Objetivo geral:
Discutir a privação da liberdade antes do trânsito em julgado e a decisão 12692
a respeito do remédio constitucional habeas corpus do STF frente ao princípio
da presunção da inocência no constitucionalismo moderno
Objetivos específicos:
Reconstituir, de forma bastante sucinta, as origens do princípio da presunção da
inocência, levando em consideração suas bases sociais e filosóficas
Identificar, por fim, as implicações práticas de tal decisão, frente aos problemas
do sistema carcerário brasileiro e a dificuldade em se garantir efetivamente a
dignidade da pessoa humana que está em processo de julgamento.
Metodologia:
Utilizar-se da leitura crítica da bibliografia a respeito do tema em apreço ( desde
as referências dos iluministas modernos, especialmente os jurifilósos, a exemplo
de Beccaria, até a Doutrina brasileira mais contemporânea - os garantistas e
processualistas em geral) .
Discutir o princípio da presunção da inocência nas normas jurídicas modernas
de direitos humanos e na Constituição de 1988, alicerçados no princípio maior
da dignidade da pessoa humana.
Analisar o voto dos ministros em relação a decisão do habeas corpus 12692.
Links com artigos e notícias que possam ajudar:
https://jota.info/justica/para-advogados-decisao-do-stf-enterra-o-garantismo-
penal-no-brasil-17022016
http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/a-decisao-do-stf-e-a-presuncao-
de-inocencia/
http://editorialjurua.com/revistaconsinter/revistas/ano-ii-volume-ii/parte-1-direitos-
difusos-coletivos-e-individuais-homogeneos/principio-da-presuncao-da-inocencia-um-
novo-olhar-politico-criminal-a-luz-do-principio-da-justica/
https://leopoldogomesmoreira.jusbrasil.com.br/artigos/407783196/a-relativizacao-
do-principio-constitucional-da-presuncao-de-inocencia-face-a-decisao-historica-no-
julgamento-do-habeas-corpus-n-126292
https://delegadowilliamgarcez.jusbrasil.com.br/artigos/308531136/a-presuncao-de-
inocencia-na-visao-do-stf-o-julgamento-do-hc-126292
OPINIÃO
“Lá vem ele com a crítica ao ativismo judicial!”, irão dizer. Pois bem, essa decisão,
até mesmo por parte de seus fundamentos, é um exemplo de ativismo judicial: não
há fundamento jurídico constitucional que a sustente. Alguém poderá dizer que há
argumentos muito bons e consistentes; votos bem escritos, que levantam questões
importantíssimas para a República e que abrem espaço para debates
interessantíssimos. Com certeza, compartilho da mesma opinião.
Também pode haver quem diga, em defesa da decisão do STF, que ele foi coerente
em sua decisão, porque seguiu a linha de posicionamento que já havia manifestado
no julgamento sobre a constitucionalidade da lei da Ficha Limpa[1]. Isso seria uma
visão frágil da coerência, sem levar em conta uma dimensão de profundidade,
principiológica. Como lembra Francisco Borges Motta, a partir de Ronald Dworkin:
"para quem considera o ficha limpa um erro, houve 'coerência no erro'. É para isso
que serve o padrão integridade, para que a coerência seja de princípio (e no acerto)".
Em outras palavras: a coerência só pode ser sustentada diante de uma decisão que
respeite o conjunto normativo que dá conteúdo a um sistema jurídico (por isso
coerência e integridade são padrões que são sempre compreendidos conjuntamente).
Portanto, novamente, esse julgamento foi um equívoco — julgou inconstitucional o
próprio texto constitucional.
Mas e agora? Observemos bem alguns pontos: essa decisão do STF é resultado de
controle de constitucionalidade incidental, uma vez que a matéria foi levada ao
Plenário. Mas, olhando bem, nesse caso, sequer houve declaração incidental, porque
foi uma interpretação da Constituição e, ao que se sabe, não há dispositivo do CPP
declarado inconstitucional. E aí está o problema: não há como contornar o que diz,
claramente, o artigo 283 do CPP (é de 2011 essa redação):
Entendo que há duas vias pelas quais devemos nos orientar, gostemos ou não do
resultado, pelo posicionamento do STF: por imposição legislativa (as súmulas
vinculantes — às quais lanço duras críticas — são exemplos disso) ou por coerência
jurisprudencial. Não vejo, para esse caso, a aplicação de nenhuma das hipóteses.
