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O vento soprava lento e quente os lençóis de cores claras que Dona Maria estendia no varal feito

de cordas negras. O céu pintado de azul era habitado pelo sol efervescente dos verões cariocas,
as folhas das árvores e os capins do chão dançavam vagarosamente ao redor da velha senhora;
eram espectadoras da paz exalada por aquela matriarca anciã, que em seus tempos de
juventude, se sua memória não a enganava, distribuía sua beleza aos olhos dos moços e moças
habitantes de sua cidade natal.
Dona Maria retirou as gotas de suor que escorriam pelo seu buço, secou-as nas blusas e
automaticamente passou a mão em seus cabelos já completamente grisalhos; delatores de seus
quase oitenta anos de vivência. Com demasiada serenidade, Dona Maria levava seus dias,
quentes e frios, alternando entre cozinhar para si própria, fazer crochê e ler seus livros sobre
espiritismo. O tempo da velha senhora passava assim, arrastando-se serenamente, mas
deixando a sensação de que o passado está tão distante que não o reconhece em nenhum lugar
que olhe, a não ser para dentro de si, em suas memórias saudosistas. Após um longo suspiro, a
anciã legou as roupas aos cuidados do vento e do sol e resolvera voltar para dentro de casa,
caçaria algo para matar o tempo até sua próxima atividade. Passo a passo, a senhora rumava
em direção ao portão que dá passagem para o interior da casa de sua filha, na qual a mesma
morava, quando em uma disparada barulhenta um diabinho quadrúpede com pouco mais que
quarenta centímetros de altura e um metro de comprimento fora em sua direção. O animal
canino ficou sobre as duas patas traseiras e apoiou as frontais sobre a barriga magra da velha
senhora. Em um ataque eufórico, a cadela cavava no tecido, clamando carinho no corpo de Dona
Maria, que soltava risadas tímidas, exibindo dentes que não eram seus, mas um sorriso que
indubitavelmente a pertencia. Na adrenalina de não ser derrubada pela cadela histérica, Dona
Maria apontava para longe e falava para o animal ir procurar sua dona para brincar, mas a
diabinha não dava atenção aos pedidos de Dona Maria, lançava lambidas e leves mordiscadas
nas mãos enrugadas da humana em questão.
Com dificuldades, Dona Maria conseguiu se desvencilhar da cachorra e atravessar o portão,
deixando-a no quintal com a língua rosada para fora, arfando, apoiada no portão de madeira
que separava a jovem cadela de menos de um ano do quase um século da matriarca. Os olhos
cansados da senhora fitavam os olhos puros e desafiantes da cachorra de médio porte que
buscava diversão sem fim. Dona Maria ainda disse “vá para lá brincar, vá” para a cachorra sem
raça, que novamente não deu muita importância, mas ao menos se desencostou do portão e foi
atrás de sua vasilha de água. A idosa viu a cachorra lamber freneticamente a substância
transparente fazendo um barulho que a lembrou o trote dos cavalos. A vivacidade da cadela
deixou um sorriso em seu rosto, mas após pouco mais de dez segundo a velha senhora se
guardou dentro de casa e se pôs a ler mais um dos seus livros acerca da doutrina do espiritismo
de Allan Kardec.
O sol puxou o dia e passou a bola para a lua fazer o mesmo com a noite, o calendário marcava
outra data, mas tudo parecia em essência com as vinte e quatro horas anteriores. Dona Maria
levantou-se por volta das oito da manhã, fez seu desjejum com biscoitos feitos de farinha, água
e sal e bebeu como acompanhamento um copo de leite puro. Mastigou tudo com seus dentes
comprados e escovou-os depois. Decidira tomar um banho para afastar o calor matinal. Pegou
suas roupas e sua toalha e dirigiu-se ao banheiro. Viu sua própria figura no espelho sobre a pia
e sentiu-se velha, acabada, castigada pelo tempo; “sou apenas o esqueleto de um navio antigo”
pensou indiscriminadamente consigo mesma, mas falou sério, os ossos protuberantes de seu
tórax como um todo a incomodava. Lembrava-a que parecia-se cada vez mais com a morte,
tanto a representação imagética, quanto a morte literal, pensava que aquele era seu fim. Apesar
de adepta do espiritismo, de crer piamente na reencarnação, sua fé era abalada pelo pesar que
tinha sobre si mesma. Estava largada dentro da solidão na qual seus filhos a deixaram, não no
que tange a companhia física, mas na preocupação em dizer a ela que estavas viva e que quem
estava ao seu lado não era a morte, mas sim a vida. Suspirou fundo e entrara no chuveiro,
tentando lavar seus pensamentos ruins ou sua velhice; desejou silenciosamente que seus anos
descessem pelo ralo junto daquela água gélida que tocava sua branca pele.
