Título I
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA
Capítulo 1
Bases e princípios da organização da Administração Pública
Secção I
Bases de organização da Administração Pública
logo por isso, “não pertencem”, nem se apresentam como sujeitos da Administração
Pública.
Neste sentido, o universo da Administração Pública situa-se num dos polos de um
mapeamento dualista que traça uma linha de divisão entre o Estado (lato sensu) e a
Sociedade Civil, o mesmo é dizer, entre a esfera pública e a esfera privada.
A exclusão dos particulares (dos cidadãos e das entidades por eles criadas) do
conceito de Administração Pública reclama duas observações.
Assim, por um lado, deve sublinhar-se que a Administração que não funciona,
nem existe, sem pessoas. São as pessoas que dão vida à Administração e que a põem em
ação. Neste sentido, as pessoas, os cidadãos, “fazem parte” da Administração, mas apenas
na qualidade de agentes, de trabalhadores ou de titulares de órgãos administrativos, e
não no estatuto ou na qualidade de cidadãos.
Por outro lado, importa considerar o fenómeno, de certo modo frequente,
consistente em entidades particulares assumirem, em nome próprio e no quadro de uma
concessão ou delegação pública, a responsabilidade pelo exercício de funções
administrativas: eis o que sucede com empresas particulares concessionárias de serviços
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e de obras públicas (v.g., concessionárias de autoestradas ou de aeroportos); outro tanto
se verifica com associações ou entidades particulares de outro tipo que, com base em
delegação pública, se dedicam a atividades de regulação (assim sucede com as federações
desportivas, que são associações de direito privado investidas de funções públicas de
regulação do desporto) ou a atividades de inspeção (associações de inspeção de navios)
ou de certificação de produtos (comissões vitivinícolas regionais).
1
Cf. Decretos-Leis n.os 46/89, de 15 de fevereiro (alterado pelos Decretos-Leis n.os 163/99, de 13
de maio, 317/99, de 11 de agosto, 244/2002, de 5 de novembro, e pela Lei n.º 21/2010, de 23 de agosto) e
68/2008, de 14 de abril (alterado pela Lei n.º 21/2010, de 23 de agosto) e RAL
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Tâmega e Sousa; CIM do Douro; CIM das Terras de Trás-os-Montes; CIM da Região de
Aveiro; CIM da Região de Coimbra; CIM da Região de Leiria; CIM Viseu Dão Lafões;
CIM das Beiras e Serra da Estrela; CIM da Beira Baixa; CIM do Oeste; CIM do Médio
Tejo; Área Metropolitana de Lisboa; CIM do Alentejo Litoral; CIM do Alto Alentejo;
CIM do Alentejo Central; CIM do Baixo Alentejo; CIM da Lezíria do Tejo; CIM do
Algarve 2.
50
2
Sobre a correspondência entre entidades intermunicipais e NUTS, cf. artigo 139.º do RAL. O
anexo XX da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro (que aprovou o RAL) indica as entidades intermunicipais
e os municípios que as integram.
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Secção II
Princípios de organização da Administração Pública
As medidas (legais e administrativas) de organização da Administração Pública
concretizam e desenvolvem princípios jurídicos de carácter geral: trata-se, em muitos
casos, de princípios com consagração constitucional. Na verdade, a CRP dedica um título
à Administração Pública (Título IX), que, além de alguns “princípios fundamentais” mais
ligados ao funcionamento e à ação da Administração (artigo 266.º), inclui um preceito
que se ocupa expressamente da “estrutura da Administração” (artigo 267.º).
9 – Democracia administrativa
O Estado Administrativo deve atuar em função dos direitos dos cidadãos; está aqui
implícita uma exigência de democracia administrativa com implicações ao nível da
organização do sistema administrativo.
A democracia administrativa projeta-se na modelagem do sistema administrativo
e na definição de um quadro organizativo idóneo para responder a exigências essenciais
de legitimação democrática, de accountability, de transparência, de imparcialidade e de
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abertura e estímulo à participação dos cidadãos.
b) Prestação de contas
Um dos itens de referenciação obrigatória no âmbito do tema da Administração
democrática é a prestação de contas dos responsáveis; trata-se de uma exigência logo
inscrita, na sequência da Revolução Francesa, na Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão: “a sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público pela sua
administração” (artigo 15.º).