Assim, escrevo esse artigo para dizer: os tribunais de segundo grau não estão
vinculados a essa decisão; não existe nenhum dever jurídico-constitucional de
obediência a ela. Aliás, foi assim que o ministro Celso de Mello se manifestou
(veja aqui): “Os juízes e tribunais da República poderão perfeitamente entender de
forma diversa”. Vejam: estou dizendo pelas razões acima, mas por mais uma: o
dispositivo que trata da presunção da inocência no CPP continua válido.
Porém, caso o Ministério Público recorra, o STF, na medida em que houve uma
decisão de colegiado (7x4), proverá o RE. Só que, como o RE não tem efeito
suspensivo (nem para soltar, que seria um HC, nem para prender), tudo se resolverá
no próprio STF. A menos que o STF acate reclamações de decisões de tribunais que
resolvam seguir o que bem disse o ministro Celso de Mello. Para frisar: o STF tem
posição no sentido de cabimento de reclamação por violação de SV; nem para
súmula não vinculante ele admite a reclamação. Portanto, ao que se pode ver da
jurisprudência do STF, reclamação é só para casos de violação de SV e casos em
que foi desobedecida a própria decisão (por exemplo, o STF decide determinado
caso e, mesmo assim, não é obedecido). Não consta que o STF aceite reclamações
sobre a tese. Seria uma reclamação para mandar prender, nas hipóteses em que o
tribunal cumpra o válido artigo 283. Só que, de novo, vou insistir: o STF não
declarou inconstitucional o artigo 283 do CPP. Então ele vale. O resto fica sem
importância.
Além disso, a matéria não foi submetida a debate. Por sinal, não é o que se tem
falado do contraditório, por ocasião do novo Código de Processo Civil? Como
lembra Dierle Nunes, quer-se garantir influência e não surpresa aos jurisdicionados.
Isso tem um alcance paradigmático. Transcende os casos isolados. Bem por isso, a
nova sistemática processual civil (e tanto mais deveria valer na esfera penal) fala na
necessidade de amplos debates para que tribunais modifiquem sua jurisprudência, só
para ficar na correção procedimental. E mesmo com tudo isso, mesmo com o mais
participativo dos procedimentos, não dá para transformar gato em cachorro, nem que
ocasionalmente façamos um pacto em torno disso. Há uma dimensão substantiva
que não está à nossa livre disposição, não pode ser simplesmente convencionada
pelas maiorias de ocasião. Temos uma Constituição! Ela serve para isso, é garantia!
Numa palavra: esse meu texto é coerente com o que tenho falado há tantos anos.
Venho sempre criticando o ativismo. A ele não dou tréguas. Mesmo quando a
decisão é simpática e agrade a maioria dos juristas. Quando isso ocorre, sempre
aviso: se você aceita que o STF ultrapasse os limites semânticos da Constituição
para uma decisão que lhe agrada, amanhã o que você dirá se a decisão, igualmente
ativista e indo além dos tais limites, não lhe agradar? Ativismo não é bom. Já escrevi
muito sobre a diferença entre ativismo e judicialização. Aqui, estamos claramente
em face de uma decisão ativista. Que não obedeceu o próprio princípio invocado na
discussão: o da presunção da inocência, que virou presunção da culpabilidade. Pois
é. Pau que bate em Chico...
OPINIÃO
Para ser mais claro: desde que no julgamento do HC o STF admitiu a prisão de
alguém antes do trânsito em julgado de uma sentença condenatória, negou validade
(ainda que em sede de controle difuso) ao artigo 283. É preciso, portanto, que o faça
expressamente, agora por meio do controle concentrado. A "controvérsia" é patente,
uma vez que foi causada desde o momento em que no voto condutor o relator sequer
fez menção ao dispositivo da lei processual penal que, inclusive, é posterior à CF.
Como já acentuei em Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica ( 4ª Ed, Saraiva,
p.873), para se admitir que uma norma que já tem presunção de constitucionalidade
[ninguém duvida presunção de constitucionalidade do artigo 283, pois não?] tenha
tal presunção confirmada pelo STF, deve haver um perigo, um abalo para a “ordem
jurídica”. Pergunto: Que maior abalo poderia existir do que a possibilidade de
centenas ou milhares de pessoas passarem a ter de cumprir pena antes do trânsito em
julgado junto aos tribunais superiores?
