Apresentado em 2005, no
IV Colóquio Sul-Americano de Realismo Jurídico
I Congresso Sul-Americano de Filosofia do Direito
Introdução: política e reconhecimento
Weber tratou do fenômeno moral na vida social através de vários tipos ideais. Dentre
os mais conhecidos, estão a “ética da responsabilidade”, a “ética da convicção” e a
“ética protestante”. Para o nosso tema, é relevante o tipo ideal por ele denominado
“ética da fraternidade”.
Quando ele trata dos tipos de comunidade, refere a “comunidade de vizinhos”,
aquela que repousa simplesmente “no fato da proximidade de residência.” A
comunidade de vizinhos típica é a aldeia. Nela reina “o princípio, próprio da ética
popular de todo o mundo: ‘como tu comigo, assim eu contigo’” . O princípio básico
da ética comunitária, portanto, é o preceito conhecido como a “regra de ouro”.
Como diz Weber, no interior do grupo, valia “a simples reciprocidade: ‘assim como tu
para mim, assim eu para ti’”, e portanto “o princípio do socorro fraternal regia
limitado à moral interna: prestação gratuita de bens de uso, crédito sem juro,
hospitalidade”, tudo “regido pelo princípio (...): hoje por ti, amanhã por mim.” Como a
regra de ouro disciplinava somente as relações no interior do grupo, no trato com os
os estranhos à comunidade, valiam outros padrões: admitia-se por exemplo, “a
escravização permanente.” O pleno reconhecimento do outro está ligado assim, à
pertença ao grupo. Determinar quem é o vizinho ou o próximo é uma questão moral
central.
A ética da fraternidade da comunidade de vizinhança é uma ética particularista, ou
seja, uma ética de reconhecimento restrito. Para enfrentarmos o problema que nos
propomos, necessitamos de uma ética da fraternidade universalista, isto é, de
reconhecimento pleno de todo ser humano como pessoa. Optamos neste texto, por
analisar a ética cristã como exemplo da ética da fraternidade de tipo universalista.
Segundo Weber, o ensino ético de Jesus de Nazaré “contém também em si a ética
de socorro originária da comunidade de vizinhança”, presidida como vimos, pela
regra de ouro: “Como quereis que os outros vos façam, fazei também a eles.” A
novidade introduzida por Jesus de Nazaré é a universalização do destinatário da
reciprocidade da regra de ouro. Na expressão de Weber, a ética da fraternidade do
Evangelho repousa sobre “o sentimento de amor fraternal, referido este preceito
universalmente a todo aquele que neste momento, é o próximo.”
É na parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37) que buscaremos uma síntese da
ética da fraternidade, nas suas duas dimensões: a praxis (o reconhecimento) e a lei
(a regra de ouro).
Um legista (nomikós) pergunta a Jesus: “Mestre, que farei para herdar a vida
eterna?” Jesus responde: O que está escrito na Lei (nomos) ? Como lês?” Nestes
dois versículos, o diálogo decorre no horizonte da Lei. O que interroga o faz na sua
condição de especialista da Lei. A fala de Jesus também remete à Lei. Na sua
resposta, o legista faz duas citações da Lei: Deuteronômio 6, 5 (o amor a Deus) e
Levítico 19, 18: “Amarás teu próximo como a ti mesmo”.
Diante da concordância de Jesus com sua resposta, o legista formula a questão: “E
quem é meu próximo?” Segundo o exegeta Joachim Jeremias , “a pergunta do
legista era justificada porque a resposta era discutida. De fato, reinava o acordo que
próximo significava o membro do povo de Israel incluindo o prosélito pleno, mas não
se estava de acordo sobre as exceções”: os fariseus inclinavam-se a excluir os não-
fariseus, os essênios excluíam os “filhos das trevas”; outras correntes excluíam os
hereges e era muito difundida a idéia de que o inimigo pessoal não era próximo.
Para a praxis da Lei, não basta o conhecimento da Lei. Para o cumprimento do amor
ao próximo, é necessário o reconhecimento do outro como próximo. A parábola que
Jesus narra não tem por finalidade aprofundar o conhecimento jurídico-teológico do
legista, mas a sua capacidade de reconhecimento do outro. A parábola não tenta
informar sobre o conteúdo de um conceito, mas gerar uma atitude no ouvinte. O
saber que pretende transmitir não é proposicional, mas existencial.
Um homem (anthropos) encontra-se caído na estrada de Jerusalém a Jericó, ferido
por assaltantes. Essa estrada de aproximadamente 27 Km, era mal afamada por
causa dos freqüentes assaltos. Temos, portanto, uma cena provável, em um lugar
conhecido, o que predispõe o legista a situar-se na cena e a identificar-se com os
personagens.
Um sacerdote e um levita evitam aproximar-se do homem caído: “viram e passaram
adiante” (vv. 31-32). O homem caído não tem qualificações. Não se sabe se ele é
judeu ou estrangeiro, pagão ou prosélito, essênio ou fariseu. Ao evitar aproximar-se
para determinar se o homem caído é próximo ou não pelos critérios convencionais, o
mandamento perde qualquer conteúdo, mesmo restrito. Como identificar o próximo
no homem caído sem aproximar-se dele? O sacerdote e o levita, dois personagens
que conhecem a Lei, não se aproximam do homem ferido. Para eles, não haverá
próximo, em qualquer sentido, o que significa que aqui e agora, não há nenhuma
obrigação, nenhum mandamento, nenhuma Lei. Viram mas não reconheceram. Se o
reconhecimento do próximo é necessário para dar um conteúdo ao mandamento do
amor ao próximo, constata-se que só sabe quem é o próximo aquele que se
aproxima.