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c) Transparência
Um Estado Administrativo democrático tem de ser um Estado transparente.
As sociedades modernas são “sociedades de informação”. Embora com alguns
paradoxos (v.g., sociedade informatizada não é necessariamente sociedade informada), as
sociedades de informação não convivem bem com o segredo dos negócios públicos
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(arcana imperii). Assim, no nosso tempo, a boa governação do sistema administrativo
impõe a garantia da máxima acessibilidade à informação detida pela Administração
Pública. Mas não só isso: o valor da transparência assume-se também como um
componente estrutural da organização administrativa, no sentido de que cada unidade da
Administração deve adotar uma estratégia ativa de abertura, de informação e de
transparência. Não se pede apenas à Administração que, em posição passiva, assegure aos
interessados o acesso à informação e aos dados que detém, mas que, além disso, promova
uma política de informação aberta e transparente que facilite a função de controlo pelos
cidadãos. Uma atitude pró-ativa de abertura, de revelação, apoiada em ferramentas de e-
government e em instrumentos de difusão de informação (v.g., constituição de bancos de
dados, instalação de pontos informativos), pode até conhecer, episodicamente, alguns
efeitos adversos, mas, a final, os resultados para o sistema revelam-se seguramente
positivos. A interiorização desta cultura de transparência cria estímulos positivos e
diminui o espaço para a ocorrência de fenómenos de corrupção e de tráficos de influências
3
M. BOVENS, “Public accountability”, in: E. FERLIE/L. E. LYNN JR/CH. POLLITT, The Oxford
Handbook of public administration, Oxford, Oxford University Press, 2007, p. 182 e segs. (182).
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d) Imparcialidade
A garantia da imparcialidade da Administração constitui também um elemento
fundamental de um Estado Administrativo democrático: corresponde a um princípio
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constitucional (cf. artigo 266.º, n.º 2, da Constituição) e visa assegurar que a
Administração Pública se oriente pelo exclusivo critério do interesse público.
Sobre o princípio da imparcialidade, dispõe o artigo 9.º do CPA que a
“Administração Pública deve tratar de forma imparcial aqueles que com ela entras em
relação, designadamente, considerando com objetividade todos e apenas os interesses
relevantes no contexto decisório e adotando as soluções organizatórias e procedimentais
indispensáveis à preservação da isenção administrativa e à confiança nessa isenção”.
No plano organizativo, os instrumentos de garantia da imparcialidade passam pela
definição de situações de incompatibilidade, de impedimento (cf. artigos 69.º e segs. do
CPA) e pela fixação de períodos de quarentena mediante as quais se procura evitar os
episódios de conflitos de interesses e o risco de contaminação do processo de decisão
administrativa pela influência de interesses ilegítimos que podem colonizar a
Administração.
Exemplo de fixação de períodos de quarentena: artigo 19.º, n.º 2, da LQER, ao prever que,
depois da cessação do seu mandato e durante um período de dois anos, os membros do
conselho de administração das entidades reguladoras não podem estabelecer qualquer
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antes de decidir (aspeto da maior relevância, por exemplo, quando estão em causa
procedimentos de seleção concorrencial – procedimentos de adjudicação de contratos e
de alocação de recursos escassos).
é o simples utente dos serviços públicos do Estado social; pelo contrário, assume ou vê-
se convocado a assumir um novo papel de ator, que partilha com o Estado a missão de
realizar o interesse público. Está aqui suposto o particular no estatuto de cidadão
comprometido, empenhado e socialmente responsável, que procura e aceita contribuir
para a realização do bem comum.