Está, assim, a nossa Suprema Corte em uma sinuca de bico. Para manter a sua
decisão, terá que dizer que o artigo 283, aprovado pelo legislador no ano de 2012,
fere a Constituição. E terá que dizer as razões pelas quais ocorre esse mal ferimento.
E também terá que dizer porque, neste caso, a Constituição dispensa a intermediação
do legislador ordinário, já que este nada mais fez do que dizer a mesma coisa que o
constituinte originário em uma cláusula pétrea.
É por tais razões é que falei, na coluna intitulada Hermenêutica e positivismo contra
o estado de exceção interpretativo (leia aqui), que estava otimista. Aguardemos os
próximos capítulos.
Post scriptum: leio que a OAB ingressará com ADPF (ler aqui). É outro caminho a
seguir e que — vingando — obrigará a Suprema Corte a enfrentar de novo a
matéria. Resumiria, então, o quadro desse modo:
Enquanto a ADC — por mim imaginada — garante que, sob o argumento da
decisão do HC 126.292, os tribunais não sigam o mesmo entendimento, de tal
modo que o entendimento do STF no caso não leve à sua generalização
(vejam os tribunais mandando prender condenados em segunda instância), a
ADPF impugna a própria decisão do STF no HC 126.292 por violação ao
direito objetivo, à Constituição. O preceito fundamental é a presunção de
inocência, o direito à ampla defesa, o devido processo legal, a liberdade de ir
e vir.
De todo modo, são poucas balas que temos. Ou talvez uma só. Mas devemos
usá-la(s).
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Para o conselheiro federal pelo Acre Luiz Saraiva Correia, relator da matéria no
colegiado, a decisão do STF é contrária à Constituição Federal. “O réu só pode ser
efetivamente apenado após o trânsito em julgado da sentença. Não se pode inverter a
presunção de inocência. O forte impacto de antecipação da pena viola direitos
humanos e constitucionais. Descumpre-se também o Pacto de San José da Costa
Rica”, disse. Com informações da Assessoria de Imprensa do Conselho Federal da
OAB.
Carta aos jovens criminalistas A recente decisão do STF sobre o caráter “relativo” da presunção
constitucional de inocência teve grande repercussão entre vocês, jovens criminalistas, alguns
chegando a dizer que mudariam de especialidade ou até de profissão, pois viram o guardião
máximo da Constituição e da ordem jurídica desprezá-las em favor da opinião pública. Por isso
dirigimos a vocês algumas palavras. Calma, colegas, calma! Aguardemos a indignação passar e
a poeira baixar para ver como a História se repete, especialmente para os que não assimilaram
suas lições. Nós vivemos o Supremo da ditadura, a Corte Moreira Alves e testemunhamos seu
enterro inglório. Era pior do que hoje? Havia aspectos em que era melhor: Com exceção de um
jornalista chamado Cláudio Marques, que enaltecia o serviço do “Tutóia Hilton” (era como ele
se referia ao DOI/CODI), não havia – como hoje – os que celebram o “grande avanço” da
decisão e esse pote de ouro ao pé do arco-íris chamado “fim da impunidade”. Tampouco havia
radialistas ou apresentadores de jornais televisivos às gargalhadas pelos maus momentos
impostos a nós, como se fossemos causa de algum mal ao País. Na fundamentação das
decisões não havia demagogia ou busca das “expectativas da sociedade”. Já a conclusão era
daí para pior... Quem viveu o que vivemos sabe que essas coisas não duram; podem demorar,
mas eternas não são. Quando a água começa a bater nos queixos desses prosélitos das loas da
multidão, especialmente pondo em risco alguém próximo, parente, amigo, eles revelarão a
mesma criatividade, agora para dizer o contrário. É sempre assim. Quando menos, o Direito
cantará com o Chico: “Você não gosta de mim / mas sua filha gosta”. É a “praga do Golbery”.
Esse general, convencido de que o governo precisava de um serviço secreto de arapongagens e
missões “especiais” (leia-se eliminação física de alguém), fundou o Serviço Nacional de
Informações, o terrível SNI. Anos mais tarde, ao saberse monitorado por um certo “agente
Besouro”, desabafou: “Criei um monstro”. Os monstros, quando bebês, são meigos e fofinhos.