Um samaritano é o personagem seguinte. Os samaritanos eram inimigos dos
judeus, tanto do ponto de vista político como religioso. O samaritano está em viagem
na Judéia, um lugar no qual só pode esperar hostilidade assim como o judeu Jesus,
seguindo a cronologia de Lucas, há pouco tinha sido hostilizado pelos samaritanos
ao atravessar seu território ( Lc 9, 51-55). Jesus conta que “o samaritano chegou
junto dele, viu-o e encheu-se de compaixão” (v.33)
Como estrangeiro, o samaritano não pode guiar-se no seu gesto por uma ética
particularista da fraternidade. Ninguém na Judéia é seu vizinho, a ninguém ele deve
reciprocidade. Do mesmo modo, ele não se guia por um código de hospitalidade,
que disciplinaria as relações entre os membros do grupo e o estrangeiro. Ele é o
estrangeiro. O samaritano tem todos os motivos para considerar aquele que está
caído um inimigo, pois está na Judéia.
Contudo, o samaritano “chegou junto dele”. Não dá a volta, não dá as costas, não
prossegue a viagem. É a primeira atitude de acolhimento do outro como pessoa, o
primeiro ato do processo de reconhecimento: transcender a si mesmo e caminhar
em direção ao outro. O samaritano desloca a sua atenção da sua viagem, dos seus
fins, para colocá-la no outro. Ao aproximar-se, “viu-o”. Não o viu como o levita e o
sacerdote, que “viram” e deram a volta. O que eles viram foi um vulto humano,
alguém com aparência humana, como viram também pedras e árvores no caminho.
Ao aproximar-se, o samaritano vê o outro na sua integralidade. Ele está tão próximo
que qualquer qualificação do outro que procure descaracterizá-lo como próximo não
é mais possível. Ele vê uma pessoa, não um judeu, samaritano, romano, fariseu ou
essênio. Toda qualificação ulterior é irrelevante: o samaritano, viu o outro ao
reconhecê-lo, e portanto, tornou-se cego para qualquer discriminação.
“Encheu-se de compaixão”: o samaritano vê o sofrimento do outro, vê sua
vulnerabilidade e identifica-se com o outro. A vulnerabilidade do outro é a de
qualquer pessoa, é a sua. Também com ele isso poderia ter acontecido: não está
também ele em uma estrada perigosa? Há uma solidariedade que brota da
consciência de uma fragilidade comum, há uma comoção que é a capacidade de
reproduzir em si o que o outro sente. Ele não pensa em si como superior ou
invulnerável, ele não se acha seguro e assim, indiferente ao sofrimento alheio. O
outro é pessoa como ele, partilha as mesmas carências e necessidades. O que
ocorre com ele pode ocorrer consigo. Reconhecer o outro é ter compaixão, isto é,
identificar-se com ele, considerando-o uma pessoa igual a si.
A comoção do samaritano não é estéril. Ele auxilia eficazmente o ferido,
transportando-o e cuidando dele. O samaritano, provavelmente um comerciante,
suspende sua viagem. Deixa de ocupar-se com suas necessidades e concentra-se
nas necessidades do homem caído. O legista descreve o samaritano como “aquele
que usou de misericórdia” (v. 37) para com o ferido. Na tradição cristã, o termo
misericórdia descreve a atitude daquele cujas ações têm por objetivo o bem do
próximo. Reconhecer o outro é exercer a misericórdia em seu favor, é assumi-lo
como fim.
O samaritano soube reconhecer o outro como pessoa. Ele realiza um
comportamento que não é pensável nos limites da ética da fraternidade da
comunidade de vizinhança. Não há nenhuma mediação comunitária entre ele e o
homem que foi socorrido.
Vamos tentar sistematizar a ética da fraternidade pressuposta no comportamento do
samaritano.
“Quem é meu próximo?” “Os bárbaros são inferiores?” “Os índios tem alma?” “Os
africanos podem ser escravizados?” “Os prisioneiros de Guantánamo são
prisioneiros de guerra?” “Em que condições posso usar a tortura?” Aquele que se
coloca essas perguntas, e muitas delas foram colocadas em circunstâncias políticas
ótimas, isto é, democráticas, é incapaz de reconhecer o outro como pessoa.
Essa incapacidade de reconhecer a humanidade do outro pode ser chamada de
alienação. A alienação “é a situação ou uma condição de um ser humano que não
lhe permite fazer a experiência de outro ser humano como um outro eu”.
A fraternidade é a virtude que torna o ser humano capaz de reconhecer o outro. A
alienação é o vício oposto a essa virtude. O homem fraterno não pergunta “Quem é
meu próximo?” A pergunta não é legítima. Colocar condições para reconhecer o
outro significa alienar-se dele. Para a ética da fraternidade, perguntar pelo próximo é
perdê-lo.
BIBLIOGRAFIA