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HAITI: DILEMAS E FRACASSOS

INTERNACIONAIS
Ricardo Seitenfus
Nous ne pouvons affirmer l`innocence de
personne, tandis que nous pouvons affirmer à
coup sûr la culpabilité de tous.
Albert Camus, La chute
Para Maria, minha princesinha caribenha, com amor.
Sumário

Lista de abreviaturas
Lista quadros, tabelas e figuras
Prefácio
Introdução

Primeira Parte – O imutável Haiti e seus desencontros com o mundo

Capítulo I – O buraco negro da consciência ocidental


Capítulo II – A natureza do dilema haitiano
Capítulo III – Um golpe para a democracia: a queda de Aristide
Capítulo IV – Esperança e desilusão: a América Latina diante da crise
Capítulo V – A Minustah: derradeira intervenção?

Segunda Parte – Os descaminhos internacionais: o drama

Capítulo VI – A cólera da natureza: o terremoto


Capítulo VII – A CIRH: a crise no interior do drama
Capítulo VIII – Haiti ou Haitong?
Capítulo IX – A cólera dos homens
Capítulo X – René Préval: o florentino do Caribe

Terceira Parte – Os descaminhos internacionais: a paródia

Capítulo XI – Uma missão quase impossível


Capítulo XII – A tensa jornada eleitoral
Capítulo XIII – A escalada
Capítulo XIV – Uma simples entrevista
Capítulo XV – O desfecho

Conclusão
Bibliografia

Lista de Abreviaturas

ABC – Agência Brasileira de Cooperação


Acisos – Ações Cívico-Sociais
Alba – Aliança Bolivariana para as Américas
BBC – British Broadcasting Corporation
BIT – Bureau Internacional do Trabalho
BNH – Banque nationale d’Haïti
Brides – Bureau de Recherche en Informatique et en Développement
Économique et Social
Caricom – Comunidade do Caribe
CC – Centro Carter
CDHNU – Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas
CDI – Carta Democrática Interamericana
CEP – Conselho Eleitoral Permanente
Cepal – Comissão Econômica para América Latina e o Caribe
Ceress – Centro de Educação, Pesquisa e Ações em Ciências Sociais e Penais
CEV – Comissão Especial de Verificação
CI – Comunidade Internacional
Cida – Canadian International Development Agency
CIDC – Coalition for International Development Companies
CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos
CIJ – Corte Internacional de Justiça
CIN – Cédula de Identificação Nacional
CIRH – Commission Intérimaire pour la Reconstruction d`Haïti
CGI – Clinton Global Initiative
CM – Clube de Madri
CNE – Conseil National d’Équipement
CNO – Conselho Nacional de Observação das Eleições
Conhane – Conselho Haitiano de Atores não Estatais
Core Grupo – Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos,
França, Nações Unidas, Organização dos Estados Americanos e União
Européia
COV – Centro de Operações e de Verificação
CPOEA – Conselho Permanente da Organização dos Estados Americanos
Cresfed – Centro de Investigações e de Formação Econômica e Social para o
Desenvolvimento
CSNU – Conselho de Segurança das Nações Unidas
CTCP – Collège Transitoire du Conseil Electoral Permanent
CTV – Centro de Apuração dos Votos
DAP – Disaster Accountability Project
Dala – The Damage and Loss Assessment
Deco – Departamento de Cooperação e Observação Eleitoral da Organização
dos Estados Americanos
DPKO – Department for Peacekeeping Operations das Nações Unidas
DPP – Detenção provisória prolongada
Fadisma – Faculdade de Direito de Santa Maria
FAH – Forças Armadas do Haiti
FAL – Fuzil Automático Leve
Fespa – Forum Économique du Secteur Privé des Affaires
FMI – Fundo Monetário Internacional
Fokal – Fundação Conhecimento e Liberdade
FSP – Foro de São Paulo
Grupo ABC – Argentina, Brasil e Chile
Hasco – Haitian American Sugar Company
Ibas – Índia, Brasil e África do Sul
IBESR – Instituto do Bem-Estar Social
Ifes – International Foundation for Electoral Systems
IJDH – Instituto de Justiça e Direitos Humanos
IML – Instituto Médico Legal
Interpol – Organização Internacional de Polícia Criminal
Ipec – Programa Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil
ISC – Iniciativa da Sociedade Civil
Mercosul – Mercado Comum do Sul
Micivh – Missão Civil Internacional no Haiti
MIF – Multinational Interim Force
Minustah – Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti
MOE – Missão de Observação Eleitoral
Moufhed – Mouvement des Femmes Haïtiennes pour l’Éducation et le
Développement
MSF – Médicos Sem Fronteiras
NDI – National Democratic Institute
NED – National Endowment for Democracy
Noei – Nova Ordem Econômica Internacional
OAS – Grupo OAS (Brasil)
OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OEA – Organização dos Estados Americanos
OIT – Organização Internacional do Trabalho
OMS – Organização Mundial de Saúde
Onaca – Agência Nacional de Registro de Terras
ONG – Organização não-Governamental
Ongat – Organização não-Governamental de Alcance Transnacional
ONI – Office National d`Identification
ONU – Organização das Nações Unidas
Opas – Organização Pan-americana de Saúde
OPL – Organização do Povo em Luta
Pacegi – Conselho Consultivo Presidencial para o Desenvolvimento
Econômico e Investimentos
PADF – Pan American Development Foundation
PAM – Programa Mundial de Alimentos
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PCC – Partido Comunista Cubano
PCF – Partido Comunista Francês
PDVSA – Petróleos de Venezuela S. A.
PEDN – Plano Estratégico de Desenvolvimento Nacional
Petrobrás – Petróleo Brasileiro S. A.
PNH – Polícia Nacional do Haiti
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
PT – Partido dos Trabalhadores (Brasil)
PwC – Price, Waterhouse and Coopers
RNDDH – Réseau National de Droits de l’Homme
SGNU – Secretário Geral das Nações Unidas
Sonapi – Société Nationale des Parcs Industriels
STF – Supremo Tribunal Federal
UE – União Européia
UEH – Universidade de Estado do Haiti
Unam – Universidade Nacional Autônoma do México
Unasul – União das Nações Sul-americanas
Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura
Unicef – Fundo das Nações Unidas para a Infância
Unipol – Polícia das Nações Unidas
Unocha – Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos
Humanitários
Usaid – United States Agency for International Development
WB – Banco Mundial

Lista de quadros, tabelas e figuras

1 – Escravos em Saint-Domingue
2 – Etapas históricas do Haiti
3 – Missões das Nações Unidas ao Haiti (1993-2014)
4 – Eleição presidencial de novembro de 2000
5 – Participação da América Latina nas operações de manutenção da paz das
Nações Unidas
6 – Características do Princípio da não-indiferença
7 – Composição da Minustah segundo sua origem
8 – Composição da Minustah segundo sua especialização
9 – Registro das Ongs no Haiti (2009)
10 – Recursos financeiros disponibilizados pela CIRH
11 – Organograma de comando para as eleições de 2010
12 – Evolução da distribuição das Cédulas de identidade (2010)
13 – Eleição presidencial novembro de 2010 (votos válidos – primeiro turno)
14 – Repartição dos votos entre os principais candidatos
15 – Les découvertes de Seitenfus (charge du journal Le Nouvelliste)
16 – Eleição presidencial de 2011 (votos válidos – segundo turno)

Prefácio

Ricardo Seitenfus é minha referência sobre o Haiti, desde quando


comecei a debater o tema. Isto aconteceu nas vésperas de o Brasil enviar um
contingente militar a Porto Príncipe.
Naquela ocasião, como deputado de oposição, questionei a remessa de
tropas brasileiras. Minhas lembranças do processo haitiano não davam
margem ao otimismo.
Acabara de ler um relatório de Régis Debray, escrito para o governo
socialista da França, no qual o escritor revelava todas as dificuldades de
intervir positivamente no Haiti. Além da pobreza, o país era um cemitério de
obras fracassadas ou inconclusas.
Nas minhas lembranças estava também o romance de Graham
Greene, Os Comediantes, no qual ele menciona estradas arruinadas,
construídas no tempo da ocupação militar americana.
O que o Brasil faria no Haiti? Como garantir que sua presença não era
apenas mais um ato numa sucessão de intervenções fracassadas?
Ricardo Seitenfus foi ao Congresso discutir o tema e me convenceu,
com seus conhecimentos e, sobretudo, de meio de sua empatia com a cultura
haitiana, de que havia uma chance de êxito na presença brasileira.
De lá para cá muita coisa se passou no Haiti, inclusive um trágico
terremoto. O livro de Seitenfus rememora todos os lances importantes da
intervenção e nos oferece também uma excelente e profunda visão da história
haitiana, do isolamento de um país que ousou se libertar do colonialismo
francês e trilhar o caminho da independência.
Como alguém que pensou um novo caminho para o Haiti, vivendo os
problemas cotidianos do país, durante e depois do terremoto, Seitenfus não só
apresenta uma crítica precisa dos erros cometidos ali como manifesta uma
certa apreensão pelo futuro.
Uma das frases de seu livro, no meu entendimento, deveria ser
gravada na entrada do Haiti e lida por todos que acreditam estar mudando a
história haitiana: “Aqui, não há nada a pacificar e tudo a construir”.
Seitenfus avalia também o processo de construção de um novo Haiti,
o emaranhado de Organizações Não Governamentais, a fragilidade das
instituições e, sobretudo, depois do terremoto, a invasão religiosa dos que
querem salvar o Haiti de seu “equívoco religioso”, o vodu.
O Haiti tornou-se uma página aberta na qual todos querem escrever
sua epopeia ou exorcizar seus fantasmas. O que quer o povo haitiano, porém?
Quando será de novo o mestre de seu destino?
Como funcionário internacional e conhecedor do país, Seitenfus
oferece uma visão detalhada de todos os equívocos e possíveis acertos da
presença estrangeira no Haiti.
Ele revela em detalhes a tensão entre o comando brasileiro das Forças
de Paz e o poderoso esquema que sempre vê a intensificação da repressão
como uma saída para as sucessivas crises haitianas.
O ponto mais delicado dessa tensão foi o suicídio do general Urano
Bacellar, comandante brasileiro das Forças de Paz. No momento em que
morreu era pressionado para alterar o viés social que o Brasil procurava dar
ao seu trabalho e substituí-lo por uma política mais repressiva.
Suicídios são sempre muito complexos para se explicar com um só
motivo, mas sem dúvida a tensão e as pressões que o general Bacellar sofreu
tiveram um papel importante na sua morte.
Olhando para trás, quando mesmo divergindo tínhamos uma certa
esperança na colaboração estrangeira no Haiti, jamais poderíamos imaginar
que as forças militares da ONU, as que iriam proteger o país, levassem para o
Haiti mais um fator destrutivo: a epidemia de cólera, disseminada pela
presença de soldados nepaleses contaminados pelo vírus.
São muitos episódios dramáticos, desde o princípio do Haiti.
Seitenfus os analisa com precisão e amor. Ele mesmo adverte no começo do
livro que está falando não só de um país que estuda, mas de um país que ama,
de um povo com o qual simpatiza e vê nele inúmeros potenciais.
Forças de ocupação, forças de reconstrução, estadistas salvadores,
como Bill Clinton, religiosos americanos que desembarcam no Haiti
querendo livrá-lo de uma “religião infernal” - todos passam pelo crivo da
avaliação de Seitenfus.
Quando discutíamos a ida de tropas brasileiras para o Haiti não
pressentíamos a sucessão de tragédias que envolveriam o país.
Seitenfus foi fiel as suas opções. Mergulhou na vida haitiana,
aprofundou seus conhecimentos históricos e culturais sobre o país, e hoje nos
oferece um quadro extremamente rico e detalhado dos acontecimentos.
É um livro definitivo sobre a história do Haiti. Uma descrição
profunda da intervenção, feita por um quadro internacional que fez parte dela.
Não é só isso entretanto: é uma renovada declaração de amor ao Haiti e seu
fascinante povo.
Rio de Janeiro, abril de 2014.
Fernando GABEIRA
Escritor, jornalista, foi Deputado federal
Introdução

La mer qui mène à Cipango, et à ces îles où les hommes meurent fous et heureux.
Albert Camus, La chute

Abordar o Haiti significa experimentar, ao mesmo tempo, fortes e


múltiplas sensações contraditórias. Trata-se de um país extravagante,
maximalista, irritante, excepcional, intrigante, corajoso, emocionante,
devastador, frágil, precioso, digno, orgulhoso, injusto. A longa adjetivação
nos convence de que se trata de um país mais para ser sentido do que para ser
pensado.
Ao resumi-lo restam também dois sentimentos contraditórios:
desespero e encantamento. O primeiro surge por variados caminhos: a análise
das frias estatísticas sociais e econômicas, o conhecimento de sua história
política posterior à independência, o mergulho na insustentável crueza do
cotidiano da grande maioria de seu povo ou ainda as relações promíscuas
mantidas com alguns parceiros internacionais, sempre dispostos a lhe
estender a mão, embora na maioria das vezes se trate do abraço do afogado.
O encantamento decorre da força doce e risonha de seu povo, de seu
amor sem limites à vida, da inocência bela e elegante de suas crianças, de sua
epopeia pioneira e única na luta pelos direitos humanos, de sua estoica e ao
que parece infinitamente elástica capacidade para suportar indizíveis
condições de sobrevivência, em sua arte multiforme sustentada em uma
realidade local a transmitir valores universais, em suas paisagens sublimes e
sedutoras a esconder terríveis e recorrentes perigos.
A dicotômica sensação persegue a todos que tentam uma aproximação
com o Haiti. Impossível dela se desvencilhar. O olhar acurado sobre o Haiti
somente torna-se possível quando afastado o maniqueísmo, as fórmulas feitas
e acabadas, as teorias levadas a simplificar a indômita, complexa e
contraditória realidade. Ou seja, quando não se procede à eleição do preto ou
do branco, pois, na verdade, o que predomina é o cinzento das zonas
sombrias.
O entrelaçamento do real maravilhoso de Alejo Carpentier com o real
contraditório haitiano aconselha que para nos aproximarnos de nosso objeto,
devemos mergulhar na pele do outro, despojar-nos das idéias preconcebidas,
nos afastarmos da aparência que tende a esconder a realidade, divorciar-nos
da tentação que conduz a conclusões apressadas, estarmos aptos a mais ouvir
do que a falar. Somente assim teríamos uma ínfima possibilidade de penetrar
nos meandros de uma sociedade fascinante a desafiar, nestes últimos 50 anos,
tanto os acordes melodiosos quanto os tambores guerreiros da modernidade.
Ora, foi uma atitude exatamente inversa a que tivemos ao longo da História,
constituindo o principal fio a conduzir nossa desinteligência.
O Haiti vive desde 1986 um conflito doméstico de baixa intensidade.
Trata-se da inevitável luta pelo poder entre atores políticos. Ausentes uma
situação de guerra civil, ou o risco de crimes coletivos ou ainda a perspectiva
de genocídio. Ao contrário. Os índices de violência estão entre os menores da
região. A única particularidade desta disputa política consiste no fato de que
não são respeitadas as regras do jogo democrático.
O Haiti tampouco constitui uma ameaça aos seus vizinhos. Em 1995
aboliu suas Forças Armadas e dispõe unicamente de uma Polícia Nacional,
pobremente equipada e treinada, além de reduzidos efetivos.
Apesar destas condições, foram enviadas ao Haiti, entre 1993 e 2013,
nada menos que sete missões de intervenção militar, policial e civil
patrocinadas pelas Nações Unidas (ONU) com o apoio da Organização dos
Estados Americanos (OEA). Devido à falta de alternativa e uma percepção
caolha dos desafios haitianos, o Conselho de Segurança das Nações Unidas
(CSNU) chamou para si a responsabilidade de supostamente “estabilizar” o
país. Inclusive a atual intervenção, que pretende ser a derradeira, intitula-se
Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah).
O sistema de prevenção de litígios, mormente o das Nações Unidas,
não é adaptado às necessidades e ao contexto haitiano. Como explicar senão
pela inadaptabilidade sistêmica, que tenha sido necessário, no prazo de uma
década, fazer com que a ONU retornasse ao Haiti em seis ocasiões com
missões de diferentes naturezas?
O Haiti foi historicamente objeto de uma atenção negativa por parte do
sistema internacional. Percebido como uma ameaça, é a força que define as
relações do mundo com o Haiti e jamais o diálogo. Localizado numa bacia
caribenha considerada mare nostrum por Washington, escassas milhas o
separam da ilha rebelde de Cuba, o Haiti também é tributário de seus
históricos vínculos com a França. Todos estes supostos parceiros buscam
alcançar um único objetivo: congelar o poder e transformar os haitianos em
prisioneiros da própria ilha. O receio que os balseiros (ou boat people) fujam
da ilha explica as decisões internacionais em relação ao Haiti. O que se quer é
que os haitianos permaneçam no país a qualquer custo.
O Haiti é também vítima da ação de certas Organizações não
Governamentais de Alcance Transnacional (Ongat),[1] pois existe uma
relação maléfica e perversa entre a força destas e a fraqueza do Estado
haitiano. A maioria delas só existe em razão da desgraça haitiana. Vítima
igualmente da caridade alheia que não pode constituir o motor de suas
relações exteriores. Vítima, enfim, de uma elite mercantilista e de uma classe
política predadora.
Mais de 90% do sistema educativo e de saúde são privados. O país não
dispõe de recursos públicos sequer para fazer funcionar de maneira mínima
um aparelho estatal. A ONU fracassa ao não levar em conta os elementos
culturais. Resumir os desafios do Haiti a uma ação militar piora ainda mais a
situação de um dos principais problemas do país: a debilidade de sua
estrutura econômica. O grande desafio, além do político, é socioeconômico.
Quando a taxa de desemprego atinge 80% da força de trabalho disponível, é
contraproducente e imoral montar uma Operação de Paz e enviar soldados
sob o falso rótulo de uma Missão de Estabilização. Não há nada a estabilizar
e tudo a construir.
Ao longo de dois séculos, a presença de tropas estrangeiras se alternou
com a de ditadores. O pecado original do Haiti, na cena mundial, é sua
liberação. Os haitianos cometeram o inaceitável em 1804: um crime de lesa-
majestade para um mundo inquieto. O Ocidente era, na época, colonialista,
escravocrata e racista. Sustentava-se com a exploração das terras
conquistadas. Assim, o modelo revolucionário haitiano assustou as grandes
potências colonialistas e racistas. Os Estados Unidos somente reconheceram
a independência do Haiti em 1862 e a França exigiu pesada compensação
financeira para aceitar essa libertação. Logo, a independência é
comprometida e o desenvolvimento entravado. Desde então o mundo nunca
soube como tratar o Haiti e resolveu ignorá-lo. Iniciaram-se então os 200
anos de solidão do Haiti no cenário internacional.
O Haiti é um concentrado dos dramas e dos fracassos da solidariedade
internacional. A ONU aplica cegamente o capítulo VII de sua Carta e envia
suas tropas para impor uma operação de paz. Ela justifica-se com a desculpa
burocrática de que o mandato do CSNU descarta operações que não sejam as
militares. As condições haitianas fazem com que, de fato, seu mandato se
limita à manutenção da paz dos cemitérios.
Proporcionalmente ao número de habitantes, o Haiti é o país que
supostamente mais recebe ajuda externa, tanto privada quanto pública. O
haitiano é, segundo as múltiplas e variadas estatísticas disponíveis, o que
mais caro custa à cooperação internacional. Antes do sismo já era assim.
Após 12 de janeiro de 2010, o fenômeno ampliou-se de tal maneira que é
legítimo interrogar-se sobre as características e os resultados desta “corrida
ao ouro” para a indústria da ajuda internacional na qual se transformou o
Haiti.
Contrastando com o imenso volume de suposta ajuda concedido, os
resultados são pífios. Os programas financiados com recursos externos
tendem a desaparecer tão logo repassados aos parceiros haitianos, pois
ausente qualquer vestígio de sustentabilidade. O país faz jus ao pouco
elogioso titulo de cemitério de projetos. Pode-se agregar que o Haiti é o país
das ilusões e da inocência perdidas, das frustrações infinitas, dos sonhos
desfeitos, do purgatório das boas intenções.
O ano de 2010 ficou conhecido como o mais terrível da história
haitiana, marcado por três acontecimentos maiores. O primeiro ocorre em 12
de janeiro, quando um terremoto destrói a região metropolitana de Porto
Príncipe matando 316 mil pessoas, ferindo outras tantas e desabrigando
aproximadamente 1,5 milhão de pessoas.
O segundo tem início em meados de outubro e se prolongará por
muitos anos. Trazido por soldados nepaleses a serviço da Minustah, pela
primeira vez aporta no país o vibrião do cólera. As desumanas condições
sanitárias que imperam no Haiti fizeram com que a epidemia se alastrasse
matando 8 mil pessoas e infectando outras 800 mil.
Enfim, o terceiro acontece por ocasião das eleições presidenciais de
fins de novembro de 2010 e dão lugar à intromissão – tão inverossímil quanto
vergonhosa – de determinados países ditos amigos do Haiti, da ONU e da
OEA, impondo um candidato não somente à revelia da vontade popular, mas
também contrariando elementares regras diplomáticas e basilares princípios
eleitorais. Raramente escancaramos de tal forma as debilidades, contradições
e covardia que acometem o mundo quando se debruça sobre o Haiti.
Este livro retraça, a partir do interior dos acontecimentos, o annus
horribilis do Haiti. Ele divide-se em três partes. Na primeira serão assentadas
as premissas da complexa e fascinante realidade haitiana confrontada com os
avatares de suas relações externas. A segunda, centrada no terremoto de
janeiro de 2010 e na epidemia de cólera trazida à ilha Hispaniola pela
operação de paz das Nações Unidas, desenha a dimensão da tragédia haitiana.
Finalmente, a terceira parte será dedicada aos embates políticos, eleitorais e
de poder desencadeados pela sucessão do presidente René Préval.
Presença constante na História haitiana, seja por rejeição e boicote,
seja por indiferença diante dos seus dramas, o Ocidente desempenha papel
essencial na construção dos mitos e realidades do atual Haiti.
Embora pretenda ser analítico, o que marca este livro é a simplicidade
de uma narrativa direta e sem floreios, redigido com o exclusivo intuito de
contribuir para as mudanças que devem ocorrer nas relações do mundo com a
irrequieta e incompreendida ilha que no passado foi considerada a Pérola das
Antilhas.
Caso o leitor venha buscar neste livro consolo para seu bem-estar,
afago agradecido pelo que o mundo aporta ao Haiti ou fórmulas acabadas que
entendem, explicam e resolvem os dramas e dilemas aqui retratados, melhor
seria que encerrasse a leitura antes de tê-la iniciado. Da inquietação com o
drama cotidiano do Haiti não poderia resultar outra coisa a não ser um texto
preocupado, sensível, corajoso, quase desesperado.
Este livro não foi escrito para agradar quem quer que seja. Muito
provavelmente a grande maioria de atores institucionais aqui mencionados
não o apreciará. Embora, como alerta Camus em La Chute, se estivéssemos
em uma democracia, seríamos todos culpados. Não é o caso. Ante o
descalabro da suposta cooperação internacional, a conivência criminosa de
parte da elite haitiana e o sofrimento sem-fim da maioria de sua população,
não há como transigir.
Trata-se de um testemunho engajado escrito por alguém imbuído da
tênue esperança que ele contribua para reduzir o tempo que falta para que o
mundo e o Haiti encontrem outro caminho, distinto daquele que trilharam até
o presente, em suas relações recíprocas.

PRIMEIRA PARTE – O IMUTÁVEL HAITI E SEUS


DESENCONTROS COM O MUNDO

L`engagement est la décision prise pour une cause imparfaite.


Paul-Louis Landsberg
A catástrofe atual inscreve-se numa original trajetória histórica. Ao
longo desta foram semeadas desgraças e feitos heroicos. Marcado por
constantes e dramáticas desinteligências com o Ocidente, o Haiti provoca
repulsão e medo – traços maiores a impregnar de maneira indelével suas
relações exteriores.
O que constituiu o berço da conquista espanhola e logo francesa do
Novo Mundo iluminou ao longo dos séculos, tanto o que há de mais sublime
quanto o de mais horrendo na condição humana. Foi sob a luminosidade
incomparável dos céus caribenhos, a refletir-se em suas águas de um azul
intenso, que crimes indescretíveis foram cometidos. E foi precisamente no
berço haitiano que vingou a única revolta dos condenados da terra. Foram das
altas terras haitianas que ecoou o grito pela liberdade, pela dignidade, pela
justiça e pela igualdade. Antes que ele fosse ouvido, todavia, o que dominou
os corpos e os espíritos foram os lamentos de uma noite sem-fim.

CAPÍTULO I – O BURACO NEGRO DA CONSCIÊNCIA


OCIDENTAL

Tu sabes qual é o problema do Caribe? Ocorre que todo mundo veio fazer
aqui o que não podiam fazer na Europa e esta chinfra tinha que ter conseqüências
históricas...
Gabriel Garcia Márquez, Bohemia, Havana, 1979

Em 10 de março de 2000 quando visitava Pointe-à-Pitre (Guadalupe),


o presidente francês, Jacques Chirac, sentenciou que o «Haïti na pas été, a
proprement parler, une colonie française…».
O absurdo da frase, embora subentenda a necessidade de explicitar o
significado de “proprement parler”, integra uma forte corrente de pensamento
e de ação, na maioria das vezes subjacente, marcada pelo distanciamento e
pela rejeição ao Haiti e ao que ele significa.
A sintomática e constante repulsa francesa ao Haiti impediu que, ao
longo de mais de dois séculos, um Chefe de Estado francês visitasse sua
antiga colônia. Foi necessário que ocorresse o terrível terremoto de 12 de
janeiro de 2010 para que Nicolas Sarkozy reparasse o opróbrio.
Embora significativa, a brevidade da permanência de algumas horas e
o perfil do Chefe de Estado francês, revelam os limites intransponíveis das
relações entre Porto Príncipe e Paris. Nicolas Sarkozy é um dos adeptos do
revisionismo da história do colonialismo. Em discurso sobre o Homem
Africano, de fevereiro de 2007, ele sustenta que

“Le rêve européen qui fut le rêve de Bonaparte en Egypte,


de Napoléon III en Algérie, de Lyautey au Maroc, ne fut pas
tant un rêve de conquête qu’un rêve de civilisation. Cessons
de noircir le passé de la France. Je veux le dire à tous les
adeptes de la repentance : de quel droit demandez-vous aux
fils de se repentir des fautes de leurs pères, que souvent
leurs pères n’ont commises que dans votre imagination ? »

Filho bastardo e indesejável de uma colonização promissora que se


transforma, com o processo de independência, em catástrofe traumática, o
Ocidente se esforça em afugentar de seu horizonte tudo o que se refere ao
colonialismo e em particular ao Haiti. Pois, como sublinha um crítico
contemporâneo, “Le dernier moment de la colonisation consiste à coloniser
l’histoire du colonialisme. »[2]

O extraordinário sucesso do modelo econômico colonial francês


aplicado em Saint-Domingue e os não menos extraordinários feitos que
conduzam ao seu ocaso em 1803, imprimem originalidade a marcar de forma
indelével as relações haitianas com o mundo.
O processo de independência constitui o ápice de um processo
político, cultural e psicológico marcado tanto pela rejeição a tudo que
representa ou que possa ser relacionado ao Haiti, quanto pelo medo
experimentado pelo Ocidente diante da realidade haitiana. Medo atávico que
invade e domina a maioria dos estrangeiros quando ousam aproximar-se do
Haiti.
Tal como o rugir de um trovão no céu anilado do colonialismo, a
independência do Haiti, portadora da mensagem de igualdade entre as raças,
se constitui em acontecimento insólito.
A Revolução Haitiana foi percebida pelo Ocidente como absurda e
inaceitável. O fato de um grupo de negros escravos e analfabetos infligirem
uma derrota ao exército considerado o mais bem treinado e equipado da
época, confronta e choca com o espírito do tempo.
Comandadas por Charles Victoire Emmanuel Leclerc – cunhado de
Napoleão Bonaparte – quando acosta no Cabo Francês, a Armée du Rhin
ainda exala o cheiro da pólvora de múltiplas vitórias conquistadas nos
campos de batalhas europeus. Estamos diante de acontecimento pioneiro:
pela primeira vez na História um exército branco será derrotado por forças
armadas de outra raça.[3]
Os vencidos tentarão apagar da memória coletiva qualquer resquício
do desastre. Os vencedores sublimarão o heroico feito transformando-o em
certidão de nascimento de uma nação e exemplo a ser seguido pelos povos
então colonizados.
A usurpação da narrativa sobre a evolução da História da humanidade
praticada pelos meios acadêmicos europeus os quais impuseram eurocêntrica,
exclusiva e unívoca interpretação, como apontado na obra de Jack Goody[4],
adquire especial relevância no caso haitiano. Aimé Césaire em seu panfleto
Discurso sobre o Colonialismo, já havia decretado, em 1950, que a Europa é
“moral e espiritualmente indefensável”.
O objetivo é apagar da memória coletiva qualquer vestígio da
responsabilidade do Ocidente na dramática formação da sociedade haitiana.
Ao fazê-lo, priva o Haiti do seu próprio passado. Apropria-se dos princípios
mais elevados que moveram a Revolução Haitiana e os transfere para a
Revolução Francesa e Americana. A partir de então o Haiti se transforma no
buraco negro da consciência ocidental.
Como ressalta Eduardo Galeano em memorável artigo:

“Consulte qualquer Enciclopédia e indague qual foi a


primeiro país livre da América. Encontrarás sempre a
mesma resposta: os Estados Unidos. Mas os Estados Unidos
declararam sua independência quando era uma nação com
seiscentos e cinqüenta mil escravos, que seguiram sendo
escravos durante um século.
Se você pergunta a qualquer Enciclopédia qual foi o
primeiro país que aboliu a escravidão, receberás a mesma
resposta: Inglaterra. Mas o primeiro país que aboliu a
escravidão não foi a Inglaterra e sim o Haiti, que continua
expiando o pecado de sua dignidade.” [5]

Nesta perspectiva, torna-se imprescindível, como propõe Michel-


Rolph Trouillot,[6] reescrever a História da humanidade nela inserindo o que
foi silenciado sobre o Haiti.
De outra banda, surge o paradoxo do discurso da liberdade com a
prática da escravidão. A radicalidade da Revolução Haitiana coloca em xeque
as premissas mais progressistas dos principais pensadores humanistas
europeus dos Séculos das Luzes. O que havia de mais puro, inovador,
revolucionário e humanista, ao confrontar-se com as idéias, lutas e dramas
provenientes de Saint Domingue, aparece gauche, inconsistente, contraditório
e insuficiente.
Não chega a ser uma surpresa constatar que Thomas Hobbes considere
a escravidão uma “parte inalienável da lógica de poder”.[7] Tampouco que
John Locke, “como acionista da Real Companhia Africana, envolvida na
política colonial americana na Carolina”,[8] a defina como sendo uma
instituição justificável. Menos ainda que François-Marie Arouet – Voltaire –
enriquecendo com especulações na Bolsa de Valores durante o reinado de
Louis XVI, inclusive com ações de companhias que investiam em Saint-
Domingue, não tenham manifestado qualquer contrariedade com o regime de
escravidão.
O inconsistente aparece com o silêncio omisso e conivente de Jean-
Jacques Rousseau – defensor intransigente da liberdade – que jamais se
referiu aos acontecimentos de Saint-Domingue e sequer mencionou a prática
da escravidão na África.
Um exemplo carregado de significados ocorre com Georg Wilhelm
Friedrich Hegel. Durante 200 anos um pesado silêncio pairou sobre suas
relações com a escravidão haitiana. O véu começou a ser levantado
recentemente, revelando que Hegel não somente inspirou-se na Revolução
Haitiana para elaborar sua obra La Phénoménologie de l`esprit, na qual
disseca a dialética das relações entre le maître et l`esclave, como também não
esteve imune ao racismo que obnubilou e subjugou seus colegas
contemporâneos.[9]
Quando os guardiães da liberdade e da igualdade assim se
posicionavam, à Revolução Haitiana restou tão somente a violência do feito,
a desumanidade dos combates e a supostamente injusta radicalidade de um
mundo dominado por crendices.
O racista e eurocêntrico Ocidente criam o sistema colonial que
estende, a partir do século 16, seus tentáculos através do mundo a dominar
populações dos demais continentes. Mais do que uma idéia, existe a
convicção da inconteste supremacia branca sobre as demais raças. Nestas
condições, o Ocidente não está preparado para aceitar, sequer explicar, a
indescritível derrota.
Não se trata, além disso, de uma derrota militar qualquer. Ela é
carregada de simbologia, pois se contrapõe – pelo exemplo triplamente
revolucionário posto que, além da derrota militar e da abolição do sistema
escravocrata, os ex-escravos instalam uma República independente – às
lições das potências coloniais.
Como ressalta Aimé Césaire, o reconhecimento da independência
haitiana pela França resulta da batalha entre duas políticas possíveis – a dos
princípios contidos em sua própria Revolução e a dos interesses do
colonialismo. Apesar de vozes anticolonialistas, tais como a de Du Pont de
Nemours, que estigmatiza o racismo que grassa na jovem República Francesa
ao sustentar que não deve haver hesitação “dans le sacrifice des colonies
plutôt qu`un principe », não há nenhuma dúvida sobre seu resultado final.
Paris deve reagir, pois o caso haitiano pode servir de exemplo e
indicar o caminho para a conquista da dignidade dos povos colonizados. O
Ocidente colonialista e racista, inspirado pela posição francesa define uma
estratégia cuja aplicação se estenderá ao longo de dois séculos, alcançando os
dias atuais. Ela envolve cinco dimensões:
(1) estabelecer um cordão sanitário impedindo o Haiti de estabelecer e manter
contatos internacionais;
(2) enfraquecer o Estado haitiano, tornando o país ingovernável;
(3) criar condições culturais e psicológicas no Ocidente fazendo com que
tudo que venha do Haiti seja percebido como um mal em si;
(4) perceber o Haiti como uma sociedade que ameaça os fundamentos das
relações internacionais;
(5) alimentar um pavor temeroso e covarde frente ao Haiti.

A iniciativa imediata da ex-metrópole consiste em não reconhecer de


jure a independência haitiana. Sem o reconhecimento, o novo Estado
encontra-se em um limbo político e jurídico.
Após mais de duas décadas, finalmente, em 1825, firma-se um
Tratado entre os dois países. Nele a França exige e obtêm uma compensação
financeira equivalente a US$ 21 bilhões atuais. Imaginando que o rigoroso
cumprimento do acordado será um salvo-conduto para sua Revolução no
Concerto das Nações, as autoridades haitianas obrigam-se a buscar
empréstimos em bancos franceses para honrar o débito. Abre-se assim um
ciclo de dependência e de endividamento a comprometer seu
desenvolvimento econômico e a hipotecar seu futuro.
Os Estados Unidos acompanham a França em sua estratégia de
denegação da existência do Haiti. O presidente Thomas Jefferson declara em
1801 que no caso em que a ilha alcance a independência, ela deveria
permanecer sob a proteção da França, Estados Unidos e Grã-Bretanha. A
troika encarregar-se-ia de isolar o vírus da peste que acomete o Haiti. Para
Jefferson, uma simples medida eliminaria qualquer risco de contaminação:

“Tant que nous empêcherons les Noirs de posséder des


navires, nous pourrons les laisser exister, et continuer à
entretenir des contacts commerciaux très lucratifs avec
eux. »[10]

A estratégia de manter os haitianos prisioneiros de sua própria ilha,


fazendo com que o Mar do Caribe se transformasse em barreira
intransponível, impediu que o Haiti jamais dispusesse, ao longo de 200 anos,
de uma marinha mercante. Mais do que instrumento indispensável para
integrar-se aos fluxos do comércio mundial, o barco significa intercâmbio de
ideias e experiências. Vindas do Haiti, ambas perigosas.
A postura dos Estados Unidos ante a eventualidade de uma Saint-
Domingue independente não deixa pairarem a mínima dúvida, pois o « Haïti
peut exister comme un grand village de marrons, un quilombo ou un
palenque. Il n`est pas question de l`accepter dans le concert des nations ».[11]
Em 1820, novamente o tema do reconhecimento do Haiti é debatido
no Senado dos Estados Unidos. O representante da Carolina do Sul, Robert
Y. Hayne, coloca um termo às discussões ao declarar que “With nothing
connected with slavery can we treat with other nations. Our policy with
regard to Haiti is plain. We never can acknowledge her independence.” [12]
Sob a batuta do extraordinário Lincoln, os Estados Unidos
reconhecerá a independência haitiana em 1862, durante a Guerra de Secessão.
A vitória permitirá a abolição de seu próprio sistema escravagista sem
conseguir, no entanto, acabar com a segregação. Meio século depois (1915),
supostamente fatigado com a turbulência política, Washington ocupa o Haiti
e o transforma em sua colônia.
Bem mais que sua excepcionalidade, o radical tripé revolucionário
haitiano impressionou os mestres de um Brasil que se encontrava nos
estertores de sua fase colonial. A liberdade alcançada pelos escravos
haitianos era considerada uma blasfêmia a ser combatida. Deveria ser
impedida qualquer aproximação dos movimentos libertários brasileiros com o
perigoso mal. O haitianismo,

“se tornou expressão que definiria a influência daquele movimento


sobre a ação política de negros e mulatos, escravos e livres nos
quatro cantos do continente americano [ainda mais que desde
1805] o retrato de Jean Jacques Dessalines decorava medalhões
pendurados nos pescoços de milicianos negros no Rio de Janeiro.”
[13]

Para os escravocratas tratava-se do mal absoluto a ser extirpado da


sociedade brasileira.
Os revolucionários haitianos lançam as premissas dos direitos
políticos fundamentais que embasarão o processo de descolonização a partir
da década de 50 do século 20. Assim, o princípio da Autodeterminação dos
Povos – reivindicado e conquistado a ferro e fogo pelos revolucionários
haitianos – constituirá a pedra de toque das relações internacionais na
segunda metade do século passado.
Também nascerão da vitoriosa revolução haitiana o pioneiro e
violento clamor na defesa da igualdade da raça humana.

“We are black, it is true, but tell us, gentleman, you who are so
judicious, what is the law ther says that the black man must belong
to and be the property of the white man? Yes, gentleman, we are
free like you, and it is only by your avarice and our ignorance that
anyone is still held in slavery up to this day, and we can neither
see not find the right that you pretend to have over us. We are your
equals then, by natural right, and it nature pleases itself to
diversity colors within the human race. It is not a crime to be born
black not an advantage to be white.” [14]

Marcada pela originalidade, pela violência e pela miséria que dela


supostamente decorreu, a Revolução haitiana foi transformada em matriz de
sentido, ou seja, um lócus para “onde convergiram os discursos e
representações sobre a escravidão e tudo que dela derivava.” [15] Ela
provocou mudanças no mercado internacional, sobretudo o aumento do preço
do açúcar, mas também um incremento das medidas de controle do trabalho
escravo: “Da Virgínia ao Rio Grande do Sul, leis mais rígidas, uma atitude
menos tolerante com os homens de cor e um medo generalizado de revoltas
escravas mostraram ser o legado social e político da experiência haitiana.”
[16]
Obcecado pela afirmação de sua independência, pelo respeito ao
princípio da igualdade racial e enfrentando a hostilidade do mundo, o Haiti
jamais conseguirá criar um modelo de Estado de Direito suficientemente forte
e justo, capaz de afastar de seu horizonte a anarquia e a ditadura. Ao
contrário. Estas marcarão a História ao longo de seus dois séculos de
independência.

Duas características impregnam de maneira indelével as relações do


futuro Haiti com o mundo. Por um lado, a bárbara e indiscriminada violência
que marcam a conquista, a época colonial e os anos de luta pela
independência, encharcando de sangue a ilha de Hispaniola. Por outro, como
veremos adiante, as incompreensões decorrentes das crenças míticas e
religiosas.
Tudo teve início em 12 de outubro de 1492, quando Cristóvão
Colombo – enviado pelos reis católicos espanhóis Fernando e Isabel –
encontram terra firme que pensava ele ser a mítica ilha de Cipango (o Japão
atual). De fato ele havia «descoberto» o que viria a ser o Novo Mundo. Ele
aporta numa ilhota que batiza de São Salvador (atualmente Watlings Island),
localizada no arquipélago das Bahamas. Segundo Colombo, os indígenas
«que pareciam não ter religião» são acolhedores e indicam a existência de
centenas de ilhas na região e duas delas – a ilha de Colba (Cuba) e a ilha de
Bohio ou Haiti – eram bastantes extensas e separadas por curta distância.
Após algumas semanas de reconhecimento de pequenas ilhas e,
sobretudo de Cuba, Colombo atravessa o Canal do Barlavento a separar as
duas principais ilhas e inicia, em 6 de dezembro de 1492, a exploração do
litoral norte do Haiti. Em seu Diário logo a denomina de Hispaniola, pois é
«a coisa mais formosa do mundo».
Colombo é seduzido pela beleza de uma vegetação tropical
abundante, por ilhas e praias paradisíacas, cercadas por um mar azul-
turquesa, mas, sobretudo, pela afável acolhida dos habitantes. Após um
primeiro momento de pânico, quando os indígenas fugiram em direção ao
interior das terras, logo a seguir retornaram, pois entenderam que os cristãos
não provinham da ilha de Carib (ou Caniba) – na qual viviam índios que
praticavam o canibalismo – mas eram «enviados do céu» e presenteavam a
todos com lindos objetos. Não houve nenhuma reação hostil, segundo
Colombo, porque se trata «da melhor gente do mundo e a mais mansa
possível».
Bartolomeu de Las Casas em sua famosa obra se refere igualmente à -
«felicíssima ilha de Hispaniola» habitada por pessoas “as mais simples, sem
maldades, humildes, pacíficas, sem rancores, ódios ou desejos de vingança,
obedientes e fidelíssimas aos seus senhores naturais e aos Cristãos”.
Já tendo percebido adereços de ouro em alguns indígenas, os cristãos
logo se interessam em descobrir de onde provinha o metal precioso. Ele foi
encontrado posteriormente em algumas ricas minas de ouro, localizadas à
Leste da Hispaniola (Cibao).
Prosseguindo em seu reconhecimento do litoral norte da ilha,
Colombo chega no dia 6 de janeiro de 1493 a uma baía onde encontra alguns
indígenas e deles tenta comprar arcos e flechas. Para tanto desembarcam sete
marinheiros que encontram aproximadamente 50 indígenas. Ora, após
concordar com a venda, os indígenas - « saíram em disparada aparentemente
para buscá-los, mas retornaram com cordas com o objetivo de amarrar os
cristãos » e fazê-los prisioneiros. Houve uma rápida escaramuça que resultou
na morte de vários índios. Desde então o lugar é conhecido como Golfo ou
Baía das Flechas.
O singelo episódio constitui a primeira manifestação de resistência
dos indígenas diante da colonização nas Américas. Menos de três meses de
presença espanhola no Novo Mundo é suficiente para constatar que a
colonização poderá alcançar seu objetivo, mas deverá ser feita a ferro e a
fogo. Colombo experimenta o que será a tônica da relação entre cristãos e
indígenas. Os espanhóis se veem obrigados a rever sua idílica percepção das
primeiras semanas. Nos anos seguintes eles se lançarão, como relata Las
Casas, « como lobos, tigres e leões cruéis e famintos » sobre as indefesas
presas.
Os massacres, a exploração e o estupro marcam o início da
exploração Hispaniola. Os indígenas logo se convencem que os cristãos,
embora não sejam oriundos da ilha de Carib, tampouco provinham do céu.
Uma resistência é esboçada, mas prontamente descartada, pois os meios
bélicos de que dispõem fazem com que suas guerras sejam « brincadeiras de
crianças ». Assim, os cristãos com seus cavalos, espadas e lanças fazem das
matanças e crueldades seu modus operandi. Las Casas descreve, de maneira
crua e vigorosa, o genocídio perpetrado na ilha de Hispaniola:
Os espanhóis entravam nos povoados e faziam
pedaços de crianças, velhos e mulheres grávidas.
Apostavam entre si para ver quem com uma facada
abria ao meio um homem, ou lhe cortava a cabeça ou
lhe abria as entranhas. Faziam forcas compridas de
treze em treze vítimas, em honra e reverência de
Nosso Redentor e dos doze apóstolos, colocando
lenha e fogo e os queimavam vivos. Matavam aos
líderes queimando-os em fogo lento para que seus
alaridos e desesperados tormentos afugentassem suas
almas. Eu vi tudo isso e muitas outras ações de
homens desumanos, impiedosos e bestas ferozes,
extirpadores e inimigos da linhagem humana.
A galeria de horrores descrita por Las Casas causou grande impacto e
este foi acusado de traição na Espanha. Sua obra foi publicada dezenas de
vezes nos demais países colonizadores. Na Espanha, contudo, foi boicotada
até o século 20 dispondo-se de uma única edição, a de 1645.
Trata-se de um relato pungente escrito para convencer e uma tentativa
de redenção do próprio autor. Com efeito, Las Casas chegou a Hispaniola
atraído pela riqueza fácil e ávido de aventuras em 15 de abril de 1502 e
tomou parte, durante oito anos, da luta contra os índios. Ele consegue, porém,
tornar-se « protetor dos indígenas » e inspirador das Leis Novas das Índias,
adotadas em 1542, as quais tentam colocar um freio à política de terra
arrasada praticada até então e declaram os indígenas insuscetíveis de
escravidão.
Quando se trata de destruir outras culturas o colonizador branco age
com rapidez e maestria. Em nenhum outro lugar do Novo Mundo o
extermínio da população indígena alcançou tamanha velocidade e foi tão
feroz como o ocorrido no magnífico cenário da ilha de Hispaniola. Assim,
aproximadamente 600 mil índios serão massacrados, majoritariamente os
Tainos. Estes legam unicamente a denominação “Haiti” («país das
montanhas» em língua Taino) aos que os vingarão quando da independência.
Em todos os episódios da conquista os colonizadores se impuseram
em diferentes planos: demográfico, político, econômico, cultural, social e
religioso. Apesar disso, foi somente nas Antilhas e particularmente na ilha de
Hispaniola que a totalidade da população indígena foi varrida do mapa. A tal
ponto que, num primeiro momento, em 1513, já se faz necessário trazer
indígenas das ilhas vizinhas. Inútil, pois o indígena se recusa à escravidão.
Em 1516, com a morte de Fernando (o Católico), assume a regência o
Cardeal Cisneros que nomeia três monges hieronimitas para administrar a
ilha de Hispaniola. Embora relutantes, os hieronimitas concordam que a
economia da ilha não pode prescindir do recurso à mão-de-obra escrava.
Como os indígenas demonstraram sua inaptidão, Las Casas sugere a
utilização da mão de obra escrava disponível na África. Em sua luta para
proteger os indígenas ele utiliza um argumento que marcará profundamente a
ocupação humana da ilha de Hispaniola e da qual se arrependerá pelo restante
de sua vida.
Como desde meados do século 13 negociantes portugueses se
dedicava ao comércio de escravos oriundos da costa da Berbéria e posterior
penetração no Golfo de Guiné, dispõe de condições de aprovisionar o
mercado ibérico, sobretudo a partir de 1460.
É fácil convencer os conquistadores. Com a frota comandada pelo frei
Nicolas de Ovando – verdadeiro fundador de Hispaniola e seu governador de
1501 a 1509 – chegam alguns negros escravos a Hispaniola, todavia o
primeiro verdadeiro carregamento de negros ladinos, falando espanhol, chega
a Hispaniola em 1505 e seu fluxo aumenta consideravelmente – sempre com
o apoio dos monges hieronimitas – a partir de 1518.
Logo é decidido que será a partir da Hispaniola, na qual o irmão de
Cristóvão – Bartolomeu – fundara São Domingos, que a Espanha lançará as
bases de seu império nas Américas. Há um grande risco, contudo, pois quanto
mais a Espanha se lança na conquista de novos territórios mais ela coloca em
xeque a colonização insular.
O exemplo é paradigmático, pois o extermínio da população nativa de
Hispaniola e seus recursos naturais saqueados constituem sinais precursores
que lançam os conquistadores em direção aos povos considerados inferiores.
Desprovidos de escrúpulos morais ou freios institucionais, reconfortados pela
cegueira bárbara do Catolicismo, os conquistadores encontram via livre
material e conforto espiritual para levar adiante o que se tornaria a maior
carnificina da História da humanidade.
A Espanha é péssima colonizadora e excelente exploradora. Os veios
de ouro da Hispaniola são pobres e se esgotam rapidamente. Logo a seguir
descobrem-se riquezas ao alcance da mão no México e no Peru, contrastantes
com a pobreza da ilha em metais preciosos. Os poucos colonos da ilha
somente podem oferecer o gado que se multiplica. O poder espanhol,
entretanto, não satisfeito, impõe taxas abusivas decorrentes de seu monopólio
comercial, obrigando os colonos ao contrabando. A situação degrada-se a tal
ponto que a 4 de agosto de 1603, o rei espanhol Felipe II decide retomar o
efetivo controle da economia da ilha. Ele o faz de maneira radical e
impensável: ordena o despovoamento do Oeste da ilha e sua concentração na
parte Leste. Todas as cidades situadas ao longo daqueles litorais são
destruídas. São evacuados escravos e animais. Mutila-se, assim, a economia
da parte ocidental da ilha, que se transforma em terra arrasada e de ninguém
(terra nullius).
Aproveitando-se da incúria e posteriormente do abandono espanhol,
logo chega à l`île de la Tortue os primeiros piratas de origem francesa e
iniciam incursões no território de Hispaniola. Trata-se do prenúncio de uma
inflexão da história da ilha, pois se utilizando o escudo protetor dos piratas,
aporta no atual Haiti o Estado francês. Não é um Estado qualquer, mas o da
potência francesa em seu ápice, com Richelieu e Colbert. Surge a colônia
francesa denominada de Saint-Domingue.
A ocupação de facto francesa da parte ocidental da ilha é realidade em
meados do século 17. O Direito Internacional europeu a reconhecerá de jure
por meio do tratado de Nimègue (1678) e, sobretudo do Tratado de Ryswick
(1697). Consagra-se a divisão da ilha que ainda hoje subsiste. Ocorre,
igualmente, uma inversão dos papéis entre as duas partes da ilha: a parte
oriental estagna se satisfazendo com a pecuária e com os métodos feudais
espanhóis, e a parte francesa, por sua vez, se desenvolve de maneira
extraordinária graças à pujança do capitalismo francês. A ilha de Hispaniola
oferece um marcante exemplo do embate entre o decadente feudalismo e o
dinâmico capitalismo.
Investimentos maciços, melhorias tecnológicas e organização do
sistema de produção – denominado cultura de plantação – se utiliza
racionalmente as extensas terras exploradas por intermédio da mão de obra
escrava. Além de instalar a cultura do algodão, a França extrai lições do
sucesso da cana-de-açúcar e do café no Brasil e nas demais ilhas das
Antilhas, e introduz estas duas culturas de maneira sistemática com elevada
produtividade.
Em 1720 Saint-Domingue já produzia 21 milhões de libras de açúcar
e em 1788 alcançava a impressionante cifra de 52 milhões. Mais de 750
grandes barcos tripulados por 80 mil marinheiros se encarregavam de
transportar as riquezas agrícolas da ilha para a metrópole. O futuro Haiti
respondia então por 1/3 do comércio exterior da França. Em 1789, por
exemplo, dos 17 milhões de libras esterlinas exportados pela França, 11
milhões provinham da colônia de Saint-Domingue.
Tal situação tornou famosa a colônia, que passou a ser conhecida
como a « Pérola das Antilhas » e muitos investidores acorreram a um negócio
extremamente rentável. Empresas foram criadas, ações se valorizavam e
trocavam de mãos rapidamente, a ponto de fazer com que personalidades, tais
como Voltaire, investissem na economia da ilha.
O aumento da produção de Saint-Domingue correspondia ao
crescimento do número de escravos. Eis como se apresenta sua evolução:

Figura 1 – Escravos em Saint-Domingue


1728 50.000
1750 150.000
1775 300.000
1789 450.000
Fonte: Laurent Dubois, Les Vengeurs du Noveau Monde

Por ocasião da Revolução Francesa, frente à massa de escravos, havia


tão somente 40 mil brancos e 28 mil libertos, a quase totalidade mulata. No
lado espanhol da ilha a situação era completamente distinta. A população
total não alcançava 20% da parte francesa, sendo 35 mil brancos, 38 mil
libertos e 30 mil escravos.
Apesar da exiguidade insular há profunda dualidade na ocupação, na
colonização e na história dos dois povos. Culturas, línguas, interesses e
comportamento social marcam de maneira indelével um relacionamento
turbulento. O contraste entre as duas partes da ilha era total. A Hispaniola,
considerada um parente pobre, e a francesa, dominadora e segura de seu
futuro. Nasce então um sentimento de superioridade do haitiano – inclusive
na época da escravidão – em relação ao seu vizinho. Surge a expressão
«pagnol» (contração do vocábulo francês «espagnol») empregada de maneira
pejorativa para designar os brancos pobres espanhóis que vendiam seus
animais na parte ocidental da ilha. Comparados aos seus mestres brancos
franceses, filhos do período das Luzes, o espanhol e, por extensão, o latino-
americano, é menosprezado pelo haitiano. Apesar da terrível evolução da
História tal sentimento permanece vivo.
Nas lavouras de açúcar[17] aproximadamente 80% dos escravos
trabalhavam diretamente na plantação por meio de três atividades assim
distribuídas: o Grand Atelier reunia os homens e mulheres aptas e
encarregava-se dos trabalhos pesados do corte, transporte da cana e a
preparação da terra para o plantio; o Second Atelier era composto por
escravos que padeciam de alguma enfermidade e, finalmente o Petit Atelier
participava crianças de 8 a 13 anos.
Em razão da extensão da jornada – de sol a sol –, das péssimas
condições de trabalho e da ocorrência de doenças contagiosas, a vida útil de
trabalho de um escravo não ultrapassava sete anos. A alta mortalidade infantil
auxiliava para fazer com que sua esperança media de vida alcançasse tão
somente 20 anos.
As famílias de escravos viviam de maneira comunitária em choupanas
de barro cobertas de palha e sua organização social no interior da plantação
relembrava a África perdida: monogamia, embora com numerosa prole;
proibição de incesto entre irmãos e união entre primos de primeiro grau;
muitos casamentos – embora pouco seguindo o rito católico – em razão da
freqüente ruptura do laço matrimonial pela venda de um dos cônjuges.
Preocupados com a possibilidade de organização dos escravos, o
colono se empenhava em misturar os distintos grupos étnicos, religiosos e
linguísticos, fazendo com que o vínculo social na plantação fosse o mais
superficial possível. Isso obrigou os escravos a criar um idioma próprio – o
Kreyól – resultante da compreensão deformada, pois fonética, do francês e da
adição de muitas expressões idiomáticas de origem africana.
Os escravos eram submetidos a dois sistemas de controle social e de
aplicação da justiça. O primeiro, interno à comunidade, era exercido por
alguns elementos pretensamente dotados de poderes mágicos. O segundo,
imposto pelo mestre, era o Code Noir, dotado pelo Estado francês em 1685.
Ele considerava o escravo um bem móvel desprovido de direito à propriedade
ou à proteção. Fixava penas aos fugitivos e permitia que o mestre aplicasse o
castigo que bem entendesse ao escravo. Entre os castigos mais correntes
estavam o açoite, a tortura, a mutilação, a prisão e o assassinato.
A inexistência de qualquer direito deixa escassa margem de manobra
de protesto aos escravos. De fato, restam somente duas maneiras de se opor
ao amo todo-poderoso. A primeira consiste em sabotar o equipamento de
trabalho e a segunda escapar da plantação. As fugas temporárias implicam o
regresso à plantação (petit marronage) e a fuga definitiva, denominada de
grand marronage.[18]
A decisão de abandonar uma plantação é difícil. No seu início, tratou-
se de um fenômeno que decorria de uma decisão individual de um escravo
recém chegado à ilha. As opções de fuga são poucas e os esconderijos raros.
Por essas razões, os marrons se dirigem preferencialmente às montanhas do
sul e à região da fronteira com a colônia espanhola. Progressivamente
começam a formar pequenos grupos que sobrevivem graças à rapina e furtos.
Somente a partir de 1764 surgem às primeiras denúncias sobre o
perigo do marronage para o sistema de plantação e queixas pelos estragos
provocados pelos marrons. Em 1793 – em pleno período revolucionário
francês – indica-se um número aproximado de 50 mil casos de marronages
para o período que cobre as ultimas três décadas. O fenômeno, portanto, se
torna significativo, ainda mais se levarmos em conta o crescimento das fugas
coletivas de escravos educados e supostamente socializados – os
denominados “ladinos” – que abandonavam plantações inteiras e formavam
uma comunidade autônoma.
Ao final do século 18, aproveitando-se das contradições
ziguezagueantes da Revolução Francesa, os independentistas haitianos
reforçam sua capacidade militar e sua determinação na luta pela libertação.
Ao longo de uma década de terríveis sofrimentos, atrozes crimes, dolorosas
derrotas e memoráveis feitos, finalmente, em 18 de novembro de 1803, com a
definitiva vitória na batalha de Vertières, nasce o Haiti.
Os métodos utilizados pelos contendores de ambas as bandas se
adaptam às terríveis experiências da conquista e da colonização. Eles serão
marcados pela luta sem quartel, pelo ódio a turvar a razão, pela constante
sede de vingança.
O terror imposto pelas tropas francesas havia sido respondido na
mesma moeda. Como declarou Dessalines: “Oui, nous avons rendu à ces
vrais cannibales, guerre pour guerre, crimes pour crimes, outrages pour
outrages. J`ai sauvé mon pays, j`ai vengé l`Amérique”.
Dessalines foi o herói providencial para a terrível missão.
Descartando de plano o bom-mocismo que conduziu ao assassinato de
Toussaint Louverture – pelo frio e pela fome – no forte de Joux,[19]
Dessalines é o homem exigido pelas circunstâncias históricas.
Quando Rochembeau semeia o terror e assassina a 500 negros,
obrigando-os a cavar sua própria fossa comum, Dessalines não hesita e o faz
provar de seu próprio veneno. Sob o olhar incrédulo e apavorado dos colonos
franceses, ele crava 500 postes nos arredores da cidade do Cabo, no norte do
país, e em cada um enforca um branco. Deixa-os expostos para que sirvam de
lição.
Na principal fonte e referência sobre o uso indiscriminado da
violência durante a insurreição haitiana, Bryan Edwards relata que
aconteceram
des horreurs que l`imagination ne peut concevoir ni le
stylo décrire et produit un tableau de la misère
humaine qu`aucun autre pays, à aucune autre époque,
n`avait encore exhibé. Plus de cent mille sauvages,
habitués aux barbaries de l`Afrique, profitant du
silence et de l`obscurité de la nuit pour tomber sur
des planteurs paisibles et insouciants, comme autant
de tigres affamés et assoiffés de sang humain. La
mort guettait le jeune homme comme le vieux, la
mère de famille, la vierge et l`enfant sans défense et,
en quelques heures funestes, les plaines les plus
fertiles et les plus belles du monde sont transformées
en un vaste champ de carnage et un désert de
désolation.[20]

Complementando o furor de um combate, ausentes regras que não


fossem as destinadas a infligir o maior mal possível ao inimigo, os
independentistas lançam mão da tática bélica do incêndio indiscriminado.
Logo no início da insurreição, todas as plantações localizadas num raio de 80
quilômetros em torno do Cabo Francês foram sistematicamente queimadas.
Ao final da hecatombe, Saint-Domingue ardia em chamas que transformaram
a outrora Pérola das Antilhas em uma montanha de cinzas.
As perspectivas de uma derrota militar radicalizaram os franceses e
fizeram com que suas tropas adotassem a tática da guerra de extermínio.
Todo negro, mesmo que demonstrasse fidelidade, era sumariamente
executado. No Cabo Francês mil negros são jogados ao mar com um saco de
farinha amarrado ao pescoço: “Les jours suivants, la mer rejeta leurs corps
sur les plages de la ville où, au dégoût et à l`horreur de ses habitants, on les
laisse rôtir sous le soleil équatorial. »[21]
Desesperado, pouco antes de sucumbir à febre amarela, em 2 de
novembro de 1802, Leclerc informa seu cunhado que “depuis que je suis ici,
je n`ai eu que le spectacle d`incendies, d`insurrections, d`assassinats, de
morts et de mourants. Mon âme est flétrie, aucune idée riante ne peut me faire
oublier ces tableaux hideux. » [22]
O invencível exército de Napoleão, aureolado por suas vitórias nos
campos de batalha europeus, foi massacrado por forças que, embora
combatam de maneira heroica, são pobremente equipadas, subalimentadas e
pouco treinadas. Na esteira da fragorosa derrota, Paris vê-se compelida a
ceder aos Estados Unidos sua colônia de Louisiana, vendida, em maio de
1803, por US$15 milhões.
Ao nascer o Haiti encontra-se exaurido. Estima-se em mais de 160
mil o número de suas vítimas. Os franceses perderam 43 mil soldados e a
totalidade de seus colonos foram massacrados ou teve que abandonar o Haiti.
Apesar da vitória, não cessaram os combates, agora como guerra civil. Logo
surgem movimentos secessionistas que o enfraquecerão ainda mais.
Encarregado, em fins de 1803, da redação do texto anunciando o
nascimento do Haiti independente, Louis Felix Boisrond-Tonerre indica que
“Pour établir votre acte d`indépendance, il faut de la peau d`un blanc pour
servir de parchemin, son crâne pour écritoire, son sang pour encre, et une
baïonnette pour plume ».
Inspirado assim, o documento fundador do Haiti conclui-se com o
grito de “Haine éternelle à la France! »
Anos mais tarde, prisioneiro na ilha de Santa Helena, Napoléon
Bonaparte admite, a contrecœur, seu grave erro:

Dans l`intervalle que m`avait laissé la trêve d`Amiens


[27/3/1802 – 23/5/1803], j`avais hasardé une
expédition imprudente, qu`on m`a reprochée et avec
raison, elle ne valait rien en soi.
J`avais essayé de reprendre Saint-Domingue ; j`avais
de bons motifs pour le tenter : les alliés haïssaient
trop la France pour qu`elle osât rester dans l`inaction
pendant la paix. Il fallait donner une pâture à la
curiosité des oisifs ; il fallait tenir constamment
l`armée en mouvement pour l`empêcher de
s`endormir. Enfin, j`étais bien aise d`essayer les
marins.
Du reste, les maladies ont détruit l`armée,
l`expédition a été mal conduite ; partout où je n`ai pas
été, les choses ont été mal.[23]

Após a independência dos Estados Unidos, em 1776, eis que surge


novamente no Novo Mundo, uma segunda vitória contra o colonialismo
europeu. Não haverá, contudo, contraste mais evidente entre a acolhida
entusiasta feita aos independentistas da América do Norte e o desprezo
mesclado de arrogância com os quais serão tratados os libertadores de Saint-
Domingue. Para aqueles a glória. Para estes o opróbrio. Começam dois
séculos de via crucis e de solidão internacional para seu povo.
O processo de colonização marca o início da globalização. Da
inevitável descolonização que se desenrolou em etapas históricas ao longo
dos séculos 19 e 20 implicou todos os continentes, surgiram mais de 150
novos Estados que refizeram o mapa político mundial. De todas as
experiências, por vezes dramáticas, decorrentes da descolonização, nenhuma
alcançou a haitiana. Nenhum Estado, embora nascido a fórceps das lutas de
independência, será objeto da rejeição unânime e radical como a que foi
objeto o Haiti. Nenhum outro jovem Estado receberá do mundo o tratamento
iníquo que será infligido ao berço dos direitos humanos fundamentais.
Avançado para o seu tempo, o Haiti teve razão demasiado cedo. Então,
debilitada internamente e abandonada em suas relações externas, são incertas
as perspectivas de êxito da Primeira República Negra constituída por ex-
escravos.
No alvorecer da independência, todavia, restava uma esperança. Para
romper seu isolamento os líderes da Revolução Haitiana tomam consciência
que deverão buscar apoios internacionais junto aos movimentos
independentistas que surgem na América ibérica. A aproximação haitiana
com os revolucionários latino-americanos insere-se tanto em uma lógica de
solidariedade em torno de princípios quanto na de sobrevivência. Porto
Príncipe, porém, logo cometerá o erro imperdoável de tentar transformar a
vitória de 1804 em produto de exportação.
A oportunidade se apresenta em dezembro de 1815. Encurralado,
deprimido e a beira do suicídio, um desesperado Simon Bolívar encontra
refúgio na Jamaica. Decide, então, aceitar o convite do presidente Alexandre
Pétion e viaja a Les Cayes com o que resta de sua frota recentemente
derrotada pelos espanhóis em Cartagena das Índias.
Bolívar recebe apoio do presidente Alexandre Pétion e de alguns
comerciantes estrangeiros. Reúne homens, navios e armamento no Haiti e
lança, em maio de 1816, uma expedição na costa Leste da Venezuela. Uma
vez mais Bolívar é derrotado em julho de 1816. Então, retorna ao Haiti e,
desesperado, escreve a Pétion solicitando novamente auxílio. A resposta seria
aguardada como sendo, segundo Bolívar,“le dernier décret de ma vie
politique. »
Reconhecido, Bolívar escreve uma carta a Pétion em 9 de outubro de
1816. Nela, enfatiza que o presidente haitiano

Possesses a quality which is above empires, named


altruism. It is the President of Haiti alone who
governs for the people. It is he alone who leads his
equals. The other potentates, content to make them-
selves obeyed, scorn the love which makes your
glory. The hero of the North, Washington, found only
enemy soldiers to conquer. Your Excellency has all
to conquer, enemies and friends, foreigners and
countrymen, the fathers of the country and even the
strength of his brothers. This task will not impossible
for Your Excellency, who is above his country and
his epoch. [24]

Os arsenais haitianos outra vez armam Bolívar com fuzis e munição.


Trezentos combatentes haitianos juntam-se à empreitada. Ao comando de
uma frota de oito navios, o futuro libertador zarpa para a Venezuela em 28 de
dezembro de 1816 ao encontro, finalmente, de sua sonhada vitória.
Ausente o apoio haitiano impossível seria a vitória de Bolívar. Este o
reconhece e indaga Pétion sobre a conveniência de considerá-lo como “o
Autor da liberdade Americana”. O Presidente haitiano jamais respondeu,
fazia, no entanto, uma única exigência: uma vez alcançada à sonhada
independência, os Libertadores se comprometessem em abolir a escravidão.
Apesar de decretar formalmente a liberdade dos escravos em
Carúpano em 2 de junho de 1816, Bolívar não implementa a decisão. Ocorre
que os novos mestres eram tão escravocratas quanto os antigos senhores e
fizerem ouvidos de mercador aos apelos haitianos.
Os Libertadores temiam o possível contágio das ideias e da violência
de Santo Domingo. A vitória dos affranchis e dos escravos haitianos constitui
sinal de alerta para os escravocratas das Américas e uma advertência sobre as
temíveis consequências da propagação, nas sociedades escravocratas, das
idéias liberais de igualdade e de direitos humanos.
Quando da convocação do Congresso do Panamá em 1826 que
objetivava lutar contra a dispersão e a favor da integração da América Latina,
Simon Bolívar surpreendentemente convida os Estados Unidos, que
imediatamente recusam a oferta.
A participação do Haiti no conclave, sem o apoio do qual teria sido
impossível a libertação da América hispânica, nem sequer é cogitada. Não
constitui surpresa seu descarte. O episódio marca a definitiva marginalização
do Haiti dos assuntos continentais. Fecha-se assim, o círculo em torno da
turbulenta República negra e tem início 200 anos de solidão haitiana nas
relações internacionais.
Quando o mundo rompe o isolamento haitiano o faz com o exclusivo
objetivo de castigar o país e ao seu povo. Invasões, ocupações, agressões e
embargos são os métodos adotados. O Haiti ainda não terminou de pagar o
tributo pela ousadia de 1804.
Raros foram os que perceberam na Revolução Haitiana uma
esperança para os condenados da Terra. De Cuba ao Brasil, passando pela
Jamaica, sussurros elogiosos foram emitidos e logo abafados pelos
escravocratas. Alguns intelectuais tentaram dar eco às lições vindas do Haiti.
Inutilmente. Embora tenham sido os vales e montanhas haitianas a abrigarem
o verdadeiro início da internacionalização dos direitos humanos, foram suas
irredutíveis adversárias – as Revoluções Americana e Francesa – que
receberam as láureas de redentoras dos povos, consideradas desde então
como “Mães da liberdade”.
Foi a Revolução Haitiana que obrigou a Revolução Francesa a tentar
cumprir o seu princípio basilar que considerava que os homens nascem e
permanecem livres e iguais em direitos. A francesa, contudo,

S`était comme empressée de maintenir l`esclavage


des noirs derrière le paravent du droit de propriété, de
réconcilier son dire et son faire, ses principes et ses
pratiques, et de sortir ainsi d`une fâcheuse et gênante
contradiction entre l`idéal proclamé et des intérêts à
sauvegarder. Ce fut un coup de maître, mais aussi un
fier et signalé service rendu par les nègres insurgés de
Saint-Domingue-Haïti à la Grande Révolution
Française des Mirabeau, Lafayette, Danton,
Robespierre, des Camille Desmoulins et des Saint-
Just, en la rendant plus conséquente avec elle-même
et de portée enfin vraiment plus universelle. [25]

Em seu terrível e violento combate pela independência, as lideranças


revolucionárias apelaram ao sobrenatural. O vodu foi um extraordinário
cimento para a coesão social durante a época da escravidão e um formidável
instrumento de mobilização quando da luta pela libertação. Ainda hoje
dominante, o vodu se recusa a render-se à modernidade.
Em 1943 Alejo Carpentier visita o Haiti e sente “o nada mentido
sortilégio de suas terras”. [26] Ele descobre quando
pisava uma terra onde milhares de homens ansiosos
de liberdade acreditaram nos poderes licantrópicos de
Mackandal[27], ao ponto que esta fé coletiva
produzirá um milagre no dia de sua execução... que
com essa magia, alentou uma das sublevações mais
dramáticas e estranhas da História.

A publicação de seu marcante, embora breve, romance O Reino deste


Mundo sobre a independência haitiana é aberto com um Prólogo em forma de
manifesto no qual ele lança as bases teóricas do real maravilhoso. Com ele
Carpentier se afasta da artificialidade do surrealismo, do qual ele havia sido
um dos principais defensores.
Para Carpentier a revelação do Haiti constitui tão somente a fagulha
que ilumina a verdadeira identidade e originalidade do continente, pois a
América “está longe de haver esgotado seu caudal de mitologias”. Para ele a
dramática

singularidade dos acontecimentos, pela fantástica


postura dos personagens que se encontraram na
encruzilhada mágica da cidade do Cabo [Haitiano],
tudo resulta numa maravilhosa história impossível de
acontecer na Europa e que é tão real, como qualquer
acontecimento exemplar daqueles consignados, para
pedagógica edificação, nos manuais escolares. Mas o
que é a história de toda a América senão uma crônica
do real maravilhoso?

Como proceder para entender o Haiti, quando se é um intelectual


agnóstico dotado de estrutura mental que descarta a priori qualquer referência
ao divino e ao sobrenatural? Para Carpentier a tarefa é impossível, pois a
sensação do maravilhoso pressupõe uma fé. Os que não creem em santos,
afirma ele, “não podem curar-se com seus milagres”.
A avaliação de Carpentier é corroborada pelo historiador liberal
haitiano Leslie Manigat, para quem o Haiti é a terra da irracionalidade, da
razão contraditória e embebida de forte densidade mística.
Decepcionado com as superficiais percepções ocidentais, Manigat
propugna que seria necessária uma grande evolução da crítica histórica das
Ciências Humanas, para que o Ocidente seja capaz de elucidar o verdadeiro
sentido da história haitiana.
Esta avaliação não resulta de uma análise apressada e impressionista.
Ela é fruto das reflexões e experiências de alguém talhado para afastar de seu
campo analítico elementos e valores capazes de torná-lo opaco. Ora, não
somente ele não os afasta, mas ao contrário, os convoca, considerando-os
elementos estruturais da realidade social e política haitiana.
A força do misticismo que impregna e domina a misteriosa sociedade
haitiana adquire tamanha amplidão e profundidade que até o observador mais
desatento não deixa de percebê-la. Ela está presente tanto nos gestos mínimos
quanto nos momentos graves da vida de cada haitiano.
O controle social numa sociedade desprovida de instituições estatais –
caso do Haiti – pode ser realizado por meio da violência – relativamente
baixa tendo em conta as disparidades sociais e a miséria absoluta na qual
sobrevive a maior parte da população – ou mediante instrumentos informais
de dominação e subjugação: constituição de clãs; formação de clientelas;
redes de apadrinhamento, etc. Estes instrumentos de controle são eficientes,
embora parciais e limitados. Há somente uma estrutura generalizada e de total
eficácia: a religião, pois como enfatiza Victor Turner em clássica asserção,
“onde avultam os conflitos, superabundam os rituais”.
O conjunto destes dois elementos – violência e misticismo – fazem
com que a baixa literatura e a indústria cinematográfica de Hollywood o
transformassem no território dos interditos, do sobrenatural, do
incompreensível e logo do inaceitável.
Como veremos a seguir, ante as desinteligências carregadas de
preconceitos, o Haitiano adotou a tática dos escravos fugitivos. Definiu uma
estratégia de sobrevivência na qual a marronagem transformou-se em
filosofia social e em prática política.
O terremoto de 12 de janeiro de 2010 provocou a destruição da
Catedral de Porto Príncipe, da maioria das Igrejas e escolas católicas
localizadas na região metropolitana e a morte do Arcebispo, Monsenhor
Serge Miot. A hecatombe deixou a Igreja Católica de joelhos e abriu caminho
aos evangélicos. A partir do sismo, uma invasão silenciosa de congregações,
seitas e grupos supostamente religiosos – vindos, sobretudo do meio-oeste
dos Estados Unidos – desembarca no Haiti. Desde meados de 2010 não há
vôo proveniente dos Estados Unidos que não descarregue sua leva de
“turistas de Jesus”, facilmente identificados pela camiseta de sua
congregação.[28]
A Embaixada dos Estados Unidos em Porto Príncipe calcula em
aproximadamente a incríveis 200 mil o número de seus nacionais que
anualmente aportam no Haiti. Entre estes a grande maioria compõe-se de
jovens turistas da fé. Permanecem durante uma semana em um vilarejo
construído por sua igreja em convívio com crianças haitianas, na fabricação
de artesanato ou de próteses para as vítimas do terremoto. E, sobretudo,
oram.
Por vezes motivados pelo arrependimento pois “J`ai tellement péché
cette année en ville, j`espère que, en aidant les pauvres, je vais me réconcilier
avec Dieu. » ou buscando encontrar sentido à suas vidas, os evangélicos
confessam que viajam ao Haiti com um único objetivo: fazer com que os
haitianos tenham uma nova relação com Jesus Cristo.
Brad Johnson, diretor da Mission of Hope, indica que a quantidade de
templos voduistas diminui na região. Aqui, diz ele, “Il y a une bataille
spirituelle qui se livre ici. Elle existe partout, aux Etats-Unis aussi, où nous
adorons l`argent. Mais en Haïti, elle est plus évidente parce qu`ils adorent
Satan. »
O vodu, declara um turista da fé, “ce n`est pas un juste chemin pour ce
peuple. Je voudrais tellement les introduire au message de Jésus. »
Logo adiante, um padre vodu responde:

Mais ils ne comprennent pas que, nous aussi, nous


croyons en Dieu. Ils affirment que nous vénérons le
diable et que nous sommes cannibales, ce n`est pas
vrai. J`aimerais bien les accueillir pour leur montrer
notre culture et que les gens, quand la prière ne
marche pas, viennent ici se faire soigner par nos
plantes.

Raras são as vozes haitianas que protestam. Ocorre que junto com as
rezas e cânticos, os evangélicos trazema medicamentos e alimentos. Erol
Josué, Directeur du Bureau National d`Ethnologie d`Haïti, os critica
severamente :

La façon dont les évangélistes américains opèrent


relève du néocolonialisme. Ils croient conquérir
l`âme du peuple haïtien avec un repas chaud. C`est
une atteinte à l`identité nationale, à notre tradition
ancestrale du vodou. Ils bénéficient des débats sans
fin de nos politiciens, qui abandonnent tout l`espace à
ces prosélytes.

Josué não deveria desesperar-se. Por ora o relacionamento sustenta-se


em uma troca: por um lado, os evangélicos se concedem boa consciência e
fornecem bens reais indispensáveis. Por outro, os haitianos dão aparentes
demonstrações de abandonar sua crença secular. Para os primeiros trata-se de
um mercado das ilusões e para os segundos de um mercado dos enganos. Ou
seja, o clássico marché de dupes.
Os evangélicos norte-americanos, a começar pelo televangelista Pat
Robertson, aproveitam o sismo para retomar, com maior fúria, seus
constantes assaltos contra o vodu. Segundo eles o Haiti é uma terra diabólica,
onde imperam as forças do mal. Para Robertson a “maldição” haitiana resulta
de um “pacto com o diabo” feito pelos líderes da revolução para se liberarem
do império colonial francês.
Segundo Robertson,

“you know, something happened a long time ago in Haiti.


They got together and swore a pact to the devil. They
said,“We will serve you if you get us free from the
French”. True story.”[29]

Para Robertson o terremoto constitui a maior e mais inquestionável


prova do mal que corrói o Haiti. Ele aconteceu unicamente para castigar os
haitianos e fazer seu país expiar por seus pecados. Assim, não se trata de uma
manifestação da natureza, tampouco devem ser levadas em consideração às
falhas geológicas que atravessam o Haiti. Ao contrário. O sismo decorre de
uma vontade de Deus. Da divindade de Pat Robertson e dos evangélicos que
invadem atualmente a terra de Dessalines.
Diante dos insultos racistas, desapiedados e absurdos do suposto
pastor, o porta-voz da Casa Branca, Robert Gibbs, foi cortante: “It never
ceases to amaze, that in times of amazing human suffering somebody says
something that can be utterly stupid.”
Infelizmente a estupidez corre mais célere que a inteligência, a
sensibilidade e o respeito. O cônsul haitiano em São Paulo, George Samuel
Antoine, também culpou o vodu pelo terremoto. Desconhecendo estar sendo
gravado, ele confidencia: - “Acho que de tanto mexer com macumba... o
africano em si tem uma maldição... todo lugar que tem africano está fudido...
A desgraça de lá está sendo bom para a gente aqui ficar conhecida”.
O comentarista do Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão,
Arnaldo Jabor, ao dissertar sobre o terremoto também toma o caminho
pavimentado pelo insulto e pela ignorância. Ele indaga como fazer para -
“democratizar um país miserável e analfabeto e com raízes tribais africanas e
bárbaras?”.
A pertinência da pergunta se esfuma com a assertiva contida na parte
final. Ninguém se encontra mais distante do tribalismo e da barbárie do que o
Haiti.
O que a Igreja Católica não alcançou ao longo de quatro séculos de
lutas, os evangélicos pretendem consegui-lo graças ao impacto provocado
pelo terremoto. A luta será inglória. Logo constatarão que o vodu, mais do
que uma crença, constitui elemento profundamente enraizado na cultura e na
alma haitiana.
Sociedade livre de tabus, a começar por aqueles impostos pelas
religiões, à antropologia haitiana pode-se aplicar o lamento de um bispo
católico, personagem de Gabriel Garcia Márquez em Del amor y otros
demonios, sobre as incertezas que circundam sua missão: - “Hemos
atravesado el mar oceano para imponer la Ley de Cristo, y hemos logrado en
las misas, en las procesiones, en las fiestas patronales, pero no en las almas”.
A extraordinária reação dos haitianos diante da catástrofe provoca ao
olhar estrangeiro, além da piedade e da compaixão, uma tentativa de
interpretação. Surge com o selo do inquestionável posto que, além de ser uma
visão exógena, pretende ser também um elogio. Assim, ao descobrir que os
haitianos possuem uma surpreendente capacidade de recuperação, os
observadores estrangeiros cunham a expressão resiliência como sendo um
dos traços marcantes de seu caráter nacional. Ela deve servir de chave-mestra
para compreender o incompreensível, para facilitar a aproximação cultural,
para tornar inteligível uma realidade indômita. Como provas, exemplos são
pinçados ao longo da atribulada história do país.
A incompreensão prossegue. Muito além da capacidade de se
recuperar ante os desmandos dos homens e da fúria da natureza, o que move
o povo haitiano é uma vontade, uma capacidade de luta, um amor sem limites
à vida, sem ilusões e sem renúncias. Da condição humana, os haitianos
extraem sua essência que não é outra senão o apego à vida. Em suas plenitude
e totalidade.
Os haitianos são dotados de uma grande riqueza de vida interior
dominada por forte afetividade e espírito de fraternidade. Como se esse
excedente da alma viesse a compensar o que o corpo padece.
Justamente o corpo – simples abrigo da condição humana – se
expressa livremente. Para eles, somente as mentes condicionadas por crenças
desumanas podem identificar permissividade onde existe unicamente
naturalidade.
O escritor e ativista político Lyonel Trouillot, que não pode ser
identificado como comunista ou inimigo do Ocidente, aprofunda a análise
sobre os desencontros e dissensões. Para ele a primeira entre todas as
“injustiças” cometidas com seu país está a que, - “concernant Haïti, on écoute
plus les Occidentaux que les Haïtiens eux-mêmes. » [30]
Ao adotar uma radical atitude etnocêntrica, o mundo obriga os
Haitianos ao silêncio. Sobre si e sobre os outros. Jamais, um haitiano define o
Canadá, a França, os Estados Unidos, mas são legiões as definições e
preconceitos dos canadenses, franceses e estadunidenses sobre o Haiti. Surge
o que Trouillot denomina de l`autorité discursive. Para ele, “Rien n`est plus
terrible pour un peuple que de perdre la capacité de se nommer lui-même. »
Colocando-se aquém da grande maioria ocidental que propõe leituras
etnocêntricas e pródigas lições fadadas ao fracasso, há os que são impactados
pelo Haiti. Pessoas de boa vontade logo se encontram desarmadas quando
colocadas perante uma realidade que não esperavam. O jornalista Tonico
Ferreira, da Rede Globo de Televisão, foi enviado ao Haiti em outubro de
2004 e no seu retorno publicou um revelador embora curto texto no jornal O
Globo sob o título:

“Confesso: não estava preparado para ir ao Haiti”


“E eu até pensei que estava. Havia lido tudo o que podia sobre o país e
havia tomado as providências obvias de sobrevivência em um país em clima
de guerra civil: vacinas, repelente, barrinhas de cereal, nozes, etc. Eu não
estava era preparado emocionalmente para conviver com tanta miséria e
sofrimento humano. E tenho certeza que ninguém está.
Se olhar para uma pessoa com fome já é triste, como reagir frente a uma
criança que te pede uma garrafa de água?
Se é insuportável viver numa cidade onde não há coleta de lixo, o que dizer
dos corpos dos mortos em tiroteios que não são recolhidos e apodrecem nas
ruas?
As cidades não têm saneamento, a água é só de bica, para cozinhar, só
carvão vegetal, e eletricidade é para quem tem gerador a diesel.
Não era para ser assim. Na verdade, o Haiti foi um exemplo ao nascer. A
primeira república negra do mundo, fundada por escravos que derrotaram
um exército de Napoleão. Mas as coisas começaram a dar errado logo em
seguida. De um lado, o boicote das potências escravistas; de outro, o
desentendimento dos revolucionários ao chegar ao poder. Em duzentos
anos, desde a independência, o Haiti teve um imperador, um rei e nove
presidentes eternos. Todo político que chega ao poder, mesmo aquele
inicialmente bem intencionado, quer ficar para sempre.
Há um esforço da Comunidade Internacional para ajudar o Haiti. Nada mais
justo. Os antepassados dos haitianos que hoje passam fome foram
arrancados de suas aldeias na África e levados para o inferno do trabalho
escravo. Morreram trabalhando para suprir o mundo de açúcar. A conta está
aí para ser paga.
Nas duas semanas que estive lá, o sentimento de tristeza era dividido com o
de revolta interna e com o de repugnância. Aqui no Brasil sobrou só a
tristeza na sua plenitude.
Queria terminar com uma frase otimista: falar da música fantástica que
ouvimos lá, da beleza e força da cerimônia Vodu que vimos, do sorriso das
mulheres nas ruas, das crianças com uniformes limpinhos...
Mas só sinto angústia.
Desculpem-me. Eu não estava preparado para o que vi.”

Apesar de alguns escorregões, a qualidade do texto e a sinceridade de


um autor movido por louváveis intenções revelam, uma vez mais, as
insuperáveis dificuldades para compreender o incompreensível, para entender
a desinteligência, para transcender a impactante realidade percorrendo o
caminho que conduz do coração à razão.
Embora minoria, há vários casos de rejeição in limine ao Haiti e ao
seu significado. Conheci um jovem universitário negro integrante de
movimentos em defesa da negritude de Salvador, Bahia, que ao chegar a
Porto Príncipe, acompanhando sua namorada haitiana, residente nos Estados
Unidos, sentiu-se incomodado a ponto de retornar a Washington em menos
de 48 horas.
Calejado por tantas batalhas feitas ao blanc – significado de todo e
qualquer estrangeiro – o indomável Haiti tece terríveis e traiçoeiras
armadilhas também aos olhares imprudentes que o perscrutam. Feitas de
astúcias, de dissimulações, de malandragens, de manobras de diversão, de
ardis, de estratagemas, de tergiversações e de impudência. Estratégias de
sobrevivência indispensáveis ante seus poderosos inimigos.
Separar o verdadeiro do falso, a aparência da realidade, a palavra do
pensamento, a marronagem da ação e o sentimento da razão se constituem em
um desafio constante. Sem vencê-lo impossível esperar apreender os
contornos desta extraordinária e original sociedade.
O objetivo da comunidade internacional, entretanto, não pretende
compreender, muito menos aceitar, uma realidade contraditória. Ela busca
simplesmente estabilizar um poder político instável, normalizar um país
anormal e fazer com que os parâmetros da democracia representativa se
imponham. Para tanto deveria minimamente entender que seu primeiro
desafio consiste em identificar a natureza do imbróglio haitiano.
CAPÍTULO II – A NATUREZA DO DILEMA HAITIANO

La nouvelle idéologie faisait de la démocratie une sorte de religion, un système de


valeurs plus qu’un droit, une pensée plus qu’une pratique et qu’il convenait
d’imposer, par tous les moyens, y compris par la force, à ceux qui n’en avaient pas été
les élus ni les natifs.
Bertrand Badie, La Diplomatie de la connivance

São patentes os fracassos para estabilizar ou “normalizar” o Haiti


nestes últimos 25 anos. Não menos de 30 bilhões de dólares foram gastos
supostamente para resolver a recorrente crise. Milhares de anônimos
especialistas em cooperação para o desenvolvimento foram ao Haiti para
acompanhar e orientar os múltiplos projetos, nas mais diversas áreas, que
simplesmente esfumaram-se sem deixar vestígios palpáveis. A partir deste
descalabro o Haiti passou a ser alcunhado como “cemitério de projetos”.
As reconhecidas maiores estrelas da expertise internacional do
desenvolvimento, tais como Jeffrey D. Sachs, Paul Farmer, Bill Clinton, Paul
Collier e Muhammad Yunus, debruçaram-se sobre o leito do enfermo.
Alguns de maneira episódica, propondo um plano ou aconselhando em áreas
específicas. Outros, tais como Farmer e Clinton, são presenças constantes em
várias frentes haitianas, a ponto de haver confusão entre suas histórias de vida
com a do Haiti.
Financistas do desenvolvimento como Bill Gates e Georges Soros
sustentam vários projetos, estudos e centros de investigação no Haiti, tal
como a Fundação Conhecimento e Liberdade (Fokal), dirigido pela ex-
Primeira Ministra haitiana, Michèle Pierre-Louis.
Jamais um pequeno país subdesenvolvido havia despertado o
interesse de tantos e tão renomados cientistas e pesquisadores universitários
como o que Haiti despertou nestas três últimas décadas. Especialistas norte-
americanos e europeus vinculados às mais diversas áreas do conhecimento,
sobretudo economistas, elaboraram centenas de estudos que desembocaram
em sugestões e propostas para a ação. Uma lista não exaustiva contempla os
seguintes nomes: Mark Danner, David Roodman, Richard Dowden, Alex
Counts, Mariano Aguirre, Josiane Georges, Yasmine Shamsie, Alex Dupuy,
Andrew Thompson, Berenice Robertson, Elisabeth Lindenmayer, Terry Buss,
Mark Schneider, Robert Maguire, Luc Razafimandimby, Amélie Gauthier e
Robert Fatton Jr.
O Haiti encontra-se no radar de renomadas universidades e dos
principais Centros de Pesquisa em Economia do Desenvolvimento da
América do Norte e da Europa ocidental. Nestas regiões há um acúmulo de
conhecimento sobre o Haiti que se reflete em publicações em número e
qualidade muitas vezes superiores aos demais países do hemisfério.
Os desafios haitianos ocupam um lugar especial junto à rede
internacional pública de ajuda ao desenvolvimento (Cepal, Banco Mundial,
BID, FMI, OCDE, União Européia, sistema das Nações Unidas, OEA, Opas,
Caricom) bem como centenas de Organizações Não Governamentais de
alcance transnacional.
Estas centenas de pesquisadores e instituições elaboraram estudos,
publicaram avaliações, indicaram diagnósticos, aconselharam caminhos,
redigiram propostas e projetos visando colocar um termo à infame situação
haitiana.
O desk Haiti no Departamento de Estado americano e na Chancelaria
Canadense reúne recursos humanos e financeiros muitas vezes superiores se
comparados aos destinados a países importantes da região. Assim, por
exemplo, os gastos públicos canadenses com ajuda ao Haiti somente são
suplantados pelos gastos no Afeganistão, onde Ottawa participa em uma
operação de guerra. O próprio Brasil, dotado de recursos limitados, colocou
nas operações haitianas, desde 2004, um montante superior a US$ 1 bilhão.
Dezenas de artistas e esportistas de alto nível emprestaram, em algum
momento e de diversas maneiras, seu nome à causa do Haiti. Entre eles
Angelina Jolie, Shakira, Brad Pitt, George Clooney, a Seleção Brasileira de
Futebol, Halle Berry, Denzel Washington, Madonna, Leonardo Di Caprio,
Tom Hanks, Julia Roberts, Karembeu, Meryl Streep, Sting, Beyoncé,
Rihanna, Bono, Steve Wonder, Muhammad Ali, Charles Aznavour e Vanessa
Paradis. Um lugar especial ocupa Sean Penn. Ao enamorar-se do Haiti e de
seu povo, não mede esforços para auxiliá-los.
A verdadeira babel de especialistas consumiu tempo, recursos
financeiros, energias e boas intenções. Ao final de décadas de trabalho,
resultou na constituição de um impressionante acervo de conhecimento.
Diante da ação desta verdadeira legião de estrelas das Artes, das Ciências, da
Economia e da Política Internacional, nada e ninguém poderiam resistir, no
entanto, ao transitar da teoria à prática, confrontando-o com a realidade
haitiana, o acervo se transformou em uma gigantesca montanha de letras.
O minúsculo Haiti prossegue desafiando a todos. Por quê? O que há
de tão extraordinário na terra de Toussaint Louverture que possa explicar sua
recorrente inadaptabilidade à modernidade?
Como veremos, posteriormente, muitos de nossos dissabores no Haiti
provêm, antes de tudo, da própria filosofia a orientar nossas percepções e
ações. Justamente este livro foi escrito como alerta para que mudemos de
paradigma.
Há inúmeras maneiras de abordar a crise haitiana, contudo ela é, antes
de qualquer outra consideração, uma crise de poder. Trata-se da transição de
um modelo que exclui do jogo político a imensa maioria da população para
um modelo que a inclua. Ou seja, a instituição da denominada democracia
representativa.
A queda de Jean-Claude Duvalier em 1986 abriga um duplo sentido.
Por um lado, significa o fim da solidão e do isolamento do Haiti nas relações
internacionais. Por outro, constitui o ponto de partida dos esforços
objetivando construir um sistema político democrático capaz de tornar
aceitáveis as regras que definem a luta pelo poder.
Não existe tradição democrática no Haiti. A primeira Constituição,
promulgada pelo presidente Alexandre Pétion em 1816, estipulava que os
dirigentes do país seriam escolhidos pelo voto de todos os cidadãos “exceto
as mulheres, os criminosos, os idiotas e as pessoas de condição servil”.
O rol de exigências implicava o descarte de 97% da população,
fazendo com que a escolha dos dirigentes fosse monopolizada pela elite e
pelos militares.
Jamais aplicado o princípio do governo da maioria, os dirigentes
alcançavam o poder por meio de complôs, golpes, assassinatos, quarteladas,
pronunciamentos e revoluções. Dele eram expulsos pelos mesmos
procedimentos.
A primeira eleição presidencial com a introdução do voto universal
concedendo este direito a todos os haitianos com idade superior a 21 anos
ocorreu em 1957.[31]. A fraude, porém, foi generalizada: a utilização de tinta
lavável para identificar os que já haviam votado; a compra de votos; a
montagem de currais eleitorais; a onipresença das Forças Armadas. Com o
beneplácito desta, François Duvalier alcançou o poder.
A recente queda de Aristide, origem da atual crise, deve ser inserida
no longo prazo da história política haitiana e não unicamente no pós-Jean-
Claude Duvalier. E do recorrente fracasso da instituição da democracia. Ou
seja, a instabilidade dominou de forma permanente a política haitiana tal
como demonstra a Figura a seguir:
Figura 2 - Etapas históricas do Haiti
01/01/1804 Independência da colônia francesa de Saint-Domingue
com a denominação de Haiti sob a liderança de
Dessalines.
1805 Dessalines se autoproclama Imperador.
1806 Assassinato de Dessalines.
1806 – 1820 O país é dividido entre um governo do Norte (negro) e
um do Sul (mulato).
1820 – 1842 Unificação do Haiti. Sob pretexto de ajuda à
independência da parte oriental, ocupa toda a ilha de
Hispaniola.
1843 – 1915 Tiranias, revoluções e desordens com o desfile de 22
ditadores ao longo do período.
1915 – 1934 Ocupado pelos Estados Unidos se transforma num
protetorado de Washington.
1934 A política dita de boa vizinhança de F. D. Roosevelt
conduz a retirada dos Estados Unidos.
1934 – 1941 Ditadura de Sténio Vincent. Derrubado por um golpe.
1937 Operação “Perejil”. Massacre de mais de 20 mil
haitianos por Trujillo.
1941 – 1946 Ditadura de Lescot. Derrubado por um golpe.

1946 – 1950 Ditadura de Estime. Derrubado por um golpe.

1950 – 1957 Administração Magloire. Derrubado por um golpe.

1957 - l971 Eleição e ditadura François Duvalier.

1971 – 1986 Ditadura Jean-Claude Duvalier (hereditária).

1986 - 2014 Transição para a democracia representativa

Fonte: Quadro elaborado pelo Autor

O Haiti tem sua primeira experiência eleitoral tardiamente e a


permanente crise política que conhece o país a partir de 1986 deve ser
definida como uma norma desde a independência. O contrário dela, ou seja, a
estabilidade política, é alcançada somente quando o regime é ditatorial, pois
diante do emaranhado confuso que caracteriza a política haitiana – resultante
de uma ruptura e não de um pacto – o poder somente pode impor-se sendo
absoluto.
Em 1986, uma vez jogada ao chão a barragem de contenção ditatorial
duvalierista, as águas tumultuosas das reivindicações políticas descem dos
montes e montanhas destruindo tudo por onde passam. Não deixa de ser
reveladora, neste sentido, a denominação de Lavalas (que significa “grande
fluxo”, “corrente de água” ou “enxurrada”) ao principal movimento popular
que surge das cinzas da ditadura.
Nota-se, desde logo, a primazia da política no sentido de sua
representação institucional e não como instrumento de mediação de conflitos.
A política, tal como concebida e aplicada transforma-se no epicentro do
dilema haitiano.
A flamante Constituição de 1987, a mais democrática na História do
Haiti, indica, entre outras características, o desejo dos legisladores de fazer
com que o Parlamento exerça o controle do Executivo. Obcecados pela
maldição do Palácio Nacional segundo a qual inclusive os Chefes de Estado
eleitos democraticamente se transformam em autocratas quando instalados no
poder, os Constituintes decidem atar as mãos do presidente obrigando o
primeiro ministro (e ao seu Gabinete) a obter maioria parlamentar.
Neste regime o presidente propõe e o Parlamento dispõe. Trata-se,
portanto, de um regime híbrido – porta escancarada à crise – pois a
estabilidade pressupõe que o eleitor conceda uma dupla maioria. Diante da
dispersão, da falta de representatividade nacional e da debilidade partidária, o
desafio raras vezes é vencido.
O modelo constitucional revela incompatibilidade entre o presidente
da República e o primeiro ministro. Alguns analistas chegam a ponto de
considerar este último como um contra poder ao presidente. A bicefalia do
Executivo haitiano constitui seu calcanhar de Aquiles. Tal sistema eleitoral
não exerce as funções previstas nos sistemas políticos democráticos
modernos, qual seja, colocar um termo à instabilidade e às crises pela
manifestação da vontade dos cidadãos através do voto. Ao contrário. As
eleições se constituem em elemento suplementar a atiçar o conflito.
Igualmente eleições periódicas constituem ingrediente incontornável, pois
além de legítimo e constitucional, representam condição sine qua non à
democracia preconizada pela Comunidade Internacional.
De todas as recentes experiências de transição política da ditadura
para a democracia, a longa, caótica e sempre adiada democratização haitiana
é a única que ainda não pode definir as regras do jogo do combate pelo poder.
Exemplos de sucesso não faltam e todos apontam para a mesma direção. Os
atores políticos devem, por um lado, curar as feridas do passado (leis de
anistia, de perdão, de concórdia e de conciliação, etc.) e, por outro,
estabelecer regras de funcionamento para o futuro (multipartidarismo,
liberdades de imprensa e de associação, alternância do poder, respeito às
minorias e aos direitos humanos, instituições sólidas e respeitadas, etc.).
As recentes transições políticas latino-americanas que proporcionaram
a transferência do poder dos militares aos civis ocasionando o abandono do
regime ditatorial e a instalação da democracia representativa perseguiu
modelos, sofreu tensões – que em alguns casos provocaram conflitos armados
– e ritmos distintos. Em todas elas, todavia, encontra-se um denominador
comum: foi firmado um pacto de governabilidade estipulando o respeito às
regras do jogo democrático e propiciando o convívio entre as forças políticas.
A transição haitiana não conheceu até o momento semelhante evolução.
Os derrotados tendem tradicionalmente a contestar a legitimidade do pleito e
o vencedor abusa de seu poder e tenta subjugar a oposição.
A ideia de “crise” possui uma dimensão inusitada no caso haitiano. O
recurso ao autoritarismo e o emprego da força aparecem como mecanismos
habituais da solução de conflitos. A luta pela conquista do poder e a sua
manutenção implica a eliminação do adversário, inclusive fisicamente. Além
disso, práticas políticas violentas, como o Père Lebrun ou suplício do
colar[32], são utilizadas, igualmente, em um sentido pedagógico.
Não é concebível na vida política haitiana a aceitação das diferenças e
da coexistência entre pontos de vistas contrários. A solução da crise exige o
exercício do poder fazendo com que esta lógica seja o germe da própria crise
que será resolvida, provisoriamente, pelo exercício do poder.
A partir do momento em que as crises são resolvidas pelo exercício do
poder e não pela conciliação dos interesses, o sistema sofre uma permanente
instabilidade política. Trata-se de um sistema político inspirado pela
permanente busca de situações de crise. Estas não somente fazem parte do
modus vivendi político, como também se constituem em sua norma
fundadora.
Além disso, deve ser adicionado o fenômeno histórico de intervenções
estrangeiras – unilaterais, multilaterais, legais ou não – sustentadas em
muitos casos no exercício do poder. A natureza e a recorrência destas
intervenções fazem com que o exógeno se transforme em ator de crises
endógenas. Embora sejam correntes os vínculos entre crises políticas
domésticas e interesses estrangeiros, o caso haitiano reveste-se de singular
particularidade.
O crescente número de imigrantes levantinos – mormente sírios e
libaneses cristãos – que chega ao Haiti a partir do final do século 19 é
impedido por lei de se tornar proprietário no novo país, no entanto um novo
dispositivo legal adotado em 1897, com o suposto intuito de restringir ainda
mais a imigração otomana, escancararão a intervenção, sobretudo da França e
dos Estados Unidos, nos assuntos internos haitianos. Em seu artigo 1º, a lei
definia que:

A partir du premier août prochain. Les personnes


d’origines orientale ou de race arabe qui ne sont pas
sujettes de l’une des puissances avec lesquelles
nous avons des traités de commerce leur donnant
le droit de s’établir sur notre sol, ne peuvent s’y
introduire que si, à leur arrivée dans le port de la
République elles font la déclaration de ne devoir
habiter que dans l’intérieur des terres et se livrer à
l’agriculture, soit pour leur compte, soit pour celui
des particuliers.