Quando crescem comem o dono e criador. E a História se repete, pois muitos nada
aproveitaram do que ela tem a ensinar. Basta ver que aqueles sobre cujas costas o Judiciário
de ontem descia a borduna, hoje aplaudem os vergões nos lombos alheios, propondo a troca
da via armada para a revolução pela via punitiva... Sic transit gloria mundi. Quanto a nós,
queridos colegas, escolhemos uma profissão que se compara ao tamoio de Gonçalves Dias:
“Tamoio nasceste, / Valente serás”. Para nós, como para esses índios, “A vida é combate / Que
os fracos abate / Que os fortes, os bravos / Só pode exaltar” ... Se não carregarmos o
estandarte da liberdade, ninguém o fará. Lembrem-se de que foi preciso que a democracia se
firmasse em bases sólidas, que se exorcizasse qualquer possibilidade de recaída do ancien
régime para que – só então! – fosse fundada uma associação de juízes pela democracia e um
movimento do Ministério Público democrático. É assim: Ou nós ou ninguém. Os outros gostam
de comer bom-bocado, mas de fazê-lo no tienen cojones. É na procela e não no remanso que o
nauta mostra seu valor, sua técnica, seu preparo, sua competência. Hoje o combate é mais
duro, ainda que sem mortos ou desaparecidos, porque não é mais a tropa a enfrentar, porém
a turba. Há um mar encapelado à nossa frente, mas navegar é preciso. Mais do que nunca,
esta é a hora de perseverar. Vamos à briga! Alberto Zacharias Toron Antonio Cláudio Mariz de
Oliveira Arnaldo Malheiros Filho José Carlos Dias José Roberto Batochio Marcelo Leonardo Nilo
Batista Paulo Sérgio Leite Fernandes Tales Castelo Branco
Neste cenário, data maxima venia, é preocupante a decisão tomada pelo Supremo
Tribunal Federal no HC 126.292/SP, mudando o seu entendimento então
consolidado desde 2009, para agora possibilitar a execução provisória de uma
sentença criminal antes do encerramento do processo, bastando apenas a sua
confirmação pelo segundo grau de jurisdição, ainda que pendentes recursos aos
tribunais superiores.
Afinal, sob o pretexto de se estar atendendo um reclamo da sociedade, o STF acabou
conspurcando a literal redação do acima citado dispositivo magno, estabelecendo a
ilógica premissa de que uma pessoa é presumidamente inocente somente até o
julgamento em segunda instância, muito embora a nossa Constituição Federal seja
clara em assentar a necessidade do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Quem irá, nestes casos, reparar estes danos incomensuráveis à honra e a dignidade
destes cidadãos colocados injustamente no cárcere, sobretudo quando o próprio STF
já reconheceu em duas oportunidades recentes — ADPF 347 e RE 592.581 — a
completa falência do sistema carcerário brasileiro.
O membro mais antigo do STF deixa claro que tal princípio não deixa a sociedade à
mercê de acusados perigosos, pois estes podem permanecer encarcerados no curso
de investigações e ações criminais por meio de prisões cautelares.
Essa regra, inclusive, não é uma anomalia brasileira, destacou Celso de Mello,
rebatendo os argumentos de que tal garantia seria uma "jabuticaba". Ele lista alguns
dos diplomas internacionais de direitos humanos que preveem a presunção da
inocência, como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana; a Carta
dos Direitos Fundamentais da União Europeia; a Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos; a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos; e a
Convenção Americana de Direitos Humanos.
DIREITO DE DEFESA
[1] Como bem apontou Lenio Luiz Streck em artigo na ConJur intitulado Teori do
STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declará-la inconstitucional.
[2] STF, HC 123822, AgR, j. 30.09.2014 (1a Turma) — a 2a Turma tem
entendimento contrário. No STJ: STJ, HC337321, j.20.10.117.12.2015 (6ª Turma);
STJ HC 339922, j.17.12.2015 (5ª Turma)
[3] Sobre o tema, ver nosso artigo publicado na ConJur: A legalidade em xeque: a
discussão no STF sobre prescrição penal
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Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério
da Justiça.
“Quem viveu o que vivemos sabe que essas coisas não duram; podem demorar, mas
eternas não são. Quando a água começa a bater nos queixos desses prosélitos das
loas da multidão, especialmente pondo em risco alguém próximo, parente, amigo,
eles revelarão a mesma criatividade, agora para dizer o contrário. É sempre assim.
Quando menos, o Direito cantará com o Chico: ‘Você não gosta de mim/mas sua
filha gosta’.”