Com o corpo fresco e a sensação de desconforto, Dona Maria se pôs sentada no quintal de casa,
onde estava mais fresco e ainda existiam sombras das árvores de pequeno porte. Dona Maria
arrastou uma cadeira de praia fazendo barulho e a abriu na sombra, não das árvores, mas a
sombra que o sol fazia com a própria casa. Com seu livro de doutrina espírita em mãos, um par
de óculos e roupas leves – que escondiam os ossos que tanto a incomodavam – Dona Maria
sentou-se. As nuvens flutuavam no céu sem nenhuma preocupação, carregadas pelos ventos
que sopravam a noroeste, observou Dona Maria sentada. Respirou pacientemente, tirando sua
atenção das nuvens e abriu o livro marcado por uma folha de papel fina dobrada três vezes. O
sol crescia durante a manhã, cada página que Dona Maria lia ele corria alguns centímetros mais
em direção ao oeste relativo a senhora.
Por volta das nove e quarenta da manhã, a anciã ouviu um ruído inesperado, uma
movimentação não-ordinária que a fez prestar atenção na paisagem ao seu redor. Ouviu agora
um barulho de unhas se chocando contra o chão e viu novamente a cadela de seus bisnetos
vindo, ainda meio sonolenta em sua direção. A jovem cachorra acabara de acordar, mas já estava
disposta para brincadeiras e para a farra. Dona Maria pensara em se levantar, mas era tarde, o
pequeno diabo já tinha seu focinho apoiado sobre as coxas magras da anciã, sua língua se
movimentava lentamente, buscando apreço e suas orelhas pendiam para trás. “Hoje ela não
está tão agressiva, pelo menos”, pensou Dona Maria, mas como se a cadelinha tivesse lido seus
pensamentos, pôs suas duas patas frontais sobre as cochas de Dona Maria. “Tudo bem, ainda
está tudo sobre controle”, disse para si mesma, e realmente estava, a cachorra parecia estar
satisfeita com os afagos que recebia no topo de sua cabeça nesse momento pela senhora. Seu
pelo caramelo espetado era acariciado e coçado vagarosamente pelas unhas a pintar de Dona
Maria.
Ficaram assim por quase um minuto, até que a cadela decidiu que aquilo não era o suficiente,
não fora enérgica como no dia anterior, mas agora tentava subir por completo no colo da
senhora. Botou uma de suas patas traseiras sobre a coxa e tentou se puxar para cima da velha,
que começou a rir e a ficar sem reação perante a empreitada da cachorra. A cadeira era
relativamente alta e não dava muita posição para que a cachorra conseguisse subir, entretanto,
a bichinha estava determinada. Esforçou-se, puxou-se para cima com as patas da frente e ficou
cavando no ar com a pata que faltava para subir – sua boca estava aberta com meio metro de
língua para fora. Após alguns segundos de destemida força de vontade e alguns leves arranhões
nas pernas de Dona Maria a cachorra conseguiu finalmente ficar sobre a anciã, que estava de
mão levantadas sem reação, sem saber como proceder, sentia os vinte quilos animalescos
repousados sobre seu corpo frágil paralisado.
Aos poucos, com cautela, retornou a afagar a cabeça daquele fofo demônio, que insistia em
mordiscar a mão livre da senhora. O livro sobre Kardec já repousava no chão com seu marcador
de papel quando a pacifica e atormentada velinha disse para a canina: “Você tem quase um ano,
certo? Mas dizem que cada ano que passa para os cães equivalem a sete anos para os humanos”.
Tudo que teve como resposta fora uma expressão boba com a língua balançando no ar e os
olhos fixos na boca que falava com ela. “Sinto que vivi sete vezes mais do que os anos que
passaram também” continuou Dona Maria “mas infelizmente não vivo mais”. A cachorra lambeu
a mão que afagava sua cabeça e desceu escorregando pelas pernas finas da senhora.
Uma borboleta pequena passou em frente ao focinho da cadela cor de caramelo, que se animou
e começou a perseguir o inseto freneticamente, cujo o bater de asas agora era para preservar
sua própria vida. A cadela não tinha a intenção de matar a pequena borboleta, suas atitudes
eram tão puras como seriam a de um santo, ela brincava perseguindo o inseto, saltava de um
lado para o outro, exalando jovialidade, “tinha a vida toda pela frente”, pensou Dona Maria.