Tanto Paris quanto Washington, aproveitando-se da brecha, concedeu


nacionalidade aos imigrantes levantinos que desejassem instalar-se no Haiti.
Graças a ela adquiriram propriedades, dominaram o comércio e se
transformaram em potenciais atores da política haitiana. Nas distintas crises
que conhece o país ao longo do século passado e no início deste, Estados
Unidos e França – a pretexto de proteção diplomática de seus nacionais –
intervêm constantemente. A avaliação diplomática bem como a posição
política leva em consideração os interesses destes duplo-nacionais
percebidos, por vezes, como verdadeiros Cavalos de Tróia.
A intromissão estrangeira, mormente quando exerce um inconteste
poder como no caso da Minustah, indica que o vilipendiado sistema político
haitiano consegue impor sua norma fundadora e seus princípios cardeais ao
próprio sistema global de tratamento de crises.
Como todo sistema político, o haitiano tende a modular e adaptar as
iniciativas que procuram modificá-lo ou transformá-lo. Uma das
características marcantes deste modelo é o fato de que qualquer um dos
atores, inclusive os internacionais, apontam unicamente em direção de
solução vinculadas à ideia de eliminar, evitar, proibir, bloquear e destruir os
elementos do passado considerados negativos. Ao invés de explorar, analisar,
incorporar, criar, planificar e construir significantes e sentidos comuns ao
conjunto dos atores políticos ou, na pior das hipóteses, a maioria deles.
Ao que parece o sistema mantém seu equilíbrio geral respondendo aos
interesses básicos dos atores-chave, detentores do poder, tanto no interior
quanto no exterior do país. Estes atores-chave acomodam-se com a situação e
funcionam neste contexto de instabilidade permanente procurando os
caminhos e meios para a salvaguarda de seus interesses.
No Haiti o Estado praticamente não existe ou é extremamente frágil. A
organização da sociedade civil é precária. Os atores políticos possuem
escassa consistência e sobrevivem com grande dificuldade. O país, todavia,
possui uma consciência profunda de sua História, uma cultura viva e original,
uma forte identidade que desemboca facilmente no nacionalismo. Uma
grande massa de pessoas submissas às necessidades humanas elementares e
que estão subjugadas pela busca de respostas a necessidades básicas. São
fatalistas quando analisam o passado e quando projetam o futuro.
Esta situação explica o fato de que os protagonistas se reportem à
História e aos assuntos que ela ainda não deslindou. De certa forma, eles
buscam no passado um sentido para o futuro. O passado condiciona o
presente, ele o determina e não permite que se tenha uma perspectiva política
do futuro. De certa maneira, o político haitiano mira o futuro pelo espelho
retrovisor. A partir desta situação, é indispensável compreender o passado a
partir do presente, levando em consideração as necessidades atuais, com o
objetivo de alimentar uma linguagem compartilhada capaz de tornar possível
o diálogo político e social.
Um dos problemas fundamentais consiste na identificação de quem
desempenha o papel de inimigo e quais as promessas contidas na sua
eventual eliminação. Esta identificação não existe, fazendo com que inexista
também um ponto focal a ser enfrentado.
As intervenções destinadas a transformar o sistema geral de solução de
conflitos sociais devem levar em consideração a complexidade e a
sofisticação do sistema. Apesar de inexistir polaridades que permitam a
identificação de um antagonismo determinante é ampla a diversidade das
linhas de conflito: ricos/pobres; campo/cidade; negro/mulato;
catolicismo/vodu; teologia da libertação/igreja tradicional; partidos
políticos/sociedade civil; patrões/operários; conservadores/progressistas;
direita/esquerda; guerreiros/pacifistas; pró/contra colonizadores.
O que existe é tão somente um espaço imaginário de oposição à
situação presente e sua reprodução que se manifesta em torno de ideias-força
tais como a justiça e a subordinação. O ex-presidente Aristide tentou ocupar
este espaço em sua dimensão simbólica (ele utilizava o slogan “nossa
identidade nos libertará”), embora nada tenha alcançado de concreto.
A aspiração à democracia, nos termos da retórica latino-americana
clássica sobre os pobres e a justiça, é acompanhada de outra reivindicação,
tanto ou mais retórica, sobre a cidadania eleitoral e as instituições. Ausente
no discurso político o vínculo entre os temas da democracia e da segurança
aos desafios econômicos e sociais. Estes últimos são os primos pobres do
discurso dominante no Haiti. A centralidade da política leva a restringir os
dilemas do país a acertos ou desacertos entre os principais atores da política
nacional. O exemplo marcante desta situação é a dificuldade do diálogo e da
reconciliação nacional, entendido pelos atores políticos como mero jogo
retórico.
Inexiste uma análise compartilhada da natureza da crise e de suas
causas além da retórica. São escassos os esforços buscando uma visão
comum que sustentaria uma ação conjunta. A ausência de um verdadeiro
Estado funcional (instituições, regras do jogo, pesos e contrapesos, aparelhos
e força pública, transparência e controle) ocupa um lugar menor nos debates
nacionais.
Para a criação de um espaço de encontro de vontades, aspirações e
interesses díspares – muitas vezes não manifestados – a noção de confiança é
central. A confiança entre os atores políticos, os poderes do Estado, a
sociedade civil e entre os atores nacionais e internacionais é base da
governabilidade e indica a possibilidade de elaboração de um projeto
nacional, até o momento impensável no Haiti.
Deve ser ressaltado, igualmente, que no mundo ocidental o nível de
violência política é inversamente proporcional à riqueza material da
sociedade. Nas profundamente empobrecidas como a haitiana, em que mais
de 50% da população sobrevive abaixo da linha de miséria, o controle dos
escassos recursos do Estado se constitui na única fonte de riqueza. Estas
condições fazem com que a política se transforme em uma arena marcada por
constante e violenta competição.
A espinha dorsal de toda transição política e no caso haitiano deveria
ser a primeira e mais premente, consiste na construção de um sistema
eleitoral legítimo, independente do Executivo e eficaz. Tanto a Constituição
de 1987 quanto a Lei Eleitoral (promulgada em 24 de setembro de 2008),
preveem a existência de um Conselho Eleitoral Permanente (CEP). Sem
mudar a sigla, o Haiti dispõe de um CEP, contudo a derradeira letra da sigla
significa Provisória e não Permanente...
Os vários governos que se sucederam desde 1987 não souberam, não
puderam ou não quiseram torná-lo permanente. Nestes últimos 25 anos as
competições eleitorais foram organizadas por meio de instituições ad hoc.
Desde seu surgimento, o Conselho Eleitoral Permanente conheceu nada
menos que 16 fórmulas e composições distintas. Em todas elas,
invariavelmente, o Presidente da República da vez imprimiu sua marca.
Como, então, surpreender-se com a desconfiança e as críticas da oposição? A
cada votação segue vigorosa contestação de seus resultados a provocar
permanente instabilidade.
Os redatores da Lei Eleitoral, imbuídos da louvável preocupação de
afastar injunções políticas sobre o CEP concederam a este, em matéria
eleitoral, poderes supremos, pois suas decisões são irrecorríveis.
A condição de instância de último recurso do CEP, concedida por
uma lei a qual, desde logo é inconstitucional, pois suplanta a própria
Constituição. O CEP haitiano coloca-se acima não somente das leis e da
Constituição, como ele é a lei. De fato e de direito tudo que emana do CEP
possui o condão da legalidade suprema, definitiva e irrecorrível.
Quando um sistema jurídico concede o direito e o poder que concede
o Haiti ao seu CEP, torna-se indispensável que esta instituição possa operar
com absoluta capacidade técnica, independência política e autonomia
financeira. Ademais, seus nove conselheiros devem gozar de legitimidade e
suas nomeações não devem sofrer injunções de natureza político-partidária.
Para tanto, devem ser juízes inamovíveis por razões políticas escolhidos por
intermédio de concursos públicos.
Nenhuma destas condições existe no caso do Haiti. Na maioria das
eleições o Estado participa tão somente com 25% do orçamento eleitoral. O
financiamento de ¾ parte provém do exterior. Esta situação concede à
Comunidade Internacional uma importância capital nos embates eleitorais.
Os principais Estados e organizações internacionais financiadores compõem
um grupo que acompanha, aconselha, sugere, exerce pressões, sem descartar
ameaças veladas ou explícitas.
Técnicos eleitorais estrangeiros participam ativamente do processo.
Por exemplo, a OEA apoiou o Office National d`Identification (ONI) desde
seu surgimento. Sem esse apoio, seria impossível a confecção da Cédula de
Identificação Nacional (CIN) distribuída a mais de 5 milhões de adultos. Ora,
a CIN é o único e exclusivo documento que permite o exercício do voto.
Assim, a elaboração da Lista Eleitoral, ou seja, o conjunto de pessoas adultas
capacitadas ao exercício do direito de voto depende também do apoio técnico
e financeiro do exterior.
Uma dificuldade suplementar surge quando o Haiti decide fechar a
Lista Eleitoral somente 60 dias antes da votação. A Justiça Eleitoral, em
países tais como o Brasil, dotado de meios infinitamente superiores e de total
autonomia, demonstram muito mais cautela com o encerramento da Lista
fixado seis meses antes da contenda. As condições intrínsecas do Haiti
dificultam a elaboração de uma Lista Eleitoral confiável. O reduzido prazo a
torna impossível. Finalmente, técnicos estrangeiros trabalham no interior do
CEP e encarregam-se do Centro de Apuração dos Votos (CTV).
A Comunidade Internacional acompanha também por meio da
observação eleitoral. Organizações privadas tais como o Centro Carter, o
Clube de Madri, a NDI e a International Foundation for Electoral Systems
(Ifes) bem como as públicas, caso da OEA, Caricom e União Europeia. A
estas se juntam observadores enviados por determinados Estados.
Quando das últimas eleições, objeto da terceira parte deste livro, o
papel da Missão de Observação Eleitoral (MOE) da OEA/Caricom foi muito
além do que estava inicialmente previsto. Com efeito, os resultados do
primeiro turno publicados pelo CEP foram modificados pela MOE e um
candidato presidencial foi descartado em proveito de outro. Ocorreu,
portanto, de fato, uma substituição das autoridades eleitorais haitianas por
instituição estrangeira.
Apesar de desmentidos tão naturais quanto constante, forçoso
constatar a existência de uma imbricação política entre o poder Executivo,
especialmente a Presidência da República, e o CEP. Segundo a Constituição
de 1987 cabe ao Chefe do Executivo a responsabilidade de nomear seu
Diretor Geral (DG). Trata-se, pois, de um cargo de confiança, exclusivo do
presidente da República. Evitando entrar na discussão sobre a suposta
capacidade técnica do DG, em razão de seu papel primordial, ele será sempre
percebido com desconfiança pela oposição.
A designação dos nove Conselheiros do CEP decorre de um longo,
complexo e pouco transparente processo no qual, uma vez mais, o Chefe de
Estado dispõe de instrumentos incompatíveis com os princípios de separação
dos poderes. Enfim, a decisão de “convocar o povo ao comício” constitui
atribuição presidencial, embora ele tenha de, em tese, respeitar o calendário
eleitoral previsto na Constituição.
Após inúmeras peripécias finalmente o presidente Michel Martelly
decidiu, em 2012, tornar permanente o Conselho Eleitoral, contudo utilizou-
se de métodos que descartaram o diálogo com a oposição. Esta ausência de
concertação bloqueou o processo. Finalmente foi adotada a fórmula do
“Collège transitoire du Conseil Electoral Permanent » (CTCEP) o qual, pelo
seu ineditismo e ambiguidade, demonstra, uma vez mais, que a questão
eleitoral encontra-se no cerne dos dilemas haitianos. Após meses de embates
internos e de pressões externas, finalmente o CTCEP foi instalado
formalmente em 19 de abril de 2013.
Como corolário a sua engenharia eleitoral, o Haiti se caracteriza por
uma sucessão infindável de embates eleitorais decorrente de um irracional
calendário de votações. A Constituição prevê consultas populares, sobretudo
parlamentares e locais, quase todos os anos. O país vive em permanente
tensão eleitoral. Esta febre, que alguns comparam a um “câncer eleitoral”,
[33] infere sobre sua capacidade para enfrentar os desafios sociais,
econômicos e os da reconstrução. Por conseguinte, eis um país que não
dispõe dos mínimos requisitos para o exercício eleitoral e que, encorajado
pela Comunidade Internacional, faz deste uma atividade constante e central
da vida pública.
Diante da contraditória constatação – de um lado a crônica
incapacidade eleitoral do Estado e de outro o papel preponderante das
votações para a estabilidade política do país – não existe outra solução a não
ser reforçar sua capacidade institucional e promover uma ampla reforma
constitucional. Ausente uma verdadeira e profunda refundação do sistema
eleitoral haitiano, inserida como uma primeira etapa de um processo de
mudanças políticas que levariam à assinatura de um Pacto de Liberdades e
Garantias Democráticas, impossível estabilizar politicamente o Haiti.
Tanto quanto os desafios sócio-econômicos e da reconstrução são
reféns das disputas eleitorais e da forma de fazer política, o povo haitiano
também o é. Frente às manobras politiqueiras, somente uma arma resta
possível aos haitianos: o desencantamento com a política e com os políticos
que se traduz pelo alto índice de abstenção. A participação nas últimas
conturbadas eleições presidenciais é reveladora do mal-estar. Passou-se de
uma participação de 62% na eleição presidencial de 2006 para 23% no
segundo turno em 2011. Muito além do debate sobre o grau de legitimidade
dos eleitos, o absenteísmo pode ser interpretado, entre outras, como indicação
perturbadora da possível existência de um sentimento predominante de
desencanto e de rejeição à democracia representativa. Tal eventualidade é
ainda mais grave quando se constata que o fundamento ideológico da ação da
CI no Haiti consiste em apresentar o modelo de democracia representativa
como sendo o único capaz de tirar o país da situação em que se encontra.
A OEA, pelo Departamento de Cooperação e Observação Eleitoral
(Deco), foi a mais importante parceira na construção do sistema eleitoral
haitiano. Seja com projetos permanentes de cooperação – confecção das
cédulas de identidade, fornecimento de equipamentos, formação de pessoal –
seja com iniciativas pontuais por ocasião das eleições, tais como a elaboração
da Lista Eleitoral e a apuração dos votos.
A OEA foi também presença constante mediante dezenas de missões
técnicas e de mediação política quando das recorrentes crises eleitorais
haitianas.
Desde 1995 o CEP recebe cooperação técnica do Instituto Federal
Eleitoral (Ifes) mexicano. Além deste, a União Europeia, o Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Clube de Madri além de
outras instituições eleitorais nacionais das Américas contribuem com o CEP.
Apesar da assistência eleitoral estrangeira ao Haiti consumir, desde o
inicio da década dos anos 90, aproximadamente 3 bilhões de dólares, o
sistema eleitoral haitiano permanece sendo marcado por irritante fragilidade
institucional, por recorrente incapacidade técnico-financeira e pela realização
de eleições cujos resultados se prestam à contestação a provocar crises
políticas que desembocam, invariavelmente, em intervenções estrangeiras.
O Haiti foi objeto, desde o início de 1993, de nada menos que sete
Operações de Paz das Nações Unidas. A fase inicial da Missão Civil
Internacional no Haiti (Micivh, 1993-2000) foi estritamente civil com a
colaboração pioneira – jamais repetida – entre a OEA e a ONU.
Malgrado seu caráter multifacetado, todas as Missões foram abrigadas
sob o guarda-chuva do Capítulo VII da Carta da ONU. Assim, em 2 de
agosto de 1994 o CSNU adota a Resolução 940 prevendo a criação de um
contingente militar multinacional para intervir no Haiti. Pela primeira vez em
sua história as Nações Unidas lançam mão do Capítulo VII de sua Carta para
tratar de um assunto de natureza constitucional e, portanto, estritamente
doméstico. A partir do momento em que o CSNU considera que as crises
políticas internas haitianas representam uma ameaça à paz e à segurança
internacionais, ele se transforma em refém suplementar da maneira como se
pratica a política no Haiti.
A Resolução 940 suscitou dúvidas e críticas. O próprio CSNU referiu-
se à situação e circunstâncias “uniques et exceptionnelles” bem como à
natureza “complexe et extraordinaire” de uma situação a exigir “une réaction
exceptionnelle” que não poderia, em nenhuma hipótese, ser utilizada como
precedente.
Pela primeira vez, desde 1966 (caso da Rodésia), o CSNU havia
adotado uma Resolução considerando que graves violações dos direitos
humanos no interior das fronteiras nacionais constituiriam ameaça à paz e à
segurança internacionais. Repete-se a argumentação e adiciona-se um
elemento considerado capital na crise haitiana: “Les déplacements massifs de
populations constituent des menaces à la paix et à la sécurité internationales
ou aggravent les menaces existantes. »
Embora o número de boat people não ultrapasse dezenas ou centenas
de pessoas, para uma população total que beira 10 milhões de indivíduos, o
CSNU define estas migrações forçadas como “déplacements massifs”.
Apesar da oposição do Brasil e das reticências da China e Rússia, a
Resolução 940 foi adotada e se transformou, contrariando seus próprios
dispositivos, em paradigma no tratamento de posteriores crises do país
caribenho. O precedente excepcional se transmuta em regra petrificada e
imutável. Desde então, os sobressaltos políticos e estritamente domésticos do
instável Haiti serão percebidos pelo CSNU como uma ameaça que deve ser
respondida pela intervenção, mormente militar, estrangeira. O quadro abaixo
resume as intervenções ao longo de duas décadas. Todavia, o Haiti continua
desafiando os esforços internacionais para supostamente democratizá-lo.
Figura 3 - Missões das Nações Unidas ao Haiti (1993-2014)
Missão Duração Comando Efetivos
Custos
Micivih[34] Fevereiro 1993 a ONU e 280 civis US$ 14
Março 2000 OEA milhões
Unmih Setembro 1993 a Estados 1297 militares e US$ 15,1
Junho l996 Unidos 291 policiais milhões
Unsmih Julho 1996 a Canadá 1300 militares e US$ 71
Julho 1997 225 policiais milhões
Untmih Agosto a Canadá 50 militares e 250 US$ 20,6
Novembro 1997 policiais milhões
Miponuh Dezembro 1997 a Guiné 300 policiais US$ 20,4
Março 2000 Bissau milhões
Micah[35] Março 2000 a Missão civil 207 civis US$ 27
Fevereiro 2001 milhões
Minustah Junho 2004 a Brasil 12.000 militares US$ 8,2
maio 2014 2.500 policiais bilhões
Fonte: Elaborado pelo autor, segundo dados oficiais das Nações Unidas

Embora cada uma destas Missões tenha sido uma tentativa de resposta
a situações específicas e apresentarem contornos e características distintas,
forçoso é constatar que o leitmotiv destas intervenções exógenas foi a
natureza política da crise haitiana. Política no sentido de que a marca
indelével destas crises domésticas de baixa intensidade resulta da simples e
inevitável luta pelo poder, marca registrada de toda sociedade humana
organizada. Ao responder uma solicitação endógena, a CI se transforma, por
vezes contra sua vontade, num dos principais atores do jogo político haitiano.
Por conseguinte, são os desafios políticos que deveriam estar no
centro da estratégia da CI no Haiti. Apesar das necessidades imensas de toda
ordem, é a política que constitui o cerne dos dilemas. Na ausência de um
modus vivendi aceitável por todos e de regras do jogo que se imponham aos
atores, não há remédio. Enquanto a CI mantiver sua cegueira perante essa
realidade e contentar-se com soluções de poder não haitianas, a crise pode
beneficiar-se de uma acalmia, jamais de um epílogo.
Como corolário ao seu modelo político, no plano econômico o Haiti
sobrevive em profunda e crônica dependência externa. Carente de um sistema
fiscal coerente e eficaz, o debilitado Estado haitiano consegue amealhar tão
somente 10% do que necessita para funcionar minimamente. Nota-se que 80
% deste montante provêm de impostos alfandegários.
Sustentado pelo exterior, o Haiti apresenta positivos índices
macroeconômicos: inflação controlada; sistema de câmbio livre e estável;
emissão monetária disciplinada e o imenso déficit da balança comercial,
compensado pelo equilíbrio da balança de pagamentos graças ao aporte
externo.
O modelo econômico haitiano pode ser comparado aos modelos das
economias de Estados que funcionam graças à renda proveniente de um
grupo reduzido de commodities. A renda petrolífera dos países do Golfo
Pérsico e de extração mineral de alguns países da África e da América Latina
são os melhores exemplos. No caso do Haiti, a ajuda internacional constitui
sua commodity. A origem da renda haitiana encontra-se em sua pobreza
extrema, nos desastres naturais e em seus dramas sociais.
Trata-se de um modelo estável que exerce funções similares às dos
países rentistas. A ajuda internacional chega formalmente ao Haiti por meio
de mecanismos contábeis. Logo retorna aos países doadores – em particular
aos mais influentes e desenvolvidos – mediante a compra de bens e de
serviços. O modelo descarta a necessidade de um governo eficaz, pois os
conselheiros estrangeiros financiados pela renda encarregam-se de
administrá-la.
Consolidado na prática e nos espíritos, o paradigma haitiano satisfaz
ao conjunto de atores. O governo dispõe de uma fonte segura de recursos, os
países doadores recuperam a quase totalidade das doações, a elite haitiana
recebe proteção e, finalmente, a burocracia das organizações internacionais
pode beneficiar-se de vantagens salariais e de remuneração, pois
supostamente atuam numa região considerada conflitiva. Caso apresentem-se
problemas, seja de gerenciamento seja de eficiência, os atores descartam sua
responsabilidade acusando seu parceiro.
Para Pierre Léger o sistema Food for the Poor « est une structure
permettant d`alimenter la plus grande industrie du monde qui n`est autre que
la pauvreté. »[36]
Para garantir a perenidade do paradigma haitiano torna-se
indispensável que os problemas aparentemente enfrentados por ele perdurem,
pois no caso de solução seria sua decadência. Decorre desta lógica que o
povo haitiano deve permanecer em sua ignominiosa condição.
A crise de poder inserida em um marco de profunda desigualdade
social e de continuada depressão econômica, resulta em crítica situação a
desafiar a ordem internacional. Uma vez mais, no entanto, com a irritante
insistência em não compreender a natureza primeira da crise haitiana,
novamente a Comunidade Internacional intervirá decisivamente com seus
militares nos assuntos internos do país.
Como se fora um símbolo atestando as tumultuosas relações entre o
mundo e a irrequieta República negra, no ano do aniversário do bicentenário
de sua independência, o Haiti será ocupado por forças militares estrangeiras.
Disposto a permanecer o tempo que julgar necessário, o poder internacional
pretende, uma vez por todas, normalizar um país considerado anormal,
estabilizar um sistema político cujo fundamento repousa na instabilidade,
integrar ao sistema internacional uma economia que sobrevive graças à ajuda
externa e, finalmente, extirpar os demônios que o assombram há dois séculos.
Vasto e ambicioso programa. A queda de Jean-Bertrand Aristide será a
oportunidade sonhada para colocá-lo em prática.

CAPÍTULO III – UM GOLPE PARA A DEMOCRACIA: A QUEDA


DE ARISTIDE

La vérité est que tout homme intelligent, vous le savez bien, rêve d`être un gangster et
de régner sur la société par la seule violence. Comme ce n`est pas aussi facile que peut
faire croire la lecture des romans spécialisés, on s`en remet généralement à la
politique et l`on court au parti le plus cruel.
Albert Camus, La Chute
“O senhor sabe por que estou aqui?” indaga, em espanhol, Luis
Moreno, embaixador adjunto dos Estados Unidos no Haiti. “Sim,
certamente”, responde o presidente Jean-Bertrand Aristide.[37]
Este diálogo ocorre nas primeiras horas da madrugada de 29 de
fevereiro de 2004 quando, acompanhado de seis oficiais de sua segurança, o
diplomata americano ingressa na residência particular de Aristide, localizada
em Tabarre, arredores de Porto Príncipe.
A partir deste instante, aparecem, para dizer o mínimo, duas versões
que se contrapõem frontalmente.
A dos Estados Unidos sustenta que respondem à solicitação do
próprio Aristide para que possa abandonar o Haiti em segurança. Chegaram à
residência a bordo de veículos oficiais da Embaixada dos Estados Unidos e
com estes dirigiram-se ao Aeroporto Toussaint Louverture conduzindo
Aristide. Às 6h15 minutos da manhã, a bordo de um jato comercial, sem
identificação, fretado pelo Governo dos Estados Unidos, Aristide e sua
esposa Mildred Trouillot[38] deixam o Haiti.
Logo surge a segunda versão. Ocorre que Jean-Pierre Perrin, do jornal
francês Libération, chega à residência de Aristide poucos momentos depois
que este a deixara. Não há guardas e o portão de acesso encontra-se
simplesmente encostado. Ao ingressar na residência, encontra um senhor
haitiano visivelmente amedrontado. Trata-se de Joseph Pierre, zelador da
residência de Aristide. Interrogado sobre o que acaba de suceder, ele declara
o seguinte:

Des Blancs américains sont venus le chercher en


hélicoptère. Ils ont emmené aussi les hommes
chargés de sa sécurité. C`était vers 2 heures du matin.
Lui ne voulait pas partir. Les soldats américains l`ont
forcé. A cause des armes qu`ils ont pointés sur lui, il
a été obligé de les suivre. Les Américains sont les
plus forts après Dieu.[39]

As diferenças na forma de ingressar na residência e na maneira de


convencer Aristide serviram de combustível para uma imensa celeuma,
todavia não esclarecida. Sobretudo porque logo a seguir o próprio Aristide
denuncia seu suposto sequestro.
Um terceiro elemento da discórdia poderia decorrer da existência ou
não de renúncia formal de Aristide à Presidência. Este nega ter renunciado,
contudo admite ter redigido e assinado um documento no qual a especial
maneira aristidiana de escrita encontra-se plenamente contemplada. Eis o
breve documento redigido em Kreyól:

28 fevriye 2004,
M te sèmante pou respekte e fè respekte Konstitisyon an.
Aswè a, 28 fevriye 2004, mwen toujou deside
Respekte e fè respekte Konstitisyon an,
Konstitisyin an se garanti lavi ak lapè,
Konstitisyon an pa dwe nwaye nan san pèp Ayisien.
Se pou sa, si aswè a se demisyon m ki pou evite yon beny san,
M aksepte ale ak espwa va gen lavi e non lanmò.
Lavi pou tou moun.
Lanmò pou pèsonn.
Nan respekte Konstitisyon na,
E nan fè respekte Konstitisyon na,
Ayiti va gen lavi ak lapè.
Mèsi.

Embora não esclareça as circunstâncias em que redigiu e assinou o


documento, não deve haver dúvidas quanto a sua autenticidade e significado.
Trata-se de comunicado formal de renúncia ao cargo de presidente da
República do Haiti.
Sobre o ocorrido, em certa ocasião indaguei a René Préval. Ele
respondeu-me laconicamente: “Aristide a monté tout seul les marches de
l`escalier qui l`ont conduit a l`avion.”
Independentemente das interpretações cria-se uma lamentável e
inconteste realidade: exatamente no ano do bicentenário da gloriosa
Independência, o Haiti encontra-se decapitado e tropas estrangeiras
preparam-se para ocupar o país. Uma vez mais.
Como se desenrolou o processo que desembocou nesta situação?
Pouco menos de quatro anos transcorrem do início da crise (maio de
2000) até seu fatídico desenlace em fins de fevereiro de 2004. Pode-se dividir
o período em duas fases. A primeira é marcada pelas contestadas eleições,
intensa mediação por parte da OEA e se conclui com violência em 17 de
dezembro de 2001.
Interrompidas as atividades legislativas desde janeiro de 1999, a
reabertura das duas Câmaras constituía-se em elemento primordial para a
consolidação democrática do país. As eleições parlamentares e municipais de
21 de maio de 2000 revestem-se, nestas condições, de particular importância.
Desde 1990 a OEA acompanhou e observou quatro eleições no Haiti.
Novamente em 2000 uma Missão de Observação Eleitoral encontra-se no
Haiti. Constata, apesar de sérios problemas administrativos e logísticos,
vários aspectos positivos: registro de eleitores, importante nível de
participação e ausência de violência no dia da votação.
Logo, contudo, assinala grave irregularidade quando do escrutínio dos
votos. Segundo os artigos 53 e 64 da Lei Eleitoral haitiana um candidato ao
Parlamento será eleito à condição se alcançar maioria absoluta (50% + 1
voto) dos votos válidos no primeiro turno. Senão devem recorrer ao segundo
turno os dois candidatos mais bem colocados.
O chefe da MOE no Haiti, Orlando Marville, diplomata de Barbados,
indica que as autoridades eleitorais ao calcular os percentuais atribuídos a
cada um dos candidatos ao Senado não levaram em conta o número total de
votos expressos. A metodologia utilizada pelo CEP excluía aproximadamente
1,2 milhão de eleitores e infringia o princípio basilar de um eleitor = um voto.
Sua consequência imediata foi eleger no primeiro turno oito candidatos ao
Senado – todos integrantes da situação – quando, na verdade, eles deveriam
se submeter a um segundo turno.
O presidente René Préval recebeu as informações de Marville e,
segundo declar-me-ia posteriormente, dispôs-se a analisar como reparar os
supostos erros cometidos. Ora, logo após reunir-se com Préval e sem que este
soubesse, Marville convoca uma coletiva de imprensa para denunciar as
supostas fraudes e abandona imediatamente o país. Deixa atrás de si um Haiti
em chamas. Logo os candidatos derrotados da oposição se apropriam das
críticas de Marville e exigem que a votação seja anulada.
Embora a crise fincasse suas raízes na metodologia do escrutínio, o
tratamento público e escandaloso feito pelo chefe da MOE da OEA lhe
concederam indevida dimensão. O embate transitou de uma simples questão
envolvendo a metodologia da contagem dos votos, portanto estritamente
circunscrito, para uma acirrada disputa política a desembocar em mudança de
regime e em intervenção militar estrangeira.
Considerando ter tido sua confiança traída por Marville, Préval o
declara persona non grata. Os esforços de mediação realizados a partir de
então pela OEA serão marcados pela tensão e pelo fracasso.
Não surpreende o fato de o CEP não corrigir as falhas identificadas e,
por conseguinte, a OEA não observar o segundo turno das eleições
legislativas e municipais. Uma vez mais elas são boicotados por diversos
partidos políticos de oposição.
A democracia haitiana encontrava-se num impasse. As votações
haitianas, cujos resultados deveriam pacificar o país, como ocorre em
democracias quando o eleitor expressa sua vontade, recolhem exatamente o
resultado inverso ao servir de combustível à crise política. Neste sentido, esta
se enquadra rigorosamente no modelo descrito no capítulo anterior.
Com suas gestões a OEA esperava ver a crise arrefecer. Ocorre
exatamente o contrário. Em 17 de junho de 2000 o presidente do CEP, Léon
Manus, abandona suas funções e deixa o Haiti. Ele se recusa a apoiar a fraude
e solicita asilo aos Estados Unidos.[40] Além dos erros apontados pela MOE
da OEA, Manus revela em correspondência enviada a Colin Powell, em
dezembro de 2000, que fora convocado por Préval e Aristide ao Palácio
Nacional e ameaçado de morte caso não publicasse os resultados
manipulados.
Segundo Manus, na noite anterior à votação, várias pessoas, entre elas
policiais graduados, substituíram urnas vazias por outras repletas de votos
para os candidatos da Família Lavalas.[41] Destaque-se que dois outros
conselheiros do CEP – Debussy Damien e Emmanuel Charles – ambos
representantes do Espaço de Concertação, também apresentaram sua
demissão.
As deficiências identificadas nas eleições de 21 de maio provocaram
uma crise de legitimidade, um impasse político significativo, um tenso
relacionamento com a OEA e uma grave crise socioeconômica no Haiti.
Ocorre que foram suspensos centenas de milhões de dólares de assistência
para o desenvolvimento. A realização de eleições legislativas e municipais
confiáveis e transparentes é considerada como uma das precondições para a
liberação desses recursos da comunidade doadora internacional.
Tal como ocorrera quando do embargo em razão do golpe militar de
Raoul Cédras contra Aristide em 1991, a Comunidade Internacional penaliza
o conjunto do país, sobretudo aos mais humildes dos haitianos. Novamente
são estes as principais vítimas decorrentes da polarização que afeta setores da
sociedade nacional.
Apesar das insuperáveis dificuldades, a OEA prosseguiu com seus
esforços de mediação e decidiu, em 4 de agosto de 2000,

aceitar o convite do Governo do Haiti e enviar


prontamente a esse país uma Missão encabeçada pelo
Secretário-Geral, com representação do Grupo de
Amigos do Secretário-Geral das Nações Unidas, para
identificar, com o Governo do Haiti e outros setores
da comunidade política e civil, alternativas e
recomendações destinadas a resolver, com a maior
brevidade possível, dificuldades como as que
surgiram das diferentes interpretações da Lei
Eleitoral, e continuar fortalecendo a democracia nesse
país.

Em cumprimento a esse mandato, o Secretário-Geral da OEA, à frente


de uma delegação, viaja ao Haiti. Ao retornar a Washington declara que

as conseqüências das eleições de 21 de maio haviam


exacerbado a crise política e das instituições
democráticas já existentes no país, ao invés de
começar a resolvê-la, como se esperava. Este sentido
de uma necessidade urgente de manter um diálogo
político agora coexiste com dúvidas sobre se esse
diálogo é possível.

Subsequentemente, o Secretário-Geral Adjunto, o estadounidense


Luigi Einaudi, com vistas a facilitar e promover um ambiente de diálogo,
visitou o Haiti em três ocasiões, no período de 15 de setembro a 23 de
outubro de 2000.[42] Em 11 de outubro de 2000 ele fez uma apresentação
verbal ao Conselho Permanente da OEA (CPOEA), na qual observou que
ainda existiam diferenças consideráveis a serem superadas e que o tempo
estava se tornando rapidamente um inimigo comum para todos os
interessados. Ressaltou que, apesar da ausência de um acordo político sobre
como resolver as diferenças decorrentes das eleições de 21 de maio e como
garantir a legitimidade para a Presidência e o Senado, pareciam claro que
seria observado o calendário eleitoral que previa eleições para 26 de
novembro, dali a escassas seis semanas.
Em outubro Einaudi apresenta um documento intitulado “Elementos
de reflexão com vistas a um acordo nacional”, a respeito do qual parecia
haver acordo significativo de parte de todos os interessados sobre diversos
pontos. No início de novembro, no entanto, ele volta atrás e constata que “…
não existe um consenso suficientemente amplo para alcançar o objetivo da
OEA: a saber, a negociação de um acordo nacional entre todas as Partes que
resolveria a crise política e que o faria de uma forma que atrairia o apoio da
Comunidade Internacional”.
Embora prosseguissem as negociações, não surge nenhum resultado
tangível. Assim as eleições presidenciais foram levadas a cabo sem correção
das falhas verificadas nas eleições de 21 de maio.
Como consequência a OEA tampouco observou essas eleições. Em
27 de novembro, ela lamenta informar que

a decisão das autoridades haitianas de proceder com


as eleições de 26 de novembro apesar da ausência de
tal acordo político, evita uma interrupção no
calendário de sucessão presidencial, mas não altera a
necessidade de garantir a ampla representação
política e participação dos cidadãos, que são críticas
para o desenvolvimento da democracia haitiana.

A ausência oposicionista deveria provocar uma baixa participação e


na contestação da legitimidade do novo presidente. Ora, quase 3 milhões de
eleitores acorreram às urnas, a significar uma participação de 66% do
eleitorado. Jean-Bertrand Aristide foi eleito no primeiro turno com 2.632.534
votos de um total potencial de 71,8% do total. O conjunto dos demais
candidatos soma 239.038 sufrágios. Os brancos, nulos e abstenção alcançam,
em razão do boicote oposicionista, 796.477. Nota-se que, ao descartar os
votos nulos e brancos, Aristide recolhe 91,81% dos votos válidos.

Figura 4 - Eleição presidencial novembro 2000

Fonte: Conselho Eleitoral Provisório

Inobstante a acachapante derrota, a Convergência Democrática indica


que seu candidato, Gérard Gourgue, é o novo presidente do Haiti![43] Não se
trata de um gabinete fantasma, para acompanhar e criticar a ação
governamental como ocorre com o partido derrotado no regime bipartidarista
do parlamentarismo britânico. O objetivo da oposição haitiana, apesar de não
ter recebido nenhum voto, consiste em tentar substituir-se o presidente eleito.
Aristide enfrenta oposições multiformes, formadas por quatro forças
principais. A primeira constituída pelo Grupo dos 184 – foi financiada pelo
empresário haitiano-americano André Apaid, reunindo membros da suposta
sociedade civil cujos recursos financeiros provêm do exterior, por
agrupamentos políticos que vão da extrema direita aos comunistas, por
intelectuais e ativistas de diversas tendências.
A segunda agrega-se na Convergência Democrática, e reúne partidos
de oposição, inclusive dissidentes do Lavalas, como a Organização do Povo
em Luta (OPL) dirigido pelo intelectual e ex-comunista Gérard-Pierre
Charles.[44] Durante quase três décadas Charles viveu no exílio. Professor da
Unam do México, formou centenas de estudantes latino-americanos. Ele
vincula-se à esquerda na região e próximo ao Partido dos Trabalhadores (PT)
no Brasil. A sua OPL, além de fazer parte da Internacional Socialista, integra
o Foro de São Paulo, sendo a única representante do Haiti.
Os membros da híbrida oposição possuem um denominador comum:
foram sistematicamente derrotados, seja por Aristide seja por Préval, em
todos os embates presidenciais desde 1990.
A terceira força – talvez a mais importante por sua capacidade de
mobilização e sua coerência – reúne estudantes da universidade pública que
articulam um discurso corporativo que logo transborda para reivindicações de
natureza política.
A quarta compõe-se de ex-militares sob o comando de Guy Philippe.
Sua ação é pontual e golpista, assumindo um caráter violento. Seu duplo
sonho consiste em, por um lado, derrubar Aristide e, por outro, recriar as
Forças Armadas do Haiti (FAH) dissolvidas por Aristide em 1995. Guy
Philippe desempenhará papel fundamental para acelerar, no início de 2004, o
ocaso do governo Aristide.
Em janeiro de 2001 o primeiro-ministro haitiano Jacques Edouard
Alexis viaja a Washington. Mandatado por Préval e Aristide, Alexis buscava
revitalizar o diálogo, com o apoio da OEA, com vistas a alcançar um
consenso sobre assuntos pendentes identificados no documento mencionado
anteriormente.
Einaudi observou que a ampla representação política e participação
dos cidadãos são críticas para a estabilidade haitiana. Constatando o
consenso alcançado sobre esses pontos em sua Missão ao Haiti de outubro de
2000, ele expressou forte preocupação com respeito à necessidade de
melhorar a segurança para todos os haitianos. Demonstrou também sua
convicção de que o documento apresentado ao Fanmi Lavalas e à
Convergência Democrática, em 19 de outubro de 2000, poderia servir de base
para um diálogo renovado.
Subsequentemente, Einaudi visitou o Haiti de 6 a 10 de fevereiro de
2001, representando o Secretário-Geral na cerimônia de posse do novo
Presidente do Haiti, em 7 de fevereiro, e aproveitou a oportunidade para
manter abertas as linhas de comunicação com todos os interessados, com
vistas a determinar em que medida as condições haviam sido satisfeitas para
esforços de identificação continuada pela OEA, junto com o governo e outros
setores da comunidade política e da sociedade civil do Haiti, de alternativas e
recomendações para superar o atual impasse político nesse país. Usou
também a oportunidade para avaliar as possibilidades de colocar em prática
as medidas que fossem julgadas pertinentes para continuar a fortalecer a
democracia no Haiti, em conformidade com os oito compromissos expressos
em dezembro de 2000 pelo futuro presidente.
Einaudi visitou novamente o Haiti de 8 a 10 de março de 2001. Em
seu Relatório concluiu que o Haiti “tem tomado determinadas medidas, mas
ainda resta muito a fazer. As medidas tomadas até agora ainda não garantem
o fortalecimento da democracia no Haiti”.
O relatório também fez referência a indicações recebidas do
presidente Aristide de que seu ministro das Relações Exteriores, Joseph
Philippe Antonio, apresentaria a uma sessão do Conselho Permanente, a
realizar-se em 14 de março de 2001, uma proposta para o estabelecimento de
uma comissão especial da OEA para apoiar a democracia no Haiti. O
relatório sugeriu que, se fosse criada tal comissão, conforme solicitado pelo
governo do Haiti, seria conveniente focalizar, pelo menos no início, novas
medidas relacionadas com o diálogo político. O relatório assinalou que, caso
o processo de diálogo demonstrasse ser produtivo, a OEA poderia solicitar a
colaboração em áreas críticas das Nações Unidas, de instituições financeiras
internacionais e de membros individuais da Comunidade Internacional.
Em seu discurso de 14 de março, o ministro das Relações Exteriores
do Haiti procurou o apoio do Conselho Permanente para o estabelecimento de
uma comissão especial da OEA sobre o Haiti. Após considerar essa
solicitação, o Conselho resolveu:

1. Expressar a convicção de que a solução da crise


decorrente das eleições haitianas de 21 de maio de
2000 é essencial para o fortalecimento da democracia
e do respeito pelos direitos humanos no Haiti.
2. Solicitar ao Secretário-Geral que empreenda as
consultas necessárias com o Governo do Haiti e
outros setores da comunidade política e da sociedade
civil, levando em conta a declaração do Ministro das
Relações Exteriores e Cultos do Haiti, sobre a
possibilidade de um diálogo para resolver a crise
decorrente das eleições de 21 de maio de 2000 e para
fortalecer a democracia e o respeito pelos direitos
humanos no Haiti.

Einaudi visitou novamente o Haiti de 2 a 4 de abril, a fim de avaliar


as medidas específicas tomadas pelas autoridades e pela comunidade política
como um todo no cumprimento dos compromissos assumidos anteriormente e
das garantias dadas pelo ministro das Relações Exteriores na sessão de 14 de
março do Conselho Permanente. A visita e as consultas de acompanhamento
ocorreram simultaneamente aos preparativos da Terceira Cúpula das
Américas a ser realizada no Canadá de 18 a 22 de abril de 2001. Muitos
Estados-membros expressaram preocupação crescente a respeito dos
contínuos problemas do Haiti e possíveis repercussões para a democracia no
Hemisfério.
Nesta ocasião Gavíria e Einaudi reuniram-se com as autoridades
haitianas, as quais, por sua vez, mantiveram contatos com muitos líderes do
Hemisfério, especialmente com os da Caricom. No encerramento da Cúpula,
o primeiro ministro Chrétien, do Canadá, afirmou que os Chefes de Estado
dispensaram atenção especial ao caso do Haiti. Reconheceu os esforços do
presidente Aristide no sentido de solucionar os problemas que continuam a
hipotecar o desenvolvimento democrático, político, econômico e social do
país e os esforços de outros partidos políticos do Haiti e de outros setores da
vida política, especialmente da sociedade civil. O primeiro ministro Chrétien
declarou também:

Com o intuito de facilitar a realização destas metas,


solicitamos ao Senhor César Gavíria, Secretário-Geral
da OEA, que trabalhe com a Caricom, faça consultas,
visite Porto Príncipe em futuro próximo, comunique
suas conclusões à OEA antes da próxima Assembléia
Geral e assegure um acompanhamento adequado.

Em nove de maio de 2001, como resposta direta ao pedido do


primeiro ministro Jean Chrétien, o primeiro ministro Owen Arthur, de
Barbados, Presidente da Conferência de Chefes de Governo da Comunidade
do Caribe, e o Secretário-Geral concordaram em unir os esforços da OEA e
da Caricom sobre o Haiti numa Missão Conjunta a ser chefiada pelo
Secretário-Geral e pela ex-primeira ministra de Dominica, Eugenia Charles.
Neste sentido, uma missão exploratória conjunta, formada pelo
Secretário-adjunto da OEA e da Caricom e acompanhada pelo Centro Carter,
visitou o Haiti de 10 a 13 de maio. Realizaram-se extensas consultas com o
Presidente Aristide, com representantes do seu partido político, Fanmi
Lavalas, com representantes da Convergência Democrática, com
representantes da sociedade civil e com representantes locais do Grupo de
Amigos do Secretário-Geral das Nações Unidas. Outros partidos e grupos
políticos também se fizeram representar.
Ao final da missão exploratória, Einaudi constatou inexistir
condições para uma solução global. Tendo em vista o mandato da missão, a
gravidade da situação e a posição de vários Estados membros e do Presidente
da Conferência de Chefes de Governo da Caricom, o Secretário-Geral e
Eugenia Charles visitaram o Haiti de 29 a 31 de maio, e se encontraram com
o presidente Aristide, os principais partidos políticos e com uma ampla gama
de representantes da sociedade civil.
A missão preocupou-se com a falta de confiança mútua e a ausência
de um clima de negociação no qual a crise política que sufoca o país pudesse
ser resolvida.
O presidente Aristide entregou à missão uma nota na qual apresenta
as medidas que está tomando para pôr fim à crise e solicitando apoio
internacional.
Ao deixar o Haiti, o Secretário-Geral declarou que a Comunidade
Internacional deveria aumentar sua participação e persuadir todos os
interessados da necessidade de se chegar a um acordo com a maior brevidade
possível. Ele reconheceu que a pressão internacional sobre o governo para
corrigir as graves irregularidades tem sido útil, mas as perspectivas para o
povo haitiano serão demasiadamente sombrias, se o país for isolado da
comunidade financeira internacional.
Einaudi ressaltou a necessidade de incrementar os esforços de
mediação da OEA/Caricom e de incorporar ao processo, como amigos,
determinados países que têm influência decisiva sobre o Haiti. Esperava-se
que o cumprimento do anunciado pelo presidente Aristide abriria caminho
para um processo de negociação.
Na segunda metade de 2001, a crise se agudiza e as partes envolvidas
decidem lançar mão da violência. Esta desembocará nos trágicos
acontecimentos de dezembro de 2001, marcando a irreversibilidade do
imbróglio.
Na madrugada do dia 17, 30 indivíduos bem armados (outras fontes
mencionam 80 e outras 90) tentam tomar de assalto o Palácio Nacional. Após
algumas escaramuças confusas, o governo anuncia a retomada do Palácio. O
episódio teria provocado a morte de cinco pessoas (dois policiais, um
assaltante e dois simples cidadãos).
Apesar das dúvidas sobre o ocorrido e sobre o balanço das vítimas, o
presidente Aristide declara que houve tentativa de golpe de Estado. Ele faz
referência a fatos similares anteriores e lança um apelo à mobilização
popular. Para Aristide, diante deste “poison qui tue la démocratie” o povo
deve desempenhar um papel primordial:

“Hier le peuple à manifesté sans hésiter pour


défendre la démocratie. Le rôle du peuple est d`être
debout, de monter des barricades de la paix là où
c`est nécessaire, sans violence, dans le respect des
droits de chacun, dans le dialogue. J`ai pu voir le
nombre de barricades de la Paix que vous avez
érigées pour empêcher que les terroristes ne
s`enfuient et ne continuent à tuer des gens. Nous
sommes fiers de constater la belle solidarité qui existe
entre le peuple et la Police, et nous vous
encourageons à continuer à fournir à la Police toute
information concernant tous les criminels qui tentent
de s`enfuir pour ne pas être pris et avoir à parler.
C`est un coup d`Etat que nous savons contrôler
rapidement, et c`est pour éviter qu`il n`y en ait
d`autres que nous demandons à toute la population de
se mobiliser pacifiquement pour défendre la
démocratie pacifiquement.

As menções à paz e à não violência se constituem em simples


exercício de estilo. Poucos minutos após o pronunciamento de Aristide,
mancomunam-se membros da Família Lavalas, simpatizantes, chimères,
funcionários do Estado e integrantes da Polícia. Juntos lançam uma razzia de
rara violência contra opositores, estudantes e jornalistas. A esporádica
violência que predominava até então adquire contornos de cega e
generalizada vingança. Tanto na capital quanto nas cidades do interior.
São saqueadas e incendiadas sedes dos partidos de oposição e
residências dos principais líderes e por vezes de simples simpatizantes.
Locais da imprensa são atacados. Jornalistas agredidos.
Uma turba de chimères atacou à sede do Centro de Investigações e de
Formação Econômica e Social para o Desenvolvimento (CRESFED) fundado
por Gérard Pierre-Charles e por sua esposa, a historiadora Suzy Castor. Esta,
assim reagiu à agressão:

Denuncio perante a opinião nacional e internacional,


a todas as organizações de direitos humanos e aos
amantes da paz e da democracia, as ações bárbaras
perpetradas pelo Governo do Haiti, sob a
responsabilidade do Senhor Jean-Bertrand Aristide,
contra a instituição que dirijo. Ela foi assaltada,
saqueada e incendiada por agentes do poder Lavalas.
Torna-se evidente o sentido desta ação quando nas
paredes manchadas deste centro de cultura, os
bagunceiros assinaram seu nome Aristid ou lanmo
(Aristide ou a morte). [45]

Escudando-se em seu apelo a ações pacíficas, Aristide tenta aparentar


inocência e desconhecimento, todavia ninguém é ingênuo. Ele nada fez para
impedi-las e sequer as criticou. Seu cúmplice silêncio será sua condenação. A
oposição não lhe dará trégua e não descansará enquanto ele for o ocupante
considerado indigno do Palácio Nacional.
Especialmente na política internacional, silêncios e ausências
transmitem mensagens. Ambos são falantes e atuantes. Em 1º de janeiro de
2004 Aristide pretende comemorar com grande pompa o bicentenário da
gloriosa independência haitiana. Pelas características do feito, Porto Príncipe
deveria receber, apesar da data pouco apropriada, um grande número de
Chefes de Estado e de Governo. Ora, a festa foi um fiasco.
Embora presente, a dimensão simbólica da data celebrando a única
vitória de escravos na História da humanidade, nenhum Chefe de Estado
latino-americano, sequer Hugo Chávez, Fidel Castro ou Lula, se deslocou ao
Haiti. Aristide havia se transformado em presidente infrequentável. Somente
o primeiro ministro das Bahamas, Perry Christie, e o presidente sul-africano,
Thabo Mbeki, estiveram presentes. Este sofrendo, inclusive, numerosas e
severas críticas.
O discurso oficial de Aristide saúda o fato de que foi no Haiti que,
“émergea de la nuit de l`esclavage et où, le même jour, se leva le soleil de la
liberté. »
Ele aproveita para prometer ao povo um futuro que será feito de miel.
Amargo mel, pois parte de seu povo respondeu com violências em Porto
Príncipe, impossibilitou festejos em Gonaïves – cidade berço da
independência – e manifestações anti-Aristide em Jacmel e Gros-Morne.
Veículos incendiados, Delegacias de Polícia saqueadas. E, sobretudo, grande
indiferença da população. A frustrada festa dos 200 anos de independência
mais parecia o final de um infeliz ciclo histórico. E, como reza um provérbio
haitiano, “quand la danse est finie, le tambour est toujours lourd. »
Luigi Einaudi, profundo conhecedor da política haitiana e o mais
ativo mediador que busca solução para a crise, resume perfeitamente a
situação que prevalece em meados de fevereiro de 2004. Segundo ele,

tudo faz pensar que a oposição está esperando a


oportunidade para retirar Aristide do poder: vencendo
pela força militar ou fazendo com que a situação
torne o país ingovernável e Aristide decida partir...
Restam duas opções. A primeira é que as coisas
continuem indo mais ou menos mal, incrementando
paulatinamente as mortes, os conflitos e a anarquia. A
anarquia é a palavra-chave aqui e uma possibilidade
muito séria, pois o país esta indo nesta direção. A
outra é que a oposição se dê conta do desastre que
está preparando e que o Governo entenda que deve
buscar uma solução de compromisso como a proposta
pela Caricom. Aristide aceitou um conjunto de coisas
importantes como a não reeleição, a nomeação de um
primeiro ministro independente, etc. O problema é
que estas concessões podem estar chegando um
pouco tarde já que a oposição acredita que pode
desfazer-se de Aristide e por esta razão nega-se a
ajudar e a participar, conduzindo o país à deriva.
Minha esperança é que estando à beira do abismo, os
vários atores políticos, com um pouco de olfato e de
responsabilidade nacional, possam dar-se conta e
retroceder, controlando as gangues violentas que
dominam atualmente o cenário.[46]

Para Einaudi, embora muitos opositores “esperem que os Estados


Unidos repitam em sentido contrário a ação de 1994, desta vez expulsando
Aristide, isso não ocorrerá. São somente ilusões”.
Isto porque, em meados de fevereiro, nenhum Estado-membro da
OEA estava disposto a apoiar uma intervenção armada no Haiti.
Não deve haver outra saída que não seja a política. No entanto,
oposição e Aristide ambos estão persuadidas que vencerão a queda de braço.
“Esta forma de raciocinar conduz inevitavelmente ao abismo”, conclui
Einaudi com pesar.
Embora reconheça a gravidade da crise humanitária e a decepção
provocada pela Administração de Aristide, em declarações feitas ao Comitê
de Relações Exteriores do Senado dos Estados Unidos, Colin Powell descarta
enviar uma expedição militar porque Aristide “Was the democratically
elected leader, and that the policy of the administration was not to seek his
overthrow.” [47]
Os Estados Unidos vão além ao declarar que um golpe de Estado é
unacceptable: “We will accept no outcome that in any way illegally attempts
to remove the elected president of Haiti.” [48]
A sincera esperança de Einaudi e as reticências ambíguas de Colin
Powell logo se desvanecem. Malgrado a bizarra composição ideológica do
leque oposicionista, ela professa uma única fé e busca um exclusivo objetivo:
derrubar Aristide. Precedendo a qualquer outra consideração, o denominador
comum da oposição é constituído por seu caráter golpista.
Apesar de aparentemente insistir no acordo político proposto pela
Caricom, os Estados Unidos e a OEA não conseguem convencer a oposição a
aceitá-lo. Ocorre que a Convergência Democrática e o Grupo dos 184 contam
com a pressão exercida pela coluna de ex-militares comandada por Guy
Philippe e que se movimenta em direção à capital.
Ao final do segundo semestre de 2003 o quarto ator do drama
contribui decisivamente para seu desfecho. Abandonando a tática da
quartelada e tirando proveito da confusão reinante, um pequeno grupo de
militares sob o comando de Guy Philippe, das antigas Forças Armadas do
Haiti (FAH) – extintas por Aristide em 1995 – se reúne ao Norte da
República Dominicana, junto à fronteira do Haiti. Sob proteção do governo
dominicano e armado pelos Estados Unidos, ingressam no país em busca de
uma revanche.
Ao longo da campanha militar que mais se assemelharia a um passeio
não fora as atrocidades cometidas – assassinatos, sequestros, eliminação de
simpatizantes da Fanmi Lavalas – a centena de ex-militares avança sem
resistência em direção a Porto Príncipe. Uma Polícia desmotivada,
desorganizada, sem equipamentos e liderança, parece ser o derradeiro e logo
inútil escudo institucional de Aristide.
O desmonte do poder de Aristide parece cada vez mais evidente.
Somente falta o golpe final. Uma única pergunta ainda aguarda resposta. Será
ele desferido por Philippe ou virá do exterior? A França encarregar-se-á da
sinistra tarefa.
O Ocidente marcado pelo isolamento do poder anglo-saxão em razão
da decisão de invadir o Iraque em 2003, embora não dispusesse da devida
autorização do Conselho de Segurança das Nações Unidas, a crise haitiana
será utilizada como catalisador para reconstruir a unidade do mundo ocidental
muito além do que fora previsto por seus promotores.
A união, que se estende aos dias atuais, nasce da decisão francesa de
descartar Aristide. Promovendo a oposição, Paris pretende punir Aristide.
Trata-se da resposta pela sua irresponsável ousadia de lançar uma campanha,
quando dos festejos do bicentenário da independência, a exigir à França o
ressarcimento de US$ 21 bilhões, pagos religiosamente pelo Haiti, até 1938,
para ver reconhecida sua independência em 1825.[49]
Interpretada por muitos como uma brincadeira de mau gosto
decorrente da bizarra personalidade do presidente haitiano, a cobrança
provoca um riso amarelo no governo francês. Este não pretende divertir-se
com o episódio. Em realidade, Paris considera um insulto e demonstra
dificuldades para esconder sua indignação. Com esta são varridos os
derradeiros pruridos que freavam a decisão de fazer tombar Aristide. Agora o
caminho encontra-se livre. Basta definir os parceiros e a tática para levar a
cabo o golpe.
Régis Debray será o principal instrumento do plano francês. Em
Relatório solicitado pelo então ministro das Relações Exteriores francês,
Dominique de Villepin – no auge de sua efêmera glória após sua recusa em
apoiar os Estados Unidos na guerra contra o Iraque – o ex-guevarista Debray
concede à intervenção das três potências o verniz da luta pelos direitos
humanos, do suposto respeito ao Estado de Direito e, sobretudo, consegue o
inédito feito de implicar na empreitada as jovens democracias latino-
americanas.
A partir de meados de fevereiro a oposição revela estar disposta a
discutir os termos das propostas de saída de crise. Desde que, segundo um de
seus principais líderes, Gérard-Pierre Charles,

Quelle que soit la formule on ne peut pas continuer


avec Aristide. Aujourd`hui ou dans six mois, le temps
d`Aristide est compté. Le grand hic c`est qu`il ne veut
pas démissionner, il veut le palais national pour lui
seul, c`est sa citadelle d`impunité. Mais à terme on
veut se débarrasser de lui. Aristide est un obstacle a
l`impulsion démocratique. C`est un élément
rétrograde, une vision rétrograde de notre pays. [50]

Desconsiderando as terríveis consequências que o golpe imporá ao


país, os oposicionistas jogam o futuro para o abismo. Não deveria escapar a
ninguém que, em caso de vacância do poder supremo, haverá uma ocupação
militar estrangeira. Apesar da esperança da Caricom, a situação anárquica
descrita por Einaudi não deixa pairar qualquer dúvida sobre os próximos
passos.
Pierre-Charles, no entanto, fornecendo prova de surpreendente
ingenuidade, sublinha que o apoio estrangeiro não deveria ser “en termes de
tutelle encore moins d`intervention militaire”.[51]
Embora posteriormente Pierre-Charles denuncie que “cette
intervention, a court-circuité le processus sans précédent vers le consensus et
la détermination historique, qu’avait entrepris la Nation haïtienne pour
promouvoir une vraie libération en union avec les divers secteurs
progressites », [52] em relidade a intervenção militar estrangeira não é temida
pela oposição. Ao contrário, ela é desejada, como demonstram os
documentos do Foro de São Paulo que analisaremos a seguir.
Em suas Memórias, Bill Clinton ressalta e critica a estratégia do jogo
de soma zero da oposição:
Aristide certainly made mistakes and was often his
own worst enemy, but the political opposition never
really cooperated with him. Also, after the
Republicans took over Congress in 1995, they were
unwilling to give the financial assistance that might
have made a difference. [53]

Muitos dos radicais opositores que à época impuseram o exílio de


Aristide como condição sine qua non à possibilidade de solução da crise e
que resultou na intervenção militar estrangeira, atualmente travestem-se em
nacionalistas criticando a Minustah – apelidada de Turistah – e a solicitar sua
partida.
Ao demonizar Aristide a imprensa ocidental desempenhou
fundamental papel na campanha que pavimentou a intervenção estrangeira.
Inexistem jornais e agências de notícias a demonstrar equilíbrio e isenção.
Inclusive não constitui surpresa, como explicaremos logo a seguir, encontrar
jornais como L`Humanité, porta-voz do Partido Comunista Francês (PCF), a
participar com zelo da empreitada. Em violento editorial, Aristide é descrito
como um “maudit tyran, cruel, despote, grotesque et sinistre.”
Também o jornal de centro-esquerda Le Monde, após indagar em
Editorial

Quand mettre en œuvre le droit d`ingérence? Quand


faut-il faire fi de la souveraineté d`un Etat, serait-il en
faillite, pour porter secours a la population? A quel
niveau de souffrances de cette dernière la
communauté internationale doit-elle décider d`agir?
Comment ajuster ce qui devrait être la ‘loi’ de
l`humanitaire a un droit international qui, aux termes
de la Charte de l`ONU, repose sur le principe quasi
absolu de la souveraineté des Etats?

Ao reconhecer que não existe fácil resposta a nenhuma das questões,


salvo no caso do Haiti, pois Le Monde conclui que “l`ingérence devrait
s`imposer.”
Seu apoio ao golpe de força decorre em razão de um poder

totalement déconsidéré du Président Jean-Bertrand


Aristide. Il a succombé a un tropisme maléfique qui,
génération après génération, parait caractériser le
pouvoir en Haïti: dérive dictatoriale cruelle doublée
d`une tendance prononcée a la corruption, le tout sur
fond d`incompétence absolue.

Não satisfeito, o Editorialista defende a absurda tese da extrema


direita evangélica dos Estados Unidos e introduz no debate o recorrente
preconceito contra o vodu: “Tout est en place pour un drame majeur dans
cette petite République des Caraïbes qui, comme victime d`un mauvais sort
vaudou, paraît condamnée au malheur depuis sa naissance.” [54]
O altermundialista Le Monde Diplomatique, apesar de reconhecido
por suas posições de esquerda, segue o caminho indicado pelo seu irmão mais
velho. Com menos classe e mais vigor. Aristide se transforma em “padreco,
ex-padre dos pobres, interessado somente pelo poder e pelo dinheiro.
Finalmente único responsável por uma história degradante”.[55]
Legitimida por rara unanimidade, o governo francês decide, em 24 de
fevereiro, acelerar o processo visando à queda de Aristide. Em
pronunciamento público o Presidente Jacques Chirac declara “qu`Haïti était
gouvernée depuis bien longtemps de manière désastreuse.”
No dia seguinte, Dominique de Villepin anuncia, através de
Comunicados oficiais, que a França tomou a decisão de intervir no Haiti.

Une course de vitesse est engagée entre les partisans


de la violence et ceux qui espèrent encore une
solution pacifique. C`est bien aujourd`hui le risque du
chaos qui menace Haïti. Le devoir de la communauté
internationale est d`assumer toute sa responsabilité
pour préserver ce pays du désordre et de la violence.

Após informar que negociações estão em curso com Colin Powell e


“d`autres collègues étrangers”, Villepin reconhece a estreiteza da via. Ele
deve, por um lado, manifestar seu respeito aos princípios democrático e
constitucional e, por outro, colocar em prática uma estratégia feita de
violências que os contradiz frontalmente. Como em um passe de mágica,
Villepin decreta que Aristide não mais desfruta “de la légalité
constitutionnelle”. Dessa forma, o fato de destituí-lo, ao invés de confrontar
os princípios democráticos vigentes, os reforça.
Inspirada e convencida pela posição francesa, a Comunidade
Internacional assume o exato contrapé do que havia manifestado
anteriormente. A partir deste momento, o governo do Haiti se transforma em
usurpador, desprovido de legalidade e toda a culpa da crise recai sobre
Aristide o qual, segundo Villepin, “porte une lourde responsabilité dans la
situation actuelle. Il lui appartient d`en tirer les conséquences dans le respect
du droit [sic].”
Villepin persiste, sem demonstrar receio pela intrínseca contradição
ao insistir que a decisão francesa enquadra-se no restrito marco “du respect
des principes démocratiques et constitutionnels”.
Trabalhar para a queda de Aristide não somente se constitui em ação
legal, como também indispensável para que o propalado Estado de Direito
seja restaurado no Haiti. Ao confundir direito e poder, Villepin oferece
deprimente espetáculo. Difícil encontrar melhor exemplo a mesclar
malabarismo semântico e hipocrisia diplomática.
Tomando o exato contra-pé da posição golpista preconizada pela
França, o Grupo do Rio publica um Comunicado emitido em Brasília e
datado do mesmo 25 de fevereiro, no qual “respalda as atividades da
Organização dos Estados Americanos e da Comunidade do Caribe (Caricom)
com vistas à solução pacífica da situação no Haiti; e o oferecimento, pela
Organização das Nações Unidas, de assistência humanitária àquele país”.
Por outro lado, “instam as partes envolvidas a endossar o Plano de
Ação Prévio proposto pela Caricom; condenam energicamente os atos de
violência que vêm sendo praticados no Haiti; e manifestam seu apoio ao
Presidente constitucionalmente eleito daquele país, Jean-Bertrand Aristide”.
[56]
Nada poderia ser mais danoso à estratégia golpista francesa do que
sua rejeição unânime por parte da América Latina como a que se deprendia
da leitura do Comunicado. [57] Como este havia sido emitido em Brasília,
Dominique de Villepin se apressa em telefonar no mesmo dia a Celso
Amorim buscando dissuadi-lo a abandonar sua posição legalista.[58] Para
tanto, acena com a possibilidade de a América Latina participar maciçamente
com o envio de tropas sob comando brasileiro em uma próxima Operação de
Paz das Nações Unidas. Segundo o próprio chanceler brasileiro, ele responde
com evasivas e promete realizar consultas.
No dia seguinte à declaração de Villepin e respondendo a uma
demanda da Caricom, reúne-se o Conselho de Segurança das Nações Unidas
para debater a crise haitiana. Pronunciando-se em nome da organização
regional, o ministro das Relações Exteriores da Jamaica, Keith Desmond
Knight, surpreende ao considerar que

The Council to call urgent attention to the rapidly


deteriorating situation in Haiti. The situation had now
reached crisis proportions, given the continuing
breakdown in law order, the rising insurgency and
conditions of sheer anarchy and chaos, as well as a
worsening humanitarian crisis, which, in turn, had
caused displacement of the population, resulting in
increasing numbers of refugees pouring out of the
country…the prevailing situation within the country
could no longer be viewed as just an internal matter.
The current situation now posed a serious threat to
regional peace and security, given the outflow of
refugees which threatened to overwhelm the
resources of States in the region. [59]

A tese defendida pelos Estados Unidos diante das crises políticas


haitianas segundo a qual elas deixam de ser um assunto estritamente interno e
se transformam em ameaça à paz e à segurança internacionais a partir do
momento em que provocam ou ameaçam provocar um fluxo de boat people
é, pela primeira vez, sustentada pela comunidade do Caribe.
A suposta defesa da democracia por parte de Washington em suas
intervenções no Haiti deve ser recebida com cautela. Coaduna-se
perfeitamente com a atual crise, a avaliação do Secretário Geral da OEA, o
brasileiro João Clemente Baena Soares, à época do conflito Aristide-Cédras
em 1994 quando sublinha que:

O que resolveu a situação do Haiti foi a migração do


chamado boat people. O êxodo dos haitianos para o
litoral da Flórida aumentou tremendamente, os
americanos foram sensíveis a isso, e veio a
intervenção militar. Digo e repito, os americanos não
defenderam a democracia, defenderam o litoral da
Flórida, por isso foram ao Haiti. Como resultado,
voltou Aristide. [60]

A histórica reticência da Caricom às intervenções nos assuntos


internos dos Estados da região surge matizada na declaração de Knight.
Ocorre que a Jamaica apostava na hipótese de que o apelo à intervenção do
CSNU aconteceria em resposta à solicitação do próprio Aristide, no entanto o
órgão executivo das Nações Unidas sequer responde. Seu silêncio é
facilmente explicável.
O plano franco-americano estava em curso desde a véspera e previa,
tal como solicitava a Caricom, o desembarque de tropas no Haiti. Não, porém
em resposta a uma demanda de Aristide. Ao contrário. Ocorreria a ação pela
vacância do poder, posto que Aristide teria deixado o país.
Ambas as hipóteses fazem retornar com vigor, uma vez mais, a
histórica necessidade do encerramento haitiano sobre si mesmo fazendo de
seus habitantes os prisioneiros de sua própria ilha.
A posição francesa logo é assumida por muitos países, a começar
pelos Estados Unidos, que resolvem atuar rápida e abertamente. O momento
da queda de Aristide deve ser contado em horas, no mais tardar em poucos
dias.
A consistência do argumento utilizado por Washington junto a
Aristide como derradeira forma de pressão logo produz resultados. Assim, à
indagação sobre como o presidente pretendia defender-se da ameaça dos ex-
militares de Guy Philippe não encontra nenhuma resposta. Aristide
imaginando que estivesse na mesma posição de 1994 e que as reiteradas
afirmações legalistas de Colin Powell refletiam o posicionamento dos
Estados Unidos, lhes solicita proteção. Sem resultados.
O serviço de proteção pessoal de Aristide não foi de nenhuma
utilidade. Ocorre que a Steele Foundation – empresa baseada em São
Francisco e integrada por ex-militares dos Estados Unidos – havia sido
contratada para garantir sua segurança. Quando do acirramento da crise,
Washington não somente impede que ela seja reforçada como também
adverte que, em caso de necessidade, não os socorrerá.
Ao entardecer do dia 28 de fevereiro de 2004 Aristide encontra-se
isolado, solitário, deixado à própria sorte. Não tendo sido o melhor advogado
de sua causa, ele está à espera dos mesmos diplomatas e militares que, dez
anos antes, o trouxeram de volta à pátria e o recolocaram no Palácio
Nacional. Agora obrigam-no a abandonar a ambos.
Apesar de sua relutância inicial, finalmente o jogo de soma zero
jogado pela oposição haitiana rendeu frutos inesperados aos Estados Unidos.
Se comparadas a operações similares empreendidas na região (Guatemala,
1954; República Dominicana, 1965; Chile, 1973; Granada, 1983; Panamá,
1989) ou fora dela, a haitiana, por suas características e resultados, se
constitui na de maior êxito.
Os elementos de satisfação são numerosos: ausentes uma ocupação
militar unilateral e derramamento de sangue, reconstituição da aliança
ocidental fragilizada pela Guerra do Iraque, intervenção legitimada pela
exigência de importantes setores da sociedade haitiana, flagrante urgência
humanitária e, finalmente, a intervenção responde à solicitação do próprio
Aristide que tem a vida salva.
Excetuando as críticas de Aristide, uma vez no exílio, a intervenção
recolhe unânime aprovação. O sucesso da empreitada alcança tal magnitude
que deixa margem de dúvidas quanto a sua verdadeira natureza. Trata-se de
uma clássica intervenção nos moldes imperiais ou, ao contrário, trata-se de
uma operação de caráter humanitário visando a trazer auxílio a um povo
refém do caos e a resguardar a vida de um presidente democraticamente
eleito?
Salvo por seu epílogo, o encadeamento das circunstâncias fornece
argumentos que deslindam a questão.
A solução da contenda segue o clássico script das crises e embates
políticos com os quais os haitianos nos acostumaram: radicalidade dos
contendores, fracasso das mediações, violência esporádica, crise humanitária,
ameaça de êxodo em direção à Flórida, intervenção estrangeira e exílio do
derrotado.
Secundado pelo estrangeiro, aplica-se, uma vez mais, o modelo
haitiano de resolução de suas crises políticas baseado no exclusivo exercício
do poder. A arte do canibalismo político alcança perfeição deixando abertas
feridas que não cicatrizarão, prelúdio de embates e crises vindouras.[61]
A intervenção do Ocidente na crise constitucional haitiana de 2004 se
sustenta no

mélange de paternalisme, de messianisme et de


naïveté qui l’incite à donner sa faveur aux idées
d’intervention dans ce qu’elles ont de généreux
comme de cynique, à croire que tout ce qui est
occidental est nécessairement bon pour le monde...
Comme emblème majeur, les idées de liberté, de
démocratie et d’État de droit.[62]

O Ocidente, orientado pelos Estados Unidos, pratica um


multilateralismo seletivo permitindo aos Estados membros permanentes do
CSNU impor as coalitions of the willing, permitindo assim “aux États du club
de diriger ou de monopoliser une intervention militaire mandatée par l’ONU
ou, à défaut, autoconstituée et tirant alors sa légitimité de l’onction
démocratique. »[63]
A imposição da democracia ocidental responde a duas funções
essenciais. Por um lado, legitimar o ativismo ocidental no cenário
internacional e por outro, justificar a extensão do modelo democrático ao
conjunto do planeta. Resultante de uma mistura do wilsonismo do início do
século passado e do reaganismo,

la nouvelle idéologie faisait de la démocratie une


sorte de religion, un système de valeurs plus qu’un
droit, une pensée plus qu’une pratique et qu’il
convenait d’imposer, par tous les moyens, y compris
par la force, à ceux qui n’en avaient pas été les élus ni
les natifs. L’idée de « regime change » allait devenir
la matrice, s’imposant, du même coup, comme
principe premier de la nouvelle politique étrangère.
[64]

A imposição ideológica do suposto direito de ajudar alcança tamanha


magnitude que faz surgir, no caso haitiano, uma inesperada e improvável
novidade. Ela conduzirá ao Mar do Caribe o Grupo ABC (Argentina, Brasil e
Chile), bem como outros Estados sul-americanos. Beneficiando-se de amplo
apoio ideológico, de recorrente indiferença da opinião pública ante as
questões internacionais e coincidindo com a estratégia de inserir de forma
inovadora a região no sistema internacional, importantes e numerosos
Estados sul-americanos enviarão seus militares ao Haiti.
A presença dos soldados sul-americanos na terra de Dessalines é a
maneira – surpreendente e original – encontrada pela América Latina para
saudar o bicentenário da gloriosa independência do Haiti.
CAPÍTULO IV – ESPERANÇA E DESILUSÃO: A AMÉRICA
LATINA DIANTE DA CRISE

Le pire pêché envers nos semblables, ce n`est pas de les haïr, mais de les traiter avec
indifférence; c`est là l`essence de l`inhumanité.
George Bernard Shaw, Le disciple du diable

A importante participação sul-americana, principalmente argentina,


brasileira, chilena e uruguaia, na Missão das Nações Unidas para a
Estabilização do Haiti, é plena de significados. Decidida de forma abrupta ao
final do primeiro semestre de 2004, gerou críticas em alguns países em razão
da escassa discussão parlamentar e pela reduzida clareza de seus objetivos.
Apesar de se inserir em um contexto de colaboração permanente com
o sistema das Nações Unidas de prevenção e solução de litígios (figura 5), a
participação na operação haitiana se reveste de particular característica.

Figura 5 - Participação da América Latina nas operações de


manutenção da paz das Nações Unidas

Pays Militaires Policiers Observateurs Total


Brésil 1.944 11 22 1.977
Uruguay 2.118 13 23 2.154
Argentine 834 38 7 879
Chili 478 12 5 495
Pérou 378 27 405
Guatemala 293 9 302
Bolivie 208 21 229
Paraguay 181 28 209
El Salvador 86 10 9 105
Equateur 69 9 78
Colombie 25 25
Jamaïque 12 12
Honduras 12 12
Total 6.589 121 172 6.882

Fonte: Nações Unidas, Departamento de Operações de Paz (DPKO). Dados


referentes a 30 de abril de 2013

Com efeito, apesar de obedecer às regras das Nações Unidas, a


Minustah apresenta um forte viés regional. Por um lado, seu Comando
Militar esteve sempre a cargo de militares brasileiros. Por outro, 70% de seu
contingente militar provém das Forças Armadas latino-americanas. Enfim,
dos 6.589 militares latino-americanos atualmente a serviço das Operações de
Paz das Nações Unidas no mundo, nada menos de 4.621 atuam no Haiti.
Assim, de cada 10 militares da região disponibilizados às Nações Unidas, 7
foram enviados ao Haiti.
Oficialmente a decisão de participar maciçamente na Minustah
sustentou-se, por um lado, na necessidade de reforçar o multilateralismo
desrespeitado quando da Guerra do Iraque e, por outro, na vontade de
participar mais ativamente nos processos de prevenção e solução de conflitos.
Caso a América Latina não fosse capaz de oferecer alternativa a um conflito
doméstico de baixa intensidade, que afeta dramaticamente a população do
mais empobrecido Estado-membro da comunidade americana, como poderia
ela aspirar a influir nas questões da paz e segurança internacionais?
A participação na Minustah se constitui no primeiro teste real da
afirmação de uma nova concepção de segurança coletiva no âmbito da União
de Nações Sul-Americanas (Unasul). Entre seus objetivos os seguintes estão
contemplados na operação haitiana:
- comungar doutrina e estratégia;
- realizar exercícios militares conjuntos;
- testar, adequar e modernizar equipamentos bélicos;
- unificar posições diante dos desafios de segurança internacionais;
- provar a capacidade de mobilizar tropas;
- implementar ações humanitárias;
- conviver com culturas distintas.
Alcançar tais objetivos constitui premissa para assentar as bases de
um sistema coletivo de defesa no subcontinente americano. Este poderia
desembocar em uma futura Organização do Tratado do Atlântico Sul
(OTAS), autônoma e independente.
Adeptas intransigentes da mais rígida interpretação dos princípios de
soberania e de não intervenção, ambos convertidos em dogmas ao longo da
História, as jovens democracias do Cone Sul as reavaliam para aplicá-las ao
caso haitiano. O brasileiro Celso Amorim formula a ideia da não indiferença,
interpretando e adaptando o princípio da responsabilidade de proteger. Ao
fazê-lo leva em consideração o fato de que, apesar do terrível século 20 ter
abrigado duas guerras de dimensões mundiais, foram os conflitos internos os
mais mortíferos, pois provocaram 150 milhões de mortes.
Com uma visão solidária e compartilhada, a participação sul-
americana defende a ideia que o drama haitiano possui raízes profundas,
muitas além de seus aspectos securitários. A natureza multifacetada da crise
deve desembocar em estratégias que levem em consideração as causas e
origens da instabilidade e não unicamente seus resultados e consequências.
Com sua participação, a América Latina pretende fazer com que as Nações
Unidas tornem mais complexas as Operações de Manutenção da Paz.
Veremos como esta esperança se transformará, a partir de 2010, em
desilusão.
Visto da América Latina, um dos maiores desafios que marcam as
atuais relações internacionais prende-se à ineficácia do sistema de prevenção
e solução de conflitos – que permanece sendo uma construção político-
diplomática, à margem do Direito – além de estar sob a guarda e controle dos
vencedores da Segunda Guerra Mundial. Esta exigência é tanto mais
importante para os Estados do Sul do planeta na medida em que os litígios
bélicos que marcaram o mundo no pós-1945 penalizaram essencialmente os
países em desenvolvimento, cenário das maiores atrocidades cometidas por
razões internas e internacionais.
Os malogrados esforços de mediação para solucionar esses conflitos
se explicam pela própria estrutura do poder internacional: os países
desenvolvidos que logicamente dispõem de meios de dissuasão e de
intervenção, o fazem seguindo as percepções de seus interesses nacionais.
Daí decorrem soluções casuísticas aplicadas de maneira ad hoc e que
percorrem os caminhos de maneira errática resultando na aplicação de dois
pesos e duas medidas.
A situação descrita sucintamente indica a importância da construção
de uma teoria de intervenção solidária pelos países do Sul. Caso contrário
eles continuarão à mercê do modelo aplicado pelos países desenvolvidos. Por
essa razão a crise haitiana possui um significado que vai bem além de suas
fronteiras, podendo servir de modelo a futuras mediações.
Para a América Latina o princípio da autodeterminação dos povos
constitui uma releitura e uma atualização do princípio da soberania sob o
ponto de vista de quem ainda não é soberano, isto é, do colonizado. Os
povos, então, erguem a bandeira da autodeterminação e depois de
descolonizados, prosseguem na busca de sua real efetivação. Tal política cria
um novo conceito, o de não intervenção, que vem a ser o respeito ao
princípio da igualdade formal, ou seja, uma igualdade de jure. No plano
multilateral a defesa desse princípio é feita especialmente nos debates e
recomendações da Assembleia Geral das Nações Unidas.
O Direito exerceu um papel importante e o diplomata teve funções
fundamentais, comparadas ao militar, na História da América Latina. Há uma
experiência jurídica acumulada que outros continentes não dispõem. Além
deste elemento enraizado na cultura política regional, ocorre que nos recentes
processos de transição da ditadura à democracia nos Estados latino-
americanos foram testados vários modelos de saída de crise. Por conseguinte,
a região possui um know-how sobre a transição de sistemas autoritários para a
democracia que pode servir de inspiração à crise haitiana.
O isolamento e excepcionalidade haitianos constituem elementos
parciais a explicar a recentragem da América Latina. Os demais decorrem de
dois fatores. Por um lado, a vontade latino-americana de se inserir de forma
inovadora nas relações internacionais (a) e, por outro, a aversão suscitada na
região, a partir de 2000, pelo Movimento Lavalas, de Jean-Bertrand Aristide
(b).

a) Reinserção da América Latina nas relações internacionais

O marcante contraste entre o mundo da bipolaridade da Guerra Fria e


o da multipolaridade do pós-1989, conduz a América Latina em particular e
os países do Sul em geral, a se preocuparem com os problemas em torno da
segurança internacional. Inevitavelmente eles devem estar presentes nos
debates da alta política internacional e não somente nas questões envolvendo
o desenvolvimento econômico e social ou o meio ambiente. Assim se
explicam os esforços sulistas com vistas à reforma do CSNU.
Para contribuir ao encaminhamento de soluções à recorrente, intrincada
e complexa crise haitiana a América Latina, pela primeira vez em sua
história, participa de maneira coletiva de uma operação de estabilização
política no curto prazo e prepara-se para auxiliar técnica e economicamente o
Haiti em médio e longo prazo.
Surge o que pode denominar-se de diplomacia solidária. Ela se define
como sendo a concepção e a aplicação de uma ação coletiva internacional,
sob os auspícios do Conselho de Segurança das Nações Unidas, feita por
terceiros Estados intervenientes num conflito interno ou internacional,
desprovidos de motivações decorrentes de seu interesse nacional e movidos
unicamente por um dever de consciência.
O desinteresse material e/ou estratégico constitui sua marca registrada.
Para que tal ausência de interesse seja inconteste é necessário igualmente que
o Estado-sujeito não tenha tido no passado qualquer relação especial com o
Estado-objeto de intervenção.
Quando um Estado – ente desprovido de sentimentos – toma a decisão
pela intervenção em outro Estado? Há dois conjuntos de fatores principais:
por um lado a suposta existência de interesses nacionais a defender, sejam
eles financeiros, militares, estratégicos, políticos, diplomáticos ou de
prestígio. Por outro, quando ocorrem catástrofes naturais ou humanitárias e
guerras civis ou internacionais. Então, surge uma ativa e influente opinião
pública a exigir uma resposta do Estado-sujeito com vistas a colocar um
termo ao sofrimento da população civil indefesa.
O que ocorreu no caso da América Latina? Nenhum desses dois
grupos de interesse pressionou o Estado-sujeito para agir. Ele o fez por motu
proprio, ausente uma pressão da opinião pública e, indefinidos, para dizer o
mínimo, os interesses a serem defendidos. Não houve, portanto, nem ação
moral (da opinião pública) nem material (dos interesses) que impelissem o
Estado-sujeito a intervir. Neste caso, ele o fez contrariando os fundamentos
da teoria realista das relações internacionais.
A América Latina, por meio dos seus maiores expoentes, tomou
decisões inéditas, arriscadas, temerárias e de improvável sucesso, que
poderiam ser lidas como um ato moral kantiano.
O chanceler brasileiro, embaixador Celso Amorim, fornece original
contribuição à teoria da diplomacia solidária ao declarar que o Brasil está
“profundamente comprometido no Haiti, política e emocionalmente, e isso no
longo prazo”. Ao fazê-lo indica que os parâmetros sobre os quais o Brasil
tomou a decisão de intervir devem ser compreendidos à luz de critérios
outros que os decorrentes da fria razão (ou interesse) de Estado.
Não fica excluída, porém, a hipótese de se fundamentar a diplomacia
solidária no Direito kantiano. Kant defende a ideia de um direito
cosmopolítico, sustentada em uma comunidade pacífica perpétua de todos os
povos da Terra (mesmo quando não sejam amigos), entre os quais podem ser
estabelecidas relações. Não se trata de um princípio filantrópico ou moral,
mas um princípio de Direito.
Enfim, existe uma realidade de intervenção, que se manifesta por
diversos meios, o que permite desenhar uma tipologia da intervenção, em que
se inclui a ingerência solidária. Esta não é o contrário do princípio da não
intervenção, mas é uma exceção a ele. Dialeticamente o afirma ao estabelecer
seu fundamento quando indaga sobre qual soberania deve ser defendida: a do
povo ou a do ditador?
A importante presença militar (alcança 71% do efetivo) e os raros
policiais latino-americanos no Haiti (2%) a partir de 2004 constituem
mudança significativa que ocorre no subcontinente americano. Adeptos
ferrenhos da interpretação mais intransigente da ideia de soberania e do
princípio da não intervenção a ponto de transformá-los em credo dogmático,
os Estados latino-americanos, especialmente seus militares, estão colocando
em questão dois séculos de tradição?
Será que a inovadora situação resulta de um concurso de
circunstâncias políticas ou, ao contrário, trata-se de prenúncio de mudança na
natureza das relações exteriores dos Estados latino-americanos?
A posição brasileira é reveladora desta nova estratégia. Sua rápida
decisão em aceitar o convite do CSNU para comandar a vertente militar da
Minustah surpreendeu a oposição e também certos meios governamentais. O
processo decisório brasileiro revela o papel fundamental do presidente Lula,
convencido que está de que a solidariedade não deve ser uma palavra vazia.
Além disso, o Brasil defende o fortalecimento e a reforma do
multilateralismo sob os auspícios das Nações Unidas, corroído pela unilateral
invasão do Iraque.
A propalada e sempre adiada reforma do Conselho de Segurança das
Nações Unidas ocupa um lugar central na estratégia brasileira. A reforma
vista a partir de Brasília não pretende unicamente tornar o sistema mais eficaz
e democrático. Ela propõe, igualmente, que o país integre de maneira
permanente o CS renovado embora, em um primeiro momento, ausente o
poder de veto.
Contrariamente ao que ocorreu em 1945, quando da definição da
arquitetura institucional das Nações Unidas, atualmente os Estados Unidos
opõe-se a pretensão brasileira. Trata-se de barreira incontornável a impedir o
desbloqueio da contenda. Quando ambos, Jacques Chirac e George W. Bush
solicita a Luiz Inácio Lula da Silva que o Brasil assuma o comando militar da
Minustah, imagina-se em Brasília que uma resposta positiva aumentaria as
possibilidades de fazer com que Washington arrefecesse sua atitude.
Embora não o verbalize publicamente, o Brasil espera que sua ativa e
preponderante participação na vertente militar da Minustah tenha como
resultado aumentar as credenciais para integrar de maneira permanente o
Conselho de Segurança das Nações Unidas. Muitos dirigentes brasileiros
creem, ingenuamente, que o caminho para Nova Iorque passa
necessariamente por Porto Príncipe.
A política externa lulista renova princípios, estratégias e práticas
diplomáticas. O país pretende participar da alta política internacional para
defender interesses difusos e princípios inovadores.
A ação do país pretende sustentar a ideia de que os conflitos –
mormente os de natureza interna como no caso haitiano – devem ser
enfrentados a partir de suas raízes e não somente segundo suas
conseqüências. Assim sendo, paralelamente às questões estritamente
securitárias, [65] outras se adicionam, tais como a necessidade do diálogo
político entre facções e partidos e, sobretudo, um plano de desenvolvimento
econômico capaz de aliviar o Haiti de seus graves problemas sociais.

A crise haitiana inspira novo paradigma na América Latina

A experiência brasileira na Missão de Estabilização das Nações


Unidas no Haiti, apesar de não ser a primeira vez que o Brasil participa de
uma missão desta natureza, comporta alguns fatores que tornam essa atuação
especial e paradigmática:
a) é o maior contingente militar deslocado fora das fronteiras nacionais
desde o final da Segunda Guerra Mundial;
b) pela primeira vez a América do Sul tem a maioria da tropa ao longo
de uma Missão de Paz da ONU;
c) pela primeira vez o Brasil conserva ao longo de toda a Missão seu
comando militar;
d) a proposta brasileira ultrapassa os objetivos de garantir a instauração
de condições seguras para o desenvolvimento de um processo que garanta a
livre expressão do povo haitiano para a escolha de seus dirigentes.
As condições socioeconômicas haitianas, agravadas pelas crises
políticas que há décadas assolam o país e as reiteradas catástrofes naturais,
tornam inconteste o risco iminente e irreparável de vida que correm milhares
de seres humanos e que fazem urgente a cooperação internacional imediata.
Mesmo ciente de suas próprias necessidades, o Brasil destacou esforços não
só na seara militar, mas também, mais amplamente, em outras dimensões,
como a social, técnica e cívica, para assistir à população haitiana e para
chamar a atenção da Comunidade Internacional para as necessidades do país.
É nessa perspectiva ampliada de atuação que podem ser vistas ações como a
cessão de itens da ração dos soldados à população, o envio de medicamentos
e o jogo de futebol Brasil-Haiti, promovido pela Confederação Brasileira de
Futebol. Também evidenciando que sua ação se propõe a reestruturar de
forma sustentável o espaço haitiano, o Brasil enviou uma ação
multidisciplinar de cooperação técnica para identificar setores em que o país
poderia colocar à disposição do Haiti conhecimentos e mão de obra
especializada para a reconstrução da infra-estrutura e instituições do país
caribenho.
O caráter inovador da política externa do presidente Lula evidencia-se
pela solidariedade e responsabilidade devidas para com as populações que
sofrem em razão de conflitos internos, carências de todas as ordens,
repressão, falência do Estado, impossibilidade ou ausência de vontade deste
de reduzir tais sofrimentos.
A participação brasileira na crise haitiana permite que a prática se
coloque à frente da retórica. Há, no entanto, um imberbe discurso fundador
para justificar a realização dos anseios brasileiros.

O Princípio da Não Indiferença perpassando o discurso de política


externa brasileira

O discurso do presidente Lula é, desde seu início, marcado por uma


forte perspectiva humanista, que reconhece a importância e busca sobrepor os
valores da solidariedade e da cooperação àqueles da indiferença e omissão
perante os excluídos.[66] Essas intenções são desde logo anunciadas como
parte de uma política que pretende vê-las em operação, superando as posturas
meramente reativas que habitualmente acompanham os discursos do gênero.
Em setembro de 2005 Lula declara: “Não aceitamos como fato consumado
uma ordem internacional injusta (...). Nossa atuação diplomática é fundada na
defesa de Princípios, mas também na busca de resultados. Tem uma
dimensão utópica sem deixar de ser pragmática”.
Mais adiante o presidente menciona o Princípio da Não Indiferença
como norteador dessa política internacional que seu governo propôs-se a
seguir: “Em um mundo globalizado e interdependente, nossa contribuição à
paz e à democracia é determinada pelo Princípio da Não Indiferença. Por isso
nos engajamos nos esforços de estabilização do Haiti”.
Menciona, ainda, outros novos caminhos da atuação internacional de
seu governo, como a crescente intensificação das relações com países
africanos e o incremento do diálogo Sul-Sul. Por fim, volta a enfatizar a
importância desse Princípio que sensibiliza o país para o que acontece além-
fronteira mediante uma alegoria que faz referência à importância do
desenvolvimento conjunto da América do Sul: “(...) porque não seremos ricos
se tivermos nas nossas costas países miseráveis onde persiste a fome, o
desemprego e a miséria”.
A diplomacia do governo Lula já estava definida em 2003. Segundo
Celso Amorim, seus princípios e ações repousam na busca em assumir novas
responsabilidades na cena internacional. Ela pretende ser proativa e altiva,
sem olvidar que estará “impregnada de umas perspectivas humanistas, que
faz com que seja, a um só tempo, instrumento de desenvolvimento nacional e
defensor de valores universais.”
Para Amorim, a

mesma aspiração por desenvolvimento e progresso


social, que moldam a ação governamental em âmbito
interno, nos mobilizará nos planos regional e global.
Nossa aspiração por paz e solidariedade passa
necessariamente por uma atenção detida para as
carências dos menos favorecidos.

Dois anos mais tarde, em discurso pronunciado por ocasião da 35ª.


Assembleia Geral da OEA, a perspectiva humanista da atuação internacional
brasileira volta a ser reforçada pelo ministro. Nesta ocasião, porém, após
confirmar que um dos apoios da diplomacia brasileira encontra-se no
Princípio da Não Intervenção em assuntos internos, ressalta que isso não deve
servir de pretexto para negar a solidariedade ativa do país:

A diplomacia brasileira pauta-se pelo Princípio de


Não Ingerência em assuntos internos, consagrado em
nossa Carta. O governo do presidente Lula tem
associado a esse Princípio básico uma atitude que
descrevemos como de não indiferença. Temos
prestado nosso apoio e solidariedade ativa em
situações de crises, sempre que somos solicitados e
consideramos ter um papel positivo.

Cerca de um ano mais tarde o tom do discurso e a importância da


atitude de Não Indiferença seriam novamente invocados, na subsequente
reunião Assembleia Geral da OEA:

É muito importante que todos nós sejamos capazes de


praticar a não-indiferença, isto é, um engajamento no
auxílio sempre que solicitado, para a consolidação
democrática dos países. Mas, ao mesmo tempo,
também é importante nos abstermos de interferir em
processos internos. É isso que tem guiado a política
do presidente Lula, baseada na integração, baseada na
amizade, baseada na não indiferença, mas também na
não intervenção.

Em todos os pronunciamentos a menção à Não Indiferença aparece


sempre associada a uma atuação, a uma prática. Sua utilização se dá,
portanto, já no contexto de algo que vem se operando e que, assim, já
ultrapassou a fronteira do programático e atingiu o pragmático. Essa nuance é
importante, pois na ocasião dos pronunciamentos já estavam em curso
experiências práticas de ativa solidariedade.
A operacionalização do Princípio da Não Indiferença se faz a partir do
conceito de diplomacia solidária.[67] Agindo coletivamente, desprovidos de
interesses menores e subalternos, um grande número de países da América
Latina fornece na atualidade o exemplo desta nova forma de perceber, além
da fria razão de Estado, os desafios dos homens. A atuação desses países no
Haiti deveria constituir esta nova perspectiva para as relações
interamericanas.

Figura 6 – Características do Princípio da Não Indiferença


Origem Prática da política externa de Lula de solidariedade com os
países do Sul
Concepção Solidariedade internacional e responsabilidades compartilhadas
Institucionalização Ausente uma institucionalização, surge nos discursos e práticas
de agentes públicos
Atuação Perdão de dívidas, não exercício do poder nas negociações com
países débeis, Doutrina 6 ½[68] aplicada na crise do Haiti, etc.
Antecedentes Inspira-se no Direito Internacional do Desenvolvimento e na
filosofia da Nova Ordem Econômica Internacional (Noei).
Interpretação renovadora da Responsabilidade de Proteger
acompanhada por elementos contidos no que denomino de
Diplomacia Solidária.

Durante o século passado este cenário foi esboçado algumas vezes –


nos anos 60 com o processo de independência no continente asiático e
africano; nos anos 70 com a tentativa de lançar as bases de um Direito
Internacional do Desenvolvimento, alicerçado sobre uma Nova Ordem
Econômica Internacional (Noei) – sem que, no entanto, emergisse dos
rabiscos iniciais a grande obra final, capaz de subverter a lógica de
dominação que condena alguns países à mais completa marginalidade.
Na América Latina, a Não Indiferença vem legitimar uma atuação
internacional que teve de ser refundida para melhor responder às demandas
de um continente em crise, no qual não se pode mais ignorar a
incompatibilidade congênita entre democracia e segurança quando
confrontadas às situações de miséria que levam à desesperança.
Este processo exige, no entanto, um longo caminho de amadurecimento
e consolidação. Trata-se de Princípio que dialoga para além do Estado, pois
se dirige à humanidade. Por ser jovem, carece de uma teorização e de uma
prática que o torne geral e constante, para que se transforme em Direito. Se
por um lado o conceito e a juridicidade da não intervenção estão afirmados,
há um longo caminho a ser trilhado para que a Não Indiferença se consolide
como conceito e se torne realidade.
A presença sul-americana no Haiti deve ser inserida, igualmente, no
âmbito dos debates sobre o papel das Forças Armadas numa sociedade
democrática. Por fim, necessário enfatizar o ainda tímido e sutil movimento
em direção à formação de um sistema de segurança e de defesa sul-americano
como o que está sendo esboçado no âmbito da Unasul. Brasília, por exemplo,
ressalta que uma melhor política de defesa poderia fazer com que o país
reforce sua capacidade, de maneira isolada ou como membro de um sistema
de defesa coletivo com os países vizinhos, para enfrentar as novas ameaças e
desafios, garantir a proteção de seu território e sustente suas negociações no
plano internacional.
Não há dúvida alguma de que a experiência no Haiti traz consigo uma
aproximação militar na região, principalmente no Cone Sul, entre Argentina,
Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. Ressalte-se uma vez mais, todavia, a
responsabilidade primordial brasileira, pois além de ser o maior contribuinte
militar, manteve seu comando durante todo o período – o que contraria a
doutrina das Nações Unidas sobre Operações de Paz.

Figura 7 – Composição da Minustah segundo sua origem

Pays Militaires Policiers Total


Brésil 1.670 5 1.675
Uruguay 936 5 941
Argentine 569 20 589
Chili 464 12 476
Pérou 373 373
Guatemala 137 137
Bolivie 206 206
Paraguay 164 164
El Salvador 34 7 41
Equateur 68 68
Colombie 25 25
Total 4.621 74 4.695
Fonte: Nações Unidas, DPKO, abril de 2013

A visibilidade militar latino-americana no Haiti alcança magnitude a


provocar desinteligências e equívocos. Assim, parte ponderável da opinião
pública e de representantes governamentais latino-americanos considera que
a solução da crise haitiana lhes pertence. Contraditoriamente, os governos
latino-americanos são os mais reticentes com as tentativas de conduzir a crise
para a seara da OEA.
De outra banda, a opinião pública haitiana igualmente tende a perceber
a operação como sendo regional. A exposição mais visível é a do Brasil em
razão da presença de suas tropas na região metropolitana de Porto Príncipe –
centro nevrálgico do poder político e, por consequência, da infindável crise.
Apesar de pertinentes, as motivações latino-americanas padecem de
duas debilidades. Por um lado, em sua grande maioria, são explicitadas a
posteriori. Ou seja, primeiro há uma decisão em participar da futura
Minustah e somente após alguns meses começam a surgir explicações e
supostas motivações. Por outro lado, o calendário do processo de tomada de
decisão mostra uma brusca e impensável mudança. Como mencionado
anteriormente, em 25 de fevereiro de 2004 o Grupo do Rio publica um
comunicado de apoio a Jean-Bertrand Aristide. Escassos três dias depois este
é retirado do poder. Logo a seguir, em 4 de março, o Brasil informa que
enviará um contingente militar de 1.100 homens ao Haiti. Imediatamente
outros governos sul-americanos seguem os passos do Brasil.
Como explicar tamanha reviravolta em um lapso de tempo tão
reduzido? No caso brasileiro a resposta é simples: a decisão foi tomada pela
Presidência da República sem levar em consideração a tradição de não
intervenção nos assuntos internos dos Estados e tampouco a oposição que até
então prevalecia no Itamaraty. Nota-se, ademais, que o Brasil opôs-se em
1994 a uma ação militar conjunta, sugerida pelos Estados Unidos, para
reconduzir ao poder o então presidente Aristide, deposto por um golpe
militar. Naquela ocasião o mesmo Celso Amorim ocupava a pasta das
Relações Exteriores.
Do conjunto de decisões de política externa brasileira esta é a que
melhor exemplifica a influência do presidente na área externa e indica que
não são totalmente infundadas as críticas de bicefalia na condução dos
assuntos externos a partir da assunção de Luiz Inácio Lula da Silva.
À diplomacia tradicional baseada nos princípios fundamentais que
regem a atuação externa brasileira opõe-se uma visão voluntariosa com um
definido corte ideológico, a emanar do Palácio do Planalto sob a batuta de
Marco Aurélio Garcia.
Ressalte-se, igualmente, que as forças que sustentam política e
ideologicamente os governos de centro-esquerda latino-americanos rompem,
em 2000, com o Fanmi Lavalas. Essa ruptura é acompanhada por um
profundo e radical processo de distanciamento e de desencanto com o
segundo mandato de Jean-Bertrand Aristide.