Os autores do texto argumentam que a decisão do STF ocorreu porque a corte não
aprendeu com a história, já que os erros se repetem, dizem. “Basta ver que aqueles
sobre cujas costas o Judiciário de ontem descia a borduna, hoje aplaudem os vergões
nos lombos alheios, propondo a troca da via armada para a revolução pela via
punitiva... Sic transit gloria mundi.”
Por fim, os criminalistas destacam que a classe deve se manter firme, pois ela é a
responsável por defender o Estado Democrático de Direito. “É assim: ou nós ou
ninguém. Os outros gostam de comer bom-bocado, mas de fazê-lo no tienen
cojones”, afirmam.
Clique aqui para ler a carta.
Hermenêutica e positivismo contra o
estado de exceção interpretativo
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25 de fevereiro de 2016, 8h00
Por Lenio Luiz Streck
Ainda o julgamento do STF
A semana passada foi intensa. O Supremo Tribunal Federal proferiu duas decisões
que impactam a cidadania. Uma que flexibiliza fortemente o sigilo bancário, que
pode ser quebrado pelo fisco e a outra que diz respeito à flexibilização da presunção
da inocência. Escrevi sobre isso (ler aqui). Alertei para o fato de que devemos levar
o texto constitucional a sério. Textos são importantes. Não há norma sem texto. O
texto não contém a norma. Mas a norma atribuída não pode ser qualquer
uma. Mostrei, inclusive, a partir das seis hipóteses pelas quais o Judiciário pode
deixar de aplicar a lei, presentes em minha (tentativa de fazer uma) teoria da
decisão, que um juiz só pode deixar de aplicar uma lei se esta for declarada
formalmente inconstitucional. Pois no HC da semana passada, ocorreu o inverso: o
artigo 283, que trata claramente da presunção da inocência, sequer foi tocado. Logo,
a decisão fere a jurisdição constitucional.
A decisão do STF provocou uma enxurrada de textos. Há textos oportunistas, textos
repetitivos e outros muito sérios. De minha parte, sou otimista. Creio que o
constrangimento epistemológico que está sendo feito em relação à decisão fará, em
breve, com que o STF revise a sua posição.
Já do lado dos que se colocam a favor da decisão, o que mais me chamou a atenção
foi o de Vladimir Passos de Freitas, que, para afastar os argumentos contrários à
decisão, disse, de forma peremptória, que “A Justiça não é lugar para discussão de
teses jurídicas, mas sim para promover a pacificação social. Correta, pois, a decisão
do STF, pois restaurou o equilíbrio entre o direito à liberdade e a eficiência” (ler
aqui). Fiquei pensando no que disse o simpático e ilustre colunista. Se a justiça não
deve discutir teses jurídicas, para que ela serve? Em outra coluna, voltarei a esse
assunto.
Um juiz federal comparou a decisão do STF com um jogo de futebol de 180 minutos
(ler aqui). Por que ninguém pensou nisso antes? Vejam o que ele sentenciou: “Como
nas fases eliminatórias são dois jogos, a decisão do STF garantiu a presunção de
inocência na primeira e segunda instância. Lá é encerrado o jogo de futebol.
Quando o jogo vai para os pênaltis a regra é outra. Ninguém fala em pênaltis
quando da expressão ‘jogo de 180 minutos’. A presunção de inocência acaba no
segundo jogo”. Bingo. Como diria Fiori Giuglioti: Crepúsculo de jogo. Fecham-se
as cortinas e termina o espetáculo. Derrota da presunção da inocência nos pênaltis!
Há também quem sustente a necessidade de fazer a ponderação entre a liberdade
individual e o interesse público (sic). Mas, permito-me não falar em ponderação,
essa katchanga real pós-moderna (ler aqui) com a qual posso encerrar o jogo e apitar
pênalti na hora em que quero.
Para não esquecer, há quem defenda a decisão do STF dizendo que se tratou de
mutação constitucional. A estes, sugiro a leitura de um texto escrito em 2007, por
Martonio Barreto Lima, Marcelo Cattoni e por mim, em que criticamos duramente a
tentativa de mutação constitucional na Recl 4.335. Duvido que alguém ainda fale em
mutação depois de ler esse texto (ler aqui).
