Lia Silveira
E é a um outro escrito que recorro para articular o que pretendo falar hoje. Um escrito
que em julho de 2015 estará completando 150 anos. Refiro-me à Alice de Lewis
Carroll, personagem de seus dois textos mais conhecidos: “Aventuras de Alice no país
das Maravilhas” e “Através do espelho e o que Alice encontrou por lá”.
Alice, personagem principal desses dois textos, é essa menina curiosa e inventiva que
se interroga sobre o mundo e sobre assuntos um tanto complexos: sua identidade, o
corpo, o tempo, a alteridade. Temas que também interessaram bastante à psicanálise,
diga-se de passagem.
Seja caindo num poço, seja atravessando o espelho, Alice cai em uma outra dimensão
espaço-tempo, onde as leis da consciência não garantem mais a lógica da significação.
A lógica da significação, sabemos desde Lacan, é a lógica fálica, já que o falo é o
“significante destinado a designar em seu conjunto os efeitos de significado, na
medida em que o significante os condiciona por seus efeitos de significante.”
(Significação do falo, p.687)
O que Carroll promove com Alice, então, é uma desmontagem da lógica fálica,
revelando o nonsense que permanece velado por toda significação, mas que ao mesmo
tempo funciona como ponto de onde pode advir toda a criação. Ponto que ancora a
inexistência da relação sexual, a impossibilidade de fazer dois com o um.
Assim, nosso objetivo neste texto vai ser, recorrendo ao artista, tentar dizer um pouco
mais sobre essa articulação entre o significante e aquilo no que ele vem incidir, que
tem como consequência o advento do sujeito.
“De que serve eles terem nomes”, disse o Mosquito, “se não
atendem por eles?”
Para que afinal as coisas tem nome? Retomamos a pergunta de Alice, que,
como pergunta infantil aponta sempre para algo radical, que nos remete à questão
sobre a origem, ao “criançamento” das palavras, lá onde elas ainda urinam na perna,
diz Manoel de Barros.
Com Lacan, vamos perceber que essa relação entre a linguagem e aquilo sobre
o que ela incide segue uma lógica, uma lógica que, diferente daquela regida pelo
significado que ordena os pensamentos conscientes, parte da incidência do
significante. Assim como nas dimensões fantásticas para as quais Alice se transporta,
o que vai importar no inconsciente é a besteira do significante, sua babaquice, que
aponta também para o sem significante do órgão feminino.
No diálogo nonsense que Alice estabelece com o mosquito, ela lhe dá a lista
de insetos que existem de onde ela vem e ele lhe retruca com os exemplos de insetos
que existem através do espelho. É impossível não rir frente ao sentido criado
simplesmente pelo efeito metonímico da passagem de uma significante a outro.
Alice diz, bom, temos as moscas (horse-fly). Certo diz o mosquito, bem ali
naquele arbusto você vai ver uma horse-fly. Não sossega, passa o dia se balançando
de galho em galho. E o mosquito prossegue, rastejando aos seus pés você pode “Você
pode observar uma borboleteiga (butterfly). Suas asas são fatias finas de pão com
manteiga, o corpo é de casca de pão, a cabeça é um torrão de açúcar. E o que ela
come? (pergunta Alice). Chá fraco com creme.” (p. 196-197)
Entre a linguagem e a morte, desde Freud temos que considerar que há, de
saída, uma divisão estrutural do sujeito, acarretada pela entrada deste na cultura, ou
em termos lacanianos, pela entrada na linguagem. Este sujeito, não existe desde o
início. Ele se estrutura incialmente se alienando ao outro materno, aos seus cuidados,
seu toque e suas palavras.
Vimos que o movimento do desejo vai ser o de tentar reencontrar o objeto perdido.
Mas essa tentativa só pode se dar através da única via possível, aquela da demanda. A
demanda implica em colocar aquilo que se apresenta como necessidade nas trilhas do
significante, dirigindo-as ao outro. (figura 01) Estamos no domínio da reivindicação,
onde espera-se que o Outro possa responder. Mas, no horizonte, o que se espera que o
Outro responda é, não pelo objeto da demanda, mas pelo objeto do desejo, aquele
perdido e que se busca reencontrar. (figura 2) O desejo é exatamente aquilo que surge
nessa “margem onde a demanda se rasga da necessidade”(Lacan, subversão, p. 828)
A frustração, é, para Lacan, a versagung, quebra da promessa, onde o Outro não
responde. Não responde, claro, porque do desejo ele também nada sabe. Mas o
neurótico é aquele que não se conforma com que o Outro não saiba. (sem IX, p. 215)
Uma das consequências da frustração assim experimentada, é que o sujeito vai tomar
o desejo enigmático do Outro como integrante do circuito das demandas, e vai fazer
do seu próprio desejo uma demanda no Outro. (figura03) No Seminário “A
identificação”, Lacan recorre a dois toros que se entrelaçam para demonstrar essa
relação que ocorre a partir de uma inversão: desejo num, demanda no outro; demanda
de um, desejo do outro, que é o nó onde se atravanca toda a dialética da frustração. A
segunda consequência é que esse vazio que corresponde ao desejo do outro, vai, em
parte, ser reduzido a um significante, o falo, que passa a ser agora “o objeto
metonímico de todas as demandas”. (Sem IX, p.200)
Nesse lacuna que se abre, marcada pela falta no Outro é que o sujeito vai
passar a se perguntar sobre o desejo: o que esse outro quer? E mais, o que ele quer de
mim? É frente a esse pergunta feita ao Outro que o sujeito vai se escrever como
resposta.
Na neurose, é sobre esse movimento que a operação da castração vem incidir para,
fazendo atravessar-se ai o registro da Lei, que irá permitir com que o sujeito escape à
essa relação de engodo. Ela implica em que a demanda do Outro seja tomada como
desejo pelo sujeito, e essa demanda, Lacan a explicita, se formula assim: “tu não
desejarás aquela que foi o meu desejo.” Isso tem uma função de corte. É isso que o
mito do Édipo vem a ocupar, sendo necessário que, doravante, seja o pai morto quem
venha desempenhar essa função de Lei, que permite o advento do desejo.
O neurótico, ao se defrontar com a falta, com o impossível de dizer, recorre ao
pai para interditar aquilo que supõe correr o risco de gozar. No entanto, é essa própria
impossibilidade que impõe a criação do mito do pai gozador, seu assassinato e
consequente instauração do pai simbólico. Todo o mito é construído, afirma Lacan,
para velar essa falha, fazendo com que aquilo que era impossível, surja como
interditado.
É por isso que o Outro enquanto coisa interditada e o Outro enquanto Lei são a
mesma coisa, porque o Outro só existe enquanto efeito de linguagem e é por uma
operação de metáfora que ele constitui ao mesmo tempo, a coisa interditada e a lei a
que a interdita. (figura04)