É esta conceção do cidadão e da cidadania administrativa que pode suscitar a
definição de esquemas variados de “participação dos interessados na gestão efetiva da
Administração” (artigo 267.º, n.º 1, da CRP) “coadministração”, de “administração
pública em condomínio” ou partilhada, por exemplo, através do envolvimento das
comunidades de referência em que a unidade administrativa atua (“community
engagement” no âmbito escolar: participação de professores, alunos e encarregados de
educação na gestão das escolas)
Um conceito importante ainda neste âmbito é a procura do envolvimento, a
aceitação ou a adesão dos cidadãos aos procedimentos e às decisões contrários aos seus
interesses. Neste sentido, a participação não se pode conceber como a instituição um mero
passivo “ouvir” o cidadão no momento procedimental disposto para o efeito, mas exige,
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antes, uma estruturação de todo o procedimento administrativo como momento de
resolução de um conflito ou de diminuição de uma tensão entre interesses antagónicos ou
conflituantes.
e personalidade jurídica própria, em muitos casos dispostos numa lógica horizontal e “de
rede”; porém, quando percecionado em alguns dos seus segmentos (v.g., administração
direta do Estado) ou no interior de muitos dos seus sujeitos, já se revela, em muitos casos,
uma imagem de unidade, com a presença de uma lógica hierárquica e vertical e uma
cadeia de direção e comando.
Assim, os princípios de organização da Administração Pública, a que no presente
capítulo se alude, traduzem, de algum modo, esta compreensão mista do sistema
administrativo, com momentos de pluralismo e momentos de unidade.
Coexistem efetivamente tendências variadas na organização da Administração
Pública em Portugal. A apontar no sentido da unidade, a hierarquia (direção e controlo) é
ainda o modelo fundamental de organização da administração do Estado, bem como, em
larga medida, o modelo de organização interna das pessoas coletivas públicas; a exprimir
ainda a lógica de unidade, surge depois a tendência para uma certa centralidade do
Governo no sistema administrativo. Mas, remetendo já para um tópico pluralista,
assinala-se a inclinação no sentido da descentração (desconcentração e descentralização)
e, em particular, a instituição de setores da Administração imunes a interferências
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administrativas externas, circunstância que induz exigências de articulação e de
coordenação próprias de um sistema plural.
Sem pôr em causa essa caracterização, cumpre notar que, nos termos da lei, certos
setores da administração independente se encontram submetidos – apesar da sua
independência – a poderes de alguma supremacia jurídica do Governo. Eis o que sucede
com as entidades administrativas independentes com funções de regulação da economia.
Embora consagrando explicitamente a independência funcional, a LQER atribui ao
Governo relevantes poderes de tutela financeira e patrimonial (por via da submissão de
atos das entidades reguladoras a aprovação prévia do Governo). Estas formas de tutela
não parecem pôr em causa a independência funcional das entidades reguladoras, a qual
tem a ver com o desenvolvimento das suas missões específicas de regulação: de resto, a
LQER estabelece que os membros do Governo “não podem dirigir recomendações ou
emitir diretivas aos órgãos dirigentes das entidades reguladoras sobre a sua atividade
reguladora nem sobre as prioridades a adotar na respetiva prossecução”. Mas a previsão
legal de formas de tutela integrativa (sujeição de atos de incidência financeira e
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11 – Desconcentração e descentralização
A implementação de medidas de descentração – conceito que abrange os
fenómenos da desconcentração e da descentralização – corresponde a um cânone ou
orientação constitucional fundamental para a estruturação do sistema administrativo.
Neste sentido, o artigo 267.º, n.º 2, da CRP confia ao legislador a incumbência de
estabelecer “adequadas formas de descentralização e desconcentração administrativas”.
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A tendência de descentração pressupõe uma ideia dinâmica, de alteração ou de
evolução de um sistema que, à partida, se apresenta centralizado e concentrado;
representa um movimento ou deslocação de competências ou de funções de um ponto da
organização administrativa (situado num centro) para um outro ponto da organização
administrativa fora do centro (descentrado). Esta ideia encontra-se presente nos dois
conceitos, de desconcentração e de descentralização, os quais traduzem, assim, uma ideia
inicial próxima ou semelhante. Mas estes conceitos não se confundem, pois refletem
opções muito diferentes de implementar e concretizar a descentração.
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11.1 – Desconcentração
Começamos pelo conceito de desconcentração, que conhece duas aplicações,
consoante se processe no interior de uma pessoa coletiva ou entre pessoas coletivas
diferentes.