A importância da lei, do texto, enfim da legalidade constitucional
Fazendo um rescaldo, vou repetir o que venho dizendo. No Estado Democrático de
Direito, precisamos levar o texto “em sério”. Já apontando a todo momento as
práticas ativistas e decisionistas, clamava pela “legalidade constitucional”. Dizia eu:
"Quando uso a expressão legalidade constitucional, com base em Elias Díaz, refiro-
me ao fato de que saltamos de um legalismo rasteiro, que reduzia o elemento central
do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas,
base para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de
norma, para uma concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da
constitucionalidade. Afinal, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de
admitir uma legalidade inconstitucional. Seria um contrassenso afirmar uma
legalidade que não manifestasse a consagração de uma constitucionalidade — e pela
efetividade das decisões judiciais sob o marco de uma legitimidade democrática”.
Sendo mais claro e citando um petardo de Díaz: “Parece-me desde logo muito
importante essa zona de convergência formada pelo poder constituinte, a
Constituição e os grandes pactos políticos e sociais; se depois disso, se depois
sobretudo da Constituição, as concretas decisões legais majoritárias vão contra ela
(contra essa legitimidade e essa justiça), sensivelmente tais decisões ficam anuladas
ao se provar sua inconstitucionalidade pelo Tribunal competente. E conclui Díaz:
“Essas maiorias concretas, portanto — mesmo que ‘enlouqueçam’ — coisa que os
contumazes antidemocratas alegam sempre e incansavelmente — não poderão fazer
nada, por vias legais e democráticas contra a Constituição”.[1] Um bingo a mais
para Diaz!
A violação dos pressupostos do processo e da jurisdição constitucional
Vou tentar explicar. O STF não levou em conta nem a história institucional, nem a
teoria processual. Nunca, para a teoria do processo ou mesmo para a história
institucional, trânsito em julgado significará o mesmo que condenação em segundo
grau. Isso porque condenação em segundo grau, sem trânsito em julgado, nunca será
decisão definitiva.
Todavia, no tema em questão, essa exigência de diferenciação com base em
argumento histórico e na lição da teoria processual — e a lição é de Marcelo Cattoni
— traz consigo uma questão de princípio que dá o seu verdadeiro sentido
normativo: a presunção de inocência prevalece até o trânsito em julgado de
sentença condenatória; ou seja, para a Constituição a presunção de inocência
prevalece até decisão judicial definitiva ou condenação judicial definitiva. O que, do
ponto de vista do devido processo legal, significa que o ônus da prova é de quem
acusa, não de quem se defende.
Entretanto, o STF desconsiderou o argumento histórico e a lição doutrinária que
exigem não confundir decisão definitiva com condenação em segundo grau. E, para
isso, desconsiderou, justamente, o sentido normativo da garantia da presunção de
inocência.
Isto não é espantoso, mas a forma como o fizeram, de regra, sim! Pareceu-me
que grassaram discursos mais corporativistas do que comprometidos
propriamente com o que deve ser criticado, no fundo de tudo isso.
Apontando problemas nos quais tive a sensação que hesitaram, por distintas
razões, em tocar.
Pois bem.
Inicio pelo ponto de vista que foi predominante entre membros das carreiras
públicas. Sem querer citar nomes e admitidas algumas honrosas exceções,
como regra geral, Magistrados e Promotores de Justiça aplaudiram a decisão.
A mim parece que especialmente aos membros do Ministério Público (do qual
faço parte) isto devia interessar, porque, muito antes da quase exclusiva tarefa
constitucional de persecução, como dominus litis da ação penal pública, a
tarefa principal atribuída pela Constituição da República de 1988 para este
órgão é, sem dúvidas, a defesa do regime democrático.
Neste contexto, a defesa do regime democrático consiste basicamente em
exigir que o Direito penal imponha seus efeitos em estrito cumprimento às
normas constitucionais, que são garantias básicas dos cidadãos, inclusive dos
cidadãos delinqüentes. Uma delas é, sem dúvida, aquela estampada no inciso
LVII do art. 5o da Constituição: ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Isto significa que a
afirmação da culpa de alguém, depende do trânsito em julgado da sentença
penal condenatória. Não cabe outra interpretação.
Com a devida venia dos ilustres ministros do Supremo Tribunal Federal que
se posicionaram de modo diverso, parece óbvio que uma pena só se executa
frente a um culpado. Não creio que seja possível afirmar, pendentes recursos
que podem resultar em absolvição, que alguém possa ser tratado como
culpado!
Se é assim, como se executará a sentença penal que não se debruça ainda
sobre uma culpa afirmada?
Como pode ser democrático um Estado que aceita uma privação de liberdade,
por exemplo, de alguém que, ao final, pode ser considerado pelo próprio
Estado não culpado?