O afastamento da esquerda latino-americana do movimento Lavalas

Não deixa de ser uma surpresa a atitude simpática ao golpe contra


Aristide, seja por um cúmplice silêncio seja por declarações de apoio,
manifestado por vários Estados latino-americanos governados pela esquerda
e adeptos intransigentes do histórico princípio da não intervenção. Inclusive,
todos eles, signatários da Carta Democrática Interamericana. A guinada
latino-americana alcança impensável radicalismo quando o Brasil de Lula,
logo secundado por outros governos, aceitam enviar um contingente militar
ao Haiti.
Com um inusitado contorcionismo jurídico, político e ideológico a
justificar a inexistência de ruptura da ordem constitucional haitiana, a
esquerda latino-americana, de maneira unânime, condena Aristide, afasta-se
do Lavalas, apoia o golpe e a consequente intervenção militar estrangeira. Ao
fazê-lo, concede legitimidade ao golpe, associa-se às posições mais radicais
dos Estados Unidos, França e Canadá, lhes fornecendo álibi e suporte
ideológico. Assim abre caminho para a participação de importantes Estados
da região na composição das forças militares estrangeiras que, sob a bandeira
das Nações Unidas, intervirão no Haiti.
Nos primeiros dias de março de 2004 o presidente Lula se entrevista
telefonicamente com o presidente Bush e logo a seguir com o presidente
Chirac. Nestas oportunidades os dois mandatários estrangeiros convidam o
Brasil a participar da futura Minustah e a assumir o comando de sua vertente
militar. Imediatamente o porta-voz da Presidência da República, André
Singer, convoca uma coletiva de imprensa e anuncia o que havia sido
alinhavado:

O Presidente Chirac evocou, na conversa com o


Presidente Lula, a crise do Haiti. O Presidente Chirac
disse que na segunda etapa das operações
internacionais de paz naquele país, quando será
formada uma força multilateral das Nações Unidas,
conforme decisão do Conselho de Segurança é
fundamental a participação de tropas brasileiras.
Acrescentou que seria de suma importância, também,
que o Brasil assumisse o comando dessa força, a ser
composta de contingentes canadenses, franceses,
norte-americanos e argentinos, além dos brasileiros.
O Presidente da França lembrou que essa é, também,
a opinião do Secretário-geral da ONU, Kofi Annan.
O Presidente Lula disse que o Brasil fica honrado
com essa indicação, e que está à disposição das
Nações Unidas, tanto para o envio de tropas quanto
para o exercício do comando. Informou, também, ao
Presidente Chirac, que está pronto a ser enviado ao
Haiti um contingente de 1.100 militares brasileiros
especialmente treinados para essas missões.[69]

Embora não tenha sido produto de uma Resolução do CSNU, o


convite de Chirac deixa transparecer que Washington e Paris já haviam
negociado o tema com os demais Estados membros permanentes do CSNU e
com o SGNU. Em poucos meses o virtual convite se tranforma em Resolução
formal. A única, embora expressiva, diferença ficará por conta da
composição do contingente militar pois ao contrário do apregoado por Singer,
os militares do Canadá, França e Estados Unidos se destacarão por suas
ausências. A variante militar da Minustah será composta por tropas da
América Latina e da Ásia.
Excetuando a Comunidade do Caribe, da qual o Haiti faz parte, sob a
inspiração do extraordinário primeiro ministro da Jamaica, Percival N. J.
Patterson, que ocupou o cargo durante o período 1992-2006 e líder do
People`s National Party, a opor-se à intervenção estrangeira no Haiti, o
restante da América Latina e particularmente a meridional, decidiu participar
da operação da ONU.
A Caricom reage por princípio, mas também por interesse. Seus 14
Estados membros estão conscientes que a qualquer momento poderão ser as
próximas vítimas de intervenções estrangeiras, tal como ocorreu em Granada
em 1983. Sua oposição à intervenção será reduzida somente em 2006, quando
René Préval é eleito para um segundo mandato presidencial.
Como explicar a radical reviravolta sul-americana e a rapidez da
decisão que a acompanha?
A inconciliável disputa no seio da esquerda haitiana a partir de
outubro de 1999 entre, de um lado, Jean-Bertrand Aristide e de outro, Gérard
Pierre-Charles, fará com que a totalidade dos movimentos sociais e dos
partidos políticos de esquerda da América Latina afastem-se do movimento
Lavalas e se declarem solidários a Pierre-Charles.
Este processo conhece seu transcurso político e ideológico nos debates
sobre o Haiti que ocorrem no interior do Foro de São Paulo. Ao analisá-lo
pode-se melhor entender o papel preponderante desempenhado pelo Partido
dos Trabalhadores brasileiro e do ex-Secretário Geral e um dos idealizadores
do Foro, professor Marco Aurélio Garcia, na decisão tomada afoitamente
pelo governo brasileiro.

A recorrente crise haitiana e o Foro de São Paulo

As dezenas de movimentos sociais e partidos políticos de esquerda da


América Latina e do Caribe contam, a partir de 1990, com um espaço de
diálogo e de concertação. O primeiro encontro convocado pelo Partido dos
Trabalhadores (PT) brasileiro ocorreu em São Paulo em 1990 sob a
denominação de “Encontro dos Partidos e Organizações Políticas de
Esquerda da América Latina e do Caribe”. Logo o movimento foi cunhado de
Foro de São Paulo (FSP) e nomeado como seu Secretário Geral, Marco
Aurélio Garcia, acumulando as suas funções de responsável pelas Relações
Exteriores do PT.
Seus grandes artífices serão o PT sob a liderança de Luiz Inácio Lula
da Silva e o Partido Comunista de Cuba (PCC) sob a batuta de Fidel Castro.
Seu nascimento decorre de estratégia petista e cubana buscando romper o
isolamento da esquerda após a queda do Muro de Berlim. Na época, como
declarou o Chefe do Departamento de Relações Internacionais do PCC, José
Ramón Balaguer,

o entorno era bastante complicado para as forças de


esquerda e revolucionária na América Latina e
Caribe. A palavra imperialismo deixou de ser
pronunciada e não se falava mais de socialismo.
Alguns partidos mudaram de nome. Inclusive alguns
consideravam que não havia mais necessidade de
fazer a revolução. [70]

Tal conjuntura fez com que “o objetivo inicial fosse o de convocar as


forças de esquerda e demonstrar que, apesar do que ocorria no mundo, existia
possibilidades para alcançar uma revolução social e implantar uma sociedade
com justiça e igualdade de oportunidades.” [71]
Desde 1990 aconteceram 19 reuniões. Segundo a documentação
oficial apresentada na no conclave de maio de 2011 em Manágua, o Foro de
São Paulo conheceu três grandes etapas. A primeira consistiu na “resistência
ao neoliberalismo”; a segunda, nas vitórias para conquistar governos
nacionais (1998-2009) e a terceira, atualmente, “começa com a crise do
capitalismo e o contra-ataque da direita”.
Entre os desafios listados estão o de “manter os espaços conquistados,
especialmente os governos nacionais, e seguir lutando para derrotar a direita
onde ela governa”. Veremos que, quando aplicada ao caso haitiano, a
estratégia do Foro obteve resultado inverso ao preconizado, pois conduziu ao
poder, em 2011, um conhecido simpatizante duvalierista.
A suposta esquerda haitiana participou do Foro de São Paulo. Seu
representante foi, até sua morte em outubro de 2004, Gérard Pierre-Charles,
designado como coordenador do Movimento Lavalas, dirigido por Jean-
Bertrand Aristide. Pierre-Charles integrou, inclusive, o Conselho Editorial da
revista América Livre, divulgadora do Foro.
Quando da VII reunião ocorrida em Porto Alegre em julho de 1997, a
historiadora Suzy Castor – esposa de Gérard Pierre-Charles – participou
igualmente do conclave na qualidade de Diretora do Centre de Recherche et
de Formation Économique et Sociale pour le Développement.
No VIII Encontro do Foro, realizado em novembro de 1998 na cidade
do México, adota-se uma primeira Resolução sobre o Haiti na qual

tendo constatado o bloqueio político que agrava a


crise econômica e também o perigo da instabilidade
da vida institucional... Proclama sua solidariedade
com o Povo haitiano e decide organizar uma missão
de informação ao Haiti a fim de propor uma
mediação entre os partidos em conflito.
Na reunião seguinte (Manágua, fevereiro de 2000), que precedeu as
eleições haitianas daquele ano, a crise política no país caribenho sequer foi
mencionada.
Tendo sido consumado o divórcio entre Aristide e Pierre-Charles por
ocasião das contestadas e contestáveis votações de 2000, o Foro muda
completamente de posição e ao ungir Pierre-Charles como seu solitário
integrante haitiano, inicia suas agressões a Aristide e ao seu Governo. Assim,
quando do X Encontro realizado em Havana em dezembro de 2001, a
Resolução adotada sobre o Haiti assume, inclusive em sua redação, a tese da
Convergência Democrática de Pierre-Charles.

O X Encontro do Foro de São Paulo, reunido de


quatro a sete de dezembro de 2001, em Havana,
Cuba, chama a atenção sobre as conseqüências das
eleições fraudulentas do ano de 2000 no Haiti, que
exasperaram uma prolongada crise institucional,
evidenciando a incapacidade do governo populista e
corrupto de Aristide em encarar os graves problemas
da nação. Crescem a miséria e o descontentamento,
enquanto a repressão e as violações dos direitos
humanos nutrem uma crescente instabilidade e
polarização política. As repetidas missões de
conciliação empreendidas pela OEA e a CARICOM
não puderam ainda facilitar uma saída negociada
entre o poder Lavalas e a Convergência
Democrática, a qual, com o apoio de amplos setores
da população, se mostram como a alternativa a este
regime personalista que frustrou as esperanças
populares.[72]

Utilizando-se de idêntica qualificação e vocabulário – tais como


populista, corrupto, personalista – empregado por críticos de vários de seus
governos, o Foro de São Paulo defende que o Haiti deveria prescindir de
eleições. Bastaria substituir Aristide por Pierre-Charles.
No XI Encontro, realizado em Antigua (Guatemala, dezembro de
2002), o Foro de São Paulo “profundamente preocupado pelos
acontecimentos de violência e repressão ocorridos no Haiti nos últimos
meses”, adota a seguinte Resolução sobre a crise haitiana:
1) O Foro de São Paulo denuncia a política
antidemocrática do Governo de Jean-Bertrand Aristide
no Haiti, que defraudou as esperanças do povo e
submeteu este país a um regime de violação dos
direitos políticos e liberdades individuais.
2) Condena a recusa do Governo do Haiti a alcançar
um acordo político com a oposição após as eleições
fraudulentas do ano 2000 e a cumprir as Resoluções
806 e 822 da OEA, que indicam uma saída de crise
mediante eleições verdadeiras, livres e transparentes.
3) Expressa sua mais firme condenação à violência
sistemática feita aos direitos da oposição, expressada
nos últimos dias por sangrentas agressões policiais e
para-policiais contra manifestações pacíficas em
diversas cidades do país, o que abre uma perigosa
dinâmica de maior violência.
4) Apóia os esforços da conferência [sic] democrática
para restaurar a ordem democrática no Haiti e criar
condições para o desenvolvimento econômico e social
da nação às vésperas da celebração, em 2004, do
bicentenário de sua independência.
5) Apela aos partidos membros do Foro e aos Povos da
América Latina, a contribuir com sua solidariedade
com as forças democráticas e a preparar a celebração
dos duzentos anos da primeira [sic] nação livre do
Continente.

Em 17 de fevereiro de 2004, escassos dias precedendo o golpe contra


Aristide, o Grupo de Trabalho do Foro reunido em São Paulo, visivelmente
traduzindo um texto redigido em outro idioma, espanhol ou francês, emitiu
uma Resolução Especial sobre o Haiti – de confusa redação embora com a
clara proposta de retirar Aristide do poder. Pela primeira vez um documento
oficial do Foro sobre a crise haitiana apoia expressamente a um partido e a
um político:

1. A crise política que vive a nação haitiana surge do


flagrante desconhecimento das instituições
democráticas que fizeram o governo de Jean-Bertrand
Aristide e a constante violação aos direitos humanos
que praticou nos últimos anos.
2. A ampla mobilização popular que atualmente
demanda a renúncia de Aristide constitui o resultado
de uma crescente conscientização política em torno da
necessidade de exigir a restauração da democracia, o
respeito à liberdade de expressão e aos direitos
humanos e à existência de um verdadeiro Estado de
Direito.
3. A Comunidade Internacional deve mediar no atual
conflito com o fim de ajudar numa saída política que
ponha fim a crítica situação de violência existente
neste país, no ânimo de que sejam os próprios
haitianos que decidam seu rumo político e a
reconstrução de seu sistema democrático.
4. O Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo se
solidariza com a luta do povo haitiano e da Plataforma
Democrática, em particular, emite seu más [sic] amplo
respaldo político à Organização do Povo em Luta,
encabeçada por Gérard Pierre-Charles, partido irmão
membro do Foro de São Paulo.
5. O Grupo de Trabalho do Foro de São Paulo deseja
que a reconstrução democrática do Haiti seja um fator
determinante do início de uma etapa de
desenvolvimento econômico que garanta justiça social,
liberdade e dignidade para a primeira nação
independente de nossa América Latina.[73]

O que seria impensável anteriormente torna-se agora palpável


realidade. A esquerda latino-americana não somente concede apoio irrestrito
ao golpe, como também apela para que ele aconteça.
Sentindo-se integralmente respaldada pelo Foro de São Paulo, a
Plataforma Democrática e a OPL de Pierre-Charles sentem-se seguras em sua
estratégia de não buscar uma saída negociada. Trata-se do jogo de soma zero
que logo será encampado pela França, Estados Unidos e Canadá.
Em 2005 o introdutor diplomático do presidente Lula, Marco Aurélio
Garcia, realiza missão ao Haiti e confirma o que esperava encontrar. Ele
recebeu
da parte de muitos setores, informações muito graves
em relação a Aristide. Em primeiro lugar, violação
dos direitos humanos, sobre as quais eu tinha
informação direta, porque conhecia muita gente
anteriormente. Em segundo lugar, que ele estaria
envolvido com tráfico de drogas e que também teria
responsabilidade sobre problemas de corrupção. [74]

Embora Garcia declare não dispor de parâmetros para opinar e havia


simplesmente “tomado nota” sugerindo que o governo empreendesse um
processo judicial o qual “disseram que iam fazer e não fizeram”, trata-se, em
realidade, de idênticas acusações às da oposição e dos setores golpistas
estrangeiros. Logo elas são assimiladas pelo governo Lula e por numerosos
governos da região como verdades incontestes.
Uma única fissura na posição do Foro sobre o Haiti surge a partir do
XII Encontro realizado em São Paulo em 2005. Ocorre que o Partido
Comunista Brasileiro (PCB) se opõe à Resolução adotada. Nesta o Foro
decide enviar uma missão ao Haiti com “o objetivo de aprofundar o
conhecimento da situação e discutir ações comuns para a reconstrução
política, econômica, social e ambiental do Haiti”. Além disso, o Foro enfatiza
que:

Considerando que o Foro de São Paulo respeita e


aplica como princípio geral do Direito Internacional o
direito à autodeterminação dos povos, fazemos votos
para a rápida reinserção soberana da nação caribenha
na Comunidade Internacional.
Com esta finalidade solicitamos que a totalidade da
dívida externa do Haiti seja perdoada como
contribuição para superar a situação de pobreza
extrema na qual vive seu povo.
Exigimos que os países doadores, comprometidos com
as Nações Unidas a financiar o plano de reconstrução
do Haiti, cumpram esse compromisso imediatamente.

Os desconfortos do PCB com a Resolução provêm de vários elementos.


Embora ela mencione o princípio da autodeterminação dos povos, o Foro
utiliza a tímida expressão “fazer votos” quando deveria exigir a retirada da
Minustah do Haiti; solicitação e exigência somente surgem quando implicam
os países doadores e os que possuem créditos da dívida externa haitiana. Ou
seja, os Estados desenvolvidos. Jamais os governos latino-americanos
integrantes do Foro.
Foi somente em 2012, contudo, que a crítica aparece de forma
contundente. O conhecido intelectual comunista e chavista argentino, Atílio
Boron, ao fazer um balanço do XVIII Encontro realizado em Caracas e de sua
Declaração final, assinala que esta

condena as tentativas golpistas contra Evo Morales,


Manuel Zelaya, Rafael Correa e a mais recente contra
Fernando Lugo. Ela se esquece de assinalar,
infelizmente, o golpe perpetrado contra Jean-Bertrand
Aristide, no Haiti, em 2004. Falha grave porque não
se pode dissociar esse esquecimento da infeliz
presença de tropas de vários países latino-americanos
– Brasil, Chile, Argentina, dentre outros – no Haiti,
quando na realidade o que faz falta nesse sofrido país
são médicos, enfermeiros, professores. Mas disso
Cuba se encarrega; seu generoso internacionalismo é
um dos sinais mais honrosos da sua revolução.

Ao responder às críticas de Boron, o petista Valter Pomar, Secretário


Geral do Foro de São Paulo, argumenta que

talvez Boron não saiba, mas as Declarações finais são


consensuadas nas reuniões do Grupo de Trabalho. Do
qual participaram, neste XVIII Encontro, dirigentes
haitianos. Que apresentaram uma Resolução, aprovada
em plenário, sobre a situação do Haiti.
É legítimo debater se esta resolução, prossegue Pomar,
e a Declaração final deveria ou não fazer referência à
derrubada de Aristide. Mas beira a má fé vincular este
suposto esquecimento à infeliz presença de tropas de
vários países latino-americanos – Brasil, Chile,
Argentina, entre outros – omitindo quem são os outros,
omissão (mais que esquecimento) que serve para
reforçar uma insinuação que Boron deveria explicitar,
para que o debate possa ser feito às claras.
Extraem-se três reveladoras lições da resposta do Secretário Geral do
Foro. A primeira consiste em desconsiderar a queda de Aristide como tendo
sido um golpe. Embora ativa e decisiva intervenção estrangeira, inclusive
militar, no golpe, para o Foro trata-se de uma singela “derrubada”. Inútil
fazer uso da semântica quando límpida é a realidade dos fatos.
A segunda lição revela o leviano funcionamento do Foro quando se
trata do Haiti. Praticamente todos os países da região possuem vários partidos
de esquerda e movimentos sociais que participam do Foro e transmitem
percepções detalhadas, por vezes contraditórias, sobre sua realidade nacional.
Este não é o caso do Haiti. Ao referir-se à participação de “dirigentes
haitianos” Pomar não explicita – por evidentes razões – que se trata
exclusivamente de responsáveis políticos da OPL. Ou seja, um partido que
tenta conquistar o poder e cujo candidato (Paul Denis) obteve míseros 2,5%
dos votos nas eleições presidenciais de 2006. Nas presidenciais de 2010
sequer participou.
O Haiti conta com mais de três dezenas de partidos e plataformas
políticas, perfazendo amplo leque ideológico. Muitos são de esquerda e de
centro-esquerda. Nenhum deles consegue filiar-se ao Foro. A título de
comparação, a vizinha República Dominicana, dispondo de similar número
de partidos políticos, é representada por seis agrupamentos no Foro de São
Paulo.
A terceira lição consiste na revelação do dogma em que se transformou
para o Foro de São Paulo a discussão sobre a presença de forças militares
latino-americanas no empobrecido Haiti. Como compatibilizar o discurso em
torno da autodeterminação dos povos e o respeito ao princípio de não
intervenção nos assuntos internos dos Estados com o que ocorre atualmente
no Haiti? Diante da impossível resposta, que desembocaria inevitavelmente
em crítica à política dos governos patrocinadores do Foro, este prefere calar-
se.
Não pode calar, todavia, a dissidência, pois, concluindo o debate,
Boron responde a Pomar observando que

sua atitude somente confirma a escassa vontade do


Secretário Executivo do Foro de São Paulo em aceitar
dissidências e permitir uma discussão sobre temas
candentes. Tudo, absolutamente tudo, deveria estar
aberto à discussão e à revisão, ainda mais em uma
organização que pretende representar a esquerda na
América Latina e que supostamente não admite a
infalibilidade dos dirigentes como princípio
organizativo.

Aprofundando sua posição expressada por ocasião do XII Encontro do


Foro, em agosto de 2010 o Partido Comunista Brasileiro lança uma nota
política endereçada ao Foro na qual propõe

a realização de uma campanha, em âmbito


continental e mundial, pela retirada de todas as tropas
estrangeiras presentes hoje no Haiti e sua substituição
por engenheiros, médicos e outros profissionais que
possam ajudar o país a se recuperar da miséria
agravada pelos furacões.

Ocorre que o Foro de São Paulo prossegue em silêncio sobre a presença


militar latino-americana no Haiti. Em seu XIII Encontro realizado em El
Salvador em janeiro de 2007, a Declaração final restringe-se a salientar que
no “Haiti o imperialismo norte-americano e a direita local não puderam
consumar a fraude para evitar a eleição do presidente René Préval”. O
Documento de Base, porém, fazia, pela primeira vez, uma referência ao
assunto nos seguintes termos:

De antemão, o XIII Encontro se dirige aos partidos


que integram governos que têm tropas na Minustah,
informando que em nossa opinião se faz necessário
criar condições para, no prazo mais curto, substituir a
presença de tropas da Minustah por um apoio
exclusivamente humanitário.

O não acolhimento da sugestão do Documento de Base na Declaração


Final revela a falta de consenso do Foro de São Paulo sobre o delicado tema.
Assim, não surpreende a ausência da crise haitiana e de seus desdobramentos
nos três Encontros subsequentes do Foro de São Paulo (Montevidéu 2008,
Cidade do México 2009 e Buenos Aires 2010).
O Haiti retorna à pauta do Foro no XVII Encontro, realizado em
Manágua em 2011, quando o Documento de Base menciona simplesmente a
necessidade de “tomar medidas concretas para a reconstrução do Haiti”.
Nessa oportunidade, contrastando com a singeleza de propósitos dos adultos,
a Declaração do III Encontro da Juventude do Foro de São Paulo adota uma
Resolução detalhada nos seguintes termos:

Seguir colocando o Haiti como elemento central da


agenda política dos partidos do FSP no próximo
período, tanto em âmbito nacional como continental,
tendo como prioridade a contribuição solidária de
nossos partidos membros, dos movimentos sociais e
dos governos de esquerda e de centro-esquerda do
continente com o processo de autodeterminação do
povo haitiano em sua luta para melhores condições de
vida em seu país.
Estabelecer com os governos latino-americanos
sensíveis à causa haitiana, em particular os governos
populares, de esquerda e de centro-esquerda do
continente, uma política para uma ação comum e
coordenada com governos e instituições do povo do
Haiti, que tenha como objetivos:
- elaboração de uma agenda para o fortalecimento do
Estado nacional haitiano, contribuindo com nossas
experiências à melhoria das instituições políticas do
país, para o cumprimento do papel do Estado como
indutor do desenvolvimento e promovendo políticas
públicas universais e de qualidade.
- tornar efetiva a cooperação econômica com o Haiti
(prometida quando do terremoto e não realizada pelas
principais Potências) mobilizando recursos próprios
para investimentos em infra-estrutura e
desenvolvimento local, como forma de contribuir a
sustentabilidade econômica e social, para o processo
de consolidação democrática do país surgido das
últimas eleições [sic].
- estimular a mais ampla participação popular nos
esforços de solidariedade e cooperação com o Haiti,
em sintonia com os movimentos sociais e demais
instituições da sociedade civil e democrática de nossos
países, aumentando a presença humanitária e a
integração de nossos povos no fortalecimento dos
laços sociais e culturais com a emancipação do povo
haitiano.

Por ocasião do XVIII Encontro (Caracas 2012) o Plano de Trabalho


proposto para o Documento de Base pelo PT brasileiro menciona a
necessidade de “revisar o caso do Haiti” (ponto nove). Apesar deste indício, a
Direção Nacional do partido sequer se refere à crise haitiana em seu
pronunciamento.
Finalmente o Documento de Base do XIX Encontro do Foro de São
Paulo (julho 2013) indica em seu Plano de Ação

Nossa solidariedade firme com a luta do povo irmão


do Haiti para superar as condições ancestrais de
pobreza e marginalidade, e a favor da plena
democratização da sociedade haitiana, sem ingerência
estrangeira e com respeito a sua soberania nacional,
desenvolvendo esforços para apoiar as forças de
esquerda naquele país.

As contradições e superficialidades do documento obrigam os


responsáveis pelo Foro a passar sob total silêncio o imbróglio haitiano que
sequer é mencionado na Declaração Final.
Por meio do Foro de São Paulo a esquerda latino-americana apresenta
sua leitura e interpretação sobre a crise haitiana. Servindo de suporte e
complementando-a, ideólogos funcionais oferecem sua contribuição. Ao
longo da crise, com raras exceções, como o uruguaio Eduardo Galeano e o
argentino Juan Gelman, as declarações e análises provenientes de intelectuais
de esquerda defendem uma única perspectiva: acusar Aristide de todos os
pecados.
Com juras de amor e admiração pelo Povo haitiano, travestindo suas
análises com justos sobrevoos da História haitiana, os autores chegam,
invariavelmente, ao mesmo porto: a vítima do golpe foi, de fato, o algoz da
democracia haitiana.
Carlos Alberto Libânio Christo, conhecido como Frei Betto, sublinha
o suposto “governo decepcionante” quando do primeiro mandato de Aristide.
Ora, depois de uma eleição apoteótica, Aristide sequer havia cumprido nove
meses de governo quando foi derrubado por um golpe militar.
Da crise de 2004, o teólogo da libertação possui uma leitura
extremamente original. Segundo Frei Betto Aristide, “acusado de corrupção e
em conivência com Washington [sic], exilou-se na África do Sul”. Difícil
seria encontrar maior primor de desinformação e, para um homem de fé,
maior testemunho de como utilizá-la malevolamente.
Em seu site na internet Amaivos, autoqualificado como “inteligência e
tecnologia a serviço do amor”, em um artigo Frei Betto indaga: “O Haiti
existe?” Trata-se de tentativa de ser contraponto ao título “O Haiti não
existe”, de conhecido livro de Christophe Wargny, antigo conselheiro de
Aristide e posteriormente seu severo crítico.
Ultrapassando insondáveis barreiras metafísicas e todos os limites da
decência, o frade desinforma com a seguinte preciosa pérola: “... o Haiti é
mantido sob intervenção da ONU e agora [2010] ocupado, de fato, por tropas
usamericanas”.
Tropas US? Tropas americanas? Tropas usadas pelos americanos?
Somente resta responder à pergunta de Frei Betto com outra indagação: A
que formula Fernando Gabeira no título de um de seus mais conhecidos
livros: O que é isso, companheiro?
Em março de 2004, Emir Sader, um dos principais ideólogos do PT,
sentencia que Aristide “governou de forma ditatorial, com corrupção e fraude
eleitoral, repressão contra os movimentos sociais e as forças democráticas
que o haviam apoiado”.
Ao fazê-lo, acompanha rigorosamente a análise da OPL, contudo,
alerta que “o Brasil não pode e não deve participar de um contingente de
tropas que não tem mandato claro, com prazos definidos... e recomenda que o
Brasil não entre nessa aventura.” [75]
Uma vez o Brasil instalado no comando do braço militar da Minustah,
Sader considera que sua intervenção serviu para “substituir as tropas
invasoras [EUA e França]”, esquecendo-se convenientemente, da
participação dos socialistas chilenos de Ricardo Lagos Escobar na
Multinational Interim Force (MIF) enviada ao Haiti após a retirada de
Aristide do poder. Nota-se a preocupação de preservar de qualquer reparo à
atuação dos governos sul-americanos de centro-esquerda.[76]
A não intervenção deixa de ser um sacrossanto princípio defendido
pelos países do Sul, especialmente pelos seus movimentos progressistas. A
partir da atual crise haitiana há intervenções aceitáveis e outras não, há
intervenções de esquerda e de direita, há guerras boas e guerras más.
Finalmente, em 2011, algumas vozes da esquerda latino-americana,
entre elas a de Frei Betto, surgem reclamando em Carta Aberta ao Secretário
Geral da ONU e também da OEA, uma mudança radical de estratégia e o fim
da ocupação militar do Haiti. Serão elas ouvidas em Nova York e em
Washington se sequer são escutadas nas capitais de seus respectivos países?
Com as raras exceções de pequenos partidos da extrema-esquerda e de
personalidades independentes, a oposição aos governos de turno na América
Latina tampouco critica a presença militar no Haiti. No caso brasileiro, o
único opositor digno de nota foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Ele declarou, em janeiro de 2006, que “não conseguia ver bem qual é o
interesse nacional na questão”.
Cardoso considerava que o governo Lula havia se precipitado em
tomar a decisão de enviar tropas ao Haiti. Percebia “com preocupação a
participação do Brasil no Haiti, principalmente diante da extensão e duração
da missão. Está cada vez mais complexa a situação e o pior é que não há uma
data para a volta dos soldados brasileiros ao país”.[77]
A crítica de Cardoso foi prontamente refutada pelo então ministro das
Relações Exteriores, Celso Amorim. Desde então a oposição brasileira
mantém-se em surpreendente e revelador silêncio. Tanto que, José Guilhon
de Albuquerque – ferrenho crítico da política externa de Lula e um dos
ideólogos do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) – em artigo
condenando o intervencionismo de Brasília nos assuntos políticos internos da
América Latina, sequer menciona o caso haitiano.[78]
Instalada, em julho de 2004, com o beneplácito da ampla maioria da
esquerda latino-americana, a Minustah fortaleceu-se ao longo do tempo.
Quando constituída havia esperança de que sua permanência seria de curta
duração. Apesar do terremoto de 2010, da epidemia de cólera e da recorrente
instabilidade política – temas incompatíveis com o capítulo VII da Carta das
Nações Unidas que sustenta as Operações de Paz – a Minustah fincam
profundas raízes em solo haitiano. A contradição congênita entre a natureza
do desafio e os instrumentos para enfrentá-la atingiu seu ápice. O Haiti,
entretanto, tornou-se cliente preferencial do CSNU. Dificilmente deixará de
sê-lo em um futuro próximo.
CAPÍTULO V – A MINUSTAH: UMA DERRADEIRA
INTERVENÇÃO?

Como exercício militar a Minustah é excelente. No entanto, como Operação de Paz, ela não tem mais
sentido.
Augusto Heleno Ribeiro Pereira (2010). Primeiro Force Commander da Minustah

A viagem de Aristide ao exílio contará, antes que ele encontre refúgio


e abrigo na África do Sul, com peripécias dignas do roteiro de uma película
de duvidoso humor.
Os que observam a cena da decolagem do avião da única pista do
aeroporto Toussaint Louverture estão satisfeitos. Conseguiram, sem
derramamento de sangue e ausentes maiores contratempos, fazer com que a
Presidência de Aristide pertencesse ao passado.
Ainda há, no entanto, outros desafios. De imediato, conceder a
poltrona presidencial a um novo locatário. Assim, escassas horas após
Aristide abandonar Porto Príncipe, presta juramento como 54º presidente do
Haiti, seguindo os preceitos constitucionais, o insípido jurista Boniface
Alexandre – então presidente da Corte Suprema. A presença dos
embaixadores dos Estados Unidos e da França na cerimônia que ocorreu na
residência do primeiro ministro Yvon Neptune, não deixa pairar qualquer
dúvida sobre o patrocínio da operação.
Antes do entardecer do fatídico dia, já munida com a demanda de
intervenção de Boniface Alexandre – contornando assim os impedimentos
contidos no parágrafo 7º do artigo 2º da Carta das Nações Unidas[79] – o
Conselho de Segurança adota a Resolução 1.529, na qual reconhece e
legitima o golpe. À luz do Capítulo VII da Carta,[80] patrocina a MIF,
encarregada de manter a ordem no Haiti.
Em suas alegações o CSNU considera que “la situation en Haïti
constitue une menace pour la paix et la sécurité internationales et pour la
stabilité dans les Caraïbes, en particulier parce qu`elle pourrait provoquer un
exode vers d`autres Etats de la sous-région. »
A leviandade com a qual o CSNU define um conflito político de
alcance estritamente doméstico, caracterizando-o como uma ameaça à paz
regional, impregnará de maneira indelével e permanente a ação da
Comunidade Internacional no Haiti.
A partir do momento em que são lançadas as equivocadas premissas,
impregnadas pelos inquestionáveis poder e direito que emanam das
Resoluções do CSNU, o complexo dilema haitiano se transforma em simples
questão de segurança militar. O Haiti é um Estado perigoso. Seus habitantes
constituem uma ameaça regional e devem continuar sendo prisioneiros de sua
própria ilha.
O medo, a ignorância, o descaso e a indiferença são péssimos
conselheiros. Ao longo dos anos seguintes a Comunidade Internacional
pagará, juntamente com a grande maioria da população haitiana, um alto
preço pela equivocada e simplista avaliação.
Fazem parte da MIF militares do Canadá, Estados Unidos e França.
Como prenúncio do que ocorrerá na seguinte Missão, participam militares
chilenos. A iniciativa do governo socialista chileno permitirá que o primeiro
Representante do Secretário Geral das Nações Unidas no Haiti seja Juan
Gabriel Valdés, próximo colaborador do Presidente Ricardo Lagos. O
mandato da MIF expirará em 1º de junho de 2004, quando deverá ser
substituída por importante missão nos parâmetros estabelecidos para as
operações de paz das Nações Unidas.
Sondado para tomar parte da Missão que se prepara, o Brasil reluta.
Seus representantes nas Nações Unidas tentam fazer com que o embasamento
legal da futura Missão repouse no Capítulo VI (construção da paz por meio
do Règlement pacifique des différends), descartando a imposição da paz
prevista no Capítulo VII da Carta da ONU.
Para vencer as reticências brasileiras é proposto ao país assumir o
comando da vertente militar da futura Missão. Tal situação de mando
permitiria colocar em prática no Haiti a tática utilizada por Brasília em suas
recentes participações em operações de paz no Timor Leste e no continente
africano.[81]
Como exercício para a tropa, a operação no Haiti é tentadora, pois
segura. Movimentam-se equipamentos, material humano, se desenham
estratégias de combate, se prepara a todos para a ação bélica. Ora, como não
há quem combater, tampouco haverá ação bélica. Não havendo combate, não
existirá morte de homens. A não ser por acidentes.
O exemplo das tropas brasileiras é eloquente. Passaram pelo Haiti,
onde permaneceram por seis meses, desde julho de 2004 até maio de 2014,
mais de 30.000 militares brasileiros. Trata-se do mais numeroso contingente
da Minustah. Tivemos 22 baixas, sendo 18 quando do terremoto e as demais
em acidentes e suicídios. Nenhum militar brasileiro foi perdido pela ação do
suposto inimigo. Em ação o Brasil teve zero baixa no Haiti.
Para os responsáveis militares engajados na Minustah, o fato de
exercitarem a tropa em condições reais, cooperando com vários exércitos em
ação num país estrangeiro e tendo parte importante de seus custos ressarcidos
pelas Nações Unidas, representa grande atrativo, nunca encontrado quando
realizam manobras conjuntas ou em solo pátrio. O corolário desta situação
idílica é a ausência de riscos e de perdas humanas.
Iludido com a possibilidade de vincular os dispositivos contidos nos
capítulos 6 e 7 – uma espécie de Doutrina 6 e ½ – ou seja, entre imposição e
construção da paz, entre ruptura e diálogo, entre intervenção militar e apoio
policial, entre segurança e desenvolvimento, o Brasil finalmente aceita o
convite. Ao fazê-lo, levará consigo ao Haiti militares dos demais Estados
membros do Mercosul.
A batalha entre os dois modelos marcará de maneira indelével o
percurso da futura Missão. Desentendimentos, embates, críticas e dramas –
inclusive a trágica morte do general Urano Teixeira da Matta Bacellar a qual
será abordada posteriormente – estarão acompanhando-a permanentemente.
Em 30 de abril de 2004, o CSNU adota a Resolução 1.542 que fixa
condições e mandato para uma Mission des Nations Unies pour la
stabilisation en Haïti. A utilização do substantivo feminino estabilização,
oriundo do verbo transitivo estabilizar, revela a preocupação dos redatores
em transmitir a positiva intenção de normalizar o irrequieto Haiti.
Desconsiderando a imoralidade da intenção em petrificar uma
realidade alicerçada nas terríveis condições socioeconômicas imperantes no
país, o mais chocante da estratégia das Nações Unidas encontra-se no fato de
buscar estabilizar o Haiti por meio da força. Trata-se da reiteração de
estratagema cujos resultados fracassaram rotundamente no passado.
Composta de uma minoria de civis, de um número razoável de
policiais e de uma importante força militar, a nova Missão deverá substituir a
MIF em 1º de junho. Por sua composição, evidenciado fica a tese vencedora
da queda de braço: o Haiti permanece sendo uma questão afeita à segurança
regional e, portanto, cabe aos militares enfrentá-la.

Figura 8 – Composição da Minustah segundo sua especialização


O

Fonte: DPKO, Nações Unidas

O Governo dos Estados Unidos desempenha papel fundamental no


desenho da Minustah e na obrigação feita aos haitianos de se curvarem ao
que Washington entende por democracia.
Cabe lembrar que em oito de junho de 1982, diante do Parlamento
britânico, Ronald Reagan anunciava a criação do National Endowment for
Democracy – fundo financiado pelo Governo dos Estados Unidos para apoiar
partidos políticos e organizações supostamente democráticas no exterior.
Não deve haver ilusões, todavia. A verdadeira cruzada democrática
faz com que o conceito se transforme rapidamente em arma política a
defender os interesses nacionais dos Estados Unidos. Os múltiplos exemplos
centro-americanos indicam que para Washington pouco importam os
processos democráticos, desde que seus resultados não contrariem seus
interesses imediatos na região. Em síntese, “a democracia é essencialmente o
que diz serem os Estados Unidos e não um regime que institucionaliza a
incerteza”.[82]
Em âmbito continental com a adoção do Compromisso de Santiago
(1991), prelúdio à assinatura da Carta Democrática Interamericana (CDI)
firmada em 2001, se impõe aos Estados americanos o monopólio da
democracia representativa como único e exclusivo sistema de organização
política. Tem início uma fase histórica que pode ser definida como sendo a da
ditadura da democracia.
O papel dos Estados Unidos, ao longo do século 20, na política
haitiana é incontornável. Não poderia deixar de sê-lo também no seio das
organizações internacionais – especialmente da ONU – que intervém
constantemente no Haiti.
Susan Rice – Conselheira para a Segurança Nacional do Presidente
Obama desde julho de 2013 – quando representante permanente dos Estados
Unidos na ONU, explicitava com surpreendente transparência o lugar
ocupado pelas Nações Unidas na política externa de Washington. Para ela, “If
the United Nations didn`t exist, we would have to invent it”. [83]
Entre as funções da ONU de especial interesse dos Estados Unidos,
Rice cita as que envolvem as Operações de Paz. Ela tranquiliza seu auditório
pois, por um lado, “the UN Security Council can`t even issue a press release
without America`s blessing…Every peacekeeping mission must be approved
by the Security Council – where America has a final say over all decisions.”
Assim sendo, não há risco algum de ver contrariados os interesses de
Washington.
Sobre a comparação de custos entre operações de paz sob os auspícios
das Nações Unidas e intervenções militares de Washington, Susan Rice
informa:

Each UN peacekeeper costs a fraction of what it


would cost to field a U. S. soldier to do the same job.
So what`s better, for America to bear the entire
burden, or to share the burden for UN peacekeepers
and pay a little more than a quarter of the cost? I
don`t know about you, but personally, I like places
where I get 75 percent off.

Podemos adicionar uma terceira razão: como estas foram terceirizados


pelas Forças Armadas do Terceiro Mundo, os militares dos Estados Unidos
não sofrem perdas, uma vez que seus raros militares e policiais ocupam
exclusivos postos de mando. Com efeito, dos atuais “120.000 peacekeepers,
just 87 are Americans in uniform.”
No caso haitiano, a inédita composição do grupo de Estados
mediadores informa sobre a possibilidade de nos encontrarmos no limiar de
uma nova etapa da mediação e da solução de conflitos, por meio de um
instrumento coletivo e supostamente desinteressado. A franqueza contida na
pouco conhecida palestra de Susan Rice, além de fornecer a dimensão exata
do alcance e da instrumentalização das Operações de Paz pelos Estados
Unidos, indica que, ao contrário do apregoado, trata-se de nova vestimenta
para uma velha prática intervencionista estrangeira no Haiti. Em qualquer
hipótese, os desafios que se apresentam para o Haiti são multifacetados e de
grande complexidade, a escapar aos cânones das Missões de Paz.
O funcionário das Nações Unidas, ex-ministro das Relações
Exteriores do breve governo de Leslie Manigat de 1988, Gérard Latortue,
assume o posto de primeiro ministro do Haiti em 12 de março de 2004.
Homem de confiança dos Estados Unidos, Latortue havia saudado os ex-
militares de Guy Philippe como sendo “les combattants de la liberte”. Ele
conduzirá o Governo Provisório até a assunção do governo democraticamente
eleito em eleições presidenciais previstas para o início de 2006.
Em 9 de julho de 2004, a Organização das Nações Unidas assina com
o Governo haitiano um “Accord concernant le statut de l`opération des
Nations Unies en Haïti.” Trata-se de documento fundamental, indispensável
às operações de paz das Nações Unidas. Definidor das responsabilidades do
Estado anfitrião e de raras obrigações feitas aos visitantes, o acordo concede
base jurídica e legaliza a presença da Minustah no Haiti.
No longo e detalhado texto são definidos as imunidades, privilégios e
direitos que beneficiam a Minustah. Ao ser firmado em nome do Estado
haitiano pelo primeiro ministro Gérard Latortue, no entanto, transforma-se
em documento nulo, desprovido de conseqüências jurídicas tanto à luz da
Constituição haitiana de 1987, quanto perante os princípios contidos nas
Convenções de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969 e de 1986.
Vejamos as duas causas que provocam sua absoluta nulidade.
Ao abordar as Attributions du Président de la République, a Seção B,
artigo 139, da Constituição haitiana estipula que o presidente da República
“négocie et signe tous traités, conventions et accords internationaux et les
soumet à la ratification de l`Assemblée Nationale. »
Existem fundadas dúvidas sobre a eventual participação do presidente
Boniface Alexandre nas negociações do Acordo com as Nações Unidas.
Muito provavelmente ele não tenha participado. Conforme consta no
documento depositado nas Nações Unidas, todavia, não há hesitação em
afirmar que ele não assinou o Acordo, o qual tampouco foi ratificado pela
Assembleia Nacional haitiana.
A flagrante dupla inconstitucionalidade torna-o nulo e desprovido de
efeitos jurídicos igualmente diante dos dispositivos contidos nas Convenções
mencionadas anteriormente. O principal desafio à produção de um texto
convencional internacional consiste na identificação de quem possui
autoridade para concluir tratados. Ou seja, o jus tractum, desfrutando assim
do denominado treaty making power.
A ordem constitucional de cada Estado estipula a repartição de
competências entre as autoridades nacionais no processo de conclusão de
tratados. Somente seu estrito respeito reflete o consentimento do Estado em
vincular-se juridicamente ao tratado, constituindo-se assim em conditio sine
qua non para sua eficácia jurídica.
O artigo 14 da Convenção de Viena não elenca as formas internas que
deságuam na expressão do consentimento. Salienta, no entanto, que o
consentimento de um Estado em obrigar-se por um tratado, se manifesta pela
ratificação. Trata-se do ato pelo qual a mais alta autoridade do Estado,
detentora da competência constitucional para concluir tratados e acordos
internacionais, confirma os termos negociados e aceita que eles sejam
definitivos e obrigatórios, comprometendo-se, em nome do Estado, a
executá-los.
Como todo ato jurídico, a validade constitui condição incontornável
para a produção de efeitos. A existência de vício de consentimento – seja pela
incapacidade dos representantes do Estado a concluir tratado, seja por uma
ratificação imperfeita – conduz à nulidade absoluta do ato (Convenção de
Viena, artigo 46, parágrafo 1º).
Com o desrespeito do rito constitucional haitiano e de princípios
jurídicos que regem o Direito dos Tratados, as Nações Unidas demonstram,
uma vez mais, a invariável leviandade com a qual são tratados os assuntos do
país. Encarregada, segundo ela própria, de construir um Estado de Direito no
país, a ONU não obedece sequer seus dispositivos elementares tornando nulo
e sem efeito o texto que fundamenta e que deveria legalizar sua ação no Haiti.
Embora inexistindo base jurídica, as Nações Unidas consideram
vencidos os desafios políticos com a formação do Governo Provisório e
preparam-se para enfrentar a precária situação da segurança pública. Como
fazer com que militares resolvam problemas estritamente policiais? Diferem
totalmente as operações policiais e militares no que diz respeito a sua
finalidade. Além dessa, igualmente são distintas tanto quanto sua natureza,
quanto o perfil profissional, bem como doutrina, treinamento e equipamento
utilizado como apoio.
Muitos exemplos atestam o descompasso entre a realidade da crise
haitiana e o que se propõe a Minustah. Entre eles destacam-se as disfunções
no combate à criminalidade organizada na região de Porto Príncipe,
especialmente a do sequestro. Esta modalidade de crime se transforma em
verdadeira indústria ao longo do segundo semestre de 2005. Somente durante
o mês de dezembro – propício ao incremento da criminalidade – nada menos
de 300 crimes de sequestros são cometidos.
Haviam surgido, ao longo dos últimos anos, sobretudo em Porto
Príncipe, redes organizadas para cometer delitos. Paralelamente aos crimes
comuns existiam outros casos com vínculos políticos que se entrelaçavam
implicando altas personalidades.
O líder da gangue Belekou, uma das mais atuantes de Cité Soleil em
2005, chamava-se Amaral Duclona. Foi acusado pelo assassinato do Cônsul
Honorário francês de Cabo Haitiano – Paul Henri Moural –, crime cometido
em 31 de maio de 2005 em Cité Soleil. Além deste crime, teria também
assassinado um soldado da Minustah.
As origens populares do movimento Lavalas e sua forte presença nos
bairros mais miseráveis da zona metropolitana, na qual imperavam gangues
mafiosas, levaram seus dirigentes a definir, no mínimo, um modus vivendi
com o crime organizado. Não descartando também que as terríveis condições
socioeconômicas do Haiti constituíssem um caldo de cultura a propiciar o
surgimento de atitudes antissociais, principalmente os sequestros e o tráfico
de entorpecentes.
As relações do poder constituído com o crime organizado devem, por
princípio, restringir-se à prevenção e repressão. Há, contudo, experiências
distintas como o acordo garantido pela OEA entre os Maras e o governo de
El Salvador. Ou ainda as negociações envolvendo a Polícia de Boston, nos
Estados Unidos, bem como a de Medelín, na Colômbia. Em 2006 a Polícia de
São Paulo igualmente utilizou-se do diálogo para colocar um freio nas ações
da gangue chamada Primeiro Comando da Capital.
Em certa ocasião, Préval confidenciou que se sentia obrigado a
dialogar com os líderes de gangues. A razão era singela: tanto a Polícia
Nacional do Haiti (PNH) quanto a Minustah não conseguiam eliminá-los e
não restava alternativa a não ser manter contato a fim de dissuadi-los a
abandonar suas ações violentas. Penso, no entanto, não constituir atribuição
presidencial dialogar, por meio de intermediários, com sequestradores e
assassinos, como ocorre no Haiti.
Em razão de sua notória incapacidade técnica, humana e em
equipamentos – além de o Haiti continuar submisso a um embargo de armas
– sempre foi sofrível o desempenho da debilitada Polícia Nacional Haitiana
no combate ao crime organizado. Quanto à Minustah, em razão de seu perfil
predominantemente militar, ela também não estava à altura do desafio. Por
um lado, a Polícia das Nações Unidas (Unpol), apesar de contar com mais de
2.600 profissionais, apresenta pífios resultados. Manifesta sua incapacidade
para a formação de uma nova PNH a qual, após nove anos de treinamento,
encontra-se muito aquém do mínimo de segurança indispensável ao Haiti.
Turmas inteiras receberam seus diplomas na Escola de Polícia, montada pela
Unpol, sem fazer sequer um único exercício de tiro ao alvo em razão do
embargo sobre armas e munições imposto pelo CSNU. A contradição
irresponsável leva à rua os profissionais da PNH sem a mínima preparação.
A Unpol demonstra, igualmente, sua flagrante inépcia nas operações
no terreno, mormente a luta contra o crime organizado colocando em xeque
os fundamentos e objetivos da Minustah.

A dúvida

A adição de uma precária PNH com uma inepta Unpol resulta na


decisão de utilizar o contingente militar para as ações de repressão de
natureza estritamente policiais. Ora, o comando militar da Minustah, o qual
sempre esteve a cargo do Exército brasileiro, opõe-se ao emprego da tropa,
pois “nós não queremos criar feridas piores do que as que já temos.” [84]
Desde que assumiu o comando do contingente militar da Minustah,
em junho de 2004, o general Augusto Heleno Ribeiro, seguindo
rigorosamente a Doutrina 6 e ½ sustentada pelo Brasil, relutava em utilizar a
tropa em operações policiais. Para Heleno Ribeiro “we are not an occupation
force. We refuse to use blind violence. We are a force for peace. Brazil’s
approach is better than using guns and bombs. Haiti is so small that we
cannot make big moves that might disrupt the peace process.” [85]
Parte do contingente militar brasileiro desempenhava com denodo e
eficácia uma obra social que resultou numa diminuição das tensões e um
alívio superficial e passageiro para a população local. A luta contra a
insegurança era acompanhada por Ações Cívico-Sociais (Acisos): reforma de
prédios comunitários; limpeza, pavimentação e manutenção de ruas;
distribuição de alimentos; perfuração de poços artesianos. Houve
aproximação da população com o contingente permitindo que um modus
vivendi fosse estabelecido. O exemplo mais visível do sucesso da Doutrina 6
e ½ resultou na pacificação do até então perigoso bairro Bel-Air, localizado
em frente ao Palácio Nacional. Ele se transformou em cartão de visitas a
comprovar a justeza da estratégia.
Para o general Heleno « Le problème d’Haïti n’est pas seulement
militaire ou policier. Il faut tenir compte des aspects politiques, sociales,
écologiques e militaires pour que la Mission obtienne un succès. » [86]
Heleno reconhece a situação precária de segurança na região
metropolitana, contudo ele insistiu para que “les autorités améliorent les
conditions d’existence de la population qui vit dans la pauvreté et le
chômage. » [87]
Diante da proposta brasileira de se utilizar militares para outros fins
que não a guerra e o combate, a reação foi imediata, generalizada e vigorosa.
Em Porto Príncipe, tropas jordanianas se opunham abertamente às veleidades
brasileiras e continuavam operando como se estivessem em campo de
batalha. Não se afastavam do interior de seus blindados e disparavam contra a
população civil.
Os estrategistas responsáveis pelo Departamento das Operações de
Paz das Nações Unidas, embora publicamente não se opusessem à estratégia
brasileira, demonstravam ceticismo. A justa e correta alegação de que ela era
insustentável a médio e longo prazo, ausente sua apropriação pela população
e pela PNH, escondia dois outros temores. Por um lado, a contradição
congênita entre as funções exercidas pelo DPKO e a proposta brasileira. Se
não fosse para fazer a guerra, por que enviar militares ao Haiti? Qual seria o
papel do DPKO em tais circunstâncias?
Por outro lado, os debates no Conselho de Segurança indicavam que
Rússia e, em menor medida a China, apoiavam a Operação de Paz no Haiti,
com a condição de seu enquadramento nos estritos parâmetros previstos pelo
Capítulo VII da Carta. Em caso contrário, Moscou ameaçava utilizar seu
poder de veto quando da próxima renovação do mandato da Minustah.[88]
O Tridente Imperial (Estados Unidos, Canadá e França) inspirava a
posição do DPKO e confortava suas reservas e críticas à Doutrina 6 e ½. Em
depoimento público no Congresso Nacional brasileiro, em dezembro de 2004,
o general Heleno denunciou que recebia “muita pressão para usar a violência,
para ser mais robusto na utilização da força, principalmente dos países mais
interessados na área e cuja atuação de força de paz difere da nossa.” [89]
Em maio de 2005, o Embaixador dos Estados Unidos em Brasília,
John Danilovich, em encontros com Marco Aurélio Garcia e Antonio
Patriota, coloca em evidência as críticas. Na oportunidade ele ameaça, caso
não fossem tomadas iniciativas para controlar as gangues que estariam
“perdendo o medo”, enviar tropas norte-americanas ao Haiti!
Com razão o ministro Celso Amorim constata a impossibilidade de
solucionar os problemas de segurança no Haiti isolando-os da situação
política, humanitária, social e econômica. De fato, os primeiros decorrem dos
demais. Como, então, explicar o envio de militares brasileiros ao Haiti sem
concomitantemente atacar os demais problemas ? Esse dilema constitui a
primeira contradição da Doutrina 6 e ½. Há outras. Seriam os militares os
cooperantes mais aptos para promover as mudanças de que o Haiti necessita?
O Tridente Imperial condicionava qualquer investimento em projetos
socioeconômicos à existência de uma improvável situação de tranquilidade
absoluta na área securitária. Ele não levava em consideração os apelos do
general Heleno, que lamentava que “os projetos de desenvolvimento não
decolam e que tais iniciativas aumentariam a segurança”.[90] Por sua vez, o
Brasil apesar de grande empenho, não dispunha de capacidade financeira e de
vontade política para enfrentar os desafios econômicos haitianos.
De maneira crua, Amorim avalia que para o Tridente Imperial, o Haiti

é um problema de segurança, de migração e de


narcotráfico. Então na medida em que esses
problemas estejam assegurados, com o envio de
algumas tropas e a Guarda Costeira [dos Estados
Unidos] tomando conta, essas outras questões que
envolvem um movimento financeiro de mais longo
prazo não se obtêm com facilidade. [91]

O comando da Minustah fora instalado no Hotel Montana, em Pétion-


Ville. Nele o Force Commander dispunha de um apartamento privado.
Ocorre que na terça-feira, 16 de novembro 2004, em torno das 21 horas, uma
das duas irmãs proprietárias do hotel, Nadine Cardozo Riedl, é sequestrada
por quatro indivíduos em uma rua próxima ao hotel. Sua libertação aconteceu
oito dias mais tarde em troca do pagamento de resgate. O general Heleno
negociou com os seqüestradores e foi pessoalmente, contrariando a opinião
de todos, fazer a entrega do valor do resgate e recuperar, sã e salva, a vítima.
Afugentadas de Bel-Air, as pequenas gangues haviam migrado para
Cité Soleil, a partir da qual operavam. Surgia um novo líder que pretendia se
transformar em mito: Dread Wilmé. A ousadia do sequestro de Nadine
Cardozo e as pressões exercidas sobre o comando da Minustah surtem efeito.
Apesar de o general Heleno afirmar “que a agenda de operações é de minha
exclusiva competência”,[92] a Minustah lança a 6 de julho de 2005, uma
vasta e desastrada operação para eliminar Dread Wilmé.
Utilizando-se de helicópteros e de blindados do modelo Urutu,
centenas de soldados invadem Cité Soleil. São feitos 22 mil disparos, alguns
deles, segundo depoimentos dos moradores, provinham dos helicópteros que
sobrevoavam a favela. A organização Médicos sem Fronteiras, destacou que
50 pessoas foram mortas – entre elas Dread Wilmé – e havia mais de cem
feridos. Entre as vítimas estão mulheres e crianças.
Apesar do aparente sucesso da incursão, há desconforto com seus
efeitos colaterais. O general Heleno reforça sua renitência ao confirmar a
inadaptabilidade e a falta de experiência do contingente em operações
estritamente policiais, no entanto seus dias estão contados à frente da
Minustah militar, pois seu mandato em breve expirará. Seus numerosos
críticos aguardam impacientes pela definição do novo titular e a almejada
mudança de estratégia.
Contrariando a doutrina e a prática das Operações de Paz das Nações
Unidas, o Brasil consegue indicar outro de seus oficiais para substituir o
general Heleno no estratégico e sensível posto.
Em setembro de 2005 assume o Force Commander o general Urano
Teixeira da Matta Bacellar. Contrastando com a efusiva, alegre, irrequieta e
descontraída personalidade de Heleno, seu substituto possui um
temperamento sereno, ponderado e retraído. Após o furacão Heleno, Brasília
envia um homem taciturno, solitário e silencioso, propenso mais a ouvir do
que a falar.
Logo, porém, os críticos de Heleno se decepcionam pois, apesar das
contrastantes personalidades, nenhuma mudança opera-se na Doutrina 6 e ½.
Comprova-se que se trata de uma postura institucional e de um princípio de
Estado. Além disso, Heleno e Bacellar são velhos conhecidos, foram colegas
de turma e admiram-se mutuamente. Orientado por Brasília e instruído por
Heleno, Bacellar dará continuidade à idêntica estratégia.
A assunção de Bacellar aponta para uma única diferença em relação à
situação anterior: aos críticos tradicionais, adicionam-se o influente setor
econômico haitiano e o Representante Especial do Secretário Geral da ONU
– o chileno Juan Gabriel Valdés – na condição de Chefe da Minustah.
Autoritário, prepotente, imbu de soi-même e superficial, Valdés faz parte do
grupo de políticos socialistas que, sob a liderança do ex-presidente chileno
Ricardo Lagos, monopoliza a questão haitiana no Chile. Ao longo da crise,
muitos ocuparão postos de destaque na estrutura das Nações Unidas e da
Minustah. O próprio Ricardo Lagos dirigirá, a partir de julho de 2010, um
projeto intitulado Leadership Global pour la Reconstruction d`Haïti,
vinculado ao Clube de Madri.
Interpretando erroneamente a personalidade reservada de Bacellar
como demonstração de debilidade e hesitação, Valdés pretende alcançar o
que jamais havia conseguido com Heleno: impor nova conduta ao Force
Commander, fazendo com que seja abandonada a Doutrina 6 e ½. Como
veremos logo a seguir, a tática de Valdés resultará em drama.
Ao final de 2005, apesar da violenta incursão militar de julho a Cité
Soleil, prosseguia a onda de sequestros. Como o país estava em plena
campanha eleitoral – época propícia para surtos de violência – era
indispensável uma ação decidida a fim de facilitar a transição do governo
provisório de Latortue ao novo mandatário. Ora, nos últimos dias de
dezembro os sequestradores atacam a dois técnicos em informática
estrangeiros, a serviço da OEA e do CEP e encarregados da organização do
pleito. A realização das eleições corria perigo. A partir de então, aumentam
de intensidade as incessantes pressões exercidas para que Bacellar abandone
a Doutrina 6 e ½.
Tanto este sequestro quanto dezenas de outros similares tiveram como
pano de fundo um único cenário: Cité Soleil. A maior favela do Hemisfério
Norte.
São aproximadamente 200 hectares de planície localizados entre a
pista do aeroporto Toussaint Louverture e a baía de Porto Príncipe. Jamais
acompanhados pelo Estado, não há informações confiáveis sobre seu número
de habitantes. Estima-se que alcance 300.000 pessoas.
Vasta esplanada, inóspita e pantanosa, ela constitui uma espécie de
delta que corre em direção ao mar. Terá seu destino mudado em 1958,
quando o tirano François Duvalier construiu 52 casas para trabalhadores da
usina da Haitian American Sugar Company (Hasco) ali localizada. Com a
certeza de seu brilhante futuro, Papa Doc não hesitou em honrar o nome da
enfermeira com a qual ele havia se casado. Assim nasceu Cité Simone.
Em 1966 novas casas foram construídas para alojar os desabrigados
pelo incêndio do bairro La Saline. Em 1972, sob a batuta de Baby Doc, são
transferidos para Cité Simone os sobreviventes de outro grande incêndio
ocorrido nas imediações do Mercado Central.
Com o fim da dinastia Duvalier, seus vestígios também deveriam
desaparecer. A “cidade” já era um imenso conglomerado abandonado à
própria sorte e recebeu então seu batismo definitivo: Cité Soleil.
Em realidade a imensa aglomeração é composta por um conjunto de
bairros (Bois Neuf, Boston, Brooklin, Drouillard, Linthau) com espaços
delimitados cujas fronteiras são reconhecidas somente pelos residentes.
Todos são marcados por idêntica paisagem: minúsculas casas levantadas com
tijolos pré-fabricados ou com tábuas e cobertas por um telhado de zinco.
Seis grandes canais foram construídos para drenar o pantanoso delta.
Outras, contudo, são suas finalidades, pois se dirige em direção à baía
transportando, a céu aberto, os esgotos dos bairros que se encontram a
montante. Em suas imediações, o magnífico azul turquesa do Mar do Caribe
se tinge de negro. Este é o cenário. A seguir o drama segundo relato de uma
das vítimas.

O crime

Na manhã do dia 28 de dezembro de 2005 três pessoas, entre os quais


dois técnicos da OEA, se dirigem ao Centre de Tabulation de Votes (CTV)
localizado na Société Nationale des Parcs Industriels - Sonapi (zona industrial
localizada próxima a Cité Soleil) para efetuar trabalhos de instalação dos
equipamentos de computação para as eleições presidenciais de fevereiro de
2006.
Ao alcançar as proximidades das instalações da Sonapi surgiu,
repentinamente, um indivíduo em uma das esquinas e se coloca frente à
caminhonete apontando um fuzil FAL e ordenando que parasse. Logo
apareceram outros indivíduos fortemente armados com revólveres e armas de
longo alcance. Abriram as portas do veículo e dele retiraram os passageiros.
Os sequestradores se comunicavam unicamente em kreyòl.
Foram conduzidos para uma rua estreita e obrigados a correr, com a
cabeça abaixada, por aproximadamente cem metros, sendo depois colocados
dentro de uma ampla casa.
Estavam rodeados por esses indivíduos que os miravam com suas
armas. Um deles saiu da casa e, aos gritos, começou a disparar para o alto.
Ele parecia furioso e discutia rudemente com os demais. Neste momento
surgiram outras pessoas que os despojaram dos pertences: celulares, relógios,
carteiras, etc.
Após uns minutos dois sujeitos retiraram da casa um dos técnicos
sequestrados e obrigaram-no a correr. Ouviram-se disparos provenientes da
casa onde permaneciam os demais sequestrados. Cada disparo era
acompanhado por gritos. Logo a seguir fizeram-no subir numa velha moto e o
conduziram para o interior de Cité Soleil. Percorreram ruas estreitas e o
cheiro era insuportável, das águas negras e fétidas. Cruzaram por mulheres e
crianças que sabiam o que estava ocorrendo, mas se limitavam a observar.
Alcançaram um riacho e por sua margem chegaram próximo a uma
avenida. Quando nesta desembocaram, aproximadamente a uma quadra,
encontraram um tanque de combate com soldados da Minustah. Ele se
movimentava em sua direção! Imediatamente, tomados de pânico, os
sequestradores abandonaram a motocicleta e o sequestrado. Fugiram em
desabalada carreira.
Aliviada, a vítima levantou a moto e caminhou em direção ao tanque,
que continuava avançando em sua direção. Quando estava próximo, jogou a
moto em frente ao tanque. Por incrível que isso possa parecer, o tanque não
se deteve. Os soldados jordanianos permaneciam no seu interior sem reagir.
Decidiu, então, subir no tanque e sentar-se em cima dele.
Logo começou a ouvir disparos a certa distância e temeu que fosse o
alvo. Golpeou furiosamente a escotilha do tanque e finalmente um soldado a
abriu. Com cara de poucos amigos, ordenou com gestos que descesse do
tanque. Como relutava em fazê-lo, um dos soldados o golpeou o peito com a
culatra de seu fuzil automático leve (FAL). Tentou fazer com que eles
ouvissem. Explicou em inglês, espanhol e em francês quem era e que havia
sido sequestrado. Os soldados não entendiam ou faziam de conta que não
entendiam.
Então um dos soldados apontou seu fuzil e obrigou o sequestrado a
descer do tanque, contudo ele não poderia perder a oportunidade de safar-se
do sequestro. O tanque da Minustah era sua única salvação. Resolveu agarrar-
se à escada que se encontra na lateral externa do tanque. Foi quando ouviu
um disparo feito por um soldado. Por meio de sinais, este advertiu que caso
não se afastasse do tanque, eles disparariam contra seu corpo.
O refúgio da escada parecia ter sido sua derradeira chance. Desceu do
tanque. Não entendia como não o haviam reconhecido, pois evidentemente se
tratava de um estrangeiro em dificuldades e que deveria ser auxiliado. Não
poderia havia dúvidas, a começar pela cor de sua pele.
Não se dando por vencido, o sequestrado decidiu caminhar ao lado do
tanque. Estaria desprotegido. Embora ainda na mira dos sequestradores, mas
com a possibilidade de fugir de Cité Soleil e dos seus algozes quando o
tanque finalizasse sua patrulha e retornasse à base. Qual não foi sua surpresa
– trata-se, de fato, de uma sequência de surpresas – quando um dos soldados
do tanque disparou em direção ao solo, muito próximo a ele. Resíduos de
terra levantados pelo impacto do projétil atingiram seus olhos.
Finalmente entendeu que estava correndo mais riscos com os soldados
da Minustah do que com os sequestradores.
Saiu em desabalada corrida, fugindo do tanque, pois temia que
disparassem novamente. Retornou onde estava a motocicleta. Colocou-a em
pé. Tentou mas não conseguiu fazê-la funcionar. Decidiu empurrá-la e
escapar o mais rapidamente possível. Não foi longe, não. Aproximadamente a
200 metros, uma massa humana saiu de suas casas e o capturou. Retornou às
mãos dos sequestradores. Logo foi agredido por ter tentado evadir-se. Os
soldados do tanque da Minustah observavam a cena. Nada fizeram.
Apesar de se encarregar da segurança de vastas áreas da região
metropolitana de Porto Príncipe, inexplicavelmente o contingente militar
brasileiro a serviço da Minustah abriu mão da nevrálgica e sensível zona de
Cité Soleil. Os militares jordanianos e filipinos, desprovidos de experiência
de atuar em favelas, são os responsáveis pela área.

Mario Andresol, diretor da Polícia Nacional Haitiana, não poupa


críticas à atuação da Minustah na mencionada favela. O desabafo de Andresol
pode explicar o aparentemente inexplicável, pois para ele “la promiscuité
entre les Jordaniens et les gens de Cité Soleil a généré une collusion objective
avec les gangs. »[93]
Conduzido para o interior de Cité Soleil, o sequestrado recebeu a
visita de alguém que parecia ser o chefe da gangue. Era um sujeito alto,
gordo e falava espanhol. Disse que lamentava que seu país e sua gente o
tivessem maltratado. E prosseguiu:

Peço desculpas pelo que aconteceu. Mas gostaria que


entendesses que nossas crianças, mulheres e idosos
necessitam alimentar-se, vestir-se e aqui no Haiti é
muito difícil encontrar trabalho. Os governantes estão
preocupados unicamente em encher os bolsos e
esquecem-se dos pobres.

Disse ainda que caso quisessem resgatá-los teriam de pagar US$ 1


milhão, caso contrário todos morreriam. Posteriormente diminuiu a soma
exigida. Seriam US$ 250 mil por cada um dos três sequestrados.
Não seria surpresa que o “sujeito alto, gordo e que falava espanhol”
fosse Duclona. Ele se portou educadamente e deu demonstrações de
conhecimento e de apreço ao trabalho feito pela vítima, portanto parecia não
ser um simples criminoso.
Após 48 de negociações envolvendo instituições haitianas e
estrangeiras, bem como o pagamento de um resgate, as três vítimas foram
liberadas no último dia de 2005.[94]
Este crime revela informações sobre o modus operandi da indústria do
sequestro que atuava na região metropolitana da capital haitiana. Apesar de
propiciar prova suplementar sobre o desajuste de uma Operação de Paz
quando deve empreender ações de natureza policial – que deveria conduzir
naturalmente a mudanças estratégicas da Minustah – o episódio provoca
efeito exatamente inverso: ele acirra ainda mais as críticas dos opositores à
Doutrina 6 e ½ a exigir o emprego maciço da força militar nas operações
contra o crime organizado. Seu principal porta-voz é o Representante do
Secretário Geral das Nações Unidas no Haiti, Juan Gabriel Valdés.

O drama

Na madrugada de sábado, 7 de janeiro de 2006, um tiro ecoou no


Hotel Montana. Funcionários acorrem em direção ao som e penetram no
apartamento localizado em sua ala moderna. Atravessam-no. Quando
alcançam a varanda, encontram o corpo de um homem, aparentemente morto.
Vestia roupas de baixo. Ao seu lado, uma pistola. Eram seis horas da manhã.
O horário dos suicidas. A crise haitiana acabava de provocar a primeira
vítima fatal brasileira. Urano Bacellar, renomado e distinguido general do
Exército, comandante de sua mais importante e numerosa operação militar no
exterior desde a Segunda Guerra Mundial, jazia ensanguentado no frio piso.
Suicídio? Execução? Atentado? Vítima da ação de um sniper?
Poucos dias depois cheguei ao Hotel Montana, enviado pelo governo
brasileiro ao Haiti para acompanhar as últimas semanas da campanha
presidencial e desenhar cenários políticos pós-eleitorais. Naturalmente, logo
meu interesse centrou-se sobre as circunstâncias, razões e consequências da
tragédia do general Bacellar.
A primeira versão, fornecida pelo comando das Forças Armadas
brasileiras no Haiti, revela que a morte de Bacellar decorrera de “um acidente
com arma de fogo.” Após uma análise feita em Porto Príncipe durante a qual
os peritos da ONU encontraram vestígios de pólvora em uma de suas mãos, o
governo brasileiro decide repatriar imediatamente o corpo a fim de realizar
uma autópsia detalhada no Instituto Médico Legal (IML) de Brasília.
Apesar de o ministro Celso Amorim considerar “pouco provável” a
hipótese de suicídio – posição similar à do Comando do Exército em Brasília
– o laudo preliminar do IML vaza a informação de que o suicídio é a causa da
morte de Bacellar. Segundo o IML, inexistem lesões no corpo, excetuando o
projétil fatal que foi disparado por arma de fogo dentro da boca da vítima,
excluindo, desde logo, a possibilidade de luta corporal com um hipotético
agressor. Confirma-se que na cena do drama não havia sinais que indicassem
a presença de terceiros. Bacellar estava só e por razões desconhecidas havia
se suicidado.
O mistério permanecia inteiro, uma vez que Bacellar não havia
deixado nota explicativa, sequer carta de despedida para a família.
O suicídio do chefe militar de uma das mais importantes Operações de
Paz das Nações Unidas em curso provoca enorme comoção no contingente,
mormente no brasileiro, bem como lança interrogações sobre as razões do
gesto. Todos os envolvidos, contudo, parecem tomados por uma única e
exclusiva preocupação: abafar o caso e virar a página.
Tentando colocar um ponto final às discussões sobre a tragédia,
Damian Cardona, porta-voz da Minustah, convoca uma entrevista coletiva
para prestar esclarecimentos em nome de Juan Gabriel Valdés.
Cardona corrobora o laudo do IML ao indicar que “a conclusão das
Nações Unidas, assim como a do Ministério da Defesa do Brasil, é que o
general Bacellar, que comandava a Força Militar, se suicidou”.
Embora muitas suspeitas fossem suscitadas sobre as circunstâncias da
morte de Bacellar, a conclusão oficial definitiva condiz com a verdade do
fato. Logo o caso foi encerrado de forma abrupta, como se natural fosse que
um militar de alta patente, ocupando a função mais relevante em sua carreira
e comandando a mais importante ação militar brasileira no exterior desde o
final da Segunda Guerra Mundial viesse, sem maiores explicações, a se
suicidar.
A trágica decisão de Bacellar se insere no processo desgastante ao
qual ele é constrangido, tal como fora o general Heleno, para que renunciasse
a Doutrina 6 e ½. Há, todavia, um elemento desencadeador que ocorre poucas
horas antes do fatal gesto. Ao analisá-lo pode-se melhor avaliar com que
estado de espírito Bacellar se recolhe aos seus aposentos na fatídica noite.
Na sexta-feira, 6 de janeiro de 2006, véspera da tragédia, o presidente
da Câmara de Comércio do Haiti, Reginald Boulos, e o multiempresário
Andy Apaid – atores incontornáveis nas recentes crises políticas – apelam
para um lockout como forma de protesto à onda de sequestros que assola
Porto Príncipe. Interlocutores constantes de Valdés e dispondo de forte apoio
dos Estados Unidos, inclusive a nacionalidade, eles pretendem impor uma
greve patronal fechando as portas das raras atividades produtivas haitianas.
A reação de Valdés foi imediata: após o apelo ao lockout, anuncia o
lançamento de uma operação de grande envergadura para ocupar
militarmente Cité Soleil. Segundo ele, “we are going to intervene in the
coming days. I think there`ll be collateral damage but we have to impose our
force, there is no other way.” [95]
Encontrando novos aliados em sua luta contra a Doutrina 6 e ½,
Valdés convoca o general Bacellar para uma reunião de trabalho no final da
tarde do dia 6. Supostamente a conversa serviria para definir medidas de
segurança, diante da nova situação que adviria do lockout, bem como
medidas preventivas para impedir o sequestro de estrangeiros, como
acontecera com os especialistas de OEA recentemente liberados.
Valdés pretendia também chamar a atenção de Bacellar por suas
declarações feitas recentemente à Agência Reuters. Elas constituíam o exato
contrapé da posição do Representante do SGNU. Com efeito, o Force
Commander enfatizara que “his job was to defend the Haitian constitution,
but not to fight crime”
Bacellar, portanto, fora convocado a uma reunião de trabalho
estritamente técnica e interna da Minustah. Ora, ao chegar ao escritório de
Valdés, ele foi surpreendido pela presença de Boulos e de Apaid, convidados
do chileno. A natureza do encontro muda radicalmente. Ele se transforma em
exercício visando a humilhar o Force Commander, destituindo-o de sua
autoridade.
Encorajado pela presença dos empresários e pretendendo demonstrar o
poder que dispõe – o que havia sido impossível a época do general Heleno –
Valdés desrespeita, ofende, insulta e vilipendia a estratégia de Bacellar. Exige
obediência. Informa que, independentemente da opinião de seu Comandante,
o contingente militar ocupará Cité Soleil. Presencia a cena, com visível
satisfação, o general Mahamoud Al-Husban, responsável pelo comando das
tropas jordanianas, rival de Bacellar e adepto declarado da utilização da força
militar.
Bacellar entende a mensagem: no caso de que ele não se dobre à
vontade de Valdés e descumpra a ordem de invadir Cité Soleil, Al-Husban,
seu subordinado hierárquico, está disposto a fazê-lo.
O general brasileiro deixa a reunião com a consciência e o coração em
pedaços. Introspectivo, não demonstra seus sentimentos. Embora cada gesto,
palavra e olhar de seus agressivos interlocutores tenham sido sentidos como
uma punhalada. Acuado, pouco discutiu. Apesar da leviandade de Valdés ao
convidar estranhos a uma reunião de trabalho, Bacellar respeitou a hierarquia
e que conferia autoridade ao Representante do SGNU.
Impossível cumprir a ordem sem trair o que havia de mais importante:
o respeito à Doutrina 6 e ½, aos princípios que regem a atuação brasileira nas
Operações de Paz e ao seu colega, amigo e predecessor, o general Heleno.
Não cumpri-la significava ver seu subalterno jordaniano jogar por terra o
princípio hierárquico, sua respeitabilidade pessoal e profissional.
Que fazer? Solitário em seus aposentos, após uma noite de tormentos,
Bacellar decide salvar a honra ao preço da vida.
A situação de Valdés é delicada, pois poderiam vir a público as
circunstâncias que precederam o suicídio de Bacellar e que colocam em
evidência seu envolvimento. Assim, o Representante Especial do Secretário
Geral da ONU tenta afastar-se do drama e quando a Minustah apresenta sua
versão oficial e definitiva o faz através do porta-voz Cardona. Valdés sequer
comparece à coletiva de imprensa.
Pressionado pelos acontecimentos e tentando eximir-se de qualquer
responsabilidade, Valdés se esforça em pôr ponto final às discussões ao
declarar à imprensa brasileira “não acreditar que os problemas da Missão
tenham influência nessa tragédia, porque Bacellar era um militar experiente e
equilibrado.” [96]
A posição de Valdés é contrariada frontalmente por um investigador
das Nações Unidas encarregado do inquérito que declara, protegido pelo
anonimato, ao jornal francês Le Figaro que « Bacellar était sous pression et a,
sans doute, fini par craquer. C`était un homme seul subissant des insultes et
des critiques virulentes». [97]
Por razões de Estado, o governo brasileiro tampouco decide
aprofundar o debate. Reconfortada pelo apoio de Condoleezza Rice e de Kofi
Annan, Brasília contenta-se em desarticular a manobra de Valdés, que
pretendia usufruir totalmente de sua vitória ao tentar nomear o general
jordaniano Mahamoud Al-Husban substituto de Bacellar no posto de Force
Commander. O general José Elito Carvalho Siqueira será o escolhido.
A palavra final deveria pertencer ao embaixador brasileiro em Porto
Príncipe, Paulo Cordeiro de Andrade Pinto, que declarou simplesmente, que
Bacellar havia sido mais uma “vítima do sacrifício pela paz no Haiti.” [98]
No Brasil os familiares de Bacellar recusam-se a conceder entrevistas
e dar vazão publicamente aos sentimentos. Prima o interesse de Estado.
Fecha-se a cortina. O drama espetacular está encerrado.
Como triste consolo a partir deste momento o Exército Brasileiro
exercerá, ao longo de toda a Missão, monopólio sobre o sensível posto. A
morte de Bacellar significa, igualmente, que o dilema estratégico da Minustah
não fora deslindado. Não o será.[99]
Inúmeros exemplos deste descompasso seguirão. Assim, na manhã de
18 de junho de 2009 um pelotão de militares brasileiros aproveita o final da
missa fúnebre, de corpo presente, realizada na Catedral de Porto Príncipe em
memória do Padre Saint-Just para tentar prender um suposto bandido, general
Tutu, segundo na hierarquia do Lavalas.
A cerimônia em honra de Saint-Just reunia centenas de seguidores do
ex-presidente Aristide que reagiram indignados à provocadora e insensível
manobra. Após prender um indivíduo, os soldados tentam retirar-se do local e
para proteger-se supostamente disparam tiros para o ar, no entanto um jovem
que se encontrava nas escadarias da Catedral foi morto por um disparo de
arma de calibre de 9 mm, idêntico ao usado pelo pelotão brasileiro.
À desrespeitosa e inconsciente incursão somou-se não apenas a
tragédia da morte de um inocente como também a comédia, pois quando
verificaram os documentos do suposto criminoso, os soldados brasileiros
constataram que não se tratava da mesma pessoa e o liberaram
imediatamente, ainda nas imediações da Catedral.
Quando da renovação do mandato da Minustah no ano anterior o
debate sobre a natureza da presença da ONU no Haiti prosseguia. Em virtude
dos progressos feitos na área da segurança, foi sugerido eliminar o conceito
de área vermelha, adotado para designar regiões supostamente em guerra. A
burocracia das Nações Unidas reagiu vigorosamente à tentativa, pois ela
resultaria em diminuição pecuniária e aboliria vantagens complementares,
tais como seguro e licenças-prêmio.
Segundo dois oficiais do Exército Brasileiro que estiveram no Haiti
com responsabilidade de comando,

a prorrogação da Minustah interessa a funcionários


civis da ONU mais preocupados com o próprio
salário e bem-estar do que com a reconstrução do
país. Segundo eles, a proximidade com Miami – a
uma hora e meia de distância com três vôos diários –
faz da missão um oásis para funcionários estrangeiros
que preferem estar na América a trabalhar em
missões ingratas na África ou no Oriente Médio.
Além disso, eles acusam a ONU de manter a
classificação de “zonas vermelhas” em bairros que,
do ponto de vista militar, já foram pacificados, como
Cité Soleil, Cité Militaire e Bel-Air. Até hoje, os
funcionários da ONU são proibidos pelo regulamento
de pessoal de circular por essas zonas sem escolta das
Forças Armadas. [100]

O embaixador brasileiro Igor Kipman manifesta seu pleno acordo com


a avaliação dos oficiais militares: “É isso mesmo. Vou a Cité Soleil com
minha mulher, caminho a pé na rua, sem colete e sem capacete. No dia 7 de
setembro levei o senador Heráclito Fortes e mais três senadores, todos sem
colete nem capacete, foram e andaram em Cité Soleil, mas (o bairro) ainda é
considerado pela ONU zona vermelha.” [101] O senador Heráclito Fortes
corrobora declarando: “Eu me senti seguro.” [102]
À época, interrogado por um jornalista, eu sustentava que havia um
excesso de militarização da Minustah, agravado pela ausência de uma
coerência sistêmica, centralizada e planejada.

A culpa é de muita gente. Dos países doadores que


preferem concentrar recursos na manutenção da
segurança. Da história da ONU que percebe esses
conflitos essencialmente sob a ótica militar.
Finalmente também da fraqueza dos países do Sul
que não conseguem convencer os doadores de que a
questão social está na raiz dos problemas de
segurança.” [103]

Incapaz de transitar de uma situação de emprego da força, como prevê


o Capítulo VII, para a de construção do desenvolvimento, as Nações Unidas e
o Tridente Imperial preferem manter a paz dos cemitérios no Haiti. O
pavoroso sistema carcerário que impera no Haiti se constitui em exemplo
suplementar.

O castigo

A violência das gangues no Haiti decorre de muitos outros fatores,


além dos anteriormente mencionados. Por um lado, os criminosos de origem
haitiana residentes nos Estados Unidos, uma vez condenados e cumpridas
suas penas, eram repatriados e logo liberados no Haiti. Sequer comunicação
recebia o Estado haitiano. Por outro, as terríveis condições carcerárias,
prisões que não foram planejadas para uma hipotética ressocialização do
detento, mas para afastá-lo do convívio social impondo-lhe cumprir a pena de
maneira chocante e desumana.
Diante de sistemas judiciais disfuncionais, esotéricos, inoperantes e
inacessíveis para a grande maioria da população, dotados de normas
processuais que prolongam indefinidamente os litígios sem resolvê-los, a
primeira sina dos detentos haitianos consiste em serem encarcerados sem
qualquer julgamento. Trata-se de simples suspeitos que não foram objeto de
devido processo legal e se encontram em detenção provisória prolongada
(DPP) à disposição de uma Justiça que tarda e/ou jamais chega.
Segundo dados de abril de 2007 da Comissão Interamericana de
Direitos Humanos, no universo de 2.582 detidos na Prison Civile, somente
112 – inferior a 5% – cumpriam pena decorrente de um julgamento
condenatório. A quase totalidade faz parte da inaceitável prática da DPP.
[104]
Embora mutirões sejam feitos para liberar os detentos em DPP que já
tenham cumprido penas preventivamente caso viessem a ser condenados
pelos supostos delitos, seu número não diminui. O incremento de quase mil
detentos na Prison Civile entre abril de 2007 e março de 2008 indica que este
esforço não produziu os efeitos esperados.
Os dados de 2013 informam que no universo carcerário de 8.860
pessoas, 90% dos detentos da região metropolitana de Porto Príncipe se
encontram em detenção provisória prolongada. A média das demais prisões
localizadas no interior do país, contudo, embora igualmente absurda, é
relativamente menor, alcançando meros 57%.
A segunda sina vincula-se às terríveis condições carcerárias. Há
centros de detenção que oferecem tão somente 33 cm2 por detento (caso da
Prisão de Anse à Vaux). A Prison Civile do Haiti (também conhecido como
Pénitentier National) localizada no centro de Porto Príncipe, prevista para
abrigar 800 detentos, acolhe 3.500. A média nacional alcança 0,60 cm2 por
detento. A título de comparação, segundo as normas e critérios
internacionais, cada detento deve dispor no mínimo de 9 m2.
O principal cárcere do Haiti conta com poucas celas destinadas ao
isolamento dos prisioneiros considerados mais perigosos. O espaço comum é
dividido em vários pátios retangulares, onde são reunidos entre 400 e 500
detentos. Na extremidade interna do pátio há um pequeno telhado. Embaixo
deste encontra-se um cano de onde sai, por vezes, um filete de água. Em um
destes pátios a água é fornecida de maneira intermitente.
Quando a visitei em 2008 pude testemunhar o combate entre os
detentos, com baldes e latas, para tentar recolher o precioso e raro líquido. A
grande maioria deles permanece nua e se acotovelavam gritando. Ao mesmo
tempo os presos tentavam equilibrar seu recipiente abaixo do cano – tentativa
na maioria das vezes infrutífera.
Em uma lateral do pátio há um pequeno muro de um metro de altura
ao longo da parede principal. Entre eles, em um espaço de dois metros de
largura, encontram-se cavados buracos no solo. Ali os detentos fazem suas
necessidades fisiológicas, à vista de todos. Os excrementos e urina
permanece naquele local impregnando o ambiente com um odor fétido e
nauseabundo, agravado pela alta temperatura.
As cozinhas preparam duas refeições diárias compostas por arroz e,
três vezes por semana, são adicionados pedaços ou caldo de carne. As
condições de higiene do local são lamentáveis.
O Dispensaire (enfermaria) reúne os doentes homens – tanto os
adultos da própria Prison Civile quanto as crianças da Prison des Mineurs.
Sim. No Haiti os menores de idade em conflito com a lei são colocados em
cárceres. As principais enfermidades são: tuberculose, tifo, febre amarela,
sífilis, HIV/Aids, etc. Muitas delas são infectocontagiosas.
A enfermidade é uma agravante para quem se encontra na prisão. O
caso dos menores é ainda mais dramático na medida em que há dois grupos
de razões que podem conduzi-los à prisão. Ela pode decorrer do cometimento
de um delito, bem como em razão de problemas sociais, tais como o
abandono pela família, a necessidade de proteção do Estado, etc.
Não há registro informatizado sobre os detentos. Eles são inscritos em
um grande livro no momento de sua chegada e partida. O banco de dados
organizado graças ao apoio da OEA foi abandonado. O episódio deste
abandono é exemplar dos mal-entendidos da cooperação estrangeira com o
Haiti.
Entre os diversos projetos na área dos direitos humanos mantidos pela
OEA durante a década de 90, um previa o cadastramento dos detidos na
Prisão de Porto Príncipe. Apos três anos de trabalho sob o comando de uma
jovem belga, uma equipe informatizou o sistema prisional. Os carcereiros
receberam rudimentos de informática, permitindo o controle do fluxo de
prisioneiros.
Uma vez instalado o sistema, a jovem belga foi cumprir outra missão
fora do Haiti. Quando retornou – após quatro meses de ausência – dirigiu-se,
impaciente, à Prisão central para verificar o bom andamento do controle.
Então constatou com um misto de estupefação e tristeza que o sistema não
havia sido alimentado durante o período em que estivera ausente. Impaciente,
ela questionou os funcionários e a direção da prisão. Eis o diálogo:

P: Não houve entrada ou saída de prisioneiros?


R: Sim, houve um fluxo normal.
P: Vocês não entenderam o funcionamento do sistema?
Eu não o expliquei corretamente? Houve algum
problema técnico?
R: Não. Entendemos tudo e o sistema funciona
perfeitamente.
P: Então, por que o sistema não foi alimentado?
R: Bem, não o colocamos a funcionar porque
pensávamos que a senhora não mais retornaria ao
Haiti!