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i) desconcentração vertical e desconcentração horizontal
A deslocação processa-se, em muitos casos, de “cima para baixo”, considerando
a cadeia hierárquica: fala-se de uma desconcentração vertical. Trata-se de uma solução
de recorte técnico-jurídico, pautada por objetivos de eficiência e, neste caso específico,
de descongestionamento dos órgãos de topo de cada organização. Por força das medidas
de desconcentração, os órgãos da Administração em posição subalterna passam a poder
exercer competências e atuar como unidades de ação da pessoa coletiva pública; mas
essas competências não têm de lhes ser conferidas como próprias, pois podem ser-lhes
apenas delegadas, e, quando próprias, não têm de ser exclusivas, pois pode tratar-se de
competências comuns ou partilhadas.
Mas existe também uma desconcentração horizontal, baseada na repartição de
competências por órgãos entre os quais não existe uma relação hierárquica (v.g.,
repartição de funções entre os ministros do Governo; entre assembleia municipal e câmara
municipal; entre reitor e conselho geral das universidades). O objetivo agora consiste em
dividir ou repartir por várias instâncias o poder administrativo e a responsabilidade
associada ao respetivo exercício, ocorrendo, por vezes, a instituição de departamentos e
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serviços dispostos em paralelo dentro de uma pessoa coletiva, cada um com a sua cadeia
hierárquica própria (caso típico dos ministérios); mas a desconcentração horizontal
também pode resultar da pretensão de efetivar, no interior de uma pessoa coletiva, uma
“separação de poderes”, porventura baseados em diferentes legitimidades.
b) Desconcentração intersubjetiva
Além da “desconcentração interna”, que se processa no interior de uma pessoa
coletiva de direito público, mediante a deslocação da competência entre os respetivos
órgãos, existe uma outra aplicação da ideia de desconcentração: a desconcentração que
opera num plano intersubjetivo (entre diferentes pessoas coletivas). Esta pressupõe a
deslocação de uma função ou de um poder pertencente a uma entidade (v.g., Estado) para
a esfera de uma outra entidade juridicamente diferente (v.g., instituto público). Agora,
estamos diante de uma “desconcentração intersubjetiva”; intersubjetiva, porque envolve
duas entidades ou pessoas coletivas distintas.
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Não está, porém, excluído que a lei habilite órgãos da entidade principal (com
poderes de superintendência) a efetuar, pela via administrativa, uma delegação de poderes
num órgão da entidade desconcentrada (v.g., delegação de competência do Ministro da
Saúde no Conselho Diretivo de uma Administração Regional de Saúde, I.P.) – a
delegação de poderes, que opera em geral no âmbito da desconcentração interna, pode,
portanto, também operar no contexto da desconcentração intersubjetiva. Veja-se, a este
respeito, o artigo 44.º, n.º 1, do CPA, que se refere à delegação efetuada por um órgão em
favor de “outro órgão de diferente pessoa coletiva”. Neste cenário, estamos, também aqui,
diante de uma forma de desconcentração derivada (operada através de atos de delegação
de competências).
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c) Observações complementares
i) Distinção entre desconcentração interna e intersubjetiva
11.2 – Descentralização
Como a desconcentração, a descentralização também representa um movimento
de deslocação de competências ou de funções de um ponto (situado num centro) para
outro ponto da organização administrativa.
Mas a descentralização não se compreende já como figura de dimensão apenas
técnica ou prática, com o propósito de promover o descongestionamento eficiente do
poder decisório. Não é de facto assim.
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O princípio da separação dualista que acaba de se identificar não exclui que certas
autoridades administrativas detenham um raio de ação de âmbito nacional – assim sucede,
por exemplo, com a Autoridade da Concorrência, com a Entidade Reguladora da
Comunicação Social ou com a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos; a
área de competência territorial destas entidades (independentes) abrange todo o território
nacional. Outro tanto se verifica com as associações públicas profissionais, as quais, nos
termos da Lei n.º 2/2013, “têm âmbito nacional”. Por outro lado, pode suceder que certos
serviços periféricos do Estado se encontrem nas regiões autónomas (v.g., serviços da
administração fiscal). Por fim, poderão existir institutos públicos e empresas públicas do
Estado que exerçam a sua a atividade exclusiva ou predominantemente nas regiões
autónomas: neste caso, estabelece o artigo 227.º, n.º 1, alínea o), da Constituição, cabe às
regiões autónomas o exercício do poder de superintendência sobre esses organismos da
Administração do Estado.
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