Como explicar ao réu ou à sua família, na eventualidade de uma absolvição
com declaração de inocência na superior instância, as razões pelas quais
esteve preso até então?
A meu ver, nem a restauração dos termos da lei 8.038/90, nem a eventual
postergação infindável dos processos criminais é razão suficiente para agredir
a democracia.
Além disso, não vejo equilíbrio entre interesse das defesas e do Ministério
Público, porque penso – já sei que ao contrário de muitos colegas – que o
interesse do Ministério Público não é condenar, mas obter o resultado
mais justo possível do processo criminal. E mais justo, a meu ver, é o que
mais se adéqua a um regime efetivamente democrático, do qual considero
nossa instituição guardiã.
Uma postura assim, certamente execraria o emprego de terminologia belicista
para fins de lidar com direito penal, tais como ‘combate à impunidade’. Não
estamos em guerra! Claro que não sou favorável a qualquer espécie de
impunidade. Mas quero também ter certeza de que quem foi punido o foi tão
somente por ser culpado!
O que não vi – volto a ressaltar: com raras e honrosas exceções – foi emanar
de Magistrados e Promotores a preocupação com a democracia. Isso sim é
relevante. É preciso dizer, e fazê-lo claramente, que executar a pena sem
trânsito em julgado de sentença condenatória é uma agressão ao regime
democrático.
Por outro lado, também senti falta de uma análise justa de parte dos
advogados criminalistas.
O que não ouvi da maioria dos colegas advogados foi qualquer referência ao
fato de que a interpretação revogada da Suprema Corte permitia, em qualquer
processo criminal, até um quíntuplo grau de jurisdição. Sim. Em um mesmo
feito é possível obter pronunciamento de mérito do juízo singular, do Tribunal
de Justiça ou Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça ou do
Supremo Tribunal Federal (a depender, concorrentemente, se a matéria refere
à lei ou à Constituição); ao Supremo Tribunal Federal, (em ataque à decisão
do Superior Tribunal de Justiça) e ao Plenário do Supremo Tribunal Federal,
em alguns casos.
Resulta desse sistema – sobre o qual os defensores, como regra, silenciam – o
efetivo postergar eterno dos processos criminais.
Ora, é evidente que é mais do que justo que uma pessoa condenada por um
juiz singular tenha direito à revisão desta condenação por um colegiado. Este
é o espírito do duplo grau de jurisdição! Não é possível que uma condenação
criminal possa ficar ao arbítrio de um só julgador. Mas é igualmente execrável
que uma decisão revisada volte a ser revisada quase que indefinidamente.
Na verdade, o que senti falta dos colegas, tanto acadêmicos quanto práticos
era que apontassem o canhão de sua poderosa crítica para aquilo que
efetivamente é a raiz do problema e não meramente para os seus efeitos.
Por que a Ordem dos Advogados do Brasil não brada neste sentido?
Extinguir-se-iam, para alguns de seus membros, importantes fontes de renda,
aproximando as suas possibilidades de trabalho àquelas que detém os
defensores públicos?
Não tenho resposta alguma para estas perguntas. Mas como não as vi feitas,
nos inúmeros textos que li, pensei em fazê-las para que outros, quiçá mais
conhecedores do tema, as respondam.
O fato é que tentaram corrigir um erro, criando outro, ainda mais grave.
“A dignidade defensiva dos acusados deve ser calibrada, em termos de processo, a partir das expectativas
mínimas de justiça depositadas no sistema criminal do país”, afirmou. Se de um lado a presunção da inocência e
as demais garantias devem proporcionar meios para que o acusado possa exercer seu direito de defesa, de
outro elas não podem esvaziar o sentido público de justiça. “O processo penal deve ser minimamente capaz de
garantir a sua finalidade última de pacificação social”, afirmou.
Outro argumento citado pelo ministro foi o de que o julgamento da apelação encerra o exame de fatos e provas.
“É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição”, ressaltou.
Leia a íntegra do voto do ministro Teori Zavascki.
Ministra Rosa Weber
A ministra Rosa Weber acompanhou o voto do relator, entendendo que o artigo 283 do CPP espelha o disposto
nos incisos LVII e LXI do artigo 5º da Constituição Federal, que tratam justamente dos direitos e garantias
individuais. “Não posso me afastar da clareza do texto constitucional”, afirmou.