A cachorra rolou no chão de areia com a boca aberta e, subitamente, lançou um latido grave e
potente como um trovão, fazendo a velha dar um leve pulo da cadeira. No geral, a cachorra era
silenciosa, apesar de destrambelhada e enérgica, latia em raros momentos especiais. A
borboleta finalmente fora embora e deixou a cadela observando o horizonte. Dona Maria fora
afligida novamente por um marasmo, invejou a jovem cachorra que saltava e pulava de um lado
para o outro, que exalava toda a primavera de sua juventude. Dona Maria se perdeu em seus
pensamentos, olhava ela agora para o horizonte azul, oposto ao sol. E deixou-se perder no fluxo
do tempo.
Fora trazida de volta por uma lambida no queixo, dada pela cachorra que saltara direto para o
seu colo. Os olhos das duas fêmeas cruzaram-se mais uma vez, eram demasiadamente
parecidos: ambos de um castanho que pendia para um tom mais escuro. Tudo que os separavam
era a anatomia e a expressão boba da cachorra. A anciã tentara acariciar a cachorra, que
imediatamente saltou para fora do colo, esquivando-se. Ela lançou mais um latido de trovão,
dessa vez em direção a Dona Maria que voltou a se surpreender. Latiu uma, duas, três vezes e
saiu correndo em direção aos lençóis que Dona Maria havia esquecido do dia anterior.
A pequena demônio agarrou um dos lençóis, de tonalidade azul bebê, e o puxou para o chão
com seus dentes afiados. Dona Maria protestou a distância e levantou da cadeira o mais rápido
possível, mas a cadela continuava se divertindo em sujar o lençol recém lavado. Correu por toda
a extensão do quintal arrastando sua grande bandeira azul bebê no focinho, volta e meia
parando para olhar Dona Maria que a perseguia o mais rápido que podia. Toda vez que a velha
se aproximava a cadela corria com o lençol, já tingido de marrom pela sujeira, como se fugisse
do próprio abate. Os olhos pacíficos de Dona Maria encheram-se de cólera e a mesma já se
pegava gritando, esbravejando e xingando a cadela que corria como um pequeno leitão das
fazendas do interior. A cadela novamente parou, só que dessa vez deitou e rolou com euforia,
ainda com o lençol na boca, e, no fim de seus giros, a cadela tinha prendido a si mesma. Ficara
enrolada como uma bala, restando apenas a cabeça, que se sacudia com a língua para fora da
boca como de costume. Presa, sem conseguir mover suas pata, cansada, a cachorra assistiu a
velha senhora chegar à sua frente e desmoronar numa risada alta e estrondosa como o latido
que a própria cadela dava ocasionalmente.
Dona Maria olhou a cadela completamente embalada e presa à sua frente e sua ira se dissipou
ao olhar novamente nos olhos daquele animal, que mesmo correndo o risco de ser repreendida
e agredida pela senhora não aparentava medo. Apenas prazer. Prazer não pela travessura em
si, mas também pelo fato da velha senhora estar, de certa forma, brincando com ela. A idosa ao
perceber isso, deixou sua raiva passar e apenas riu, pensou que os lençóis poderiam ser levados
novamente a máquina de lavar roupas, não era grande problema. Dona Maria sentiu-se cansada,
arfava tanto quanto a pequena cachorra e riu mais ainda, dessa vez de si mesma ao lembrar da
dezenas de palavrões e injúrias que lançara contra aquele animal, que, apesar de endiabrado,
estava apenas se divertindo sinceramente. A cadela quase nunca está triste, está sempre
disposta a doar honestidade, mesmo ali, em uma situação ridiculamente hilária.
Dona Maria pôs sua mão trêmula no peito e sentiu se coração bater forte, ser levado ao extremo
por uma empreitada atrás de uma cadela com pouco menos de um ano de idade. Sentiu que lhe
faltava um pouco de ar, mas não temeu e nem morreu. Só percebeu, ali, na simplicidade
animalesca, na pureza da sujeira de terra que manchava seus pés enrugados e os lençóis antes
limpos, que não se encontrava morta, que os ossos outrora incômodos eram apenas mais um
ciclo de sua passagem por esse mundo. Dona Maria sentira que estava viva, que respirava o ar
que a cadela respirava. Sentira, com todo o apreço possível, que tinha ainda toda a vida pela
frente.

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