Texto baseado nas obras de FAGERLANDE, Marcelo. José Maurício – O Método de Pianoforte
de José Maurício Nunes Garcia. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, Rioarte, 1996, e PEREIRA,
Mayra. Do cravo ao pianoforte no Rio de Janeiro – Um estudo documental e organológico,
Cap. 3. Tese (Doutorado), UFRJ, 2005.
1. Contextualização histórica
Sem dúvida alguma, os primeiros indícios de produção artística e musical feita no Brasil
colonial são provenientes das missões dos padres jesuítas em meados do século XVI.
FAGERLANDE afirma, em seu estudo, que vários estudiosos concordam que as artes
começam a ser praticadas e ensinadas através das missões catequizadoras dos padres
jesuítas da Companhia de Jesus, nos dá exemplo através de uma carta escrita em 1565
por Antônio Blasques, que descreve uma festa acontecida na Bahia onde havia vários
instrumentos como o órgão, cravo e flautas. Logo mais, nos fala de Luiz Heitor Correa
de Azevedo, dizendo que Cristóvão de Azevedo, um visitador da Companhia de Jesus,
em 1586 ordena os ensinamentos de canto às crianças indígenas que tivessem aptidão
para a música.Os jesuítas, além de catequizar os índios, os ensinaram música e letras.
Entre 1658 e 1661, é ordenada a compra de instrumentos musicais para estes fins
(p.11).
Os padres portugueses não eram músicos, se quer tinham formação musical, diferente
das missões espanholas onde havia padres com formação musical que chefiavam as
atividades musicais da região (FAGERLANDE). Mesmo assim, de acordo com PEREIRA,
os padres também ensinaram os nativos a construção de instrumentos musicais –
clavicórdios e “inclusive órgãos de câmara” (p.68) – que não deixavam a desejar em
sua qualidade, comparando com os instrumentos fabricados pelos europeus, atestado
por um padre missionário chamado Antonio Sepp.
Por tanto a vida musical na colônia Brasileira já começara desde seu primeiro século de
existência. O trabalho sério dos jesuítas, mesmo sendo questionado, ainda teve grande
reconhecimento durante muito tempo após serem expulsos em 1759 (FAGERLANDE,
1993, p.11). A música no século XVI era voltada para atender os ofícios da igreja,já no
século XVII, as manifestações musicais também ocorriam em eventos políticos
(PEREIRA p.69).
FAGERLANDE afirma que “a vida musical no Rio de Janeiro anterior a 1808 apesar de
ainda estar pouco definida, deve ter sido mais rica do que se supõe, e superior aquela
misera porção de meia dúzia de nomes citados até hoje” e que, se não fosse dessa
forma, nada explicaria a formação de um músico como José Maurício, “cujas obras não
poderiam ser apenas dum esforço autodidata” (p.12).
Em sua tese, PEREIRA nos relata que, no século XVI, no Rio de Janeiro, há registroda
compra de instrumentos para as práticas musicais na cidade, entre eles ressalta a
compra de instrumentos de tecla como o cravo, clavicórdio e órgão.
No final século XVII e início do século XVIII, com o descobrimento do ouro em Minas
Gerais, houve um crescimento populacional, o que acarretou em profundas
transformações sociais. Muitas pessoas foram atraídas para o Rio de Janeiro, pois as
riquezas encontradas nas terras mineiras seriam trazidas para a cidade, para seu porto.
Essa intensa migração pode ter ocorrido entre 1790 e 1809. O Rio de Janeiro também
recebeu númerosignificativo de músicos, provenientes dos centros urbanos de Minas
Gerais, além de “monges músicos nos mosteiros e com atividade musical nos
conventos de freiras” que foram instituições proibidas na região mineira pela Coroa
como (FAGERLANDE, 1993, p.11).
No início do século XVIII além das transformações sociais e musicais, a cidade do Rio de
Janeiro passa por transformações comerciais e econômicas. Na cidade havia circulação
de grande número de artistas, artesãos e comerciantes. O porto era bem
movimentado recebendo mercadorias de todos os tipos, “dentre os inúmeros objetos
importados, certamente podia-se encontrar inúmeros instrumentos de música,
destacando entre eles o cravo”. O registro mais antigo de entrada de cravos grandes
de tocaré o da Carta Régia com data de 1721 (PEREIRA, 2005, p. 69-70).
O Rio de Janeiro, além de agraciado por um excelente porto e comércio ativo, devido a
sua localização estratégica, torna-se a principal rota para o abastecimento das regiões
mineradoras. Devido a esse generoso quadro geográfico, político e comercial “em
1763, o Rio de Janeiro tornou-se capital da colônia portuguesa, passando a representar
seu centro político, econômico, administrativo e cultural” (PEREIRA, 2005, p.71).
Figuras de destaque nas atividades musicaisdo Rio de Janeiro são mencionadas por L.
H. Correa no livro “150 de música no Brasil” que é citado por FAGERLANDE – ele afirma
que, no final do século XVIII e início do século seguinte, as atividades musicais do Rio
de Janeiro se concentravam nas igrejas e nos teatros (p.12). Antônio José da Silva, o
Judeu, foi a “figura de maior relevância para a ópera”. Representando a música sacra o
padre Antônio Nunes de Serqueira, mestre de capela, também era reitor do Seminário
de São José, o padre Manuel da Silva Rosa, conhecido por sua habilidade
contrapontística e provável professor de José Maurício, Frei João de Santa Clara Pinto,
mestre de cantochão e Frei Francisco de Santa Eulália, organista do convento de Santo
Antônio.