Para Rosa Weber, a Constituição Federal vincula claramente o princípio da não culpabilidade ou da presunção de
inocência a uma condenação transitada em julgado. “Não vejo como se possa chegar a uma interpretação
diversa”, concluiu.
Ministro Luiz Fux
O ministro seguiu a divergência, observando que tanto o STJ como o STF admitem a possiblidade de suspensão
de ofício, em habeas corpus, de condenações em situações excepcionais, havendo, assim, forma de controle
sobre as condenações em segunda instância que contrariem a lei ou a Constituição.
Segundo seu entendimento, o constituinte não teve intenção de impedir a prisão após a condenação em
segundo grau na redação do inciso LVII do artigo 5º da Constituição. “Se o quisesse, o teria feito no inciso LXI,
que trata das hipóteses de prisão”, afirmou. O ministro ressaltou ainda a necessidade de se dar efetividade à
Justiça. “Estamos tão preocupados com o direito fundamental do acusado que nos esquecemos do direito
fundamental da sociedade, que tem a prerrogativa de ver aplicada sua ordem penal”, concluiu.
Ministro Dias Toffoli
O ministro acompanhou parcialmente o voto do relator, acolhendo sua posição subsidiária, no sentido de que a
execução da pena fica suspensa com a pendência de recurso especial ao STJ, mas não de recurso extraordinário
ao STF. Para fundamentar sua posição, sustentou que a instituição do requisito de repercussão geral dificultou a
admissão do recurso extraordinário em matéria penal, que tende a tratar de tema de natureza individual e não
de natureza geral – ao contrário do recurso especial, que abrange situações mais comuns de conflito de
entendimento entre tribunais.
Segundo Toffoli, a Constituição Federal exige que haja a certeza da culpa para fim de aplicação da pena, e não
só sua probabilidade, e qualquer abuso do poder de recorrer pode ser coibido pelos tribunais superiores. Para
isso, cita entendimento adotado pelo STF que admite a baixa imediata dos autos independentemente da
publicação do julgado, a fim de evitar a prescrição ou obstar tentativa de protelar o trânsito em julgado e a
execução da pena.
Leia a íntegra do voto do ministro Dias Toffoli
Ministro Lewandowski
O ministro Ricardo Lewandowski ressaltou que o artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal é muito claro
quando estabelece que a presunção de inocência permanece até trânsito em julgado. “Não vejo como fazer uma
interpretação contrária a esse dispositivo tão taxativo”, afirmou.
Para ele, a presunção de inocência e a necessidade de motivação da decisão para enviar um cidadão à prisão
são motivos suficientes para deferir a medida cautelar e declarar a constitucionalidade integral do artigo do 283
do CPP. Assim, ele acompanhou integralmente o relator, ministro Marco Aurélio.
Ministro Gilmar Mendes
Gilmar Mendes votou com a divergência, avaliando que a execução da pena com decisão de segundo grau não
deve ser considerada como violadora do princípio da presunção de inocência. Ele ressaltou que, no caso de se
constatar abuso na decisão condenatória, os tribunais disporão de meios para sustar a execução antecipada, e a
defesa dispõe de instrumentos como o habeas corpus e o recurso extraordinário com pedido de efeito
suspensivo.
Ele ressaltou que o sistema estabelece um progressivo enfraquecimento da ideia da presunção de inocência com
o prosseguimento do processo criminal. “Há diferença entre investigado, denunciado, condenado e condenado
em segundo grau”, afirmou. Segundo Gilmar Mendes, países extremamente rígidos e respeitosos com os direitos
fundamentais aceitam a ideia da prisão com decisão de segundo grau.
Ministro Celso de Mello
Seu voto, que acompanhou o do relator, foi enfático ao defender a incompatibilidade da execução provisória da
pena com o direito fundamental do réu de ser presumido inocente, garantido pela Constituição Federal e pela lei
penal. Segundo o ministro, a presunção de inocência é conquista histórica dos cidadãos na luta contra a
opressão do Estado e tem prevalecido ao longo da história nas sociedades civilizadas como valor fundamental e
exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana.
Para o decano do STF, a posição da maioria da Corte no sentido de rever sua jurisprudência fixada em 2009
“reflete preocupante inflexão hermenêutica de índole regressista no plano sensível dos direitos e garantias
individuais, retardando o avanço de uma agenda judiciária concretizadora das liberdades fundamentais”. “Que se
reforme o sistema processual, que se confira mais racionalidade ao modelo recursal, mas sem golpear um dos
direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos de uma república”, afirmou.