Foi na época de faculdade que pude exercer saudavelmente minha paixão por órgãos,
sangue, músculos e ossos.
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Nas aulas de anatomia, troquei os documentários da série Faces da Morte por efetivas
horas dedicadas a sanar todas as minhas curiosidades. Lidar com o corpo naquela
fragilidade e com a morte sempre presente nos aguça um respeito diferente pela carne e
pelo cadáver, belamente mencionado pela "Oração ao Cadáver Desconhecido":
“O curvar-te com a lâmina rija de teu bisturi sobre o cadáver desconhecido, lembra-te de
que este corpo nasceu do amor de duas almas; cresceu embalado pela fé e esperança
daquela que, em seu seio, o agasalhou, sorriu e sonhou os mesmos sonhos das crianças
e dos jovens; por certo amou e foi amado e sentiu saudades dos outros que partiram,
acalentou um amanhã feliz e agora jaz na fria lousa, sem que, por ele, se tivesse
derramado uma lágrima sequer, sem que tivesse uma só prece. Seu nome só Deus o
sabe, mas o destino inexorável deu-lhe o poder e a grandeza de servir a humanidade
que por ele passou indiferente.
As coisas que vi nas aulas de anatomia foram explicadas pela fisiologia. Nosso padrão
de distribuição de gordura corporal é tão ou mais importante do que a quantidade
de gordura corporal total, pois as células do tecido adiposo apresentam diferenças
metabólicas e fisiológicas de acordo com o local que se encontram. A gordura do
bumbum, por exemplo, é diferente, mais saudável e -- dizem por ai -- mais bonita do que
a gordura da barriga.
Todos já fizemos o conhecido cálculo de Massa Corporal, o IMC: peso corporal expresso
em Kg e dividido pelo quadrado da estatura em m². De uma maneira geral e com poucas
variações, advoga-se que, em ambos os sexos, os valores desejados são de 19 a 25
Kg/m². Um IMC acima desses valores reflete situação de sobrepeso e, acima de 30, está
quase sempre associado à quantidade excessiva de gordura (níveis de
obesidade), exceto atletas de alto rendimento de algumas invejáveis modalidades
esportivas.
No caso do sobrepeso, refere-se ao aumento excessivo do peso corporal total, que pode
ocorrer com modificações de apenas um de seus constituintes (gordura, músculo, osso e
água) ou em seu conjunto. Já a obesidade refere-se especialmente ao aumento na
quantidade generalizada ou localizada de gordura em relação ao peso
corporal associado a elevados riscos para a saúde.
Para avaliar a real composição corporal, existem recursos bem precisos, mas geralmente
caros e limitantes em sua aplicação, o que destaca a utilização de recursos mais simples,
como a Antropometria, que apresentam resultados muito positivos e de fácil acesso.
Ouvimos tantas mediocridades sobre nossos hábitos e condutas para um corpo apenas
bonito que nos esquecemos de prestar atenção aos detalhes importantes, como nossa
nutrição, padrões de sono e exercícios estão afetando nosso corpo, peso, composição
corporal e, por fim, nossa distribuição de gordura corporal.
Temos que fazer uma avaliação auto-referenciada de nossa competência física, nos
orientando quanto às melhoras em relação aos nossos desempenhos anteriores. Se eu
comparar a minha “barriga” com um “abdômen” célebre, não terei apenas um padrão
complicado de distribuição de gordura corporal, mas também certa ansiedade,
desmotivação entre outras mazelas temperadas pelo cortisol.
Temos uma indústria da “saúde” que nos contamina com o estético em detrimento do
saudável. Temos como exemplos os recortes de pesquisas que “concluem” que homens
se atraem imperceptivelmente pela relação cintura e quadril do corpo feminino, com o
intuito de encontrar uma parceira saudável e fértil; e no caso das mulheres, a relação
cintura e tronco masculino em prol de um homem forte, e protetor.
Quando esse tipo de informação é divulgada por revistas nada científicas, são vendidas
também conclusões reducionistas e uma visão estritamente cissexual, que partem do
princípio que todas as pessoas são e exercem o que se espera de seus gêneros e de
padrões de beleza.
Posso chegar ao meu IMC mínimo considerado saudável e, mesmo assim, minha
estrutura óssea ser maior do que os 60 cm de cintura que se propaga como sexy. Se não
tenho, então, quadris largos e uma cintura fina? Posso denunciá-los como causadores de
minhas infelicidades? Não. Tenho experiências tão positivas e negativas quanto à
Shakira.
Não merecemos impropérios fisiológicos. São inúmeras as justificativas e fins para nossos
quadris e barriguinhas estarem do jeito que estão. Mas tem um momento sutil, que às
vezes nos acomete e nos percebemos pouco confortáveis com nossos corpos, e dói.
Pode ser resultado de algum exame clínico, avaliações físicas da academia, ou mesmo o
espelho nosso de cada dia. Nesse momento, só uma força de vontade bem grande para
mudar o cenário e tomarmos alguma iniciativa para diminuir qualquer proeminência.