Este se constitui em exemplo da inexistência de apropriação haitiana


de projetos, programas e ações conduzidos pela cooperação estrangeira. A
esta, o fenômeno imprime de forma indelével sua principal característica: a
ausência de sustentabilidade uma vez afastada a parceria internacional.
As instalações físicas da Prison Civile constituem uma afronta ao
mais elementar dos direitos humanos dos detentos. Elas infringem normas
mínimas previstas tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos
quanto na Convenção Interamericana de Direitos Humanos (artigo 7º). Além
disso, não são seguras (por exemplo, o aparelho de detecção de metal existe,
mas não estava funcionando).
O Secretário-Geral Assistente para Estado de Direito da ONU, com
larga experiência do sistema carceral africano, o russo Dmitry Titov, em
Relatório otimista sobre a situação no Haiti apresentado ao Conselho de
Segurança em março de 2008, classificou as instalações penitenciárias
haitianas entre as piores que havia inspecionado. Alertou que se tratava de
um verdadeiro problema de direitos humanos.
Já o especialista independente do Conselho de Direitos Humanos das
Nações Unidas (CDHNU), o francês Michel Forst, em seus primeiros
relatórios minimizava o problema. Segundo ele não aconteciam execuções
sumárias, ao contrário do que ocorria em prisões africanas. Ora, estas
abrigavam prisioneiros políticos – principais vítimas da atroz prática. Não
era, por evidente, o caso da Prisão Civil haitiana. Era impossível, portanto,
comparar o incomparável. Felizmente, em Relatórios posteriores Forst
mudou sua avaliação, o que conduziu a construção, com financiamento
canadense, de um novo cárcere em Croix des Bouquets, situado nos arredores
de Porto Príncipe.
Qualquer pessoa ao transpor o portão de entrada da prisão penetra
num verdadeiro inferno. Ao retirar-se do recinto não se consegue afastar as
imagens, sons e odores que a acompanham. Sente a imperiosa e urgente
necessidade de extrair-los de seu próprio corpo. Jogar-se debaixo da ducha
pode ser uma solução para tentar fazer com que retorne à vida anterior. Será
inútil. Sua marca não está no corpo, mas na alma.
Em 12 de janeiro de 2009 desapareceu, repentinamente e de maneira
inexplicável, em Porto Príncipe, um cidadão de nacionalidade haitiana
chamado Joseph François Robert Marcello. Coordenador da Comissão
Nacional de Compras Públicas do Haiti, Marcello era também membro
atuante da Rede Interamericana de Compras Governamentais, cuja Secretaria
Técnica estava a cargo da OEA. A Rede zelava pela transparência da gestão
pública das compras governamentais. As funções exercidas por Marcello
eram de grande sensibilidade em qualquer país. No Haiti ainda mais.
Certamente não se tratava de mais um simples crime comum.
Suas filhas fizeram gestões em Washington denunciando o
desaparecimento do pai que, além de idoso, era cardíaco. Tais gestões foram
feitas igualmente junto aos responsáveis governamentais, do presidente a
primeira ministra passando também pelo Secretário de Segurança Pública,
Luc Eucher Joseph. Inutilmente.
Diante do manto de silêncio que cobria o caso, foi aventada a
possibilidade de emissão de um comunicado público por parte da OEA
exigindo a liberação de Marcello. Fomos dissuadidos de fazê-lo pelo governo
haitiano, pois supostamente haviam sido entabuladas negociações com os
sequestradores e qualquer publicidade faria com que aumentasse o valor do
resgate exigido. De fato, a família da vítima negociou durante três dias com
os seqüestradores, no entanto, a partir do dia 15 de janeiro ela foi afastada e a
PNH assumiu o caso.
Com ceticismo foram acolhidas as alegações do governo haitiano.
Poucos dias depois, alguns oficiais do governo transmitiram a informação de
que Marcello estava sendo investigado por suposta lavagem de dinheiro e por
corrupção em licitações públicas. Não havia, porém, nenhum documento
probatório de tal investigação. Parecia uma manobra diversionista para que
não houvesse continuidade nas buscas da vítima.
Apesar dos apelos da família e de variadas gestões, passavam-se as
semanas e os meses sem qualquer novidade por parte das autoridades
haitianas. Como não havia corpo poderia haver esperança, no entanto há
sinais que não mentem. A cada investida, o governo respondia que nada
podia fazer e que não havia mais contato com os sequestradores. Notava-se,
durante esses meses, o desconforto dos interlocutores oficiais a cada ocasião
em que o tema era mencionado.
No dia 8 de setembro de 2009 Amaral Duclona é detido no luxuoso
complexo turístico Casa de Campo, situado em La Romana, República
Dominicana, com documentação falsificada. As autoridades dominicanas
cumprem mandado da Organização Internacional de Polícia Criminal
(Interpol) pela acusação de assassinato do cônsul honorário francês, como
mencionado anteriormente. No final do mesmo mês, sentindo-se
aparentemente protegido, Duclona concede uma entrevista ao jornalista
Kevin Pina e faz revelações estarrecedoras.
A primeira é que ele, pessoalmente, sequestrou e executou Marcello.
Supostamente obedecendo à ordem de outro funcionário do governo haitiano,
Jude Célestin, à época diretor do Conseil National d’Équipement (CNE), e
futuro candidato da situação às eleições presidenciais de novembro 2010.
Segundo Duclona, Célestin pretendia obter, sem licitação, o contrato de US$
90 milhões previstos para a reconstrução da cidade de Gonaïves, destruída
por furacões em 2008.
Enviei uma Nota Verbal às autoridades judiciárias dominicanas, por
intermédio do embaixador dominicano, Ruben Silié Valdez, solicitando
autorização para ter acesso a Duclona. A intenção era esclarecer sua confessa
autoria do sequestro e assassinato de Marcello. Caso confirmasse, seria
solicitado que indicasse onde se encontrava o cadáver para fazê-lo chegar à
família.
Jamais a demanda foi respondida. A França preparava a documentação
para formalizar a demanda de extradição do acusado. Durante essas semanas
Préval solicitou por três vezes – tanto ao embaixador Silié quanto ao próprio
presidente Leonel Fernandez – que Amaral Duclona fosse extraditado para o
Haiti e não para a França. Supostamente para ser julgado. Fonte segura,
próxima à Polícia haitiana, revelou-me que caso Duclona colocasse os pés no
Haiti seria imediatamente executado.
Uma vez Duclona extraditado para a França, foram retomadas as
iniciativas, agora com o embaixador francês, que haviam sido tentadas sem
sucesso junto às autoridades judiciárias dominicanas. Tampouco frutificou.
Atualmente Amaral Duclona encontra-se detido na França e seu processo
supostamente em fase de instrução.
Não houve oportunidade para confirmar o assassinato de Marcello.
Suas filhas, que tanto lutaram, sequer puderam dar-lhe sepultura digna.
Persistem as dúvidas e interrogações. Somente o Estado francês teria
condições de esclarecê-las. Nunca o fez.
O caso do desaparecimento de Marcello levanta a ponta do véu que
cobre as promíscuas relações entre certos responsáveis importantes do
movimento Lavalas e da política haitiana com o mundo do crime.
Amaral Duclona relata que era protegido pelo ocupante do Palácio
Nacional e que Préval o acolheu na residência oficial, na qual pernoitou ao
menos 30 vezes. Também acusa a irmã de Préval, Marie-Claude Calvin, de
tê-lo abrigado em diversas oportunidades em sua residência privada ao longo
dos dois últimos anos.
O suposto conluio governamental com a avassaladora onda de
sequestros contribui para entender como, às vésperas da votação de fevereiro
de 2006, retorna à região metropolitana, inexplicavelmente, uma total
calmaria. Como por milagre cessam os sequestros. Segundo um morador de
Cité Soleil, porém, era “uma calmaria pesada, como se fora artificial”.
Com o beneplácito de parte da Comunidade Internacional, o Governo
Provisório parecia querer eternizar-se. Alegando inúmeras dificuldades,
Latortue havia decidido em fins de dezembro, pela terceira vez consecutiva,
pelo adiamento das eleições. O trágico falecimento do general Bacellar
desbloqueia a situação. No dia seguinte a sua morte, o Governo Provisório
anuncia que o primeiro turno da contenda eleitoral será realizado em 7 de
fevereiro de 2006.
Do período que se estende de 29 de fevereiro de 2004 até o ano de
2006, se extrai várias incógnitas e algumas certezas que fazem com que o
balanço das realizações seja marcado por contrastes.
O principal objetivo da Minustah fora alcançado: ocorreu um
congelamento do poder e uma nítida estabilização política no país durante o
período. Não aconteceram sublevações, tentativas de golpe e foi interrompido
o processo de degradação da vida pública.
Manteve-se aceso, contudo, o embate entre estratégias aparentemente
incompatíveis. Muitas das dificuldades enfrentadas durante o período de
transição originam-se na dubiedade do mandato da Minustah, especialmente
no que diz respeito as suas relações com a Polícia Nacional Haitiana.
Por outro lado, o Representante do SGNU sofreu progressivo desgaste
em sua atuação. A experiência de outras missões de paz demonstra que se
num primeiro momento há uma percepção avaliação positiva de seu papel, a
tendência reverte-se e se transforma, num prazo não superior a dois anos, em
unanimidade negativa.
A principal conquista da fase transitória foi seu epílogo. Ou seja, a
realização do pleito de 7 de fevereiro de 2006, que propiciou a substituição
de Governo Provisório – imposto pelo estrangeiro – por outro resultante da
vontade dos eleitores.
A participação nas eleições presidencial e legislativa de 7 de fevereiro
de 2006 alcançou 63% dos inscritos, dobrando a média histórica. Sem tomar
parte nos debates e sequer fazer campanha, pois, segundo ele “je ne suis pas
un politicien” [sic], René Préval é eleito, pela segunda vez, presidente do
Haiti. Como explicar sua estrondosa vitória?
Uma vez Aristide expulso do cenário político nacional, Préval
consegue recuperar em benefício de sua própria candidatura os eleitores
cativos do Lavalas.
Durante a campanha presidencial de 2006, somente o partido de
Préval, A Esperança (Lespwa), conseguiu penetrar nos bairros dominados
pelas gangues e pelas bases lavalassianas. Como isso foi possível? Com o
beneplácito de Aristide a praticar um jogo duplo. Logo no início da
campanha Préval relata que ao conversar com o lavalassiano Leslie Voltaire,
este o informa sobre o processo de renovação das lideranças populares.
Preocupado com a falta de contatos com os novos líderes, Préval solicita a
Voltaire que lhe forneça a lista de seus principais responsáveis. Com o
pretexto de ir ao banheiro, Préval se apressa em anotar os nomes indicados.
Logo todos são contatados e se transformam em ponta de lança de sua
candidatura.
No dia do escrutínio, como uma única voz, os eleitores de Aristide se
dirigem em massa a apoiar Préval. O candidato oficial do Lavalas, Marc
Bazin, recolhe míseros 0,68% dos votos, ao passo que Préval recebe a
extraordinária votação de 48,76% do total dos votos, cCntudo insuficientes
para fazê-lo novamente Presidente no primeiro turno.
Logo entram em cena os jovens eleitores Lavalas. Não para defender o
neolavalassien Marc Bazin como poderia se supor, mas para denunciar uma
suposta fraude que tentaria impedir a vitória de Préval! Ruas da capital são
bloqueadas com pedras, árvores, tábuas, pneus e carros calcinados. Porto
Príncipe começa a se asfixiar.
Não satisfeitos, os manifestantes invadem, ruidosos e sorridentes, o
Hotel Montana no qual estão alojados os mentores estrangeiros da imberbe
democracia haitiana. Recordo a algazarra geral e o receio estampado na face
dos raros estrangeiros que ousavam deixar seus quartos.
Os protestos no Hotel Montana acabam em um surpreendente banho
de piscina dos manifestantes. Apesar da extravagância da festa, o simbólico
gesto abriga uma clara mensagem: nada e ninguém deveriam imaginar-se
acima da vontade coletiva. E que todos estavam ao alcance da jovem turba.
Acatando os conselhos do Arcebispo sul-africano Desmond Tutu,
Prêmio Nobel da Paz, o qual, a partir da janela de seu quarto tratava de
acalmá-los, os jovens manifestantes, tal como haviam chegado, deixam as
dependências do hotel. Ausentes, durante todo o episódio, tanto a PNH
quanto a Minustah.
O caráter festivo e aparentemente inocente dos manifestantes não
deveria prestar-se a equivocadas interpretações e obscurecer o teor de sua
vontade imediata. Não haveria segundo turno e Préval deveria ser
proclamado presidente da República.
Os Estados Unidos, por meio da Secretaria de Estado Condoleezza
Rice, defende a aplicação da Lei Eleitoral haitiana de forma restritiva: deverá
haver um segundo turno. Ela é dissuadida pelo ministro brasileiro das
Relações Exteriores, Celso Amorim, pois segundo esse “les élections en Haïti
ne se déroulent pas comme en Suisse”.
Uma iniciativa de Marco Aurélio Garcia resolverá o impasse. Embora
não prevista na Constituição e na Lei Eleitoral haitianas, o CEP acata a
sugestão e decide lançar mão da chamada cláusula belga. O presidente do
CEP, Max Mathurin, informa que “considérant que le décret électoral de
2005 dispose que les votes blancs sont des votes valides, a décidé de repartir
les votes au prorata des votes exprimés en faveur des candidats dans la
compilation des résultats des élections du 7 février 2006.”
O constitucionalista Claude Moïse questiona a decisão do CEP e
critica Mathurin:

Où donc est-il allé Haïti chercher cette perle ? Il est


vrai que rien n`est à l`épreuve de l`imagination des
organisateurs des élections depuis qu`en 1987, ils
affrontent la rigueur du suffrage universel. Ils sont
renforcés aujourd`hui par le savoir faire d`experts
étrangers. Rappelons que le vote blanc est dans son
essence un vote-sanction, un vote abstentionniste.
C`est détourner de sa vraie nature que de l`attribuer
aux différents candidats au prorata de leur
performance.[105]

Apesar dos protestos dos puristas e de Leslie Manigat, impedido de


disputar um segundo turno, aplicada a fórmula belga, Préval é eleito com
51,21% dos votos.
Embora salpicada pela dúbia festa do Hotel Montana e por atalhos
inconstitucionais, a vitória de Préval não deixa de ser menos extraordinária.
Ele torna-se herdeiro eleitoral, bem mais do que político, de Aristide. A
reconfortante posição transforma-se em delicada situação quando do
exercício governamental. Tal ambiguidade marcará de maneira indelével sua
administração.
Em fins de 2009, após cinco anos da presença da Minustah no Haiti,
apesar de frágil, houve um extraordinário incremento da segurança pública
(pessoal e patrimonial) com a redução sensível da incidência de sequestros.
Em certas áreas problemáticas, como a de Cité Soleil, nota-se a presença da
Polícia Nacional Haitiana.
A eonomia haitiana recuperara-se de quatro anos seguidos de recessão
que conheceu sob Aristide. Houve crescimento constante: 2,3% em 2006,
3,4% em 2007 e de 1,2% , apesar da crise internacional, em 2008.
As eleições para prover 1/3 das cadeiras do Senado, ocorridas em
abril de 2009, apesar de alguns percalços técnicos, provocaram mudança na
maioria parlamentar, o que propiciou a substituição da primeira ministra
Michèle Pierre-Louis por Jean-Max Bellerive.
Embora a persistência da crise financeira mundial e de uma temida
fadiga da Comunidade Internacional com a falta de perspectivas para a
solução do imbróglio haitiano, foi reafirmado na Conferência de Doadores ao
Haiti (Washington, 14 de abril de 2009) o interesse em continuar apoiando o
país. Pode-se afirmar que o Haiti permanece no centro do radar,
especialmente do Tridente Imperial e de importantes países latino-
americanos. O envolvimento pessoal e político do casal Clinton demonstram
o apoio, com reservas e críticas, ao governo Préval e descarta a possibilidade
do retorno de Aristide.
Torna-se cada vez mais evidente que a percepção internacional sobre
a crise haitiana deixa de ser essencialmente securitária. A ela se adicionam
outros ingredientes, tais como a governança, o desenvolvimento econômico,
os programas sociais, a reforma e reestruturação do Estado, especialmente as
instituições judiciárias. Estes aspectos foram enfatizados por todos quando da
Conferência de Washington.
De fato, confirma-se que a Minustah, tal como foi concebida e
estruturada, apesar do aporte brasileiro com as Acisos, não responde aos
problemas estruturantes mencionados. Ao contrário, ela foi criada para
“estabilizar” o país, permitindo que ele avance para um patamar superior.
Parece que havia chegado este momento. Estávamos, portanto, em plena
transição para algo diferente, não mais que esboçado, de participação da
Comunidade Internacional.
Nesta fase posterior, a formação da PNH constitui área crucial. Não
há possibilidade de saída da crise, com a consequente redução da presença
militar estrangeira, sem uma Polícia Nacional numerosa e qualificada. Em
fins de 2009 ela contava com 9.100 integrantes e deveria alcançar 14 mil em
2011. Como não há mais Forças Armadas no Haiti, a PNH será a única força
hierarquizada, disciplinada e armada no país. Ela será a espinha dorsal do
Estado e poderá, caso não seja bem formada (republicana, respeitadora dos
direitos humanos e do Estado de Direito, não violenta e de proximidade),
desempenhar o papel que foi das Forças Armadas no passado. Por essa razão,
o Tridente Imperial luta para influenciar a formação da PNH. Não é outro o
motivo do grande descompasso entre a importante presença latino-americana
na Minustah (71% dos militares) e sua pífia participação na Unpol (2%).
Inclusive, as perspectivas esboçadas no final de 2009 deverão ser
revistas em profundidade, pois em breve se abaterá sobre o empobrecido
Haiti a maior das catástofes naturais dos tempos modernos.[106]
SEGUNDA PARTE – OS DESCAMINHOS INTERNACIONAIS: O
DRAMA
MINUSTAH is the best example of mismatch between needs on the ground and the
tools the Security Council uses to address them.
Mark Lyall Grant, Representante do Reino Unido na reunião do CS em 10 de outubro
de 2013

No início de 2009, a embaixadora dos Estados Unidos no Haiti, Janet


Sanderson, ao considerar que a Minustah havia se transformado em um
“success story” graças, entre outros, a atuação das Forças Armadas
brasileiras, anuncia que o desengajamento progressivo começará em 2011.
Ao final do segundo semestre do mesmo ano, o Core Group –
encarregado da coordenação internacional no Haiti e composto por
representantes da Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Espanha, Estados Unidos,
França, Nações Unidas, Organização dos Estados Americanos e União
Européia – prosseguia suas discussões sobre um modelo de saída de crise.
Em outras palavras, debates sobre modalidade, calendário e condições
necessários para colocar um termo à presença da Minustah no Haiti. Três
elementos eram ressaltados. Por um lado incrementar a capacidade humana,
técnica e material da PNH. Por outro, a imperiosa necessidade de fortalecer
as instituições do Estado. Por fim, definir um modus vivendi do Haiti com a
Comunidade Internacional por meio de um plano de ajuda ao
desenvolvimento socioeconômico de longo prazo.
Caso estas principais condições viessem a serem alcançadas, poder-
se-ia definir um calendário de retirada gradual que teria seu início com a
assunção do substituto de Préval, em fevereiro de 2011. Com esta
predisposição favorável, a maioria dos integrantes do Core Group e seus
assessores deixaram o Haiti para os festejos de final de ano. Os que
prolongaram sua estada no exterior salvaram sua vida, no entanto muitos dos
que retornaram ao Haiti nos primeiros dias de janeiro encontravam-se
debaixo dos escombros. O espantoso terremoto de 12 de janeiro de 2010
jogou por terra também qualquer possibilidade de concretizar o que havia
sido planejado. A retirada das tropas fora transferida para as calendas gregas.
CAPÍTULO VI – A CÓLERA DA NATUREZA: O TERREMOTO

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí
afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.
Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

Ao entardecer do dia 12 de janeiro de 2010 percorria o jardim da


residência familiar, localizada em Arroio do Tigre, Rio Grande do Sul. Após
mais de um ano como Representante Especial do Secretário Geral da OEA no
Haiti, havia retornado ao Brasil dois dias antes para desfrutar das merecidas
férias anuais.
Estava na histórica Villa Independência construída pelo meu avô em
1922, o que explica sua denominação. Clínico geral e cirurgião ou “operador”
como era chamado na época, doutor Reinaldo Seitenfus foi um dos pioneiros
da colonização de origem germânica na região gaúcha denominada Centro-
Serra. Nasci e passei minha infância na magnífica casa e, sempre que posso,
nela busco refúgio.
Aguardando a hora do jantar, aproveitava o verão austral e suas longas
jornadas. O jardim é bastante amplo e nele misturam-se floridos canteiros
com árvores frutíferas e decorativas.
Estranhei quando soou meu celular brasileiro, pois o mantivera
desligado por vários meses. Uma voz feminina me perguntou de chofre:
Ricardo? Que bom que respondas! Onde estás?”
Expliquei que havia retornado na véspera do Haiti. “Justamente, diz
ela, lhe telefono preocupada porque ocorreu um sismo em Porto Príncipe e ao
que parece foi de grandes dimensões. Felizmente você está aqui.”
Aturdido pelo anúncio da terrível notícia, fui à procura de
informações. Invadiu-me um sentimento de profunda injustiça. Como aceitar
que após as recorrentes agitações políticas, os furacões que assolam todos os
anos o país, a miséria na qual vegeta a maioria de sua população, ainda há
espaço para que sejam golpeados por um terremoto?
Não basta ser desgraçado por alguns homens – tanto nacionais quanto
estrangeiros – e açoitado anualmente, de junho a novembro, pelos ventos que
partindo do Golfo de Guiné em direção ao Mar do Caribe, adquiriram o
péssimo hábito de se transformarem em tempestades e furacões, agora um
terremoto vem cobrar a sua parte de uma terra e de um povo que não cessam
de pagar pesado tributo ao longo de sua História.
Fui informado que um avião estava sendo preparado no Rio de Janeiro
para levar os primeiros socorros brasileiros. Sem hesitação, fiz o necessário
para poder nele embarcar.
Foram escassos os profissionais estrangeiros que trabalhavam no Haiti
e que decidiram retornar a Porto Príncipe. Salvaram-se justamente em razão
de suas ausências. Os que decidiram voltar o fizeram por um misto de
obrigação funcional ou profissional, de dever moral, de sensibilidade com o
sofrimento humano e de coragem, não somente intelectual, mas também
física.
Decidi retornar pois lembrava das lições de um jovem diplomata
brasileiro, um dos raros e perspicazes conhecedores do Haiti, que me
confidenciou, em meados de 1993, quando de minha participação na Micivih.
Padecendo de uma doença misteriosa ao longo de três semanas, fui
aconselhar-me sobre os riscos de permanência no Haiti. “Neste país, nós
homens brancos e estrangeiros, corremos somente dois tipos de risco de vida:
um acidente ou falta de auxílio médico”.
As palavras premonitórias de Paulo Mendes de Carvalho o atingiriam
em cheio quando faleceu, pouco depois em Porto Príncipe, justamente pela
demora de socorro médico.
Pude constatar, no entanto, que há um terceiro risco para os
estrangeiros: enamorar-se do país e de seu povo. Esse sentimento que subjuga
a maioria dos estrangeiros em terra haitiana, explico pela teoria do Aedes
Haitia. Como o mosquito da dengue tem como nome científico Aedes
Aegypti, existe um primo seu vivendo na parte Ocidental da ilha de
Hispaniola. Uma vez picada, a vítima padece do mal do amor e enamora-se
perdidamente pelo país.
Apesar dos riscos aos quais todos estão sujeitos, o que atraía muitos
estrangeiros era a tentação do enamoramento. Tal atração poderia vir a ser
fatal e, ao nos apaixonarmos, sermos transformados em escravos desta
paixão.
Milhares de estrangeiros estão submissos as consequências da picada
do mosquito haitiano. Pessoas como religiosas brasileiras vivendo em
duríssimas condições em regiões montanhosas desprovidas de tudo, que com
brilho nos olhos e firmeza na voz, confessavam que haviam encontrado no
Haiti o sentido de sua vida. Outros profissionais perdiam de vista a
complexidade da vida, a extensa pauta da humanidade e o tamanho do mundo
para se refugiarem naquilo que acreditavam ser seu único desafio: o Haiti.
Outros, finalmente, eram tentados a cumprir jornadas duplas ou triplas, pois
além de suas obrigações profissionais, dedicavam-se com afinco a tentar
resolver os problemas mais prementes do cotidiano daqueles que os
cercavam.
O Haiti não é “para amadores”. Nunca foi. A prova cabal é o rosário
de fracassos da cooperação internacional que tornou o país conhecido como
“o cemitério dos projetos”. O terremoto torna a desinteligência ainda mais
aguda. As necessidades são urgentes, prementes, monstruosas ao passo que as
ofertas são desencontradas, irrequietas, indóceis, desorganizada,
contraditórias e jovens, demasiado jovens para enfrentar o duplo desafio: a
imensidão da tarefa, a oposição entre a elite e o povo, entre um passado
heroico e exemplar e um presente pífio a mendigar migalhas que nada mais
são que escassas gotas em um oceano de necessidades.
Para trabalhar no Haiti é indispensável pactuar com a própria
consciência. Esta permitiria o agir profissional somente na medida em que as
ações fossem ética e moralmente inatacáveis e que fizessem parte de um
processo que viria, cedo ou tarde, beneficiar ao povo haitiano.
Todos aqueles que puderam atuar na região metropolitana de Porto
Príncipe nos primeiros meses pós-sismo, constataram o surgimento de uma
força interior e de uma convicção de que suas presenças diante do cataclismo
faziam surgir uma oportunidade única, raríssimas vezes oferecidas ao longo
de uma vida, de estar frente a frente com os valores, os contornos e os limites
da condição humana.
A morte, a destruição impiedosa, o sofrimento, a angústia, as lágrimas,
mas também a solidariedade, o olhar digno, a mão estendida, o copo de água
alcançado, o sorriso esboçado, o canto que se eleva e domina o medo do breu
da noite. O terremoto lançou-os em direção a uma vida que nunca sequer
haviam imaginado viver. Não se tratava de um filme com suas trucagens e
seus efeitos especiais, mas da vida real que além de se desenrolar sob seus
olhares, dela faziam parte.
Nesta perspectiva, não deixa de haver uma ponta de egoísmo. O Haiti
proporciona algo que os coloca à prova e que nada e ninguém pode oferecer.
Que os deixa aturdidos. Que os conduz por trilhas insuspeitas.
Ao retornarem ou permanecerem no que resta da zona metropolitana
de Porto Príncipe, eles estão conscientes de que terão uma experiência que
jamais se consumirá e que deixará sua marca de maneira indelével até seu
último suspiro.
Na quinta-feira pela manhã, 14 de janeiro, deparei-me com a agitação
da Base Aérea do Galeão. Militares, bombeiros, autoridades governamentais
e a presença maciça da imprensa, confirmavam o que mais tarde seria
constatado pelo primeiro ministro Bellerive: no Haiti, o Brasil é uma potência
quando se trata de ajuda humanitária. Trata-se do novo elemento que compõe
a política externa do país: no plano internacional somos uma nação que pode
ostentar um soft power. Todos os componentes da operação haitiana
comprovam inquestionável presença.
Tratava-se do primeiro dos numerosos voos de ajuda humanitária
brasileira enviada ao Haiti. Bombeiros do Rio de Janeiro e de Brasília com
seus apetrechos e equipamentos, compunham os passageiros desse estranho
voo. Nele encontrava-me em companhia de dois diplomatas do ministério das
Relações Exteriores brasileiro.
Acostumado com viagens em aviões de linha, em que tudo se esconde
e a segurança, o conforto e o respeito aos horários devem ser as principais
preocupações, o voo parecia bastante improvisado, dando margem a receios
sobre a segurança. Era possível ver, avaliar e sentir as entranhas do avião.
Um grande espaço na parte frontal da aeronave era ocupado pela carga e na
parte traseira, simples poltronas, destinadas aos passageiros.
Quando de nossa derradeira escala em território brasileiro, no
aeroporto de Boa Vista, o comandante do voo obrigou-se a aguardar, durante
três horas, uma hipotética autorização de decolagem do controle aéreo de
Porto Príncipe. Como esta não chegou, com a sabedoria que a experiência lhe
conferia, ele decidiu partir assim mesmo: “Caso não consigamos autorização
para aterrissar, pousaremos em Santo Domingo”.
Imaginando as dificuldades que encontraríamos logo a seguir,
aproveitamos a escala para fazer uma última refeição e abastecer-nos de
bebidas e chocolates. Apesar do bom humor de todos, era nítida a
preocupação que dominava a tensa atmosfera. A alta e abafada temperatura
da sala de espera auxiliava para aumentar ainda mais o sentimento mesclado
de ansiedade e apreensão.
O avião matrícula KC 137 da Força Aérea Brasileira, um Boeing 707
com 30 anos de uso, mais conhecido como Sucatão,[107] pousou às 2 horas
da madrugada do dia 15 de janeiro de 2010 na única pista do Aeroporto
Internacional Toussaint Louverture, em Porto Príncipe.
O aeroporto da capital haitiana estava irreconhecível. Com escassos
voos diários, funcionando somente até o entardecer, antes mais parecia ser
um aeroporto provincial de um país atrasado. Agora o que se apresentou foi
um espetáculo de movimento, barulho e luzes de dezenas de aviões
estacionados com pavilhões dos quatro cantos do mundo.
A confusão que parecia emanar do ritmo frenético de todos e da
utilização de variados idiomas era somente aparente. De fato, havia uma
ordem militar que se impunha. Quando o presidente Préval e o primeiro
ministro Jean-Max Bellerive, tomaram consciência da catástrofe que se
abatera sobre a região metropolitana de Porto Príncipe, solicitaram
verbalmente aos Estados Unidos que recolocassem o aeroporto em
funcionamento, pois se tratava do único ponto de contato com o exterior, uma
vez que a fronteira com a República Dominicana estavam abarrotadas de
veículos e o porto da capital inutilizável em razão da destruição provocada
pelo terremoto.
Impressionava a fila de espera, pois nada menos de 1.100 voos
solicitavam autorização para pousar no Tousssaint Louverture. Auxiliados
pelos radares da Base de Guantánamo e de navios de guerra deslocados para
o Golfo La Gonâve, foi montada uma simples barraca ao lado da pista. Dela
emanavam as ordens para a complexa operação.
Durante meses, ao decolar e aterrissar chamava a atenção de todos o
contraste entre a precariedade das instalações e sua eficiência; entre o
aparente caos e a efetiva organização; entre o modorrento aeroporto do
passado e a agitação do presente.
Inclusive os críticos da militarização da ajuda humanitária pelos
Estados Unidos reconheceram que somente os militares de Washington
dispunham de condições técnicas para fazer funcionar de maneira permanente
a pista que não dispunha do terminal de passageiros e de torre de controle,
ambos destruídos pelo terremoto.
Com a militarização, sob controle exclusivo dos Estados Unidos, do
espaço aéreo haitiano, surgem vários qüiproquós que dão lugar a críticas na
imprensa, incompreensões e protestos diplomáticos. Voos provenientes da
França ou o do ministro da Defesa do Brasil, Nelson Jobim, não receberam
imediata autorização de pouso.
O terremoto desnudou uma crua realidade que a chegada da Minustah
em 2004 se esforçava para encobrir: a dualidade de comando das operações
no Haiti. Sobrepunha-se a força militar unificada e extremamente profissional
dos Estados Unidos, por meio do Comando Sul, com o amálgama
multinacional da Minustah composto por elementos díspares, alguns
escassamente qualificados. Era necessário encontrar uma solução – mesmo
aparente – pois a disparidade de meios e de interesses subjugava ainda mais a
Operação de Paz das Nações Unidas aos ditames dos militares de
Washington.
Comandando o braço armado da Minustah, o desconforto brasileiro
era evidente. Para minimizá-lo adotou-se uma solução administrativa: a
logística da ajuda humanitária estaria a cargo dos militares dos Estados
Unidos, ao passo que a segurança caberia à Minustah. Logo se constatou que
tal divisão de tarefas não seria respeitada por Washington.
Assim, não somente os céus estavam tutelados pelo Comando Sul.
Igualmente a região do aeroporto encontrava-se sob domínio das Forças
Armadas dos Estados Unidos. Abandonou-se o idioma francês e o inglês
impôs-se. Tal situação perdurou até fins de fevereiro, quando o Estado
haitiano, embora apenas formalmente, retomou o controle do Toussaint
Louverture.
O balé no aeroporto Toussaint Louverture tinha sua contradança:
muitos aviões recolhiam extensas filas de estrangeiros e, sobretudo, de
haitianos que penetravam aqui num Galaxy, ali num C130, mais adiante num
Boeing, os quais, uma vez liberados dos equipamentos e equipes de socorro,
embarcavam os eleitos que se apressavam em partir.
Olhares perdidos, silêncios obedientes e atitudes de autômatos.
Mesclavam-se idades, cores e histórias de vida e de morte. Um fio tênue os
separou daqueles que agora jazem sob os escombros. Um passo para cá ou
para lá significou a vida ou a morte.
Uma vez passado o primeiro impacto da agitação, ainda na pista do
aeroporto, tive o seguinte diálogo telefônico com uma amiga haitiana
sobrevivente:

– “Où est-ce que tu iras dormir? »


– « Or, chez moi, dans mon appartement. »
– « Mais tu n`a plus d`appartement ! Ton
immeuble s`est effondré et tous ses occupants sont
morts. Je suis allé ce matin pour voir. On ne peut
arriver qu`en marchant car tous les murs sont a terre et
il est impossible de circuler en véhicule. »

O edifício de apartamentos referido se localizava atrás do Hotel


Karibe e a ele pertencia. Situado no bairro Juvénat, um pouco abaixo de
Pétion-Ville, era ocupado exclusivamente por estrangeiros. Vários escritores
haitianos da diáspora e estrangeiros vindos a Porto Príncipe para o festival
literário “Étonnants Voyageurs” estavam alojados no Hotel Karibe.
Salvaram-se, pois embora muito afetado o Hotel Karibe não ruiu. Os
sobreviventes buscaram refúgio na quadra de tênis e fizeram referências em
seus testemunhos e livros ao meu prédio e aos seus dramas.
Já eram 3 horas da madrugada e estava eu com minha pequena
mochila, abandonado na pista do aeroporto. Sem alternativas, resolvi
acompanhar os bombeiros e buscar alojamento na Base Militar brasileira em
Tabarre. As instalações militares não haviam sofrido nenhum dano. Parecia
um milagre, mas a qualidade e o tipo contêiner das construções militares
explicavam o porquê de sua resistência.
Noite fechada, silêncio pesado, imaginação acelerada. Era impossível
deixar de pensar nos vizinhos do prédio, agora mortos sob os escombros.
Sobretudo nas duas menininhas que haviam chegado há pouco ao Haiti.
Felizes, após brincar na piscina do hotel Karibe, subiam às gargalhadas as
escadarias do prédio.
Escrever sobre o terremoto constitui árdua tarefa, praticamente
inalcançável, na qual se mesclam força e sensibilidade. Como fazer para
encontrar palavras e expressões que façam justiça ao injusto, que sejam fiéis
ao extraordinário vivido, que não sucumbam à tentação do catastrofismo, que
não resultem em pieguice e muito menos em voyeurismo?
Para tentar vencer o desafio não bastava conhecer a rica literatura
haitiana e as importantes obras das Ciências Sociais. Constituía condição
indispensável e, ao mesmo tempo insuficiente, percorrer as obras vinculadas
ou inspiradas pelo terremoto, fossem elas fruto de simples observadores ou
de escritores que lá se encontrassem. Não havia muito no que se inspirar. A
realidade transcendia a literatura e os testemunhos – breves páginas de vida e
de morte – demonstravam fôlego curto.
Uma das poucas e notáveis exceções ficava por conta do pequeno
livro, pungente e de grande valor literário, intitulado Failles, da romancista
haitiana Yanick Lahens. Formidável em sensibilidade, sobriedade e fineza.
[108]
Frente à monstruosidade do vivido, Yanick sublinha justamente o
primeiro e principal desafio do escritor. Como testemunhar?

Quels mots font le poids quand les entrailles d`une


ville sont retournées, offertes aux mouches qui
dansent dans la pestilence ? Quels mots font le poids
face à des hommes et des femmes têtus, forcenés de la
vie, qui dans la poussière et les gravats de la mort
s`acharnent à réinventer la vie de leurs mains ? Un
homme silencieux traverse la rue, son fils disloqué
comme une marionnette ensanglantée dans les bras.
Une femme, assise à même le trottoir, balance le torse
d`avant en arrière et psalmodie tout bas, le bras
allongé en direction d`une maison dont il ne reste plus
rien.
Mais comment écrire ce malheur sans qu`à l`issue de
la confrontation il n`en sorte doublement victorieux et
la littérature méconnaissable ? Comment écrire pour
que le malheur ne menace pas le lieu d`existence
même des mots ? Question qui depuis si longtemps
me tenaille et gicle au mitan de la nuit du 12 janvier.
Comment écrire en évitant d`exotiser le malheur, sans
en faire une occasion de racolage, un fonds de
commerce, un article d`exhibition de foire ?
Comment être à l`auteur de ce malheur ?
Cette terre des mots, la seule qui soit la nôtre, à nous
écrivains, se fissure et risque de craquer elle aussi si
nous n`y prenons garde. Faille énorme sous nos pieds.
Le temps de l`information, de la vitesse, de l`image,
ronge du dedans le seul qui vaille la peine, le seul pour
lequel l`écrivain devrait se mettre en danger et non
point en représentation. Comment échapper à ce
piège, pieds et mains liés ?

Perante a enormidade da dor, as palavras estão em descompasso,


atrasadas, inaptas e incapazes de refletir o indizível, o indescritível, o
desumano sofrimento. A razão indica ausência de solução. Ou correr o risco
de elaborar um inventário de horrores cuja descrição não somente estará
aquém da realidade, mas também abrigando um grande potencial para traí-la.
Afasta-se desde logo a tentação da neutralidade do texto acadêmico
que prima pela impessoalidade e pelo distanciamento. Trata-se de trilhar o
caminho inverso. Nele estarão o desconforto, a impaciência e a dor.
Na manhã seguinte no trajeto entre Tabarre e Pétion-Ville foi possível
começar a avaliar a destruição da cidade. Trazidos pelo vento, uns odores
estranhos, fortes e nauseabundos, mescla de queima de pneus com algo
impossível de identificar. Na subida, pouco antes de alcançar a Route des
Frères, há um cemitério. Em uma de suas entradas uma grande fogueira da
qual se desprendia uma fumaça escura e densa.
A proximidade permitiu encontrar a explicação. Misturado aos pneus,
se encontravam pedaços de madeira e corpos humanos. Primeira de muitas
chocantes imagens com as quais fui obrigado a conviver.
Ao chegar no escritório de representação da OEA, fui recebido com
um misto de surpresa e alegria: “Qu`est-ce que vous veniez faire ici lorsqu`on
voit que tous ceux qui sont ici veulent abandonner Haïti ?”
Trinta e cinco segundos bastaram para lembrar que o Caribe
exuberante e sedutor é também uma região de grandes riscos sísmicos. No
caso do Haiti estes riscos foram acentuados pela densidade demográfica, pela
localização do epicentro e pela extrema precariedade na qual vive a grande
maioria da população. A inexistência de normas para a construção, de
sistemas de prognósticos e de alertas, de um serviço de defesa civil e de
consciência da população sobre os riscos e como enfrentá-los, multiplicam a
capacidade destruidora dos terremotos. De fato, a dimensão da hecatombe
haitiana prova que, antes de ser natural, o desastre foi socialmente planejado.
A minimização dos efeitos dos sismos não depende de planos
mirabolantes de curto ou longo prazo. Trata-se de tarefas constantes que
devem integrar o dia a dia da população e da ação perene do poder público. A
ausência de conscientização dos riscos sísmicos potencializou seus efeitos.
Comparado ao impacto de 30 bombas nucleares semelhantes à que arrasou
Hiroshima, detonadas simultaneamente – a força liberada equivaleu a 18
milhões de toneladas de TNT. A região metropolitana de Porto Príncipe e os
arredores em direção ao Sudeste foram quase totalmente destruídos.
A ajuda humanitária acorreu de imediato ao Haiti, que se viu
submerso pela quantidade de víveres, medicamentos, pessoal de urgência e
equipamentos que chegavam. A fronteira com a República Dominicana fora
aberta e a passagem de Malpasse transformou-se num impressionante
corredor humanitário.
A partir das primeiras horas do sismo começaram a se acumular no
aeroporto toneladas de equipamentos e centenas de profissionais. Ante o
pesadelo logístico de responder com urgência, não há coordenação e
planejamento. Logo as vítimas tinham a justa impressão de que era mais fácil
para os socorristas percorrer milhares de quilômetros para alcançar o
Aeroporto Toussaint Louverture do que os poucos metros que separavam este
dos escombros sob os quais elas jaziam.
Diante da quantidade impressionante de socorros que afluía, o
pandemônio do aeroporto deixava atônito. Havia, contudo, uma decisão
precisa: os socorros seriam destinados, em primeiro lugar, ao resgate dos
numerosos estrangeiros prisioneiros sob os escombros. Todos os países – sem
exceção – direcionaram sua ajuda aos locais onde supostamente
encontravam-se seus cidadãos.
O exemplo mais ilustrativo desta situação ocorreu em Léogâne, cidade
localizada a oeste de Porto Príncipe e próxima ao epicentro do sismo.
Distante dos projetores da mídia internacional, suas vítimas eram
exclusivamente haitianas. Os primeiros socorros estrangeiros (canadenses)
chegaram a Léogâne no domingo, 17 de janeiro, cinco dias após o terremoto.
Absorto com o que havia ocorrido na capital, o socorro não prestava
atenção aos estragos nas regiões que circundavam o epicentro. Entre elas, a
mais populosa era Léogâne. Foi preciso que seus sobreviventes clamassem
por auxílio, pois 80% das construções da cidade haviam desaparecido.
Situada na fértil planície utilizada para o cultivo da cana-de-açúcar, à beira do
Golfo La Gonâve, a histórica cidade pagou o mais pesado tributo à catástrofe.
A amplitude da tragédia, jamais enfrentada anteriormente, bem como
as vicissitudes de uma operação de paz, pode explicar, em parte, os
desacertos e descompassos. Guido Bertolaso, diretor da Defesa Civil italiana,
confessa que “ainda não entendeu quem comanda esta grande máquina da
ajuda... Todos fazem coisas por conta própria, também louváveis, mas que
não são coordenadas. E quem paga o preço são as pessoas que teriam de
receber ajuda”. [109]
Oscar Guevara, chefe de uma das equipes da Defesa Civil da
Colômbia, não esconde suas amargas críticas ao introduzir uns dos aspectos
dolorosos, que orientava as ações de resgate: a discriminação entre as
vítimas.

As operações de resgate coordenadas pela ONU são


uma farsa. Já estive em vários desastres.
Normalmente, somos designados para uma área e,
com o grupo de resgate, buscamos sobreviventes em
toda essa área. Visitamos os edifícios danificados,
conversamos com as pessoas, usamos os cães,
organizamos as escavações e salvamos gente. Aqui,
tudo é ao contrário. A prioridade não são as pessoas,
e sim o pessoal internacional ou os moradores dos
bairros ricos. Quando cruzamos a cidade da base
logística até aqui, vemos centenas de casas em ruínas,
pessoas desesperadas que nos pedem ajuda, mas não
podemos fazer nada, não podemos ajudá-los, não nos
permitem. Veja: estamos aqui no hotel esperando,
enquanto tudo acontece lá fora. [110]

Hector Mendez, chefe do renomado grupo de socorristas mexicano –


Los Topos – nascido após o terremoto da Cidade do México de 1985,
corrobora o fato de que tiveram “muitos problemas com a organização dos
resgates porque ela não permitia que resgatássemos as pessoas em um bairro
pobre. Os Topos são famosos porque se metem onde ninguém se mete.
Somos pessoas comuns e resgatamos a todos. Aqui, no entanto, parece que
não funciona assim.” [111]
Em um artigo publicado em fins de 2010, o professor da Universidade
de Massachusetts, Jean-Philippe Belleau, denuncia que :

Il y a près d`un an, le tremblement de terre du mardi


12 janvier détruisait la capitale haïtienne et plusieurs
centaines de vies. Micha Gaillard, militant des droits
de l`homme, intellectuel, homme politique haïtien et
fils du plus grand historien de l`ile, était de ceux-là.
Sa mort éclaire les maux antérieurs et postérieurs au
séisme. Pendant deux jours, coince au niveau des
cuisses, il parvint, avec calme et courage, à parler
avec ses amis venus l`aider mais qui ne trouvèrent
jamais l`équipement minimum qui aurait permis de le
tirer du ministère de la justice qui s`était effondré…
[112] On ne peut que se réjouir que l`effondrement
de treize ministères et du palais présidentiel ait fait
moins d`une dizaine de morts. Il faut aussi avoir le
courage de constater que dans un pays qui était déjà
en crise, l`Etat n`était pas au travail.
Les soldats des Nations unies non plus. Ceux qui
purent observer, dont l`auteur de ces lignes, la
capitale dans les jours immédiatement après le
séisme, furent frappés par l`absence des casques
bleus. Ce fait, à ma connaissance, n`a pas été reporté
par les medias européens et nord-américains. Sept
mille soldats des Nations unies se trouvaient en Haïti
avant le séisme, quatorze mille bras qui sont restés
croisés dans leurs bases dans les deux jours cruciaux
qui suivirent le séisme, y compris un bataillon de
génie. [113]

Socorros direcionados exclusivamente às vítimas estrangeiras


contrariam os princípios da não discriminação e da imparcialidade que regem
a assistência humanitária em casos de catástrofes naturais (Resolução 43/131
de 8 de dezembro de 1988 da Assembleia Geral da ONU).
Neste mesmo sentido, o regulamento da Comunidade Europeia (CE
1257/96 de 20 de junho de 1996), que orienta sua ação humanitária, estipula
que “les décisions d`aide humanitaire doivent être prises de façon impartiale
en fonction exclusivement des besoins et de l`intérêt des victimes ».
Por evidente não serão os escassos resultados dos salvamentos –
somente 150 pessoas serão retiradas com vida dos escombros pelos
socorristas estrangeiros – que devem ser objeto de críticas e de reservas. A
obrigação de assistência refere-se aos meios a serem utilizados e não aos
resultados alcançados. Caso, no entanto, o resgate fosse realizado de maneira
não discriminatória, procurando simplesmente salvar o maior número
possível de vidas, certamente seus resultados seriam bem melhores.
Chocava também o contraste entre o show midiático protagonizado
pela imprensa internacional e a crua realidade do anonimato de haitianos
presos sob os descombros a esperar pelo socorro que não chegava.
Se havia ainda alguma dúvida sobre a natureza do desafio haitiano – o
permanente dilema entre segurança e desenvolvimento – o sismo colocava
todos de acordo. Todos? Não, pois a Minustah decidiu – o que será mais
tarde reconhecido como sendo muito mais do que um exagero, um erro
monumental – aumentar em dois mil homens sua presença militar e policial.
A decisão de incremento da presença militar da ONU na região de
Porto Príncipe, porém, pareceu insuficiente aos olhos dos Estados Unidos.
Em clara demonstração de desconfiança com a capacidade operacional das
forças da ONU depois que seus principais responsáveis foram vitimados com
a queda do Hotel Cristopher onde se localizava o centro operacional da
Minustah em sua vertente civil, ressurgia de maneira vigorosa o medo atávico
que domina o Ocidente quando se trata do Haiti.
Temerosa de uma possível revolta popular, Washington decidiu
militarizar a ajuda humanitária. Não satisfeitos, foram além. Contrariando o
que havia acordado com o Brasil, o Comando Sul passou a controlar
militarmente todas as atividades humanitárias na região metropolitana de
Porto Príncipe. Mesmo em tão dramáticas condições, tratava-se de uma clara
e inequívoca demonstração do primeiro significado do Haiti para os Estados
Unidos: um assunto para os militares.
Assim, milhares de soldados dos Estados Unidos percorriam a zona
metropolitana de Porto Príncipe. No início, armados e em posição de combate
em seus veículos, todavia rapidamente se dão conta que o Haiti não está em
guerra. Não havia tampouco saques e sequer violência que geralmente
acompanham as grandes catástrofes naturais. Então adotam atitudes humanas
e deixam de lado a demonstração de força, abandonando o escudo protetor de
seus veículos e por vezes circulam desarmados nas ruas da cidade. Treinados
para matar, os jovens soldados estavam estupefatos diante da coragem, da
disciplina, da simpatia e da meiguice dos sobreviventes.
Desde o tsunami asiático de 2004, discute-se a necessidade de criar
mecanismos permanentes para regular a ajuda humanitária em escala global –
a decantada governança humanitária mundial. Ela sofre rude golpe no Haiti
quando passa de fato e de maneira unilateral ao controle de um único país, a
depender da agenda política de seu Chefe de Estado inspirado,
essencialmente, pela visão do Comando Sul.
A partir do terremoto, escudado pelo impreciso conceito de ingerência
humanitária, o Haiti encontra-se sob tutela não mais das Nações Unidas, mas
dos Estados Unidos. Excetuando Canadá e França – “connivents et véritables
complices” segundo o próprio embaixador francês Le Bret – nunca se
mostrou de maneira tão evidente o impasse em que se encontram os demais
países amigos do Haiti, em particular os latino-americanos.
O Brasil encontra-se em delicada situação. Ao final de 2009 ele
liderava uma Operação de Paz que projetava uma saída de crise e o
progressivo retorno de seus militares. Ora, com o terremoto “de um momento
para outro lhe escapou das mãos um cenário de reconhecido sucesso” [114]
quando comparado com os retumbantes fracassos das intervenções anteriores.
Atordoado pela dramaticidade da situação, o Brasil perderá rapidamente a
liderança até então exercida. O sismo marca o retorno abrupto ao comando de
fato da Minustah do Tridente Imperial.
Considerada “zona de guerra” pelos médicos, enfermeiros e cirurgiões
militares, o que significa uma ilimitada autorização para amputar, pairava no
ar da região metropolitana de Porto Príncipe o odor da morte, a fumaça
escurecida dos incêndios, a poeira pesada dos escombros, o silêncio da dor e
os cânticos da redenção.
Alguns setores da região metropolitana de Porto Príncipe foram
poupados. O terremoto se comportou de maneira errática: aqui pequenos
casebres pendurados no flanco da montanha permanecem intactos; ali,
residências de luxo e edifícios modernos jogados ao solo. A sua maneira o
sismo é também democrático, uma vez que atinge a todos – ricos e pobres,
possuidores e despossuídos – de maneira indiscriminada. Somente as
choupanas, feitas de tábua e cobertas por folhas de zinco, do
lumpemproletariado, escapam da catástrofe.
Não deixa também de ser um sismo ideológico. Praticamente todos os
locais de pensamento e onde se manifestavam as vozes, as ideias e o espírito,
estão destruídos: universidades, igrejas, prédios ministeriais, o Palácio
Nacional, o Palácio da Justiça, o Parlamento, a Catedral de Porto Príncipe, a
totalidade das escolas e edifícios públicos. A matéria onde se reunia a alma
haitiana está de joelhos, todavia é necessário mais, muito mais, para destruir
o espírito deste extraordinário povo.
No sábado à tarde, 16 de janeiro, já estava instalado na residência do
embaixador brasileiro no Haiti, Igor Kipman. Na véspera relatei a ele o que
havia acontecido com meu edifício e indagava da possibilidade de ser alojado
na residência oficial do Brasil, dado que esta havia sofrido apenas estragos
menores. A pergunta que fiz foi numa formulação campeira do interior do
Rio Grande do Sul: “Há pouso na tua casa?” Ele respondeu-me de bate-
pronto: “Enquanto eu tiver onde morar tu também o tem”.
Tal como fizeram quando de minha chegada ao Haiti em fins de 2008,
fui acolhido pelo casal Kipman. Pude novamente conviver o dia a dia com
pessoas extraordinárias. Roseana Aben-Athar Kipman é a antítese do que
imaginamos deva ser a esposa de um embaixador. De compleição física
pequena, parecendo muito jovem apesar de vovó, simpática, sorridente,
transbordava de energia. Ela simbolizava o que considero ser a ajuda
humanitária. Mergulhou decidida neste Haiti que me atemorizava. Consciente
de que tinha responsabilidades as quais sinceramente eu não percebia, suas
longas jornadas eram dedicados a auxiliar orfanatos, creches, escolas e
famílias inteiras.
Possuía o que ela mesma chamava de “minhas freiras”: tratava-se de
religiosas brasileiras que mantinham orfanatos em Cité Soleil, em Jerémie,
em Léon. Ou seja, onde quer que fosse estava Roseana, cercada por fuzileiros
navais brasileiros, os quais supostamente velavam por sua segurança, mas
que, de fato, transportavam sacos de alimentos, remédios, roupas, material
escolar.
Uma vez ao ano o casal alugava, as suas expensas, um típico ônibus
Tap-Tap com suas vivas cores e suas inscrições religiosas e filosóficas. Com
ele era conduzido um grupo de crianças de um orfanato para passar o dia na
residência oficial. Cada criança merecia uma atenção especial e era acolhida
por Roseana com um beijo na bochecha. Jogos, lanches, bebidas, música,
danças, banhos de piscina. Uma festa infantil comum em outras paragens
que, todavia, representava para os pequeninos abandonados pelos seus pais
naturais um acontecimento único e inesquecível.
Quando o terremoto vitimou a pediatra e educadora Zilda Arns
Neumann – figura de proa do catolicismo brasileiro, fundadora e
Coordenadora Internacional da Pastoral da Criança e irmã do Cardeal Dom
Paulo Evaristo Arns – Roseana comandou pessoalmente o resgate do corpo.
Quando havia esmorecimento ela sentenciava: “Somente daqui sairei com o
corpo de nossa querida”. Assim foi. Em poucas horas os restos mortais da
doutora Zilda puderam ser repatriados ao Brasil, quando foram prestadas as
homenagens fúnebres que correspondiam à extraordinária personagem.
Confortado pelo apoio do querido casal, decidi que era chegado o
difícil e penoso momento de percorrer a cidade martirizada. Resolvi descer de
Pétion-Ville em direção ao centro de Porto Príncipe. Sem motorista, guarda
ou qualquer companhia, dirigia sozinho pela estrada do Canapé Vert. À
direita os escombros, escorridos da montanha, haviam sido afastados para
permitir uma difícil passagem. À esquerda uma completa desolação. Raras
casas estavam ainda de pé. Como a última manifestação da Falha do Sul (há
outra que percorre o Norte da ilha), que passa sob Porto Príncipe ocorreu no
longínquo ano de 1752, a engenharia doméstica se preocupava unicamente
com os efeitos das tempestades e furacões que afetam a região anualmente,
entre junho e novembro.
O princípio de construção das casas é simples: quatro frágeis colunas
de concreto que sustentam uma pesada chapa, igualmente de concreto, que
serve de telhado, esperando a hipotética construção de um andar suplementar.
O telhado era assim concebido para permanecer fiel à casa a quem dava
abrigo e não sofrer a tentação de viajar com os terríveis ventos que assolam
regularmente a região. Evidente a preocupação com as ameaças vindas do
céu. Jamais com as oriundas da terra.
Quando ocorre o sismo, as colunas não resistem e a chapa de concreto,
por vezes inteira, tomba ou desliza ao longo da construção. Por isto a
impressão visual deste singular e assassino telhado parecendo, quando
observado de certa distância, uma camada de manteiga deformada pelo calor.
Quando esta Espada de Dâmocles cai, raramente quem está debaixo tem
salvação.
Uma senhora nossa conhecida havia desaparecido quando do sismo.
Após incessantes e inúteis buscas, os parentes resolveram procurá-la nos
escombros de sua casa destruída. Revirando-os não fora possível encontrá-la.
Finalmente, decidiu-se desmontar a chapa de concreto que havia ruído por
inteiro. Com picaretas, marretas e martelos – a sinfonia destas batidas ecoou
durante anos por toda a região afetada pelo sismo – constituíndo-se nos raros
utensílios disponíveis para os primeiros socorros quando se tratava de tentar
resgatar haitianos. A persistência do trabalho progressivamente venceu a
resistência do concreto. Quando finalmente os escombros são retirados,
foram encontradas, embebidas de sangue, as vestimentas da vítima. Triturado
pelo peso da chapa que servia de telhado, o corpo havia simplesmente
desaparecido.
Era o meio da tarde e percorro o Campo de Marte, o Palácio Nacional,
o Palácio da Justiça, a Catedral, a Caserna de Dessalines, os prédios
ministeriais, igrejas menores, escolas, muitas escolas – todos por terra.
Seguidas vezes tomo ruas que logo adiante estão bloqueadas por destroços ou
pelos desalojados. Era necessário retornar e tentar outra via. Os campos de
desabrigados apareciam do nada. Praças, espaços outrora verdes, ruas,
terrenos baldios, calçadas, barracas ao lado dos escombros. Todos os espaços
minimamente afastados das construções ainda de pé estavam ocupados. A
proteção, na maioria das vezes, era de plástico ou de roupa de cama; lençóis,
cobertas. Felizmente não estávamos na época de chuvas.
Acima desse caos sobressai o olhar das vítimas. Ausente qualquer
traço de rancor. Somente uma mirada brilhante a indagar o porquê de
tamanha injustiça.
Caso o terremoto fosse resultado de uma força superior e decidida a
provocar a maior desgraça possível, ela não poderia ter agido com maior
eficácia. Escolheu o país mais pobre do continente. Até então incapaz de
entender e aplicar políticas públicas para a construção. Inconsciente das
ameaças que se encontram logo abaixo de seus pés. Amante da vida, da
alegria, da luz de uma ilha encantada, da arte vodu de Saint-Soleil que muito
impressionou André Malraux, do kompas de sua música, com uma
sensualidade à flor da pele.
Em seguida, esta hipotética força do mal escolheu a região mais
densamente povoada do Haiti como epicentro ao sismo. Assim, não correria
riscos: ao alcançar o maior número possível de pessoas o mal seria exercido
em sua plenitude.
Da sede histórica do Ministério das Relações Exteriores, em frente à
baía, nada restava a não ser a estátua feminina que ornamentava o jardim. Lá
estava ela, intacta e belíssima em sua macabra solidão.
Iniciei o caminho de retorno a Pétion-Ville. De golpe surgiu a noite,
apressada como ocorre nos trópicos. Estava ainda distante de casa, em pleno
centro destruído. Continuava percorrendo ruas que logo adiante se
interrompiam. Após muito ziguezaguear finalmente estava prestes a alcançar
a avenida que abre caminho para a subida da estrada de Canapé Vert. Quando
cheguei à esquina para virar à direita, os faróis do veículo iluminaram um
obstáculo localizado exatamente no meio do cruzamento entre as duas
artérias. Diminuí a velocidade e parei. Sobre uma tábua, muito inchado,
estava o cadáver de uma senhora ali deixado para que alguém o recolhesse. A
imagem repentina deste cadáver abandonado em uma esquina que fora antes
do sismo uma das vias mais movimentadas de Porto Príncipe, agora deserta,
cujo silêncio somente é entrecortado pelos cânticos religiosos que dominam a
noite haitiana, me parece resumir o drama de uma sociedade e de uma nação
a depender da caridade alheia.
Mais do que a morte, o que impacta é a obrigação feita aos vivos de
transgredir regras e ritos que envolvem os falecimentos na sociedade haitiana.
Muitas vezes tive a impressão de que o Haiti tratava melhor o morto do que
os vivos. Nas cidades cuja cor predominante é a cinza do cimento cru,
ausentes pinturas das casas, destacam-se as cores vivas dos cemitérios. Os
locais previstos para os velórios, espalhados nos quatro cantos do país, são
luxuosos. O cerimonial fúnebre é demorado, dispendioso e solene. Há livros
com fotos da cerimônia, do defunto em seu caixão bem como fitas e filmes
são produzidos como recordação. Mais se parece com eventos felizes em
outras paragens. Impossível refrear a tentação de vincular a festa da morte à
espiritualidade de um povo que percebe o fim de uma vida como o efetivo
começo da eternidade. A morte liberta, ao passo que a vida subjuga e
escraviza.
O sismo jogou por terra a cultura funerária. Fossas comuns; enterros
coletivos; cadáveres evacuados juntamente com os escombros; fogueiras a
queimar corpos. Certamente essa transgressão foi responsável pelo não
surgimento de nenhuma epidemia decorrente do terremoto. Uma das muitas
ironias da atual situação é constatar que o Haiti pós-terremoto saberá lidar
com as possíveis seqüelas epidemiológicas do sismo. Como veremos em
capítulo posterior, contudo, o país será vítima de um terrível e mortífero surto
de cólera provocado por soldados da Minustah, justamente aqueles que lá
estavam para salvar vidas. As estatísticas oficiais da Organização Pan-
Americana de Saúde anunciam no momento em são escritas estas linhas
(abril de 2014) 8 mil mortos e mais de 800 mil infectados.
No início da tarde de domingo, resolvi ir ao encontro de algo que
tentava adiar o mais possível: rever o que fora minha residência haitiana. Não
sei como souberam, mas vários trabalhadores haitianos conhecidos meus
esperavam na entrada da ruela, que contorna o Hotel Karibe, no final da qual
se encontravam “meus” escombros. Saudado com alegria por todos,
abandonei o carro em frente a uma montanha de terra e pedras que obstruía a
passagem.
À medida que subia e descia pela trilha de escombros me assaltava a
impressão de estar num local bombardeado. Além da queda dos muros de
proteção, as casas estavam de joelhos, em posições bizarras. Pareciam sair
das mãos de um arquiteto cubista. Aqui faltava a fachada desnudando
quartos, banheiros, salas; acolá parte de o primeiro andar encontrava-se
descansando desconfortavelmente no térreo; mais adiante uma fissura no solo
prosseguia seu caminho até atingir a construção que era riscada por valas.
Aberta como se duas mãos decidissem romper paredes para que fossem
observadas suas entranhas.
Não se tratava de quaisquer construções. Estávamos num bairro
burguês, pensado e construído para escassos haitianos e numerosos
estrangeiros. Sólidas, confortáveis e seguras, com seus altos muros e paredes
espessas. Não guardavam nenhum parentesco com a grande maioria das
construções nas quais se amontoavam os mais humildes. Não haviam, porém,
oferecido resistência. Capitularam sem condições.
Bairro estritamente residencial, o único e pequeno edifício de quatro
andares da ruela fora construído junto ao terreno do Hotel Karibe, logo atrás
da magnífica piscina e de seu belo jardim tropical. Uma pequena escada e
logo um portão permitia nosso acesso aos serviços do hotel. Composto por
dois apartamentos por andar, separados pelo elevador e escada que neste se
enroscava. Como cobertura, a inevitável chapa de concreto. A metade do
térreo servia de garagem. A outra um apartamento suplementar. Por isso a
existência de um estacionamento externo destinado aos visitantes.
O edifício tentou resistir. A parte que se encontrava à direita do
elevador concedeu ao terremoto somente um apartamento que descansou no
piso inferior dando a impressão de que o edifício era um bêbado em
desequilíbrio, prestes a tombar. A parte da esquerda, ao contrário, sucumbiu
totalmente. Era tão somente um amontoado de concreto, ferros retorcidos e
tijolos. Esparsos coloridos objetos residenciais entreviam-se mesclados ao
cinza dominante. O meu apartamento ali jazia. Localizado no último dos
quatro andares, seus destroços pareciam dar acabamento à hecatombe. Com a
violência do sismo, a cobertura havia deslizado, fugindo dos escombros e,
pendurando-se no muro de proteção externo, deitava quase por inteiro na
ruela. Fios, cabos e ferros mantinham em uma posição instável e perigosa a
grande massa.
Pouco a pouco meu olhar acalmou-se e pude melhor analisar o que
via. Então identifiquei no meio do caos minha mala vermelha, uma parte do
fogão, um pedaço de cadeira, uma tela de computador. Os haitianos se
dispuseram a subir na montanha de escombros e resgatar alguns objetos.
Diziam que era seguro e que as réplicas não podiam destruir ainda mais o que
já haviam destroçado. Informado que os corpos das vítimas ainda estavam
soterrados, não concordei. Era minha singela maneira de homenagear aos
vizinhos que pouco havia conhecido. Quando finalmente após algumas
semanas retornei aos escombros do prédio após a retirada dos cadáveres,
meus raros pertences sobreviventes haviam evaporado.
No meio do tumulto das vozes que me acompanhavam não me dei
conta de que alguns haitianos penetravam na parte bêbada do prédio e
retiravam objetos dos apartamentos. Pensei que eram funcionários dos
locatários encarregados de salvar o que era possível. Infelizmente soube
depois que assim não era. Alguns perderam seus preciosos empregos com o
episódio.
Uma curiosa situação se apresentou durante a visita. Informaram-me
que minha caminhonete particular estava intacta debaixo da montanha de
escombros! Era impossível crer em tamanho absurdo. Tratava-se de um
veículo que havia adquirido de um diplomata canadense que deixara o Haiti.
O fiz porque me incomodava o fato de circular com o veículo oficial da OEA
quando cumpria agenda particular. Consciente deque não podíamos usar os
serviços de transporte público – quase inexistentes – ou eventuais táxis
igualmente fantasmas, constatava que os funcionários estrangeiros lotavam os
estacionamentos dos restaurantes, praias e clubes nas noites e finais de
semana. O logotipo da ONU dominava o panorama. Não havia nenhuma
restrição funcional por parte da OEA. Decidi, no entanto, seguir um princípio
moral e comprei a caminhonete, embora usada, em bom estado.
Agora me encontrava diante de uma situação inesperada. O que fazer?
Cético e incentivado pelos haitianos, decidi fazer o impensável:
acompanhado por dois deles segui por uma trilha que havia sido descoberta
no meio dos escombros. Tentava estar próximo a eles, mas não conseguia.
Finalmente alcancei o local onde estava o veículo. Além do meu, havia outro
intacto na garagem ao lado que havia resistido. O teto do meu
estacionamento, ou seja, o piso do primeiro andar, ao invés de ruir, deitou por
inteiro apoiando-se numa extremidade nos escombros e na outra parede de
sustentação que não ruiu, pois fazia as vezes de muro de arrimo. Formou-se
um bolsão de ar ao longo deste. Lá se encontrava a caminhonete. Não estava
intacta, pois o teto do edifício tocava sua parte superior esquerda. Estava
quase. Tirei algumas fotos e dei por concluída a aventura.
Ao sair apressado com a prova da existência de um singelo milagre,
incomodado pela obscuridade e inquieto com possíveis réplicas, feri a testa
ao roçar numa ponta de ferro. Este foi o único e pequeno preço que paguei
por tamanha irresponsabilidade.
Depois de 12 meses, quando já me preparava para deixar
definitivamente o Haiti, finalmente foram retirados os escombros e com eles
minha caminhonete. Consertei-a e hoje ela presta serviços a Haitianos que se
encontram no sul da República Dominicana, junto a fronteira haitiana.
O que mais me chocou em todo este episódio foi o destino dos corpos
de dois haitianos que foram surpreendidos pelo sismo dentro de um veículo
no estacionamento do prédio. O prédio ruiu inteiramente sobre eles.
Soterrados dentro de um suposto veículo blindado, ao contrário das vítimas
estrangeiras, eles não foram retirados dos escombros. Quando indaguei ao
proprietário do edifício sobre o destino destes, ele simplesmente me disse:
“Ils ont été évacués avec les décombres ».
Entre civis e militares, as Nações Unidas perderam 96 profissionais,
vitimados, sobretudo na queda do Hotel Cristopher. Entre eles o tunisiano
Hédi Annabi, Representante do SGNU e seu adjunto, o brasileiro Luiz Carlos
da Costa. Salvou-se o Comandante militar o também brasileiro General
Floriano Peixoto, que se encontrava em Miami, e seu vice, o general chileno
Ricardo Toro.
O pesado e doloroso tributo pago pelas Nações Unidas ao terremoto
contrastam com as escassas perdas sofridas até então. Repentinamente a
Minustah transita do conforto de uma operação de paz em um cenário ausente
a guerra, ao drama provocado pela indizível catástrofe. O subconsciente, ao
encarregar-se de transformar suas vítimas em mártires e heróis, confere a
Minustah especial singularidade. Seu prestígio aumenta e calam-se seus
críticos.
A Minustah não havia sido planejada para enfrentar desastres naturais.
Mesmo quando dos recorrentes furacões que assolam o Haiti, a improvisação
era a regra. Diante do terremoto e das dolorosas consequências que golpeiam
a ONU, suas forças militares no Haiti revelam ainda mais sua debilidade.
Mais do que isso. Tratam, nos primeiros dias, de tentar prestar socorro aos
seus integrantes prisioneiros dos escombros. A população é deixada à própria
sorte. Reação natural? Talvez. Assim, não surpreende o fato de que mais de
80% dos sobreviventes fossem resgatados pelos próprios haitianos. Sem
equipamento algum, com as mãos nuas e uma imensa coragem.
Em todo caso não era necessário que o então ministro da Defesa do
Brasil, Nelson Jobim, buscasse encontrar uma desculpa supostamente
antropológica para justificar o abandono das vítimas haitianas pelos
socorristas da Minustah. Imaginando encontrar-se em outro lugar e em outro
tempo, Jobim lança toda a culpa às vítimas pois supostamente os haitianos
não permitiriam que estrangeiros tocassem seus mortos e feridos. Ao trágico
somou-se o patético.
Muitos meses após o sismo, os engenheiros e especialistas que
acorreram à região constataram que o terremoto não havia sido provocado
pela Falha de Enriquillo que se estende do Sul da República Dominicana em
direção ao Haiti e Jamaica, como havia sido anunciado. Segundo eles, foi
uma falha “cega”, ausente da cartografia na época, que provocou a catástrofe.
Seu epicentro foi batizado como Falha de Léogâne. Logo os haitianos a
designam com uma onomatopéia: goudougoudou.
Durante meses, quando me dirigia ao Sudoeste, contornava Léogâne
resistindo a entrar na cidade-mártir. Finalmente, um dia reuni coragem e a
percorri. Pude constatar que efetivamente a cidade havia desaparecido e seus
arredores transformados em extensos campos de desabrigados.
A dimensão da hecatombe e o sofrimento indizível do povo haitiano
provocaram um imenso impacto na opinião pública mundial. Como vimos, a
reação solidária foi imediata e maciça. Os céus de Porto Príncipe foram logo
singrados por inúmeros helicópteros, tanto civis como militares. O que me
pareceu curioso é que muitos voos não demonstravam nenhuma pressa e
faziam círculos sobrevoando os locais emblemáticos da capital destroçada.
Logo pude dar-me conta que a agonia de Porto Príncipe havia atraído uma
mórbida curiosidade. Com efeito, dezenas de personalidades políticas e do
mundo do espetáculo se dirigiram ao Haiti simplesmente para constatar a
extensão da tragédia.
O programa preparado para os adeptos do turismo macabro não
variava: chegavam ao aeroporto em voo especial ainda pela manhã, onde os
aguardava um helicóptero. Após sumárias explicações, nele embarcavam e
sobrevoavam a cidade-mártir. Tão logo finalizado o tour, retomavam o avião
e deixavam o Haiti. Pode-se entender que entre eles haviam responsáveis por
decisões que deveriam, com este exame, confirmar a ajuda fornecida ou
prometida. Não conseguia, porém, refrear o gosto amargo que sentia ao mirar
para os céus da capital e constatar que, disputando espaço com os corvos e
abutres que surgiam atraídos pelo cheiro da morte, dançavam aqueles
helicópteros num estranho e sinistro balé.
Todas as visitas constituíam uma alegria, mas igualmente uma dor de
cabeça para os anfitriões. Além de redobrar os cuidados com possíveis
acidentes, definir trajetos e encontrar meios de locomoção, marcar audiências
com autoridades governamentais, ausentes as comunicações e, muitas vezes,
o próprio governo, era também necessário providenciar alojamento, água e
alimentos para os visitantes – bens escassos e na maioria das vezes, quando
encontrados, pouco confiáveis. Por essas razões, eu defendia que as visitas
fossem de natureza estritamente profissional e indispensável. Não foi o caso
da grande maioria de estrangeiros que chegaram a Porto Príncipe naqueles
dramáticos dias, pois eles traziam consigo o olhar ávido dominado por uma
curiosidade que não poderia deixar de ser chocante.
Recebi a visita de dois altos representantes da OEA. Encabeçada por
Albert Ramdin – Secretário-adjunto da OEA – chegou a Porto Príncipe, nos
primeiros dias após o terremoto, uma missão integrada pelo Sistema Pan-
Americano de Cooperação ao Desenvolvimento (Organização Pan-
Americana de Saúde (Opas), Pan American Development Foundation, entre
outros). Fui ao aeroporto receber o grupo. Somente após as apresentações de
praxe, minha atenção voltou-se para alguém que não havia reconhecido.
Camuflado da cabeça aos pés, parecia preparado para uma caçada na savana
africana, cumprimentou-me Ramdin. Raras vezes havia tido a impressão de
um tão perfeito casamento entre a roupa e o monge. Os fatos aqui narrados o
confirmarão.
Antes de fins de janeiro, José Miguel Insulza decidiu ir a Porto
Príncipe. Até então, ele havia comandado desde Washington o que era
possível auxiliar a partir da OEA e do sistema interamericano. Esta espera
concedeu dignidade a sua visita. Não foi a interpretação do embaixador da
Venezuela junto à OEA, Roy Chaderton, que em sua campanha contra a
suposta ingerência da organização hemisférica nos assuntos internos de seu
país, denunciou a Insulza por “su falta de sensibilidad ante el tema haitiano al
cual ha dado respuestas absolutamente burocráticas mientras recorre todo el
continente en campaña electoral, tratando de amarrar votos que le aseguren su
reelección en la OEA.”
Quando sugeri a Insulza que pernoitasse em Porto Príncipe,
contrariando o que se fazia comumente, ele prontamente aquiesceu. Além
disso, foi dispensado o indefectível helicóptero. Assim, percorremos juntos,
comigo na direção do veículo da OEA, a capital destroçada.
Insulza ficou muito chocado com o que viu. “Isto aqui está
completamente destruído”, exclamava ele com um ar desolado. Oriundo de
um país vítima frequente de sismos, jamais havia presenciado tamanha
hecatombe. Antes de partir foi recebido por Préval. Os dois tentavam
demonstrar o bom humor que os caracteriza. Impossível. Os sorrisos forçados
não conseguiam esconder quão profunda era a dor. Ao regressar a
Washington, Insulza reuniu o Conselho Permanente da OEA e fez um relato
pungente e emocionado sobre o que testemunhara.
O governo haitiano tentava recuperar-se do choque. O ministro de
Economia e de Finanças, Ronald Baudin, consegue ser extraído dos
escombros de seu Ministério. Apesar de seus graves ferimentos e de ter
perdido um filho na tragédia, logo reaparece para trabalhar. O primeiro
ministro Bellerive tenta organizar o que é possível. Toma consciência que a
histórica dependência haitiana face ao exterior deverá ser ainda maior no
futuro. Sem alternativas, apela ao Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento para que este propicie meios para elaborar um Plano
Estratégico de Desenvolvimento Nacional (PEDN), pois o governo haitiano
não dispõe de recursos humanos e financeiros para a tarefa. Além disso, é
indispensável que o plano seja redigido em concerto com os eventuais países
doadores, que deverão aprová-lo em reunião prevista para fins de março em
Nova York.
Em correspondência enviada a Coordenadora do Sistema das Nações
Unidas no Haiti Bellerive define os três objetivos centrais: preparar e colocar
em prática as ações urgentes para estabilizar o país; avaliar as perdas e os
custos para a reconstrução do país; avaliar as necessidades no longo prazo
para o desenvolvimento do país, bem como seus custos.
Como pretendia Bellerive, o importante documento foi debatido à
exaustão e devidamente aprovado na Reunião de Doadores mencionada
anteriormente. O estudo realiza, pela primeira vez, um balanço das perdas
provocadas pelo terremoto.
Desde que foi criada, há 35 anos, a metodologia DALA (The Damage
and Loss Assessment), aplicada para calcular as consequências de desastres
naturais, constata que o sismo haitiano provoca o mais elevado custo,
guardadas as proporções com a economia do país, alcançando US$ 7,8
bilhões.
Naquele momento já fora possível identificar as seguintes perdas
materiais:
- 105.000 residências destruídas
- 208.000 residências danificadas
- 1.300 estabelecimentos escolares destruídos ou inutilizados
- 50 hospitais e centros de saúde destruídos ou inutilizados
- porto e aeroporto da capital destruído ou inutilizado

O impacto do terremoto sobre os níveis de pobreza e de miséria fez


com que o Haiti recuasse à situação que conheceu em 2001. Ou seja, 71% da
população sobrevivia com menos de US$ 2 ao dia e 50% com menos de US$
1. A situação, contudo, era ainda muito mais grave na zona afetada pelo
terremoto. Ocorre que, ao contrário da tendência nacional, a pobreza e a
extrema pobreza haviam aumentado em 13% na última década na região
metropolitana de Porto Príncipe. O sismo tornava dramática uma situação que
já era insustentável.
Nos primeiros dias pós-sismo 600 mil pessoas deixam a área
metropolitana – entre elas 2 % conseguiram sair do país, todavia em menos
de seis meses 94% da população que havia deixado Porto Príncipe, a ela
retornou. A ausência de uma estratégia de descentralização, conjugada aos
efeitos perversos da ajuda internacional que se concentrava na capital,
acelerou o processo de reurbanização caótica da região metropolitana.
Com a chancela da Comunidade Internacional sobre os próximos
passos a seguir, o Haiti recebe com euforia a promessa de doações que
alcançam a impressionante soma de US$ 11 bilhões. Apesar de estar um
pouco aquém (US$ 14 bilhões) do que havia sido calculado para programar o
PEDN, tratava-se de um montante considerável a permitir a refundação
haitiana – expressão cunhada por Préval e que todos esperavam tornar
realidade.
Estes recursos deveriam ser desembolsados ao longo de um período de
cinco anos. O que não havia sido especificado ao governo haitiano era o fato
de que ele não seria seu receptor, mas sim as organizações internacionais –
públicas e privadas – que atuavam no Haiti. Mais uma das numerosas
divergências – esta de gravíssimas conseqüências – que permeiam
constantemente as relações do Haiti com a CI.
Tudo pendia por um fio. Uma parede deslocada encostava-se num
muro e anunciava sua queda com a próxima réplica. A fachada de um prédio
havia ruído e deixava à vista o interior de um apartamento. O mobiliário
movia-se e logo poderia descansar no andar inferior. Um poste de luz havia
trocado de funções e agora era ele a sustentar-se em um emaranhado de fios e
cabos.
Os gritos dos sobreviventes haviam cessado, substituídos pelo
martelar dos golpes que tentavam abrir brechas no concreto e assim alcançar
pedaços de corpos que jaziam debaixo dos escombros. Os sobreviventes
amontoavam-se em campos de desabrigados nos quais, constantemente,
formavam-se longas filas para a distribuição de água, de alimentos, para ir ao
toalete químico. Não havia correria. Não havia saques. Era uma aparente
confusão. No entanto dela emanava solidariedade, respeito e silêncio. Um
profundo silêncio somente entrecortado pela algazarra saudável das crianças.
A cidade em ruínas aparentava o caos. O dia a dia ensinava, no entanto, que
se tratava de um caos civilizado e progressivamente organizado.
Por aqueles dias consegui encontrar um apartamento. Era um pequeno
conjunto localizado logo abaixo do Hotel Karibe e construído em arrimo
contra a montanha. Da construção saíam vigas de concreto cravadas na rocha.
Por esta razão pôde resistir ao sismo. Quando o visitei pela primeira vez notei
fissuras no reboco e colunas que se abriam mostrando a estrutura de ferro que
as sustentavam. Operários estavam trabalhando na sua reparação. Ao
percorrer o pequeno apartamento, dirige-me à sacada que desnudava o vale.
Após observar o verde que se misturava ao cinza das casas tombadas, dirigi
meu olhar para a esquerda e pude ver a escassos cem metros uma montanha
de escombros. De pronto a identifiquei: ali jazia meu antigo prédio. Mais do
que sua lembrança, sua presença física iria acompanhar-me até o momento de
minha partida do Haiti.
Instalei-me no apartamento e notei que o ruído dos operários durante o
dia contrastava com o absoluto silêncio noturno. Curioso, um dia indaguei
sobre meus invisíveis vizinhos. O guarda respondeu-me com naturalidade:
“Vous ne les voyez parce qu`ils n`existent pas. Ici il n`y a que vous à y
habiter”.
Passaram-se alguns dias e numa manhã em que me preparava para
sair, ouvi vozes diferentes que provinham do estacionamento ao ar livre que
se encontrava na entrada do prédio. Alcancei a sacada e observei uma cena
inusitada: os guardas, auxiliados por operários, transportavam uma cama de
casal, com colchão, lençóis, travesseiros e cobertas para o interior do edifício.
Tudo sob a supervisão de alguém que não conhecia. Descobri então que tinha
companhia no prédio, mas que meu novo vizinho se recusava a dormir em
seu apartamento e fazia transportar sua cama todas as noites ao
estacionamento.
Quando os engenheiros da empresa Miyamoto de São Francisco
(Estados Unidos) – especializada em construções antissísmicas – vieram a
Porto Príncipe analisar as características do terremoto, realizaram
levantamentos na sede da OEA, na qual não encontraram risco algum. Com
os meus edifícios foi diferente. No que ruiu constataram simplesmente o
comportamento e a violência do sismo. Tratava-se de um prédio moderno
construído segundo as regras da arte, contudo incapaz de resistir ao sismo.
O resultado do exame do meu novo prédio também foi conclusivo. Ele
estava condenado. Aconselharam-me a deixar o edifício tão logo encontrasse
outro local onde viver. Não haveria pressa, contudo, pois as pequenas
réplicas que ocorriam regularmente não poderiam derrubá-lo, embora não
fosse descartada a possibilidade de um sismo maior, tal como ocorrera em 12
de janeiro.
Feliz por ter encontrado um local onde viver diante do limitado
mercado imobiliário pós-sismo, não dei muita importância aos conselhos e
permaneci no edifício. Ainda mais que a reforma fora concluída, inclusive
com uma nova pintura, e progressivamente o prédio foi sendo ocupado.
Seguidas vezes ao abrir a porta de entrada do apartamento, retornando
do trabalho, deparava-me com os quadros da sala inclinados todos no mesmo
sentido. Era resultado de réplicas do dia que eu não havia sequer notado. Para
poder avaliá-las identifiquei um termômetro. Ocorre que ao lado do marco da
porta de entrada de meu quarto havia uma profunda fissura na parede, da qual
parte do reboco e do concreto se haviam desprendido. Restava um pedaço de
reboco e eu havia decidido que enquanto ele não fosse ao chão, eu
permaneceria no prédio. Com o passar dos dias o pedaço de reboco foi
diminuindo de tamanho e finalmente uma manhã o encontrei no solo.
Confesso que não cumpri com o que havia prometido para mim mesmo.
Uma das primeiras iniciativas que tomei foi ampliar o Programa de
Registro Civil de pessoas físicas para alcançar também os menores de idade
que se encontravam nos campos de desabrigados. Antes do terremoto este
importante programa da OEA, financiado pelo Canadá, prestava assistência
técnica ao Office National d`Identification - ONI, registrando e concedendo
cédulas de identidade unicamente aos maiores de 18 anos. Ou seja, o direito à
identidade era essencialmente um direito eleitoral.
Ocorre que a desestruturação do núcleo familiar pós-sismo aumentou
consideravelmente o risco de tráfico de crianças. Uma maneira de lutar contra
esse horrendo crime era conceder um documento de identificação provisório
às crianças dele desprovidas, o que representava a quase totalidade das
crianças, sobretudo as da primeira infância, que se encontravam nos
acampamentos.
Armamos uma barraca no meio do Campo de Marte – imenso espaço
totalmente ocupado pelos desabrigados – e com o auxílio das lideranças do
acampamento iniciamos o cadastro. No início de julho, ao inspecionar o
trabalho, pude constatar a longa fila de mães que vinham tentar proteger seus
filhos. O documento concedido era oficioso e não reconhecido pelo
Ministério da Justiça. Apesar do inconveniente e de certo mal-estar com
algumas autoridades do Estado haitiano que demonstravam contrariedades
por razões que não conseguia decifrar, foi decidido prosseguir com a tarefa.
O que nos interessava antes de tudo era dificultar adoções ilegais, raptos e
tráfico de crianças, como o caso de dez autointitulados membros de uma
alegada associação de caridade dos Estados Unidos presos, próximo à
fronteira dominicana, com 33 crianças haitianas dos 2 meses aos 14 anos de
idade.
Entre os setores mais vulneráveis da sociedade haitiana se sobressai,
com nitidez, a infância, desprovida de seus direitos os mais elementares.
Paralelamente ao espetáculo, único e emocionante, do mar de crianças em
seus uniformes perfeitos e que se pode apreciar nos horários escolares em
todo o país, existe uma realidade infantil dolorosa e subterrânea que se tenta
esconder.
Distante do segundo colocado, a sociedade haitiana é a que abriga os
maiores índices de filhos concebidos à margem do matrimônio. Com
pequenas variações, calcula-se que dois terços dos recém nascidos com vida
no Haiti são filhos de pais que não possuem nenhum vínculo formal. O mais
grave consistia no fato que a Justiça haitiana – aplicando o Código Civil de
inspiração napoleônica de 1804 – havia criado quatro categorias de crianças
com direitos desiguais: legítimas, naturais, adulterinas e incestuosas.
As legítimas são crianças nascidas do casamento e protegidas pela lei.
As naturais são crianças de pais que não possuíam nenhum vínculo marital
entre si e com outra pessoa no momento de sua concepção. O nome do pai
bem como direitos sucessórios somente serão outorgados caso o progenitor o
reconheça como filho.
A situação aberrante a afrontar a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e
em direitos...”) e a Convenção Internacional Sobre Direitos da Criança –
ambos firmados e ratificados pelo Estado haitiano – agride as crianças
adulterinas e incestuosas. Estas são estigmatizadas pelo Código Civil que
proíbe qualquer reconhecimento paterno, seja seu nome, seja seu patrimônio.
Culpa-se a vítima e absolve-se o algoz.
Após uma longa e difícil luta durante a qual a OEA contou com o
apoio de numerosos movimentos haitianos pelos direitos humanos,
conseguimos aprovar, em 2010, a Loi de la Paternité Responsable,
modificando substancialmente o Código Civil. Foi introduzida a
obrigatoriedade do exame de DNA para o suposto pai e eliminou-se, com
mais de dois séculos de atraso, os infames dispositivos que discriminavam
parte importante da população haitiana.
Apesar de uma taxa de mortalidade infantil elevada, impressiona o
crescimento demográfico. Com efeito, estima-se que a população haitiana
cresça a um ritmo pouco inferior a 2% ao ano. Além disso, ela é muito
jovem, pois 40% da população encontra-se abaixo dos 14 anos. Tal fenômeno
foi reforçado pelo terremoto, posto que a esperança de vida dos homens
diminuiu de 60,6 anos para 59,9 anos e das mulheres de 63 para 62 anos.
Em compensação, logo após o sismo a taxa de fecundidade foi
triplicada passando de 4% a 12%. Esse baby boom terá implicações
demográficas importantes nos próximos anos fazendo do Haiti um caso único
na Bacia do Caribe.
Com uma curva demográfica ascendente a contrastar com a curva de
desempenho econômico descendente, a população haitiana – ao contrário da
maioria de outros países – empobrece progressiva e inelutavelmente.
Não constitui surpresa constatar que, proporcionalmente a sua
população, seja o país que mais disponibiliza crianças para adoção. O que
marca a criança adotável haitiana – diferentemente do que ocorre em outras
sociedades similares – é o fato de que não se trata de órfãos ou de pais em
conflito com a Justiça. Trata-se de crianças cujos pais existem, embora
supostamente não disponham de condições econômicas para sustentá-las.
Assim, cálculos oficiosos indicam que 80% das 300 mil crianças abrigadas
nos orfanatos haitianos de fato não são órfãs.
Após o sismo, a Diretora adjunta do Unicef, Hilde Johnson,
considerava que estava diante da “mais grave crise de proteção das crianças
alguma vez vista”, devido ao grande número de órfãos e crianças separadas
dos familiares.
A chefia do núcleo familiar haitiano é majoritariamente exercida pela
mãe. Ostentando os índices mais elevados das Américas (60% no meio
urbano e 53% na média nacional), o percentual de mães haitianas
economicamente ativas alcança 56,5%, constituindo o primeiro nas regiões
da América Latina e Caribe. Estas terríveis condições, conjugadas com a taxa
de fertilidade das mulheres das camadas menos favorecidas da população
(média de 6,6 filhos), explicam as razões que conduzem ao surgimento de um
verdadeiro mercado da adoção no Haiti.
Não somente as crianças haitianas são vulneráveis. Também o são
suas progenitoras. Segundo dados recentes da organização Save the Children,
a probabilidade de uma mulher morrer por problemas associados à
maternidade alcança 1 por 525 na média latino-americana. No Haiti a
proporção é de 1 por 83 nascimentos, o que o coloca distante do penúltimo
colocado na região (Guatemala) e em uma das últimas posições (164ª) em
escala mundial.
A separação de mães e filhos quando do terremoto provocou situações
chocantes. Ocorre que após algumas semanas do sismo, crianças perdidas
puderam graças ao trabalho de busca e proteção de organizações tais como o
Unicef e o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, reencontrar suas mães.
Ora, em muitas oportunidades após beijos felizes e amorosos, as mães
declaravam que não dispunham de condições para criá-los e os abandonavam
com quem os havia encontrado. Trabalhadores sociais estrangeiros
habituados aos dramas individuais e coletivos que acompanham a miséria e
os conflitos em várias regiões do mundo confessaram que jamais haviam
testemunhado tais cenas.
O caminho da adoção nacional apresenta características típicas de uma
situação de domesticidade forçada e de escravidão moderna. A colocação
(“plaçage”) de crianças oriundas de famílias supostamente impossibilitadas
de criá-las em famílias que as transformam em pequenos trabalhadores
domésticos e agrícolas constitui prática recorrente, socialmente aceita,
histórica e generalizada.
Fenômeno de origem rural, que alguns autores denominam
candidamente de economia moral familiar ou economia da afeição, o modelo
restavec (“restez avec”) estendeu-se ao meio urbano e perverteu-se. Pensado
inicialmente como uma forma para as famílias camponesas educar seus filhos
nas cidades, atualmente há um comércio destas crianças, no qual atuam
intermediários (koutchye) que agem movidos pelo lucro.
Estimações de origem variada avaliam que atualmente 250.000
crianças, ou seja, 10% do total do universo infantil, a maioria meninas entre 5
e 17 anos, se encontram nestas condições. Tanto a moral quanto a afeição
estão muito distantes do cotidiano destes miniescravos: não são alfabetizados,
são vestidos com farrapos, não são considerados como crianças e estão à
disposição dos filhos legítimos que os transformam em seus próprios
escravos, inclusive sexuais.
Assim relata a Organização Internacional do Trabalho (OIT) que vela,
entre outras atribuições, pelo fim do trabalho escravo, o cotidiano de um
restavec.

Sua jornada começa às 4 horas da madrugada. Ela se desperta enquanto a


casa dorme. Em silêncio, ela esvazia os penicos e varre a casa. Em seguida
ela faz várias idas e vindas até a parte baixa da rua trazendo baldes com
água.
Quando o sol aparece, ela prepara o café e aquece o azeite para o café da
manhã da família – salvo que... não se trata de sua família.
Cada jornada é feita de trabalhos domésticos semfim, do despertar ao
adormecer.
Ela tem sete anos. Ela é uma restavec.

A sucinta descrição de uma jornada de uma criança escravizada no


Haiti feita pela Organização Internacional do Trabalho revela também que as
jornadas de trabalho, sem repouso semanal, duram entre 10 e 14 horas.
Apesar de preparar as refeições elas se alimentam, geralmente, de restos de
comida. Uma criança restavec de 15 anos tem menos 4 centímetros e pesa 20
quilos menos quando comparada com uma criança haitiana normal.
Além da chocante realidade, chama a atenção a indiferença social e
política. Excetuando raríssimos casos, a grande maioria não considera que se
trata de um problema a resolver e de uma injustiça a reparar. Respeitados
interlocutores haitianos consideram o modelo restavec como sendo uma
simples característica cultural de seu país.
Em outubro de 2013, foi lançado pela Walk Free Foundation o
primeiro índice de Escravidão Global. O Haiti – contabilizando 209.100
escravos – ocupa o desonroso segundo lugar mundial.[115] Apesar da
impactante denúncia, a imprensa, os partidos políticos, o governo e os
intelectuais haitianos sequer a mencionaram.
Com o apoio de algumas Ongats, do Birô Internacional do Trabalho,
da Unesco e de Governos, entre outros, projetos, programas e dispositivos
legislativos e financeiros foram adotados nestas três ultimas décadas. Tais
esforços não foram suficientes para amenizar a triste realidade.
Apesar de o Haiti ter ratificado as Convenções 182 da OIT
(“Eliminação das piores formas de trabalho infantil”) em julho de 2007 e a
138 (“Idade mínima do trabalhador”) em junho de 2009 – ambas inibidoras
da escravidão infantil – o país não as respeita.
Em uma sociedade fraturada como a haitiana, há imensas dificuldades
para construir consensos em torno de temas centrais. Debates acirrados,
contudo, acontecem sobre um amplo rol de temas como a organização do
Estado, o regime político, a descentralização, a agricultura, o sistema judicial,
etc. No que diz respeito ao modelo restavec tampouco há consenso embora a
razão seja outra: ausência de debates sobre a temática. Na perspectiva
haitiana, trata-se de um pseudoproblema a ocupar o espírito de alguns
estrangeiros incapazes de compreender o país.
Ausente a consciência torna-se impossível à ação. Enquanto aquela
não aflora, o maior, o mais constante e mais desumano crime coletivo
prosseguirá cobrando vítimas inocentes e manchando o berço da luta contra a
escravidão.
Não deixa de surpreender que a primeira sociedade a abolir a
escravidão, há mais de dois séculos, prossiga praticando-a de maneira
sorrateira, invisível e silenciosa, contra o mais frágil de seu cidadão.
Paradoxal Haiti.
A adoção feita por estrangeiros constitui prática recorrente nestes
últimos 30 anos. Ocupa lugar destacado a França, que acolhe
aproximadamente 400 crianças haitianas anualmente. Outros países europeus
(mormente Suíça e Bélgica), bem como Estados Unidos e Canadá, são
aprovisionados no mercado infantil haitiano. Não há que temer com o
significado das palavras: trata-se, sim, de um mercado em que as transações
acontecem segundo princípios comerciais da oferta e da demanda.
O Haiti não ratificou a Convenção de Haia de 1993 sobre a proteção
da infância e a cooperação em temas de adoção internacional. Ocorre que um
de seus princípios fundamentais propugna que uma criança somente é
adotável com a condição de que nenhuma família haitiana possa acolhê-la no
próprio país. O princípio confronta os interesses da rede de interesses em
torno da adoção internacional impedindo a mínima proteção à criança
adotável.
O Estado haitiano dispõe do Instituto do Bem-Estar Social (IBESR)
encarregado dos procedimentos oficiais para a adoção. Na abertura de cada
processo, o solicitante reembolsa ao IBESR US$130. Parte dos salários dos
funcionários do Instituto é coberta por esta receita.
O conjunto de condições explica o incremento exponencial das
adoções internacionais. Elas passam de uma média anual de 400 crianças no
início dos anos 90, para 1.500 na segunda metade da década de 2000.
A oferta de crianças para adoção sempre existiu. A demanda
internacional havia regredido em razão de campanhas de esclarecimento,
contudo notou-se seu incremento a partir de 2007, quando dobra o custo
processual para adoção, alcançando atualmente US$ 10.000.
Também cresce o número de creches oficiais, legalizadas pelo IBESR,
especializadas na adoção internacional. Passam de 47 em 2005 para 66 em
2008. Para cada creche oficial há quatro outras clandestinas. Muitas destas
abastecem as anteriores.
A legislação haitiana não reconhece a adoção plena. Ela obriga os pais
adotivos a manterem o adotado em contato com os pais naturais. Por esta
razão, as creches obrigam a mãe natural a firmar um documento transferindo
a autoridade parental por um período de 18 anos, quando a criança alcança a
maioridade.
Analfabetas, as mães dos adotáveis são convencidas de que manterão
contato regular com as crianças. Ora, a preocupação das creches e dos pais
adotivos consiste em romper qualquer vínculo com a família natural. Esta
pretendia uma vida melhor para seu filho e não imaginava que o perderia para
sempre.
Os responsáveis diplomáticos e consulares dos países adotantes atuam
como agentes dos pais que buscam adotar no Haiti. Partindo do pressuposto
de que o adotável estará em melhor situação em sua futura família, tudo
fazem para acelerar os procedimentos. Situação ainda mais grave conheceu a
adoção internacional pós-sismo. Dela resultou a confusão entre criança
adotável e criança a ser salva, entre busca de uma nova família e posse de
uma criança.
Chegaram ao Aeroporto de Orly, localizado nos arredores de Paris, no
dia 11 de fevereiro de 2010, em dois voos especiais, 318 crianças haitianas.
Foi o primeiro dos muitos grupos que deixaram o Haiti em direção aos
Estados Unidos, Canadá e Europa Ocidental e cujos processos de adoção
foram acelerados – apesar da oposição do governo haitiano – em razão do
terremoto.
O Tribunal de Contas francês reconheceu que, durante o ano de 2010,
aproximadamente mil crianças haitianas foram adotadas e chegaram à França.
No mesmo Relatório, o Tribunal indicou que, apesar da Convenção de Haia –
ratificada por Paris em 1998 – proibir a adoção individual, a maioria das
adoções feitas no Haiti o foi por francês monoparental. Trata-se de prática
recorrente a contrariar frontalmente os interesses do adotável e a infringir
regras internacionais.
A imprensa apresentou, tanto o governo francês quanto os pais
adotivos, como verdadeiros heróis por, supostamente, terem salvado tantas
vidas. Psicólogos e psicanalistas especializados em infância, contudo,
apontam os erros cometidos:
a) dossiês médicos, psicológicos e sociais incompleto ou pouco
confiáveis;
b) os candidatos à adoção são pais, em sua maioria celibatários (70% a
80%) ou em idade avançada, cujas candidaturas haviam sido rejeitadas em
processos ocorridos anteriormente em outros países;
c) ausência de garantias jurídicas que assegurem o acordo formal dos
pais naturais.
O conjunto destas debilidades, além de aumentar o risco de tráfico de
crianças, dificultará a harmonia necessária do novo núcleo familiar do
adotado.
Terra dos Homens, uma das organizações atuantes na luta para
preservar os interesses e direitos dos adotáveis, criticou severamente estas
operações de urgência. Segundo ela, “a maior parte destas crianças não
dispõe de uma decisão judicial e não pode legalmente ser adotada. A situação
familiar não foi analisada pelas autoridades haitianas e as crianças não foram
preparadas para deixar seu país”.
Segundo a responsável pela política de adoções desta organização,
Marlène Hofstetter, “Ce que la France vient de se permettre de faire est
scandaleux ...on confond humanitaire et adoption.”[116]
Duas lógicas são confrontadas. De uma banda a da intervenção
humanitária que exige rapidez. De outra a da construção filial que exige
tempo. Ao fundi-las os países adotantes criaram uma situação que terá
consequências negativas no futuro, tanto para os adotados quanto para suas
famílias.
A não ser por alguns episódios a vida retomava um mínimo de
normalidade. Uma manhã saía do prédio, como sempre dirigindo a
caminhonete de trabalho, pois havia agendado reunião na sede da OEA com a
ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, do Supremo Tribunal Federal (STF)
que concluía uma visita de trabalho ao Haiti. Quando ainda me encontrava
em Juvenat senti um forte baque, acompanhado por um estrondo. Não notei
nada e procurei com o olhar identificar algo próximo. Logo me assaltou a
ideia de um atentado, o que contrariava completamente minha tese sobre a
crise haitiana.
Após parar o veículo, observei duas pessoas do outro lado da calçada
que olhavam para o alto e faziam gestos. Desembarquei e constatei com
estupor a cena: um poste de madeira da rede elétrica, cujos fios enredados e
desencapados estavam queimando desde a véspera, havia se partido ao meio.
A parte superior do poste girara e descera, como se uma lança fosse, sobre o
parabrisas da caminhonete, por incrível que possa parecer, no exato momento
em que transitava pelo local.
Refeito do susto solicitei a presença dos serviços responsáveis, que
cortaram a eletricidade. Quando retornei no final da tarde o fogo prosseguia
consumindo os dois pedaços de poste. Comunicado o serviço de eletricidade
sobre a situação, estes informam haver cumprido com sua obrigação. Com
uma lógica desarmante declararam: “éteindre des incendies est l`affaire des
pompiers. »
O singelo episódio ilustrava bem o grau de irresponsabilidade coletiva
que havia alcançado a sociedade haitiana. Um simples recipiente com água
trazido por iniciativa de um particular ou de um vizinho era algo impossível
de imaginar.
No dia seguinte, mesma situação e mesma cena. Foi somente a chuva
do anoitecer que apagou o pequeno incêndio. Decepcionado com a atitude de
todos, confirmava minhas suspeitas que sem uma mudança de mentalidade e
de cultura não chegaríamos a lugar algum.
Nas primeiras horas que sucederam ao terremoto, os hospitais e
centros de saúde que não haviam sido completamente destruídos foram
assaltados por milhares de pessoas que traziam feridos. Logo ficaram lotados,
com os mais diversos graus de ferimentos, salas de cirurgia, quartos,
corredores, pátios, jardins e estacionamentos.
Muitos cirurgiões estrangeiros chegaram ao porto que não era mais o
principesco, mas o da desgraça, o do indizível sofrimento. A maioria das
cirurgias era realizada sem as mínimas condições de higiene, por vezes sem
anestesia e muitas resultaram em amputações e em mortes.
Os cirurgiões descreveram as lágrimas, o sangue, os odores, os gritos,
a poeira, o calor sufocante, os cadáveres empilhados ao lado da mesa de
operações e a morte, tudo que marcou os primeiros dias. Alguns dos relatos
são pungentes e seus autores reconhecem que estão para sempre impregnados
pelos acontecimentos e dramas daqueles terríveis dias.
O mais penoso e difícil era a decisão, o dilema imposto pelas
dramáticas circunstâncias. Constantemente os médicos debatiam-se com a
dúvida entre tentar salvar uma perna gangrenada repleta de bactérias e a
amputação. Os cirurgiões estavam operando numa situação muito pior do que
a de uma guerra. Para esta tudo estava planejado. Para a realidade haitiana,
nada.
Como ocorre em circunstâncias excepcionais, a natureza humana
acompanha pari passu por vezes o sublime, por vezes o horroroso. Duas
semanas após o sismo ouviram-se murmúrios provenientes de escombros.
Após 18 horas de uma luta frenética e cuidadosa, foi retirada com vida e sem
nenhum ferimento a menina Darlene. Ela tornou-se o símbolo da luta pela
vida do povo haitiano.
Entre os raros hospitais que não ruíram e que mantinham excelentes
condições de atenção encontrava-se o Hospital da Minustah, sob
responsabilidade dos militares argentinos, localizado próximo ao aeroporto.
Durante a noite que sucedeu o sismo centenas de familiares haitianos levaram
seus feridos com a esperança de receber um atendimento de primeiros
socorros. Foram surpreendidos por portões hermeticamente fechados. Não
porque ele estivesse lotado. Ao contrário. Havia lugares e disponibilidade, no
entanto sua direção e seus profissionais preferiram seguir as confortáveis
regras administrativas que impediam de acolher haitianos e renegaram o
juramento de Hipócrates.
O prédio do hospital da Minustah estava cercado por um alto muro e
sua entrada protegida por militares armados. Estes rechaçavam qualquer
tentativa de aproximação e ameaçavam os insistentes com suas armas. Tal
atitude desnaturava o que deve ser uma casa de saúde: um local acolhedor
franqueado a todos que buscassem alívio e auxílio.
Parecia não mais se tratar de um hospital, posto que havia se tornado
uma fortaleza inexpugnável e a seus responsáveis cabia o poder de escolher
seus pacientes. A injustiça da situação choca em qualquer circunstância. O
que dizer então na situação de calamidade e de excepcionalidade que
dominava a região metropolitana de Porto Príncipe quando 300 mil feridos
esperam socorro médico?
Os ocupantes do Hospital da Minustah mantiveram-se surdos aos
lamentos, clamores, súplicas, rezas e prantos que provinham de um povo que
sangrava mortificado e, como derradeiro recurso, cercava o estabelecimento.
Na espera que se alongava, feridos morreram, no entanto nada e ninguém
conseguiam fazer com que os médicos militares afastassem-se da confortável
e chocante indiferença que haviam adotado.
O desespero tomou conta da massa humana que estendia os braços
portando seus familiares feridos com a esperança de que a simples visão
apocalíptica viesse amolecer os corações enrijecidos dos guardiães.
Não restava solução ao pavor da perspectiva de uma morte certeira.
Assim, não foram poucos os desesperados pais e mães haitianas a tomar uma
dramática e dolorosa decisão: improvisando uma espécie de escada com
caixotes, colocados uns sobre outros, arremessavam seus filhos feridos por
sobre o muro de proteção que circundava o hospital. Derradeira tentativa para
salvar sua vida. Somente assim havia esperança de serem atendidos.
Posteriormente, fruto do doloroso episódio, o mencionado hospital
mudou a regra e passou a admitir também pacientes familiares dos
funcionários haitianos da Minustah. Triste consolação.
Quando um dos mais graduados militares estrangeiros da Minustah
soube que o Hotel Montana havia ruído, local onde se encontrava sua esposa,
ordenou o que todos os estrangeiros com posição de mando haviam feito:
enviar os militares sob sua responsabilidade para resgatar, antes de todos,
seus próprios compatriotas. Como veremos, no entanto, havia uma pérfida
especificidade neste caso.
Com lanternas, tentando penetrar no perigoso labirinto dos escombros,
os militares avançavam penosamente. A cada instante paravam. Faziam
silêncio. Então o comandante do grupo gritava: “Há uma senhora chilena
aqui?”
Somente o lúgubre e empoeirado silêncio respondia. O ritual se repetiu
diversas vezes ao longo do percurso entre escombros instáveis. Após algumas
horas de inúteis buscas e prestes a encerrá-las, os militares dirigem-se à parte
externa do hotel, onde há pouco fora construído um pequeno Centro
Comercial (Village Montana). Apesar de ser um prédio edificado respeitando
as normas sísmicas, também ele havia ruído.
O comandante do grupo retomou o exercício: caminhada, silêncio,
indagação. Quando menos esperavam, finalmente uma voz feminina
respondeu em espanhol: “Sim. Sou chilena. Estou aqui debaixo dos
escombros”.
Fez-se silêncio novamente. Passaram-se alguns segundos que
pareciam uma eternidade. Então o chefe dos socorristas questiona novamente,
mudando o conteúdo da pergunta: “Como te chamas?” A voz responde:
“Maria Isabel”.
Ouviu-se uma breve confabulação. Logo a seguir passos ressoaram
novamente. Maria Isabel notou que o grupo dela se aproximava. Espremida
pelo concreto, com o olho direito fechado por um ferimento, ela foi
informada que o grupo de resgate buscava uma pessoa específica. Embora
chilena, ela não poderia receber auxílio. Os militares deveriam prosseguir
buscando a vítima correta.
Maria Isabel aparentemente entendia a situação. Solicitou, então, que
lhe fizessem um favor. Conseguiu rabiscar dois números de telefones de
Santiago do Chile e de Paris. Implorou para que seus filhos fossem avisados
que ela estava viva. Os militares pegaram o bilhete e afastaram-se.
Retornou o silêncio. Distante surgiu novamente a voz do comandante
que prosseguia com sua angustiante indagação: “Há uma senhora chilena
aqui?”
A chilena Maria Isabel Moreno procurou um refúgio, que deveria ser
provisório, no Haiti, quando do golpe militar de 1973 que vitimou a
democracia chilena. Enamorou-se do país e de seu povo. Decidiu asilar-se na
ilha e nunca mais a deixou. Fundou uma Galeria de Arte haitiana e
recentemente havia aberto uma pequena filial no Village Montana. Agora
estava ela, debaixo dos escombros, à espera de salvação improvável pelos
mesmos militares que a obrigaram deixar seu Chile natal.
Durante 20 longas horas Maria Isabel aguardou ser resgatada.
Finalmente saiu com vida dos escombros. Assim ela pôde narrar sua incrível
e reveladora odisseia. O corpo da chilena buscada foi encontrado somente
nove dias mais tarde. Não estava decomposto, o que indica ter padecido de
um calvário durante vários dias. Por pouco não se operou um milagre.
Certa manhã a cidade devastada foi surpreendida com a chegada de
um inesperado visitante. Aproveitando-se da obscuridade, um luxuoso
transatlântico havia manobrado e agora estava fundeado na baía de Porto
Príncipe, a poucos metros do cais destruído. Interpretações desencontradas
logo surgiram. A hecatombe faria parte de um novo roteiro turístico? Não
bastava seus céus serem constantemente singrados pela mórbida curiosidade
dos jet sets internacionais? Será que seu mar também teria idêntico destino?
O pavilhão da República Bolivariana da Venezuela a identificar a
nacionalidade do barco adicionava mistério.
Finalmente, após inúteis esforços tentando esconder o que era
impossível de sê-lo, a contragosto a Minustah reconheceu ter alugado o navio
venezuelano “Ola Esmeralda” para servir de hotel flutuante aos seus
funcionários civis. Eles disporiam de todo conforto oferecido por um cruzeiro
internacional, bem como a segurança contra eventuais réplicas. Raras vezes o
chocante contraste entre os que possuem e os despossuídos, entre os
assistidos e seus supostos benfeitores, entre os haitianos e estrangeiros,
alcançou tamanha nitidez.
Poucos dias depois aconteceu a primeira das muitas reuniões
internacionais destinadas a recolher e coordenar a ajuda internacional. Foi
organizada no Palácio Presidencial por Leonel Fernandez em Santo
Domingo. Era uma forma de sublinhar a extraordinária atuação do governo e
do povo dominicanos. Antes de todos, foram eles que acorreram à cabeceira
do enfermo haitiano. Séculos de desavenças e incompreensões pareciam ser
varridos como folha morta pela brisa da solidariedade insular.
Em seu afã de colaborar no que fosse possível, Leonel Fernandez
anunciou várias iniciativas. Entre elas a de que militares de seu país estavam
dispostos a integrar a Força de Paz das Nações Unidas no Haiti. Tanto o
Embaixador dominicano, Ruben Silié Valdez, quanto eu mesmo, fizemos ver
que a presença de forças armadas dominicanas no Haiti, embora sob a
bandeira da ONU, provocaria críticas, incompreensões e ressentimentos
facilmente explicáveis pela turbulenta história da Hispaniola. Logo a
pretensão de Fernandez foi abandonada.
De todo o modo a reunião serviu para demonstrar que o Haiti não seria
abandonado a sua própria sorte na hercúlea tarefa de limpeza dos escombros
que urgia e na reconstrução que se avizinhava. Para tanto duas providências
eram necessárias.
A primeira foi a adoção, em abril de 2010, de uma Lei de Emergência
concedendo amplos poderes ao Executivo por um prazo de 180 dias,
renováveis. Apesar da desconfiança generalizada com possíveis abusos, o
presidente Préval comportou-se com moderação e a utilizou unicamente para
defender o interesse público, caso das desapropriações. Sua intenção de
reconstruir completamente o centro de Porto Príncipe, no entanto, impedindo
o exercício de propriedade de influentes comerciantes, não somente sofreu
ferrenha oposição como também paralisou, até meados de 2012, quando foi
oficialmente abandonada por Martelly, qualquer operação na nevrálgica e
valorizada região.
No ocaso de seu governo Préval dispunha de uma maquete de como
deveria ser o novo centro de Porto Príncipe, ocupada essencialmente por
prédios públicos, hotéis, praças, zonas comerciais e ruas para pedestres.
Planejada rigorosamente, encontrar-se-ia há anos-luz da balburdia caótica que
sempre a caracterizou. A todos que recebia, Préval explicava com entusiasmo
como seria a vida na renovada capital. Inútil pretensão. Instigados pelos
detentores do poder econômico do Haiti, a Comunidade Internacional fazia
ouvidos de mercador, jamais levando a sério o projeto e não concedendo
nenhum incentivo para sua concretização. Unicamente a França apressa-se e
se oferece para reconstruir o Palácio Nacional tal qual o que fora destruído.
Simples blefe nunca efetivado.
A segunda iniciativa decorre da eterna desconfiança quando se trata de
cooperar com o Haiti. Era indispensável se precaver contra seus dois
principais males: a corrupção e a crônica incapacidade administrativa. Assim
surge a Commission Intérimaire pour la Reconstruction d`Haïti (CIRH).
CAPITULO VII – A CIRH: A CRISE NO INTERIOR DO DRAMA

Como comunidade a espécie humana é um desastre.


