do imperador está a grande força da autocracia russa.»12
Na verdade, o jubileu aconteceu no meio de uma profunda crise social e
política, alguns diriam mesmo revolucionária. As celebrações ocorreram num
cenário de várias décadas de violência, sofrimento humano e repressão cres‑
centes, que tinham oposto o povo do czar ao seu regime. Nenhuma das feri‑
das da revolução de 1905 se tinha fechado. Algumas delas ainda supuravam
e pioravam. O grande problema camponês permanecia insolúvel, a despeito
dos esforços tardios a favor da reforma agrária. E, de facto, desde a revolução
50 A Tragédia de Um Povo
O MINIATURISTA