É notória a crescente prática musical na cidade do Rio de Janeiro, desde o número de
músicos até o número de espectadores,inicialmente em cerimônias religiosas e
festividades políticas, logo depois no teatro. Mesmo distante da Europa, a música
produzida na cidade era de intensa expressividade. PEREIRA cita em sua tese, um
pequeno trecho do periódico (Jornal de Charles-Othon Nassau-Siegen, passager de
laBoudeuse) do príncipe Charles-Othon de Nassau-Siegen, onde ele relata haver ópera
italiana sendo traduzida para o português, além de um texto do Pastor F. L. Langstedt,
que escreveu como era agradável a música que ouviu ao visitar o convento Justiniano
(p. 74).
Ainda no âmbito da música sacra, antes da vinda da família Real para o Brasil, José
Maurício já era conhecido como grande músico e em 1798, tornou-se mestre de capela
e compositor da Sé Catedral, que era a Igreja do Rosário. Após a chegada da corte, em
1808, a Igreja dos Carmelitas se torna Capela Real e José Maurício é transferido para a
mesma.
Além de José Mauricio, a Capela Real possuiu outros dois mestres: Marcos Portugal,
músico português, famoso mundialmente, foi considerado um dos maiores músicos de
sua época, sendo mestre de capela a partir de 1811 e Fortunato Mazziotti, a partir de
1816.Primeira menção a Marcos Portugal
A corte portuguesa trás consigo alguns músicos para compor os quadros da Capela
Real, porém, tudo indica que o número de músicos era muito reduzido, havia o
acréscimo de músicos locais – a principio, a ideia era o aproveitamento apenas dos
músicos locais (FAGERLANDE, 1993, p 12).
Além da Capela real e do teatro, outro centro de grande produção regular de música,
como resultado da vinda da família Real ao Rio de Janeiro é a Quinta da Boa Vista,
residência de veraneio da Família Real. FAGERLANDE diz que Taunay nos revela um
fato importante ocorrido na Quinta da Boa Vista:
O que nos faz acreditar que muitos concertos musicais eram realizados na Quinta da
Boa Vista é que a própria Imperatriz também era pianista, assim como seu marido. A
princesa Leopoldina havia trazido de Viena uma quantidade considerável de obras
camerísticas, que provavelmente foram executadas por seus músicos de câmera
(FAGERLANDE,1993, p 15).
Além de música produzida através dos círculos da Família Real, muita música também
ocorria nas casas de outras famílias nobres. Nelas contamos sempre com a presença
dos instrumentos de tecla.
O mesmo autor diz que “no Rio de Janeiro não encontramos na bibliografia pesquisada
muitas referências a construtores de cravo”, porém a PEREIRA em seu relato sobre a
manufatura de órgãos e clavicórdios, manufatura esta ensinada pelos padres aos
nativos, afirma que “nada impede que cravos fossem da mesma forma manufaturados
no Rio, sob ensinamentos dos padres missionários” e supõe que “pode-se especular a
correta procedência dos instrumentos musicais listados no inventário da Fazenda de
Santa Cruz, sobretudo o cravo e manicórdio, visto que ao longo do documento não é
indicada a sua origem”, trecho citado na página 2 acima.
Já sobre a manufatura de pianos cravos no Rio de Janeiro, PEREIRA nos diz que estes
podem ter ocorrido em fins do século XVIII:
Nesta época, Portugal impunha ao Brasil o Pacto Colonial, que dizia que qualquer
mercadoria que chegasse ao Brasil vindas da Europa ou Ásia, se daria sempre por
intermédio do comércio português, transportada por embarcações portuguesas. Essas
mercadorias não poderiam ter concorrência com mercadorias produzidas pelos
portugueses, uma forma de obrigar o Brasil a comprar sempre mercadorias de
Portugal, já as mercadorias de outros países, apenas o que não fosse de produção
portuguesa (PEREIRA, 2005, p.79)
FAGERLANDE também atesta sobre a presença do cravo nas casas de famílias ricas e
que estes instrumentos eram tocados pelas jovens brasileiras. Dá indícios do uso
contínuo de cravo, pelas famílias cariocas, através de relatos da literatura como em
Machado de Assis e Eça de Queiroz, que em seus livros também contam estórias de
moças que sentavam ao cravo e cantavam canções como as “modinhas” (p.18).
O método de pianoforte de José Maurício é citado por PEREIRA como “primeira obra
brasileira para teclado de que se tem notícia”, e afirma que apesar da obra ter o nome
de método para pianoforte, também poderia ser executada ao cravo. Este método é o
resultado das aulas particulares de José Maurício que eram ministradas na das
Marrecas. FAGERLANDE atesta, na introdução do seu livro, a importância do método
para aqueles que se dedicam a produção de música brasileira deste período e também
aos interessados pelas obras cravísticas e pianísticas no Brasil. Ressalta sobre o
benefício deste método, revisado por ele mesmo, aos alunos e professores e a inclusão
do método nos currículos das escolas de música brasileiras.
A partir do início do século XIX o cravo começa a entrar em decadência. José Maurício
é o principal músico brasileiro do período de transição do cravo para o pianoforte,
como afirmam os dois autores:
José Maurício viveu justamente nesta época de transição do cravo para o piano, e
como vimos, tocou em ambos os instrumentos (FAGERLANDE, 1993, p.19).
De acordo com os dois autores, sem dúvida a vida musical no Rio de Janeiro foi
bastante intensa. A coexistência do cravo e do piano se deu por muito tempo. Os
editores evitavam, igualmente, a colocação de dinâmica e indicação de uso de pedal,
para que não se restringisse à execução apenas ao piano, mas isso não implica dizer
que toda a partitura com indicação de dinâmica se destina ao piano e a que não possui
dinâmica, ao cravo. Isso nos mostra que por muitos anos, tanto o cravo, quanto o
piano ainda eram instrumentos muito utilizados.
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