José Saramago

Comparado com outras catástrofes naturais e levando em consideração


o número de habitantes, de vítimas fatais, de feridos e o Produto Interno
Bruto (PIB) per capita, o sismo haitiano se constitui no desastre natural mais
destruidor da era moderna.
O terremoto atingiu o coração do Haiti, posto que se concentra na
região metropolitana de Porto Príncipe 65% das atividades econômicas. Ela é
também responsável por 85% das receitas fiscais. O país perdeu em 35
segundos o equivalente a 120% de seu Produto Interno Bruto e o Estado um
terço de seus funcionários.
Sem mencionar a destruição dos arquivos públicos, os quais
constituem uma memória institucional e administrativa indispensável à ação
estatal. O Haiti, portanto, transita de uma situação de quase-Estado para a de
ausência de Estado.
Neste contexto extremo foi criada Comissão Provisória para a
Reconstrução do Haiti (CIRH) e com ela um primeiro risco: a de substituir-
se definitivamente um Estado inexistente.
A CIRH nasce formalmente por meio da Lei de Emergência, em abril
de 2010 com duração prevista de 18 meses. Sua principal função consiste em
drenar todos os recursos disponibilizados pela CI e administrá-los de maneira
transparente, eficaz e coesa. Compõe-se de um grupo de 30 personalidades
divididas paritariamente entre haitianos e estrangeiros. Estes representam
Estados ou grupos de Estados, que se comprometessem com doações de no
mínimo US$ 250 milhões, organizações internacionais voltadas ao
desenvolvimento (Banco Mundial, BID, FMI) e organismos regionais (OEA,
Caricom), Além, por evidente, de presença marcante do sistema das Nações
Unidas.
Legitimado pela concessão de uma ajuda inicial de US$ 200 milhões
logo após o sismo, o Brasil era o único país latino-americano a integrar a
CIRH. A promessa de auxílio alcançou US$ 340 milhões quando da
Conferência de Doadores, em Nova York. De fato, Brasília realiza um
esforço sem precedentes, ainda mais se considerarmos que se trata de um país
em desenvolvimento. Jamais havíamos concedido em nossa história tal
montante a um país vitimado por catástrofe natural.
Os integrantes haitianos provinham do Executivo, da diáspora, de
movimentos sociais e de organismos não-governamentais. A copresidência
era exercida pelo primeiro ministro Jean-Max Bellerive e pelo ex-presidente
dos Estados Unidos, William Jefferson Clinton, recém nomeado Enviado
Especial do SGNU para a Reconstrução do Haiti. A Secretaria Executiva em
Porto Príncipe estava a cargo do economista Gabriel Verret, naquele
momento conselheiro econômico de Préval e anteriormente funcionário da
Usaid. Contudo, havia uma Secretaria informal em Nova York integrada por
colaboradores da Fundação Clinton Global Initiative. Para servir de elo entre
as estruturas, foi nomeado o arquiteto e político Leslie Voltaire. Nota-se de
pronto o papel fundamental tanto de Bill Clinton quanto dos Estados Unidos.
Estes interesses cruzados impregnarão as atividades da Comissão e
provocarão inúmeros qüiproquós, desconfianças e ineficiência.
Quando da Conferência de Doadores ao Haiti, reunida em Nova York
em março de 2010, foi anunciado um pacote de promessas financeiras que
alcançavam a impressionante soma de US$ 11 bilhões para os cinco anos
seguintes. Logo, todos os olhares dirigem-se a CIRH. Tanto os bem
intencionados quanto aqueles ávidos por negócios.
A CIRH inspirou-se no modelo utilizado quando do tsunami de Aceh,
na Indonésia. Ao contrário deste, no entanto, ela não administra recursos
financeiros, nem sequer programa sua aplicação. A CIRH, portanto, não
constrói nenhuma infraestrutura e não orienta as ações governamentais. De
fato, trata-se de um espaço de diálogo, gerador de confiança, garantia de
transparência e de coerência. Serve igualmente para chamar a atenção dos
doadores sobre eventuais promessas não honradas.
Os projetos devem receber expressa autorização do ministro de Tutela
antes de serem analisados pela CIRH. Ele é quem os encaminha. Foi o
instrumento prático encontrado para reforçar a capacidade do Estado haitiano.
Além do nihil obstat ministerial a montante, a jusante, ao final do longo
itinerário processual, há a indispensável anuência presidencial, sem a qual
nenhuma decisão emanada da CIRH pode ser efetivada.
Todos os integrantes da CIRH foram nomeados por Decreto
Presidencial assinado por Préval, seguindo sugestão de seus respectivos
governos ou organizações internacionais. Esse foi o meu caso. Não sem
dificuldades. O batavo-surinamês Albert Ramdin pretendia o posto, uma vez
que da Comissão emanava uma suposta aura graças à presença de Bill
Clinton. Inclusive meu concorrente propôs que representaria a OEA, vindo
especialmente de Washington, unicamente nas reuniões presididas por Bill
Clinton. Nas demais eu poderia participar na qualidade de Representante
Alterno. O chocante “caradurismo” carreirista travestido com insólita
argumentação, obrigou-me a radicalizar minha posição: ou seria o
Representante da OEA ou não contassem comigo para qualquer assunto
vinculado a CIRH. Venci a queda de braço, consciente de que a partir dela o
segundo na hierarquia da OEA tudo faria para obstaculizar meu trabalho no
Haiti.
Foi a primeira e única oportunidade em que trabalhei com o ex-
presidente dos Estados Unidos. Artista da comunicação, homem charmoso
que parecia sincero em sua dedicação à causa haitiana, Bill Clinton brilhava
com todas as luzes. Apesar de não se expressar em francês – língua de
trabalho da CIRH – ele introduzia temas, fazia sugestões – logo acatadas – e
com bonomia ele mediava conflitos e extraía conclusões. Secundado
eficientemente por Jean-Max Bellerive, a quem incumbia as explicações
técnicas e as respostas, por vezes ríspidas, a indagações impertinentes, o duo
se esforçava em afinar uma orquestra a que tudo conduzia produzir cacofonia.
Nos intervalos das sessões observava intrigado que muitos colegas,
sobretudo mulheres e por vezes embaixadoras, sob qualquer pretexto,
aproximavam-se sorridentes de Clinton. Após um intercâmbio rápido de
gentilezas, pude entender o que era buscado. Logo surgia alguém de antemão
preparado e fotografava os personagens. Enquanto Clinton despedia-se
divertido, seus interlocutores relâmpagos se afastavam sorridentes mostrando
a todos seu troféu.
Nestas e em outras oportunidades confirmava o visível e
indesmentível interesse de Clinton pelos dramas haitianos. Como ele chegou
a isso? Trata-se de uma bênção ou de uma maldição? Em qualquer hipótese o
casal mais poderoso e influente da política internacional destes últimos 30
anos é, igualmente, o ator incontornável da política haitiana.
Tudo começou quando Hillary Diane Rodham e William Jefferson
Clinton casam-se em 11 de outubro de 1975. Ao contrário do que reza a lenda
difundida pelos próprios interessados, a lua de mel do casal não foi uma
viagem ao Haiti, mas a Acapulco, no México. Ao retornar aos Estados
Unidos, Bill e Hillary Clinton recebem o convite de David Edwards – amigo
e executivo do Citibank – para acompanhá-lo ao Haiti. A motivação de
Edwards em aproximar Clinton do Haiti não era cultural, sequer humanitária.
Ocorre que o Citibank detém interesses financeiros de longa data no
Haiti. Em 1909 o National City Bank of New York (Citibank) adquire a
maioria das ações do Banque Nationale d’Haïti (BNH) que se encontrava em
mãos francesas e que desde 1880 detinha o poder de emitir papel-moeda e de
servir de caixa central ao Tesouro Nacional haitiano. Em 1914, Roger Leslie
Farnham, encarregado da região do Caribe no Citibank, pressionou o
Secretário de Estado William Jennings Bryan para que que Washington
interviesse militarmente no Haiti a fim de proteger os interesses norte-
americanos. No ano seguinte terão início 17 anos de ocupação do país.[117]
O Citibank possuía em sua carteira importantes títulos da dívida
externa haitiana e um futuro apoio no Congresso dos Estados Unidos poderia
facilitar as turbulentas negociações com as autoridades haitianas. Dispondo
de tempo, pois a jovem promessa democrata havia sido derrotada nas
recentes eleições, Bill Clinton decidiu aceitar o convite do Citibank.
Em suas memórias, publicadas em 2004, Clinton comete um deslize e
anuncia uma meia verdade. Segundo ele, David Edwards “said he had enough
frequent flier miles built up to pay for our tickets, and he wanted to give us
the trip as a wedding present. Barely a week after we returned from Mexico,
we were off again.”[118]
Ora, à época o pagamento de bilhetes aéreos por meio da modalidade
de milhagem sequer existia. Por que então mencioná-lo? O desconforto de
Clinton em revelar que sua dedicação pelo Haiti não é desprovida de cálculos
interesseiros obriga-o a utilizar-se de certa hipocrisia e de meias verdades.
Estas impregnarão, por décadas, suas relações com a ilha caribenha.
A viagem foi realizada em dezembro do mesmo ano. O jovem casal
fez o que alguns artistas e excêntricos personagens costumavam fazer ao
longo da década dos anos 70: conhecer as magníficas paisagens haitianas, sua
capital de aspecto provinciano abrigando uma arquitetura vitoriana de estilo
Gingerbread, sua maravilhosa arte naïf e a força de seu misterioso vodu.
Além disso, a exótica República era habitada “por negros que falavam o
francês!” segundo a racista observação do então Secretário de Estado do
presidente Woodrow Wilson, William Jennings Bryan. Como corolário o
Haiti já ostentava o indesejado titulo de país mais pobre do Continente.
Não escapa a ninguém o fato de que o convite de Edwards tinha uma
clara intenção: conseguir a simpatia de Bill para promover os interesses do
Citibank no Haiti. Ele jamais imaginou alcançar tamanho envolvimento dos
Clinton, sobretudo a partir dos anos 90, quando desempenharão um papel
político e econômico de primeiro plano nos assuntos haitianos.
A viagem, todavia, também teve um resultado colateral inesperado.
Ocorre que o Haiti despertou um imenso interesse intelectual no jovem casal,
que confessa ter “regressado fascinado” aos Estados Unidos. Hillary Rodham
resume perfeitamente o sentimento contraditório que os subjugava:
retornamos, diziam eles, “encantados e desesperados com o Haiti”. A ponto
do país se transformar, como relatou o próprio Clinton, “numa obsessão
familiar” e dar-lhes a certeza de que tinham “uma responsabilidade especial”
com os haitianos.
Este Haiti, a ocupar “um lugar especial em seus corações”, também
propiciou, ao longo de décadas de convívio, uma importante coleção de obras
de arte que decora a residência familiar dos Clinton. Ou seja, o Aedes Haitia
havia agido e os transformado em apaixonados militantes dos temas
haitianos. O paradoxo alcança seu limite quando contrapomos a paixão
avassaladora e o interesse constante dos Clinton com a indiferença que
impregna os núcleos de poder internacional com a causa do Haiti. Quando se
trata da defesa desta, desnecessário buscar ator internacional mais importante
do que o casal Clinton ao longo das três últimas décadas. Misturando
paixões, razões de Estado e negócios privados, o casal Clinton colocou o
Haiti como foco maior do radar de sua ação internacional.[119]
Em raríssimas oportunidades Hillary e Bill Clinton expressaram
publicamente autocríticas ou dúvidas sobre os resultados de suas aventuras
haitianas. Em 10 de março de 2010, em depoimento à Comissão de Relações
Exteriores do Senado dos Estados Unidos, finalmente Bill Clinton rompe o
silêncio e reconhece que nem sempre agiu em defesa dos interesses haitianos:

Since 1981, the United States has followed a policy,


until the last year we started rethinking it, that we rich
countries that produce a lot of food should sell to
poor countries and relieve them of the burden of
producing their own food, so, thank goodness, they
can leap directly into the industrial era. It has not
worked. It may have been good for some of my
farmers in Arkansas, but it has not worked. It was a
mistake. It was a mistake that I was a party to. I am
not pointing the finger at anybody. I did that. I have
to live ever day with the consequences of the lost
capacity to produce a rice crop in Haiti to feed those
people because of what I did; Nobody else.

O erro cometido poderia ter sido sanado imediatamente. Préval havia


solicitado, logo após o terremoto, que Washington substituísse as doações in
natura por recursos financeiros, permitindo assim que a população adquirisse
alimentos produzidos localmente. O Governo norte-americano opôs-se
categoricamente e a agricultura haitiana permanece condenada.
Com a assunção de Martelly foi reforçada a presença de Bill Clinton.
Além de todas as funções exercidas, agregou-se a de copresidente do
Conselho Consultivo Presidencial para o Desenvolvimento Econômico e
Investimentos (Pacegi). Instrumento misto haitiano e estrangeiro, ele
assessora Martelly para a captação de investimentos privados considerados
pelas novas autoridades essenciais para o desenvolvimento sustentável. Sua
tarefa é árdua, pois num rol de 145 países avaliados, o Haiti situa-se em 144ª
lugar como destino preferencial para investimentos externos.
Quando Obama alcança a Casa Branca, imaginei que seria
privilegiado o lugar do Haiti em sua agenda externa. Estariam dialogando a
única República negra construída por escravos na História da humanidade, e
o primeiro negro a presidir uma das sociedades mais traumatizadas pelas
oposições de raça. Enganei-me. Quando a catástrofe de 12 de janeiro de 2010
mata 300 mil pessoas e desabriga dois terços da população metropolitana,
Obama desdenha viajar a Porto Príncipe. Logo compreendi que o Haiti
constitui domínio reservado dos Clinton e Obama não se envolverá em suas
questões.
Tanto a OEA quanto a Caricom possuíam direito a voz, mas não a
voto na CIRH. A razão era simples: tínhamos interesses e projetos no Haiti,
mas não éramos organizações voltadas ao desenvolvimento e não
dispúnhamos de recursos financeiros para eventuais doações.
Após constatar as ausências injustificáveis nos trabalhos da CIRH da
República Dominicana – vizinha contígua ao Haiti e muito ativa no pós-
sismo – bem como a de Cuba – colaboradora incansável na área da saúde e da
formação de recursos humanos – decidi propor que ambas fossem convidadas
na condição de Estados Observadores.
Embora não fossem doadores de recursos novos tal como previa o
Regulamento da Comissão, me parecia injusto não reconhecer o grande
esforço despendido pelos dois vizinhos. Ainda mais que a outra ilha
importante do Caribe estava representada através da Caricom, uma vez que
sua delegação era presidida pelo ex - primeiro ministro da Jamaica, Percival
J. Patterson.
Cuba detinha informações preciosas sobre o panorama sanitário
haitiano. Quando a cólera golpeia o país, como tomar decisões racionais de
combatê-lo descartando o conhecimento cubano? O que deveria primar era o
interesse haitiano e não querelas e disputas de países dispostos a cooperar
com o Haiti à condição que seus concorrentes fossem descartados como
ocorria com demasiada frequência.[120]
O governo haitiano e os representantes diplomáticos latino-americanos
concordavam com a sugestão. Por motivos óbvios opunham-se Canadá e
Estados Unidos. O representante deste último confidenciou que talvez
aceitasse a presença dominicana. Jamais a cubana. Aquele, em atitude radical
desprovida de qualquer consideração e pouco compreensível, não concordava
com a presença de nenhum dos dois Estados.
Na reunião seguinte da CIRH, após reiterar a sugestão de ingresso dos
dois Estados e seguro de que a imensa maioria dos presentes concordava com
a proposta, decidi solicitar que a questão fosse levada à votação. Seguiu-se
um silêncio constrangedor. Ninguém ousou opor-se. Assim, com ausência de
votação e por consenso, Cuba e a República Dominicana ingressaram na
CIRH na condição de Estados Observadores.
Nas reuniões posteriores pude degustar da agradável sensação de ver
juntos, em torno de uma mesma mesa, o ex-presidente Bill Clinton
dialogando com o enviado especial da ilha de Fidel Castro. Diverti-me
quando temas foram colocados em discussão e os novos integrantes,
aproveitando-se da confusão reinante, fizeram uso de um direito que não lhes
cabia: o de votar. Naquele momento alcançava o que pretendia viesse
significar o Haiti para as Américas: o ponto de encontro de nossos
desencontros.
Nem tudo eram flores, contudo. Ao contrário. Diante do
desconhecimento sobre suas atribuições e funcionamento, adicionada a
grande expectativa com seu surgimento, agravada por sua congênita
incapacidade em comunicar, começou a surgir as primeiras críticas à inação
da CIRH. Apesar de duplicar as doações externas a partir de meados de 2010
– quando comparadas ao igual período do ano anterior – ocorre que as
urgências eram de tamanha magnitude que quando confrontadas às ações
empreendidas, estas pareciam pífias, totalmente em descompasso com as
prementes necessidades.
A região metropolitana esta sufocada por 8 milhões de metros cúbicos
de escombros e ocupada por aproximadamente um milhar de improvisados
acampamentos. A CIRH, portanto, deveria retirar os entulhos e realocar os
desabrigados antes de planejar sua reconstrução. Ora, logo constatou que se
multiplicavam as propostas, por vezes estapafúrdias, para a refundação de
Porto Príncipe, ao passo que raras dedicavam-se à limpeza da cidade. Os
países e organizações doadoras preferiam financiar o charme da reconstrução,
abandonando por completo os projetos que financiavam as indispensáveis
obras preliminares.
No interior da CIRH tampouco o clima era ameno. Isso por duas
razões. A primeira delas decorre da atitude de Bill Clinton. De maneira
reiterada e para mim surpreendente, seguidas vezes ele colocava em votação
projetos, embora de natureza diversa, que provinham todos da Fundação
Clinton Global Initiative. Parecia-me uma clara mistura de funções. Como,
no entanto, sua Fundação aportava os recursos financeiros, ninguém ousava
criticá-lo abertamente, excetuando o representante da França. Com palavras
vigorosas e certa rispidez, Pierre Duquesne chamava nossa atenção para a
inusitada situação. Para seu desprazer, uma vez concluída sua diatribe,
passava-se a outro assunto com a proposta de Clinton devidamente aprovada.
A segunda importante tensão provinha da bancada de representação
haitiana, os representantes da diáspora, os quais, note-se, faziam uma viagem
especial a Porto Príncipe para as reuniões, criticavam o Secretário Executivo,
o também haitiano Gabriel Verret, com grosseria e por vezes aos gritos, sobre
a falta de informações prévias e da ausência de agenda.
Em certa ocasião, quando da única reunião da CIRH fora de Porto
Príncipe, realizada em um grande hotel de Santo Domingo, os embates foram
de tamanha aspereza que tanto Bill Clinton quanto eu, na tentativa de colocar
um termo ao triste espetáculo, sugerimos que a parte haitiana resolvesse suas
diferenças em reuniões paralelas, à margem da CIRH. Naquela ocasião a
presença da imprensa haitiana fez ecoar o mal-estar que impregnava nosso
conclave.
A insustentável situação vitimou o Secretário Executivo da CIRH,
Gabriel Verret, logo substituído por Laura Graham, da Fundação Clinton.
Novamente emerge a confusa mescla de funções, pois a única credencial de
Laura consistia em ser pessoa de confiança de Bill Clinton. Ausentes
experiências em desenvolvimento, em catástrofes naturais e em ajuda
humanitária, tanto Laura quanto os demais jovens e inexperientes assessores
de Clinton não estavam à altura do desafio.
Em abril de 2009 o Departamento de Estado, sob a batuta de Hillary
Clinton, havia decidido mudar completamente a estratégia de cooperação dos
Estados Unidos no Haiti. Supostamente cansada com a falta de resultados
concretos, Hillary vincula a ação do governo à doutrina do smart power
proposta pela Fundação Clinton. A partir deste momento as soluções seriam
baseadas unicamente em evidências. A ideia, segundo Cheryl Mills, Chefe de
Gabinete de Hillary, “was that if we’re putting in the assistance, we need to
know what the outcomes are going to be.” [121]
O terremoto de janeiro de 2010 será a oportunidade sonhada para
colocar à prova a nova política.
Além de suas funções, Mills foi nomeada responsável pelo Desk Haiti
no Departamento de Estado. Formada pela Stanford Law School, gerente
oficiosa da campanha eleitoral de 2008 e advogada defensora de Bill Clinton
quando do processo de impeachment, apesar de não possuir nenhuma
formação ou experiência em economia do desenvolvimento, Mills “was
determined to figure out a new way of doing things that would be more
effective, both for the U. S. and for Haiti.” [122]
A ideia consiste em transformar o Haiti em uma Taiwan caribenha –
maquilladoras, indústria do vestuário, turismo, calls centers – seriam os
nichos a explorar e que deveriam orientar a nova cooperação. O Haiti e suas
particularidades pouco contam. Mais do que esperança, há certeza de que
logo se curvarão diante os esquemas impostos pelos tecnocratas da Harvard
Business School. O Haiti deverá inserir-se nos parâmetros da eficiência
capitalista. “Is this going to be hard? Yes,” Hillary Clinton said in a teary-
eyed interview with The Miami Herald. “Do I think we can do it? Absolutely,
I do.” [123]
O amadorismo voluntarista dos Clinton parece desprovido de freios e
de bom senso a ponto de Bill declarar, publicamente em um discurso em
Porto Príncipe, que faria do Haiti o primeiro país completamente wi-fi do
planeta.
A crise interna da CIRH atingiu seu ápice quando a empresa de
consultoria Price, Waterhouse and Coopers (PwC), a qual havia organizado a
licitação para escolher uma instituição encarregada de velar pela
transparência na aplicação dos recursos financeiros vinculados à CIRH,
recebe autorização do Conselho de Administração para ela própria participar
da licitação. O inusitado adquire ares tragicômicos e deveria se transformar
em escândalo quando o resultado da licitação é tornado público e a PwC
declarada vencedora da licitação cujos termos e condições ela própria havia
definido. Como se tratava do Haiti e dos interesses de Clinton, a flagrante
incongruência banhada em um perfume de escândalo sequer foi criticada.
Um tema de fundo que dominou permanentemente nosso trabalho foi
o de encontrar solução para ss centenas de milhares de desabrigados que
viviam sob lonas e plásticos nas ruas e áreas verdes da região metropolitana.
Embora ponderável número de desabrigados tenha abandonado Porto
Príncipe logo após o sismo, de pronto retornaram, pois na capital se
concentrava a ajuda humanitária. O desafio consistia em encontrar terrenos
suficientemente amplos nos arredores de Porto Príncipe para iniciar a
construção de abrigos, alojamentos e residências. Sem aqueles, não havia
solução.
Apesar do terremoto ter afetado essencialmente o mundo urbano
haitiano, encontramos na região metropolitana de Porto Príncipe práticas de
propriedade do solo que dificultaram o remanejo dos desabrigados.
No Direito Fundiário Consuetudinário haitiano há uma distinção nítida
entre os bens próprios e os bens adquiridos, tal como vigorava na Europa
medieval. Os primeiros são alcançados por meio da herança e os segundos
mediante aquisições. Os bens adquiridos estão completamente livres e seus
proprietários podem deles dispor. Já os bens herdados não podem ser
vendidos sem o acordo dos membros da linhagem familiar, os quais dispõem
de preferência de compra. Também os vizinhos podem exercê-la na medida
em que muitos também compõem a ampla família rural haitiana. Em caso de
matrimônio, as terras da linhagem passam a pertencer ao novo casal enquanto
viverem. Quando falecem, a propriedade da terra retorna à linhagem.
Segundo seu Direito Consuetudinário, a sociedade familiar haitiana
repousa sobre uma comunidade diacrônica que é indiferente à morte de um
de seus membros, deixando inalteradas tanto sua personalidade quanto suas
estruturas.
Quando um membro da linhagem abandona as terras, o seu direito à
herança torna-se latente. Ou seja, somente poderá ser exercido quando ele a
elas retornar. De fato, o direito estabelecido pela linhagem não se constitui
em um direito de propriedade tal qual concebido no sistema moderno. Ele é
um direito de uso e de exploração da terra. A propriedade propriamente dita
permanece com a comunidade familiar.
O Direito Romano introduziu as noções de patrimônio e de sucessão
nos países regidos pelo Direito positivado. O individualismo afirma-se em
detrimento do controle dos parentes mais próximos. No Haiti perdura a
coexistência dos dois sistemas. O de sucessões, em que a terra adquire um
valor mercantil, e o de linhagem, materializado pelo pertencimento a um
“tipo de sociedade de família para a qual a terra, ao representar o elemento
concreto de coesão social é, por definição, insuscetível de alienação”.[124]
Cada linhagem possui um chefe, escolhido pelos demais membros,
que os representa perante o mundo exterior. Detentor de poder espiritual,
ocupando a casa central do lacou – módulo circular residencial em forma de
estrela da aldeia fortificada do camponês haitiano – ele é o depositário de
todos os títulos de propriedade e a ele compete distribuir o direito de uso da
terra.
Certa vez visitando l`Île a Vache, situada no sudoeste do Haiti em
frente à cidade de Les Cayes, fui conhecer um grande banco de areia na qual
pescadores se instalavam em rústicas choupanas cobertas por folhas de
palmeiras. Todos eles residiam na cidade e o utilizavam, ao longo da semana,
como ponto de apoio ao seu trabalho. Havia aproximadamente 30 choupanas
e notei que uma aparentava estar abandonada. Indaguei a quem pertencia.
Então alguém me respondeu: “À vous, au cas où vous viendriez vivre ici. »
A algazarra das crianças impediu-me de compreender o alcance
antropológico da resposta. Somente pensei que havia encontrado o idílico
lugar caso quisesse retirar-me do mundo.
A herança tal como concebida no momento da independência, atesta a
permanência do cadastro colonial na memória popular haitiana e constitui sua
legitimidade. Estas condições impediram que o Estado haitiano viesse a ser a
entidade apta e reconhecida para a legalização da propriedade fundiária. De
tal maneira, inexiste cadastro fundiário no Haiti. Os supostos títulos de
propriedade sobre um mesmo bem se multiplicam, fazendo com que “o Haiti
tenha 28.000 km/2 de território e 100.000 km/2 de escrituras”, segundo a
sabedoria popular.
Há um nítido choque provocado pelo divórcio entre o Estado de fato e
o Estado de direito, entre o direito costumeiro e o direito formal. Quando as
Nações Unidas, em nome da Comunidade Internacional, definem como sendo
uma de suas mais importantes prioridades no Haiti o estabelecimento do
Estado de Direito, deveriam não se referir ao direito de propriedade rural.
Este é imutável, representando elemento intrínseco da cultura e da História
haitianas.
O direito formal alcançou suplantar o direito de linhagem tanto nas
regiões urbanizadas do Haiti quanto em seus arredores. O mundo rural,
contudo, permanece sob o domínio de um sistema consuetudinário anarco-
democrático – anárquico no sentido de ordem sem Estado e de paz sem
violência – a desafiar a modernidade. Neste sistema, nem o Estado ou seu
substituto, como ocorre muitas vezes quando age a Comunidade
Internacional, conseguem imprimir sua marca. Aqui imperam os valores
tradicionais.
Inquiri importante empresário haitiano que atua também na área
agrícola, sobre seus métodos para solucionar os conflitos de propriedade
fundiária. Singelamente ele respondeu-me que se utilizavam dois caminhos,
ambos evitando a utilização de instituições públicas: por um lado a persuasão
por meio de compensações financeiras. Por outro, a violência bruta.
O entrecruzar de direitos contraditórios e legítimos constitui fonte
inesgotável de conflitos e torna impossível elaborar sequer um inventário ou
um diagnóstico da situação imobiliária do Haiti.
Tanto a OEA quanto o governo francês se dispunham a elaborar um
cadastro fundiário moderno no Haiti. Antes de convencer o governo haitiano
da necessidade da empreitada, fora necessário definir quem faria o quê. Paris
enviou várias delegações de técnicos a Porto Príncipe. Em uma das reuniões
criticaram duramente o pré-projeto elaborado pela OEA, o qual, segundo
eles, carecia de fundamentos, pois havia sido realizado com o apoio de
técnicos canadenses de Montreal. Eu respondi que não estava ali para discutir
os contornos técnicos do projeto e tampouco não me considerava um
“vendedor de projetos”. O objetivo da OEA era simples: oferecer os melhores
serviços possíveis ao Estado haitiano para que pudesse mediar a complexa
situação fundiária do país.
Apesar dos recursos financeiros e técnicos, bem como sua inegável
influência política sobre o governo do presidente Martelly, a França não
conseguiu levar adiante seu objetivo. Vozes críticas em Porto Príncipe
denunciaram que o empenho francês era motivado pela expectativa de fazer
renascer das cinzas do passado os títulos de propriedade da época colonial.
Tal interpretação propagou-se como rastilho de pólvora através do país e
parece que enterrou definitivamente a pretensão francesa.
Nestas condições, quando as autoridades governamentais e a CIRH
tentaram encontrar espaços para instalar os desabrigados pelo terremoto nas
imediações de Porto Príncipe e de Léogâne, as características do sistema
fundiário haitiano mostraram seu efetivo poder. Não somente as terras
pretendidas dispunham de múltiplos proprietários formais, mas também o
direito de linhagem afirmava-se, tornando a situação ainda mais complexa.
Para cada novo agrupamento humano de desabrigados surgidos após janeiro
de 2010, foi necessário conjugar vontade política, ações policiais e recursos
financeiros. E tempo. Demasiado tempo.
Diante do imbróglio, a representante dos Estados Unidos, Cheryl
Mills, propõe que a própria CIRH se revista de autoridade notarial e passe a
emitir títulos de propriedade. Desprezando os fundamentos sociológicos e
históricos da sociedade haitiana, a emissária de Washington pretendia impor
regras contra as quais forjou-se a luta pela independência. Préval, a quem
cabia a última palavra sobre as decisões emanadas da CIRH, opôs-se com
vigor e a pretensão foi abandonada. Como veremos posteriormente, Mills não
o perdoará.
A decisão de realocar os desabrigados em áreas nos arredores de Porto
Príncipe enfrentava igualmente severas críticas. A experiência do campo de
Corail Cesselesse era um péssimo exemplo. O governo havia declarado de
utilidade pública e desapropriado uma ampla zona situada ao norte de Porto
Príncipe em 2010 com o objetivo de alojar parte dos desabrigados. Logo seus
espaços foram invadidos. Finalmente, a construção das casas pôde ser feita.
Ao lado destas, contudo, surgiram novas aglomerações clandestinas que
abrigam atualmente 200 mil pessoas. O que deveria servir de modelo para a
reconstrução transformou-se na maior favela das Américas.
A boa vontade governamental brasileira em colaborar para o
desenvolvimento econômico do Haiti igualmente foi vítima do sistema
fundiário haitiano. Em um de seus primeiros encontros com Préval, Lula
perguntou-lhe de chofre: “Préval, indique-me um projeto, tão somente um,
que consideres fundamental para que o Brasil possa oferecê-lo ao Haiti.”
Préval não hesitou em responder:

La construction d`un barrage hydro-électrique dans la


région de l`Artibonite. Il résoudrait le manque
d`énergie. En plus, il serait à même de contrôler les
constantes inondations et permettrait l`agriculture
irriguée. Ce projet serait la rédemption de la région
avec le plus grand potentiel agricole et marquerait le
début de l`industrialisation d`Haïti.

Não tendo previsão orçamentária, Lula foi obrigado a recorrer a


improvisações, contorcionismos e boa vontade de todos para elaborar o
Projeto Técnico e Financeiro da represa. Finalmente, os engenheiros militares
o auxiliaram e, após um sem-número de missões ao Haiti, com custos
baixíssimos, foi desenhado o sonhado projeto. O que parecia ser o mais
difícil, Lula e seus colaboradores conseguiu alcançar.
Não sabiam eles que as dificuldades maiores sequer haviam
começado. Préval foi à região de Artibonite dialogar com os chefes das
lacous e seus habitantes. A perda definitiva de suas terras em razão da futura
formação do lago da represa bloqueou qualquer possibilidade de
entendimento. Os futuros alagados opuseram-se radicalmente ao projeto. A
tal ponto que Préval, em uma das últimas reuniões com Lula, ao final do
governo deste, solicitou sua intervenção. Por incrível que isso possa parecer,
Préval insistiu para que Lula o acompanhasse a Artibonite com o intuito de
dialogar com os agricultores e futuros alagados, para convencê-los dos
benefícios da obra e sua importância para a economia local e nacional. Lula,
sensatamente, recusou. O direito de linhagem imperou uma vez mais.
Debilidade estatal, direito de linhagem e amadorismo torna impossível
a consecução do solitário projeto sob responsabilidade de uma empresa
brasileira. Trata-se da interrupção, em fins de 2012, da construção pela
empresa brasileira OAS da estrada entre a cidade portuária de Les Cayes e a
abandonada Jérémie – localizadas no sudeste do país. Noventa quilômetros
de asfalto atravessariam a estreita franja de terra e uniriam as duas margens.
Financiados pelo BID e pelo Canadá, os trabalhos foram interrompidos
quando se intensificaram as quantidades de supostos proprietários que
vinham reclamar indenizações pelas desapropriações de terras às margens da
rodovia. Sobre um único bem, surgiam certidões, escrituras e direitos de
posse.
Após mútuas acusações entre governo haitiano e OAS e manifestações
violentas de protesto – que provocaram vítimas fatais – pela interrupção das
obras, a OAS desistiu da empreitada. Assumiu-a então a empresa dominicana
Estrella. Com experiência de mais de uma década em obras de infraestrutura
no Haiti, a Estrella constitui em caso isolado de êxito de empresa estrangeira
no mercado haitiano. Seu segredo decorre de dois elementos. Por um lado,
associou-se com empresários haitianos. De outro recorre sistematicamente às
autoridades locais e regionais para deslindar problemas de posse da terra.
Embora fundada em 1984, a Agência Nacional de Registro de Terras
(ONACA) – encarregada de legalizar e centralizar o cadastro fundiário
haitiano – consegue registrar tão somente 5% dos 28.000 km2 com que conta
o país. Assim, a quase totalidade das terras haitianas encontra-se em um
limbo no quel impera a linhagem, a informalidade e, por vezes, igualmente, a
má fé.
Após 18 meses de atividades e tendo aprovado 87 projetos, a CIRH
não teve seu mandato renovado pelo Parlamento Haitiano. Ela morreu de
inanição em 21 de outubro de 2011, embora o presidente Martelly tenha
aparentemente se esforçado para reconduzir a experiência. Tampouco
prosperou a ideia de uma Agência Haitiana para a Reconstrução, prevista
como uma das possibilidades para sua substituição. Finalmente em setembro
de 2012, foi anunciada em Nova York pelo primeiro ministro haitiano a
criação de um novo mecanismo de controle sobre o desembolso e a aplicação
das doações em substituição à CIRH. Ao contrário desta, trata-se de um
simples departamento criado no interior do Ministério do Planejamento e
Cooperação Externa com exclusiva representação haitiana. Será ele
respeitado pelos Doadores? O tempo dirá.
Apesar de suas gritantes imperfeições, a CIRH poderia ter sido um
instrumento inovador para o surgimento de um mínimo de confiança entre os
Doadores e autoridades haitianas. Seu desaparecimento constitui um retorno
a um passado que já forneceu incontáveis exemplos de corrupção,
malversação dos recursos públicos e incúria administrativa. Novamente a
reconstrução do Haiti tornou-se refém da pequena política. Nada poderia ser
mais nefasto para o futuro de seu povo.
A descrença de Préval nas instituições e a estratégia da Comunidade
Internacional de enfrentar autoridades debilitadas que se deixassem
facilmente manipular, equivaliam ao encontro “da fome com a vontade de
comer”. Ambas a provocar a cristalização de idêntica realidade: a debilidade
do Estado haitiano.
Aproveitando-se da propícia situação, mancomunadas com os
governos do Grupo de Países Amigos do Haiti e com as principais
organizações públicas internacionais, florescem e multiplicam-se no país as
organizações privadas internacionais. Fenômeno ímpar nos anais da história
da ajuda ao desenvolvimento.
CAPITULO VIII – HAITI OU HAITONG?
L`aide est violente, aveugle, imbue d`elle-meme. Un monstre paternaliste qui balaie
tout sur son passage. Elle fait semblant de résoudre les problèmes qu`elle s`applique à
entretenir.
Raoul Peck, Directeur d`Assistance Mortelle

Adicionadas às tradicionais Organizações Não Governamentais de


Alcance Transnacional (Ongat) que há muito operam no Haiti, o terremoto
conduz à terra de Dessalines centenas de outras. Muitas sem experiência
afiam suas armas pela primeira vez em terras haitianas. Outras nascem dos
escombros da região metropolitana de Porto Príncipe e lançam descarados
apelos a doações supostamente para o Haiti. Posteriormente enviam pessoas
ao país na busca de aparente justificativa. A partir daí entram na luta para
conquistar seu espaço no campo de batalha em que transformaram o país.
Há narrativas sem-fim sobre as aventuras para elas e as desventuras
para o Haiti, que fazem surgir da chegada maciça da suposta ajuda das Ongat.
Por exemplo, pequenas instituições caritativas privadas haitianas são
compradas por estrangeiras que podem então justificar o trabalho daquelas
como se seu fosse. Outras enviam alguém para fazer alguns clichês
fotográficos, uma rápida distribuição de alimentos em um bairro pobre e já
está reunido material para a publicidade que deverá justificar as doações.
Além destas, chegam empresários, aventureiros, inventores – o rosário
de projetos de casas é assustador. O ex-presidente Clinton costumava revelar
que se recusava a receber pessoas que pretendiam apresentar projetos de
residências. Se assim não procedesse, ele teria todo o seu tempo ocupado por
esta fila interminável de audiências.
Quando a Comunidade Internacional promete na Conferência de Nova
York, em março de 2010, destinar US$ 11 bilhões nos próximos cinco anos
para o Haiti, a corrida à hipotética montanha verde transforma-se num
chamariz a atiçar ainda mais o apetite. Alguns viajavam a Porto Príncipe com
o intuito de auxiliar. A maioria, todavia, era composta por aproveitadores da
infelicidade alheia que se comportavam como corvos atraídos pelo odor da
morte e da desgraça haitianas.
O Ministério do Planejamento haitiano dispõe de um banco de dados
com informações sobre as supostas Organizações Não Governamentais que
atuam no país, sejam nacionais ou estrangeiras. Saliente-se que se trata de um
simples registro. Nele constam informações tais como o nome e sigla da
instituição, endereço, responsável, áreas e região de atuação, número de
inscrição, data de reconhecimento e publicação no jornal Le Moniteur.
Ausentes quaisquer imposição de autorização para funcionamento, de
prestação de contas de suas atividades, de declaração sobre o recebimento de
recursos financeiros e de sua utilização. Apesar da inexistência de controle
público, no entanto essas organizações se beneficiam de isenções fiscais e de
tributos. Assim se apresentam as ONGs por sua origem.

Figura 9 - Registro das ONGs no Haiti (2009)

País de origem Quantidade


Haiti 131
Estados Unidos 57
França 19
Canadá 15
Espanha 6
Suíça 6
Alemanha 2
Grã-Bretanha 2
Itália 2
Bélgica 1
Holanda 1
Internacional 1
Total 243
Fonte: Tabela elaborada pelo autor, segundo dados oficiais do Ministério do
Planejamento do Haiti

Mais de 50% das organizações não governamentais devidamente


registradas são haitianas. A maioria delas se beneficia de financiamento
externo. O total do universo das Ongats pertence aos países industrializados,
especialmente ao Tridente Imperial (81 % do total). Apesar da presença de
algumas instituições latino-americanas, entre elas Viva Rio, nenhuma atua de
maneira regular no Haiti segundo o Ministério do Planejamento haitiano.
A invasão avassaladora das Ongats que se segue ao terremoto alcança
níveis jamais imaginados. Assim, a própria secretária de Estado Hillary
Clinton declara em entrevista alguns meses após o sismo, que mais de 10 mil
Organizações Não Governamentais de alcance transnacional se encontravam
em atividade no Haiti. Isso significa que houve um incremento desta presença
superior a 4.000% num curto lapso de tempo. Esta oneigização transforma o
Haiti no que muitos denominam desde logo como uma verdadeira “República
das Ongats”.
Na urgência pós-sismo, Ongats tradicionais, dotadas de experiência,
meios financeiros, independência e credibilidade foram de grande utilidade.
Esta foi tanto maior que a capacidade limitada de intervenção do poder
público haitiano, que havia sido totalmente aniquilada pelo sismo. Com
efeito, o Estado perdeu 30% de seus funcionários com o sismo. Os mais
capacitados que restaram foram atraídos pelos altos salários – de cinco a dez
vezes superiores ao que recebiam do Estado – oferecido pelas Ongats.
Tal fenômeno ocorreu também no sistema de saúde haitiano. Sendo
90% privado, seus hospitais foram duramente afetados pelo sismo. Logo o
pessoal de enfermagem e médicos de nacionalidade haitiana foram contratado
pelas Ongats. Estas dispunham de recursos financeiros destinados às suas
atividades na zona metropolitana muitas vezes superior ao que dispunha o
Ministério da Saúde haitiano para o conjunto do país. Uma vez vencido o
período de emergência e a consequente partida das Ongats, o sistema de
saúde pública encontra-se em uma situação de precariedade ainda mais
pronunciada que antes do sismo.
Dian de um Estado outrora debilitado e que o terremoto encarregou-se
de fazer desaparecer quase por completo, a ajuda de urgência tinha como
interlocução a própria realidade. Linhas diretas foram estabelecidas com as
vítimas e mesmo os responsáveis do sistema das Nações Unidas presentes no
Haiti não eram levados em consideração. Generalizou-se um verdadeiro
pandemônio, em que cada qual decidia de forma autônoma o que, quando e
como fazer.
O mais grave consistiu no fato de que uma vez concluída a fase de
urgência, a coordenação continuava deixando muita a desejar e, sobretudo,
prosseguia o descarte do Estado haitiano. Para que se tenha uma ideia da
dimensão da privatização da ajuda externa e o afastamento sistemático do
Estado receptor, notemos que:

- A ajuda externa ao Haiti triplicou entre 2009 e 2010, passando de US$ 1,12 para
US$ 3,27 bilhões;
- A ajuda bilateral e multilateral que havia alcançado 130% da receita bruta interna
em 2009 pulou para 400% em 2010;
- Do montante de US$ 200 milhões liberados pela Usaid para a reconstrução até
abril de 2010, somente 2,5% haviam sido direcionados para empresas haitianas;
- Somente 1 % do financiamento total da ajuda de emergência foi concedida ao
Estado haitiano.

Houve, sem sombra de dúvida, um formidável incremento da ajuda


externa que deveria ser compatível com o nível de necessidade, embora muito
distante do que havia sido prometido em diferentes ocasiões. Nestas solenes
conferências o mundo acenava com promessas de somas mirabolantes jamais
cumpridas. Embora a frustração fosse grande, o que efetivamente chocava era
o fato que o Estado haitiano era sistemática e propositalmente descartado. Tal
processo de transferência de recursos financeiros foi marcado por uma
evidente substituição do público pelo privado e dos nacionais pelos
estrangeiros.
Em seu otimista Relatório, apresentado ao Conselho de Segurança da
ONU em outubro de 2012, Ban Ki-moon reconhece que dos supostos US$
5,78 bilhões transferidos aao Haiti no período 2010-2012 pelos doadores
bilaterais e multilaterais, um pouco menos de 10 % (US$ 556 milhões) foram
entregues ao governo haitiano. Vale dizer que tanto as doações privadas
nacionais quanto os recursos de origem pública são utilizados pelos governos
dos Estados doadores para cobrir os gastos de sua própria intervenção no
Haiti.
Tradicionalmente o bem no Haiti, a exemplo do sistema de saúde e
educação bem como a ajuda humanitária é provida pela iniciativa privada, ao
passo que o mal – mormente a ação policial – é atribuição do Estado. O
terremoto tornou ainda mais profunda a terrível dicotomia.
Por sua parte, embora os recursos financeiros disponibilizados pela
Comissão Provisória para a Reconstrução do Haiti ressaltassem que estes
deveriam antes de tudo reforçar a capacidade institucional haitiana, seu
gerenciamento também sofreu de mal similar. Assim foram eles distribuídos:

Figura 10 - Recursos financeiros disponibilizados pela CIRH


Apoio orçamentário 31%
Agências multilaterais 28%
Ongats 27%
Estado haitiano 13%
Fonte: CIRH, 2012

Um Relatório publicado pela Disaster Accountability Project (DAP)


dos Estados Unidos, no início de 2011, sobre as Ongats norte-americanas
ativas no Haiti, é revelador da opacidade com que operam. Tão somente 38
das 196 Ongats aceitaram responder ao questionário a elas submetido pela
DAP. Apesar de 35 entre elas indicarem que fornecem informações sobre
suas atividades, tão somente 8 das 196 tornam público em seus sites os dados
de maneira constante e transparente.
As Organizações Não Governamentais de Alcance Transnacional se
autodefinem como instituições beneficentes, sem fins de lucrativos. Rafael
Correa, presidente do Equador, costuma ironizá-las com um jogo de palavras.
Segundo ele, trata-se de “instituições com lucros sem fim” e não, como
apregoam, “sem fins de lucro”. No caso haitiano, todavia, o que mais choca é
a absoluta falta de transparência.
Foi coletada, em nome da causa haitiana em 2010, somente nos
Estados Unidos, a astronômica soma de US$ 2,2 bilhões. Quase 20 % desta
soma foi utilizado pelo Ministério da Defesa dos Estados Unidos para
financiar – excetuando os baixos cutos da extrardinária performance de
reabertura do Aeroporto Toussaint Louverture – o inútil e agressivo
deslocamento de tropas quando do terremoto. Pode-se imaginar, sem muito
esforço, o quanto amealhou o conjunto das 196 Ongats estadunidenses.
Levando-se em consideração a arrecadação das organizações oriundas dos
demais países é possível indicar, modestamente, que uma soma superior a
US$ 5 bilhões foi reunida, ao longo de 2010, em nome do Haiti. Ora, tão
somente 1% deste total transitou pelas instâncias governamentais haitianas.
No que diz respeito ao Haiti propriamente dito, o anunciado pelos
doadores – tanto públicos quanto privados – fez com que o país supostamente
recebesse 8% de seu Produto Interno Bruto em ajuda internacional. Como
parâmetro de comparação, a França recebeu anualmente com o Plano
Marshall, ao longo de três anos, no imediato pós-Segunda Guerra Mundial, o
equivalente a 2% de seu PIB. Tal aporte serviu para que a França viesse a ser
um dos países que melhor resolveram seus problemas socioeconômicos do
pós-guerra.
O Haiti supostamente recebeu proporcionalmente quatro vezes mais
do que o destinado à França. Ora, apesar deste montante, ao longo deste
período o PIB do Haiti diminuiu, a grande maioria dos haitianos empobreceu,
não houve nenhum desenvolvimento econômico do país e a situação social
agravou-se.
O círculo fecha-se com o discurso ideológico a justificar esta maneira
de proceder. Segundo ele, os repasses de recursos são feitos por meio das
Ongats pela simples razão de que o Estado haitiano sofre de profunda e
permanente corrupção. Por vezes menciona-se a incapacidade estatal de
gerenciamento. Nada mais lógico, portanto, que contornar a autoridade
pública, sem sequer imaginar que ausente um Estado estruturado e eficaz,
nenhuma sociedade moderna conseguiu estabilizar-se e desenvolver-se.
Ignorando as prioridades haitianas, mantendo vínculos privilegiados
com doadores privados e públicos e afastando qualquer acompanhamento ou
controle de sua contabilidade, as Ongats são bem mais do que um Estado
dentro do Estado. No Haiti elas são o Estado! A tal ponto que Yanick Lahens
relata o que lhe aconteceu quando de uma visita a um campo de
desabrigados.

Il m`est arrivé quelquefois avant le 12 janvier que des


jeunes de milieu populaire me demandent ma
nationalité, quand je les rencontrais pour la première
fois. Mais la même question s`est agrémentée d`une
nuance de taille dans le camp de Pétion-Ville Club :
- Tu es américaine ?
- Non.
- Tu es martiniquaise ?
- Non.
- Tu es africaine?
- Non.
- Alors tu es de l`Oxfam?
Após este esclarecedor diálogo, Yanick conclui tristemente:

Jamais le tout jeune Samy, qui considère désormais


l`Oxfam comme un pays, ne m`a demande si j`étais
haïtienne. Comment récupérer notre souveraineté
quand les forces politiques que la réclament à cor et à
cri sont quasiment absentes des camps aujourd`hui, et
des milieux populaires urbains ou ruraux en général ?
Quand les forces économiques se contentent de
saupoudrage disperse, quand l`Etat n`initie aucune
tentative à grande échelle pour casser la défiance et
entamer le long travail de réparation du tissu social en
lambeaux ? Que compte-t-on reconstruire exactement
avec un tel tissu social ? Je ne le sais toujours pas.

Esta maneira de proceder – das Ongats, das elites políticas e


econômicas, dos grandes Estados supostos doadores e dos responsáveis pelo
Estado haitiano – deve ser interpretada como um verdadeiro complô contra o
povo, a soberania e a autodeterminação haitiana. Até o momento o desvario
prossegue. Assim, devemos concordar com Yanick quando ela constata, com
amargura, que “nous buvons la coupe de la honte, la nuque baissée, c`est
tout ».[125]
Outro exemplo da ausência de planejamento foi o da distribuição de
água. Simplesmente bombeada do lençol freático, centenas de milhões de
dólares foram gastos para abastecer os desabrigados. Indispensável seria a
construção de adutoras, além de estações de tratamento. Nada disso foi
realizado. Hoje nos deparamos com um lençol freático empobrecido e a água
um bem ainda mais raro e inatingível para a maioria da população.
Há casos também que revelam o descompasso cultural e
incompreensões que condenam ao limbo, inclusive projetos indispensáveis
elaborados com as melhores das intenções. Esse é o caso do necessário
reflorestamento. Levado adianta por uma Ongat em uma região rural do Leste
haitiano, os responsáveis constatavam, ao amanhecer, que o terreno
rearborizado com mudas na véspera encontrava-se novamente deserto. Após
infrutíferas investigações, finalmente os próprios trabalhadores haitianos
reconheceram que uma vez findo o trabalho da jornada, retornavam à
plantação durante a noite e arrancavam do solo as plantas. Questionados
sobre a razão de assim proceder eles responderam que não desejavam ver o
trabalho acabado, pois isso representaria o fim do pagamento de seus
salários...
Um capítulo à parte envolve muitas estrelas do mundo do espetáculo.
Uma longa lista com estas personalidades acudiram ao Haiti após o
terremoto. Cantores, atores do cinema, personagens do mundo da moda,
desportistas e escritores compõem o grupo que busca recolher fundos e ao
mesmo tempo manter vivo o interesse pelos dramas haitianos. Ou seja, para
que o Haiti permaneça no radar das preocupações mundiais.
A quase totalidade destas ações apresenta pouca eficácia. Por vezes,
cabe a pergunta: A quem mais ela beneficia? Ao povo haitiano ou aos
supostos benemerentes em sua permanente busca de notoriedade?
A exceção e ao mesmo tempo símbolo de um envolvimento profundo,
bem intencionado e desinteressado, fica por conta do astro de Hollywood,
Sean Penn. Tão logo conhecida a dimensão da catástrofe, ele desloca-se ao
Haiti e cria a J/P Haitian Relief Organization. Vitimado pelo Aedes Haitia,
Penn não somente se responsabiliza pela manutenção de um dos principais
campos de desabrigados, mas também decide montar uma barraca no próprio
acampamento e com eles conviver. Ninguém do seu meio o imitou. A partir
de então, todas as ações e trabalhos de Penn tinham um único objetivo:
auxiliar as vítimas a sair daquela situação.
Penn investe-se pessoalmente, drena todos seus recursos financeiros
para a tarefa e busca incessantemente parceria. Não há como colocar em
dúvida, mesmo por um só instante, a eficácia relativa e a sinceridade de
propósitos de seu principal responsável. Reconhecendo o extraordinário
desvelo com a causa haitiana, Penn foi condecorado por Préval e recebeu de
Martelly o título de Embaixador Itinerante.
Em meados de agosto de 2012 sua organização foi encarregada de
uma tarefa bizarra: demolir as ruínas do Palácio Nacional. Embora se trate de
uma iniciativa voluntária e sem custos para o Estado haitiano, ela não deixa
de simbolizar a incapacidade do Haiti de assumir as mínimas
responsabilidades que lhe incumbe, como lamenta o editorial do jornal Le
Nouvelliste: “Livrer le palais national à une ONG est tout un symbole, 221
ans après le soulèvement général des esclaves, nous sommes incapables de
déblayer les ruines de la maison nationale. Quel déni de compétence ! »[126]
A perenidade da atuação das Ongats constitui seu calcanhar de aquiles.
Ora, Sean Penn parece indicar que ele e sua organização estão dispostos a
fincar raízes no solo haitiano. Para tanto considera que, existindo confiança, a
cooperação entre o governo do Haiti, as Nações Unidas e as Ongats
representa, segundo ele, uma “janela mágica” capaz de resolver seus dilemas.
Objetivo impossível resultado de uma visão curta e oportunista. Uma vez
mais, o Haiti consegue transformar as melhores intenções num fracasso
inconteste. Sean Penn e seu angelismo de esquerda são suas novas vítimas.
O próprio chefe da organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) no
Haiti, Stefano Zannini, declarou em janeiro de 2011 que era chegado o
momento de deixar o Haiti. Revelando que 18 mil pessoas trabalhavam para a
MSF no Haiti e que havia tratado 350 mil pacientes depois do terremoto,
Zannini apregoou que outros personagens e instituições interviessem no
processo, “notadamente o governo haitiano”. Ele também colocou em dúvida
o número de hospitais e escolas que deveriam ser construídos com os
recursos prometidos pela CI. Seriam suficientes? E ele responde:
“Definitivamente, não”.
Dos US$ 450 milhões aplicados no Haiti pela Usaid no período pós-
terremoto, 70% foram destinados a empresas privadas cujas sedes encontram-
se na região metropolitana de Washington DC. Ocorre que o terremoto
conduz ao Haiti os métodos fracassados na reconstrução do Iraque e do
Afeganistão. São empresas estadunidenses, com fins de lucro, financiadas
pelo governo dos Estados Unidos por meio de fundos públicos e de doações.
Em razão da sua forma de atuar e de sua localização, estas empresas
foram alcunhadas com a denominação pouco recomendável de beltway
bandits.
Segundo Stuart Bowen, Inspetor Especial Geral para a Reconstrução
do Iraque (Sigir), foram desperdiçados na fracassada reconstrução do Iraque
entre US$ 6 e 8 bilhões por meio de fraudes, abusos e corrupção. Calcula-se
que 40% da ajuda destinada ao Afeganistão retorna aos países doadores.
A ajuda externa foi transformada em uma atividade rentável dominada
por profissionais cujos objetivos guardam escassa proximidade com os
princípios e preocupações de desenvolvimento social e econômico.
Infelizmente esse método está sendo aplicado no Haiti, transformando-o em
sua nova vítima.
Uma auditoria realizada pela Procuradoria da Usaid, publicada em 26
de setembro de 2012, concluiu pela falta de transparência na gestão dos
fundos destinados ao Haiti. Foram confirmados grandes desajustes
provocados pela corrupção, gastos inúteis e pela ausência de resultados
tangíveis e de sustentabilidade dos programas.
Entre as oito recomendações feitas pela Procuradoria – criticando a
atuação da Chemonics International, principal beneficiária dos recursos
destinados ao Haiti – , a mais importante se refere à necessidade de envolver
as comunidades locais.
Todas as recomendações foram aceitas por Robert Jenkins, diretor da
Usaid, que por sua vez prometeu executá-las. Prevendo, porém, o surgimento
destas críticas, aproximadamente 50 companhias da indústria da ajuda com
fins lucrativos fundaram em 2011 uma associação lobista – a Coalition for
International Development Companies – que gastou US$ 250 milhões com o
intuito de se opor às pretendidas reformas.
A ex-governadora geral do Canadá, Michäelle Jean, de origem
haitiana, é uma das raras vozes da Comunidade Internacional a propugnar
uma profunda reformulação de estratégia. Filha de haitianos que
abandonaram o país em 1968 em razão da ditadura de François Duvalier,
Michäelle Jean chega ao Canadá ainda criança. Utiliza sua brilhante carreira
política, intelectual e profissional para promover as justas causas de sua pátria
de nascimento e de sangue. Para ela,

la charité vient du cœur, mail il arrive que, quand mal


ordonnée, elle participe davantage aux problèmes
qu`aux solutions. Haïti est l`un de ces pays
transformés en vaste laboratoire de toutes les
expériences, de tous les essais et de toutes les erreurs
de la machine de l`aide internationale, du
déploiement des stratégies lacunaires qui n`ont jamais
rien donné, rien produit ni rien réalisé de réellement
durable, malgré les millions de dollars engloutis dans
le plus grand désordre, sans vision à long terme et
dans un total éparpillement.[127]

O caso da jovem estudante escocesa Nora Schenkel, que chegou ao


Haiti em maio de 2011, contratada por uma Ongat como agente de
desenvolvimento, é paradigmático. Em artigo publicado no The New York
Times,[128] redigido com ingênua franqueza e imensa sensibilidade, admite
ter gostado do Haiti e do que fazia, no entanto confessa que lutou e,
finalmente foi vencida, pela sensação de que seu trabalho não produzia os
resultados esperados.
No início de sua estada no Haiti ela acreditava sinceramente que seu
trabalho iria melhorar a saúde do povo haitiano. Admite, porém, que se sentia
“I felt like a liar, knowing that I spent my days in an air-conditioned office
with little to do.”
Com o passar dos meses, cada vez menos acreditava em seu trabalho.
Tentavam convencê-la a permanecer pois, “a year spent in Haiti gets you
street cred for the rest of your life” e, consequentemente, abre portas para a
carreira.
Finalmente, ela interrompe seu contrato e retorna aos estudos
universitários abandonando a promissora carreira. “I still feel that was the
most honest thing I could do for Haiti. Because another truth is that I would
not have wanted to live in Port-au-Prince without that big house”.
Centenas de Noras estão atualmente no Haiti. Raras com a sua
consciência.
Contrastando com o suposto modelo de cooperação ao
desenvolvimento imposto pela Comunidade Internacional ao Haiti, dois
países trilham caminhos absolutamente opostos: Cuba e Venezuela. O
primeiro, desprovido de recursos financeiros e pródigo em recursos humanos,
institui em 1998 um programa de saúde familiar e de Medicina de
proximidade que alcança os lugares mais recônditos do Haiti. A diplomacia
médica cubana beneficia diretamente o mais humilde dos haitianos tentando
compensar assim à fuga de cérebros na área da saúde promovida por alguns
países ocidentais, em particular o Canadá.
Por sua vez, embora recente, a cooperação venezuelana ao
desenvolvimento oferecida ao Haiti afirma-se como um novo paradigma na
Bacia do Caribe. Ela se sustenta na seguinte trilogia: por um lado, Caracas
está à escuta das reivindicações haitianas e se esforça para tentar
compatibilizar sua oferta e possibilidades com estas demandas. Por outro,
nada será empreendido sem o conhecimento e prévia concordância das
instituições públicas e do governo haitiano. Enfim, a cooperação objetiva
trazer benefícios diretos ao povo haitiano sem levar em consideração as
eventuais dissonâncias ideológicas com o Governo de turno no Haiti.
Princípio igualmente defendido por Cuba, ele explica não somente a ausência
de interferência dos dois países quando da crise eleitoral de 2010, como
também as excelentes relações mantidas, tanto por Havana quanto por
Caracas, com a administração Martelly.
O Programa Petrocaribe é a joia da coroa da cooperação haitiano-
venezuelana com o Haiti. Nele tudo se insere. Dele tudo depende. Ante o
verdadeiro boicote ao poder público haitiano promovido pelo suposto Grupo
de Países Amigos do Haiti, os recursos disponibilizados pelo Programa
Petrocaribe representam, em 2013, 94% da capacidade de investimento do
Estado haitiano.[129]
Firmado em junho de 2005 e previsto inicialmente para alcançar
exclusivamente os Estados insulares caribenhos, o Programa se estendeu
progressivamente à América Central, reunindo atualmente 18 Estados de
ambas as regiões, além de dois sul-americanos (Bolívia e Equador) dotados
do ambíguo estatuto de Observador.
Petrocaribe persegue três objetivos imediatos. Por um lado, eliminar a
intermediação das companhias petrolíferas privadas internacionais na
comercialização da energia. Por outro, fornecer carburantes a preços e
condições de financiamento preferenciais. Por fim, adiar a liquidação de parte
substancial da fatura petrolífera, permitindo assim que os Estados clientes
utilizem os fundos para financiar programas de desenvolvimento
socioeconômico e de infraestrutura.
Ao assumir a Presidência haitiana pela segunda oportunidade, no
início de 2006, à frente de uma economia e de um Estado exangue,
desprovido de mínima capacidade de investimento, René Préval vislumbra no
Programa Petrocaribe uma válvula de escape. Imediatamente inicia as
tratativas para se associar.
Apesar das inquestionáveis vantagens auferidas pelo Haiti, os Estados
Unidos, por meio de ameaças e chantagens, opuseram-se vigorosamente ao
acordo. Sustentados pelos interesses das companhias petrolíferas e por ranços
políticos e ideológicos, Washington empreendeu uma campanha imoral e
vergonhosa, conhecida recentemente pela publicação de documentos
confidenciais do Departamento de Estado, obrigando Caracas e Porto
Príncipe a adiar o ingresso haitiano no Programa Petrocaribe.[130]
Finalmente, em agosto de 2007, em visita à Venezuela, Préval assina
uma declaração na qual indica que estão
convencidos de que la integración basada en los
principios del Alba y de Petrocaribe constituyen una
alternativa viable para que nuestros pueblos puedan
alcanzar el desarrollo con justicia social, declaro en
nombre de la Republica de Haití nuestra voluntad de
adherirnos plenamente al Acuerdo de Cooperación
Energética Petrocaribe.

Em 8 de março de 2008 atraca em Porto Príncipe o primeiro navio de


transporte de petróleo venezuelano. O termo de adesão estipula que o Haiti
pagaria à vista entre 40 e 70% da fatura. O restante seria pago em 25 anos,
com 24 meses de carência e uma taxa de juros anual de 1%. Atualmente o
Haiti recebe diariamente 14 mil barris de petróleo venezuelano e o fundo
constituído com recursos cujo pagamento foi adiado, alcança US$ 395
milhões. Após o terremoto, foi anulada uma parte substancial desta dívida.
Estes recursos viabilizaram a realização de 189 projetos nas áreas de
infraestrutura, agricultura, educação, saúde, com o financiamento parcial das
brigadas médicas cubanas, assistência social, a construção de três centrais
elétricas e do aeroporto de Cabo Haitiano.
A dívida total haitiana decorrente do Programa Petrocaribe alcança
atualmente US$ 1,3 bilhão. Na Conferência Presidencial realizada em
Manágua em meados de 2013, o novo mandatário venezuelano, Nicolás
Maduro, ao confirmar a continuidade do Programa exigiu, em contrapartida,
a regularização do pagamento do débito contraído. Indicou, inclusive, que
Caracas preferiria que a compensação fosse feita com o fornecimento de
produtos agropecuários, os quais estão disponíveis em todas as economias do
bloco, exceto no Haiti, onde impera a insegurança alimentar. Com a falta de
investimentos no setor agrícola, provavelmente os empréstimos concedidos a
Porto Príncipe se transformarão em doações a fundo perdido.
Para operacionalizar o Programa, 10 dos 18 países beneficiários
criaram megaempresas, supostamente públicas, atuando em vários setores
econômicos a demonstrar a amplidão do Programa. Apesar das acusações de
concorrência desleal proveniente da iniciativa privada e da ausência de
transparência legal, financeira e administrativa, se consolidam as empresas
vinculadas ao Programa.
A maioria dos países beneficiários – caso do Haiti – não inclui os
recursos provenientes do Programa Petrocaribe no orçamento público
nacional, inexistindo supervisão contábil e legal. A situação provoca
desconfianças e críticas, tanto nacionais quanto estrangeiras, pela ausência de
transparência na sua utilização.
Muito além de seu resultado, a filosofia na qual repousa a cooperação
venezuelana contrasta com a dos países desenvolvidos. O ativo e irrequieto
Pedro Antonio Canino Gonzalez, embaixador venezuelano em Porto Príncipe
desde 2007, ressalta os princípios que orientam a ação dos países da Alba no
Haiti:

nous ne sommes pas venus mener une campagne


électorale en Haïti. Pourquoi ferions-nous des
promesses fallacieuses ? L`aide vénézuélienne vise à
soulager la misère du peuple haïtien sans aucune
contrepartie. Mon gouvernement ne s`intéresse même
pas aux relations diplomatiques de la République
d`Haïti avec d`autres pays dont les Etats-Unis. Cela
relève de la compétence des autorités haïtiennes qui
sont libres d`entreprendre des relations avec qui elles
veulent. [131]

Trata-se do exato contrapé da longa e constantemente reforçada lista


de condicionalidades que caracteriza a cooperação oferecida pelo Ocidente.
Desprezando idiossincrasias nacionais, utiliza-se da ideia de democracia
como biombo a camuflar seus próprios interesses nacionais.
Os Estados Unidos e seus aliados no Haiti deveriam estar atentos às
lições da recente cooperação venezuelana, pois, ademais do respeito às
instituições públicas do Estado anfitrião, como declara abruptamente um
dirigente atual haitiano, “l`amitié pour un pays dans le besoin et pauvre
comme Haïti ne se mesure pas en nombre d`années de domination, mais en
combien de millions qui sont sur la table. » [132]
Embora o Programa Petrocaribe se sustente em um discurso
antiimperialista e libertador a indicar uma ruptura entre Monroe e Bolívar, ele
é, de fato, um contramodelo à ajuda tradicional ao desenvolvimento
proveniente dos países desenvolvidos e das organizações internacionais. No
universo da cooperação internacional prestada ao Haiti, a Venezuela constitui
exceção, pois é a única que disponibiliza, com regularidade, recursos
financeiros diretamente ao Estado haitiano.[133]
Certamente a cooperação financeira direta com um Estado dotado de
escassa capacidade administrativa aumenta o risco da utilização indevida dos
recursos. Não há, contudo, outra solução: ou é fortalecida a capacidade de
gestão pública do Estado haitiano ou permaneceremos arando no mar.
Infelizmente a Comunidade Internacional prefere prosseguir com a
estratégia que já demonstrou cabal ineficiência. Não somente impede o
repasse financeiro às instituições haitianas, como também tenta obrigá-las a
colocar seus próprios magros recursos para serem administrados por
organismos internacionais. Assim, por exemplo, houve uma tentativa de
transferir os recursos do fundo Petrocaribe do Estado haitiano para a CIRH.
A decidida resistência de Préval e de Bellerive abortou a manobra. A cada
campanha eleitoral, todavia, os países doadores insistem a colocar os recursos
do Tesouro haitiano para serem administrados pelo Pnud. Portanto, a
estratégia da Comunidade Internacional não somente impede o fortalecimento
institucional, como também retira do Estado haitiano a mínima autonomia
financeira de que dispõe.
Constituem tarefa hercúlea, com resultados improváveis, a sucessão de
denúncias emanadas dos numerosos críticos do chavismo tentando
desconstruir os aspectos positivos e concretos da “petrodiplomacia”
venezuelana. A opinião pública haitiana não se deixa enganar, pois percebe
os benefícios dela advindos.
As agruras econômicas venezuelanas, no entanto, que se agravaram a
partir da assunção de Maduro, hipotecam o futuro do Petrocaribe. Apesar das
promessas de continuidade do governo venezuelano, há evidentes sinais de
enfraquecimento e de dispneia do programa. Mudanças bruscas dos termos
dos contratos provocaram a retirada da Guatemala. A República Dominicana,
entre outros países, não recebe a cota estabelecida.
Inclusive o Brasil, aliado tradicional, sofre com os dilemas atuais da
economia venezuelana. Assim, a Petrobrás anunciou em 25 de outubro de
2013 que decidiu assumir integralmente a construção da Refinaria Abreu e
Lima, em Pernambuco. Apresentada por Hugo Chávez como exemplo da
cooperação energética entre os dois países, a Venezuela participaria, por meio
da PDVSA, com 40% dos custos para sua construção. Impossibilitado de
fazê-lo, Brasília decidiu incoporar plenamente a empreitada.
É sombria a perspectiva que se apresenta às pequenas economias
caribenhas com a crise venezuelana. Elas serão obrigadas a se abastecer de
petróleo e de gás natural no mercado livre, ausente tarifas preferenciais e
financiamentos de longo prazo. Caso se concretize, o impacto sobre o
depauperado Haiti será imediato, pois além de provocar uma crise econômica
significará também o abandono de um promissor modelo de cooperação ao
desenvolvimento.
Ao lançar mão de métodos diversos, a cooperação brasileira ao
desenvolvimento do Haiti pode ser definida como híbrida: por um lado,
doações a organizações privadas como Viva Rio, e públicas tais como o
Pnud, o Programa Mundial de Alimentos (PAM) e a Opas. Por outro, projetos
multilaterais com países membros do Ibas (Índia, Brasil e África do Sul) e
triangulares com Canadá, Cuba, Estados Unidos, França e Venezuela. Por
fim, a tradicional cooperação oferecida em projetos pontuais bilaterais,
vinculada a variados órgãos governamentais haitianos e brasileiros, sobretudo
nas áreas da saúde e da agricultura.
Segundo a versão oficial,

o Brasil atua com base na concepção de que a paz,


para ser sustentável, requer compromisso de longo
prazo e ações sustentadas no tripé
segurança/reconciliação política/desenvolvimento.
Este é o paradigma de cooperação internacional para
a solução de conflitos que, na visão brasileira, deve
orientar a Comunidade Internacional. O compromisso
deve ser de longo prazo e, após uma fase inicial, em
que a força representa a dimensão mais importante de
uma missão de paz, devem ser atacadas as causas
mais profundas das crises, geralmente ligadas à
pobreza, às desigualdades, bem como à fragilidade
institucional. [134]

Quando chegará o momento desta segunda fase? Trata-se de uma


resposta que Brasília tarda a fornecer. Em todo caso, inovando em aspectos
secundários e dando demonstrações de surpreendente continuidade no que diz
respeito aos elementos centrais, o papel da cooperação oferecida pelo Brasil
ao desenvolvimento socioeconômico e institucional do Haiti está muito
aquém das necessidades e contrasta com sua fundamental contribuição na
área de segurança.
A lógica contida no processo de oneigização do Haiti poderia fazer
sentido durante a ditadura Duvalier, como observa um diplomata brasileiro
com ampla experiência na região. Na presente fase histórica de construção da
democracia, contudo,

ela entorpece o desenvolvimento do país, ao criar


dependência crônica e, por pagar mais, rouba os
melhores talentos do Governo e das empresas locais.
Ademais, na medida em que a população não
identifica o Estado como prestador de serviços,
consolida a tendência de não exigir da classe política
as contrapartidas devidas, o que por sua vez impede o
amadurecimento do sistema político haitiano.

O modelo imposto ao Haiti desde 2004 apresenta dupla face. Por um


lado a presença militar por meio da Minustah e por outro a presença civil das
Ongats e das supostas empresas privadas de desenvolvimento. A elas
adicionam-se as estratégias bilaterais dos Estados membros do suposto Grupo
de Países Amigos do Haiti. Interpretando o sentimento popular, é impossível
discordar da sentença de Liliane Pierre-Paul: “La grande majorité des
Haïtiens ne s`y sont pas trompés et les promesses n`ont rien changé en
définitive à la perception désastreuse de cette communauté internationale
bureaucratique, condescendante, dépensière, inefficace, dépourvue d`âme, de
modestie et de créativité. »[135]
Enquanto este modelo não for reformulado em profundidade não
haverá solução. Vulnerabilidade social e precariedade do Estado continuam
sendo as principais características haitianas. Com o modelo aplicado pela
Comunidade Internacional mediante o sistema das Nações Unidas, das
Ongats e dos Estados Unidos, estamos iludindo-nos, enganando a opinião
pública mundial e frustrando o povo haitiano.
Após a cólera da natureza que deixou de joelhos a região mais
densamente povoada do país, prosseguia o calvário haitiano: surge
repentinamente a cólera dos homens a massacrar o campesinato na Artibonite
– região mais rica e fértil, histórico celeiro e espinha dorsal da economia
agrícola haitiana. Duas catástrofes pavorosas que golpearam o mártir país
durante o atroz ano de 2010 e cujas consequências serão sentidas ao longo
das próximas décadas.

CAPÍTULO IX – A CÓLERA DOS HOMENS

No Caribe se sabe tudo. Inclusive antes que aconteça.


Gabriel Garcia Márquez, Náufrago em terra firme, Bogotá, 2000

Uma das principais preocupações logo após o terremoto dizia respeito


à possibilidade do surgimento de epidemias nas regiões atingidas pelo sismo.
Centenas de milhares de desabrigados amontoados sem as mínimas condições
de higiene constituíam o cenário ideal para propiciar o aparecimento de males
desconhecidos a romper o frágil equilíbrio da saúde pública.
A lógica do desastre aconselhava prudência com a região
metropolitana de Porto Príncipe. Desta poderiam surgir epidemias até então
desconhecidas no Haiti, tais como a cólera, e atingir o restante do país. Ora,
foi exatamente o contrário que ocorreu.
Apesar das desumanas condições sanitárias haitianas, nenhuma
epidemia seguiu-se ao terremoto. A cólera surgirá justamente numa região
poupada pelo sismo e seu impacto nos campos de desabrigados é
praticamente nulo se comparado ao das áreas rurais.
No início de outubro de 2010 foram constatados, no Vale de
Artibonite (região central do Haiti), casos de pessoas que se apresentavam
nos hospitais com forte diarreia. Algumas sequer conseguiam buscar auxílio
médico, pois o ataque era de tamanha violência que matava adultos em quatro
horas e crianças em duas. Neste lapso temporal os pacientes chegavam a
perder 11% do volume do corpo.
Por coincidência estava reunido com o primeiro ministro Bellerive, no
dia 20 de outubro de 2010, quando lhe foi comunicada a confirmação de que
os testes clínicos e de laboratório realizados com os enfermos e mortos pela
fulminante enfermidade comprovavam que se tratava do bacilo da cólera.
Desolado, indagou-me: “Ricardo, qu`est qu`il manque encore pour détruire
définitivement Haïti?”
Historicamente imune à cólera, o país encontra-se totalmente
despreparado para combatê-la. A cholera morbus que alcançou os Estados
Unidos vinda da Europa na primeira metade do século 19 e atingiu as ilhas
adjacentes a Hispaniola tais como Jamaica, Cuba e Porto Rico, nunca havia
afetado o Haiti. Assim, em 1886, destaca o representante britânico no Haiti,
Spencer Saint-John, que “apesar de Porto Príncipe ser a cidade mais
degradada que conheci, ela jamais foi visitada pela cólera”.
De longa data os especialistas em saúde pública já temiam as
consequências desastrosas caso o Haiti viesse a ser golpeado pela cólera.
Desprovido de um sistema de abastecimento de água, as fontes naturais do
líquido são utilizadas para os mais variados fins: para beber, para lavar roupa,
para banhar-se, para uso doméstico, para saciar a sede dos animais. Além
disso, a pureza das águas decorre de uma agricultura natural, ausente os
estragos ocasionados pelo uso de pesticidas. No Haiti, mais do que em
qualquer outro lugar, a água oferecida pela natureza é fonte de vida. Com a
cólera se transformou em sinônimo de morte.
Geralmente 75% das pessoas infectadas não apresentam nenhum
sintoma da doença. Assim sendo, combater a epidemia implica não somente
tratar os enfermos, mas igualmente colocar em prática abrangente política de
saúde pública – inexistente no Haiti, especialmente após o terremoto – capaz
de prevenir a rápida transmissão do bacilo.
Impressionava a rapidez com a qual se alastrava a epidemia.
Utilizando-se dos córregos, rios, lagos e canais a cólera se esparramava
inexoravelmente para o conjunto da região central do Haiti. Logo, os
viajantes levaram o bacilo para as demais regiões do país. Assim, antes de
fins de outubro a cólera alcança Cité Soleil, provocando mortes e dezenas de
internações.
A simples menção do surgimento da doença provocou imensa
preocupação nas autoridades. Para evitar um pânico generalizado optou-se
pela simples emissão de alertas de saúde pública, sem no entanto indicar as
terríveis perspectivas do mal.
Espontaneamente, porém, surgiam manifestações desesperadas e
violentas defronte aos acampamentos da Minustah em várias localidades do
país. Ocorre que fotos são publicadas mostrando dejetos humanos
provenientes das instalações da Minustah sendo jogados nos córregos da
região. Diante das acusações, Edmond Mulet cogitou retirar os soldados
nepaleses - a fim a fim de preservar sua segurança - da região de Artibonite.
Logo abandonou a ideia, pois seria um reconhecimento tácito da
responsabilidade das Nações Unidas. Este foi o primeiro passo da vergonhosa
estratégia de denegação de uma evidência que manchará para sempre a
história das Operações de Paz das Nações Unidas.
Além do calvário a subjugar a população mais humilde, tem início
outro tormento feito de meias-verdades, de embustes e de mentiras
deslavadas. Enquanto a grande maioria buscava as origens do mal, um
número reduzido, embora detentor de grande poder, de autoridades
estrangeiras, tentava encontrar explicações bizarras e metafísicas.
Num primeiro momento estes sinistros personagens defendiam que era
primazia combater a cólera e não perder tempo com sua identificação. Em
seguida afinaram seu discurso e constataram o óbvio. O surgimento da cólera
somente foi possível porque não havia um sistema sanitário, de distribuição
de água tratada e de saneamento básico, bem como a gritante deficiência da
rede de saúde pública. Ora, ao longo dos dois últimos séculos estas condições
prevaleceram no Haiti e, apesar delas, a cólera jamais havia afetado o país. O
que parecia evidente para a maioria era o fato de que havia incidido sobre
esta realidade dolorosa um elemento estranho e estrangeiro ao meio
ambiente.
A lógica e o bom senso impunham que em razão das condições
descritas, maiores deveria ser o cuidado para não introduzir elementos
estranhos que viessem afetar um equilíbrio frágil e precário. Como será
constatado – inclusive no Relatório Oficial das Nações Unidas sobre a origem
da cólera – a Minustah não havia tomado as medidas sanitárias profiláticas
preventivas que se impunham ante a situação específica do Haiti. Além disso,
não havia realizado preventivamente testes de saúde com os militares
enviados a cada seis meses ao país.
Embora as evidências apontando os responsáveis se acumulassem, a
irresponsabilidade das Nações Unidas chegou ao paroxismo quando
defenderam a tese do “concurso de circunstâncias” para explicar o
surgimento da cólera. Nela, a responsabilidade recai sobre as vítimas,
isentando de toda culpa os algozes.
A ciência do saber não tinha outro objetivo a não ser o de detectar com
precisão os contornos da bactéria. Assim seria possível lutar mais
eficazmente contra ela. A ninguém ocorria o desejo de vingança, do acerto de
contas, da responsabilização dos irresponsáveis. Era urgente definir uma
estratégia para combater o mal, invisível e mortífero. Para tanto, era
indispensável conhecer o inimigo. Identificá-lo. Delimitá-lo. Descobrir suas
eventuais debilidades. Urgia saber de onde provinha e qual seu provável
comportamento.
Quando o presidente Préval fez um pronunciamento anunciando as
primeiras medidas sanitárias e enfatizando que a origem da epidemia era
importada todos nós, estrangeiros, nos interrogamos. Do exterior? Qual seria
então o vetor?
Apontada por parte da imprensa como responsável pela epidemia, as
Nações Unidas descartaram qualquer responsabilidade. Para confirmar a
denegação, fizerem supostos testes que resultaram todos negativos. Mesmo
quando surge na imprensa internacional uma foto mostrando um caminhão
cisterna a serviço da Base da Minustah despejando dejetos humanos no Rio
Mye, afluente do Artibonite, os desmentidos prosseguiram.
Recordo de um almoço na residência do embaixador da República
Dominicana no Haiti, Ruben Silié Valdez, no qual sustentei a ideia de que era
necessário descobrir – e não encobrir – a origem do surto no mínimo por três
razões: em primeiro lugar porque sabendo exatamente de onde surgira o
vibrião se poderia contra ele lutar com maior eficácia; segundo, porque se
trata de um direito inalienável da população haitiana à informação e enfim, se
a ONU está no Haiti na condição de convidada para dar lições e melhorar a
vida dos haitianos, o mínimo que se pode esperar é uma atitude de
sinceridade e de franqueza.
A atitude de marronagem – tão criticada quando se trata de
interlocutor haitiano – quando adotada pela Minustah e pela maioria do corpo
diplomático acreditado no Haiti diante da origem da cólera, me deixava muito
desconfortável. Alguns diplomatas mentiam abertamente acobertando as
alegações do Representante Especial do SGNU, Edmond Mulet. Raros eram
os diplomatas sinceros, como o citado embaixador Silié e o embaixador de
Cuba, Ricardo Garcia Nápoles. Este último, inclusive, detinha informações
de primeira mão sobre o surto de cólera e sobre os desafios sanitários e de
higiene pública enfrentados pelo Haiti. Com efeito, desde 1998 Havana
mantém equipes médicas no Haiti, em parte graças ao financiamento da
Venezuela e atualmente com aportes brasileiros.
Em dezembro de 2010 o epidemiologista francês doutor Piarroux, em
um estudo encomendado pelo Ministério da Saúde haitiano e pelo governo
francês, conclui de forma peremptória que não havia qualquer dúvida com
relação à origem do surto: o vibrião é o mesmo que se encontra no Sudeste
asiático e fora a Base Militar da Minustah ocupada por tropas do Nepal a
responsável pela poluição do rio Mye. Como tradicionalmente ocorre em tais
circunstâncias, os que não apreciaram a mensagem – parte ponderável do
internacional – adotam a tática de questionar o mensageiro. A partir daí o
doutor Piarroux, até então considerado como maior autoridade sobre o tema,
sofre pesadas críticas de natureza pessoal e profissional.
Em 2011, em resposta a uma sugestão do Brasil, o Conselho de
Segurança das Nações Unidas aceitou iniciar discussões sobre a
Responsabilidade ao Proteger, corolário indispensável, segundo Brasília, aos
princípios contidos na estratégia da Responsabilidade de Proteger. Trata-se de
colocar limites às ações das forças de intervenção – mormente aquelas
conduzidas no âmbito das Operações de Paz – retirando a carta branca que
elas dispõem atualmente.
Segundo o ex-chanceler brasileiro Antonio Patriota, “é preciso evitar
que a ação implementada provoque mais danos do que se pretendia prevenir,
o chamado efeito colateral, ou seja, morte de civis no conflito”.[136]
A hecatombe provocada pela introdução do vibrião da coléra pela
Minustah no Haiti parecia representar a ocasião ideal para que Brasília
acompanhasse a louvável iniciativa diplomática com ações concretas.
Infelizmente o governo brasileiro conservou absoluto silêncio e jamais
mencionou o terrível episódio.
Enquanto as Nações Unidas davam continuidade à pantomima sob a
batuta do Representante Especial do Secretário Geral, Edmond Mulet, o vírus
alastrava-se rapidamente. Em dezembro, uma pessoa era infectada a cada 38
segundos e no mês seguinte um infectado a cada 18 segundos. Além disso, a
porta-voz da Coordenadora para Assuntos Humanitários das Nações Unidas
(Unocha), Elisabeth Byrs, definia como “vergonhosa” a atitude dos Estados
Doadores, que colocaram à disposição da ONU somente 25% do total dos
recursos necessários para a luta contra a epidemia.
Finalmente, pressionada por uma realidade que agredia suas versões
disparatadas, as Nações Unidas encomendam um Relatório a uma Comissão,
embora nomeada pelo SGNU, integrada por especialistas supostamente
independentes. Apesar da ausência da indispensável autonomia e de lançar
mão de um cuidadoso vocabulário diplomático o qual, como ressaltado em
todos os manuais universitários da área, foi concebido mais para encobrir do
que para revelar e que muitas vezes se parece com a langue de bois, sua
conclusão é sem apelo e reforça as conclusões do doutor Piarroux.
O Relatório da ONU confirma que o sistema de evacuação das latrinas
do campo dos soldados nepaleses da Minustah é deficiente. A fossa onde são
estocadas as matérias fecais encontra-se em local aberto, desprotegido, no
qual crianças costumam brincar. Quando chove, a fossa transborda e seu
conteúdo corre em direção ao Rio Mye que abastece de água a população. A
epidemia surgiu exatamente neste local.
Em suas recomendações às Operações de Paz, o Relatório reconhece
implicitamente que medidas sanitárias preventivas não foram aplicadas e
sugere que as Nações Unidas procedam a análises de saúde dos militares
antes de enviá-los em missão.
As Nações Unidas são, portanto, responsáveis por milhares de mortes
no Haiti, algumas centenas na República Dominicana e bilhões de dólares de
prejuízos hipotecando o futuro da ilha.
O Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas dispõe de um
especialista supostamente independente encarregado de acompanhar, por
meio de visitas periódicas e relatórios que deveriam ser substanciais, a
evolução da proteção dos direitos humanos no Haiti. Em seu Relatório de
abril de 2011, no entanto, Michel Forst sequer menciona a responsabilidade
da ONU no surgimento da epidemia de cólera. Sobre o assunto ele se limita
em condenar o linchamento de mais de 45 pessoas – supostamente feiticeiros
– considerados responsáveis pela propagação da cólera em várias regiões do
país, sobretudo no Departamento da Grande Anse e no Sudoeste.
Quando indagado pela imprensa das razões de seu silêncio sobre a
epidemia de cólera e a eventual responsabilização das Nações Unidas, Forst
simplesmente responde que não consta do mandato que recebeu do CDHNU
o acompanhamento do trabalho da Minustah. Segundo ele, suas atividades
estão restritas exclusivamente ao acompanhamento das ações das autoridades
haitianas. Constrói-se assim um cenário no qual o genocídio culposo
cometido pela ação da própria ONU não encontra guarida para ser apreciado
pelo CDHNU.
A atitude das Nações Unidas – além de constituir um desrespeito às
vítimas e aos seus familiares – é também uma afronta aos mais elementares
princípios jurídicos que norteiam as Relações Internacionais. A ONU é
guardiã dos principais instrumentos que protegem os direitos humanos. Ora,
como é possível entender e aceitar que nestas condições ela se autoisente dos
efeitos de seus atos e omissões?
Em outubro de 2011 a Faculdade de Direito de Santa Maria (Fadisma)
no Rio Grande do Sul (Brasil) protocolou junto a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos (CIDH) da OEA, em Washington, uma demanda
judicial contra a Organização das Nações Unidas por haver introduzido a
cólera no Haiti.[137]
A denúncia contra a Organização das Nações Unidas decorre de sua
responsabilidade por atos e omissões com relação à base militar da Missão
das Nações Unidas para Estabilização no Haiti que, sob seu comando e
responsabilidade, disseminou, a partir da base de Mirebalais, no
Departamento de Mirebalais, no Haiti, dejetos humanos de soldados
nepaleses contaminados pelo vibrião da cólera, provocando contaminação em
cadeia, adoecimento e morte de dezenas de milhares de pessoas infectadas
pela bactéria.
Também oferece denúncia a CIDH por acompanhar a resistência da
ONU em investigar minuciosamente as origens da contaminação,
comprometendo o enfrentamento efetivo da doença e o direito de informação
dos povos atingidos, e por não concordar com a reiterada negativa da
Organização em assumir sua responsabilidade.
A ONU violou os artigos 4º (direito à vida) e 5º (direito à integridade
pessoal) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, bem como
desrespeitou um dos propósitos da própria Carta da Organização (artigo 1º nº.
3, “promoção e estímulo do respeito aos direitos humanos”).
O caso representa uma oportunidade ímpar para o Sistema
Interamericano de Direitos Humanos afirmarem no plano regional, a
responsabilidade das organizações internacionais em decorrência de um
ilícito, e de agir contra a omissão, indiferença e a impunidade que, pelas
conhecidas deficiências materiais e de acesso à Justiça das vítimas, poderia se
perpetuar, o que levaria à irresponsabilidade coletiva e à ausência de
conseqüências jurídicas.
A ONU goza de prerrogativas de imunidade de jurisdição
reconhecidas pela Convenção sobre Privilégios e Imunidades das Nações
Unidas (Convenção de Londres, aprovada pela Assembleia geral da ONU em
13 de fevereiro de 1946), acordo do qual o Haiti é signatário.
Os principais elementos contidos na Convenção de Londres foram
inseridos no Acordo entre a Organização das Nações Unidas e o governo
haitiano referente ao estatuto da operação das Nações Unidas no Haiti.
Firmado em Porto Príncipe em 9 de julho de 2004, o Acordo entrou em
vigência imediatamente. Assim sendo, por esse Acordo, os privilégios e
imunidades da Minustah deveriam ser garantidos.
O Acordo abriga, todavia, uma grave irregularidade que o torna nulo
segundo o Direito dos Tratados. O Acordo foi firmado pelo primeiro ministro
do Haiti, Gérard Latortue. Ora, o artigo 139 da Constituição haitiana de 1987
prevê expressamente que tal assinatura constitui atribuição exclusiva do
presidente da República pois “il négocie et signe tous traités, conventions et
accords internationaux et les soumet à la ratification de l`Assemblée
Nationale. »
Na época da assinatura do Acordo a Presidência do Haiti estava sob o
exercício de Boniface Alexandre, que sequer é mencionado no documento.
Ausente, igualmente, a ratificação do Poder legislativo. O referido Acordo,
portanto, não possui validade jurídica e não pode obrigar as Partes por
fundamental vício de origem, posto que o signatário a comprometer uma das
Partes não dispunha de capacidade jurídica para fazê-lo.
Nos termos da Seção II, artigo II, da Convenção de Londres é previsto
que:
L`Organisation des Nations Unies, ses biens et avoirs,
quels que soient leur siège et leur détenteur, jouissent
de l`immunité de juridiction, sauf dans la mesure où
l’Organisation y a expressément renoncé, dans un cas
particulier. Il est toutefois entendu que la renonciation
ne peut s`étendre à des mesures d`exécution.

Apesar da nulidade do Acordo firmado pela ONU e Haiti em julho de


2004, a Convenção de Londres mantém sua vigência. Não se afigura
juridicamente viável, portanto, seja a ONU acionada em qualquer das
instâncias judiciárias do Haiti – por inexecutável que seria eventual sentença
desfavorável à Organização. Este foi o argumento utilizado pelo governo do
presidente Préval para não impetrar uma ação judicial contra as Nações
Unidas.
A Seção 20 do Artigo V que trata dos privilégios e imunidades dos
funcionários das Nações Unidas reza que tais

privilèges et immunités sont accordés aux


fonctionnaires uniquement dans l`intérêt des Nations
Unies et non à leur avantage personnel. Le Secrétaire
Général pourra et devra lever l`immunité accordée à
un fonctionnaire dans tous les cas où, à son avis, cette
immunité empêcherait que justice soit faite et pourra
être levée sans porter préjudice aux intérêts de
l`Organisation. À l`égard du Secrétaire Général, le
Conseil de Sécurité a qualité pour prononcer la levée
des immunités.

Aplica-se aos funcionários da ONU unicamente uma imunidade


funcional que poderia, caso assim a Organização decidisse, ser suspensa. Tal
medida permitiria que seus funcionários cuja responsabilidade, por ações ou
omissões, estivesse comprometida na introdução e disseminação da cólera no
Haiti, fossem devidamente processados judicialmente.
Em outubro de 2012 o ministro de Relações Exteriores do presidente
Martelly – Pierre-Richard Casimir – em depoimento na Comissão de
Assuntos Exteriores da Câmara de Deputados do Haiti, abandona a
argumentação jurídica do governo precedente. Contrariando a unânime
argumentação probatória científica e os fatos, ele afasta a responsabilidade
das Nações Unidas, alegando suposta ausência de vínculos entre o
surgimento da epidemia e a ação de soldados da Minustah. A infame atitude
do governo Martelly se explica pelo simples fato de que ele é resultado da
vontade da Comunidade Internacional – mormente das Nações Unidas – e
somente a elas deve prestar contas.
O conjunto dos fatos revela a ligação direta entre o surto de cólera e a
atividade de soldados agindo sob responsabilidade e comando da Minustah.
Os relatórios de observadores e cientistas permitem afirmar com segurança
que os vetores da doença para a ilha foram soldados nepaleses enviados à
base de Mirebalais.
A ONU não pode escapar da responsabilidade que nasce do dano que
o seu comportamento lesivo possa produzir sobre outros sujeitos de Direito.
Admitir o contrário é afirmar que não existe consequência que advenha da
violação da ordem jurídica internacional por parte da ONU; é aceitar, no
limite, a inexistência da obrigatoriedade do Direito Internacional,
desnaturando, assim, a própria ideia de ordem pública internacional.
Seria absurdo admitir que as Nações Unidas estivessem desobrigadas
de respeitar as normas presentes em sua Carta Constitutiva ou em
documentos relativos a direitos humanos fundamentais – bens jurídicos da
mais alta relevância – cuja própria Organização auxiliou a estruturar e
colabora para proteger. Antes, pelo contrário: com maior razão a Organização
deve responder pelos atos lesivos aos direitos humanos a ela imputáveis uma
vez que se trata de direitos de elevado conteúdo ético, que despertam maior
reprovabilidade quando violados por um sujeito que está entre os maiores
encarregados de protegê-los.
Por ser sujeito de Direito Internacional, dotada de personalidade
jurídica, pode a ONU ser titular de direitos e deveres e, assim sendo, pode
demandar pela lesão sofrida em decorrência de ilícito – como já o fez, quando
lhe conveio, a exemplo do caso Bernadotte – tanto quanto pode ser
demandada – como no presente caso – pela responsabilização decorrente de
ilícito a ela imputável.
La Cour Internationale de Justice (CIJ) en Avis Consultatif du 11 avril
1949, sous le titre Réparation des dommages subis au service des Nations
unies (affaire Comte Folke Bernadotte) a défini que

L`Organisation [des Nations unies] est une personne


internationale. Ceci n`équivaut pas à dire que
l`Organisation soit un Etat, ce qu`elle n`est
certainement pas, ou que sa personnalité juridique,
ses droits et ses devoirs soient les mêmes que ceux
d`un Etat. Encore moins cela équivaut-il à dire que
l`Organisation soit un « super-Etat », quel que soit le
sens de cette expression. Cela n`implique même pas
que tous les droits et devoirs de l`Organisation
doivent se trouver sur le plan international, pas plus
que tous les droits et devoirs d`un Etat ne doivent s`y
trouver placés. Cela signifie que l`Organisation est un
sujet de droit international, qu`elle a capacité d`être
titulaire de droits et devoirs internationaux et qu`elle
a capacité de se prévaloir de ses droits par voie de
réclamation internationale.[138]

Na límpida e inconteste opinião da CIJ, a ONU pode exercer sua


legitimidade ativa, como o fez realmente no caso em tela. Como também
pode ser objeto de demanda (legitimidade passiva) no caso de suas ações e
omissões. Basta que um Estado que reconheça a jurisdição da CIJ tome a
iniciativa.
Reforçam a legitimidade passiva da ONU no presente caso as relações
que a Organização estabelece com o Estado haitiano. Em 2004, a Resolução
1.542 do Conselho de Segurança criou e definiu o mandato da Minustah.
Esse documento conferiu poderes à Organização para assistir o governo
haitiano no que se refere à geração de um ambiente seguro e estável no Haiti
e à garantia do processo político e da promoção dos direitos humanos.
Na prática, é reconhecido que aquilo que na Resolução foi enunciado
como mandato para “assistência” ao Governo de Transição traduz-se, de fato,
na própria substituição do Estado pela Minustah em setores intrinsecamente
ligados à soberania estatal, tais como a “monitoração, reestruturação e
reforma da Polícia Nacional Haitiana”, a “restauração e manutenção do papel
da lei, da segurança e da ordem públicas” e a “promoção dos direitos
humanos”, entre outros (conforme os diversos incisos e alíneas do artigo 7º
da Resolução do Conselho de Segurança 1.542/2004).
As diversas hipóteses sobre a origem da bactéria contemplavam a
migração de elementos patogênicos que teriam chegado ao Haiti devido às
falhas tectônicas causadas pelo terremoto de janeiro de 2010, a mutação de
um organismo já presente no território e a introdução do vibrião por um
soldado da missão de paz da ONU cujas fezes contaminadas teriam sido
lançadas em águas haitianas sem o devido tratamento.
Em dezembro de 2010 o primeiro relatório sobre a origem da cólera
no Haiti descartava o terremoto ou mutações naturais como possíveis causas
do surto: “O foco infeccioso partiu do campo dos nepaleses”; “o ponto de
origem está precisamente localizado” e “a explicação mais lógica é a
introdução massiva de material fecal no curso do Rio Artibonite de uma só
vez”, afirmou o epidemiologista Renaud Piarroux, enviado pelo governo
francês a pedido deste e do Ministério da Saúde haitiano.
Em janeiro de 2011, finalmente, o Secretário Geral da ONU nomeou
um painel de quatro especialistas encarregados de “investigar e procurar
determinar a origem do surto de cólera de 2010 no Haiti”. O relatório foi
apresentado ao SGNU em maio de 2011.
O painel convocado investigou o problema a partir dos eixos
epidemiológico, de água e saneamento e de análise molecular. Como
resultado os especialistas rechaçaram as “causas naturais” do surto,
afirmando que “as evidências não suportam as hipóteses que sugerem que o
corrente surto decorre de uma causa natural do ambiente”.
Além disso, sustentaram que “a evidência suporta plenamente a
conclusão de que a origem da cólera no Haiti é devida à contaminação do Rio
Meye, afluente do Artibonite, com uma variedade patogênica comum no Sul
da Ásia do tipo Vibrio cholerae, em decorrência de atividade humana”.
Ao mesmo tempo em que todas as evidências apontavam para uma
conclusão indicativa das tropas nepalesas da ONU como fonte da
contaminação, o painel, de forma surpreendente, pois contraditória em
relação a tudo que acabara de constatar, evitou atribuir responsabilidade ao
contingente militar colocado à disposição da Minustah. Segundo o Relatório,
o surto de cólera no Haiti “a été causée par la confluence de plusieurs
circonstances et n`était pas la faute, ou n`était due à l`action délibérée d`un
groupe ou d`un individu. »
O jornal Le Nouvelliste de Porto Príncipe ironiza a atitude das Nações
Unidas ao publicar um Editorial, em maio de 2011, sob o evocador título
“Cholera: ONU coupable mais pas responsable”, no qual deixa transparecer a
flagrante contradição. O que esta deveria fazer a partir desta constatação? Em
primeiro lugar um formal pedido de desculpas ao povo e governo haitianos.
Em seguida, uma sanção contra todos os funcionários da Organização que
participaram da coletiva mentira, manchando o nome da instituição. Enfim,
solicitar uma auditoria independente capaz de calcular os prejuízos materiais
e financeiros sofridos pelo Haiti e sua população.
Cabe salientar que a definição da inexistência de culpa é atributo da
Justiça Internacional e não de opinião de profissionais de saúde que, nesta
seara, são leigos. Ademais, embora não se possa afirmar ou descartar a
existência de uma ação deliberada de uma pessoa ou um grupo de pessoas,
houve sem sombra de qualquer dúvida uma gravíssima negligência por parte
da Minustah que, por sua inescusável ciência e omissão, pode vir a ser
acusada da ocorrência de um verdadeiro genocídio culposo.
A partir de seu relatório, a verdade é que a ONU apegou-se
fortemente à teoria da “confluência de circunstâncias” para se eximir de
qualquer responsabilidade direta.
O próprio documento, entretanto, já fornecia todos os elementos para
o estabelecimento do nexo causal entre a origem da cólera e a contaminação a
partir dos dejetos lançados pela base da Minustah em Mirebalais, a partir da
chegada dos soldados nepaleses.
Os especialistas confirmam ao longo da pesquisa:

a) les souches sont génétiquement identiques,


indiquant une source unique pour l`épidémie en Haïti
et que la bactérie est très similaire mais pas identique
aux souches du cholera de l`Asie du Sud actuellement
en circulation en Asie, confirmant que la bactérie du
cholera n`émanait pas d`Haïti;
b) contamination fécale de la rivière Meye, un affluent
du fleuve Artibonite;
c) le calendrier suggère que l`épidémie s`est propagée
le long du fleuve Artibonite.

Eles denunciam as condições sanitárias deficientes do acampamento


da Minustah em Mirebalais ao enunciar que não foram suficientes para
prevenir a contaminação do sistema tributário do Rio Meye com resíduos
fecais humanos. Além disso, os dados de análise molecular indicam a
identidade genética das cepas encontradas no Haiti, o que fornece uma ponte
para a detecção da origem do surto, e a semelhança com as cepas de Vibrio
Cholerae O1 encontradas no Sul da Ásia.
Alertam para o risco de transmissão de agentes patogênicos pelo
pessoal mobilizado pela ONU, advertem para a importância do tratamento
profilático do pessoal da Organização proveniente de regiões onde a cólera é
endêmica e recomendam o tratamento dos dejetos fecais de todas as
instalações da ONU.
O fato de “tal surto” não ser possível “sem deficiências simultâneas
do sistema de adução de água, saneamento e assistência médica” como
afirmam os especialistas, não elimina a responsabilidade da ONU pelas
contaminações e mortes provocadas em decorrência da introdução do vibrião
no Haiti. Antes, pelo contrário, torna ainda mais grave a responsabilidade da
Organização ao negligenciar as condições sanitárias de suas instalações em
um país com infraestrutura já fragilizada e no qual o povo já enfrenta
diuturnamente uma luta permanente pela sobrevivência. Raciocinar de outra
forma é assumir a postura indigna e perversa de culpar as vítimas por não
conseguirem resistir aos males que as afligem.
Enquanto o painel de especialistas produzia o relatório encomendado
pelo Secretário Geral da ONU, o especialista independente Michel Forst
comunicava, em relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos da
ONU, em razão de mandato conferido pela Comissão de Direitos Humanos
da mesma organização, sobre a onda de violência que vitimava sacerdotes
praticantes do vodu.
Segundo o informe, ao menos 45 pessoas haviam sido alvo de
linchamentos (consistentes em golpes de machado e pedras e posterior
incineração nas ruas) por grupos que as acusavam de espalhar a enfermidade,
numa clara relação entre o desespero pela impotência ante a não contenção
dos casos de contaminação e morte, a cultura local e a virulência da
epidemia, a mais intensa que o mundo conheceu na História moderna.
Esse especialista de Direitos Humanos, no entanto, relator exclusivo
para o Conselho de Direitos Humanos, jamais mencionou em seus relatórios
a origem da cólera, pois – como o próprio afirma – seu mandato não o
permite: “Mon mandat ne concerne pas la Minustah.”
O posicionamento reflete, de formas objetivas, que o Conselho de
Direitos Humanos das Nações Unidas não toma conhecimento - ou parece
não deseja tomar - de eventuais ações ou omissões que agridem os direitos
humanos fundamentais decorrentes das atividades da ONU no Haiti.
Essa posição fecha o caminho para uma demanda a partir do próprio
sistema onusiano – situação inaceitável quando a organização é promotora e
depositária fiel dos principais documentos internacionais relativos à proteção
dos direitos humanos fundamentais. Conduzindo a lógica do sistema ao seu
ápice, pode-se concluir que as Nações Unidas, em suas ações e omissões,
estão descompromissadas com o Direito Internacional, com os atos
internacionais por ela promovidos, com os princípios contidos na Carta de
São Francisco e com os princípios que embasam a ética e a moral
internacional.
Chega-se à absurda constatação de que o garantidor do mais elevado
compromisso para o respeito dos Direitos Humanos fundamentais de alcance
universal é o único sujeito desobrigado de cumpri-lo.
Em março de 2013, diante da impossibilidade de ver reconduzido seu
mandato por seis anos suplementares, em razão da oposição do governo
Martelly, Forst decide renunciar, abrindo mão dos 12 meses restantes. O fato
não alcança grande relevância, pois proporcional à qualidade de seu trabalho
no Haiti. Poucos sentirão sua falta. A importância se manifesta na forma.
Ocorre que no documento anunciando sua renúncia Forst cobra
posicionamento do Conselho de Direitos Humanos sobre eventual
responsabilidade da ONU na eclosão da epidemia de cólera no Haiti.
Em razão das funções exercidas, o posicionamento de Forst adquirira
fundamental importância. Assim, a partir de novembro de 2010 centenas de
tratativas, solicitações, demandas e sugestões foram feitas para que reportasse
ao CDHNU a questão da responsabilidade da ONU no surgimento da
epidemia de cólera. Forst jamais as acolheu. Foi acolhê-las ao despedir-se.
Difícil afastar a impressão de que não se trata de uma corriqueira vendetta.
Uma vez mais, o Haiti e seus dramas servem de biombo a esconder
propósitos e disputas inconfessáveis.
Em julho de 2011 um grupo de cientistas liderados por Renaud
Piarroux tornou público um trabalho em que foram apresentados novos
argumentos que sustentam de forma sólida a introdução do vibrião da cólera
no Haiti por meio de soldados integrantes da Minustah.
Os cientistas lembraram que um surto de cólera foi registrado na
capital nepalesa – Katmandu – em 23 de setembro de 2010, pouco antes das
tropas partirem para o Haiti, e recordaram que os soldados nepaleses
chegaram ao campo da Minustah de Artibonite nos dias 9, 12 e 16 de
outubro, pouco antes do início da epidemia.
A partir desse contexto, valendo-se de metodologia criteriosa, o
estudo afirma que existe uma exata correlação espaço-temporal entre a
chegada das tropas nepalesas originárias de uma região na qual a cólera é
endêmica e os primeiros casos verificados no Rio Meye poucos dias mais
tarde.
Em agosto de 2011, novo e mais aprofundado estudo de análise
molecular aperfeiçoou significativamente as conclusões sobre a origem do
vibrião colérico. Utilizando o método whole-genome sequence typing
(WGST) que, “aliado à teoria evolucionista e métodos estatísticos avançados,
representa a mais poderosa análise molecular imaginável”, um grupo de 15
cientistas concluiu que “os resultados do estudo são consistentes com a
identificação do Nepal como origem do surto haitiano”.
Um estudo elaborado pelos pesquisadores Jake Johnston e Keane
Bhatt demonstrou como a reiterada negligência da Minustah, desde a
hesitação na investigação da origem da epidemia até os erros que conduziram
a uma mobilização retraída de fundos e intervenções para tratamento,
levaram ao adoecimento e morte desnecessários de centenas de milhares de
pessoas naquela que é considerada a maior catástrofe epidêmica no
continente americano em décadas.
Os pesquisadores demonstram como a resistência da ONU em
assumir a responsabilidade pela epidemia contribuiu para a rápida
disseminação da doença, para a inadequada alocação de recursos
(concentrados na região urbana em detrimento das zonas rurais, mais afetadas
em razão do modelo de contaminação) e para o fracasso no desenho de
projetos de longo prazo para o seu enfrentamento.
Registre-se também que o surto da doença transportada por soldados
nepaleses diretamente do sudeste asiático fez suas vítimas no continente para
além da ilha de Hispaniola: foram registrados casos de venezuelanos
contaminados após participarem de uma festa familiar na República
Dominicana e, mesmo nos Estados Unidos – casos na Flórida e Porto Rico -
um caso de contaminação por cólera foi registrado, assim como na
Venezuela, no Chile e no México.
Diante da análise de todos os fatos anteriormente narrados, resta
límpida a responsabilidade internacional da ONU pela contaminação,
adoecimento e morte de dezenas de milhares de pessoas infectadas pelo
vibrião da cólera no Haiti e na República Dominicana, pelas seguintes razões:
- não realizou procedimentos de controle de higiene e saúde de
soldados nepaleses contaminados pelo vibrião da cólera que atuavam (e
atuam) no Haiti, sob seu estrito comando e responsabilidade;
- permitiu o lançamento, sem tratamento adequado, nas águas do Rio
Meye que deságua no Rio Artibonite, de dejetos fecais contaminados de
campo militar sob seu comando e responsabilidade no Departamento de
Mirebalais;
- ao permitir, de forma omissa e negligente, fossem as águas
contaminadas com uma bactéria estrangeira, disseminando a cólera até o
presente, a Organização colocou em risco tanto a saúde e a vida das pessoas
que delas dependem diretamente quanto às de milhares de outras que podem
entrar em contato com o vibrião colérico;
- ao reiteradamente negar-se a realizar uma investigação minuciosa
sobre a origem da cólera, não contribuiu para uma resposta pronta e efetiva
ao problema e potencializaram danos, colocando em risco vidas e provocando
perdas irreversíveis às pessoas contaminadas, as suas famílias e, devido às
proporções e características da epidemia, a toda a ilha que abriga o Haiti e a
República Dominicana.
Em decorrência da atribuição da responsabilidade internacional
amplamente comprovada, a ONU deveria assumir sua responsabilidade pela
introdução do vibrião da cólera no Haiti e adotar as seguintes providências:

a) Desculpar-se, por meio de pedidos oficiais, solenes e públicos, com o povo


haitiano e dominicano;
b) Instituir controle sobre as condições de saúde dos militares que participam de suas
Missões de Paz tal qual recomendado pelo próprio relatório do Painel Independente
convocado pelo Secretário Geral da ONU;
c) Reparar economicamente o Haiti e a República Dominicana, bem como os Estados
Unidos, México, Venezuela, Cuba e Chile, sem prejuízo das reparações devidas às
pessoas contaminadas e às famílias das vítimas fatais da cólera;
d) Criar novos centros de tratamento e prevenção da cólera no Haiti bem como
fortalecer aqueles já existentes, com recursos financeiros e logísticos, até que a
epidemia seja totalmente erradicada;
e) Arrecadar um fundo de, no mínimo, US$ 500 milhões (quinhentos milhões de
dólares americanos) para a criação de um sistema público de saúde no Haiti;
f) Contratar, as suas expensas, serviços de consultoria independentes que possam
calcular a forma e o montante das indenizações por danos morais e materiais
causados ao Estado do Haiti e ao Estado da República Dominicana, bem como aos
familiares das vítimas da epidemia; o encaminhamento de suas conclusões e
recomendações ao Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas e à Corte
Interamericana de Justiça.

Infelizmente, após quase dois anos de espera, a Comissão


Interamericana de Direitos Humanos da OEA respondeu laconicamente que
aceita demandas única e exclusivamente referentes aos Estados signatários da
Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Assim sendo, as
Organizações Internacionais, embora atuando em nome de Estados, estão
imunes as suas jurisdições.
A lamentável interpretação da CIDH que sequer discute aspectos
jurídicos essenciais contidos na demanda, a qual demonstra a inconteste
personalidade ativa e passiva das Nações Unidas, comete um verdadeiro déni
de justice. Excetuando raras personalidades e organizações, esta situação
constitui prova flagrante de que, uma vez mais, o povo haitiano é abandonado
à própria sorte.
No início de março de 2012 o ex-presidente Clinton, em visita a um
hospital na região central do Haiti, admitiu publicamente:

I don’t know that person who introduced cholera in


Haiti, the U. N. peacekeeper, or [U. N.] soldier from
South Asia, was aware that the was carrying the
virus. It was the proximate cause of cholera. That is,
he was carrying the cholera strain. It came from is
waste stream into the waterways of Haiti, into the
bodies of Haitians. [139]

Embora logo a seguir tenha afirmado que a ausência de um sistema


sanitário no Haiti propagou a epidemia, as declarações do Enviado Especial
do SGNU ao Haiti representam a primeira importante fissura na estratégia de
denegação do crime por parte das Nações Unidas.
Em meados de julho de 2012 uma carta endereçada a Susan Rice –
representante dos Estados Unidos na ONU – firmada por 104 membros do
Congresso dos Estados Unidos, alerta que “a cólera foi levada ao Haiti
através de ações das Nações Unidas” e solicita que esta “confronte e elimine
a doença”.
Em seu pronunciamento na Assembleia Geral das Nações Unidas, no
inicio de outubro de 2012, o presidente Martelly não faz qualquer menção à
responsabilidade das Nações Unidas com o surgimento da cólera no Haiti.
Seu descaso é alegremente suplantado por seu primeiro ministro Lamothe.
Este não somente afirma que a origem da cólera está sendo investigada pelas
Nações Unidas – o que equivale dizer que somente o criminoso pode indagar
sobre seu próprio crime – mas também de maneira tão surpreendente quanto
irresponsável, afirma que a epidemia está “verdadeiramente controlada”.
Em menos de 24 horas Lamothe é desmentido pelos órgãos de saúde
haitianos e estrangeiros. Estes demonstraram esperança em poder erradicar a
cólera não antes de 2022, caso seja universalizada a aplicação da vacina
correspondente e o sistema de tratamento de água. Atualizando os números
oficiais, a Organização Pan-Americana de Saúde indicou que a cólera já
havia vitimado 7.418 pessoas, com a epidemia haitiana sendo responsável por
57% dos casos que atualmente ocorrem no mundo.
Em fins de outubro de 2012 uma especialista que havia integrado a
equipe de epidemiologistas contratada pelo Secretário Geral da ONU para
analisar a origem da cólera no Haiti lança uma verdadeira bomba. A doutora
Daniele S. Lantagne afirma, após estudar os dados moleculares por meio do
método de seqüência do genoma completo, que “We now know that the strain
of cholera in Haiti is an exact match for the strain of cholera in Nepal.”
E prossegue a especialista: “We can now say that the most likely
source of the introduction of cholera into Haiti was someone infected with
the Nepal strain of cholera and associated with the United Nations Mirabalais
camp.” [140]
Impossível discordar do jornalista Mark Doyle, da BBC, quando ao
comentar a informação ressalta que: “Every time I write about the cholera
crisis in Haiti I have to pinch myself to make sure I`m not having a horrible
daydream – because the apparent facts are almost unbelievable.”
Apesar dos aliados que a causa da justiça e da verdade encontraram
ao longo da caminhada pela dignidade do Haiti, a Organização que vela pelo
respeito aos Direitos Humanos no planeta prossegue em sua toada
desrespeitosa, violando o essencial direito à vida.
A ironia da tragédia, no caso que exista, consiste na constatação de
que os Capacetes Azuis, enviados para estabilizar o país e salvar vidas, são,
em realidade, seus coveiros, pois responsáveis diretos pela morte de milhares
de pessoas.
Após 15 meses de silêncio finalmente, em fevereiro de 2013 o
Secretário Geral da ONU declara que o pedido de indenização feito pelo
Instituto de Justiça e Direitos Humanos (IJDH), em representação de milhares
de vítimas da cólera, não pode ser recebido. Ele é rechaçado in limine, pois,
segundo o artigo VIII (Section 29 de la Convention sur les privileges et
immunites des Nations Unies) de 13 de fevereiro de 1946, os integrantes das
Operações de Paz a serviço das Nações Unidas se beneficiam de imunidade
em suas atividades. Por conseguinte, não podem ser objetos de contestações
ou de demandas administrativas e judiciais. Em caso contrário, a aceitação
“de l`examen de ces demandes devrait nécessairement impliquer une
réévaluation des questions politiques et stratégiques.”
Para as Nações Unidas o fato de inocular o vibrião da cólera em um
ambiente propício a sua fulgurante propagação, não pode ser percebido como
crime, sequer doloso, vinculado ao Direito Penal, pois suas ações integram o
campo da política, imune, por definição, às normas jurídicas. Trata-se, como
enfatiza em sua resposta ao IJDH, de posição “Arbitraire et contraire aux
principes de la légalité internationale.”
Impossibilitado o acesso a uma solução administrativa em razão da
sistemática recusa da ONU, judicial por meio da OEA ou ainda através da
Corte Internacional de Justiça já que nenhum Estado dispô-se a apresentar
denúncia contra as Nações Unidas, restou ao IJDH o incerto caminho da
Justiça dos Estados Unidos. Assim, no início de outubro de 2013 foi
apresentada uma ação contra as Nações Unidas na Corte do Distrito Federal
de Manhattan.[141]
Ocorreu uma condenação unânime da ONU por parte da imprensa, da
opinião pública internacional e dos movimentos de defesa dos direitos
humanos. Logicamente novas demandas surgirão em tribunais nacionais e na
Corte Internacional de Justiça. O caminho será longo e os adversários da
justiça poderosos.
Há esperança, contudo. Particularmente em razão do reconhecimento
implícito de culpabilidade contida na resposta oficial da ONU, firmada pela
secretária-geral-adjunta, O`Brien. Com efeito, pela primeira vez sentindo-se
acuada, a ONU abandona a tese do “concurso de circunstâncias” defendida
até então e escuda-se na suposta imunidade de que dispõe (Section 29 de la
Convention sur les privilèges et immunités des Nations Unies).
Trata-se de seu derradeiro refúgio, do qual deve ser desalojada para
que um mínimo de justiça se faça. Para tanto, o IJDH concedeu à ONU, em
maio de 2013, um prazo limitado de sessenta dias para reavaliar sua posição,
sob pena de ingressar com processos judiciais em tribunais dos Estados
Unidos e da Europa.
A rápida progressão da cólera em meio receptivo como o haitiano
transformou a epidemia na mais mortífera que o mundo conheceu nestes
últimos anos. Assim, em 2012 a doença provocou mais mortes no Haiti do
que em todo o continente africano.
Os números oficiais sobre infectados e mortos pela cólera estão muito
aquém da realidade. Os 800.000 infectados são unicamente os que
apresentaram uma patologia. Ora, segundo os epidemiologistas três quartos
dos infectados não apresentam nenhum sinal da doença. O número de
infectados, portanto, alcança o impressionante número de 3,2 milhões de
pessoas, aproximadamente 30% da população haitiana.
Em razão da virulência do bacilo atingindo inicialmente populações
camponesas localizadas em regiões desprovidas de auxílio médico e de água
potável – particularmente as montanhas situadas ao longo do vale de
Artibonite – centenas de vítimas morreram sem qualquer socorro e, portanto,
não foram contabilizadas. Por conseguinte, o número de vítimas fatais é
amplamente superior ao indicado pelas fontes oficiais e jamais será
conhecido.
Muito além do extraordinário número de vítimas, deve ser ressaltada
sua condição social. Fruto de secular exclusão social são os estratos humildes
da população, essencialmente os camponeses, a pagar o mais alto tributo.
Não dispondo de água potável, constitui exceção o simples gesto de higiene
pessoal de lavar as mãos. A regra sociocultural no universo rural haitiano –
dominado pelo vodu – consiste em alimentar-se diretamente com as mãos,
sem o auxílio de utensílios. Não há fórmula mais adequada para a propagação
do vírus. Como mudar práticas sociais e religiosas seculares?
Ao visitar o camponês haitiano, Léopold Sédar Senghor diz ter
encontrado uma África autêntica em seus gestos cotidianos, distante do
desejo de modernização que marca a elite das grandes cidades do país. Esta,
indiferente ao destino das classes rurais desfavorecidas e abandonadas, as
estigmatiza.
Para a elite haitiana a cólera é uma enfermidade de caráter social que
não a alcança e que, portanto não merece sua atenção. Bem mais do que as
injustiças e abusos decorrentes da gradação de cor, o que impressiona é a
persistente e inconcebível segregação social e jurídica entre citadinos e
camponeses. A epidemia de cólera escancarou aos olhos do mundo o
principal alicerce da sociedade haitiana.
O terremoto e a cólera marcaram de maneira indelével o ocaso da
segunda Presidência de René Préval. Havia, contudo, um derradeiro desafio:
a sucessão presidencial.
Ator incontornável da cena política haitiana pós-Duvalier e da
construção democrática, René Préval é o que por mais tempo ocupou o
Palácio Nacional desde 1986. Além de primeiro ministro, esteve por 10 anos
no exercício da Presidência da República.
A impossibilidade de manter o jogo sucessório entre Préval e Aristide,
que marcou todas as eleições presidenciais nos últimos 20 anos, lança uma
luz nova e abre, finalmente após 1990, a possibilidade de que um tertius
desponte. A dúvida que paira no ar consiste em saber se o sucessor virá da
oposição a Préval ou se este terá discernimento e capacidade para ungir seu
candidato.
Em qualquer das hipóteses, é central o papel a ser desempenhado pelo
presidente em exercício transformado, como ocorrem nos demais sistemas
políticos contemporâneos, em chefe de partido. Como veremos a seguir, no
entanto, a Comunidade Internacional opõe-se a que esta regra seja aplicada ao
Haiti. Pretende desconstituir a capacidade de articulação política de Préval
transformando-o em simples magistrado.
Cabe então indagar sobre esse homem cordato, ungido por ampla
maioria, apoiado pela Comunidade Internacional em 2006 e que provoca
tanto receio em fins de 2010? O que aconteceu de tão extraordinário com
Préval ao longo destes últimos quatro anos que o transformaram de salvador
em coveiro da democracia haitiana?

CAPÍTULO X – RENÉ PRÉVAL: O FLORENTINO DO CARIBE


Je suis le seul Président à avoir accompli d`abord un premier mandat, puis un
deuxième mandat constitutionnel, et aussi le seul en 25 ans à n`avoir pas connu la
prison ou l`exil.

René Préval, CSNU, 6 avril de 2011

Imaginava-se que o final do segundo mandato do Presidente René


Préval não poderia ser mais problemático. Contra ventos e marés o Chefe de
Estado tentava manter o país sob um mínimo de normalidade. Missão
praticamente impossível, sobretudo porque se aproximava o momento da
escolha de seu sucessor. Como sempre ocorre nestas oportunidades no Haiti,
a tensão ia crescendo e à crise político-eleitoral que se avizinhava se
somavam os dilemas da reconstrução e a propagação da epidemia de cólera.
Logo os prementes desafios da reconstrução e do combate à cólera serão
suplantados pelos embates político e eleitorais.
Mestre do tempo político, do silêncio e da esquiva, Préval conseguiu
safar-se das crises humanitárias. Não terá a mesma sorte com a crise eleitoral
desencadeada por sua sucessão. Surpreendentemente ele será derrotado no
terreno político, o de sua predileção. Irônico destino para alguém habituado a
navegar nas tumultuosas águas políticas haitianas e tendo dominado a história
recente do país.
O Haiti e sua turbulenta história política destacam-se numa Bacia
caribenha conhecida por ser um berço inesgotável de regimes personalistas,
autoritários, ditatoriais e despóticos. Ao longo do tempo os povos caribenhos
foram obrigados a se habituar a uma classe de dirigentes predadores, cujo
poder era ilimitado.
Entre os alunos adeptos dos regimes de exceção, do poder pessoal, da
incúria administrativa, da ditadura sem limites, da cega repressão e do
subdesenvolvimento institucional e econômico, o Haiti, com seu rosário de
ditadores, de presidentes vitalícios e hereditários, ocupa lugar de destaque.
Em 200 anos de história somente René Préval completou dois
mandatos alcançados de maneira democrática e transferiu a Presidência, em
ambas as oportunidades, a um substituto constitucionalmente eleito.
Inclusive, em maio de 2011 passou a faixa presidencial a um opositor, outro
fato inédito nos anais políticos haitianos. Também foi o único primeiro
ministro a galgar a chefia suprema do Estado.
É impossível não se sentir frustrado com a trajetória política de um
país marcado pelo descalabro político e administrativo e, ao mesmo tempo,
não ver despertar um interesse especial pelo personagem que conseguiu
romper a histórica rotina.
Não pode haver a pretensão de apreender em todas suas dimensões a
complexa personalidade de Préval. Tal propósito deve ser o de
contemporâneos e especialistas nacionais, como os contidos em livros,
embora de notórios críticos, recentemente publicados.[142] Meu objetivo é
singelo: relatar as impressões estritamente pessoais que pude reunir sobre
Préval quando de nossos encontros, especialmente no âmbito das constantes e
tensas reuniões com a Comunidade Internacional.[143]
Conheci-o pessoalmente na véspera das eleições de 2006. Havia sido
enviado ao Haiti pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e pelo chanceler
Celso Amorim para atuar como observador das últimas semanas da
campanha eleitoral que antecederam o pleito. Graças aos bons ofícios e
competência de Paulo Cordeiro, então embaixador do Brasil em Porto
Príncipe, eu tive a oportunidade de entrevistar-me em duas oportunidades
com Préval. Interessado em prosseguir uma conversa que tivemos no café da
manhã, Préval convidou-me para um tête-à-tête no final de tarde, três dias
antes da votação de fevereiro.
O que nos interessava era, antes de tudo, aprofundar a sugestão de que
lhe havia feito que, caso eleito fosse, preconizasse uma união nacional que
desembocaria na assinatura de um Pacto de Liberdades e Garantias
Democráticas nos moldes do que havia sido feito na transição do franquismo
para a democracia com o Pacto de Moncloa. Ou ainda a distinta variação
sobre o mesmo tema que conheceram as transições das ditaduras militares
para o poder civil na América Latina.
Já era o início da noite quando finalmente os jornalistas e assessores
que o cercavam foram gentilmente dispensados. Estávamos acomodados na
área externa da residência de sua irmã. Ele perguntou-me o que gostaria de
beber. Respondi: “Le même que vous, Monsieur le Président”.
Ele próprio buscou a bebida e quando se acomodou portando
alentados copos com uísque, pensei comigo mesmo: “Essa conversa irá
render!”
Não me enganava e ali se iniciava um relacionamento profissional,
político e pessoal que me levou a tentar entender um personagem fascinante,
misterioso, reservado, pleno de contradições, atualmente pouco
compreendido, embora possa imaginar que a História provavelmente lhe fará
justiça.
Ao explicar a experiência latino-americana de transição em direção à
democracia, mencionava a necessidade de que a iniciativa do Pacto partisse
do presidente da República. Este convidaria os demais poderes, chefes de
partidos políticos, representantes da sociedade civil, das igrejas, etc.. para que
juntos numa assembleia que poderia denominar-se Estados Gerais da
Democracia, redigissem um documento definindo as regras do jogo
democrático. Entre os princípios basilares estariam a liberdade de imprensa, o
multipartidarismo, a alternância no poder, o fortalecimento das instituições
do Estado, a autonomia e equilíbrio entre os poderes, a criação de um sistema
eleitoral permanente e independente do poder político encarregado de
organizar as eleições, uma lei de anistia política, entre outros.
Diante da crônica instabilidade política haitiana propunha completar o
Pacto com uma Resolução emitida pelo Conselho de Segurança das Nações
Unidas a significar que haveria, mais do que ciência, a garantia formal de
respeito internacional aos termos do acordado. Este corolário me parecia
duplamente indispensável. Por um lado, afastar a permanente tentação que
domina certos Estados, supostamente amigos do Haiti, de intervir em seus
assuntos estritamente domésticos. Por outro, sinalizar ao conjunto de atores e
partidos políticos haitianos, cuja prática recorrente consiste em buscar apoio e
auxílio do exterior para inferir sobre as crises domésticas, que a partir
daquele momento haveria um único e exclusivo caminho para a conquista do
poder: o voto.
Préval ouvia com interesse e fazia observações pertinentes, todavia
percebia que sua impaciência aumentava enquanto eu listava todos aqueles
que deveriam ser partes ao Pacto. Ele não imaginava ser possível reunir em
torno de uma mesa de negociações interesses, expectativas e perfis tão
distintos. Finalmente, ante ao que considerava ser um exercício impossível,
indagou: “Est-ce que je ne pourrais, seul, signer ce Pacte ? »
Uma vez eleito, Préval levou adiante parcialmente o que lhe havia
sugerido. Com efeito, propôs um Pacto de Governança por 25 anos, colocou
em prática uma estratégia de apaziguamento social e tentou, durante os
primeiros dois anos de mandato com Jacques Edouard Alexis na Primature,
criar um governo de consenso e de união nacional. Este deveria preparar uma
concertação nacional. Infelizmente, logo a seguir tal esforço foi abandonado e
voltaram a prevalecer as tradicionais vicissitudes da política haitiana.
Em razão do cruzamento e da interconexão entre as trajetórias
políticas de Aristide e Préval, analistas os consideram como irmãos gêmeos.
Este seria o marassa, segundo o mito vodu, daquele. Para Préval, se fora
realidade, certamente não seriam filhos da mesma mãe...
Outras percepções estão mais próximas da verdade quando indicam
que “Aristide, c`est un volcan en permanente éruption, tandis que Préval,
c`est de l`eau toujours tiède. »
Considero que a metáfora entre o incendiário e o bombeiro parece
melhor enquadrar-se no significado da ação política do duo que dominou a
política haitiana neste longo período de transição em direção à democracia.
Aristide, ao atear fogo era, na maioria das vezes, sua primeira vítima. Préval,
ao apagar incêndios, sempre foi considerado, em uma cultura política
dominada pela obsessão messiânica, o anti-herói por excelência.
Quando fui visitá-lo pela primeira vez em fevereiro de 2009, já em
minhas novas funções, estava acompanhado por Albert Ramdin. Este iniciou
minha apresentação quando foi abruptamente interrompido por Préval: “Cela
n`est pas nécessaire. Ricardo est un ami d`Haïti et le mien aussi. »
Do Haiti, sem dúvidas. De Préval ainda não. As eleições
parlamentares que se avizinhavam, como veremos adiante, iriam demonstrá-
lo.
Naquela reunião pude constatar a vontade de Préval em abrir o leque
de opções internacionais para o Haiti. Tentava fugir das imposições do
Tridente Imperial que restringiam sua margem de manobra.
Tendo estabelecido proveitosa relação com Cuba, especialmente na
área da saúde, bem como com a Venezuela por meio do programa
Petrocaribe, Préval pretendia estreitar os laços com Argentina, Brasil e Chile
(Grupo ABC). Ele confessou-me que “je sais que j`ai besoin de quelque
chose, mais je ne sais quoi. Le Groupe ABC se doit d`illuminer mon
chemin. »
O referido grupo de países sul-americanos respondeu positivamente e
com o auxílio da OEA, propôs um plano de cooperação policial – área
carente e historicamente monopolizada pelos parceiros tradicionais do Haiti.
Tanto a oposição destes quanto as veladas reticências da Unpol impediram
que fosse levada adiante a inovadora e promissora estratégia. A consequência
deste fracasso é na atualidade facilmente percebida: a participação latino-
americana na vertente militar da Minustah alcança 71% ao passo que na
Unpol pífios 2%.
Impregna René Préval o nacionalismo, a inteligência, a perspicácia, a
ironia, o conhecimento profundo dos costumes políticos haitianos e,
sobretudo, o humor refinado, pleno de subentendidos e de alusões, que
poderia ser, quando necessário, frio e cortante. Ao pretender marcar uma
posição, enviar uma mensagem, manifestar uma contrariedade, elaborar uma
crítica ou expressar reservas, Préval jamais o faz diretamente. Lança mão da
ironia para a crítica e do humor para o elogio.
Entre as características principais que emanam da classe política
haitiana a ocupar um lugar de destaque no imaginário social encontra-se seu
extraordinário nível de corrupção. O país situa-se, invariavelmente, nas
avaliações da Transparência Internacional, entre os mais corruptos. Claro está
que se trata de debate enviesado e distorcido, impregnado por forte dose
ideológica, uma vez que os resultados das sondagens resultam da percepção
sobre os índices de corrupção e não sobre a corrupção propriamente dita.
Dessa forma, à medida que o discurso político sobre o Haiti sublinha este
traço, ele afirma-se como inconteste realidade. A figura de Préval destoa
deste universo. Ela aparece como a de um político probo, íntegro e de
reputação ilibada. Não há confusão de gêneros entre os interesses do Estado e
os laços de família.
Homem discreto, silencioso, de convívio ameno e agradável, o
pragmático Préval utiliza-se preferencialmente de gracejos e brincadeiras
para transmitir mensagens e posições. Os sorrisos amistosos, por vezes
cúmplices, servem para travestir posições firmes. Não raras vezes a
Comunidade Internacional confundia forma com o conteúdo e interpretava a
bonomia de Préval com se fora concordância ou condescendência.
Ao conhecer Préval, qualquer diplomata recém chegado ao Haiti, era
prontamente seduzido por sua figura, aparentemente desprovida de carisma,
embora logo percebesse a singularidade do personagem. Com o passar dos
meses o encanto inicial se transformava em reserva e logo a seguir em crítica.
Assim foi com todos os interlocutores presidenciais. Uns mais, outros menos.
Uns mais cedo, outros mais tarde. Todos experimentavam esse processo de
atração e de distanciamento. Somente Préval não mudava. Continuava o
mesmo, alheio a sugestões, pressões e chantagens.
O primeiro teste político de nosso novo relacionamento institucional
ocorreu quando das eleições para o Senado, em 19 de abril de 2009.
As candidaturas oriundas da Família Lavalas – partido do ex-
presidente Aristide, que continuava presidindo-o apesar de se encontrar
amargando o exílio na África do Sul – às eleições legislativas de 2009 não
haviam sido aceitas pelo CEP, pois faltava juntar ao requerimento de
inscrição a assinatura de Aristide.
Poderia ser considerada uma chicane jurídica, posto que a assinatura
deveria ter o reconhecimento formal da autoridade haitiana competente na
África do Sul. Ora, o Haiti não dispunha (e ainda não dispõe) de
representação consular ou diplomática naquele país, como de resto no
conjunto da África. Fotocópias da declaração de Aristide tampouco eram
aceitas. A decisão do CEP inviabilizava a participação dos candidatos
próximos a Aristide.
Para complicar ainda mais o cenário, o partido Família Lavalas se
apresentava desunido com duas tendências se reclamando sua representação.
Diante do imbróglio, Préval parecia adotar a postura de magistrado, embora
tenha me confidenciado que não era sua função unir o Lavalas e, portanto,
tudo fazia para corroborar a decisão do CEP, provavelmente inspirado por
ele.
A indefinição da situação dos pretendentes a candidatos do Lavalas
dominou durante meses a cena política e eleitoral. Finalmente o CEP
descartou – sem direito a recursos – qualquer candidato proveniente do
Partido de Aristide por vício de forma.
Em minhas conversações com Préval e com os membros do CEP
argumentava que as eleições deveriam ser inclusivas e que cabia aos eleitores
a definição de quem deveria representar o Lavalas. Canadá e Estados Unidos
adotaram a mesma postura e divulgaram um comunicado de imprensa neste
sentido. Sugeri que a OEA também o fizesse e logo a seguir reiteramos
publicamente nossa posição.
As poucas representações diplomáticas latino-americanas em Porto
Príncipe primaram por sua ausência. Pior. Algumas se opuseram claramente a
tomar posição alegando ingerência nos assuntos internos do Haiti. Esse foi
um dos poucos episódios em que não recebi respaldo dos latino-americanos.
Interpretei a recusa latino-americana como uma consequência do radical
afastamento que se operou – marcante quando se trata de maioria de países
governados pela centro-esquerda – do movimento Lavalas durante a crise que
levou Jean-Bertrand Aristide a abandonar o país em 2004.
Préval tampouco apreciou o comunicado da OEA. Na primeira
oportunidade fez alusão ao caso de Orlando Malville, que havia sido Enviado
Especial da OEA e declarado persona non grata pelo governo haitiano em
2000. Fiz-me de desentendido, embora percebesse que o recado havia sido
transmitido e que talvez nossas relações ficassem mais difíceis no futuro. Tal
não ocorreu.
Impossibilitado de participar, o Lavalas adotou a estratégia de inserir
seus candidatos em outros partidos. Um grupo mais radical, contudo, optou
pelo boicote à votação. O panfleto apócrifo a seguir foi encontrado nas ruas
de Porto Príncipe na manhã da votação.

Operasyon viv ou mouri!


19 avril jounen pot femen sak ki mouri zafe pa yo tout moun ki nan lari nan dat 19
avril sa a ekri non w anba pla pye w !
Manman ak papa pitit mare ren w, sere dan`w.
Revolisyon kon engra ak vole komanse. Pou lamize kaba.
ATANSYON! ATANSYON! ATANSYON!
Operasyon bay lari-a blanch mande tout moun rete chita lakay nou jou kap dimanch
19 avril 2009 la paske nenpòt moun ki pran lari, lap tou rete nan lari-a, paske lagè
avèti pa touye kokobe. Men si kokobe a rebèl lap mouri.
19 AVRIL
BAY LARI-A BLANCH

O resultado das eleições senatoriais mudou a composição da Câmara


Alta. A maioria desta, insuflada pelo próprio Préval, decidiu votar uma
moção de censura à primeira ministra Michèle Pierre-Louis. Sendo
absolutamente natural, em regime parlamentarista, mudança governamental
quando surge nova maioria, a CI insurgiu-se e opôs-se a que tal regra fosse
aplicada ao Haiti. Apesar de sua ineficiência ou em razão dela, a primeira
ministra era a apreciada pela CI e deveria, segundo esta, permanecer em seu
posto.
O Core Group redigiu uma nota, sob inspiração do Representante da
União Européia – o italiano Francesco Gosetti Di Sturmeck – e contando com
o apoio dos Estados Unidos, com o objetivo de protestar contra a
eventualidade de ser votada pelo Senado uma moção de censura a Michèle
Pierre-Louis.
Antes de torná-la pública, tentei fazer ver aos colegas – a maioria
oriunda de países com regimes parlamentaristas – que não poderíamos aplicar
dois pesos e duas medidas. Ou seja, o que consistia algo normal em seus
países, se transformava em sacrilégio quando se tratava do Haiti. Finalmente,
graças à intervenção de Igor Kipman, foi abortada essa nova ingerência da
CI. A nota não foi divulgada e Préval pôde designar a Jean-Max Bellerive
como seu novo primeiro ministro sem que houvesse intromissão pública da
Comunidade Internacional.
Aos olhos da CI, o Préval da estabilidade e de certa bonomia,
desaparecerá com o sismo de 12 de janeiro de 2010. Não somente ele mudará
profundamente de comportamento, mas igualmente os desafios do país serão
de outra natureza, a exigir outras aptidões. Se até então havíamos tido um
casamento quase perfeito entre Préval e o momento histórico haitiano –
marcado pela acalmia política e estabilidade macroeconômica –, o terremoto
tornará inevitável um divórcio traumático.
Na tarde do dia 12 de janeiro Préval havia sido convidado para
presidir uma cerimônia por ocasião do 150º aniversário da Faculdade de
Direito da Universidade de Estado do Haiti (UEH) que deveria ocorrer à
tardinha no Hotel Karibe. Relutante, finalmente ele aceitou o convite e partiu
do Palácio Nacional para a residência oficial localizada em Canapé Vert antes
de subir e dirigir-se a Pétion-Ville.
Quando ocorre o sismo, ele se salva em duas oportunidades: uma
primeira porque não estava no Palácio Nacional quando este ruiu; uma
segunda quando a residência oficial localizada em uma das áreas mais
afetadas pelo terremoto, também ruiu. Nos fundos de sua residência
destruída, Préval sabe que algo grave aconteceu. Somente não está consciente
de seu alcance. Deixemos que ele descreva:

Ce jour là j`étais invité à participer à la célébration du


cent cinquantenaire de la Faculté de Droit de
l`Université de l`Etat d`Haïti (UEH). D`habitude, je
n`aime pas aller à ces genres de cérémonies, alors j`ai
dit que j`irai l`année prochaine. Mais, finalement, on
m`a convaincu qu`il faut y aller, car c`est une date
unique dans l`histoire de la Faculté. Je me laisse
convaincre et c`est ce qui explique que j`avais laisse le
Palais national plus tôt ce mardi-là. Cela m`a sauve car
si j`y étais encore au moment de la catastrophe, je
serais peut-être mort à l`heure qu`il est.
Je me suis ensuite rendu dans ma résidence privée au
Canapé-Vert pour me préparer à aller à l`hôtel Karibe,
à Pétion-Ville, où devait se dérouler la cérémonie. Le
séisme m`a surpris pendant que je me trouvais chez
moi et là encore j`aurais pu y passer car cette maison
s`est aussi écroulée. C`est qui m`a sauvé, encore une
fois, c`est que l`un de mes petits-enfants jouait dans la
cour et je me suis mis à jouer avec lui, histoire de
passer le temps avant d`aller à mon rendez-vous, car
j`avais laissé le Palais très tôt. Quand la terre s`est
mise à trembler et que je me suis rendu compte qu`il
s`agissait d`un tremblement de terre, mon premier
souci a été de protéger l`enfant avec mon corps.
Tout de suite après j`ai essayé de contacter des
membres du gouvernement, mais la communication ne
passait pas. J`essayé de joindre l`ambassadeur français
Didier Le Bret pour demander l`envoi de secouristes
comme je l`avais fait pour Nérettes [école dont
l`immeuble s`est écroulé tuant des dizaines d`enfants],
mais il m`a appris que sa résidence s`est aussi
effondrée. Décontenancé, j`ai tenté d`appeler Hédi
Annabi, mais on m`a informé que son QG s`est écroulé
et lui avec. J`ai appris que des proches de ministres
étaient touchés, que les structures étatiques étaient
détruites. J`étais désemparé.
Dans l`impossibilité de me déplacer en voiture, j`ai dû
faire appel à un taxi-moto pour sillonner la capitale. Je
me suis d`abord rendu au quartier de Bel-Air où j`ai
commencé à me rendre compte de l`ampleur du
désastre. J`ai vu des cadavres des deux cotés de la
route. Je suis passé devant l`Ecole nationale
d`infirmières, j`ai vu des membres de la population qui
essayaient de sauver des élèves et des professeurs pris
sous les décombres. C`est alors que je me suis senti
écrasé par mon impuissance face à la tragédie. [144]

Após desculpar-se junto a população por não ter se manifestado até


então e mantido um silêncio logo interpretado pela oposição como seu
alheamento diante do drama que se abateu sobre seu país e sobre seu povo,
conclui um desolado Préval: “Le Président est aussi humain et les grandes
douleurs sont muettes. »
Chocado, ausente, silencioso, Préval é uma sombra do presidente que
o país necessita durante as primeiras semanas após o terremoto. Seus
numerosos críticos lamentam que ele não tenha feito um apelo à união
nacional e a um mutirão para a reconstrução. Em silêncio, ele tenta absorver
um golpe que deixou de joelhos a ele e ao seu povo.
Há muitos episódios que tentam dar conta do lamentável estado
psicológico de Préval. Por exemplo, um amigo ouve soar a campainha no
portão de sua residência. Ao abri-lo depara-se com René Préval. Ele chegou
caminhando pela rua destruída. Ao adentrar na casa, lhe é oferecido café.
Entre palavras entrecortadas por soluços, Préval busca consolo. Acalma-se
progressivamente e parte, solitário, tal como havia chegado.
Com seu Palácio destruído, Préval tenta encontrar onde instalar seu
gabinete. Finalmente encontra, graças a Jean Max Bellerive, um pequeno
espaço originariamente destinado à Polícia Judiciária, próxima à pista do
Aeroporto Toussaint Louverture. Trata-se de um prédio baixo e dotado de
locais exíguos que refletem fielmente o estado calamitoso no qual se encontra
o Executivo haitiano.
A proximidade com o novo local do escritório político da Minustah
permite a Préval visitar o novo Representante do SGNU, o político
guatemalteco Edmond Mulet Lesieur. Isolado, solitário, impotente, Préval
chega, instala-se e inicia uma conversação que mais se parece com uma
terapia. Perdido, com o olhar ausente e distante da crua realidade, Préval não
tem noção sobre o que fazer perante as urgências e os dramas que se
acumulam. Essa letargia se prolonga durante vários meses. De fato, o país
está prostrado, a começar pelo seu presidente.
Com o transcorrer das semanas começam a surgir críticas e reservas da
Comunidade Internacional, que progressivamente toma consciência da
inoperância governamental. Sobretudo porque muitos viram na tragédia uma
oportunidade única para poder colaborar com o Estado haitiano de forma
distinta, com eficácia, de maneira a beneficiar as partes envolvidas. Ora, a
realidade é frustrante. A resignação diante do cruel destino impregna a vários
importantes atores do processo de reconstrução e de transformação do país.
Os exemplos são numerosos: um país americano pretendia doar seis
milhões de dólares, mas não obteve nenhuma garantia sobre o destino dos
recursos e abandonou sua ideia; o próprio Brasil entregou projetos de
envergadura – como o caso da Represa de Artibonite – e de hospitais e não
encontrava o eco esperado; uma ONG séria e respeitada pretende construir
vivendas para os desabrigados e não consegue ir adiante por falta de
assinatura de um ministro; outro país pretende enviar 70 mil tábuas de
madeira para a reconstrução e não consegue, pois o ministro haitiano
responsável igualmente não assina o acordo de doação; um embaixador foi
obrigado a ir pessoalmente retirar 2 mil televisores e DVDs que haviam sido
doados há mais de dois anos para uma campanha de alfabetização – que
jamais aconteceu – e que se encontravam abandonados nos porões do Palácio
Nacional. Somente assim, na condição de operário de transporte de seu
embaixador, foi possível ao país doador retirar os equipamentos e
redirecioná-los para outros programas.
Esta situação impõe uma grande frustração à parte da CI
comprometida com o Haiti e que tenta efetivamente trabalhar para diminuir o
sofrimento do povo haitiano. Dar-se conta de que as dificuldades e entraves
provêm, por ação ou por inação, antes de tudo, do próprio governo, significou
um processo de aprendizagem doloroso para a CI. Fez com que esta
irremediavelmente fosse se afastando de Préval – definido a partir de então
como um dirigente inoperante e despreocupado com seu povo.
Por um lado a falta de transparência, de efetividade e a pouca
governabilidade do país e por outro o fato de que a CI sustenta
financeiramente o Estado haitiano resultaram em desconfianças mútuas,
críticas veladas, ressentimentos incontidos e oposições intransigentes.
Perante esta situação a CI simplesmente decidiu reforçar o que já fazia
habitualmente e trilhar o caminho mais fácil: o financiamento direto das
atividades das Organizações Não Governamentais – todas estrangeiras e
vinculadas aos países doadores – as quais substituiriam um Estado ausente.
Criou-se uma verdadeira República das Ongats. Cada uma possui sua própria
estratégia e objetivos que não guardam as mínimas relações com os escassos,
frágeis e por vezes irrealistas projetos governamentais.
Para a CI o mais chocante na atitude do governo Préval – neste quesito
segue uma linha dos governos que o precederam – foi o elevado grau de
indiferença diante da pobreza e da miséria que assalta a maioria da
população. Com seu humor fino e cáustico o próprio Préval me relatou um
episódio revelador ocorrido quando de uma visita ao Norte do país logo após
ter sido eleito em 2006. Um de seus eleitores aproximou-se e lhe disse:
“Maintenant, oui, Président, nous allons changer notre pays. » A resposta de
Préval foi imediata e cortante: “Au cas où tu voudrais, avec ton vote, changer
le pays, il aurait fallu voter pour un autre candidat. »
Embora soubesse, por convicção e pragmatismo, que o caminho de
mudanças profundas e radicais não se encontra no horizonte de seu governo,
Préval estava convencido de que algo deveria tentar para melhorar
minimamente a inserção internacional do Haiti aumentando seu pífio poder
de negociação. A cooperação venezuelana oferecida por Hugo Chávez
aparece, concretamente, como solitária opção. O jogo, no entanto, é pleno de
riscos e de armadilhas. O caminho, estreito e tortuoso. Préval deve,
simultaneamente, buscar beneficiar-se das vantagens do Programa
Petrocaribe e, ao mesmo tempo, não ferir suscetibilidades dos Estados
Unidos que consideram “qu`un accord avec Chávez risque de causer des
problèmes avec nous. »[145]
Negociações, pressões, aparentes concessões e, finalmente, a decisão
de operacionalizar o acordo, arrastaram-se durante três longos anos. Cada
episódio de aproximação entre Porto Príncipe e Caracas foi marcado pela
preocupação de Préval em confortar seus interlocutores norte-americanos.
Em correspondência de 26 de março de 2006, a embaixadora Janet Sanderson
havia informado sobre os denodados esforços de Préval para rejeitar qualquer
aproximação com regimes socialistas latino-americanos. Sanderson explica
que

Préval a des liens personnels étroits avec Cuba, du


fait qu’il y a été soigné pour le cancer de la prostate,
mais il a affirmé à l`ambassade qu`il gérerait les
relations avec Cuba et le Venezuela uniquement pour
le bénéfice du peuple haïtien et que celles-ci ne
seraient fondées sur aucune affinité idéologique
envers ces gouvernements.

Em 12 de março de 2007 Chávez realiza uma visita apoteótica ao


Haiti. Recebido por milhares de pessoas, declara em um de seus discursos
que a Venezuela possui uma dívida histórica com o Haiti. Para compensá-la
ele propõe vários projetos de ajuda nas áreas sociais, econômicas, energéticas
e de infraestrutura.
Preocupado, Préval envia à Embaixada dos Estados Unidos seu
conselheiro econômico, Gabriel Verret, supostamente para lamentar a vinda
de Chávez. Logo a seguir, o próprio presidente adverte Sanderson sobre suas
reservas com relação à estada de Chávez. Segundo as informações
transmitidas por Sanderson a Washington,

Chávez était un hôte difficile. Même sans avoir reçu


d`invitation du gouvernement d`Haïti, il avait insisté
pour venir célébrer le Jour du Drapeau du Venezuela.
Préval a souligné qu`il avait fait beaucoup d`efforts
pour empêcher Chávez d`épater la galerie tel que
prévu. Il s`est opposé à une manifestation menée par
Chávez de l`aéroport vers l`ambassade du Venezuela.
Préval a ajouté qu`il n`était « qu`un petit bourgeois
indépendant » et qu`il n`a pas le goût des grands
gestes que favorise Chávez. Haïti a besoin de l’aide
de tous ses amis, a ajouté René Préval, et il est certain
que les Etats-Unis comprennent la position délicate
dans laquelle il se trouve.

A embaixadora Sanderson desconfia que « Préval et compagnie


exagèrent probablement leur aversion envers Chávez pour nous faire
plaisir. » Diante dessas suspeições, Préval envia o Presidente do Senado,
Joseph Lambert, que descreve para Sanderson

une atmosphère très tendue dans les coulisses du


Sommet de l`Alba entre le Président Préval et
Chávez. Selon Lambert, Préval a refusé d`adhérer à
l`Alba et a fait savoir à Chávez que si l`adhésion à
l`Alba constituait une condition pour recevoir l`aide
du Venezuela, il quitterait le Sommet. Lambert a
ajouté que Préval et Chávez ont également eu une
confrontation au sujet du trafic de drogue, des
représentations diplomatiques, de la tenue
vestimentaire pour la cérémonie de clôture du
Sommet (Chávez voulait que tout le monde porte du
rouge), et des termes de l`accord d`énergie que
Chávez a offert a Haïti.

Caminhando sobre o fio da navalha, Préval consegue, no entanto, fazer


com que Sanderson acredite em sua sinceridade. Sua delicada manobra
alcança convencer Washington de que ele “semble être en train de perdre
patience: Lambert a dit que Préval s`est affiché comme anti-ALBA à
l`occasion de rencontres privées avec Chávez au Sommet de l`ALBA en avril
[2007]. »
A histórica estratégia haitiana da marronagem utilizada por Préval
rendeu, momentaneamente, os frutos esperados. Posteriormente, contudo, os
Estados Unidos apresentarão a fatura e farão Préval pagar caro pelo logro.
Preocupada, exausta e sob influência de correntes contraditórias, o
papel da CI é complexo. Quando da campanha para a sucessão de Préval,
nota-se que a grande maioria dos candidatos é herdeira do continuísmo. A
começar pelo candidato de Préval, que poderia exercer o papel que foi o de
Medvedev na transição russa. A CI não medirá esforços e ultrapassará
alegremente, como veremos posteriormente, todos os limites da decência e do
bom senso a fim de descartar tal possibilidade. Préval não percebeu o risco
que corria. Seu erro foi fatal. Jogou e perdeu.
Na grande maioria das vezes a Comunidade internacional se satisfazia
com os resultados de seus encontros com Préval. Os silêncios deste eram
interpretados como consentimento. Suas vagas promessas se transformavam
para nós em compromissos inarredáveis. Sua aparente concordância
convencia que havíamos alcançado o que buscávamos. Somente com o passar
do tempo éramos reconduzidos as trilhas estreitas da realidade. Enquanto
isso, Préval “cozinhava o galo” – galináceo símbolo do movimento Lavalas
com o qual ele jamais rompeu definitivamente.
Em várias oportunidades fui levado a me distanciar dos debates que
aconteciam com a CI e, fascinado, observava Préval atuar. De compleição
frágil, pequeno, com uma calvície pronunciada e uma barba alva cobrindo-lhe
o rosto, colocava-se ele, solitário, frente a um grupo nutrido de embaixadores
que representavam o poder internacional de maneira inconteste. Presidente de
um país cujos índices – quaisquer que fossem – constituem a prova evidente
de uma crônica e recorrente debilidade.
Abrigando a única Operação de Paz das Nações Unidas nas Américas,
seu solo ocupado por milhares de soldados e policiais oriundos de várias
latitudes, culturas, línguas e religiões, Préval deveria ser levado a compor, a
aceitar, a concordar, a se submeter. Ora, nada era mais distante da realidade.
Os mais importantes integrantes da Comunidade Internacional
atuavam como uma orquestra. Cada um conhecia sua partitura e a executava.
Nem tanto com brio, mas com força. De fato, não se tratava de uma orquestra
sinfônica, era mais uma banda militar. Préval no início não sabia de onde
provinha o tiro (ou qual instrumento ecoaria). Logo aprendeu. Então se
defendia como bem podia, lançando mão do que encontrava a seu alcance.
Sua tática era simples: atacar antes de ser atacado; debilitar antes de ser
debilitado. Identificar e explorar eventuais fissuras de seu oponente.
Não deixava de ser surpreendente como aquele homem delicado e de
frágil compleição física agigantava-se e definia com perspicácia e firmeza, no
início de cada exercício, quais seriam as regras do jogo. Quem era quem.
Lançava boutades, se utilizava o humor – por vezes cáustico, por vezes fino –
nunca deixando de lado uma oportunidade para exercitar sua ironia.
Seus interlocutores vestiam, invariavelmente, terno e gravata. Somente
ele se permitia uma camisa esporte de mangas compridas. Neste detalhe
surgia o primeiro contraste e a definição dos papéis. O nosso devido respeito
e a resposta marcada por insolente desdém por parte de Préval. Com todo o
poder que representávamos, nos encontrávamos frente de um presidente de
um Estado que muitos percebiam que sequer existira, que era uma ficção
jurídica. Seu mais alto representante, contudo, se portava com dignidade.
Certamente enfrentávamos a um Préval debilitado, no entanto não deixava de
ser um competidor audaz, corajoso, sagaz, fino, perspicaz e malandro.
Em janeiro de 2009 a Rainha Sofia da Espanha visitou o Haiti. Havia a
intenção de anunciar um investimento do grupo de Hotelaria Meliá para um
importante projeto turístico. Surpreendentemente nada foi aprovado. Por
receio de aculturação, Préval se opôs a que o Haiti – tal como ocorre com a
vizinha República Dominicana – se transformasse em um paraíso para o
turismo de massa.
Segundo Préval, o Haiti deveria continuar sendo um destino turístico
para poucos, especialmente os que buscassem atrações culturais e paisagens
intocadas. O embaixador da Espanha jamais o perdoou e a partir de então se
opôs sistematicamente a Préval.
A interminável crise envolvendo a composição do Conselho Eleitoral
Permanente confunde-se não somente com a organização das eleições, mas
também com a própria instituição da democracia representativa no Haiti.
Fazendo eco às reivindicações da oposição, parte importante dos
representantes da Comunidade Internacional exercia constante pressão sobre
Préval.
Uma das figuras tarimbadas era Albert Ramdin. Após conseguir
monopolizar os temas haitianos no seio da OEA por meio da criação de um
Grupo de Países Amigos do qual ele, pessoalmente, exercia e ainda exerce a
presidência, Ramdin considera-se grande especialista no assunto. Sua
presença em Porto Príncipe era tão constante quanto inócua. Alimentado
exclusivamente por informações provenientes da suposta organização
Initiative de la Société Civile (ISC) dirigida pelo lobista Rosny Desroches e
financiada pelo Canadá e União Europeia, Ramdin fazia coro contra Préval.
Irritado com a desenvoltura de Ramdin e a superficialidade de sua
análise, em certa oportunidade Préval retrucou: “Ce que vous avancez là sont
exactement les mêmes arguments de l’opposition. Il paraît que vous êtes
devenu leur porte-parole. »
Observei um Ramdin desarvorado com a crítica. Sem saber o que
fazer, tentava encontrar explicações e desculpas. Logo, a conversa foi
encerrada. Ao despedir-se de Préval, Ramdin lhe propõe em messe-basse:
“Dites-moi, Président, ce que vous voulez que je dise.”
Convocados em certa ocasião ao Palácio Nacional, uma vez mais, para
tratar do insolúvel suposto problema da composição do CEP, por sugestão do
embaixador canadense Gilles Rivard, foi decidido acuar Préval em uma
reunião prévia com representantes da União Europeia, dos Estados Unidos
(Cheryl Mills), da ONU (Edmond Mulet), da França (Le Bret) e eu próprio
representando a OEA. Préval se presta de bom grado à manobra e apresenta-
se solitário, como quase sempre, ausente assessores, ministros ou
conselheiros.
Após um intercâmbio de leves e sutis farpas, Gilles Rivard avalia que
havia chegado o momento do assalto final. Com a delicadeza e o tato típicos
dos lenhadores do grande norte canadense, ele lança um sem-número de
acusações aos membros do CEP: da incompetência à malversação; da
imprevidência à má-fé; do amadorismo à irresponsabilidade. Rivard parecia
encontrar reunido no colégio do CEP o conjunto de males que afligem a
sociedade haitiana, no entanto, estava claro que, de fato, suas estocadas
tinham um único destinatário: Préval. Por vias transversas, Rivard pretendia
atingir a autoridade de Préval. Este o ouve em silêncio.
Como mantínhamos uma atitude cautelosa, Rivard sentia-se
encorajado e incrementava o tom e o entusiasmo da crítica. Prosseguindo em
sua toada, imaginando representar a posição de todos, ele estava convencido
de que a falta de reação de Préval significava que ele se preparava para
capitular. Finalmente, após quatro anos de renhida luta, seria modificada
tanto a composição do CEP quanto suas atribuições. Seria a primeira vitória
política da Comunidade Internacional em sua luta com Préval.
Ao final da diatribe de Rivard, Préval ergue-se bruscamente e
dirigindo-se a ele, com os pulsos juntos e os braços estendidos, declara:
“Monsieur l`Ambassadeur : s`il est vrai tout ce dont vous m`accusiez, je vous
demande de me mettre les menottes et de me conduire en prison. »
Colhido de surpresa, Rivard não sabe como contestar. Tenta balbuciar
explicações. Préval então reitera sua incrível e absurda solicitação.
Entreolhamo-nos. Ninguém sabia como reagir a não ser expressando um
sorriso amarelo.
A grotesca cena serviu para colocar uma lápide sobre o assunto.
Jamais o tema da composição do CEP retornou à mesa de negociações.
No início de dezembro de 2010, no auge da crise eleitoral, poucos dias
após a publicação no Wikileaks de uma comunicação endereçada em junho
de 2009 ao Departamento de Estado pela então embaixadora dos Estados
Unidos em Porto Príncipe (Janet Sanderson), aconteceu uma reunião da CI
com Préval em sua residência privada localizada na estrada de Kenscoff, um
pouco acima de Pétion-Ville. Estavam presentes todos os diplomatas que
contam. Encabeçados por Mulet, queriam impor a Préval a aceitação de um
poder ilimitado para a Missão de Observação Eleitoral da OEA/Caricom que
se encontrava no país. Isso de fato aconteceu, pois a Missão transformou-se,
logo a seguir, em instrumento para a recontagem de votos.
Tratava-se, portanto, de uma reunião tensa e decisiva, na qual Préval
tinha muito a perder, pois provavelmente o candidato da Unidade, Jude
Célestin, que havia conquistado o direito de estar no segundo turno da eleição
presidencial segundo os resultados divulgados pelo CEP, poderia vir a ser
retrogradado e descartado da corrida presidencial.
Entrando no jogo, um Préval solitário perante uma matilha decidida,
coloca suas estocadas e se refere, dirigindo-se ao novo embaixador dos
Estados Unidos (Kenneth Merten), às considerações da ex-embaixadora Janet
Sanderson. Eis suas palavras: “Elle [Janet Sanderson] soutient que j`ai un
caractère de caméléon. Je suis d`accord. Au cas où être caméléon signifie
avoir la capacité de s`adapter aux circonstances pour mieux défendre les
intérêts d`Haïti. »
E, prossegue Préval,

Elle fait allusion également au fait que je suis


nationaliste. Oui. Je le suis car je préfère défendre les
intérêts haïtiens à ceux du Parti Républicain [des
Etats-Unis]. Elle mentionne aussi que je suis têtu.
Oui. Je le suis puisque j`en perçoit clairement quels
sont les besoins de mon pays et je me bats pour qu`il
ait une réponse à eux.

Préval não menciona um aspecto fundamental ressaltado naquele


momento por Sanderson e que paulatinamente tornou-se uma verdadeira
obsessão: o receio de que uma vez longe do poder fora obrigado, tal como
ocorrera desde 1986 com seis de seus predecessores, a partir para o exílio.
Apesar de possuir uma residência na Flórida e os filhos de sua atual esposa
viverem nos Estados Unidos, Préval considerava que se afastar de sua pátria
significava sua morte. Reiteradas vezes ele mencionou o trauma que seria
viver no exílio. Inclusive sublinhava seu profundo receio com um episódio
pessoal. Quando do golpe de Cédras em 1991, Préval preferiu buscar
proteção na Embaixada do México em Porto Príncipe, no interior da qual
permaneceu por mais de um ano quando, finalmente, decidiu asilar-se nos
Estados Unidos.
Retornemos à reunião. Uma vez colocadas as estocadas em
Washington, volta seu olhar para o novo Embaixador do Canadá, Henri-Paul
Normandin. Menciona seu antecessor, Gilles Rivard, que em um e-mail
confidencial endereçado aos demais membros do Core Group – ao qual
Préval havia tido acesso sem mencionar, logicamente, como havia
conseguido – tecia considerações sobre como agir diante do Presidente a fim
de exercer pressão para que ele mudasse a composição do CEP. Uma jogada
ousada e corajosa que deixou seus interlocutores desarvorados e inquietos. Os
dados, todavia, já estavam lançados e Préval sabia que pouco havia a fazer, a
não ser tentar salvar a dignidade.
Outro trunfo importante da Comunidade Internacional, o qual sempre
esteve à disposição de Washington em suas relações com a América Latina,
especialmente com o Caribe e a América Central, era a constante ameaça de
suspensão dos vistos de entrada no território dos Estados Unidos (no caso
haitiano o mesmo era válido também para o Canadá) para os políticos
recalcitrantes. Ora, os filhos da atual esposa de Préval estudavam nos Estados
Unidos e naturalmente a reação materna era protegê-los. Certamente Préval
sofreu pressões no interior de seu lar para aceitar e compor com a
Comunidade Internacional.
Préval é um anti-herói segundo os cânones da política haitiana.
Exatamente o contrário do protótipo do chefe considerado ideal. Desprovido
de carisma, exerce o poder com parcimônia não inspirando medo, ódio ou
amor desmedido. Sua marca registrada é a moderação – podendo ser
falsamente interpretada como indiferença –, quando na realidade trata-se de
impotência sua, de seu governo e de seu país.
A turbulenta vida política haitiana conheceu relativa calmaria com
Préval. Sob seu governo nunca foi abandonada a trilha da democracia, do
diálogo e da busca de consensos. Sua crença na total e irrestrita liberdade de
imprensa transformou-o em alvo ideal para muitos. Apesar dos ataques
ferozes e constantes, particularmente no ocaso de seu segundo mandato,
Préval jamais tomou qualquer medida para cercear o bem considerado maior
por todo democrata: a liberdade da crítica, mesmo quando injusta ou
injustificada.
Descrente das instituições, Préval se apresenta como um anarquista.
Acreditava muito mais nos homens do que nas estruturas, fossem elas
partidárias, fossem elas do Estado. Para regozijo da Comunidade
Internacional, com Préval os partidos políticos enfraqueceram-se e o
indispensável e urgente fortalecimento do Estado jogado as calendas gregas.
Em um país acostumado a que os conflitos políticos e de interesses
fossem resolvidos pela utilização dos mecanismos de poder conduzindo à
exclusão, à violência, ao exílio e à ditadura, a atitude tolerante e conciliadora
de Préval constitui marcante contraste.
Seus opositores políticos não foram perseguidos ou obrigados a buscar
proteção no exterior. Durante seu mandato havia uma absoluta e
intransponível fronteira a separar sua família e os assuntos de Estado.
Nenhum parente próximo ou longínquo foi beneficiado com benesses, cargos
ou vantagens. Sua maneira republicana de administrar os escassos bens
públicos provoca admiração de muitos e críticas de poucos.
Certamente a grade analítica da política haitiana que Préval orgulhava-
se, com certa razão, possuir, também o induziu a cometer erros e omissões.
Não poderia deixar de haver um descompasso entre as prementes exigências
do país e a atitude de moderação de Préval. O político providencial em tempo
de transição deixa de sê-lo nas circunstâncias excepcionais provocadas pelo
terremoto. A normalidade democrática representada por Préval não mais
estava na ordem do dia.
Com razão, sensibilidade e inteligência, o editorialista Frantz Duval do
jornal Le Nouvelliste resume perfeitamente o histórico e inovador papel de
René Préval na política haitiana:
Dans l`histoire récente d`Haïti, il y a un président qui
défie toutes les statistiques : René Préval. Il a surfé sur
les plus hautes fonctions. Personne ne lui accordait la
communion sans confession en 1990, nul ne le croyait
à un destin si chargé.
Des incidents, il en a connus en tant que chef de l`Etat,
mais le train de la démocratisation ne sortit jamais de
ses rails sous son leadership.
Dans les grilles de lecture haïtiennes, l`homme de
Marmelade n’est pas le chef idéal. On ne le perçoit pas
comme un homme fort, un tout-puissant, un
charismatique, un adulé ni comme un riche. Il n`est pas
craint, ne fait pas peur. Si le désamour a marqué ses
derniers mois au pouvoir, il n`a jamais pour autant été
détesté.
Préval est un modèle de modération en tout. Dans ses
manières comme dans les sentiments qu`il inspire.
Sans renoncer à une once de son pouvoir ni aux
privilèges qui y sont attachés, il a su ménager la chèvre
et le chou. Il n`a jamais choqué la population
autrement que par son indifférence à des moments
clés.
Le président tétanisé après le tremblement de terre
du12 janvier 2012 et le Préval des élections perdues
par la plateforme Inité ne résument pas le fin politique
des vingt dernières années. Ses faiblesses et ses échecs
ne font que souligner qu`il est un homme.

A música compassada do aparentemente novo e logo do velho


autoritarismo caiu nas graças da Comunidade Internacional. Abandonado
Préval, mais do que virar uma página da História, trata-se do descarte de um
modelo marcado pela moderação que conhece então seu ocaso. Talvez mais
cedo do que se espera, o povo haitiano e a Comunidade Internacional terão
demonstrações sobejas de que se enganaram ou que foram enganados. Será
então chegado o momento em que todos se convencerão do lugar especial
que Ti René ocupa no Panteão da História haitiana e na construção da
democracia nas Américas.
TERCEIRA PARTE – OS DESCAMINHOS INTERNACIONAIS: A
PARÓDIA

Haití es nuestra Tierra Santa.


Hugo Chávez Frías

Os extraordinários desafios nos âmbitos econômico, social, da


reconstrução e da luta contra a epidemia de cólera deveriam jogar para um
segundo plano os dilemas políticos haitianos, como o da sucessão
presidencial. Ora, como enfatizado ao longo deste livro, são os temas
políticos e entre eles o eleitoral, que constituem o cerne do imbróglio
haitiano. Uma demonstração cabal do fenômeno ocorre por ocasião das
eleições presidenciais de fins de novembro de 2010.
CAPÍTULO XI – UMA MISSÃO QUASE IMPOSSÍVEL

Basta con que haya elecciones puntuales para legitimar la democracia, pues lo que
importa es el rito, sin preocuparse mucho de sus vícios: el clientelismo, la corrupción,
el fraude, el comercio de votos.
Gabriel García Márquez, Yo no vengo a decir um discurso

O terremoto obrigou a transferência sine die das eleições


parlamentares (Câmara de Deputados e um terço do Senado) previstas,
segundo o calendário eleitoral, para fevereiro de 2010. A elas agregavam-se
eleições municipais e a necessidade de escolher o sucessor de Préval, cujo
mandato se encerraria em maio do ano seguinte. Dessa forma, o ano do
terrível terremoto será também um período de febre eleitoral e, como se não
bastasse, o do surgimento da epidemia de cólera. Horrível ano de todos os
perigos a ameaçar a sociedade mais fragilizada das Américas.
Preocupado com os desafios eleitorais, Préval deixa claro não confiar
na capacidade institucional do país e pretende compartilhar a
responsabilidade com as Nações Unidas. Assim, em 22 de março de 2010 ele
envia uma carta ao Secretário Geral Ban Ki-moon na qual solicita a
assistência para decidir como e quando as eleições poderiam realizar-se.
De 19 a 30 de abril uma Missão de especialistas da ONU, sob a chefia
de Tadjoudine Ali-Diabacté – encarregado do Departamento Eleitoral das
Nações Unidas – visita o Haiti e tranquiliza a todos sobre a possibilidade de
realização dos pleitos eleitorais segundo o calendário seguinte:
- junho a agosto – atualização da Lista (ou padrão) eleitoral
- julho a outubro – preparação das eleições
- novembro – primeiro turno das eleições presidenciais
- entre dezembro 2010 e janeiro 2011 – segundo turno
O conjunto de recomendações indica que muito rapidamente o
sistema das Nações Unidas será contemplado com a responsabilidade técnica,
financeira, logística e de segurança das eleições. A OEA – que até então
prestava assistência técnica permanente ao CEP – decidiu restringir seu
aporte a dois campos. Por um lado prosseguir com a confecção das Cédulas
de Identidade, documento indispensável para exercer o direito de voto e
banco de dados para elaborar a Lista Eleitoral. Por outro, a OEA
acompanharia a campanha eleitoral e a votação com uma Missão de
Observação Eleitoral.
Ocorre que desde o escândalo de Petite Rivière de Artibonite quando
das eleições senatoriais de 2009, a OEA havia decidido não mais integrar o
corpo técnico do CEP. No campo de batalha sem quartel em que se
transformou a cooperação estrangeira prestada ao Haiti, esse vazio seria
prontamente ocupado pelas Nações Unidas através por meio do Pnud.
Embora não dispondo de conhecimento do terreno político haitiano sequer
expertise técnica e eleitoral, não hesitou em monopolizar o processo eleitoral.
Para fazê-lo contrataram ex-especialistas da OEA, inclusive aqueles
envolvidos no escândalo mencionado – advogando para si toda a
responsabilidade da operação.
Entre as diversas recomendações da ONU, uma terá funestas
consequências. O Relatório indica que a Lista Eleitoral seria mantida aberta
pelo maior tempo possível a fim de permitir sua atualização. O que poderia
parecer iniciativa sensata ante as dificuldades inerentes à situação dos
eleitores haitianos, retira do CEP a possibilidade de controlar eficazmente o
conteúdo do padrão eleitoral. Com efeito, os funcionários eleitorais disporão
tão somente 60 dias para revisar uma lista contendo 4,7 milhões de votantes.
Em países organizados, dotados de sólidas instituições e com um
aparato eleitoral confiável, o prazo estipulado para fechar a Lista eleitoral é
de, no mínimo, 180 dias antes da votação. As conseqüências do terremoto, a
aceleração da constante migração interna, o extravio da Cédula de Identidade,
a depuração da Lista Eleitoral dos inscritos mortos e o cadastro dos novos
potenciais eleitores que haviam alcançado a idade para votar desde a última
eleição, deveriam aconselhar cautela e bom senso a ONU.
A partir do acúmulo de dificuldades objetivas para a realização do
pleito, a estratégia deveria ser a de procurar minimizar os riscos. Ora, as
recomendações das Nações Unidas trilham o caminho oposto e o
potencializam.
Uma das queixas recorrentes dos eleitores, servindo de argumento aos
candidatos derrotados e de combustível as críticas da Comunidade
Internacional decorrerá justamente dessa desastrada decisão.
A exiguidade dos prazos mesclada com a doentia obsessão de parte da
CI em tornar possível a saída do poder de Préval o mais tardar no início de
fevereiro de 2011, não levando em conta os riscos dessa pressa, foi mais uma
demonstração da total irresponsabilidade com que ela trata dos assuntos
haitianos.
Mesmo antes do terremoto a organização do pleito apresentava-se
plena de dificuldades. Ocorre que os integrantes do CEP estavam com seu
mandato vencido, pois era previsto unicamente para as eleições senatoriais de
2009. A oposição, frustrada com os supostos desmandos das autoridades
eleitorais, exigia a nomeação de nova estrutura, sem a qual ameaçavam não
participar da campanha.
A solução adotada por Préval foi a de solicitar às organizações
religiosas, da suposta sociedade civil e dos partidos políticos, encarregados
de indicar os integrantes do CEP, para posterior ratificação pelo Executivo, a
confirmação dos então membros ou a indicação de seus substitutos. Apesar
das reclamações constantes da oposição, apoiadas por parte da Comunidade
Internacional, assim foi feito.
Outro tema controverso e permanente girava em torno do
financiamento das eleições. A planilha de custos apresentada pelo CEP em
outubro de 2009 era de US$ 25 milhões. Ora, o Estado haitiano tinha uma
previsão orçamentária de tão somente US$ 7 milhões. O restante deveria ser
financiado por doações. Uma vez mais se impunha ao Haiti algo que não
podia cumprir. Assim, o respeito mínimo às regras da democracia
representativa ocorreria com a condição de que a exigência fosse
acompanhada dos recursos financeiros correspondentes. Eterno e insolúvel
problema que impregna a democratização haitiana.
O financiamento eleitoral pós-sismo constitui um verdadeiro quebra-
cabeça na medida em que Préval, ao agradecer a Ban Ki-moon o envio do
Relatório positivo da ONU sobre a realização das eleições, indica que todas
as votações parlamentares e presidenciais ocorrerão, em primeiro turno, no
último domingo de novembro 2010, ao passo que as municipais acontecerão
no início de 2011 juntamente com o segundo turno das parlamentares – no
Haiti vota-se em dois turnos para o Legislativo – e, caso necessário, o
segundo turno das presidenciais.
Segundo projeções da ONU o custo estimado das duas votações
alcançaria o exorbitante montante de US$ 44 milhões. A título de
comparação, quando das eleições gerais brasileiras de 2010 (presidente,
governadores, senadores e deputados estaduais e federais) o custo de cada
voto válido foi de US$ 2,20. Em situação de bem menor complexidade, o
custo de cada voto válido haitiano será 20 vezes superior ao brasileiro,
alcançando nada menos de US 44,00 por unidade.
Préval, ao finalizar sua missiva, ressalta que o desafio é imenso e
“espero que juntos possamos realizá-lo”. Desejo inconsequente, pois a
participação haitiana foi imediatamente descartada. Assim se apresenta a
estrutura de poder para a organização das eleições de novembro de 2010.

Figura 11 - Organograma para as eleições 2010

Estratégica
Mesa Setorial
Comando RSSG/NU
Integrantes: Brasil, Canadá, Estados Unidos, França, Nações Unidas,
OEA, União Europeia
Fonte: Organograma elaborado pelo autor

São criados dois níveis de comando exclusivamente compostos por


estrangeiros e ambos dirigidos pela ONU. O primeiro, estratégico, será
dirigido por Mulet, congregando os embaixadores dos principais Estados
doadores (Canadá, França, Estados Unidos, Brasil), além de representantes da
ONU, União Europeia e OEA. Trata-se da Table sectorielle (Mesa setorial).
O segundo, técnico, no âmbito do mandato do CSNU, sob a direção
da Minustah, encontram-se representados novamente os dois principais
Estados doadores através da Usaid e da canadense Cida, União Européia e a
OEA. Trata-se da Mesa de pilotagem. Neste grupo serão incluídas
“relevantes” Organizações Não Governamentais de Alcance Transnacional.
Ou seja, organizações privadas vinculadas a partidos políticos estrangeiros.
As instituições haitianas (CEP, PNH, Secretário de Estado da
Segurança Pública) aparecem no organograma unicamente como elementos
com os quais o segundo grupo deverá coordenar-se para operacionalizar as
decisões tomadas. Trata-se do Comitê de pilotagem.
A Presidência da República, o primeiro ministro e os ministros da
Fazenda, das Relações Exteriores e da Justiça primam por sua ausência.
Evidenciado fica que a organização das eleições haitianas – em seus variados
e complexos matizes – constitui atribuição exclusiva da Comunidade
Internacional, muito especialmente das Nações Unidas. Para o melhor e para
o pior.
Como explicar que após mais de duas décadas de presença
ininterrupta das Nações Unidas no Haiti sequer conseguiram organizar um
sistema eleitoral que seja minimamente confiável? Como aceitar que foram
investidos pela Comunidade Internacional aproximadamente US$ 3 bilhões
na organização das múltiplas eleições ao longo das intermináveis transições
políticas haitianas, ausentes quaisquer resultados perenes, concretos e
palpáveis? Como será possível democratizar o Haiti com tamanha
irresponsabilidade e apresentando provas de flagrante imperialismo eleitoral?
No item 9 de seu Relatório, Ali-Diabacté chama a atenção sobre o
risco para as Nações Unidas de se verem criticadas na eventualidade de que
as eleições não transcorressem como previsto. Apesar da gravidade da crise
eleitoral que se avizinha o diretor da Divisão de Apoio Eleitoral da ONU não
deveria preocupar-se. Ocorre que malgrado o fato de comandar o conjunto do
processo eleitoral, uma vez surgidos os problemas, seus colegas auxiliados
pelos diplomatas do Grupo de Países Amigos do Haiti, revelarão uma grande
capacidade de manipulação das informações jogando, como sempre acontece
nas recorrentes crise haitianas, toda a responsabilidade sobre as autoridades
do país caribenho.
Uma primeira preocupação decorria do total desconhecimento sobre o
possível comportamento diante das eleições de uma população traumatizada.
Como reagiria o eleitor haitiano ante uma não obrigação legal? Haveria
condições psicológicas para a campanha eleitoral? Haveria mobilização no
dia da votação? Não escapava a ninguém igualmente o fato de que
provavelmente a grande maioria da população, sobretudo das regiões afetadas
pelo sismo, não se mobilizaria para os embates eleitorais, absorvida que
estava por outros desafios, em especial o da sobrevivência.
Além destas preocupações, havia o imenso desafio logístico para
levar a cabo eleições num país cujo centro nevrálgico havia sido destroçado
pelo terremoto.
Quatro áreas compostas por múltiplos elementos resumem o quebra-
cabeça eleitoral:
a) o estado das instalações físicas e dos equipamentos do CEP;
b) confecção da Lista Eleitoral;
c) o impacto das migrações internas;
d) a credibilidade do CEP.
O terremoto provocou a morte de 12 funcionários do CEP, devastou
sua sede principal tornando-a inutilizável e destruiu o edifício que lhe servia
de apoio. Nos três Departamentos administrativos mais afetados pelo sismo
(Oeste, Sudeste e Nippes) 36% dos Centros de Votação e 41% dos locais
usualmente requisitados para as eleições foram inutilizados ou destruídos.
Progressivamente foram recompostos. Assim, por exemplo, a sede
central do CEP se transfere para um edifício em excelentes condições que
servira como cassino e que havia sido confiscado pela Justiça, pois seus
proprietários foram condenados por lavagem de dinheiro e narcotráfico.
Com relação à Lista Eleitoral dois desafios maiores se impunham. Por
um lado sua indispensável e sempre adiada depuração. Com efeito, desde
2005 os mortos não eram retirados da lista de votantes. Seu inchaço tornava
impossível conhecer o índice de participação e, por conseguinte, o grau de
legitimidade dos eleitos. Por evidente a situação era ainda mais crítica nos
três Departamentos mencionados em razão do elevado número de vítimas
fatais provocado pelo terremoto.
Sendo inviável a depuração efetiva, uma vez que não existiam
estatísticas centralizadas, públicas e confiáveis sobre a evolução do histórico
de mortes, o primeiro ministro Bellerive solicitou em 2009 que os técnicos da
OEA elaborassem um modelo que permitisse avaliar qual seria o percentual
de supostos eleitores mortos a ser retirado da Lista Eleitoral para aproximá-la
da realidade. A simulação do período 2005-2009 indica que deveriam ser
extraídos da Lista Eleitoral aproximadamente 200.000 pessoas de um
universo de 4.300.000 eleitores ou 4,5% do total. Após o sismo, a média
nacional de mortos ainda inscritos na Lista sobe para 6,1%. Segundo os
cálculos, portanto, 93,9% das pessoas inscritas eram potenciais eleitores.
Por outro lado deveria ser traçada uma estratégia para substituir a
Cédula de Identidade Nacional (CIN), simplesmente extraviada, como ocorre
com demasiada frequência no Haiti, ou sua perda decorrente do terremoto.
Também deveria ter continuidade o registro dos novos cidadãos que
alcançavam a maioridade. O objetivo primordial do Plano de Emergência
pós-terremoto elaborado pela OEA e pela ONI, previa a confecção e
distribuição de 328.000 CINs para fins eleitorais.
O prazo limite para solicitar uma segundavia da CIN era 28 de
outubro e o de novas inscrições 28 de setembro. Ambos os prazos, no
entanto, foram ampliados para atingir o maior número possível de
interessados. Estes alcançaram 341.000 potenciais eleitores. Por conseguinte,
ausente uma depuração, o Colégio Eleitoral haitiano totalizava então
4.712.693 eleitores o que representa 95% do total da população haitiana em
idade de exercer o direito de voto.
Um mutirão impressionante foi montado para tornar possível a
entrega destas cédulas antes de 28 de novembro de 2010. Como o interessado
devia buscá-la pessoalmente num local préestabelecido, foram lançadas
várias campanhas de esclarecimento, informação e de facilitação. Além de
140 pontos de distribuição, havia 65 itinerantes a cobrir todo o país. Assim
foi possível entregar, ao longo de 2010 e particularmente nas semanas e dias
que antecederam as eleições, 434.000 cédulas. Estima-se que 25% destas
eram remanescentes de anos anteriores.
Às vésperas da votação, 285.000 novas cédulas haviam sido
distribuídas, equivalentes a 87% do total. Supõe-se que os titulares das
demais que não as haviam retirado a tempo estariam interessados em utilizá-
las como documento oficial, exigível para toda e qualquer transação, e não
como Título Eleitoral.
Parecia impossível vencer o desafio técnico e logístico imposto pela
elaboração e distribuição das CINs. Não obstante as críticas incessantes e
despudoradas de certos meios de comunicação, dos dirigentes da suposta
sociedade civil haitiana e das lideranças de pequenos partidos políticos com
escassas chances eleitorais, o trabalho prossegiu. Chegou-se a ponto de
manter abertos os locais para a entrega das CINs na noite que precedeu a
votação de 28 de novembro de 2010. Tal mutirão resultou na seguinte
evolução da entrega das CINs.
Figura 12 - Evolução da distribuição das Cédulas de Identidade
(2010)

Parecia impossível vencer o desafio técnico e logístico imposto pela


CIN. Não obstante as críticas incessantes e despudoradas dos meios de
comunicação, dos dirigentes da suposta sociedade civil haitiana e das
lideranças de pequenos partidos com escassas chances eleitorais, o trabalho
prosseguiu. Chegou-se a ponto de manter abertos os locais para a entrega das
CIN na noite que precedeu a votação de 28 de novembro!
Em terceiro lugar a migração capital-interior que se seguiu ao sismo,
calculada em 600.000 pessoas, implicava em uma nova distribuição do mapa
eleitoral. Ora, como já

Fonte: Office National d’Identification, Haiti, 2010.

A migração capital-interior que se seguiu ao sismo, calculada em 600


mil pessoas, implicava uma nova distribuição do mapa eleitoral. Ora, como já
mencionado anteriormente, algumas semanas após o primeiro movimento
migratório capital-interior, aconteceu um segundo em sentido contrário com o
retorno dos desabrigados para a região metropolitana de Porto Príncipe. Não
forçosamente para o mesmo bairro em que residiam anteriormente.
O CEP lançou uma campanha mediante a criação de um novo
instrumento institucional denominado Centro de Operações e de Verificação
(COV). Ela permitia aos eleitores desabrigados ou migrantes – quaisquer que
fossem suas motivações – anunciar seu novo endereço diretamente no Birô de
Voto para fins de registro e identificação de seu novo local para a votação de
novembro 2010. Uma vez feita à solicitação, o eleitor munido simplesmente
do número de sua CIN podia consultar via Internet, por telefone ou
pessoalmente, a eventual nova localização de sua Mesa Eleitoral.
No dia da votação surgirão dois casos paradigmáticos a supostamente
comprovar o mau funcionamento do COV. Cantor que fez parte do Grupo
Bee Gees e antigo parceiro de Shakira, Jean Jeannel-Wyclef teve sua
solicitação de candidatura presidencial frustrada pelo CEP em razão de sua
dupla nacionalidade. Na impossibilidade de ser votado, Wyclef pretende ao
menos votar e alerta os meios de comunicação sobre o desaparecimento de
seu nome da Lista Eleitoral. Manobra diversionista, pois uma simples
consulta ao sistema indicaria que ele estava devidamente inscrito tanto na
ONI quanto no CEP. A única mudança decorria de sua nova Mesa Eleitoral.
Também o candidato presidencial da situação, Jude Célestin, alardeou
sua impossibilidade de exercer o direito de voto. Ora, ele permanecia votando
no mesmo Centro de Votação em Gonaïves tal como ocorrera em eleições
precedentes. A mudança apontada pelo sistema do CEP dizia respeito à Mesa
Eleitoral (anteriormente 8 e nesta votação 6). Contudo, Célestin pretendia
votar em Porto Príncipe. Para tanto, supostamente havia solicitado mudança
de domícilio eleitoral, não levada em consideração pelo CEP. Logo Célestin
denuncia publicamente o erro do CEP. Seu caso será prontamente resolvido,
no entanto ele alimentava as suspeições de desorganização, utilizadas
prontamente por aqueles que pretendiam aplicar um golpe eleitoral.
Com a definição do local de voto para cada eleitor que o solicitasse,
progressivamente foi sendo confeccionado o novo mapa eleitoral haitiano,
muito distinto do anterior. Assim, apesar do imenso e inusitado desafio
logístico, graças ao apoio técnico da OEA e da ONI, foi possível ao CEP
dispor da Lista Eleitoral atualizada em meados de outubro, tal como
havíamos previsto. Orgulhoso, comuniquei pessoalmente o feito a Insulza e a
todos os parceiros. Tecnicamente estávamos prontos para a eleição.
Superar o impressionante conjunto de dificuldades materiais,
financeiras, impossibilidades técnicas e logísticas, impedimentos legais,
bloqueios culturais e psicológicos, permitindo assim que fossem realizadas
eleições em condições excepcionais, deveria ser objeto de admiração de todos
e de orgulho daqueles que da aventura participaram. Não no caso do Haiti.
Ao contrário, persistia, com crescente vigor, a contestação vinda da oposição
e de uma suposta sociedade civil, financiada e reforçada por parte substancial
da Comunidade Internacional, questionando a legitimidade do CEP. Ao fazê-
lo desconheciam, quando não criticavam, o hercúleo trabalho realizado.
Este quarto desafio confirma que a interminável crise da transição
haitiana retornava a sua essência: a luta pelo poder. Nesta não há quartel,
limites, pruridos e fronteiras. Esforçar-se para fazer o bem não traz consolo,
muito menos salvação.
No início de junho de 2010 a oposição continuava ameaçando não
participar das eleições caso não houvesse uma total reformulação da
composição do CEP. Apesar de sua escassa densidade eleitoral – a maioria
dos partidos opositores não alcançava 2% dos votos – ela dispunha de porta-
vozes em determinadas embaixadas que imprimiam eco e força a seus anseios
e interesses.
Destaque-se que os partidos de oposição não criticavam as
deficiências históricas do sistema eleitoral haitiano. Suas críticas e diatribes
dirigiam-se exclusivamente à composição do CEP. De fato, o pretendido era
simplesmente substituir titulares por outros indicados exclusivamente pelos
partidos políticos. Não causava surpresa a mescla de funções entre partidos
políticos e autoridades eleitorais. Entre juiz e parte do processo eleitoral.
Sentindo-se acuado, o CEP já havia solicitado em abril apoio técnico
à OEA. Inutilmente. Em agosto o presidente Préval reitera o pedido sem
maior sucesso. A divisão de tarefas entre ONU e OEA havia sido definida e
não seria modificada.
Respondendo às intermináveis pressões, Préval confirma que não
mudaria a composição do CEP, pois caso o fizesse não haveria tempo hábil
para realizar as eleições nos prazos previstos. Para a parte da CI que desejava
descartar Préval e seu candidato, a sutileza de sua argumentação soou como
definitiva.
A viacrucis para organizar as eleições conheceu um novo desafio em
meados de outubro, quando foi anunciado o surgimento de uma epidemia de
cólera na região de Artibonite. Logo ela alastra-se por todo o país, tornando
imprudentes e desaconselháveis reuniões, deslocamentos e comícios
públicos. Até então um desafio político, logístico e de segurança, o exercício
eleitoral adquire outra dimensão, atingindo a delicada e frágil situação da
saúde pública no país.
Não havia, entretanto, como recuar. Os exíguos prazos impunham seu
respeito. Mesmo que fosse ao preço de um incremento da epidemia. Haiti terá
suas eleições não somente em tempos de terremoto, mas também em tempos
de cólera.

CAPÍTULO XII – A TENSA JORNADA ELEITORAL

Konstitisyon se papie, baionet se fè


La Constitution n`est que du papier, tandis que la baïonnette est du fer.
Adage haïtien

A madrugada de 28 de novembro de 2010 parecia calma e silenciosa,


diferente do que ocorrera na eleição presidencial que conduziu Préval pela
segunda vez ao Palácio Nacional. Em fevereiro de 2006, apesar de ainda
noite notava-se, a partir das 4h30 minutos da madrugada grande
movimentação, com um desfile incessante e progressivo de pessoas, parte do
ritual das votações importantes no Haiti.
Em 2010 não. Tudo estava relativamente calmo até as 6 horas, o que
poderia ser interpretado como um sinal tranquilizador de que a jornada
eleitoral transcorreria sem grandes transtornos. Uma grande preocupação,
todavia, assaltava-me: a de realizar eleições sem eleitores. Em democracia,
do nível de participação eleitoral decorre o grau de legitimidade dos eleitos.
No Haiti o voto não é obrigatório. Trata-se de um direito (e não de um
dever) cívico que pode ou não ser exercido. Esta situação implica a
disponibilidade de uma máquina eleitoral azeitada e de um sistema de
votação eficiente, ambos dotados de credibilidade. Mais que isso, torna-se
imprescindível que os candidatos sejam representativos e os partidos políticos
detentores de uma elevada capacidade de mobilização eleitoral. Nenhum
destes elementos estava presente nas eleições de 2010. Agregando o fato das
extraordinárias e negativas repercussões sobre o sistema eleitoral advindas do
terremoto de janeiro daquele ano, especialmente em Porto Príncipe e em seu
entorno, o receio era totalmente fundamentado.
O dia estava magnífico. Ensolarado e com agradável temperatura. As
notícias sobre a votação, oriundas dos quatro cantos do país, eram
tranquilizadoras, inclusive sobre filas se formando nos Centros de Votação.
Na quinta-feira anterior à votação, Mulet reuniu a imprensa e se dizia
confiante:

Le climat haïtien est apaisé, tranquille, serein, et sans


violence dans les circonstances haïtiennes. Si l`on
compare le processus électoral, la campagne
électorale avec les élections législatives de l`année
dernière, avec la présidentielle de 2006 ou même avec
la présidentielle d`avant, l`évolution est très
positive. » [146]

Mulet não avalizava os temores de todos os envolvidos na operação.


Para ele as eleições “c`est un défi logistique et sécuritaire que nous allons
relever. »
Para tanto, o General argentino Gerardo Chaumont, responsável pela
Polícia das Nações Unidas, declarava que todas as providências haviam sido
tomadas posto que “plus de 3200 agents de police des Nations Unies vont se
consacrer à la tâche de sécurité des élections. Il faut y ajouter 4200 agents de
sécurité, 4500 officiers de la Police Nationale Haïtienne sans compter la
composante militaire [de la Minustah]. »[147]
No domingo, 28 de novembro de 2010, ao visitar local de votação na
cidade de Léogane, em torno das 8h30 minutos da manhã, Mulet reitera em
entrevistas às estações de rádio e TV, que tudo transcorria normalmente,
apesar de reclamações pontuais de alguns eleitores que não encontravam seu
nome na lista da mesa onde, pensavam eles, deveriam votar. Segundo Mulet,

In general everything is going well, everything is


peaceful. I see a great passion of citizens and from
citizens for democracy in this country. MINUSTAH
is here. There is no reason to de frightened. It’s an
electoral celebration. There are some small
administrative problems, but no big problem that is
going to reduce participation. [148]

Os eleitores no Haiti preferem votar cedo pela manhã. Em virtude da


complexidade, das mudanças de local de votação de muitos eleitores e do
baixo nível cultural de grande parte da população, o voto é um exercício
demorado, que requer imensa paciência de todos os envolvidos.
Para evitar que alguém fure a fila, os haitianos espremem-se um atrás
do outro, impossibilitando a passagem de quem quer que seja. Embora o
olhar estrangeiro possa identificar certa confusão, de fato tudo transcorre com
bonomia. As pessoas estavam vestidas com grande elegância, pois
juntamente com o direito de votar havia o inevitável ofício religioso.
Ao alcançar a Praça São Pedro, em Pétion-Ville, notava-se a presença
de grupos de jovens que desciam correndo em direção a Porto Príncipe. Com
a cor rosa predominando, aparentemente não estavam armados, embora
pronunciassem palavras de ordem de campanha do candidato Michel
Martelly com uma entonação agressiva e belicosa.
Em vários locais de votação, tanto em frente aos centros de voto
quanto em seu interior, pessoas denunciavam, aos gritos, supostas fraudes e
irregularidades. Surpreendente o contraste entre a calma dos eleitores que
exerciam seu direito de voto com a agitação e barulho de alguns elementos
que tentavam perturbar a votação.
A Polícia marcava presença com grande número de agentes. Dirigi-
me a alguns agentes solicitando que interviessem para retirar os agitadores do
recinto de votação. Embora indicassem que coibiriam o início de tumulto,
nada faziam.
Os meios de comunicação começavam a relatar problemas, ainda que
esparsos e pouco relevantes, sobretudo na região metropolitana de Porto
Príncipe. Percorri os bairros populosos do centro da cidade, nos quais tudo
parecia caminhar relativamente bem.
Ao encontrar o comboio de observadores brasileiros – tanto os
diplomatas quanto os do Superior Tribunal Eleitoral vindos especialmente de
Brasília – decidi segui-lo, e já no final da manhã fomos em direção à cidade
de Cabaret, localizada a poucos quilômetros ao Norte da capital.
Tendo encontrado tudo em ordem em Cabaret, inclusive com um
índice de participação que naquele momento já beirava os 30%, decidimos
retornar a Porto Príncipe. Emocionei-me com a disciplina, a alegria e a
camaradagem que demonstravam os eleitores de Cabaret. Minha principal
preocupação se havia dissipado e havíamos conseguido organizar eleições
com uma participação significativa, em condições técnicas inusitadas – quase
impossíveis – e até aquele momento sem violência. Não era pouco. Não pude
refrear uma ponta de orgulho pelo trabalho realizado.
Ao nos aproximarmos de Porto Príncipe soou o meu celular. Era o
embaixador Igor Kipman, que de outro carro do comboio avisa-me ter sido
convocado para uma reunião de emergência na residência do embaixador
Mulet. Apesar de não receber nenhum chamado, eu decidi acompanhá-lo ao
imprevisto encontro. Como havia uma reunião do Core Group
antecipadamente prevista para o final da tarde, a fim de realizar um balanço
da jornada eleitoral, indaguei ao embaixador do Brasil a razão da antecipação
de nosso encontro. Disse-me não saber do que se tratava. Esquecemos o
almoço e fomos diretamente ao local da reunião.
Quando chegamos à residência, um pouco antes das 14 horas, poucos
membros do Core Group lá estavam. O principal assessor político da
Minustah, o irlandês John Bevan, após alguma insistência de minha parte,
revelou o porquê da urgência: 12 dos 18 candidatos à eleição presidencial
haviam se reunido no Hotel Karibe no final da manhã e denunciado, em um
documento devidamente assinado, as supostas irregularidades e fraudes que
estavam ocorrendo. Exigiam a anulação do pleito, a dispensa do Conselho
Eleitoral Permanente e a convocação de novas eleições sob a direção de um
novo CEP.
Um grande número de manifestantes percorria as ruas de Porto
Príncipe e se dirigia ao Hotel Karibe em apoio à denúncia. Lembrei do que
havia presenciado no início da manhã. Tudo era possível acontecer, segundo
o que relatavam com ar inquieto e ansioso os recém-chegados. Era
imprescindível agir rapidamente para evitar um possível banho de sangue.
Ressurge, uma vez mais, o medo atávico dos ocidentais diante do perigoso
Haiti.
Tive a impressão de viver um pesadelo. Não podia entender como a
maioria dos candidatos denuncia o processo eleitoral ainda no início da
votação, quando todos - a começar por Mulet - publicamente consideravam
que o processo transcorria dentro da normalidade. Sobretudo porque entre os
signatários estavam Mirlande Manigat e Michel Martelly, ambos favoritos
para ir ao segundo turno, juntamente com Jude Célestin, conforme as
pesquisas de intenção de voto. Parecia-me que se tratava de uma crise
preparada de longa data. Soube, mais tarde, que o Salão de Convenções do
Hotel Karibe havia sido antecipadamente reservado e o documento a ser
assinado, previamente redigido. Tratando-se da política haitiana, o fato era
inédito.
Caminhando no pátio e jardim da residência de Mulet, aguardávamos
a chegada dos demais integrantes do Core Group. A maioria dos presentes
quando não falava ao celular, trocava ideias sobre a irrupção aparentemente
inesperada de uma grave crise.
Aproximei-me de Mulet para obter mais informações. Com ar de
preocupação ele me confidenciou, de maneira calma e natural, como se o que
narraria estivesse na ordem das coisas: “Acabo de falar por telefone com
Préval informando que um avião estaria a sua disposição para deixar o país.
Em 48 horas, no mais tardar, ou seja, até terça-feira, dia 30, Préval deverá
deixar a Presidência e abandonar o Haiti”.
Não sei como consegui esconder minha surpresa indignada diante de
tamanho absurdo. Mantive a serenidade a ponto de poder indagar, mostrando
uma falsa naturalidade, sobre qual havia sido a reação de Préval. Mulet
respondeu: “O presidente Préval disse que ele não é Aristide, mas sim
Salvador Allende.”
E, concluiu, em espanhol, um desapontado Mulet: “Ricardo, estamos
muito malparados.”
Fomos interrompidos pela chegada de outros convidados e nos
dirigimos à sala para o início da reunião.
Não conseguia absorver o impacto provocado pela revelação de
Mulet. Como aceitar que o representante das Nações Unidas demonstrasse
decepção por não conseguir retirar do poder um mandatário
democraticamente eleito? Como é possível aceitar que o representante das
Nações Unidas tenha o poder para tomar iniciativa de tamanha gravidade? A
quem havia consultado? Bizarras são as lições de democracia transmitidas
pelas Nações Unidas ao irrequieto aluno haitiano.
Logo a seguir, com a chegada dos demais membros e com o
desenrolar da reunião, pude melhor avaliar que Mulet era, de fato, o porta-
voz de uma posição que vários embaixadores de países importantes
endossavam. O que até então para mim era um pesadelo se transformara
numa loucura coletiva da Comunidade Internacional!
Um dos mais agitados era o representante da França, informando que
Michelle Alliot-Marie (então Chanceler francês) estaria disposta a telefonar a
Préval para pressioná-lo. Préval não aceita a ligação. Didier Le Bret convence
Jean-Max Bellerive a ouvir os conselhos de Alliot-Marie.
A vitória de Préval no primeiro turno das eleições de fevereiro de
2006, segundo o Representante do SGNU na época, o chileno Juan Gabriel
Valdés, “as mais livres e as mais bem organizadas da história do Haiti”, havia
sido o epílogo de uma longa transição de dois anos sob o manto da
Comunidade Internacional. Além de uma grande participação do eleitorado
(62%) a conceder legitimidade aos resultados, Préval era o filho de nosso
trabalho no Haiti. Destituindo-o jogávamos por terra seis anos de cooperação.
Ao golpeá-lo desmentíamos tudo que até então defendíamos. Em suma,
denegando-o, denegávamos a nós mesmos.
A atitude conciliadora e democrática de Préval fazia dele um
elemento indispensável para o deslinde da crise. Ausente Préval, as forças da
Unidade não disporiam mais de liderança e poderia deixar livre curso à
violência que muitos preconizavam. Ao afastar Préval extrairíamos da crise
haitiana o indispensável algodão entre os cristais.
Ainda hoje não estão nítidas as razões que levaram parte importante
da Comunidade Internacional a tudo tentar para descartar Préval.
Em certa oportunidade Préval relatou-me seu diálogo com Mulet
quando este deixava o Haiti. Préval lhe perguntou o porquê de sua atitude. O
político guatemalteco manteve um silêncio enigmático, convidando à
interpretação. Préval, então, sugeriu:

Est-ce que vous pensiez que je ne voulais par quitter


le Palais National et dans l`ombre je m`efforçais pour
voir renouveler mon mandat ? E, prosseguiu Préval: Il
ne suffisait pas les innombrables occasions où je
réaffirmais ne pas vouloir être réélu ? Vous n`avez
pas crû à ma parole ? Même quand l`Unité a présenté
comme candidat à Jude Célestin ?

O silêncio marcado por um cúmplice sorriso de Mulet confortou a


leitura e a interpretação de Préval. Não as minhas.
Há motivações difusas que atravessam a Comunidade Internacional e
alimentam um sentimento anti-Préval. A começar por ser ele um político
profissional cujo poder era extraído do sistema partidário haitiano. Ora, havia
um visível cansaço com as reiteradas promessas e com os não menos
reiterados fracassos da “classe política” haitiana, sejam para estabilizar
minimamente o país, para dar início a uma política tendendo a minorar a
grave situação humanitária ou ainda para esboçar um projeto de
desenvolvimento. Também influía a visão negativa da Comunidade
Internacional sobre a inação de Préval nos meses seguintes ao terremoto.
O epidérmico nacionalismo de Préval transformava-o em empecilho
para as ações da Comunidade Internacional. Seu aparente e rígido legalismo
tampouco se coadunavam com o pretendido pelo suposto Grupo de Países
Amigos. Mais do que as questões de fundo, todavia, chocava seu humor fino,
cortante e cáustico, com o qual ele travestia firmes posições.
A operação de desconstrução da legitimidade política de Préval foi,
em sua aparência, encabeçada por Edmond Mulet. Era ele quem tomava a
iniciativa, pressionava o CEP, impunha condições a Préval, criticava com
acidez e pouco tato a Jude Célestin. Não há, contudo, como se deixar
enganar. Mulet não dispunha de poder para definir uma estratégia própria no
Haiti. Ele não era mais do que um mero porta-voz dos Estados Unidos. Sua
função essencial consistia em fazer com que o diktat de Washington se
aparentasse em vontade coletiva do Core Group. Nesse contexto, Mulet
abandonava suas altas funções e se transformava em simples funcionário do
Departamento de Estado.
Como explicar, então, a hostilidade dos Estados Unidos para com
Préval? Muito além dos motivos gerais já mencionados, havia um específico
a irritar profundamente Washington: a autonomia nacionalista demonstrada
por Préval, especialmente quando decide tornar o Haiti país associado do
Programa Petrocaribe. Mais do que a saída da empresa norte-americana
Chevron do Haiti em 2009, Petrocaribe significa a chegada e permanência da
influência venezuelana na política haitiana.
Considerado até então domínio reservado dos Estados Unidos, o Haiti
sob Préval consegue desvencilhar-se de algumas amarras e aumentar o seu
escasso poder de negociação. Assim foi quando trouxe a cooperação médica
cubana em 1998. Agora, permite que o irrequieto e principal inimigo de
Washington nas Américas se instale no Golfo de la Gonâve.
A América Latina em geral e especialmente o Brasil, alinham-se de
maneira imediata e automática, como veremos a seguir, à estratégia da
Comunidade Internacional de descartar o candidato da Unidade e o seu
mentor, René Préval. Ao silêncio dos países da Alba soma-se a indiferença
dos demais. O que surpreende não é tanto a repetição do que havia sido feito
com Aristide em 2004, mas sua explicação. Para muitos diplomatas latino-
americanos, “Préval estava namorando” [alusão ao seu recente casamento
com Elisabeth Delatour] e, consequentemente, desligado da realidade haitiana
e de seus compromissos políticos e governamentais. A lógica do simplista
raciocínio defende a tese segundo a qual há incompatibilidade entre o amor e
o exercício de funções públicas...
Além disso, como permanentemente ocorre quando se trata do Haiti, a
Comunidade Internacional sublinha, reforça, insiste e desenha em letras
garrafais que o governo é dominado pela corrupção. A partir do momento que
se impregna na imaginação da maioria dos estrangeiros a percepção de que
eles não devem confiar no Estado haitiano, tudo se torna mais fácil para a
Comunidade Internacional. Ela pode agir a seu belprazer sem sequer ser
cobrada por suas ações.
A Comunidade Internacional desejava fazer tábula rasa do sistema
político haitiano nas eleições presidenciais de 2010 para tornar possível o
advento de uma nova classe política. Era imprescindível inovar. Mais do que
inovar: revolucionar. Para tanto se voltaram como se fora uma única voz, a
apoiar a um suposto neófito em política: Michel Martelly.[149] Este
manifestou, em várias oportunidades, o seu agradecimento. Entre estes
reconhecimentos, o que mais chamou a atenção foi o seu não programado
discurso no coquetel em que Mulet se despedia do Haiti. Nesse discurso, o já
eleito novo presidente lembrou-se da promessa a ele feita pessoalmente por
Mulet, quando da campanha eleitoral, “qu`il ne quitterait pas Haïti avant de le
faire Président de la République.” E, complementou um eufórico e
agradecido Martelly: “Il a tenu sa promesse. »
A promessa de Mulet, até então mantida em segredo, foi revelada
publicamente em uma cerimônia na qual estavam presentes o corpo
diplomático, ministros haitianos e a imprensa nacional e estrangeira. No dia
seguinte, somente o jornal Le Nouvelliste do Haiti fez menção ao episódio. O
que em qualquer país provocaria um escândalo, no Haiti passou batido, como
se fosse algo natural que o Representante do SGNU elegesse e depusesse
presidente.
Retornemos à fatídica reunião. Rapidamente todos os membros do
Core Group estão presentes. O salão da residência tornou-se exíguo, pois
vários dos presentes trouxeram assessores consigo. Felizmente surgiu, de
maneira imprevista, o primeiro-ministro Jean-Max Bellerive, interrompendo
as conversações. Posteriormente Bellerive ironizou sobre sua imprevista
presença pois, segundo ele, “Il serait intéressant qu`il ait au moins un Haïtien
dans un conclave que déciderait le futur d`Haïti. »
Reiniciamos a reunião, agora também com a presença do Secretário
Geral adjunto da OEA, que estava em Porto Príncipe para acompanhar a
votação.
Mulet introduz Bellerive. Faz-se silêncio e todos os olhares se dirigem
ao primeiro ministro. De pronto, com ar grave apesar de seu permanente bom
humor e simpatia, Bellerive saúda brevemente a todos e declara que deseja
simplesmente manifestar uma posição e fazer uma pergunta. A declaração é a
de que ninguém, a começar pela Comunidade Internacional, deve contar com
o seu apoio para qualquer solução para a crise que seja contrária ou à margem
da ordem constitucional.
Ocorre que algumas vozes sugeriam que, ausente Préval, seria
montado um Governo Provisório sob o comando de Bellerive. Este governo
extinguiria o CEP e seria encarregado de organizar novas eleições com uma
nova instituição eleitoral. De pronto, portanto, Bellerive se coloca ao lado da
legalidade e do respeito à Constituição haitiana. A primeira investida da
Comunidade Internacional fracassara.
Após esta colocação e em complemento a ela, Bellerive indaga de
forma direta, sem rodeios, de maneira abrupta: “J`aimerais savoir si le
mandat du Président Préval est sur la table de négociations ? Oui ou non ? »
Ele percorre com o olhar seus interlocutores, que permanecem em
silêncio. Pesado e longuíssimo silêncio. Olhares se cruzam. Como sempre
ocorria nestas reuniões, Mulet espera a manifestação de alguém. Permanece
imóvel. O momento é de extrema gravidade. Para muito além do destino do
então presidente, a resposta será decisiva tanto para o futuro do Haiti quanto
para a honorabilidade da Minustah.
Ainda ecoavam em mim as palavras de Mulet, a suposta reação de
Préval, as afirmações de vários dos presentes aparentemente concordando
com a partida de Préval. Este, portanto, já havia instruído o seu primeiro
ministro sobre o teor do telefonema de Mulet.
A presença de Ramdin – autoridade maior da OEA na reunião –
atava-me as mãos e silenciava minha voz. O que fazer? Diante da pergunta
direta de Bellerive, calaram-se os exaltados golpistas do Core Group cujas
palavras ainda ecoavam na sala. Ao inusitado somou-se a covardia. Era
necessário, contudo, agir rapidamente, pois a primeira manifestação no tenso
ambiente deveria orientar o debate.
Para romper um silêncio que parecia interminável e convencido de
que interpretava princípios fundamentais e não mero interesse circunstancial,
eu decidi tomar a iniciativa e solicitei a palavra.
Era imprescindível fazê-lo, pois estávamos prestes a cometer uma
ignomínia moral e um crasso erro político. Com a ativa e fundamental
participação da Comunidade Internacional, lançaríamos novamente o Haiti
em direção ao precipício referido por Luigi Einaudi quando da crise de
fevereiro de 2004. Sequer acariciei a ideia da eventualidade de consequências
desagradáveis que pudessem afetar-me, tanto pessoal quanto
profissionalmente. Ao contrário. Opor-se ao absurdo pretendido por parte da
Comunidade Internacional pareceu-me uma simples obrigação. A consciência
democrática e o respeito pelas instituições haitianas guiaram minha atitude.
Não seria o Representante da OEA no Haiti que falaria. Seria o brasileiro e o
professor universitário.
Tomando o cuidado de declarar que me pronunciava em meu nome
pessoal e não no da OEA, informei que o fazia por dever de lealdade aos
colegas. Além disso, todos conheciam o trabalho que havia realizado no Haiti
para a confecção da Lista Eleitoral, em condições de grandes dificuldades.
Tinha legitimidade, portanto, para me pronunciar. Dirigindo-me
essencialmente aos presentes não americanos e, em tese, não habituados com
nossas regras políticas e jurídicas, informei que:

Il a été signé dans les Amériques, en 2001, un


document sous le titre de Charte Démocratique
Interaméricaine. Cette Charte stipule qu`une
quelconque modification, à marge des préceptes
constitutionnels, du mandat d`un Président élu de
façon démocratique, doit être considérée comme étant
un putsch.

Novamente fez-se silêncio. Pesado e longo silêncio. Antes que ele


voltasse a se prolongar em demasia, mirei o embaixador do Brasil, que havia
se colocado em frente a mim neste círculo imaginário que formávamos, e
indaguei: “Je ne connaît pas la position du Brésil. »
Igor Kipman afirmou imediatamente: “Le Brésil a la même
interprétation. »
Aliviado, já não mais estava só. Logo a seguir o argentino Rodolfo
Matarollo, Representante da Unasul, manifestou-se no mesmo sentido.
Com um ar desolado, Kenneth Merten balançava a cabeça sinalizando
contrariedade com o desenrolar da reunião. Quando rompe seu silêncio foi
para reconhecer que o golpe do Core Group contra Préval fracassara e
declara: “on ne va plus parler de cela. »
Ao abortar a manobra de repetir com Préval o que havia sido feito
com Aristide em fevereiro de 2004, estava seguro na defesa de minha
posição. Ultrajado pela perspectiva que se apresentara e ainda chocado e
aturdido com o que vivenciara, concluí que em se tratando do Haiti, a
Comunidade Internacional não estabelece limites para sua ação.
A legalidade e o bom senso haviam prevalecido. Até quando? Ainda
conservava vivas ilusões e não me dava conta de que uma frente comum
internacional havia se formado e que decidiria o caminho eleitoral a ser
trilhado pelo Haiti.
A reunião prosseguiu com virulentas manifestações denunciando as
supostas fraudes que haviam ocorrido durante a votação. A qual destaque-se,
estava em pleno transcurso. Alguns dos presentes detinham supostas
informações de primeira mão sobre as barbaridades cometidas. Quando as
relatavam, não passavam de episódios parciais e pontuais. As testemunhas
das supostas fraudes eram motoristas e empregadas domésticas de
embaixadas, portanto ausentes informações consistentes, abrangentes e
inquestionáveis.
Durante o desenrolar de toda a reunião o responsável pela Missão de
Observação Eleitoral da OEA/Caricom, Colin Granderson, manteve total
discrição. A ele deveria ter sido concedida a palavra no início da reunião.
Como sua avaliação parecia não interessar a ninguém, Granderson ficara em
silêncio. Sua voz era essencial, pois somente ela poderia fornecer uma visão
de conjunto do processo eleitoral em curso.
O mutismo de Granderson é explicável. Ocorre que ele estava em
delicada posição. Diante das manifestações que aconteciam em alguns pontos
da capital e alegando falta de segurança, ele decide, sem prévia consulta a
Insulza, retirar os observadores da Missão de locais cruciais, recolhendo-os
aos hotéis e à sede da Missão. A OEA, portanto, não poderia monitorar o
comportamento eleitoral a fim de comparar seus resultados com os oficiais
quando publicados pelo CEP.
O retraimento dos observadores da região metropolitana colocava em
xeque a credibilidade da Missão. Esta já não disporia de uma visão sobre a
totalidade da operação eleitoral, contudo sua avaliação era indispensável,
uma vez que centenas de observadores haviam sido distribuídas por todo o
país. Além de confiáveis, eram os únicos que poderiam fornecer uma
percepção global aproximada do processo eleitoral.
Como Granderson não tomava a palavra e ninguém o convidava a
fazê-lo, decidi manifestar-me novamente. Sentia-me na obrigação moral e
política de falar. Percebi que nadava contra a corrente, mas não havia outra
solução.
De forma introdutória, sublinhei que desde agosto de 2010 a OEA,
posteriormente juntamente com a Caricom, acompanham o processo eleitoral,
observando a campanha e neste dia de votação estão presentes no conjunto do
território haitiano. Dirigindo-me a Granderson, indaguei: “Colin, pourrais-tu
avoir l`amabilité de nous faire un compte-rendu sur le déroulement de la
journée électorale sur l`ensemble du territoire”.
Embora parcial, pois as urnas ainda não haviam sido fechadas – e nas
condições descritas anteriormente para o caso de Porto Príncipe –, pareceu-
me estranho e inaceitável que o Chefe da Missão de Observação Eleitoral
OEA/Caricom não fosse ouvido em uma reunião na qual se estava a discutir
uma suposta crise eleitoral que alguns desejavam transformar em crise
política e – quiçá – em crise de regime.
Estávamos em plena tragicomédia. A vinda de uma MOE ao Haiti
somente fora possível graças ao seu financiamento pelos países que estavam
representados naquela reunião. Ora, os representantes destes mesmos países
não pareciam muito interessados em conhecer a avaliação de Granderson.
Por quê? A razão é singela: quando finalmente se pronuncia,
Granderson relata que 95% do processo de votação transcorreu de forma
ordeira e de maneira aceitável. Reconhece a existência de problemas pontuais
e localizados, embora estes não colocassem em xeque o conjunto do
processo. Segundo ele, “La Mission conjointe OEA/Caricom ne croit pas que
ces irrégularités, même sérieuses, doivent invalider les élections. »
Sobre as denúncias emanadas do grupo de candidatos do Hotel
Karibe, Granderson as julga “apressadas e lamentáveis”. O próprio CEP
indicará, no dia seguinte à votação, que somente 4% das seções foram
afetadas por problemas técnicos ou pelas manifestações que impediram o
acesso dos eleitores aos Centros de Votação.
A conselheira Ginette Chérubin confirmou posteriormente que no
Departamento do Sul, sob sua responsabilidade, excetuando alguns poucos
incidentes, “Tout semble bien se dérouler. »
Ela acrescenta que a manifestação dos candidatos do Hotel Karibe
“N`a aucun impact dans le Département du Sud. Même constat pour d`autres
régions. »
Após as 18 horas, uma vez encerrada a votação no Sul, Ginette
Chérubin reúne seus colaboradores e conclui que “L`évaluation générale est
positive. »
Logo a seguir ela é informada de que uma violenta manifestação pró-
Martelly percorre as ruas de Les Cayes. São saqueadas residências de
integrantes da Unidade. Muitas são incendiadas. A PNH e a Minustah tomam
o controle das ruas.[150]
As avaliações de Granderson deveriam constituir-se na essência de
nossa reunião a orientar o Core Group. Ora, ocorreu exatamente o contrário.
Suas palavras foram imediata e radicalmente rejeitadas. Graças ao
bombardeio por alguns dos presentes, reiterando as superficiais e não
comprovadas críticas que havia anteriormente mencionado, as conclusões de
Granderson são descartadas. Ao invés de se inclinar diante das ponderações
de Granderson, um grupo de embaixadores, capitaneado pelo francês e pelo
espanhol, prosseguiu na mesma toada, golpeando ao bel-prazer a
respeitabilidade da MOE.
Confesso que pelo absurdo da situação não percebi de imediato um
fato capital. Somente com o passar dos dias pude me convencer de que
naquela reunião ficou claro que uma decisão já havia sido tomada: a
Comunidade Internacional é que escolheria o novo presidente do Haiti!
Posteriormente pude constatar que intelectuais haitianos percebiam
perfeitamente o papel de alguns países nas eleições em seu país. Assim,
Lyonel Trouillot observava que

“Le représentant de l’Union Européenne et


l’ambassadeur des Etats-Unis ont um énorme pouvoir
de décision sur ce qui se fait en Haïti. Ce sont eux qui
disent s’il y aura des élections ou s’il n’y aura pas. Et
peu importent les souhaits du peuple haïtien. Ce sont
eux qui les valident, dans les faits, qui décident que,
fraude ou pas fraude, quel que ce soit le taux de
participation, le résultat est acceptable. »[151]

Ausente seu principal objeto, a reunião prosseguiu morna e sem


alcançar nada de substantivo, a não ser a decisão de nos mantermos em
permanente contato.
Antes de partir resolvi tomar uma taça de café em uma mesa contígua
à sala da reunião, e lá se aproximou de mim o embaixador francês, Didier Le
Bret. Logo afirmou não concordar com o que eu havia dito. Antes que ele
prosseguisse, retruquei:

“Tu n`est pas d`accord avec quoi ? Avec l`existence


de la Charte Démocratique Interaméricaine ? Il ne
faut pas que tu te tracasses. Lorsqu`il s`agit des
affaires haïtiennes, toi en tant que Français et moi en
tant que Brésilien, nous ne pouvons pas épouser les
mêmes principes. »

Abortamos a conversação. Ele, surpreso com minha resposta e eu


igualmente com minha grosseria.
O Core Group, a posteriori, rapidamente deu-se conta do absurdo da
démarche de deposição de Préval. Nos dias subsequentes, vários
embaixadores quando interrogados sobre o tema mentiam descaradamente,
negando a sua existência. O dos Estados Unidos, Kenneth Merten, declarou
que enquanto ele estivera presente na reunião o tema não havia sido debatido,
sequer referido. Ora, não somente ele estava presente na sala de reuniões
quando da fatídica pergunta feita por Bellerive, como também participou
ativamente das conversações preliminares, cujo tema central não era outro
senão a proposta de Mulet e a reação de Préval.
Mulet, por sua vez, como era de se esperar, qualificou de
“completamente falsa” a informação. Inclusive Igor Kipman, instruído por
Brasília a mudar de posição, juntou-se ao inútil desmentido. Como correto
representante diplomático, obedeceu às ordens de seus superiores. Estes
mostravam, definitivamente, que o Brasil não estava no Haiti para lutar pela
democracia e muito menos pelos interesses da maioria. O que interessava a
Brasília era simplesmente aumentar uma corda em seu violão para poder
melhor alcançar seus objetivos internacionais.
Em 14 de janeiro de 2011 a imprensa de Porto Príncipe relatava que o
embaixador Le Bret rejeitava as informações sobre as pressões para que o
presidente Préval deixasse o Haiti tal como eu havia declarado a um jornal
brasileiro em fins de dezembro. Ele “as qualificava de totalmente absurdas e
que não podem ser provadas”. Sendo o representante francês um de seus
principais artífices – e como não assumia o que havia feito, na tentativa de
ocultar a vergonhosa manobra –, logo me convenci de que a atitude grosseira
havia sido a adequada maneira de tratá-lo.
Neste tema Le Bret e demais diplomatas remavam contra a maré da
verdade, pois no dia 11 de janeiro, em uma entrevista coletiva concedida a
vários jornalistas no Palácio Nacional, Préval confirmou que setores da
Comunidade Internacional insistiram para que ele deixasse o Haiti. Eis a
resposta de Préval:
“J`ai catégoriquement refusé une telle éventualité car,
ce serait un acte d`aliénation de notre souveraineté si
des étrangers pouvaient décider du sort des dirigeants
à leur guise. »

O jornalista do Infohaiti.net abre sua nota relatando que:

“L`ancien représentant de l`OEA en Haïti, Ricardo


Seitenfus avait raison : après les élections
présidentielle et législative du 28 Novembre 2010 et
surtout après les violentes manifestations qui ont suivi
la publication des résultats du premier tour, au cours
d`une réunion avec le chef de l`Etat, des secteurs de
la communauté internationale lui avaient carrément
demandé de « partir », a confirmé l`intéressé lors
d`une interview accordée à un groupe de
journalistes.”

Caso persistisse alguma dúvida sobre o verdadeiro e inquestionável


desenrolar dos fatos, ela desaparece com o depoimento de Préval no
documentário, Assistência Mortal, do cineasta haitiano Raoul Peck. Nele, o
Presidente quase deposto fornece detalhes da manobra de Mulet
supostamente em nome da Comunidade Internacional. Préval assim narra o
episódio:

“J`ai reçu un appel de M. Mulet, qui était le chef de la


Minustah, me disant : Monsieur le Président, c`est un
problème politique, nous allons vous placer sur un
avion et vous évacuer. »
Malgrado a surpresa com a inusitada démarche de
Mulet, Préval mantém a calma e responde “Amenez
votre avion, venez me chercher au Palais, passez moi
les menottes et tout le monde verra que c`est un
kidnapping. »

Soube, posteriormente, que Mulet também havia solicitado auxílio ao


presidente dominicano Leonel Fernandez para que este disponibilizasse um
avião a fim de conduzir Préval para o exterior.
Ao final da reunião, ainda chocado com o que havia vivido nas
últimas horas, aproximei-me para me despedir de Bellerive e lhe disse que
poderia contar com a OEA na defesa da legalidade e da Constituição
haitianas. Ele sorriu tristemente e agradeceu.
Pensava eu, na minha autêntica ingenuidade, que ainda falava em
nome da OEA. Não me dei conta de que a partir daquele momento sofreria
um processo de desgaste. Não somente por ter infringido um limite que me
havia imposto, ou seja, o de não participar nos debates e discussões
envolvendo o processo eleitoral haitiano, mas, igualmente, ao tomar parte dos
debates, havia batido de frente com um poderoso grupo de intervencionistas
estrangeiros que tratavam o Haiti a sua guisa.
Tentei entender o que havia provocado a radical mudança de atitude
do Core Group ao longo daquela jornada. Durante a campanha eleitoral a
Comunidade Internacional criticava o candidato da Unidade acusando-o de
ser uma marionete a serviço de Préval. Quando Célestin não aceitou o convite
– supostamente por sugestão de Préval – para ser apresentado à CI, isso foi
percebido como um estratagema para esconder suas deficiências e também
como uma falta de consideração com a CI, que financiava a contenda.
Tive a oportunidade de conhecer Jude Célestin em uma reunião
organizada por Igor Kipman. Quando fui apresentado a ele, abriu um largo
sorriso e disse: “Ah! Alors c`est vous! »
Embora imaginando, não indaguei a que fazia referência.
Apareceu ele solitário, sem sombra de assessores, na residência do
embaixador do Brasil. Articulado, com ideias sobre como desenvolver o
Haiti, notava-se nele um amplo conhecimento do país em razão de seu
trabalho como diretor da empresa pública (CNE) responsável pela
infraestrutura – sobretudo rodoviária – do Haiti.
A partir do momento em que Célestin não se curvou à CI, esta iniciou
a desconstrução de sua candidatura. Acusavam-no de ser genro de Préval.
Mulet, por sua vez, tentava convencer-me, apesar de não dispor de nenhuma
evidência, que ministros viajariam ao interior do país com “valises carregadas
de dinheiro para a compra de votos”. Vindo de quem vinha, a acusação não
poderia ser considerada.
A campanha eleitoral da Unité, pelo fato de ser o maior partido
político e ser situação, era também a mais visível, a mais bem organizada e a
que dispunha de maiores recursos. Logo estas vantagens se transformaram
em defeito. Ganhava credibilidade a versão de corrupção desenfreada.
O principal líder do processo de desconstrução da candidatura oficial
era o próprio Chefe da Minustah. Mulet sempre se referia de maneira
negativa quando mencionava a Jude Célestin. Foi nesse caldo de cultura que
intervieram dois fatos maiores no dia da votação. Por um lado, a reunião de
12 dos 18 candidatos que denunciaram a suposta fraude eleitoral e exigiam a
anulação do pleito. Por outro, muito mais decisivo, as manifestações –
algumas de forma pacífica – que supostamente obrigaram os membros do
Core Group a se refugiarem em suas residências. Neste momento se
apresentou um dilema e emergiu novamente o medo atávico dos estrangeiros:
o que fazer caso o movimento dos jovens de Martelly viesse a descambar
para a violência? Estaria a Minustah disposta a controlá-lo? Seria ela capaz?
E a que custo?
Convencido de que o menos arriscado seria desdizer-se, o Core
Group decidiu sacrificar as eleições. Sua covardia serviu de fonte de
inspiração inesgotável a jogar por terra o árduo trabalho realizado por
milhares de pessoas para a organização de eleições em condições extremas. A
lógica desta estratégia foi a de premiar os principais coveiros da jovem
democracia haitiana.
Em definitivo, para a CI o Haiti não vale uma missa. Ou, melhor
dizendo, suas recorrentes crises nos habituaram a atuar movido por princípios
que sempre condenamos. No Haiti os representantes da CI se transformam.
Trata-se da diplomacia do camaleão e do faça o que eu digo, mas não faça o
que eu faço. Para quem chegou ao Haiti como professor de democracia,
nossas lições deixam a desejar.
Naquele momento não percebia de forma nítida a nova estratégia da
Comunidade Internacional e, por conseguinte, quão frágil era minha posição.
Decidi, então, manter estreito contato com Préval e com Bellerive, tentando
encontrar soluções que se enquadrassem nos parâmetros democráticos e
constitucionais capazes de diminuir a tensão que percorria o país e que
dominava tanto os haitianos quanto os estrangeiros.
Somente não sabia eu que ter evitado o golpe contra Préval – episódio
no qual pude imprimir a defesa da legalidade e dos interesses de um Estado-
membro como uma marca do que considero ser a essência de uma
organização regional de natureza política como a OEA – representaria um
ponto de inflexão no meu trabalho. A partir daquele momento estavam
contados os meus dias como Representante Especial do Secretário Geral da
OEA no Haiti.

CAPÍTULO XIII – A ESCALADA

A democracia é um regime de conciliação que não floresce sem um consenso mínimo.


Alain Rouquié, Guerras e paz na América Central

À tardinha do dia seguinte a votação, 29 de novembro, o Core Group


reuniu-se novamente na residência de Mulet. Como cheguei um pouco antes
do horário previsto, encontrei-me com Michel Martelly e assessores no
saguão da residência. Acompanhados por Mulet, eles estavam despedindo-se
e a todos que chegavam cumprimentavam com simpatia. Perguntei a Martelly
como estava. Ele respondeu-me: “Ici, au combat, pour défendre la volonté du
peuple. » Respondi-lhe: “En démocratie, l`arme de ce combat est le vote du
citoyen. » Ele sorriu, fez-se de desentendido e afastou-se rapidamente.
Era a terceira e derradeira oportunidade em que me entrevistei com
Martelly. O havia conhecido em um jantar oferecido por Mulet, algumas
semanas antes, organizado com o objetivo de apresentar à Comunidade
Internacional os principais candidatos à Presidência. Tinha certa simpatia por
seu papel de outsider, novato em política e à margem dos partidos
tradicionais. Por vezes me assaltava a ideia de que talvez nele residisse à
chave para fazer o país sair da crise.
No decorrer de sua explanação, contudo, fui me convencendo que se
era bem verdade sua inexperiência política, também sobressaíam nítidas
posições ideológicas. A ponto de que uma vez instalados à mesa – coube-me
estar à sua esquerda – aproveitei uma pausa da animada conversação e
ponderei:
“Monsieur le Candidat, à vous entendre mon attention
est attirée par les valeurs et principes auxquels vous
êtes attaché : famille, ordre, discipline, travail,
hiérarchie, entre autres. Il me semble que tous font
partie du discours idéologique du duvaliérisme. »

Antes que Martelly respondesse, ouviu-se um “oh!” de reprovação e


de crítica da maioria dos presentes com a minha suposta insolente
observação.
Ora, Martelly contestou calmamente, declarando que eu tinha razão.
Disse que fez parte da Juventude Duvalierista e sempre foi um defensor da
ordem e da disciplina – princípios basilares de François Duvalier. Muitas
vezes, inclusive após ter sido eleito presidente do Haiti, Martelly declarou
publicamente seu apreço pelo duvalierismo.
Uma vez composto seu gabinete, constata-se que ostenta figuras
proeminentes do nefasto regime e Jean-Claude Duvalier desfruta dias
tranquilos em Porto Príncipe. Caso isso não bastasse, quando Martelly
constitui um Conselho Consultivo Presidencial para o Desenvolvimento
Econômico e os Investimentos. Entre os conselheiros estrangeiros, além do
incontornável Bill Clinton, são nomeados o boliviano Jorge Quiroga –
candidato derrotado por Evo Morales nas eleições presidenciais –, o ex-
presidente colombiano Álvaro Uribe e o ex- presidente do governo espanhol,
José Maria Aznar. Este, inclusive, é o responsável pelas orientações em
matéria de “fortalecimento institucional”. Dificilmente Martelly poderia ser
mais explícito em suas orientações ideológicas, uma vez que consegue reunir
direita e extrema-direita dos dois lados do Atlântico.
Encontrei-me com Martelly uma segunda vez durante a campanha
eleitoral, na residência do embaixador Kipman. Ele permaneceu em silêncio
deixando que seus assessores diretos, Michèle Oriol e Daniel Supplice,
apresentassem seu plano de governo. Num dado momento Daniel Supplice –
que foi ministro dos Affaires Sociales de Jean-Claude Duvalier (1985-86) –
elogiou a ditadura Duvalier com a justificativa mussoliniana que à época “o
Haiti dispunha de eletricidade 24 horas ao dia”.
Não conseguia afastar o gosto amargo que me causava o tapete
vermelho a ele estendido pelo Representante do Secretário Geral das Nações
Unidas e nosso informal porta-voz. Ocorre que na véspera o candidato
Martelly fora um dos principais líderes do boicote que perturbou e
inviabilizou o direito de voto de milhares de eleitores, sobretudo na região
metropolitana de Porto Príncipe. Ao longo do dia e até muito tarde da noite
ele comandou manifestações e comícios com palavras de ordem a
desrespeitar o pleito. Agora, vendo Mulet recebendo-o oficialmente e com ele
confraternizando, tinha a desagradável certeza de que no Haiti, com o apoio
das Nações Unidas e do Grupo de Países Amigos, o crime contra a
democracia compensava.
Pensando adivinhar o que sentia, Mulet agravou seu caso ao me
informar que já havia recebido a candidata Mirlande Manigat para dizer aos
dois que não entendia a manobra de boicote, uma vez que, conforme suas
informações, ambos iriam ao segundo turno. Pretendendo demonstrar uma
ironia que definitivamente não dispunha, Mulet concluía declarando: “É a
primeira vez na História que dois pretendentes vencem o primeiro turno de
uma eleição presidencial e de antemão rejeitam seu resultado!”
A apuração do votos tomaria vários dias. Então, quais as informações
privilegiadas sobre o resultado da disputa de que dispunha Mulet para
sustentar sua ousada manobra a menos de 24 horas do final da votação?
Haveria a ONU, sem conhecimento da MOE/Caricom e do Core Group,
organizado uma boca de urna? A Minustah dispunha de um Serviço de
Inteligência suficientemente competente que pudesse orientar seu Chefe?
Posteriormente descobri o que estava encoberto.
Canadá, União Europeia e o NDI (National Democratic Institute for
International Affairs, braço externo do Partido Democrata dos Estados
Unidos) haviam doado US$ 1 milhão ao Conselho Nacional de Observação
das Eleições (CNO) para o acompanhamento da votação haitiana.
Desde o início da manhã do dia da votação, o CNO alimentava os
doadores e os candidatos opositores com informações alarmistas sobre
supostas fraudes generalizadas praticadas pelo partido do candidato Jude
Célestin. Sua irresponsável estratégia desestabilizadora radicalizou a
determinação do grupo de candidatos do Hotel Karibe, incrementou o tom
dos manifestantes e incitou aos embaixadores que financiavam seu trabalho a
exigir medidas corretivas.
Completando seu trabalho desestabilizador, o CNO ousa projetar
resultados de boca de urna indicando que Mirlande Manigat e Michel
Martelly iriam para o segundo turno.
Do projeto inicial do levantamento de boca de urna do CNO constava
uma amostragem de 2.550 eleitores escolhidos em todos os Centros de
Votação do país. Ora, foram processados somente 500 resultados, pois os
demais inexistiam. Além do número reduzido da amostragem, a impedir um
mínimo de confiança e de valor científico da avaliação, os questionários
provinham de determinados bairros da região metropolitana de Porto Príncipe
e do Departamento do Oeste, redutos eleitorais de Martelly.
Independentemente da flagrante manipulação do CNO, o que
transcende é a utilização que os diferentes personagens dela fazem. A
Embaixada dos Estados Unidos se apressa, às 21 horas do mesmo dia da
votação, quando as urnas estavam sendo fechadas, em publicar um
comunicado de imprensa apoiando o embuste do CNO e denunciando
eleições que eles próprios haviam financiado. Logo os manifestantes pró-
Martelly nele apoiam-se para pilhar e bloquear Porto Príncipe.
Um primeiro Relatório publicado pelo CNO em 3 de dezembro
constitui obra-prima da trama em curso. Na semana seguinte à votação o
CNO publica os resultados completos de sua boca de urna alegando ter
contabilizado resultados de 1.591 Mesas Eleitorais de um total de 11.000.
Segundo sua projeção, Mirlande Manigat teria recebido 29,9%, Michel
Martelly 25% e Jude Célestin 20% do total dos votos válidos. Estes
questionários, entretanto, não correspondem à amostragem prevista
inicialmente. Trata-se de dados recolhidos de maneira visual pelos seus
supostos observadores, não havendo qualquer base científica.
Contrastando com os resultados da suposta boca de urna do CNO, o
Instituto de Pesquisa de Opinião do Bureau de Recherche en Informatique et
en Developement Economique et Social (Brides) em sua quarta e derradeira
avaliação sobre intenção de voto, publicada em 24 de novembro, indicava o
seguinte: Mirlande Manigat 36 %; Jude Célestin 20,1 %; Michel Martelly
14,2 % dos votos.
O Brides realizou quatro sondagens, encomendadas pelo Fórum
Econômico (Forum Economique du Secteur Privé des Affaires – Fespa), que
apoiava a Martelly, sobre intenção de voto nos dois meses que precederam a
eleição. Instituição dotada de experiência, considerada séria e competente,
seus resultados eram aguardados ansiosamente pelos partidos políticos e
candidatos.
Desde a primeira publicação, em 4 de outubro, até a quarta, concluída
nos dias imediatos que antecederam a votação, o candidato Michel Martelly
jamais apareceu em balotagem que lhe permitisse ir ao segundo turno.
Dificilmente imaginável que ele pudesse reverter em quatro dias os seis
pontos percentuais que o separavam do candidato Jude Célestin, solidamente
colocado em segundo lugar nas intenções de voto.
A vontade do eleitor haitiano, todavia, era irrelevante. Nesta manobra,
o CNO desempenha papel central na estratégia de sabotagem eleitoral
praticada pela Comunidade Internacional na votação de novembro de 2010
no Haiti. A escolha do CNO não decorre de sua expertise, pois ele não a
possui. De fato, trata-se de um conselho a reunir diversas organizações da
suposta sociedade civil as quais, em realidade, formam um leque de oposição
governamental.
Dele fazem parte as seguintes organizações: o Conselho Haitiano de
Atores não Estatais o (Conhane), dirigido pelo Pastor Edouard Paultre
(ferrenho opositor a Préval); o Centro de Educação, Pesquisa e Ações em
Ciências Sociais e Penais (Ceress), dirigido por Woldson Bertrand, outro
opositor governamental; o Movimento das Mulheres de Carrefour dirigido
pela feminista Magdala M. Jean Pierre; a Iniciativa da Sociedade Civil (ISC)
dirigida pelo lobista e opositor Rosny Desroches, atuante no Grupo dos 184
quando da queda do presidente Jean Bertrand Aristide em 2004; e,
finalmente, o próprio CNO dirigido pela ativista e opositora Elvire Eugene.
Todas estas organizações e seus dirigentes ativistas possuem dois
traços em comum. Por um lado, praticam sistemática oposição aos governos
de centro-esquerda que dominaram a cena política haitiana nessas duas
últimas décadas. Por outro, suas atividades são financiadas por organizações
públicas e privadas dos Estados Unidos, do Canadá e da Europa Ocidental.
Escudado na posição de seus principais sustentáculos internacionais e
baseando-se nas ilações malevolentes do CNO, Mulet sente-se seguro ao
prometer o acesso ao segundo turno aos dois candidatos que pretendiam
anular a votação. Uma vez mais ele evidencia a inaceitável desenvoltura com
que trata as questões haitianas, intervindo no processo eleitoral e fazendo-se
porta-voz dos coveiros da democracia haitiana.
A humilhante proposta de Mulet coloca a Manigat e a Martelly em
difícil posição. Escassas horas haviam transcorrido desde que foram feitas as
denúncias de fraude. Um manifesto fora assinado e exposto publicamente à
rejeição unânime de dois terços dos candidatos. Que fazer? Há espaço para
recuar? Como proceder para desdizer-se?
Logo caem as máscaras. No Haiti, como alhures, as críticas à
fragilidade do processo eleitoral perde relevância desde que seu resultado
contemple o candidato ungido pelos críticos do sistema. Neste caso, a vitória
seria total, pois a oposição iria com seus dois candidatos ao segundo turno
eliminando, consequentemente, qualquer hipótese de continuidade.
Facilmente convencido por Mulet, Martelly declara, sem rubor, haver
decidido “aguardar os resultados”. Implícito que seus seguidores
abandonarão as manifestações até o veredicto do CEP. Também implícito
fica que eles retornarão às ruas caso Mulet não cumpra com sua promessa.
Para o neófito político haitiano orientado pelo seu Diretor de campanha e
conselheiro do Partido Popular Espanhol, Antonio Sola, o jogo deve ser
rudemente jogado.[152]
Mirlande Manigat – professora universitária, constitucionalista e ex-
primeira dama – não pode permitir-se à fria sinceridade de Martelly. Embora
pretenda chegar ao mesmo destino, deve trilhar caminho distinto. Nesta
caminhada decide transigir com os princípios, com a consciência e com a
moral. Apesar de estar presente à reunião do Hotel Karibe, inclusive fazendo
pronunciamentos públicos defendendo a anulação da eleição, Manigat alega
que não assinou o documento e por esta razão com ele não se considera
comprometida. Ao fazer com que o formalismo transcenda o conteúdo,
Manigat pretende simplesmente encontrar uma explicação aceitável para uma
ação condenável.
Abandonados por Manigat e Martelly menos de 24 horas após a
adoção do manifesto, os demais dez candidatos signatários mostram surpresa
e indignação. Ainda mais que o texto adotado foi redigido pelos assessores de
campanha de Martelly, inclusive com sugestões de Mirlande Manigat.
Desce a cortina de mais um lamentável espetáculo político. Preferia
pensar que, ausentes as ações da Comunidade Internacional, a política
haitiana já era surrealista. Com a nossa presença sequer o real maravilhoso de
Alejo Carpentier poderia dar conta.
A Comunidade Internacional, no entanto, pretendia ir além. Para
convencer aos membros do CEP a jogar o novo jogo, Mulet os convoca,
como havia feito em crises anteriores e continuará fazendo posteriormente,
para uma reunião na sexta-feira, 3 de dezembro de 2010.
Tendo previsto um encontro com os principais partidos e coalizões
políticas que concorreram no primeiro turno, a realizar-se às 10 horas da
manhã no complexo de La Vilatte, os conselheiros do CEP são avisados pelo
presidente, Gaillot Dorsainvil, para chegarem mais cedo para uma reunião
com Mulet.
Quando a conselheira Ginette Chérubin chega para o encontro com os
partidos políticos é advertida que todos os conselheiros permanecem em
reunião com Mulet no salão privado. Como a Reunião de Cúpula se
prolongara e decidida a tomar conhecimento da trama, ela ingressa no
recinto.[153] Eis o seu relato:

“Je pénètre dans la salle et découvre un Edmond


Mulet défiguré, méconnaissable, rouge comme une
tomate et, debout, en instance de départ. Quelques
membres du CEP également debout. D`autres à demi
assis, prêts à se lever. Le Directeur General du CEP
[Pierre-Louis Opont], en cette même posture mais,
furieux comme si on venait de lui jeter à la face ce
que Casssagnol avait dit au bœuf. Mulet et Opont
sont comme sur le ring. La tension est extrêmement
élevée.
Curieuse de savoir ce qui valait une telle atmosphère,
je m`informe:
- Bonjour ! Mais, qu`est-ce qui se passe ?
Pierre-Louis Opont – au bord d`une syncope vu son
état d`indignation commence à m`expliquer. Je suis
sidérée. Mulet, embarrassé, essaie de l`interrompre.
Mais les Conseillers ne lui donnent aucune chance de
s`exprimer. Chacun d`eux place son mot
d`indignation. L`affaire semble vraiment grave. Pour
la première fois, sur mon parcours politique, j`assiste
– indirectement mais encore sur le vif – à une séance
où l`étranger, sans mâcher les mots, s`arroge le droit
d`intimer des ordres à des Représentants officiels de
l`Etat. Je n`évoque pas d`instructions dissimulées,
comme dans le cas de Janet Sanderson, aidée de son
homologue Gossetti était venue, en 2009, faire son
apprentissage de satrape. Non. Je parle
d`interventions avec forceps. Ce jour de décembre
2010 que, jamais, je n`oublierai, le CEP a purement
et simplement reçu des instructions claires, strictes et
formelles. Injonctions directes, saillantes, cinglantes.
Un briefing général m`en est fourni sur l`heure par
Opont. Plus tard il m`en fournira d`autres détails, en
présence des huit Conseillers qui les confirmèrent. Le
dialogue historique que voici est une fidèle
reproduction du violent échange tenu à « La Villate »
entre Edmond Mulet et Pierre-Louis Opont. Celui-ci
m`a, lui-même, autorisée à en reporter les propos :
« Mulet :
- Je suis désolé pour ce que je vais vous dire. Je ne
vais pas parler en mon nom personnel. Mais, au nom
de l’ensemble de la Communauté Internationale.
Pause.
- Comme vous le savez, nous sommes très
préoccupés par les résultats des élections…
Pause.
- Nous voulons vous dire que nous n’accepterons pas
que M. Jude Célestin soit présent au deuxième tour
du scrutin, voire qu’il soit gagnant au premier tour !
Opont :
- Mais, Monsieur Mulet, nous n’avons même pas fini
de recevoir les procès-verbaux des différentes
régions !
Mulet :
- Oui. Mais, tout le monde connait les résultats. Et
vous allez en porter la responsabilité !
Gaillot Dorsinvil:
- Non. Non. Je n’accepte pas que vous nous
menaciez, M. l’Ambassadeur !
Leonel Raphaël et Laurette Croyance abondent, dans
le même sens.
Opont :
- M. Mulet, étant donné que ni le Directeur Général
du CEP, ni les Conseillers ne réalisent la tabulation
des votes, pourquoi ne demandez-vous pas cela aux
deux techniciens étrangers qui accompagnent le
CEP , Alain Gauthier et Roly Davila, d’exécuter vos
ordres ?
Mulet :
- C’est n’est pas à moi de le faire. Mais au CEP.
C’est la responsabilité du CEP.
Opont :
- Pas la peine d’insister pour ce qui n’est pas possible.
Le Directeur Général n’agira pas au niveau du CTV.
Une seule et unique solution vous reste, si vous tenez,
à tout prix, à changer les résultats à votre convenance.
Tous de regarder Pierre-Louis Opont.
Mulet :
- Quelle est cette solution ?
Opont :
- Priez Dieu !
Réponse de Mulet qui se met debout :

- La conversation a dépassé les bornes…

Raramente diálogos entre representantes da Comunidade


Internacional e interlocutores oficiais haitianos alcançaram tamanha
dramaticidade e, sobretudo, vieram à luz do dia. Não fosse a coragem de
Ginette Chérubin, o escândalo de La Vilatte jamais teria sido revelado. Ele
desvenda a leviana e imoral atitude do Representante das Nações Unidas ao
falar em nome da Comunidade Internacional.
Como imaginar construir minimamente um sistema democrático no
Haiti atuando dessa forma? O que fazem as jovens democracias latino-
americanas nesta empreitada? O Brasil, cujo representante em Porto Príncipe
havia até então se conduzido com firmeza e dignidade, concordava com o
golpe eleitoral protagonizado por Mulet?
Não há como discordar de René Préval quando, colocado perante à
ratificação da eleição de um candidato imposto pelos Estados Unidos por
meio da Comunidade Internacional, ele se pergunta: “Dans ce cas, pourquoi
avoir organisé des élections? »
A atitude honrada dos conselheiros do CEP ficará na História,
contudo sua resistência será minada. Logo a seguir Mulet encontrará caminho
livre para agir a seu belprazer.
Em 12 de abril de 2013, em entrevista ao jornal haitiano Le
Nouvelliste, o então conselheiro político do presidente Préval e
posteriormente conselheiro especial do presidente Martelly [sic], Joseph
Lambert, indica que Jude Célestin havia vencido as eleições no primeiro
turno com 51,8 % dos votos. Segundo Lambert,

“Jude avait effectivement gagné. Je l`ai d`ailleurs


écrit dans mon livre. Nous nous sommes réunis et
nous avons réalisé que quelque chose allait se passer.
Michel Martelly, en bon intelligent, a piraté le
pouvoir. Quand Madame Manigat a réagi, c`était bien
trop tard. »

Como poderia prosseguir neste processo de sabotagem de eleições


cuja realização havíamos imposto, organizado, financiado, controlado,
inclusive com a presença de uma importante Missão de Observação Eleitoral
OEA/Caricom? Qual sentido tinha esta pantomima?
Foram tensos os dias que se seguiram. Todos aguardavam o resultado
do primeiro turno. Quando finalmente ele foi divulgado pelo CEP na noite de
7 de dezembro as ruas de Porto Príncipe estavam desertas. O telefone sem fio
funciona perfeitamente no Haiti. A população habituada a ler as entrelinhas
das recorrentes crises de poder, obedece religiosamente aos oficiosos toques
de queda. Com uma participação que não alcançava um quarto do eleitorado,
Mirlande Manigat recolhia 31,37% dos votos, Jude Célestin 22,48% e Michel
Martelly 21,84%. Excluindo os votos brancos, nulos e abstenções, nota-se um
desencanto do eleitorado, pois a participação alcança apenas 22,7%. Cabe
lembrar, que este percentual foi calculado pelo CEP segundo o total dos
potenciais eleitores. Todavia, como ressaltado precedentemente, a lista
eleitoral não estava depurada. Portanto, segundo a projeção feita
anteriormente, devemos calcular a efetiva participação deduzindo 6,1% do
total dos inscritos. Com esta ressalva, assim se apresentam os resultados
oficiais do primeiro turno.
Figura 13 - Eleição presidencial novembro 2010 (votos válidos - 1º
Turno)

Votantes registrados 4.712.693


Mirlande Manigat 336.878
Jude Célestin 241.462
Michel Martelly 234.617
Demais candidatos 258.229
Fonte: Conselho Eleitoral Provisório
Percentualmente, os votos válidos são assim distribuídos:
Figura 14 – Repartição dos votos

Fonte: Elaborado pelo autor segundo resultados oficiais do CEP

Durante o restante da noite o silêncio foi perturbado pelo crepitar de


armas leves e de metralhadoras.
Ao amanhecer a região metropolitana de Porto Príncipe encontrava-se
deserta. Barricadas surgiram em vários pontos da capital. Os novos donos das
ruas eram jovens, embora agressivos, pareciam não dispor de armas. O país
parou. Haiti mergulhou de vez na tensão e no medo. Fui informado de que
nenhum membro da CI ousava sair de sua residência. Os ministros
desapareceram. Tanto a Polícia Nacional Haitiana quanto as tropas de
Minustah brilhavam por sua ausência. Préval encontrava-se em seu domicílio
privado praticamente sem mobilidade.
Ao final do dia recebi o convite para participar, na manhã seguinte, de
reunião do Core Group convocada por Préval no local que servia de
escritório a Mulet, localizado na base logística (Log Base) da Minustah,
localizada junto ao aeroporto.
Ao amanhecer do dia 9 a situação permanecia idêntica e Porto
Príncipe totalmente bloqueado. Como não dispunha de escolta, guarda-costas
e há muito havia dispensado meu motorista, combinei com o embaixador Igor
Kipman que iria a sua residência e dali partiríamos em sua camionhonete
blindada, sob proteção dos fuzileiros navais brasileiros, em direção ao local
da reunião. Esperei ouvir dele a oferta de fazer com que os fuzileiros navais
fossem buscar-me. Como não a recebi, tampouco a solicitei. A proteção
aproximada pertence ao embaixador e seria infringir regras estendê-la a quem
não gozava desse direito. Assim, deveria arriscar-me a ir só ou não participar
da reunião.
Coerente com a tese que sempre defendi, ou seja, o Haiti, felizmente,
não é palco de uma guerra civil e menos ainda se constitui em ameaça
internacional, ausentes atos violentos de natureza política tais como
atentados, bombardeios e massacres, não pensei duas vezes e embarquei no
meu veículo. Deste havíamos retirado há muito, por precaução, o emblema da
OEA. Somente dispunha de placas OI (Organização Internacional) sem outra
precisão.
Calculei que o trajeto de Juvenat a Bourdon era de aproximadamente
quatro quilômetros. A residência do embaixador encontra-se logo atrás da
histórica sede do escritório do primeiro ministro, cujos jardins estavam
ocupados por desabrigados do terremoto.
Pude sair sem problemas do quarteirão do Hotel Karibe. Quando
alcancei a Estrada de Canapé Vert – uma das artérias que une Pétion-Ville a
Porto Príncipe – dobrei à esquerda para subir em direção à pequena cidade.
Não havia nenhum veículo circulando e as poucas pessoas com quem cruzei,
preparavam pneus, tábuas e galhos para colocar fogo e improvisar barreiras.
Ao avançar logo me deparei com a estrada completamente bloqueada.
Continuei rodando em direção a barricada. Ao aproximar-me identifiquei um
veículo da organização Médicos Sem Fronteiras, estacionado em frente à
barreira. Seus dois ocupantes dialogavam com os manifestantes tentando
convencê-los a deixá-los cruzar o obstáculo. Após palavras, gestos e gritos,
decorridos alguns minutos, fez-se um estreito espaço e eles puderam transpor
a barreira, contornando-a e passando sobre a calçada.
Atento ao desfecho da negociação, eu imediatamente colei meu
veículo ao deles, pretendendo aproveitar a mesma passagem. Bruscamente os
manifestantes impediram-me. Identifiquei-me e argumentei que me dirigia a
uma importante reunião política e que era de seu interesse que permitissem
minha passagem. Após alguns minutos de confabulações, autorizaram e
inclusive logo me auxiliaram na difícil manobra. Havia um estreito espaço
entre uma árvore e o muro que marcava a calçada. Por ali deveria passar.
Como o veículo dos médicos conseguiu, não havia razão nenhuma para que
também não o fizesse. Após algumas manobras, atravessei a barreira e
prossegui viagem.
Ziguezagueando entre pneus em chamas e passando por outras
barreiras improvisadas, logo alcancei Pétion-Ville. A seguir iniciei a descida
para Bourdon pela estrada Pan-Americana. Repentinamente, após uma curva,
uma imponente barreira surgiu. Para minha surpresa, policiais haitianos
estavam desfazendo-a e conversando animadamente com manifestantes. Com
o auxílio dos policiais, pude contorná-la, subindo novamente na calçada. Sem
mais percalços, finalmente alcancei a residência do embaixador brasileiro.
Soube posteriormente que uma vez afastados os policiais que
permitiam a circulação, o bloqueio era refeito. Logo adiante os manifestantes
deram-se conta do proveito que poderiam extrair da situação. A partir de
então, os motoristas que se aventurassem nas ruas da zona metropolitana,
podiam transpor as diferentes barreiras desde que pagassem um pedágio. Nos
dias seguintes os deslocamentos passaram a ter uns custos inesperados,
compensados pela ausência de engarrafamentos e pelo aumento da
segurança... Lições haitianas.
Informei a meus interlocutores sobre as condições das ruas. Estava
tranquilo. Nunca me senti ameaçado ou em perigo. Embarcamos na
caminhonete blindada, juntamente com fuzileiros fortemente armados, e
partimos em direção a Porto Príncipe.
Após encontrar alguns bloqueios, foi decidimos deixar de lado as
principais artérias. Percorremos pequenas ruas e vielas alcançamos a Avenida
de Delmas – mais importante elo entre Pétion-Ville e a capital. Antes de
atingirmos uma barreira que bloqueava completamente a via, soou o celular
de Igor. Era Mulet informando que ninguém do Core Group conseguia
deslocar-se. Inclusive Préval não podia deixar sua residência. Concluindo,
anunciava a suspensão sine die da reunião.
Sem alternativas, decidimos retornar à residência. No trajeto Igor me
propôs: “Já que Préval não pode sair de casa, por que não iríamos até ele? Se
o presidente da República deseja ver-nos, devemos fazer todos os esforços
para satisfazê-lo”.
Concordei com entusiasmo e telefonei a Bellerive. Logo a seguir este
confirmou que Préval nos aguardava. Disse ainda que também ele participaria
da reunião. Partimos em direção à estrada de Kenscoff.
Antes de alcançar a residência de Préval há um cruzamento com outra
estrada que segue paralelamente à montanha. Nela uma grande barreira
impedia a passagem. Notamos que além de civis, havia policiais. Os
fuzileiros navais desembarcaram com suas armas engatilhadas. Os policiais
se juntaram a eles no trabalho de remoção de alguns obstáculos para permitir
nossa passagem.
De repente ouvi o zumbido de balas que ricocheteavam em algo
metálico. Entreolhamo-nos. Igor, com sua calma olímpica, observa: “Não há
nada a temer”.
Um policial haitiano com seu fuzil engatilhado afastou-se do grupo e
passou correndo ao lado da caminhonete. Subiu no barranco ao lado da
estrada e desta posição efetuou vários disparos. Os tiros prontamente
cessaram. Retomamos a viagem e alcançamos a residência de Préval,
fortemente guarnecida, inclusive por soldados da Minustah.
Como previsto, Bellerive juntou-se a nós e começamos a fazer um
balanço do que havia ocorrido nas últimas horas e como se poderia deslindar
a situação. Préval aparentava calma. Tanto Igor como eu mais ouvíamos do
que falávamos. Bellerive estava agitado. Segundo ele, a atitude de Mulet era
um incentivo aos manifestantes. Não deixava de ter razão. Indignado com o
que estava ocorrendo, Bellerive sugere que Préval solicite a Ban Ki-moon a
substituição de Mulet por outro Representante. Não se tratava de uma
expulsão, mas de um passo amigo que obrigasse Mulet a deixar o Haiti.
Finalmente Préval propõe convidar um grupo de eminentes
personalidades para constituir um Grupo de Amigos do Haiti e mediar a crise.
Concordamos com a ideia. São referidos os nomes de Michelle Bachelet (ex-
Presidente do Chile), João Clemente Baena Soares (ex-Secretário Geral da
OEA, muito respeitado, pois sensível e profundo conhecedor do Haiti) e
Lionel Jospin (ex - primeiro ministro socialista francês que havia participado
de missões ao Haiti no âmbito do Clube de Madri). Préval deixa em aberto a
possibilidade de incluir um ou dois nomes suplementares no Grupo.
Ao encerrar a reunião, Préval se dirige a Bellerive e lhe diz: “En tout
état de choses, je n`ai pas pu écouter ce que tu m`a suggéré au sujet de
Mulet. »
Despedimo-nos e fui informar Insulza e Granderson.
A reação de Insulza a proposta de Préval foi positiva. O veneno
destilado por Mulet e seus cúmplices, todavia, já havia surtido efeito. Assim,
tive o desprazer de conhecer o conteúdo das críticas por Insulza. À
indignidade dos insultos adicionava-se a covardia dos autores que utilizavam
intermediários para me atingir.
Sem que eu soubesse – tampouco Igor – na véspera em Washington o
Core Group local havia sugerido igualmente a constituição de um Grupo de
Amigos nos moldes proposto por Préval. Agora, quase simultaneamente, em
Porto Príncipe, surge similar proposta em reunião na qual somente eu e o
embaixador do Brasil havíamos participado com o presidente e o primeiro
ministro haitiano. Logo, tanto os Estados Unidos quanto Mulet interpretaram
que se tratava de uma manobra brasileira para conceder sobrevida a Préval,
portanto ela deveria ser torpedeada. Assim o foi.
Já no dia 10, em reunião na sede da OEA, em Washington, os Estados
Unidos recuam e colocam em dúvida a utilidade da fórmula do Grupo de
Amigos. A partir dessa reviravolta não havia como insistir em mediação.
A maliciosa interpretação dos Estados Unidos e de Mulet foi
respaldada por Insulza. Ao contrário do que havia afirmado anteriormente,
tampouco contava a posição de Colin Granderson. Ocorre que este apoiou
nossa iniciativa, inclusive sugerindo que ao Grupo de Amigos a ser
constituído fosse adicionada uma personalidade integrante da Caricom.
O Quai d`Orsay foi consultado por Jospin. Além de opor-se, a França
proibiu o eventual financiamento da União Europeia ao Clube de Madri para
viabilizar a possível missão. Uma vez mais, o Clube de Madri revelou ser o
que efetivamente é: um mero utensílio de instrumentalização da política
exterior de certos países da Europa Ocidental.
Soube que Michelle Bachelet não estava disposta a se envolver na
crise. Somente Baena Soares respondeu positivamente. Evidentemente sua
condição de brasileiro reforçava a teoria do nosso suposto complô.
Ao invés de utilizarem o modelo Grupo de Amigos conforme sugerido
inicialmente pelo Core Group de Washington, com a grande vantagem de
que ele também havia sido proposto por Préval e não imposto pela
Comunidade Internacional, o Core Group de Porto Príncipe preferiu
torpedeá-lo, pois contrariava sua estratégia de acuar Préval. Não importavam
as interpretações maliciosas e mentirosas sobre o meu suposto papel. Na
verdade não tive nenhum a não ser o de demonstrar um mínimo de coragem e
dignidade acompanhando a Igor à reunião com Préval e Bellerive.
A desconfiança, os subterfúgios e a má-fé de alguns atores
internacionais impediram que se buscasse serenamente uma solução para a
crise. O objetivo estava cada vez mais claro: dobrar Préval. Nada que dele
viesse seria levado em conta. Mesmo que para isso fossem disseminadas
versões disparatadas, como a que acusava o Brasil e a mim uma estratégia
autônoma no Haiti – frontalmente oposta a dos Estados Unidos. Ora, desde
julho de 2004, tanto em Brasília quanto em Porto Príncipe, uma das maiores
preocupações dos diplomatas brasileiros era a de afinar seus violões com os
dos Estados Unidos.
A decisiva participação brasileira na Minustah militar foi tomada por
decisão de Lula acatando solicitação, entre outras, do Presidente Bush. Em
todas as reuniões bilaterais entre os dois países, o Brasil sempre elevou a
questão haitiana a lugar de destaque e como prova de sua aproximação com
os Estados Unidos. Eu mesmo publiquei, em 11 de fevereiro de 2010, um
artigo de opinião no jornal Folha de S. Paulo sob o título invocador “Haiti,
ponto de encontro das Américas”. Nele não somente mencionava a
responsabilidade especial do Brasil e dos Estados Unidos para o deslinde da
crise, mas igualmente concluía que: “o Haiti deveria ser o ponto de encontro
de nossos desencontros [das Américas], atribuindo outro sentido à expressão
Novo Mundo”.
Imaginar, nestas condições, que haveria uma polêmica entre os dois
países, ainda mais incentivada por mim, como alguns atores bradavam em
Washington, Porto Príncipe e alhures, constituía uma inverdade e uma
primária agressão aos fatos.
Convenci-me de que a sugestão de Igor de nos reunirmos com Préval
havia sido para o Core Group haitiano o grande pecado cometido. Estava
rompido o isolamento que a Comunidade Internacional impunha ao
presidente. Este era o cerne do problema. Como explicar de outra maneira o
fato de que eu pude sozinho percorrer vários quilômetros, atravessando
barricadas, ao passo que os embaixadores representando os Estados Unidos –
protegidos por marines – da França com seus soldados e Mulet com 8 mil
militares e mais de dois mil policiais da Minustah a sua disposição, fossem
obrigados a se encerrar em seus abrigos?
Com estas impressões, deixei a residência de Préval observando os
militares da Minustah que lá estavam para protegê-lo. Não pude afastar de
meu espírito a ideia de que fossem eles, ao mesmo tempo, seus carcereiros.
Outra interpretação possível seria a preguiça e o desinteresse coletivo
da maioria dos integrantes do Core Group. Não pretendo minimizar o papel
da primeira na História política da humanidade. Sei que a inação constitui
elemento central das relações humanas e também das internacionais.
Tampouco ignoro o possível desinteresse profissional e político de alguns
atores. O que sempre me chamou a atenção, porém, foi seu caráter
ideológico. Não somente no Core Group, mas também de uma maneira geral
na comunidade diplomática que opera no Haiti. Muito raramente encontrei
neste meio um humanista. Progressista ou de esquerda, praticamente
impossível. Como se fora requisito indispensável para trabalhar no Haiti
comungar com ideias da direita, se possível a mais retrógrada. Convivi com a
permanente e desagradável impressão de que o povo do Haiti não tinha sorte
com a maioria dos diplomatas e funcionários internacionais que o mundo lhe
enviava. As exceções foram aqui referidas tais como os brasileiros Paulo
Cordeiro e Igor Kipman; o chileno Marcel Young; o cubano Ricardo García
Nápoles; o dominicano Ruben Silié Valdez e o alemão Jens Peter Voss.
O Core Group praticava abertamente uma espécie de diplomacia
coercitiva. Incentivado pelas principais potências, escudado pelas tropas da
Minustah e com atuação decisiva do Representante do Secretário Geral da
ONU no Haiti, os resultados não poderiam tardar.
Entre os instrumentos de pressão utilizados se sobressaía a ameaça de
suspensão de visto para ingresso nos Estados Unidos. O próprio embaixador
americano comunicou a Bellerive que seu visto seria extinto dia 7 de
fevereiro de 2011, data definida pelos Estados Unidos para que Préval
deixasse a presidência da República. Préval, no entanto, vivia a situação mais
delicada. Elisabeth Delatour, sua atual esposa, mantinha residência nos
Estados Unidos propiciando que dois de seus filhos lá estudassem.
Naqueles dias tensos o calcanhar de aquiles de Préval, segundo
testemunho de vários interlocutores, era sua própria esposa. A CI, ciente da
situação, explorava perfidamente o drama familiar vivido por Préval. Diante
de tantos e temíveis adversários, o que verdadeiramente surpreendia era sua
resistência.
Passaram-se os tensos dias e finalmente, no início da semana seguinte,
o Core Group reuniu-se novamente na residência de Mulet. A proposta de
constituição do Grupo de Amigos feita em Washington e por Préval já estava
devidamente enterrada sob sete palmos de terra. Mulet, todavia, pretendia
saborear sua vitória. Assim, solicitou que Igor e eu relatássemos nosso
encontro com Préval e Bellerive. Igor ofereceu-me a palavra e tentei ser o
mais sintético e fiel possível. Tudo em vão. Olhares cúmplices eram trocados.
Sorrisos irônicos esboçados.
A sorte já estava lançada, pois eles haviam decidido transformar a
Missão de Observação da OEA/Caricom em Missão de Recontagem dos
votos. Ou seja, descartariam o CEP e ocupariam o Centro de Tabulação dos
Votos.
Sequer é levada em consideração, a começar por Préval, a sugestão da
conselheira Ginette Chérubin propondo a formação de uma Comissão
Especial de Verificação (CEV), absolutamente independente do Executivo,
composta exclusivamente por personalidades haitianas. O nacionalismo e a
não intervenção estrangeira subjacente à formação desta CEV não estão na
ordem do dia. Serão os estrangeiros, e exclusivamente eles, a definir qual
seria a vontade do eleitor haitiano.
Como já enfatizado, técnicos estrangeiros, contratados pelo Pnud,
eram os responsáveis pela contagem de votos. Isso não bastava. Era
necessário mudar o resultado do primeiro turno. A única possibilidade
consistia em anular os resultados de determinadas urnas favoráveis a
Célestin. Assim, ele retrocederia ao terceiro lugar, ao passo que o candidato
ungido pela Comunidade Internacional participaria do segundo turno
juntamente com Mirlande Manigat.
Colin Granderson, o correto chefe da MOE, foi obrigado a a se
desdizer e aceitar posições que contrariavam frontalmente o que ele e seus
observadores haviam constatado. Um dia explodiu e me disse que renunciaria
e retornaria a sua Trinidad e Tobago natal. Após uma longa conversação,
pude fazer com que ele melhor avaliasse o extraordinário impacto que teria
sua demissão. Creio que contribuí para que permanecesse no Haiti. Hoje não
estou plenamente convencido de que fiz o certo.
Não havia muito a fazer no seio da OEA. No início de dezembro
Insulza telefonou-me para queixar-se das críticas provenientes de Porto
Príncipe – o seu Secretário Geral-Adjunto era um dos mais atuantes porta-
vozes – segundo as quais eu tinha como estratégia comandar a MOE
OEA/Caricom dificultando, assim a unidade da Comunidade Internacional.
Como todos meus esforços visava unicamente a reforçar a debilitada
posição de Colin Granderson, enviei a Insulza um resumido Relatório
informando sobre os últimos acontecimentos.
Lembrava que havia no Haiti uma nítida divisão de tarefas no seio da
Comunidade Internacional. Nela o papel das Nações Unidas restringia-se, no
caso das eleições, à logística e à segurança. Em seguida enumerava em uma
lista as principais usurpações de Mulet:
a) as Nações Unidas haviam adotado como se sua fosse a falsa
pesquisa de boca de urna do CNO. A divulgação desta informação, de seus
supostos resultados parciais e tendências de voto na mesma noite da
contenda, provocam uma grave crise, colocando o CEP e a OEA/Caricom em
incômoda posição.
b) Mulet recebeu dois candidatos da oposição que estiveram à frente
do boicote eleitoral em sua própria residência no dia posterior à votação,
dando a impressão de ser deles o porta-voz.
c) Mulet deslocou-se pessoalmente ao Centro de Apuração dos votos.
Tal iniciativa pode ser interpretada – e de fato foi – como uma forma de
pressão.
d) Mulet anunciou que Canadá e Estados Unidos estão dispostos a
anular os vistos de entrada e de residência dos membros do CEP caso estes
não se dobrem às exigências da CI. Trata-se de vergonhosa chantagem, uma
que muitos membros do CEP possuem familiares naqueles países.
Finalmente, salientei que a OEA e a Caricom haviam deslocado
observadores ao Haiti em agosto para acompanhar o processo desde seu
início. Elas dispunham de condições de fazer a pesquisa de boca de urna,
observar o Centro de Apuração dos votos, extraírem suas próprias conclusões
e fazer recomendações. Seu trabalho, no entanto, estava sendo
sistematicamente desrespeitado por Mulet.
Concluindo, sugeri que Insulza telefonasse a Ban Ki-moon exigindo
que seu Representante Especial no Haiti permitisse que a MOE
OEA/Caricom exercesse seu trabalho sem nenhuma interferência. Foi inútil.
Insulza contenta-se em solicitar que Granderson – caso este concordasse –
falasse com Mulet pedindo-lhe que respeitasse a divisão de tarefas
previamente acertada. No caso em que Mulet continuasse atuando nos temas
eleitorais, que o fizesse em acordo com as posições defendidas pela OEA.
Sobre as outras sugestões, posteriormente decidiríamos.
Constatei que a OEA estava curvada às Nações Unidas. Tentei esticar
a corda o mais que pude e agora me dou conta que pouco pude. O jogo estava
jogado e Mulet dispunha de campo livre para agir como bem entendesse.
Em meados de dezembro o Core Group discute a publicação de um
texto endereçado a todos os candidatos e a seus seguidores, preconizando a
não violência e o respeito ao trabalho dos agentes humanitários no combate à
epidemia de cólera. Durante os debates sugeri que o apelo mencionasse “tant
les Haïtiens que les étrangers” pois era de conhecimento notório que estes
participavam ativamente da campanha eleitoral.
Minha sugestão serviu como uma luva ao intrometido embaixador da
Espanha – Juan Fernández Trigo –, protetor do trabalho de Sola no comando
da campanha de Martelly. Irado, ele me pergunta a que estrangeiros fazia
alusão. Simplesmente respondi, com ironia, que os estrangeiros referidos
“Étaient tous ceux qui ne disposaient pas de la nationalité haïtienne. »
Perdendo a compostura, Trigo informa então que a Espanha
“N`accepte pas les menaces publiques proférées par certains Ministres du
Gouvernement Préval, préconisant déclarer a Sola persona non grata. » [154]
Trigo não deveria preocupar-se pois a resistência de Préval estava
minada. Jude Célestin não protestava e sequer esboçava contrariedade
publicamente. A Inité aos pedaços, não definia uma estratégia para conter
suas divisões internas. A pressão da Comunidade Internacional surtia efeito.
Após a frustração da proposta do Grupo de Amigos, mudou também a
posição de Igor Kipman. Retornou ao silêncio reservado que sempre se
impôs. Percebi que Brasília não pretendia – como nunca pretendeu – colocar
qualquer grão de areia que viesse perturbar seus interesses estratégicos. O
qüiproquó recente havia servido de lição.
Para o Brasil a atual crise haitiana era simplesmente mais um episódio
no longo rosário a que o país nos havia acostumado. Ademais, era o Haiti e
seus dilemas que compunham parte de nossa pauta de política externa.
Jamais, contudo, a ponto de reorientá-la ou de colocar em questão nossas
escolhas estratégicas e nossos pontos cardeais. O Haiti era o que sempre foi:
um meio para alcançar uma maior projeção internacional. Nunca um fim em
si mesmo. Não interessava ao Brasil resolver a crise haitiana se o preço a
pagar fosse se indispor, mesmo que minimamente, com os Estados Unidos.
Em entrevista sobre a crise eleitoral haitiana concedida à Folha de S.
Paulo e publicada sob o sugestivo título “Brasil não será alto-falante sobre
direitos humanos”,[155] Marco Aurélio Garcia não deixa pairar qualquer
hesitação sobre a nova postura do país. Apesar de ponderar que o Relatório
da OEA “não pode ser entendido como uma coisa imposta, [a solução da
crise] passaria pela aceitação do Relatório [pelo Governo haitiano]”.
Garcia ousa aprovar o Relatório da OEA, considerando-o “um retrato
bem aproximado [da votação]”, embora reconheça não se tratar “de um
retrato completo, e dificilmente poderia sê-lo, porque foi feito por
amostragem”. Como os demais membros da Comunidade Internacional a
pressionar as autoridades haitianas, ele monstra apreensão em transferir a
responsabilidade ao CEP, pois “achamos que de qualquer maneira isso passa
pela avaliação do Conselho. Se o Conselho considerar que o Relatório é
procedente, ele é a instância. Se não considerar aí cria um impasse.
[Todavia,] se eles aceitarem é uma boa solução”.
Pela primeira vez na história do Haiti haveria segundo turno em
eleições presidenciais. Ainda mais inusitado, porém, foi constatar o
extraordinário grau de volubilidade do eleitor haitiano. Com efeito, auxiliado
decisivamente pelo Core Group e pelas jovens democracias de centro-
esquerda da América Latina que a ele se associaram, pela primeira vez desde
a queda de Jean-Claude Duvalier, em 1986, as forças populares haitianas não
somente perdiam a batalha presidencial como sequer participariam do
segundo turno.
Graças à bizarra aliança entre os setores mais conservadores do
Partido Republicano dos Estados Unidos, a administração democrata sob
influência dos Clinton, os governos de centro-esquerda da América do Sul e
os partidos políticos e movimentos antiimperialistas latino-americanos, a
imberbe democracia haitiana será sacrificada no altar da realpolitik.
Lutava para convencer-me do suposto comportamento errático do
eleitorado haitiano. Conservava ainda a esperança de evacuar a decisiva
responsabilidade da Comunidade Internacional, da OEA e de meu país no
golpe eleitoral que deslindaria a crise. Inutilmente.
Vivíamos o último final de semana antes dos festejos natalinos. Na
segunda-feira, dia 20 de dezembro, teríamos uma derradeira reunião do Core
Group com Préval. Depois dela, a quase totalidade de meus colegas
estrangeiros partiria para seus respectivos países. Eu havia decidido
permanecer em Porto Príncipe. Somente não contava com os incríveis
acontecimentos que seriam desencadeados logo a seguir.
CAPÍTULO XIV – UMA SIMPLES ENTREVISTA

A democracia não se define tanto pela soberania popular e pelo sufrágio universal,
mas bem pela organização de uma competição nutrida por paixões prestes a explodir.
Raymond Aron, Essai sur les libertés

Ao longo dos últimos meses do segundo semestre de 2010, comecei a


me preparar para deixar o Haiti. Já havia reconstituído a coleção de arte
haitiana que havia perdido quando do terremoto e preparava meu retorno ao
Brasil e à Universidade. Muito além do que havia imaginado quando da
aceitação do convite para representar a OEA no país, a experiência havia sido
marcante, profunda, apaixonante, embora igualmente frustrante.
Em meados de novembro, quando interrogado por Insulza sobre
minhas intenções como seu Representante Especial no Haiti, informei-o que
embora pretendesse deixar minhas funções ao cabo de dois anos – que se
completariam em fins de dezembro de 2010 –, pensava permanecer até o final
do processo eleitoral e a posse dos novos eleitos. Insulza concordou comigo e
ordenou que a Secretaria Geral prorrogasse até 31 de março de 2011 a minha
estada no Haiti.
Como professor universitário especializado em alguns temas das
Relações Internacionais, incomodava-me a possibilidade de simplesmente
fazer as malas e retornar ao Brasil sem ao menos tentar extrair alguns
ensinamentos da experiência vivida. Trata-se de típica reação de pedagogo.
Não conseguia afastar de meu horizonte o imaginário e suposto
compromisso.
Pouco a pouco me convenci da necessidade de fazer um balanço sobre
a atuação da Comunidade Internacional no Haiti tal qual a vivenciei ao longo
desses extraordinários dois anos. Ele contribuiria, esperava eu, para auxiliar a
CI a diminuir o percentual de erros – extremamente elevado ao longo da
História – cometido em sua atuação no Haiti. Pensei escrever um artigo
acadêmico. Logo descartei, pois poucas pessoas a ele teriam acesso.
Finalmente decidi conceder uma entrevista a um jornal relatando
minha experiência e a visão do que havia de equivocado no nosso
relacionamento com o país. Faria sugestões para que ao menos não
repetíssemos com tamanha perseverança e desenvoltura os erros do passado.
Faltava ainda encontrar um jornal e um profissional interessados.
Estava com esta preocupação quando apareceu na primeira quinzena
de novembro, na sede da OEA, um jovem suíço do jornal genebrino Le
Temps que estava cobrindo a campanha eleitoral. Arnaud Robert chamava-se
ele. Pareceu-me sério e bem preparado. Após fornecer as informações que ele
buscava sobre o apoio concedido pela OEA à ONI, especialmente a
confecção das Cédulas de Identidade, indaguei sobre o eventual interesse de
seu jornal em uma entrevista de fundo. Ele respondeu positivamente, embora
fosse indispensável consultar o redator-chefe em Genebra.
Escassos dias depois, telefonou-me informando que havia interesse e
marcamos a entrevista para o dia 15 de novembro. Na data acertada, estava
comigo no escritório da OEA, Cristobal Dupouy,[156] o segundo da Missão.
Conversamos durante duas horas. Ao final indaguei: “Il y a quelque chose qui
peut être sauvée de tout ce que je dis ? »
Ele respondeu-me com certo entusiasmo, embora salientasse que era
necessário transcrever e editar. Perguntou-me se gostaria examinar a matéria
antes de sua eventual publicação. Respondi que não: “Je te considère honnête
et bien préparé. Pour cela j`ai pleine confiance. »
A escolha do jornal não fora obra do acaso. Já conhecia sua seriedade
e interesse pelas questões internacionais. Sobretudo, residi por quase 15 anos
na cidade de Calvino, na qual fiz meus estudos universitários. Além disso,
minha primeira esposa e mãe de três de meus filhos são genebrinos e todos lá
residem. De certa maneira, era uma forma de retribuir ao país e à cidade o
tanto que fizeram para a minha formação. Enfim, por abrigar um grande
número de organizações internacionais, inclusive a sede europeia das Nações
Unidas, provavelmente a entrevista seria lida por alguém.
Após uma semana indaguei Arnaud Robert sobre a possível
publicação da entrevista. Ele disse-me que ela estava pronta e que talvez a
publicassem. Nada garantiu e eu tampouco exigi.
Passavam-se os dias e as semanas. A roda-viva provocada pela crise
eleitoral haitiana me absorveu a tal ponto que esqueci por completo da
publicação da entrevista. Nunca mais pensei nela. Talvez tivesse a impressão
de que havia sido algo que deveria ter acontecido e não aconteceu. Não estou
certo disso. Sei que simplesmente apaguei a entrevista da memória.
Cedo na manhã de segunda-feira, 20 de dezembro de 2010, no auge da
crise eleitoral, abri meu correio eletrônico e havia uma mensagem de uma ex-
companheira de vida, Deisy Ventura, que estava temporariamente residindo
em Genebra, onde era professora convidada do Instituto de Altos Estudos
Internacionais e do Desenvolvimento. O título da mensagem era “Saiu”.
Confesso que não entendi. Nos poucos instantes que levaram a operação de
abertura da mensagem, procurei lembrar-me ao que ela poderia referir-se.
Nada me vinha à mente.
Quando a mensagem abriu-se fui informado que na edição daquele
dia havia sido publicada minha entrevista. Lá estava ela com chamada de
capa e um título evocador que não deixava pairar qualquer dúvida sobre seu
conteúdo: “Haïti est la preuve de l`échec de l`aide internationale ».
Antes de conseguir acessá-la, recebi duas mensagens de Deisy em que
ela falava da qualidade e profundidade do texto e do orgulho que ela sentia.
“Trata-se de um dos melhores, lógicos e mais corajosos textos que li sobre
ajuda internacional”. E concluía de maneira premonitória: talvez a OEA não
vá apreciá-lo como deveria”. Quanto mais fluíam os elogios de Deisy, mais
me preocupava...
Logo consegui ler a entrevista e me tranquilizei. Havia tido razão de
confiar em Arnaud. Certamente era um texto jornalístico, embora bastante
longo, cobrindo uma página do jornal. Ele primava por sua clareza. Não
havia sofismas. Apesar de direto, por vezes ríspido, não continha revelações
bombásticas ou acusações pessoais. Não mencionava sequer a crise eleitoral,
pois a entrevista havia sido concedida muito antes de sua eclosão. Era um
texto límpido, propositivo e firme. Agradável de ler, em quaisquer
circunstâncias. Menos, por evidente, no momento de crise aguda pelo qual
passava o Haiti. Poderia ser interpretado como uma inaceitável fissura na
posição da Comunidade Internacional. Assim o foi.
Durante minha permanência no Haiti sempre mantive permanente
contato com os meios de comunicação, não apenas brasileiros e haitianos,
mas também da Alemanha, Argentina, Canadá, Chile, Estados Unidos,
Espanha, França, Itália, México, Portugal, Uruguai, Venezuela, etc. Por vezes
os utilizava para divulgar as ações da OEA. Em outras oportunidades
analisava a situação do país ou tópicos específicos, sobretudo logo após o
terremoto.
Quando tratava de temas globais de interesse da Comunidade
Internacional, jamais escondi minhas dúvidas e reservas com o modelo de
intervenção proposto pelas Nações Unidas, muito especialmente após o
terremoto. Destacava que a natureza do desafio havia mudado radicalmente:
da segurança para a reconstrução. O fazia com cautela e profundidade.
A entrevista concedida a Arnaud deveria ser o fecho de minha
contribuição ao debate sobre os rumos da cooperação internacional no Haiti.
Efetivamente ela fechou o ciclo, contudo não como previa. Ao invés de abrir
uma discussão sobre o tema a entrevista, por um lado, instrumentaliza os
críticos da Minustah e, por outro, deixa a Comunidade Internacional sem
reação. A não ser a tradicional atitude de alguém que, ao não apreciar a
mensagem, aponta sua ira para o mensageiro. Enfim, jamais poderia imaginar
que reflexões construtivas e feitas de boa-fé, embora críticas e contundentes,
fossem causar o impacto que provocou e ser a gota d’água que faltava para
que me obrigassem a deixar imediatamente o Haiti.
Como referi anteriormente, tínhamos previsto uma reunião do Core
Group restrito – ou seja, representantes de países doadores e organismos
internacionais envolvidos com a eleição – com Préval às 11 horas daquela
mesma manhã no anexo que servia de escritório ao presidente, localizado
logo atrás das ruínas do Palácio Nacional.
Com o trânsito caótico que caracteriza Porto Príncipe, costumava sair
com antecedência para os compromissos, dirigindo sozinho a caminhonete da
OEA. Cheguei um pouco antes do horário e fui estacionar o veículo sob as
árvores – buscando proteger-me do inclemente sol – que se encontram na
lateral dos jardins do Palácio. Fiz um pouco de tempo e quando faltavam 10
minutos para o horário marcado, caminhei em direção ao local da reunião.
Então soou meu celular. Era a secretária de Insulza que me chamava
de Washington, informando-me que ele queria falar comigo. Bruscamente
surgiu sua voz irritada: “Ricardo, não dá mais. Sofro demasiadas e contínuas
pressões. O que dizes na entrevista é incompatível com tuas funções. Peço
que saias imediatamente de férias e retorne ao Haiti dentro de um mês para
despedir-te e buscar teus pertences”. Calmamente respondi: “Entendo
Secretário. Assim o farei”.
Não tentei justificar-me ou então declarar que o jornalista havia
desvirtuado minhas palavras como ocorre, seguidas vezes, nas relações dos
políticos com a imprensa.
Quando o Representado assim se manifesta ao Representante, não há
nada a ser feito a não ser o que fiz. Agradeci a chamada e desliguei o celular.
Deisy tinha razão e minha esperança havia se confirmado: alguém havia lido
a entrevista.
Minhas relações com José Miguel Insulza Salinas sempre foram
excelentes e de mútuo respeito. Membro do Partido Socialista Chileno,
professor universitário, obrigado a exilar-se no México em 1973, ele me
parecia talhado para o complexo e delicado cargo. Ainda que por vezes se
irritasse bruscamente – no Chile seus adversários políticos o alcunharam de
Panzer –, suas posições políticas, sua viva inteligência e seu senso de humor
faziam com que eu me identificasse com ele em muitas situações. Soube por
terceiros que ele me considerava alguém “com muita personalidade”. Não sei
se deveria interpretar como um elogio ou como sutil crítica.
Provavelmente nossa única e grande divergência fosse a minha defesa
de um maior papel da OEA no imbróglio haitiano. Ele, ao contrário,
propugnava que deveríamos estar sempre próximos às Nações Unidas,
particularmente do Canadá, Estados Unidos e França. A seu modo Insulza
defendia a tese de alguns setores internacionais, inclusive no seio da OEA,
que consideram que todos aqueles que se envolvem com o Haiti acabam
sendo prejudicados ou, melhor dizendo, “queimados”. Uma longa lista de
exemplos tende a lhes dar razão.
Certa vez, ouvindo o relato que lhe fazia sobre determinado assunto,
impressionado com o entusiasmo com que narrava, ele bruscamente
interrompeu-me e falou: “Ricardo, ao que parece tu gostas do Haiti?”
Surpreso com sua surpresa, respondi:

“Claro. Caso contrário não estaria aqui. Considero-me


útil na medida em que possa defender minhas ideias e
também as que considero ser importante para a OEA.
Confesso, Secretário, que somente estou na OEA
porque ela permite que esteja no Haiti”.

Anteriormente ele já havia sugerido que me transferisse para a sede


em Washington. Sempre respondi com a negativa. Após a publicação da
entrevista não mais foi repetido o convite.
O embaixador Fritz Longchamp – introdutor diplomático da
Presidência – estava aguardando-me na entrada do prédio. Ao conduzir-me à
sala de espera, solicitei que avisasse o presidente Préval que eu queria falar
rapidamente com ele antes do início da reunião.
Ingressei no local onde já se encontravam os demais membros
convocados para a reunião. Com exceção de Igor Kipman, que me abraçou
como sempre o fez, fui saudado friamente pelos demais colegas. Percebi que
a entrevista havia conquistado novos leitores.
Logo a seguir Longchamp veio buscar-me. Acompanhei-o. Quando
estava preste a subir a escadaria que dá acesso ao primeiro andar, onde se
encontram as salas da Presidência, ouvi a voz de Préval que no topo da
escada, com um largo sorriso, me diz: “J`ai lu ton article [sic]. »
Antes que ele pudesse continuar, ao mesmo tempo em que escalava os
degraus, lhe respondi: “Justement, en raison de sa parution je dois
abandonner Haïti. » Ele ficou chocado e ao aproximar-me pediu que
repetisse. Confirmei e relatei o telefonema de Insulza. Préval simplesmente
disse: “Ceci est une catastrophe pour nous ! »
Não creio que tivesse razão. A sorte já estava lançada e a reunião que
ocorreria em instantes era a prova disso. Com efeito, foi exigido que Préval
respeitasse integralmente e em sua plenitude os resultados que a MOE
OEA/Caricom – transformada em instrumento para a recontagem de votos –
deveria apresentar ao final de seu trabalho. Malgrado minha delicada
situação, ponderei que o respeito deveria ser mútuo e que a CI também
deveria inclinar-se a eles. Foi minha derradeira ação ainda com a ilusão de
que a MOE viesse a fazer um trabalho isento e complementar ao CEP.
Com a minha iminente partida certamente Préval perderia um
interlocutor atento ao respeito da legalidade e das instituições haitianas.
Embora não tivesse consciência, contudo naquele momento minha posição
era insustentável. Já estava convencido de que poderia conseguir tão somente
retardar uma derrota previsível e talvez torná-la minimamente digna.
Ao retornar à sede da OEA, preocupado com o frenético desenrolar
dos acontecimentos, imprimi e reli calmamente a entrevista. Ei-la:

Haïti est la preuve de l`échec de l`aide


internationale »
Le Temps: Dix mille Casques bleus en Haïti. A
votre sens, une présence contre-productive…
Le système de prévention des litiges dans le cadre du
système onusien n’est pas adapté au contexte haïtien.
Haïti n’est pas une menace internationale. Nous ne
sommes pas en situation de guerre civile. Haïti n’est ni
l’Irak ni l’Afghanistan. Et pourtant le Conseil de
sécurité, puisqu’il manque d’alternative, a imposé des
Casques bleus depuis 2004, après le départ du
président Aristide. Depuis 1990, nous en sommes ici à
notre huitième mission onusienne. Haïti vit depuis
1986 et le départ de Jean-Claude Duvalier ce que
j’appelle un conflit de basse intensité. Nous sommes
confrontés à des luttes pour le pouvoir entre des
acteurs politiques qui ne respectent pas le jeu
démocratique. Mais il me semble qu’Haïti, sur la scène
internationale, paie essentiellement sa grande
proximité avec les Etats-Unis. Haïti a été l’objet d’une
attention négative de la part du système international.
Il s’agissait pour l’ONU de geler le pouvoir et de
transformer les Haïtiens en prisonniers de leur propre
île. L’angoisse des boat people explique pour
beaucoup les décisions de l’international vis-à-vis
d’Haïti. On veut à tout prix qu’ils restent chez eux.
Le Temps : Qu’est-ce qui empêche la normalisation
du cas haïtien?
Pendant deux cents ans, la présence de troupes
étrangères a alterné avec celle de dictateurs. C’est la
force qui définit les relations internationales avec Haïti
et jamais le dialogue. Le péché originel d’Haïti, sur la
scène mondiale, c’est sa libération. Les Haïtiens
commettent l’inacceptable en 1804: un crime de lèse-
majesté pour un monde inquiet. L’Occident est alors
un monde colonialiste, esclavagiste et raciste qui base
sa richesse sur l’exploitation des terres conquises.
Donc, le modèle révolutionnaire haïtien fait peur aux
grandes puissances. Les Etats-Unis ne reconnaissent
l’indépendance d’Haïti qu’en 1865. Et la France exige
le paiement d’une rançon pour accepter cette
libération. Dès le départ, l’indépendance est
compromise et le développement du pays entravé. Le
monde n’a jamais su comment traiter Haïti, alors il a
fini par l’ignorer. Ont commencé deux cents ans de
solitude sur la scène internationale. Aujourd’hui,
l’ONU applique aveuglément le chapitre 7 de sa
charte, elle déploie ses troupes pour imposer son
opération de paix. On ne résout rien, on empire. On
veut faire d’Haïti un pays capitaliste, une plate-forme
d’exportation pour le marché américain, c’est absurde.
Haïti doit revenir à ce qu’il est, c’est-à-dire un pays
essentiellement agricole encore fondamentalement
imprégné de droit coutumier. Le pays est sans cesse
décrit sous l’angle de sa violence. Mais, sans Etat, le
niveau de violence n’atteint pourtant qu’une fraction
de celle des pays d’Amérique latine. Il existe des
éléments dans cette société qui ont pu empêcher que la
violence se répande sans mesure.
Le Temps : N’est-ce pas une démission de voir en
Haïti une nation inassimilable, dont le seul horizon
est le retour à des valeurs traditionnelles?
Il existe une partie d’Haïti qui est moderne, urbaine et
tournée vers l’étranger. On estime à 4 millions le
nombre de Haïtiens qui vivent en dehors de leurs
frontières. C’est un pays ouvert au monde. Je ne rêve
pas d’un retour au XVIe   siècle, à une société agraire.
Mais Haïti vit sous l’influence de l’international, des
ONG, de la charité universelle. Plus de 90% du
système éducatif et de la santé sont en mains privées.
Le pays ne dispose pas de ressources publiques pour
pouvoir faire fonctionner d’une manière minimale un
système étatique. L’ONU échoue à tenir compte des
traits culturels. Résumer Haïti à une opération de paix,
c’est faire l’économie des véritables défis qui se
présentent au pays. Le problème est socio-
économique. Quand le taux de chômage atteint 80%, il
est insupportable de déployer une mission de
stabilisation. Il n’y a rien à stabiliser et tout à bâtir.
Le Temps : Haïti est un des pays les plus aidés du
monde et pourtant la situation n’a fait que se
détériorer depuis vingt-cinq ans. Pourquoi?
L’aide d’urgence est efficace. Mais lorsqu’elle devient
structurelle, lorsqu’elle se substitue à l’Etat dans toutes
ses missions, on aboutit à une déresponsabilisation
collective. S’il existe une preuve de l’échec de l’aide
internationale, c’est Haïti. Le pays en est devenu la
Mecque. Le séisme du 12 janvier, puis l’épidémie de
choléra ne font qu’accentuer ce phénomène. La
communauté internationale a le sentiment de devoir
refaire chaque jour ce qu’elle a terminé la veille. La
fatigue d’Haïti commence à poindre. Cette petite
nation doit surprendre la conscience universelle avec
des catastrophes de plus en plus énormes. J’avais
l’espoir que, dans la détresse du 12 janvier, le monde
allait comprendre qu’il avait fait fausse route avec
Haïti. Malheureusement, on a renforcé la même
politique. Au lieu de faire un bilan, on a envoyé
davantage de soldats. Il faut construire des routes,
élever des barrages, participer à l’organisation de
l’Etat, au système judiciaire. L’ONU dit qu’elle n’a
pas de mandat pour cela. Son mandat en Haïti, c’est de
maintenir la paix du cimetière.
Le Temps : Quel rôle jouent les ONG dans cette
faillite?
A partir du séisme, Haïti est devenu un carrefour
incontournable. Pour les ONG transnationales, Haïti
s’est transformé en un lieu de passage forcé. Je dirais
même pire que cela: de formation professionnelle.
L’âge des coopérants qui sont arrivés après le séisme
est très bas; ils débarquent en Haïti sans aucune
expérience. Et Haïti, je peux vous le dire, ne convient
pas aux amateurs. Après le 12 janvier, à cause du
recrutement massif, la qualité professionnelle a
beaucoup baissé. Il existe une relation maléfique ou
perverse entre la force des ONG et la faiblesse de
l’Etat haïtien. Certaines ONG n’existent qu’à cause du
malheur haïtien.
Le Temps : Quelles erreurs ont été commises après
le séisme?
Face à l’importation massive de biens de
consommation pour nourrir les sans-abri, la situation
de l’agriculture haïtienne s’est encore péjorée. Le pays
offre un champ libre à toutes les expériences
humanitaires. Il est inacceptable du point de vue moral
de considérer Haïti comme un laboratoire. La
reconstruction d’Haïti et la promesse que nous faisons
miroiter de 11 milliards de dollars attisent les
convoitises. Il semble qu’une foule de gens viennent
en Haïti, non pas pour Haïti, mais pour faire des
affaires. Pour moi qui suis Américain, c’est une honte,
une offense à notre conscience. Un exemple: celui des
médecins haïtiens que Cuba forme. Plus de 500 ont été
instruits à La Havane. Près de la moitié d’entre eux,
alors qu’ils devraient être en Haïti, travaillent
aujourd’hui aux Etats-Unis, au Canada ou en France.
La révolution cubaine est en train de financer la
formation de ressources humaines pour ses voisins
capitalistes…
Le Temps : On décrit sans cesse Haïti comme la
marge du monde, vous ressentez plutôt le pays
comme un concentré de notre monde
contemporain…
C’est le concentré de nos drames et des échecs de la
solidarité internationale. Nous ne sommes pas à la
hauteur du défi. La presse mondiale vient en Haïti et
décrit le chaos. La réaction de l’opinion publique ne se
fait pas attendre. Pour elle, Haïti est un des pires pays
du monde. Il faut aller vers la culture haïtienne, il faut
aller vers le terroir. Je crois qu’il y a trop de médecins
au chevet du malade et la majorité de ces médecins
sont des économistes. Or, en Haïti, il faut des
anthropologues, des sociologues, des historiens, des
politologues et même des théologiens. Haïti est trop
complexe pour des gens qui sont pressés; les
coopérants sont pressés. Personne ne prend le temps ni
n’a le goût de tenter de comprendre ce que je pourrais
appeler l’âme haïtienne. Les Haïtiens l’ont bien saisi,
qui nous considèrent, nous la communauté
internationale, comme une vache à traire. Ils veulent
tirer profit de cette présence et ils le font avec une
maestria extraordinaire. Si les Haïtiens nous
considèrent seulement par l’argent que nous apportons,
c’est parce que nous nous sommes présentés comme
cela.
Le Temps : Au-delà du constat d’échec, quelles
solutions proposez-vous?
Dans deux mois, j’aurai terminé une mission de deux
ans en Haïti. Pour rester ici, et ne pas être terrassé par
ce que je vois, j’ai dû me créer un certain nombre de
défenses psychologiques. Je voulais rester une voix
indépendante malgré le poids de l’organisation que je
représente. J’ai tenu parce que je voulais exprimer mes
doutes profonds et dire au monde que cela suffit. Cela
suffit de jouer avec Haïti. Le 12 janvier m’a appris
qu’il existe un potentiel de solidarité extraordinaire
dans le monde. Même s’il ne faut pas oublier que, dans
les premiers jours, ce sont les Haïtiens tout seuls, les
mains nues, qui ont tenté de sauver leurs proches. La
compassion a été très importante dans l’urgence. Mais
la charité ne peut pas être le moteur des relations
internationales. Ce sont l’autonomie, la souveraineté,
le commerce équitable, le respect d’autrui qui
devraient l’être. Nous devons penser simultanément à
offrir des opportunités d’exportation pour Haïti mais
aussi protéger cette agriculture familiale qui est
essentielle pour le pays. Haïti est le dernier paradis des
Caraïbes encore inexploité pour le tourisme, avec
1700   kilomètres de côtes vierges; nous devons
favoriser un tourisme culturel et éviter de paver la
route à un nouvel eldorado du tourisme de masse. Les
leçons que nous donnons sont inefficaces depuis trop
longtemps. La reconstruction et l’accompagnement
d’une société si riche sont une des dernières grandes
aventures humaines. Il y a 200 ans, Haïti a illuminé
l’histoire de l’humanité et celle des droits humains. Il
faut maintenant laisser une chance aux Haïtiens de
confirmer leur vision.

Ainda na tarde do mesmo dia ouvi rumores sobre as repercussões da


entrevista. Na manhã seguinte não somente ela estava estampada em todos os
meios de comunicação haitianos – as rádios e televisões a liam integralmente
– como também imediatamente associaram sua publicação com a notícia de
que eu havia sido demitido da OEA e estava deixando definitivamente o
Haiti. Como não havia feito nenhuma declaração pública, imaginei que a
informação fora fornecida por Préval – único ciente do teor do telefonema de
Insulza.
Logo a seguir as redes sociais começaram a divulgar o “caso
Seitenfus”. O impacto era imenso, os elogios e os agradecimentos se
multiplicavam como se multiplicavam também as críticas, por vezes
veementes e apaixonadas, à decisão da OEA de exonerar-me.
Logo Albert Ramdin tenta, mentindo deslavadamente, convencer a
opinião pública de que minha partida resulta de uma decisão pessoal e não de
uma iniciativa da OEA. Segundo Ramdin, eu não havia sido afastado, mas
estava simplesmente de licença. Ele confessa, no entanto, que

alguns dos comentários [feitos por mim] foram muito


infelizes nas atuais circunstâncias, no momento em
que a Comunidade Internacional está tentando ajudar
no processo de paz. Pessoal ou academicamente
podemos concordar com algumas afirmações
políticas e econômicas, [contudo] é muito difícil
manter essa posição enquanto funcionário da missão
internacional. Mas essa não é a razão principal da
saída dele. Foi uma coincidência de fatores.[157]

O próprio Insulza vê-se na obrigação de intervir “para frear as críticas


suscitadas em círculos diplomáticos da Europa e do Brasil”. Para minha
decepção informa que “não é verdade que eu pedi sua renúncia; o Senhor
Seitenfus há tempo anunciou que partiria”.
Tentando contemporizar e aproximar sua consciência dos fatos,
Insulza sublinha que, embora não seja o motivo de minha saída, eu “sempre
fiz declarações bastante fortes sobre a distribuição da ajuda no Haiti e fiz ver
a ele que, como Representante da OEA, não é bom que faça essas
declarações”.[158]
Não obstante a ausência de qualquer menção à crise eleitoral, uma vez
que a entrevista havia sido concedida em meados de novembro e buscava
analisar a estrutura e princípios que regem a ajuda internacional ao Haiti, sua
publicação naquele tenso momento provocou impacto inesperado e
desmedido.
Arnaud Robert infomou-me posteriormente que a entrevista havia
batido todos os recordes de acesso da história do jornal. Recebi centenas de
mensagens de leitores. Sobretudo de haitianos da diáspora. A entrevista lhes
trazia um consolo: eles não eram os únicos culpados pelo desastre que se
abatia sobre sua pátria. Surpreendiam-se com minha coragem e chegaram a
ponto de descobrir em mim um “Sonthonax vedivivo”.[159]
O jornal Le Nouvelliste publicou em sua capa de 4 de janeiro de 2011
uma sugestiva charge sob o título:

Figura 15 - Les découvertes de Seitenfus


Um patamar suplementar foi alcançado pela entrevista quando o
Comandante Supremo da Revolução Cubana publica, em 27 de janeiro de
2010, em suas “Reflexões de Fidel”, um artigo extremamente elogioso. Após
afirmar que os Estados Unidos é o “criador da pobreza e do caos” no Haiti,
ele transcreve oito perguntas e suas respectivas respostas de minha entrevista.
Em seguida, informa que há em minhas declarações “verdades lapidares”.
Para concluir, Fidel Castro menciona a ação das brigadas médicas cubanas no
Haiti e declara que “é possível concordar ou discordar de algumas palavras
do brasileiro Ricardo Seitenfus, mas é fato que ele disse verdades
incontestáveis em suas respostas”.
Algumas semanas mais tarde Insulza confidenciou-me com contida
alegria e surpresa que, pela primeira vez desde 1961, quando Cuba foi
suspensa da OEA, Fidel Castro ao mesmo tempo em que criticava
acidamente a instituição, tecia comentários elogiosos a um funcionário da
organização.
Ainda sobre a entrevista, um dos haitianistas mais importantes em
recente e aclamado livro esclarece:
Seitenfus’s remarks hit a nerve. The OAS pulled him
from his position several months early, displeased
with his unflinching critique of essentially every
aspect of international work in Haiti. Many Haitians,
however, applauded and celebrated the controversial
interview, pleased that complaints they had often
made themselves were now being voice by a
prominent in the international community. They
noted that surprisingly few aid workers speak either
French or Kreyòl, and that NGOs are subject to very
little oversight from the Haitian government,
essentially reporting only to their donors. As in the
later yeras of the U. S. occupation, haitian critics also
pointed out that the money spent on salaries and
living expenses for foreign workers could go much
further if it were used to employ people from within
the country. In March 2011, president Préval honored
Seitenfus by naming him a Knight of the Republic of
Haiti. The entire incident, in a way, only confirmed
the continuing distance between the different groups
who all have the same general aim – improving Haiti
– but harbor completely different visions of what that
actually means.”[160]

Por irônico que isso possa parecer, eu era um dos raros que, apesar de
vítima, entendia e aceitava a decisão de Insulza. Seus numerosos e ferozes
críticos não se davam conta de que a entrevista fora utilizada como mero
pretexto para afastar-me, pois desde o fatídico 28 de novembro, países
importantes do Core Group exigiam que Insulza me retirasse do Haiti. E o
faziam com razão. Enquanto a Representação da OEA no Haiti estivesse sob
minha responsabilidade, lutaria com as minhas parcas forças para impedir
que a ilegalidade e a ingerência descarada da Comunidade Internacional se
consumassem.
Jonathan Katz traça um paralelo entre minha situação e a vivenciada
dois anos mais tarde por Michel Forst.

Forst’s departure recalls the late-2010 dismissal of


another outspoken diplomat – Organization of
American States permanent representative Ricardo
Seitenfus, who saw his contract expire after he
criticized the heavy hand of the international
community, particulary U. N. peacekeepers, in Haiti.
In retrospect it seems clearer that Seitenfus was
causing problems by airing public grievances at a
moment when the OAS and other major players were
embroiled in a debate over how and whether to
intervene in a shambolic postquake presidential
election. Following his dismissal, the OAS presented
a highly controversial report alleging fraud in Haiti’s
vote count that would have benefited the then-ruling
party of President René Préval. That report, backed
strongly of Obama administration, upended the
electoral tally, and paved Martelly’s path to the
presidency. [161]

Naquele momento minha exclusiva preocupação consistia em manter-


me isolado, descartando qualquer contato com a imprensa. Somente telefonei
a Arnaud Robert informando sobre a decisão de Insulza. Desolado, Arnaud
desculpou-se pelo fato de que a entrevista tenha me prejudicado
profissionalmente. Tentei reconfortá-lo denegando a eventualidade.
Expliquei-lhe o que estava subjacente à iniciativa de Insulza. Ele pareceu
conformar-se e no dia seguinte o jornal Le Temps informou seus leitores
sobre a decisão da OEA.
Deveria também lutar para conseguir um bilhete aéreo que me levasse
de volta ao Brasil. Com as Festas Natalinas, todos os voos estavam lotados.
Finalmente consegui um voo para o dia 24 de dezembro. Deixei
definitivamente o Haiti na noite de Natal e retornei ao Brasil.
No derradeiro dia de minha incrível e movimentada estada no Haiti fui
despedir-me de Préval. Ele recebeu-me, juntamente com sua esposa, para um
café da manhã em sua residência privada. Aparentava estar mais calmo. Tive
a errônea impressão de que finalmente ele considerava que o jogo já estava
jogado. E que ele havia sido derrotado.
Deram demonstrações de gentileza, de carinho e de amizade.
Conversamos por mais de duas horas e num dado momento ele disse-me que
a partir de agora eu estaria indissociavelmente vinculado ao Haiti e a sua
História. Que o tom e a maneira com que havia expressado críticas e
sugestões haviam causado tal impacto porque eram feitas com a razão e o
coração de alguém que tem como único intuito o bem do povo haitiano.
Como conclusão Préval propôs:

“Ta voix, Ricardo, sonne différente de celles des


communistes et de l`extrême gauche. Tu es crédible
tel que Michäelle Jean. Vous devriez prendre la tête
d`un mouvement afin de changer le comportement de
la Communauté Internationale dans ses relations avec
Haïti. »

Jamais segui sua sugestão. O que desejava profundamente era afastar-


me da ilha e retornar a minha querida Villa Independência, localizada nas
verdes montanhas de meu Arroio do Tigre natal. Logo me dei conta, porém,
que meu corpo, embora no Brasil, meu espírito permanecia no Haiti. Deixei o
Haiti sem nunca abandoná-lo. Logo me convenci de que esta seria minha
sina.
CAPÍTULO XV – O DESFECHO

Lorsque nous serons tous coupables, alors on sera en démocratie.


Albert Camus, La chute

Tomada a decisão de transformar a Missão de Observação da


OEA/Caricom em Missão de Recontagem dos votos, torna-se necessário
firmar um Acordo complementando e reforçando o original. Uma primeira
versão de Acordo, além das inevitáveis e duríssimas condições impostas às
autoridades eleitorais haitianas, explicitava em seu artigo 2º, de maneira
inédita nos anais da cooperação eleitoral da Organização, que a Missão seria
composta por especialistas “escolhidos pela Secretaria Geral da OEA em
consultas com os governos do Canadá, da França e dos Estados Unidos da
América”.
O que deveria constituir condição inaceitável para todos é objeto de
crítica por parte da União Europeia e da Espanha. As reservas, contudo, não
decorrem do diktat eleitoral imposto ao Haiti pelo Tridente Imperial. Muito
pelo contrário. As reclamações oriundas de Bruxelas e de Madri decorrem da
ausência de menção específica prevendo a presença ex-ofício de seus
supostos especialistas na composição da nova missão.
Insulza dá-se conta de que não deve deixar transparecer – formal e
juridicamente – que a Missão de Recontagem coloca-se a serviço exclusivo
dos interesses de três Estados, sendo deles não membro da OEA. Então aceita
as ponderações de Préval a exigir uma nova versão do acordo. Este muda na
forma. Jamais em seus propósitos e conteúdo. Reescrito, finalmente o Acordo
complementar é assinado em 29 de dezembro de 2011 por Gaillot Dorsainvil
presidente do CEP, por Jean-Max Bellerive e pelo Chefe da MOE, Colin
Granderson.
Uma vez mais, tal como ocorrera em 9 de julho de 2004 como descrito
no início do capítulo V, um Acordo Internacional firmado pelo Haiti
prescinde da assinatura do presidente da República. Novamente trata-se de
documento nulo, desprovido de consequências jurídicas tanto à luz da
Constituição Haitiana de 1987, quanto perante os princípios contidos nas
Convenções de Viena de 1969 e de 1986 sobre Direito dos Tratados. Ao
contrário daquele, porém, a ausência da assinatura de René Préval deste não
decorre de desconhecimento ou de imprevidência, mas sim de uma decisão
política do Chefe de Estado. Naquele momento foi a única forma disponível
para manifestar seu desagrado com as imposições da Comunidade
Internacional.
Composta de nove integrantes, dois deles funcionários de carreira da
OEA – nacionais dos Estados Unidos e do Chile – chama a atenção à
nacionalidade dos demais: há três cidadãos dos Estados Unidos, dois da
França, um do Canadá e outro da Jamaica. As potências tradicionais que
controlam a política haitiana reservam-se a parte do leão, posto que de seus
nove integrantes sete são seus nacionais.
Por sua vez a América Latina, que aspirava desempenhar papel
preponderante, retorna a sua histórica insignificância destaca-se por sua
ausência. Com efeito, embora o Brasil tente incluir na Missão de Recontagem
um ou dois ministros do Tribunal Superior Eleitoral, legitimado tanto pela
contribuição financeira à MOE quanto pela capacidade técnica dos indicados,
o fato é que a OEA não leva em consideração nossa sugestão. Muito
provavelmente a presença brasileira dificultaria ao Tridente Imperial alcançar
os objetivos políticos que a Missão se propunha.
Quando informados sobre o perfil e a nacionalidade dos integrantes da
Missão de Recontagem, os representantes da Espanha e da União Europeia
no Haiti acalmam-se e abandonam a exigência. A que serve um maior
desgaste inexistindo incertezas quanto aos seus resultados ?
Uma vez o Acordo assinado, resta o desafio de torná-lo operacional.
Tarefa complexa, pois a Missão, com sua nova roupagem e funções,
substituía às autoridades eleitorais do país. Concomitantemente era
fundamental aparentar que a autonomia e a independência do CEP
permaneciam incólumes. Choix de Corneille impossível concretizar-se sem a
conivência dos Conselheiros do CEP. Eles deveriam operacionalizar o que
havia sido decidido pelos estrangeiros como se nacional fora.
Novamente Fidel Castro intervém na crise com uma Reflexão datada
de 10 de janeiro de 2011, na qual ele declara esperar “que os representantes
da América Latina e de outros países da ONU, evitem que no meio da
destruição, da pobreza e da epidemia [de cólera], o caos não aconteça no
Haiti em razão da luta entre partidos rivais”.
Nesta oportunidade Fidel observa que “o Presidente René Préval havia
discutido com os representantes diplomáticos, entre eles o da OEA, o escritor
brasileiro Ricardo Seitenfus, uma solução política a esta complexa situação”.
E, conclui Fidel, “foi justamente depois que este foi exonerado sem aviso
prévio pelo Secretário da OEA que, segundo as notícias recebidas, o
problema se apresenta”.
A Missão de Recontagem perseguia dois objetivos. Por um lado
descartar a Jude Célestin do segundo turno e, por outro, impor tal situação
como se fora legal à luz da Constituição e da Lei Eleitoral haitiana.
Não podendo subsistir dúvidas com relação aos resultados da
recontagem, a Missão inventará regras e princípios inexistentes no
regramento eleitoral haitiano e totalmente desconhecido dos demais sistemas
eleitorais. Trata-se de operação inédita e inovadora, que permanecerá nos
anais das apurações eleitorais. Assim, ela decide que nenhum candidato
poderá alcançar mais de 225 votos – numa média de 460 eleitores inscritos –
em cada mesa eleitoral. Pouco importa o índice de aceitação local e regional
do candidato.
Para fazer boa figura decidem, no entanto, eliminar alguns votos
destinados a Mirlande Manigat e a Michel Martelly. Assim, daquela foram
eliminados 13.830 votos e deste 7.150, ao passo que Jude Célestin viu
desaparecerem 38.541 votos, o que representa quase 60% do total dos votos
eliminados pela Missão de Recontagem OEA/Caricom.
Embora aplicando método revolucionário, infelizmente a Missão de
Recontagem não alcança seu objetivo, pois o percentual não é suficiente para
inverter a classificação oficial anunciada pelo CEP. Como já havia
abandonado pruridos e princípios, a Missão decide então diminuir para 150
votos o ponto de corte dos votos atribuídos a Célestin. Em seguida extrapola
aos demais candidatos os votos conquistados nestas urnas por meio de uma
simples prorata. Quando alcança a inversão das posições entre Célestin e
Martelly, se dá por satisfeita e conclui a operação.
Jamais foi preocupação da Missão de Recontagem identificar a
existência ou não de fraude. Não procedeu a nenhuma análise das atas
eleitorais, da transmissão de dados ou das cédulas dos votantes. Tampouco
lhe interessava apurar os resultados das urnas. Apesar de se autodenominar
instrumento de recontagem, não fez apuração alguma e não contabilizou os
votos. Singelamente atuou até alcançar seu objetivo e deu por concluído seu
trabalho. Dessa forma, o número de votos conquistados por cada um dos
candidatos jamais será conhecido.
Com celeridade, presteza e má-fé, no dia 13 de janeiro a MOE, dotada
de suas inéditas atribuições e aplicando uma metodologia extremamente
suspeita, decide que Mirlande Manigat permanecia em primeiro lugar, com
31,6%, com o segundo posto agora pertencendo a Michel Martelly (22,2%).
Jude Célestin é retrogradado ao terceiro lugar, pois fizera 21,9%. Nota-se
uma leve inversão dos percentuais, suficiente para descartar o candidato da
situação do segundo turno.
Conforme o mandato recebido, a Missão de Recontagem deveria
entrevistar-se com todos os candidatos presidenciais. Destes, ela reuniu-se
somente com assessores de Martelly e do grupo de 12 candidatos que se
opunham à votação. Por outro lado, as indispensáveis reuniões com os
representantes da sociedade civil se resumiram a encontros com o CNO e
com a ISC – ambos fortemente implicadas no golpe eleitoral em curso.[162]
A magnitude do absurdo da empreitada e a flagrante debilidade do
adversário fizeram com que fosse abandonada qualquer precaução.
Simplesmente votos foram trocados de destinatário e ínfimos percentuais
invertidos.
Uma vez mais a CI comporta-se no Haiti como se estivesse em
território conquistado. Colocando afoitamente em prática, ausente qualquer
base legal, técnica ou moral, um golpe branco e uma descarada intervenção
eleitoral.
Concluído seu trabalho de suposta recontagem e precedendo a
comunicação oficial de suas recomendações às autoridades haitianas, os
resultados da Missão de Recontagem foram vazados à imprensa por
intermédio de duas agências internacionais de notícias. Coincidindo com a
nacionalidade de boa parte dos supostos especialistas da Missão, foram
escolhidas a estadonidense Associated Press (AP) e a francesa Agence France
Presse (AFP), as quais se prestaram de bom grado à manobra.
Como neste jogo não há ingênuos, os vazamentos perseguiam o claro
objetivo de se tornaremfato consumado. Logo o será.
Crua e publicamente, o embaixador francês Didier Le Bret exerce
plenamente o histórico imperialismo gaulês. Em entrevista ao jornal Le
Nouvelliste, publicada junto com a notícia oriunda da AP e da AFP, sob a
manchete “Préval doit accepter les conclusions de la mission de l`OEA”, ele
insiste que não deve haver nenhuma hesitação “que si l`on veut sortir de cette
crise, il est important de s`en remettre à ces recommandations ».
Logo a seguir, em entrevista ao mesmo jornal publicada no dia 17 de
janeiro, Edmond Mulet pratica sua tática preferida: insinuações contendo
meias-verdades mescladas a impudentes mentiras. Assim, ele insinua que o
Relatório da Missão, ao sugerir critérios e uma metodologia, “ne propose pas
des résultats. »
Com razão. A Missão não propõe. Sustentando-se no poder da
Comunidade Internacional e nas manobras comandadas pessoalmente pelo
próprio Mulet, ela impõe seus resultados.
Insulza reage irado ao tomar conhecimento da publicação de seus
resultados, especialmente porque Albert Ramdin acompanha pessoalmente os
trabalhos da Missão de Recontagem. Desvincular a OEA do vergonhoso
episódio constitui tarefa impossível. Nada mais resta a Insulza a não ser
desculpar-se publicamente pelo vazamento de uma suposta “falsa versão” do
Relatório. A desculpa o honra. Não obstante, logo a seguir a versão vazada
impõe-se como verdadeira.
Nos 50 anos de cooperação eleitoral oferecida pela OEA aos Estados-
Membros, nunca ela havia ousado adotar estes procedimentos. Jamais ela
havia se metaforseado de maneira tão evidente e despudorada, a ponto de não
somente desconhecer às autoridades eleitorais do Estado que a acolhe, mas
também ignorar a vontade dos próprios eleitores.
As regras básicas a orientar as Missões de Observação e de
Acompanhamento eleitoral da OEA foram violadas. Seu Manual de
Procedimentos desacatado. Em decorrência do descalabro ao que foi levado
um dos instrumentos mais respeitados do sistema americano, o Diretor do
Departamento de Cooperação Eleitoral da OEA, o chileno Pablo Gutiérrez,
apresenta sua demissão.
O episódio impregna com uma mancha indelével a OEA e se constitui
no acontecimento mais pesaroso, embora pouco conhecido, da administração
de José Miguel Insulza.
O vazamento de seus resultados antes que o CEP fosse informado
regozija Martelly e cria imensa confusão nas fileiras da situação. Préval atua
como bombeiro junto a Unidade. Ao mesmo tempo, todavia, em que critica
não somente sua divulgação, mas também a metodologia utilizada e seus
resultados, deixa no ar a decisão sobre seu definitivo acatamento.
A recusa do serviço de Contencioso do CEP em analisar as atas de
escrutínio favoráveis a Célestin e anuladas pela Missão de Recontagem, no
entanto, indica que a resistência ao diktat da Comunidade Internacional
esmorece.
O Pnud, dirigido pelo canadense Nigel Fisher – futuro substituto
interino de Mulet – participa ativamente da pantomima. Um de seus
consultores, o constitucionalista de Burkina Faso, Idrissa Traoré, vinculado à
Organisation Internationale de la Francophonie e, consequentemente, à
França, encontra supostamente a forma legal para impor a todos os resultados
da Missão de Recontagem. Segundo Traoré, o acordo firmado pelo Estado
haitiano com a OEA/Caricom possui hierarquia normativo superior às
decisões emanadas das instituições haitianas. Assim, os resultados devem ser
acatados. Aplicada ao Haiti, a versão africana da discutível e discutida teoria
monista sobre a hierarquia de normas entre Direitos Interno e Internacional,
com primazia deste sobre aquele, constitui o derradeiro golpe, vindo de um
suposto irmão de sangue, desferido à democracia haitiana.
Será neste tenso ambiente que, em 16 de janeiro, explode uma
verdadeira bomba. Desembarca no Aeroporto Toussaint Louverture, vindo de
Paris, após 25 anos de exílio na França, o ex-ditador Jean-Claude Duvalier. A
participação de Martelly no segundo turno e sua provável vitória constituía
garantia suficiente para que o sinistro ditador se sentisse seguro e ousasse o
que jamais havia tentado.
Um pouco antes do pouso do vôo da Air France em Porto Príncipe,
Didier Le Bret telefonou a Bellerive para informá-lo da chegada de Baby
Doc. Alegou, em nome do governo francês, não estar implicado na operação
e se total desconhecimento do extraordinário feito. Bellerive expressou seu
ceticismo. Certamente era difícil acreditar que as autoridades francesas não
auxiliaram o viajante e sequer tivessem ciência de suas intenções. Caso assim
fosse, o Estado francês fornecia provas de sua flagrante incompetência.
Por fim, Didier Le Bret solicitou autorização para anunciar
publicamente a grande novidade. Bellerive assentiu. A bizarra demanda
merece explicação. Ocorre que várias semanas antes, Bellerive havia
comunicado a Le Bret que, segundo o governo haitiano, “il parlait trop” aos
meios de comunicação. Isso desagradava ao governo, pois o embaixador não
cessava suas críticas, sugestões e pressões feitas publicamente. A ponto de
Bellerive ver-se obrigado a chamar sua atenção dizendo que seria “dommage
au cas où soit interrompue ta carrière diplomatique, à son début [ils`agit de
son premier poste], en raison d`un pays insignifiant comme Haïti ».
A ameaça subentendida de declará-lo persona non grata, fez Le Bret
desaparecer dos meios de comunicação. Com a chegada de Duvalier sentia-se
obrigado a solicitar autorização governamental – não francesa, mas haitiana –
para se pronunciar. Ambas as atitudes indignas de suas funções.
A verborragia do mesmo embaixador havia protagonizado um
incidente que provocou comentários irônicos e divertidos. Ocorre que ao
ingressar no restaurante Quartier Latin em Pétion-Ville, Le Bret se dirigiu à
mesa onde estava Patrícia Préval – filha do presidente – a fim de
cumprimentá-la. Ela virou a cabeça e apesar da insistência de Le Bret não
correspondeu à saudação. Todos os presentes notaram a desfeita.
Préval deve ter censurado a digna reação de Patrícia, pois fugia às
regras da diplomacia, todavia como pai deve ter sentido orgulho da filha. Em
qualquer das situações o resultado era o mesmo: o caso demonstrava os
disparates de Le Bret e provocava les gorges chaudes no meio político e
diplomático.
Posteriormente Patricia encontrou-se com Le Bret em reunião no
Hotel Karibe e desculpou-se. Contudo, censurou-o por sua ingerência
eleitoral ao exclamar sobre seu resultado: “Mais, Didier ! Tout de même!
Michel Martelly au Palais National!”
A chegada de Martelly à Presidência do Haiti não constitui somente
uma grande vitória de Didier Le Bret. Ela significa também que poderá
retomar sua diplomacia midiática imiscuindo-se nos mais diversos temas sem
preocupar-se com reações como as manifestadas por Préval e Bellerive. O
novo Chefe de Estado é fruto de seu trabalho e Le Bret pode colher os
dividendos. Entre estes se encontra uma ingerência permanente, profunda e
pública nos assuntos de domínio reservado do Haiti. Ao ponto que
manifestantes decidiram, em meados de outubro de 2012, acamparem em
frente à Embaixada francesa de Porto Príncipe para protestar contra o
boquirroto diplomata. Le Bret, entretanto, não hesitou em apresentar-se
publicamente portando o bracelete rosa, símbolo do movimento partidário de
Martelly. Alcunhado por parte da imprensa francesa de Ambassadeur-
courage por ocasião do terremoto, Le Bret se transforma no Ambassadeur-
rose. Finalmente, com a vitória socialista na última eleição presidencial, a
França decide colocar um termo à ação desenvolta e ofensiva de seu
embaixador e o leva de volta para Paris em fins de 2012.
Inusitado, fora de propósito e contrário às mais elementares regras
diplomáticas, fora o desempenho do embaixador Didier Le Bret durante sua
estada no Haiti. Comportando-se como Pró-Cônsul, cada um de seus passos
lembrava episódios da época colonial. Também contrastava com a atitude de
um ilustre predecessor. Em 30 de setembro de 1991, quando do golpe militar
contra Aristide, o embaixador francês Jean-Raphael Dufour protegeu,
transportou e salvou a vida do presidente deposto. Com o risco de sua própria
vida. Foi ele quem, pessoalmente, resgatou em seu veículo blindado a
Aristide de sua residência cercada por militares golpistas. Sem sua decidida e
corajosa atitude – transmutando-se em guarda-costas – Aristide teria sido
assassinado.
Interrogado pelo editor do jornal Le Nouvelliste, Frantz Duval, em 17
de janeiro de 2011, Mulet assegura, com razão, que a Comunidade
Internacional está unida e que a minha posição era individual e pessoal, não
representando, por conseguinte, a OEA. Segundo ele “La Communauté
Internationale est unie, en front commun : surtout devant cette crise électorale
et politique. Toute la communauté internationale appuie, soutient, défend le
Rapport de l`OEA. Et là, il n`y a aucune fracture de la Communauté
Internationale ».
Quando, porém, Duval insiste em saber se ele não desmentia a nada do
que eu havia declarado, excetuando a tentativa de deposição de Préval nova e
inutilmente desmentida, Mulet surpreendentemente declara que sobre os
outros aspectos eu tinha razão. Ele os repete concordando com a
argumentação de minha entrevista concedida ao Le Temps:

Il y a des personnes, comme l`ambassadeur [sic]


Seitenfus, qui demandent pourquoi ce budget de
maintien de la paix n`est pas dédié au développement.
Mais c`est un autre volet budgétaire. Il y a les
agences de développement qui font leur travail. Nous,
on fait le nôtre. Je crois que M. Seitenfus est un
homme de bonne volonté, et, lui aussi, il est frustré
par la situation du pays, la pauvreté, la misère, etc. Et
il vaudrait que cet engagement de la communauté
internationale soit plus efficace sur le terrain. Et là,
nous sommes d`accord.

Para Mulet, o problema parece ser simplesmente burocrático


provocado pelas contradições no interior do sistema das Nações Unidas. Em
parte tem ele razão. Não se trata, porém, de simples ajuda humanitária, mas
sim de desenvolvimento econômico e social. Este não constitui atributo do
Conselho de Segurança. Como prima a interpretação fazendo dos desafios
haitianos exclusivo tema de segurança, nada muda e confirma-se o
retumbante fracasso da Comunidade Internacional.
Prosseguia a escalada da diplomacia coercitiva. No dia 21 de janeiro
várias personalidades governamentais e responsáveis pela Unidade tiveram
seus vistos norte-americanos suspensos. Como Jude Célestin, o principal
prejudicado com o desenrolar da crise não se manifestava – ou “não se
defendia” como declarou Préval posteriormente – a Unidade decidiu, em 25
de janeiro, abandoná-lo à própria sorte.
Como previsto retornei a Porto Príncipe antes do final de janeiro. No
dia 28 daquele mês o CEP ofereceu uma coletiva de imprensa na qual
anunciou o segundo turno das eleições para o início de março sem, no
entanto, indicar quais seriam os dois candidatos que o disputariam. Apesar
dos indícios, notavam-se ainda resistências ao pretendido pelo Core Group.
Finalmente, no domingo, 30 de janeiro, o incontournable ator
estrangeiro das recorrentes crises políticas haitianas decidiu colocar um ponto
final na disputa. Hillary Clinton desembarcava em Porto Príncipe.
A secretária do Departamento de Estado havia tido o cuidado em
convidar os colegas chanceleres dos Estados-membros do Core Group para
que a acompanhassem na delicada missão a Porto Príncipe. Todos declinaram
da gentileza alegando impossibilidade de agenda, contudo a razão da recusa
era outra. Como a crise haitiana havia sido deflagrada pelos Estados Unidos
ainda na noite da votação, cabia a Washington resolvê-la.
Após dialogar com muitas personalidades, haitianas e estrangeiras,
sabia a Chefe do Departamento de Estado que a derradeira reunião, antes de
retornar a Washington, seria a decisiva. Préval a aguardava em seu singelo
escritório junto às ruínas do Palácio Nacional.
Amigo de longa data do casal Clinton, Préval era considerado por
estes como o “Pai da Democracia” haitiana. Foram os acordes melodiosos de
uma música impregnada de sensibilidade, de amizade e de responsabilidade
histórica que chegaram aos ouvidos atentos de Préval. Muito distantes dos
dissonantes ruídos ditatoriais, impositivos e imperialistas que foram ouvidos
na reunião de 28 de novembro. Os Estados Unidos mudavam de tática, mas
não de objetivo. Para alcançá-lo enviaram a melhor mensageira de que
dispunham.
O relacionamento dos Clinton com Préval, embora mais recente,
também se perde nas brumas do tempo. A partir do golpe de Cédras contra
Aristide em 1991, Bill Clinton mantém contatos regulares com Préval.
Ministro, presidente da República e quando necessário foi descobrir um
candidato confiável em 2005 para pôr fim ao governo provisório de Gérard
Latortue, emissários dos Estados Unidos viajaram ao lugarejo de Marmelade
– terra natal de Préval – para convidá-lo a tentar retornar, uma vez mais, ao
Palácio Nacional.
Da presente reunião – cujas imagens são apresentadas no
Documentário Fatal Assistance de Raoul Peck – participavam ainda Bellerive
e Cheryl Mills. Esta, Chefe de Gabinete de Hillary Clinton e uma das
advogadas de Bill Clinton quando do escândalo envolvendo Mônica
Lewinsky, apesar de sua discrição, é conhecida por sua constante e decisiva
presença nos momentos politicamente delicados.
Hillary Clinton inicia dizendo que a ela não interessava quem iria ou
não ao segundo turno. O que lhe trazia ao Haiti e a Préval era tentar
aconselhar e ouvir as alegações de seu velho amigo de tantas batalhas. O que
lhe importava era como Préval sairia engrandecido da crise. Nada mais. Com
os demais atores da crise ou ainda com os três candidatos presidenciais,
afirmava ela não ter compromisso algum. Somente com Préval e com seu
destino. Este havia sido um aliado constante e fiel. Agora se encontrava em
delicada situação, pois o acusavam de proceder como um reles ditador,
impondo um candidato desconhecido, desprovido de representatividade e
manipulável.
Os principais atores do drama, a começar por Préval e por Mulet,
estavam convencidos de que Jude Célestin seria objeto de manipulação e que
caso fose eleito, se transformaria numa marionete nas mãos do então
presidente. O digno comportamento de Célestin durante a crise eleitoral tende
a demonstrar que muito provavelmente enganavam-se em suas avaliações
sobre a personalidade do candidato da Unidade.
Para a responsável pela diplomacia dos Estados Unidos, deve ser nos
momentos de incertezas e dificuldades que se conhece quais são os
verdadeiros amigos. Por esta razão Hillary ali estava. Como amiga de Préval
e do Haiti, como sempre fora.
Concluindo, solicita que Préval faça um derradeiro gesto em favor da
concórdia e do entendimento. Gesto esse que o conduziria, definitivamente, a
um lugar especial no Panteão da História haitiana e na luta pela democracia
no continente. Préval responde com um sorriso emocionado, embora
enigmático. Somente ele sabe que a crise conhece então o seu epílogo.
Ao partir da residência, Hillary convida Bellerive a acompanhá-la. O
primeiro ministro solicita autorização a Préval e instala-se entre as duas
mulheres na caminhonete blindada que parte em comboio em direção ao
aeroporto. Segura de que havia obtido o que buscava, Hillary preocupa-se
agora com o resultado do segundo turno. Bellerive desfaz qualquer sombra de
apreensão e informa que Michel Martelly deverá vencer com facilidade.
Assim será.
Antes de embarcar e apesar da presença de Bellerive, Hillary critica o
embaixador Merten por seus relatórios recentes que apresentavam a Jude
Célestin como um candidato inconfiável. Ora, segundo Hillary, Célestin lhe
pareceu, entre os três pretendentes, o mais bem preparado para dirigir o Haiti.
Arrependimento sincero ou manobra diversionista, carregada de
hipocrisia, para iludir a Bellerive? O extraordinário empenho do
Departamento de Estado, sob a batuta de Cheryl Mills – braço direito de
Hillary Clinton para os assuntos haitianos – em seus esforços para descartar a
candidatura de Célestin, não deixa pairar qualquer dúvida.
Ao dirigir-se ao avião, Hillary comenta com Bellerive sobre seu
parentesco com Martelly. Ele confirma que são primos distantes. Como
estamos diante de pessoas educadas e o jogo está jogado, a Secretária de
Estado se permite um gracejo e pergunta: “Embora parentes, você não
canta?” Bellerive responde com humor: “Mas ele também não.”
Hillary confessa que ouviu algumas canções interpretadas por
Martelly e não pode deixar de concordar com Bellerive. Então, sorridente, ela
deixa o Haiti.
Já na quinta-feira seguinte, dia 3 de fevereiro, um CEP até então
relutante, aceita os resultados propostos pela Missão de Recontagem dos
votos e proclama que Mirlande Manigat e Michel Martelly iriam disputar o
segundo turno, previsto para o dia 20 de março.
Os caminhos da delicadeza, dos sentimentos e do respeito utilizados
por Hillary Clinton conseguiram alcançar o que não havia sido possível até
então, apesar do batalhão de diplomatas, políticos e funcionários
internacionais a pressionar Préval.
Alguns ministros se rebelam contra a ingerência da CI. Préval,
todavia, permanece em silêncio. A única reação notável emana do Black
Caucus – os eleitos negros do Congresso dos Estados Unidos – ao
denunciarem que “a vontade do povo haitiano não fora respeitada”. Trata-se
de uma das poucas vozes dissonantes ouvidas no cenário internacional. Tal
como havia feito com Aristide em 2004, o poder internacional abandona
Préval. A imberbe democracia haitiana mais parece um natimorto.
Todos os dados haitianos estavam lançados. O segundo turno da
eleição presidencial consagraria o candidato do Core Group. O eleitorado
haitiano condenou, todavia, a sucessão de escândalos patrocinados pela
Comunidade Internacional lançando mão do único instrumento ao seu
alcance: a abstenção. Assim, a participação atingiu medíocres 22,3%, a mais
baixa em uma votação presidencial nas Américas desde o final da Segunda
Guerra Mundial.

Figura 16 - Eleição presidencial 2011 (votos válidos 2º turno)


Votantes registrados 4.712.693 100%
Michel Martelly 716.986 15,2%
Mirlande Manigat 336.747 7,1%
Abstenção 3.658.960 77,6%
Fonte: Conselho Eleitoral Permanente

Martelly foi eleito com os votos de tão somente 15,2% do total dos
eleitores inscritos no CEP. A sanção eleitoral retira legitimidade do eleito,
mas não impede sua unção. Como previsto pelo calendário constitucional, em
maio Préval transmite a faixa presidencial a Martelly e retira-se da vida
pública.
Chegado o momento da reflexão, Préval deve ter-se dado conta dos
erros cometidos. Foram muitos. Eis alguns:
- não avaliou como devia a incompatibilidade entre a dependência
congênita de seu governo aos ditames da CI. Tentou dela libertar-se no
momento crucial das eleições e fracassou;
- sua inação frente aos problemas crônicos dos setores mais
vulneráveis da sociedade haitiana, sobretudo após o terremoto;
- sua sistemática estratégia de enfraquecimento dos partidos políticos;
- sua constante despreocupação com a institucionalização do país;
- a contradição entre seu discurso em defesa da legalidade e da
Constituição e a prática de injunções de natureza política ao CEP;
- sua ilusão ao pensar ser o único capaz de mobilizar a população.
Michel Martelly provou que estava enganado;
- sua decisão de descartar a candidatura pela Unidade do ex-primeiro
ministro Jacques Edouard Alexis em beneficio de um pretendente retirado do
bolso do colete.
Finalmente, a errônea decisão de manter no exílio o ex-presidente
Jean-Bertrand Aristide com o propósito de ser o herdeiro de seus votos – o
que amplamente conseguiu em sua eleição em 2006 – e ao mesmo tempo
satisfazer a Comunidade Internacional e a elite haitiana. Tal decisão dividiu a
esquerda e a enfraqueceu.
Frequentemente circulava em Porto Príncipe a notícia sobre o iminente
retorno do exílio do presidente Jean-Bertrand Aristide. Invariavelmente e de
forma unânime, a Comunidade Internacional rechaçava tal eventualidade. O
Brasil, por meio de Marco Aurélio Garcia, considerava que o retorno de
Aristide “agregaria mais pimenta nessa já complicada culinária política.”
Washington exercia constantes pressões sobre Pretória para que impedisse a
partida de Aristide sob a alegação de que sua segurança não poderia ser
garantida uma vez em solo haitiano. França e Canadá a desaprovavam
publicamente alertando que a presença de Aristide complicaria ainda mais o
quadro eleitoral.
Aristide tentava convencer seus algozes de seu direito de retorno à
pátria. Assim, em uma recepção oferecida pelo governo sul-africano às
autoridades estrangeiras por ocasião da Copa do Mundo organizada no país
pela FIFA em 2010, ele aproveita para solicitar a Ban Ki-moon sua
intervenção para facilitar seu retorno ao Haiti. Surpreendido com a investida,
o Secretário Geral da ONU alega uma desculpa qualquer e afasta-se
rapidamente do local.
Considerado pelos atores internacionais um pária e um leproso político
do qual era aconselhável conservar prudente distância, Aristide havia sido
abandonado por importantes figuras da política haitiana que nutriam similar
sentimento. No apagar das luzes de seu governo, contudo, como se fora seu
canto do cisne, Préval concede-lhe um passaporte permitindo seu regresso ao
Haiti justo às vésperas do segundo turno da eleição presidencial. A promessa
supostamente feita quando de sua eleição em 2006 finalmente havia sido
honrada.
Muitos interpretaram o gesto como uma demonstração de poder
perante a Comunidade Internacional quando, de fato, foi simplesmente uma
tentativa de fazer-se perdoar pela História. Assim, na sexta-feira, 18 de março
de 2011, pisa em solo haitiano, acompanhado por Danny Glover, após 7 anos
de exílio na África do Sul, o Padre dos Pobres.
Derradeiro e inútil gesto de Préval. Apesar da campanha dos
movimentos feministas e da posição da Igreja Católica, o escandaloso cantor
de Kompa – candidato da burguesia haitiana – consegue eleger-se com
indiscutível apoio de setores humildes da população. A derrota de Préval e a
consequente vitória da Comunidade Internacional, capitaneada pelos Estados
Unidos e apoiada irrestritamente pelo Canadá e França, estão consumadas.
Como permanecem vivas as desagradáveis lembranças deixadas pelo
nacionalismo da Presidência Préval, ao escolher Martelly o governo dos
Estados Unidos demonstrava claramente preferir tratar com uma Presidência
haitiana neófita e amadora, além de absolutamente dependente da
Comunidade Internacional. Ora, apesar de sua inexperiência e de inúmeras
limitações, a administração de Martelly procurou livrar-se de algumas
amarras impostas por Washington. Por um lado tentou, embora sem sucesso,
reconstituir as Forças Armadas do Haiti. Por outro, ameaçou integrar
formalmente a Aliança Bolivariana Para as Américas (Alba). Foi necessária
uma viagem especial de Cheryl Mills a Porto Príncipe para dissuadi-lo a
abandonar a ideia. Após as pressões de Washington, Porto Príncipe dispõe do
estatuto de Observador e não de membro pleno da Alba.
Enfim, Martelly não somente ratificou a presença do Haiti no
Programa Petrocaribe, concebido por Chávez e confirmado por Maduro,
como também tece constantes elogios à suposta cooperação desinteressada
promovida por Caracas com a América Central e com os Estados insulares
caribenhos. Não deixa de ser irônico observar um Martelly – afilhado dileto
de Washington – respondendo a uma saudação de Maduro, de punho cerrado
no ar, quando da reunião da Petrocaribe realizada em fins de junho de 2013
em Manágua. Sacré artiste!
Em sua derradeira visita ao Conselho de Segurança das Nações
Unidas, em 6 de abril de 2011, Préval faz um balanço das relações haitianas
com a Comunidade Internacional. Elegante, não deixa transparecer suas
mágoas e se esforça para ser propositivo.
Dirigindo-se aos seus compatriotas, Préval sublinha que “Les
opérations de maintien de la paix des Nations Unies on été à chaque fois
rendues nécessaires par l`instabilité qu`eux-mêmes ils y ont créée. »
Préval sugere que os novos dirigentes

qui sortiront des dernières élections, à pratiquer une


gouvernance d`apaisement, d`ouverture, d`inclusion,
de dialogue, de respect des droits d`association et
d`expression ; et l`opposition à adopter une attitude
positive de collaboration, fût-elle critique par rapport
au pouvoir.

Préval ao retomar parte do conteúdo de seu discurso de investidura


para o segundo mandato presidencial, em maio de 2006, o qual
“malheureusement na pas été entendu.” e insiste, uma vez mais, sobre a
natureza da crise haitiana:“L`instabilité en Haïti est dûe fondamentalement au
sous développement, en d`autres termes à l`insatisfaction des droits sociaux
et économiques élémentaires. »
Com esta única e simples frase, Préval desconstrói, desconstitui e
retira a legitimidade da montanha de letras, centenas de reuniões, milhares de
declarações e centenas de ações das Nações Unidas e dos representantes do
Grupo de Países Amigos do Haiti.
Concluindo, Préval considera que“la dissuasion militaire n`est qu`un
des aspects de la quête de la stabilité, mais elle ne saurait se confondre avec
elle. » Para ele, desde há muito“les chars, les blindés et les militaires auraient
dû céder la place à des bulldozers, des ingénieurs, à davantage d`instructeurs
de police, d`experts en appui à la Justice et au système pénitentiaire. »
Ressaltando que a definitiva estabilização do país constitui
prerrogativa e obrigação dos próprios haitianos, Préval constata que,
infelizmente, não foi ouvido em 2006. O será agora que se encontra no ocaso
de seu percurso institucional e político ?
Para um exímio profissional da política que soube navegar nas
tumultuosas águas do poder dando provas, ao longo de décadas, de seu
savoir-faire e de seu aguçado tino político, que o tornavam capaz de se
adaptar a múltiplas e complexas circunstâncias, o epílogo de sua carreira
deixa a todos perplexos. A única esperança que resta é a de que, embora o
presente o condene, a História o absolverá.
Por ocasião do debate sobre a situação do Haiti no CSNU referido
anteriormente, o Representante brasileiro, embaixador Antonio José Ferreira
Simões, ratifica o apoio do Brasil à farsa eleitoral comandada por Edmond
Mulet. Segundo Simões, o “notável conhecimento das características e
necessidades específicas do Haiti permitiram que Mulet desse uma
contribuição fundamental ao país”.[163]
Assumindo posições corajosas, pois legalistas, em vários momentos da
crise, nota-se, em definitivo, que a inspiração brasileira provinha de seu
representante em Porto Príncipe. Logo a burocracia brasiliense retoma as
rédeas do processo e impõe o alinhamento automático com a posição do
Tridente Imperial e das Nações Unidas. A nossa capitulação joga por terra
anos de esforços e apaga a ínfima luz que restava de ver a América Latina
praticando um novo modelo para as Operações de Paz das Nações Unidas.
Naqueles dias despachei minha mudança, despedi-me de quem
acreditava merecesse consideração e fui a Washington entrevistar-me com
Insulza. Recebeu-me com deferência e cortesia. Entendia perfeitamente o que
me moveu no Haiti. Solicitou que não me afastasse da OEA e me propôs
representá-lo em Manágua. Depois do Haiti, a Nicarágua é o segundo país
mais pobre das Américas. Aceitei.
Não pretendia retornar ao Haiti. Assim não pensava Préval. Poucos
dias antes de deixar a Presidência, ele informou-me que o governo e o povo
haitianos desejavam prestar-me uma homenagem. Numa barraca montada ao
lado das ruínas de seu Palácio, na presença de muitos Ministros encabeçados
por Bellerive, Igor Kipman e Cristobal Dupouy, eu recebi das mãos de Préval
o titre de “L`Ordre de Chevallier de la République d`Haiti” par mon
“courage en la défense de la dignité du Peuple Haïtien”.
O pouco que ofereci ao Haiti ao longo destes últimos anos foi
amplamente retribuído pela concessão desta medalha de singela aparência,
mas de grande significado. Nunca imaginei ao aportar na terra de Dessalines,
no longínquo ano de 1993, que pudesse viver os acontecimentos memoráveis
como os aqui narrados. Nunca imaginei poder conhecer as instituições, os
homens e a mim mesmo como pude fazê-lo em circunstâncias tão
excepcionais. Nunca imaginei que sendo simplesmente eu mesmo pudesse ter
meu nome gravado na memória do heroico povo haitiano.

CONCLUSÃO

Pour le pays,
Pour les ancêtres,
Marchons unis,
Dans nos rangs, point de traîtres !
Du sol, soyons seuls maîtres.
Dessalinienne, hymne national d`Haïti, paroles de Justin Lhérisson, 1904

Entre as numerosas e chocantes contradições da realidade haitiana,


ocupa lugar especial a que interroga sobre o destino dos povos e nações; o
abismo a separar as promessas feitas nas inesquecíveis jornadas de luta que
culminaram com a independência e a libertação dos escravos, quando
comparadas à frustrante e desprezível realidade que impera nos dias de hoje.
Não é minha intenção apontar culpados ou procurar bode expiatório
ao atual descalabro no qual vegeta o país. O inventário seria demasiado longo
e fastidioso. Após colocar em evidência, contudo, nas páginas que
precederam, a responsabilidade internacional, chegou o momento de ressaltar
a cumplicidade de certos grupos de haitianos nesse verdadeiro e,
aparentemente incompreensível, suicídio coletivo.
A experiência de conviver com as vicissitudes haitianas ao longo de
duas décadas oferecem preciosos ensinamentos. O primeiro entre eles redide
na constatação da atitude miserabilista que impera no país. Para qualquer
problema que surja, seja a simples manutenção da malha viária ou a
complexa reforma do sistema judicial, os responsáveis haitianos declaram,
irresponsavelmente, que buscarão recursos da ajuda internacional. A
espontaneidade e o automatismo de tais reações são naturais a ponto que
podemos considerar que foram internalizados na psicologia do poder tal
como concebido e praticado atualmente no Haiti.
A instituição através de todo o país, nas atividades as mais diversas e
variadas, das Ongats com sua filosofia meramente assistencialista, estendeu
os tentáculos do miserabilismo para grande parte da sociedade haitiana.
Provavelmente o fechado mundo do campesinato, que pratica uma agricultura
de subsistência, seja o último bastião de resistência. Por quanto tempo?
Raras são as vozes que tentam chamar à responsabilidade os próprios
haitianos. Quando surgem, logo são abafadas por apelos despudorados à
caridade internacional. Esta ocupa o espaço e o inconsciente do país. O
desvirtua. O subjuga. O humilha. Quão distantes estão os princípios de
dignidade, de coragem e de entrega que marcaram a História haitiana?
As diatribes aparentemente nacionalistas não conseguem esconder o
grande desamor que existe entre os haitianos e o Haiti. Não se podem tomar
ao pé da letra as declarações apaixonadas de alguns quando se observa o
coletivo em ação. A destruição sistemática do meio ambiente; o reiterado e
generalizado comportamento antissocial (por exemplo, a transformação das
cidades haitianas em lixões a céu aberto); o vandalismo a destruir os escassos
bens públicos; a demente e indigna forma de transporte humano; o regime
escravocrata do “modelo” restavec; as condições desumanas nas quais vivem
partes consideráveis da população. São alguns exemplos pinçados em um
longo e triste rol.
À sombria pintura social do Haiti devem-se adicionar traços de sua
força moral e do temperamento de sua alma. Dominada por intensa vida
espiritual, por ímpar tenacidade, por uma coragem constante, por um
otimismo contagiante e uma alegria de viver, o povo haitiano surpreende e
interroga.
Viceja nestas condições extremas, uma vigorosa, original e fascinante
cultura artística. Seus pintores, romancistas, escultores, artesãos e músicos
inspiram-se neste mundo inóspito e dele extraem obras marcantes. Não
conseguem, porém, fazer com que a essência do mal haitiano seja menos
intolerável.
A inadaptabilidade haitiana ao mundo moderno é de natureza cultural.
Muitos autores tentaram explicar que o Haiti era, de fato, uma África
desraigada. Nada mais distante da realidade. A começar pelo desprezo que os
próprios haitianos demonstram pela África e, portanto, por suas origens. Se
não for verdade, como explicar que o Haiti não disponha de sequer uma
Embaixada no continente africano?
A grande maioria dos intelectuais haitianos não é inocente diante da
catástrofe que se abateu sobre seu país nestas últimas décadas. Ausente sua
cumplicidade, o Haiti não teria alcançado seus atuais níveis de descalabro e
de desesperança. Citadinos e pequenos-burgueses, eles constituem a ponta de
lança dos partidos políticos, quando não conseguem eles próprios fazer
carreira na política.
A forma de atuar do intelectual haitiano o singulariza. Ao invés de se
utilizar da dúvida como alavanca civilizatória e de procurar entender os
dilemas para poder explicá-los de maneira a encontrar soluções racionais e
conciliatórias, os intelectuais haitianos constituem uma brigada de combate
da incompreensão, do enfrentamento inconsequente, da diatribe extremista e
de interesses de grupos e de clãs. Constitui o coração da tática do intelectual
haitiano a desqualificação do oponente, a rejeição in limine de tudo que ele
representa ou expressa, o libelo acusatório que não deixa um mínimo vão por
onde possa transitar a esperança de um diálogo.
Muitas sociedades são marcadas pela impotência e insignificância dos
intelectuais. No Haiti, a situação é exatamente oposta: os intelectuais
desempenham um papel político de primeiro plano, todavia ele é impregnado
pela onisciência, pelo sentimento de superioridade ante uma maioria
semianalfabeta, por sua incapacidade de promover um debate político e social
aberto e sadio, pelo espelhismo que tenta copiar tudo que venha do exterior,
pela ausência de vontade em romper com a iníqua ordem política e social,
pela ausência de preocupações com a aflição que castiga seu povo.
O intelectual haitiano articula um discurso silente perante os dramas
nacionais. Ao corroborar, prolongar e aprofundar o disparate da atual
situação, ele perverte e trai sua função social. Ele não exerce o papel de farol
que deveria ser o seu, mas sim o de coveiro da nação.
Percebe a realidade de seu país exclusivamente pelas cidades,
especialmente Porto Príncipe. Os camponeses não estão no radar intelectual
haitiano. O Haiti profundo e eterno não lhes interessa, pois aquele mundo não
quer render-se à modernidade.
A maciça presença das Ongats no Haiti constitui um campo de
trabalho para os intelectuais, todavia, não se trata do exercício das funções
intelectuais, mas sim para a eleboração de relatórios necessários para
justificar as ações destas instituições.
O vetor mais importante para divulgar o pensamento intelectual por
meio das revistas científicas. Ora, no Haiti encontramos a centenária Revue
d`Histoire et de Géographie em uma perfeita solidão. Somente ela existe.
Ausentes às correias de transmissão de seu saber, os intelectuais haitianos
ocupam as páginas dos jornais. O público-alvo não sendo o mesmo, o nível e
a qualidade científica mingua.
Os raros intelectuais que mergulham nos dilemas e contradições do
país provêm do mundo literário. São os romancistas os únicos a demonstrar
um pensamento sociológico e antropológico genuinamente nacional.
Os intelectuais estabelecem vínculos especiais com o exterior e
acabam impondo-se como os exclusivos porta-vozes da complexa realidade
haitiana. Tais vínculos implicam, entre outros, financiamento de projetos, de
partidos políticos, de atividades de pesquisa e de investigação.
A elite haitiana, na qual os intelectuais desempenham papel
preponderante, continua sendo a defensora intransigente da intervenção
estrangeira nos assuntos de domínio reservado do Haiti. Foi ela quem
articulou crises que desembocaram em situações de clara ingerência
estrangeira. Ainda hoje ela opõe-se a que o Haiti recupere sua soberania e
independência. Assim, ela não está disposta a aceitar as regras do jogo
democrático. Tal sentimento é compartilhado por parte ponderável da
Comunidade Internacional. Pode-se afirmar que a inadaptabilidade à
democracia não provém do povo haitiano, mas sim de sua elite e dos
governos dos principais países supostamente, como se autointitulam, Amigos
do Haiti. Ou, como afirma Mark Weisbrot, são “os Estados Unidos que não
estão preparados para conviver com um Haiti democrático”.
O Haiti não é um Estado falido. O Haiti é um quase-Estado. Ele
somente sobrevive graças à indulgência de uma parte da Comunidade
Internacional. Esta provê o país de numerosos serviços básicos que seriam de
responsabilidade pública. Ela também sustenta sua administração burocrática.
Os aportes anuais de recursos para as despesas correntes previstas no
orçamento nacional constituem prática sistemática.
O que dizer então do pagamento, mediante bolsas para supostas
pesquisas, consultorias e empresas fantasmas, dos salários de altos
funcionários da República? Um levantamento realizado pelo FMI, por razões
evidentes jamais tornadas públicas, constatou que durante o Governo Préval
havia 34 funcionários nesta situação.
Como aceitar que governos estrangeiros remunerem aqueles que
representam o país com o qual deverão negociar? Tal prática, em qualquer
lugar do mundo, tem nome e sobrenome: corrupção passiva (para o
funcionário haitiano) e ativa (do corruptor estrangeiro) de funcionário
público. No Haiti, não. Há quem justifique com o argumento de que somente
assim qualificados técnicos dispõem-se a permanecer no país.
Um quase-Estado não sobrevive sem a proteção e a cumplicidade de
Estados padrinhos. Estes, como salientado ao longo das páginas precedentes,
não demonstram o mínimo interesse em mudar sua estratégia baseada no
assistencialismo humanitário.
Formalmente o Haiti é um Estado soberano. Suas fronteiras são
reconhecidas e incontestes. Dispõe em seu território de uma população à qual
outorga nacionalidade. Seu poder de polícia, porém, é limitado. Sua
capacidade de se autoadministrar reduzida, para não dizer pífia. Equivale a
dizer que, segundo os princípios weberianos, a soberania haitiana não
transcende a ficção jurídica. Na realidade o Haiti possui o rol de elementos
para ser identificado como um Estado detentor de uma soberania negativa.
Deixados à própria sorte, Estados fantasmas como o Haiti morreriam
e provavelmente ressuscitariam pela revolta e pela revolução. Mantido o
dreno internacional, seu povo vegetará por décadas, ao passo que a indústria
da ajuda internacional terá assegurado um futuro promissor.
Muitas vezes assaltou-me a ideia de que tanto ao Governo em
particular quanto à elite haitiana em geral, lhes interessa manter o povo como
refém e se utilizam de sua miséria como moeda de troca com a Comunidade
Internacional. Estaríamos no cerne do dilema. A esperteza seria a de paralisar
qualquer possibilidade de mudança e de avanços da sociedade haitiana de
maneira a fazer com que a Comunidade Internacional e a Minustah se
mantenham no Haiti garantindo sua segurança e viabilidade política. Assim
estaria também garantido que os recursos da ajuda externa chegassem às
mãos de quem devem chegar. Segundo essa idéia, sem o declarar, a
Comunidade International por meio das Nações Unidas constituiria uma
espécie de protetorado com permanência indefinida, pois o país encontra-se
paralisado.
Sob o manto das múltiplas intervenções estrangeiras, apesar de
ninguém ousar reconhecê-lo, o Haiti transformou-se em um protetorado de
fato sob a tutela das Nações Unidas. Para o seu caso, foram ressuscitadas pelo
DPKO, em conivência com alguns Estados, as funções do Conselho de
Tutela, criado em 1945 e eliminado por recente reforma. Em sua origem, este
Conselho encarregava-se de administrar provisoriamente e de maneira
compartilhada, territórios coloniais que haviam alcançado a independência
mas não dispunham de condições de fazê-lo de forma autônoma.
A história das intervenções revela que na grande maioria dos casos a
decisão de intervir obedece a um rito sumário. Mesmo quando legitimadas,
carecem de análise e de reflexão estratégica, como no caso da Minustah. Com
uma agravante: enviaram-se soldados para onde não havia guerra, sequer
inimigos para combater.
Muitas questões são suscitadas e nunca respondidas: Há justificativas
para a utilização de soldados a outros fins e objetivos que não sejam o de
fazer a guerra? Como compreender que um país em paz, desprovido de
Forças Armadas, deva ser ocupado militarmente? Como explicar que
militares estrangeiros sejam encarregados da formação das forças policiais
haitianas?
O descompasso entre as exigências da realidade policial no Haiti e a
presença de forças militares estrangeiras é algo que faz refletir e perturba. Há
unânime constatação de que a Minustah, tal como foi concebida e
estruturada, apesar do aporte latino-americano, não condiz com as exigências
multifacetadas da empreitada.
Embora forneça exemplos inovadores de modalidades de intervenção
internacional, as Nações Unidas demonstram absoluta incapacidade na
definição de seus objetivos. A ausência destes impede a adoção de uma
estratégia de saída da crise.
Por um lado, consciente de que não deverá repetir o fracasso das seis
missões anteriores, a Minustah pretende se retirar unicamente quando tiver
certeza de que não será necessário outra vez retornar. Por outro, não consegue
definir quais seriam os termos da retirada. Por uma singela razão. Ocorre que
os principais desafios e dilemas haitianos não se encontram no campo militar,
sequer no de seguranças. Convocar a generais e coronéis para definir os
rumos de uma sociedade é fazer economia da complexidade da tarefa.
Enfim, uma vez mais se comprova a teoria que sustenta que se é
relativamente fácil tomar a decisão de intervir, muito complexa e difícil é
colocar um ponto final na intervenção. Com a agravante de que nos casos de
intervenções sob a égide do Conselho de Segurança das Nações Unidas, será
necessário novamente que todos os Estados-membros permanentes
concordem em colocar um ponto final. Ora, tanto os Estados Unidos quanto a
França poderão opor-se, em razão de seus interesses específicos, mantendo
por conseguinte o atual statu quo.
No Haiti o Tridente Imperial exerce uma tutoria informal. A maciça
participação da América Latina, a partir de julho de 2004, deveria ter tido
como consequência uma mudança radical da natureza do relacionamento
internacional com o Haiti. Constatamos que isso não ocorreu. Houve tão
somente um incremento no número de tutores.
O caso haitiano constitui exemplo suplementar a demonstrar como as
potências democráticas não respeitam as regras e procedimentos
democráticos em suas relações externas. O comportamento dos integrantes da
Comunidade Internacional no Haiti inspira-se na fórmula de Pascal: no
interior de suas respectivas fronteiras respeitam a democracia, ao passo que
em suas relações com o Haiti aderem ao autoritarismo. Sua democracia
interna e seu autoritarismo externo são faces da mesma moeda. Potências
democráticas, citadas como exemplares, desrespeitam sistematicamente os
princípios reitores da democracia.
Complementando a estratégia da commodity da miséria, foi
identificada uma vantagem comparativa haitiana que deve ser explorada. Tal
como ocorreu sob a ditadura de Jean-Claude Duvalier, inspirado pelo Grupo
de Países Amigos, foi decidido que a disponibilidade de uma mão de obra
com custos baixíssimos deveria servir de base para a vinda de maquilladoras
a produzir têxteis para o mercado dos Estados Unidos. Como exemplo o
flamante Parque Industrial de Caracol (PIC), que recebeu US$ 124 milhões
da Usaid.
Repete-se com irritante insistência o modelo fracassado que acelerará
o processo de migração entre o campo e a cidade fazendo com que a
agricultura tradicional de subsistência desapareça completamente. Os
interesses do maior produtor agrícola mundial coincidem com os conselhos
provenientes do FMI: a agricultura haitiana, não possuindo economia de
escala e competitividade, deve ser abandonada.
A estratégia dos Estados Unidos, aplicados desde a década de 80, faz
do Haiti o atual 4º maior cliente para suas exportações de arroz. Base de sua
dieta alimentar, o país era autossuficiente na década de 70. Atualmente
importa 90% de seu consumo e vive em permanente crise de abastecimento.
O liberalismo subsidiado mesclado ao humanitarismo inconsequente,
constitui a fórmula certeira e acabada do desastre.
Na fase de reconstrução do país, caso persistam as políticas esboçadas
atualmente, o Haiti perderá uma oportunidade ímpar de finalmente extrair-se
da situação de penúria e de miséria em que se encontra há tantas gerações.
Os Estados, as organizações intergovernamentais e a Comunidade
Internacional não dispõem de parâmetros e de experiência para tratar de caso
tão extremo. O Plano Marshall, que reconstruiu a Europa Ocidental devastada
pela Segunda Guerra Mundial, não pode servir como paradigma, na medida
em que ele tratou, sobretudo, de recompor infraestruturas físicas. O desafio
haitiano implica a reconstrução de instituições, a identificação de vocações
produtivas hoje inexistentes e, sobretudo, adaptar a cooperação estrangeira as
suas condições culturais e antropológicas. Embora inédito e pleno de
vicissitudes, o acompanhamento internacional ao Haiti deve ser percebido
como uma missão difícil, mas não impossível.
Eis o decálogo que deveria orientar as ações da Comunidade
Internacional no Haiti:

Os Dez Mandamentos Sobre o Haiti


1. Ausente uma eficiente coordenação em
todos os níveis, a crise haitiana se estenderá por décadas.
2. Ser solidário não é ser substituto de alguém.
3. O conjunto de ações da cooperação
internacional deve obrigatoriamente reforçar as capacidades
do Estado haitiano.
4. Além do aparato institucional, a democracia
deve responder às necessidades das pessoas, portanto ela
deve ser eficaz.
5. As repetidas intervenções da Comunidade
Internacional nos assuntos internos do Haiti confirmam que,
muito além da óbvia existência de uma “questão haitiana”,
há também incompreensões, vicissitudes e inadaptações em
nossa maneira de lidar com o Haiti. Caso contrário não seria
necessário retornar por seis vezes ao país.
6. A qualidade de uma Missão de Paz é
inversamente proporcional ao tempo de sua duração.
7. Antes de ser uma questão que interroga a
humanidade e as Américas, os desafios haitianos pertencem
aos próprios haitianos.
8. A crise haitiana se define como um conflito
doméstico de baixa intensidade marcada por uma elevada
volatilidade política e um baixíssimo nível socioeconômico.
9. O terremoto de 12 de janeiro de 2010 impõe
desafios diante dos quais todos estão desarmados.
10. Promessas sem concretização constituem
fonte de frustração.

O princípio fundamental que deve guiar a atitude da Comunidade


Internacional é o de que os problemas do Haiti pertencem aos próprios
haitianos. Solidarizar-se não é substituir-se a alguém. A ajuda internacional,
concebida de modo tradicional, gera dependência em lugar de autonomia.
Ora, a centralidade do governo e da sociedade haitiana na gestão da crise
constitui condição sine qua non para que propostas e projetos vindos de
alhures sejam por eles apropriados.
Uma condição complementar é a responsabilidade hemisférica
perante o desafio. A maior catástrofe que atingiu as Américas em todos os
tempos deve encontrar o continente unido em torno de um só objetivo:
resgatar o povo haitiano do abismo em que se encontra. O velho princípio da
segurança coletiva continental deve ser percebido sob o prisma de um novo
princípio: o da solidariedade coletiva continental.
Devemos deixar de lado manifestações de vontades unilaterais,
estratégias bilaterais e a crença arraigada que naquelas paragens a qualidade
do auxílio privado é superior à do público. Enfim, devemos abandonar a ideia
de que as autoridades haitianas não podem ser os principais interlocutores da
reconstrução nacional.
Se a solidariedade deve se manifestar de forma organizada em escala
hemisférica, há, incontestavelmente, uma responsabilidade especial do Brasil
e dos Estados Unidos. Três polos do Novo Mundo serviram de ímã ao
vergonhoso tráfico de escravos dos séculos de colonização das Américas: a
vertente ocidental da ilha de Hispaniola, a região da Bahia brasileira e certas
regiões que hoje constituem os Estados Unidos da América. Este singular
vínculo decorre da História, da cultura, das crenças e da maneira de viver
desse mesmo povo, retirado do solo africano, dividido e despedaçado pelos
descaminhos e injustiças do passado.
Assim, é no âmbito hemisférico que a solidariedade extracontinental
ao Haiti deve ser drenada. A generosidade internacional deve encontrar uma
estrutura ágil e eficaz, que tenha presente a complexidade e as dificuldades
impostas por um desafio único. Solidariedade sem organização equivale à
ineficiência, ao desperdício e à frustração. O voluntarismo é condição
indispensável, mas francamente insuficiente.
O jogo duplo a orientar a atuação de certos países no Haiti deve
cessar. Desde 1996 o Canadá colabora com a formação da Polícia Nacional
Haitiana com pífios resultados. Ottawa igualmente destina ao Haiti parte
substancial de sua ajuda ao desenvolvimento e, concomitantemente, esvazia o
país de seus recursos humanos mais qualificados, especialmente da
estratégica área da saúde.
As disputas e divisões nas Américas devem ser percebidas como
acessórias, se comparadas com o drama vivido pelo Haiti, um país que no
início do século 19 deu um exemplo ao mundo na luta contra o colonialismo,
o racismo e a escravidão. Hoje, o Haiti deve ser o ponto de encontro dos
nossos desencontros, atribuindo outro sentido à expressão Novo Mundo.
O desafio atual para a América Latina, todavia, consiste em definir o
como antes de determinar o quando se retirar do imbróglio caribenho. Para
ela o tempo do encanto e dos sonhos cooperativos pertence ao passado. Há,
inclusive, um sentimento de que a boa vontade da região foi utilizada
malevolamente pelas potências que controlam a política haitiana. O
presidente Lula – cuja boa vontade e dedicação à causa haitiana são
incontestes – foi manipulado ou deixou-se manipular. O desrespeito
sistemático de promessas feitas ao Haiti e o descarte brasileiro nos momentos
cruciais das crises tende a provar que a tática de nos imiscuirmos nos
assuntos caribenhos, embora compondo a estratégia das potências, não possui
o condão de colocá-la em questão.
O Brasil parecia ter tomado a iniciativa, em meados de 2012, de
iniciar discussões para “não perpetuar sua presença no Haiti”, segundo Celso
Amorim, atualmente ministro da Defesa. Os debates não avançaram até que o
presidente do Uruguai, José Mujica, os relançasse no início de novembro de
2013. Para Mujica, “se em 10 anos não podemos resolver essas questões,
evidentemente nos parece que o caminho tem que ser outro.” [164]
A qualidade de uma Operação de Paz é inversamente proporcional ao
tempo de sua duração. O verdadeiro sucesso deste exercício é quando ele
conhece seu ocaso. Ou seja, somente a morte de uma Missão de Paz
comprova sua utilidade e pertinência.
A burocracia internacional e certos interesses nacionais que se
esforçam em defender a continuidade da Minustah tentam justificá-la por seu
papel dissuasivo e a repressão aos atos de criminalidade comuns que ocorrem
no Haiti. Se esta constitui a razão essencial da Minustah, há inúmeros países
nas Américas e fora dela que deveriam abrigar Operações de Paz antes de
cogitá-las para o Haiti.
Em suas ações e omissões no Haiti desde 1993 a Organização das
Nações Unidas tem dado sobejas demonstrações de sua precariedade
institucional, orgânica, operacional e, com o não reconhecimento de sua
negligência culposa ao inocular a cólera, igualmente moral. O descalabro não
passa desapercebido. Em recente consulta, somente 10,9% da opinião pública
haitiana demonstrou confiar e respeitar a Minustah.[165]
Do fracasso das Nações Unidas no Haiti extraem-se lições que
deveriam conduzi-la a:
a) transferir recursos e responsabilidades a Caricom e à OEA,
permitindo que os organismos regionais acompanhem o Haiti em substituição
a paquidérmica organização universal;
b) mudar definitivamente o enfoque de sua ação, abandonando a
sacrossanta perspectiva de segurança em prol de uma percepção
multidimensional na qual prevaleçam os desafios sócio-econômicos;
c) fazer com que os funcionários que representam a organização
universal no Haiti abandonem a covardia como princípio e a mentira como
instrumento, como ficou claro em vários episódios aqui narrados;
d) debates com vistas à criação de uma organização mundial de
“terceira geração” nos parâmetros definidos e propostos por Maurice
Bertrand.
Graças ao seu ingresso na normalidade democrática o Haiti colheria
os frutos prometidos pelo Ocidente. Quase três décadas foram consumidas na
interminável busca do paraíso democrático. Durante esse período o país
arruinou-se economicamente, sua agricultura tradicional foi abandonada, seu
povo empobreceu ainda mais, seu Estado debilitou-se, suas instituições foram
sistematicamente desrespeitadas, o terremoto prostrou-o, a cólera poluiu suas
águas e fez centenas de milhares de vítimas.
Diante da hecatombe haitiana somente resta um caminho para a
Comunidade Internacional: mudar radicalmente princípios e estratégia. Caso
não o faça, o Haiti permanecerá no limbo dos problemas internacionais
insolúveis e grande parte da responsabilidade recairá sobre nossos ombros.
Bibliografia
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[1] Trata-se de referência feita exclusivamente às Organizações não Governamentais


(ONGs) estrangeiras que atuam no Haiti.
[2] Karl Laske, “Sarkozy, l’anti-Césaire”, in Libération, Paris, 21 de abril de 2008.
[3] Tal feito é silenciado pela historiografia das relações internacionais. Esta
considera a vitória nipônica na guerra russo-japonesa, em 1905, como sendo a
primeira derrota de forças armadas brancas para não brancas.
[4] Jack Goody, Le vol de l`Histoire: comment l`Europe a imposé le récit de son
passé au reste du monde, Gallimard, Paris 2010, 487 p.
[5] “Haití, país ocupado”, in Página 12, Buenos Aires, 28 de setembro de 2011.
[6] In Silencing the Past: Power and the Production of History, Boston, Beacon
Press, 1995, 195 p.
[7] In The problem of slavery in the age of revolution, 1770-1823, Ithaca, Cornell
University Press, 1975, p. 263
[8] Conforme Susan Buck-Morss, « Hegel et Haiti », CEBRAP, São Paulo, julho de
2011, p. 135.
[9] Consultar Susan Buck-Morss, « Hegel et Haiti », op. cit. e Pierre-Franklin
Tavares, “Hegel et Haiti, ou le silence de Hegel sur Saint-Domingue », Chemins
Critiques, Port-au-Prince, maio de 1992, pp. 113-131. Do mesmo autor ver « Hegel et
l`abbé Grégoire : question noire et révolution française », in Annales historiques de la
Révolution française, n. 293-294, 1993, pp. 491-509.
[10] In Laurent Dubois, Les Vengeurs du Nouveau Monde, Éditions UEH, Port-au-
Prince, 2009, p. 271.
[11] Jean Casimir, préface in Ibidem, p.12.
[12] Alyssa Golstein Sepinwall (Coordenadora), Haitian history: new perspectives,
New York, Routledge, 2012, p. 103.

[13] João José Reis, “Nos achamos em campo a tratar da liberdade: a resistência
negra no Brasil oitocentista”, in Carlos Guilherme Mota, Viagem incompleta: a
experiência brasileira, São Paulo, SENAC, 2000, p. 248.
[14] Trecho de carta endereçada aos revolucionários franceses, em julho de 1792, por
lideranças da Revolução haitiana.
[15] Washington Santos Nascimento, “São Domingos, o grande São Domingos:
repercussões e representações da Revolução Haitiana no Brasil escravista (1791-
1840)”, in Dimensões, vol. 21, 2008, p. 129.
[16] Herbert S. Klein, A escravidão africana: América Latina e Caribe, São Paulo,
Brasiliense, 1987, p. 107.
[17] As informações sobre o número de estabelecimentos agrícolas são
desencontradas. Ainda hoje as estatísticas sobre o Haiti apresentam sensíveis
diferenças decorrentes da aplicação de metodologias diversas. Autores mencionam a
existência de mais de 7.000 estabelecimentos agrícolas em 1720. Outros indicam que
no final do século XVIII há 3.117 plantações de café e 792 engenhos açucareiros (cf.
Emilio Cordero Michel, La Revolucion Haitiana y Santo Domingo, Santiago de Cuba,
Ed. Nacional, 1968, pp. 17-18).
[18] O escravo fugitivo era designado pela expressão « marron ». Derivado do hispano-americano
«cimarron» - que significa literalmente «cavalo indômito» - a expressão sofreu significativa e
reveladora evolução, pois ela é atualmente utilizada no vocábulo francês para designar alguém que
exerce ilegalmente uma profissão ou pratica um ilícito.
[19] Traído pelos franceses em 7 de junho de 1802, Toussaint Louverture é
condenado ao desterro. Conduzido à França, ele profetiza ao declarar que
“destituindo-me, vocês somente derrubaram o tronco da árvore da liberdade de Saint
Domingue. Ela renascerá, pois suas raízes são numerosas e profundas.”
[20] In The History, Civil and Commercial, of the British Colonies in the West Indies,
Editor J. Stockdale, Londres, 1801, volume 3, páginas 67-79, citado por Laurent
Dubois, Les Vengeurs du Nouveau Monde, op.cit. páginas 140-141.
[21] Laurent Dubois, ibidem, página 350.
[22] Ibidem, página 351.
[23] In Manuscrit venu de Sainte-Hélène, Ed. Badouin Fils, Paris 1821, p. 45.
[24] In Dantes Bellegarde, « President Alexandre Petion: founder of Agrarian
Democracy in Haiti and Pioneer of Pan-Americanism”, Phylon, vol.II, n.3, 1941, p.
213.
[25] Leslie François Manigat, “Haïti dans la latinité, sens et non-sens, tours er
détours, enjeu », Ed.Educam, Rio de Janeiro, 2005, p.80.
[26]Alejo Carpentier, El Reino de este mundo, Edição Primer Festival del Libro
Cubano, Lima, 1948, 122 p.
[27] Alejo Carpentier descreve o hougan François Mackandal, capaz de criar venenos
poderosos, organizando uma rede de guerrilha e se transformando em um dos
principais líderes revolucionários.
[28] Consultar Arnaud Robert, « Les touristes de Jésus », in Le Temps, Genebra, 12
de janeiro de 2013, p. 3. Todas as citações são extraídas deste artigo.
[29] Em 14 de agosto de 1791, em reunião liderada pelo cimarron jamaicano
Boukman, ocorrida em Bois Caïman, arredores do Cabo Haitiano, é sacrificado um
porco crioulo e seu sangue distribuído aos escravos que dela participavam. Forja-se
assim a aliança de sangue pela independência. Boukman faz a todos prestar o
seguinte Juramento: “Deus que criou a Terra; que criou o Sol que nos dá a luz; Nosso
Deus que nos escuta. Tu observas como os brancos nos fazem sofrer. O Deus do
homem branco ordena cometer crimes. Nosso Deus que é bom, que é justo, nos
ordena vingança. Ele dirigirá nossa luta e nos levará a vitória...”. Uma semana após a
cerimônia, tem início à revolta que culminará na independência 13 anos mais tarde.
[30] Lyonel Trouillot, “Concernant Haïti, on écoute plus les Occidentaux que les
Haïtiens eux-mêmes », in Jeune Afrique, 9 de janeiro de 2012.
[31] Trata-se da eleição de François Duvalier – sinistro personagem – que se manterá
no poder até 1971 quando, como se hereditário fora, o transfere a seu filho Jean-
Claude. Este, por sua vez, prossegue a obra do defunto pai até sua queda em 1986.
Tem início o período de implantação da democracia no qual permanecemos até o
presente.
[32] O adversário vivo é amarrado, com as mãos para trás, a um poste. Um pneu
embebido de gasolina é colocado em seu pescoço e ateado fogo.
[33] Pierre-Raymond Dumas, “Deux ans, et après? », in Le Nouvelliste, 7 de junho de
2013.
[34] Trata-se da única missão conjunta executada pela OEA e pela ONU.
[35] Resolução 54/193 adotada pela AGNU e não pelo Conselho de Segurança.
[36] Presidente de Agri Supply e crítico das promíscuas relações haitianas com o
exterior na área agrícola, Pierre Léger é uma das raras vozes a denunciar o abandono
da produção primária em seu país. Ver Le Nouvelliste, 29 de janeiro de 2014.
[37] Jean-Bertrand Aristide – Titide – nasceu em Port Salut (sudoeste do Haiti) em 15
de julho de 1953. Ordenado padre salesiano em 1983, logo adere à Teologia da
Libertação. Orador brilhante, sua pregação religiosa e suas ações sociais o conduzem
rapidamente à política. Expulso da Congregação Salesiana em 1988 é eleito presidente
da República em dezembro de 1990. Um golpe militar derruba-o em setembro de
1991. Retorna ao país em 1994 para concluir o mandato. Autor prolífico de quase
duas dezenas de livros, Aristide é objeto de culto, mas também de ódio. Nada menos
de 58 livros foram publicados sobre o controverso personagem.
[38] Filha de haitianos emigrados aos Estados Unidos e de nacionalidade americana,
foi uma das advogadas do governo haitiano em seu primeiro exílio em Washington no
início da década de 90. O casal possui duas filhas, Christine e Michaelle.
[39] Libération, Paris, 1º de março de 2004.
[40] Advogado, natural de Gonaïves, Léon Manus faleceu em New Hampshire (EUA)
em 26 de outubro de 2012.
[41] O partido político Lavalas foi fundado em 1991 por Jean-Bertrand Aristide e
manteve aliança com a Organização do Povo em Luta (OPL). Em 1996, o Lavalas
rompe com a OPL e funda o movimento Família Lavalas.
[42] A diplomata de Trinidad e Tobago, Sandra Honoré, é Chefe de Gabinete e braço
direito de Luigi Einaudi. Em meados de 2013 ela será designada Representante
Especial do SG/NU e Chefe da Minustah no Haiti.
[43] Gérard Gourgue não desistirá do Palácio Nacional. Ele avalia suas chances ao
candidatar-se nas eleições presidenciais de fevereiro de 2006. Contemplado com
míseros 5.852 votos, o que representa 0,3% do total, nota-se que Gourgue não deixava
de ter razão em 2000 quando tentou, por vias transversas, realizar seu sonho. Por meio
do voto seria impossível.
[44] Gérard Pierre-Charles produziu uma extensa e importante obra sobre o Haiti.
Provavelmente ele represente, juntamente com sua esposa, a historiadora Suzy Castor,
a mais importante referência nas Ciências Sociais do país. Ao retornar do exílio
vincula-se ao movimento Lavalas de Aristide. Ao final dos anos 90 rompe com
Aristide e cria uma dissidência denominada Organização Política Lavalas (OPL).
Posteriormente, mantendo a mesma sigla, a dissidência passa a chamar-se
Organização do Povo em Luta.
[45] Suzy Castor, “Frente al Vandalismo del Poder Lavalas”, CRESFED, 2002.
[46] Luigi Einaudi, “La anarquia es la palabra clave aquí”, in Nueva Mayoria, 13 de
fevereiro de 2004.
[47] In BBC News, 14 de fevereiro de 2004.
[48] Ibidem.
[49] De fato a dívida contraída foi de 150 milhões de franco ouro. Posteriormente
reduzida a 90 milhões. Calculada a inflação, a suposta dívida alcançaria exatamente,
segundo Aristide, US$21.685.135.571,48.
[50] Gérard-Pierre Charles, “Haiti: Aristide est un rétrograde”, L`Humanité, 21 de
fevereiro de 2004.
[51] Ibidem.
[52] Ibidem, “Crisis del Estado e intervención internacional en Haiti”, Panamá,
Tarea, nº 118, pp. 65-78,
[53] My Life, Alfred A. Knopf, New York, 2004, p. 649.

[54] Editorial do Le Monde sob o título “La question d`Haïti”, Paris, 18 de fevereiro
de 2004.
[55] Ver Maurice Lemoine, “Aristide: a queda na própria armadilha”, in Le Monde
Diplomatique Brasil, 1/9/2004.
[56]Fernando de Mello Barreto, A política externa após a redemocratização, Tomo II
– 2003-2010, Brasília, Funag, 2012, p. 113. Grifos do autor.
[57] O Mecanismo Permanente de Consulta e Concertação Política da América
Latina e do Caribe, conhecido como Grupo do Rio, conta naquele momento com a
participação de 18 Estados latino-americanos e caribenhos (Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México,
Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e Venezuela).
[58] Em 1994, quando dos debates sobre a intervenção consentida dos Estados
Unidos no Haiti para repor no poder a Aristide, o Brasil se absteve. Naquela
oportunidade Celso Amorim, defensor intransigente da não-intervenção, era seu
ministro das Relações exteriores.
[59] United Nations, Security Council, 4917th Meeting, 26 de fevereiro de 2004.
Grifos do autor.
[60] João Clemente Baena Soares, Sem medo da diplomacia, CPDOC, Editora FGV,
Rio de Janeiro, 2006, p. 86.
[61] Ricardo Seitenfus, « Politischer Kannibalismus », in Der Spiegel, 3 de janeiro de
2011, p. 71.
[62] Bertrand Badie, La Diplomatie de la connivance: les dérives oligarchiques du
système international, La Découverte, Paris, 2011, p. 140.
[63] Ibidem, p. 144.
[64] Ibidem.
[65] Hesitantes no início, os militares brasileiros foram convencidos de participar na medida em que
todos os equipamentos, os sistemas de comunicação e transporte e o material a ser utilizado seriam
nacionais. É a primeira vez em sua história que uma importante força militar é enviada ao exterior
nestas condições. Para os estrategistas a operação se transformou num desafio na preparação dos
homens, na capacidade de comunicação e de transporte bem como um teste de confiança na indústria
brasileira de armamentos.
[66] Neste aspecto o discurso do presidente Lula apresenta traços que o aproximam dos presidentes
africanos, como aquele de Alpha Oumar Konaré, ex-presidente de Mali e da Comissão da UA, quando,
referindo-se ao dever de cooperação em relação ao episódio de Darfur, afirma: “somos a favor de que a
África assuma o seu dever de não-indiferença (que se traduz em) uma ingerência solidária”.
[67] Ricardo Seitenfus, “Elementos para uma diplomacia solidária: a crise haitiana e
os desafios da ordem internacional”, in Carta Internacional, São Paulo, 2006, vol. 1,
n. 1, pp. 5-12.
[68] Ver páginas 105 e seguintes.
[69] Coletiva de André Singer, Radiobrás, 4 de março de 2004.
[70] Prensa Latina, 26 de abril de 2013.
[71] Ibidem.
[72] Grifo do autor. Note-se que esta tomada de posição radical antecede de poucos
dias os ataques contra a oposição de 17 de dezembro daquele ano. Estas agressões
resultaram em irreparável dano à respeitabilidade de Aristide e afastaram-no
definitivamente dos movimentos e partidos de esquerda latino-americana, que haviam
alcançado o poder em vários países.
[73] Ibidem.
[74] In Folha de S. Paulo, 23 de janeiro de 2011.
[75] “O que vai fazer o Brasil no Haiti?”, in América Latina em Movimento, ALAI,
11 de março de 2004.
[76] “Diário do Haiti (1)”, in Carta Maior, 24 de setembro de 2007.
[77] Jamil Chade, “Fernando Henrique questiona missão no Haiti”, in Estado de São
Paulo, 24 de janeiro de 2006.
[78] José Augusto Guilhon Albuquerque, “O intervencionismo na política externa
brasileira”, in Nueva Sociedad, dezembro de 2009.
[79] “Aucune disposition de la présente Charte n`autorise les Nations Unies à
intervenir dans les affaires qui relèvent essentiellement de la compétence nationale
d`un Etat ni n`oblige les Membres à soumettre des affaires de ce genre à une
procédure de règlement aux termes de la présente Charte; toutefois, ce principe ne
porte en rien atteinte à l`application des mesures de coercition prévues au Chapitre
VII ».
[80] Le Chapitre VII, le plus important de la Charte, est dédié à “l`action en cas de
menace contre la paix, de rupture de la paix et acte d`agression. »
[81] Ricardo Seitenfus, “De Suez ao Haiti: a participação brasileira nas Operações de
Paz”, in O Brasil e a ONU, Funag, Brasília, 2008, pp. 39-58.
[82] Alain Rouquié, Guerras y paz en America Central, Mexico, Fondo de Cultura
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[83] Susan Rice, Facing 21st-Century Threats: Why America Needs the UN, Palestra
proferida no World Affairs Council of Oregon, Portland, 11 de fevereiro de 2011.
[84] Tenente Comandante Carlos Chagas, braço direito do Force Commander, in
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Cambridge e Centro de Justiça Global, Rio de Janeiro e São Paulo, 2005, p. 46.
[85] In Refugees International, 17 de março de 2005.
[86] Entrevista concedida a Agência EFE, 4 de agosto de 2006.
[87] Ibidem.
[88] Outro complicador virá da ajuda, sobretudo a partir do governo Préval,
concedida por Taiwan ao Haiti. Para contornar o mau humor de Pequim, o DPKO
propõe, com êxito, que policiais chineses integrem-se à Minustah. Assim, de um
policial civil chinês em junho de 2004, a Missão contará, em dezembro de 2006, com
130 policiais chineses atuando no Haiti.
[89] In Folha de S. Paulo, 3 de dezembro de 2004.
[90] Ibidem.
[91] Depoimento no Senado brasileiro. In Folha de S. Paulo, 3 de dezembro de 2004.
[92] Revelações do Wikileaks, Folha de S.Paulo, 13 de janeiro de 2011.
[93] In Le Figaro, Paris, 7 de fevereiro de 2006
[94] Aproximadamente em meados de janeiro, um dos ex-sequestrados era conduzido
ao trabalho quando um automóvel ultrapassou-o e seu chofer o cumprimentou. O ex-
sequestrado automaticamente respondeu com um aceno de mão. Logo se deu conta: a
saudação provinha de um de seus algozes, que circulava livremente pelas ruas de
Porto Príncipe.
[95] Independent, Londres, 9 de janeiro de 2006.
[96] In Veja, São Paulo, 18 de janeiro de 2006.
[97] In Le Figaro, Paris, 7 de fevereiro de 2006.
[98] In BBC Brasil, 7 de janeiro de 2006.
[99] O prolífico e importante escritor haitiano, Gary Victor, inspira-se no episodio
para construir uma obra de ficção em seu inconfundível estilo “polar vaudou”. Ver,
Cures et châtiments, Ed. Memoire d`Encrier, Montreal, 2013, 207 p.
[100] « Falsa guerra rende salários mais altos”, in Estado de São Paulo, 12 de
outubro de 2008.
[101] Ibidem.
[102] Ibidem.
[103] Ibidem
[104] Embora o fenômeno da DPP seja marcante no caótico sistema prisional
brasileiro, pois dos 548.003 presos, 195.036 são detentos provisórios sem condenação
definitiva, nossa triste realidade encontra-se distante do descalabro haitiano. Consultar
Departamento Penitenciário Nacional, Ministério da Justiça, 7° Anuário do Fórum
Brasileiro de Segurança Pública.
[105] In Un pas en avant, deux pas de côté, op. cit., pp. 281-282.
[106] Meu primeiro contato com o Haiti ocorreu em abril de 1993 quando tomei parte
da Micivih, criada conjuntamente pela ONU e OEA, para tentar fazer respeitar os
direitos humanos durante a ditadura militar de Raoul Cédras. Previsto para
permanecer durante quatro meses, adoeci e fui repatriado ao cabo de 30 dias. A partir
de então, tentava liberar-me de profunda e inquietante fascinação. Decidi publicar um
pequeno livro, que conheceu um retumbante fracasso editorial. Prova que no Brasil
ninguém se interessava pelo assunto (Haiti: a soberania dos ditadores, Editora
Sólivros, Porto Alegre, 1994, 137 p.).
Retornei aos meus assuntos universitários prediletos, entre estes o estudo das
Organizações Internacionais. Quando o Brasil assume o comando da vertente militar
da Minustah, em julho de 2004, o Ministério das Relações Exteriores solicita que faça
missões periódicas ao Haiti. Em fins de 2008 o ministro Celso Amorim me informa
que José Miguel Insulza consultou-o sobre a possibilidade de o Brasil recomendar
alguém para ser o Representante Especial do Secretário Geral da OEA no Haiti.
Hesitante, aceitei a indicação. Seria uma fugaz embora reveladora incursão nas
entranhas de uma organização internacional. Antes de assumir, visitei a sede da OEA
em Washington. Entre tantas sugestões e recomendações recebidas uma me pareceu
bizarra: no caso da Representação da OEA no Haiti, os assuntos administrativos e
financeiros estariam a cargo de Albert Ramdin, ao passo que os políticos seriam da
alçada de José Miguel Insulza. Posteriormente dei-me conta da confusa relação de
todas as representações nacionais da OEA com a Secretaria Geral.
Assumi as novas funções no início de janeiro de 2009 sem sequer imaginar quão
marcante, atribulada e extraordinária viria a ser a experiência.
[107] Sem fazer vítimas, em 25 de maio de 2013, o Sucatão sofreu uma pane e
acidentou-se ao tentar decolar do Aeroporto Toussaint Louverture com mais de uma
centena de militares brasileiros que retornavam ao país. Talvez tenha chegado o
momento de sua aposentadoria.
[108] Sabine Wespieser Éditeur, Paris, 2010, 160 p.
[109] Federico Mastrogiovanni, “Pobres nem sempre tiveram a atenção necessária
das equipes de resgate”, in Opera Mundi, 05/02/2010.
[110] Ibidem.
[111] Ibidem.
[112] Yanick Lahens descreve com pudor e sensibilidade, a agonia e o calvário de
Michel “Micha” Gaillard.
[113] « L`imposture des Nations unies en Haïti », Le Monde, Paris, 31 decembre
2010. Trata-se de meia verdade, pois os soldados foram utilizados para auxiliar única
e exclusivamente o resgate dos estrangeiros.
[114] Mônica Hirst, “O Haiti e os desafios de uma reconstrução sustentável – um
olhar sul-americano”, in Política Externa, vol.19, n.1, 2010.
[115] O cálculo leva em consideração o número de pessoas submetidas à escravidão
sobre o total da população, casamentos de crianças e tráfico de pessoas para dentro e
fora do país.
[116] In Le Temps, Genebra, 24 de dezembro de 2004. Sobre a situação dos adotados
pelos Estados Unidos consultar Ginger Thompson, “After Haiti Quake, the Chaos of
U. S. Adoptions”, New York Times, 3 de agosto de 2010.
[117] Peter James Hudson, “On Citigroup’s anniversary, don’t forget its brutal past”,
in The Miami Herald, 18 de junho de 2012.
[118] My Life, Alfred A. Knopf, New York, 2004, p. 236.
[119] Consulter o Editorial de Pierre Raymond Dumas, “Bill Clinton et Haïti’ in Le
Nouvelliste, Porto Príncipe, 9 de julho de 2010, no qual o autor define Clinton como
“une sorte d`avocat de la cause (perdue?) haïtienne, un ambassadeur de choc, capable
de susciter un intérêt durable pour les efforts de reconstruction en Haïti, un agent de
publicité capable de vendre le produit haïtien en dépit de tout, malgré maintes
circonstances défavorables.”
[120] A primeira brigada médica cubana chega ao Haiti em 4 de dezembro de 1998,
sob a primeira Presidência de René Préval. Desde então, milhares de profissionais de
saúde atravessaram o Canal dos Ventos e prestavam assistência médica aos lugares
mais recônditos do Haiti. Consultar Victor Manuel Rodriguez Guevara, Haiti querido:
colaboracion medica cubana, Editorial Pablo de la Torriente, Havana 2003, 107 p.

[121] Janet Reitman, “How the World Failed Haiti”, Rolling Stone, 4 de agosto de
2011.
[122] Ibidem.
[123] Ibidem. A bem informada reportagem de Janet Reitman provocou imensa
confusão no Departamento de Estado e na Usaid. Buscando identificar e reprimir
vazamento de informações, houve uma caca às bruxas. Como era impossível
identificar as fontes dentro do governo americano, decidiram optar por um bode
expiatório. Assim, Clinton exigiu e obteve a exoneração de Alice Blanchet – próxima
colaboradora de Bellerive – da CIRH. Ora, Alice Blanchet não dispunha sequer de
uma fração das revelações contidas na reportagem.
[124] Consultar Andre-Marcel d`Ans, Haiti, paísaje y sociedad, Editora Oriente,
Santiago de Cuba, 2011, p. 263.
[125] Yanick Lahens, op. cit., pp. 87-88.
[126] Le Nouvelliste, 21 de agosto de 2012.
[127] In Le Nouvelliste, « Michaelle Jean: Présidente d`Haïti ? », Porto Príncipe, 25
de março de 2013.
[128] Nora Schenkel, “I Came to Haiti to Do Good...”, The New York Times, 16 de
maio de 2013.
[129] In Le Nouvelliste, 28 de junho de 2013.
[130] Consultar Kim Ives, “Comment Washington et les grandes compagnies
pétrolières se sont battus contre Petrocaribe en Haïti”, Documentos divulgados por
Wikileaks, in Haïti Liberté, vol. 6, n. 51 ,3 de julho de 2013.

[131] In Le Nouvelliste, 11 de março de 2013.


[132] Ibidem, 5 de março de 2013.
[133] Um lugar especial ocupa a cooperação oferecida por Taiwan ao Haiti.
Desprovida de entraves burocráticos, ela é ágil e se utiliza preferencialmente do
modelo clef en mains.
[134] Brasil, Ministério das Relações Exteriores, Circular 63.289 de 20 de março de
2007.
[135] “La grande manip”, in Refonder Haïti?, op. cit., p. 290.
[136] Depoimento na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Senado
do Brasil, 26 de setembro de 2013.
[137] A denúncia, firmada pelo Diretor da Fadisma, professor Eduardo de Assis
Brasil Rocha e pelas professoras Cristine Koheler Zanella e Carolina Beraldo,
encontra-se no sítio www.fadisma.com.br no link Acao pelo Haiti. Várias passagens e
informações deste capítulo, foram extraídas ou inspiradas no extraordinário
documento produzido pelas Professoras Cristina Zanella e Carolina Beraldo. A elas
meu agradecimento bem como o dos leitores.
[138] Ressaltado pelo autor.
[139] ABC News, 9 de março de 2012.
[140] BBC News, 8 de maio de 2013.
[141] Rick Gladstone, « Rights Advocates Suing U. N. Over the Spread of Cholera in
Haiti”, in The New York Times, 8 de outubro de 2013.
[142] Claude Roumain, L`énigme Préval, Ed. Henri Deschamps, Porto Príncipe, 2011
e Fred Brutus (organizador), 100% Préval, Editora C3, Porto Príncipe, 2011, Joseph
Lambert, Les mots en vrai, Editions C3, Porto Príncipe, 2012, 214 p., Vernet Larose,
Clinton-Préval : le J`accuse de Fidel : chroniques d`une crise endémique, Editions
CIDIHCA, Montreal, 2012, 183 p. e Himmler Rébu, René Préval, le dernier tango,
Porto Príncipe, s/editora, 2012, 238 p.
[143] Filho de um ex-ministro obrigado a asilar-se com o golpe de François Duvalier
em 1963, René Préval estuda agronomia na Bélgica e nos Estados Unidos. Regressa
ao Haiti para fazer oposição à ditadura de Jean-Claude Duvalier. A vitória de Aristide
nas eleições presidenciais de 1990 serve de abre-alas para seu extraordinário percurso
político.

[144] Interview exclusive accordé à TVC, station de télévision privée de Port-au-


Prince, le 30 janvier 2010.
[145] Kim Ives, “Comment Washington et les grandes compagnies pétrolières se sont
battus contre Petrocaribe en Haïti”, Documentos divulgados por Wikileaks, in Haïti
Liberté, vol. 6, n. 51,3 de julho de 2013.
[146] Declarações transmitidas pela Agência France-Presse (AFP), de 25 de
novembro de 2010.
[147] Ibidem.
[148] Ibidem, de 28 de novembro de 2010.
[149] Apresentado pelos seus seguidores e pela Comunidade Internacional como um
intruso e um corpo estranho na turbulenta política haitiana, Michel Martelly é
percebido pela oposição, sobretudo a do Lavalas, como um dos mentores do regime
golpista de 1991-1994. Para esta, sob o disfarce de cantor e palhaço do mundo
artístico, esconde-se, de fato, o herdeiro do duvalierismo e portanto o coveiro da
democracia e das aspirações populares.
[150] Ginette Chérubin, Le ventre pourri de la bête, Editora da Universidade de
Estado do Haiti, Porto Príncipe, 2014, p. 253.
[151] “Impérialisme: il faut des formes de déconnexion et de résistance », in Le
Nouvelliste, 26 de agosto de 2013.
[152] Antonio Sola é um dos proprietários da empresa de consultoria espanhola Ostos & Sola
“especializada na geração de estratégias políticas, sociais e empresariais”. Muito ativa em campanhas
eleitorais de candidatos conservadores na Espanha, na América Central e no Caribe, em 2008
aconselhou o candidato republicano John McCain nas eleições presidenciais dos Estados Unidos. Com
sedes em Miami e Washington, a empresa apresenta a eleição de Martelly como cartão de visitas. Uma
vez eleito, Martelly nomeia Antonio Sola Embaixador Itinerante (sic) do Estado haitiano.
[153] Ginette Chérubin, op. cit., páginas 259 e seg.
[154] Com este perfil, Trigo foi enviado posteriormente por Madri ao Paraguai.
Quando do golpe parlamentar que derrubou o Presidente Lugo, o novo embaixador
declarou que a “Espanha não tinha nenhuma dúvida sobre a democracia paraguaia”.
[155] Folha de S. Paulo, 23 de janeiro de 2011.
[156] Jovem doutor em Ciências Políticas, de nacionalidade chilena, Cristobal chegou
ao Haiti logo após o terremoto de janeiro de 2010. Inteligente, perspicaz e dotado de
um espírito crítico aguçado, ele não media esforços para auxiliar-me a conduzir a
Missão da OEA a bom porto. Mantive com ele constante interlocução e certamente,
tanto ele quanto eu, muito aprendemos ao longo do annus horribilis.
[157] “OEA vê risco de mais instabilidade no Haiti”, in Folha de S. Paulo, 13 de
janeiro de 2011.
[158] “Insulza aclara polémica salida de jefe de la OEA en Haití” in El Mercurio,
Santiago do Chile, 26 de dezembro de 2010.
[159] Léger-Félicité Sonthonax, Comissário civil francês enviado a Saint-Domingue
durante a luta pela independência decreta, pela primeira vez, em 29 de agosto de
1793, a abolição da escravidão no Norte do Haiti.
[160] Laurent Dubois, Haiti - The Aftershoks of History, Metropolitan Books, New
York, 2012, pp. 368-369.,
[161] Jonathan M. Katz, “Haiti’s Inconvenient Truth”, Foreign Policy, abril de 2013.

[162] Para fazer boa figura se entrevista com o Réseau National de Droits de
l’Homme (RNDDH) o qual, apesar de sua seriedade, não trabalha com temas
eleitorais. Consultar OEA, Rapport Final de la Mission d’Experts de l’OEA pour la
Vérification de la Tabulation des votes de l’élection Présidentielle du 28 novembre
2010 en République d’Haïti, OEA/Ser.G – CP/doc. 4529/11 de 18 de janeiro de 2011.
[163] Antonio José Ferreira Simões, Eu sou da América do Sul, Editora FUNAG,
Brasília, 2012, pp. 114-115.
[164] “Mujica anuncia retirada de soldados uruguaios do Haiti”, in Opera Mundi, 16
de novembro de 2013.
[165] Pesquisa de opinião realizada pela empresa Newlink de Miami. In Le
Nouvelliste, 12 de julho de 2013.

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