Primeira parte
Os Símbolos Primários: Mancha, Pecado, Culpabilidade
“[...] se a repetição da confissão do mal humano pela consciência religiosa não funda
uma filosofia, ainda assim essa confissão já contribui para delimitar o seu interesse
específico, pois que essa confissão é uma palavra, uma palavra pronunciada sobre si
mesmo; ora, toda a palavra pode e deve ser “retomada” no discurso filosófico.(p.20)”
“[...] o mal – mancha ou pecado – é ponto fraco, com que a crise desse elo que o mito
torna explicito à sua maneira; ao limitarmo-nos aos mitos que dizem respeito à origem e
ao fim, temos a hipótese de aceder a uma compreensão do mito mais intensiva do que
extensiva. Com efeito, é por o mal ser por excelência a experiência crítica do sagrado,
que a ameaça de rompimento do elo entre o homem e o seu sagrado faz com que se sinta
com a maior intensidade a dependência do homem em relação as forças do seu
sagrado.” (p. 22)
2. Criteriologia do Símbolo
“Por sua vez, essas relações em profundidade e em extensão são reelaboradas pelas
relações retroativas: a nossa memória cultural é incessantemente renovada
retroativamente pelas novas descobertas, pelos retornos as fontes, pelas reformas e pelos
renascimentos que são bem mais revivalismos do passado e que constituem, a
montagem de nós mesmos, aquilo que poderíamos chamar de neopassado. Assim, o
nosso helenismo não é exatamente o dos Alexandrinos, nem os dos padres da igreja,
nem da Escolástica, nem a do Renascença, nem a da Aufkläring [iluminismo]; pense-se
na redescoberta da tragédia pelos modernos. Deste modo, através de uma ação retroativa
a partir da sucessão dos agora, o nosso passado não deixa de mudar de sentido; a
apropriação presente do passado modifica precisamente aquilo quenos motiva das
profundezas do passado.” (p.38)
PRIMEIRO CAPÍTULO
A Mancha
1. O impuro
“A própria mancha não passa de uma representação e esta encontra-se mergulhada num
medo específico que impede a reflexão: com a mancha entramos no reino do terror [...]
as purificações tentam anular através de uma ação específica dos danos da mancha; mas
já não podemos coordenar essa ação ritual com nenhum dos tipos de ação sobre os quais
possamos, hoje em dia, teorizar, a saber: ação física, influência psicológica, tomada de
consciência de nós mesmos.” (p. 41)
“O que resiste a reflexão é a ideia de algo quase material que infeta como uma sujidade,
que faz mal através de propriedades invisíveis e que, no entanto, opera como uma força
no campo da nossa existência que é inextricavelmente psíquica e corporal.” (p. 42)
“O seu caráter irracional só possibilita uma abordagem oblíqua: num primeiro tempo,
usaremos a ciência etnológica sem nos preocuparmos com a apropriação do seu sentido;
a mancha aparecer-nos-á, então como um momento superado da consciência; assim,
compreendemos por efeito de contraste os sentimentos e as condutas que
abandonamos.” (p. 42)
“Em primeiro lugar, a nossa consciência já não reconhece o repertório da mancha: para
a consciência que vive nesse regime, o que é mancha já não coincide com aquilo que
para nós é o mal. Podemos considerar que as variações desse inventário indicam um
deslocamento da própria motivação; é porque já não podemos discernir nessas ações
impuras uma qualquer infração à justiça que devemos às outras pessoas, qualquer
diminuição da nossa dignidade pessoal, que para nós, essas ações são excluídas da
esfera do mal.” (p. 42-43)
“[...] o inventário das faltas, no regime da mancha, é mais vasto do que diz respeito aos
acontecimentos do mundo uma vez que é mais escasso no que diz respeito às intenções
do agente.” (p. 43)
“Essa vastidão e essa escassez são testemunhas de uma fase na qual o mal e a
infelicidade não aparecem dissociados, em que a ordem ética do fazer o mal [mal-feire]
não se discerne da ordem cósmica e biológica do mal-estar [mal-être]: sofrimento,
doença, morte, insucesso. [...] a punição volta a incidir no homem que está mal [em
mal-etre] e transforma todo o sofrimento possível, toda a doença, toda a morte, todo o
insucesso em sinal da mácula; deste modo, o mundo da mancha engloba na sua ordem
do impuro as consequências da ação ou do acontecimento impuros; a partir daí, a
separação entre o puro e o impuro ignora toda a distinção entre o sagrado e o profano
que para nós se tornou irracional.” (p. 43-44)
2. O Terror Ético
“A mancha tem sido considerada como acontecimento objetivo; é, dissemo-lo, algo que
infeta através do contato. Mas esse contato infeccioso é vivido subjetivamente num
sentimento específico que é da ordem do Temor. A entrada do homem no mundo ético
Face pelo medo e não pelo amor.” (p. 45-46)
“[...] essa Cólera anônima essa violência sem rosto da Retribuição inscreve-se no
mundo humano sobre o cunho do sofrimento. A vingança provoca o sofrimento. E
assim, por intermediário da Retribuição toda a ordem física se insere na ordem ética; o
mal causado pelo sofrimento é ligado artificialmente ao mal causado pela falta; o
próprio equívoco da palavra mal tem a sua razão de ser, que se prende com a lei da
Retribuição tal como ela é descoberta, com o temor e tremor, pela consciência de
mácula.” (p. 47)
“Essa ligação entre a mancha o sofrimento, e que é vivida em temor e tremor, manteve-
se com a tenacidade tanto maior Quanto pode constituir, durante bastante tempo um
esquema de racionalização, um primeiro esboço de causalidade, você sofres, estás
doente, se fala se morres, é porque pecaste; o valor sintomático e detentor do sofrimento
em relação a mancha converte-se em valor explicativo e etiológico do Mal moral. Ainda
mais, não só a razão como também a piedade agarrar-se amo desesperadamente a essa
explicação do sofrimento: se é verdade que o homem sofre por que é impuro, então
Deus é inocente; desse modo, o mundo do terror ético é depositário de uma das
“racionalizações” mais tenazes do mal de sofrimento.” (p. 48)
“[...] foi preciso que o sofrimento se tornasse absurdo e escandaloso para que o pecado,
por seu lado, acedesse à sua significação própria mente espiritual; pagando esse terrível
preço o temor que ele era inerente pode tornar-se temor de não amar o suficiente e
dissociar-se do temor de sofrer de falhar, na palavra o temor da Morte espiritual pode
separar-se do medo da morte física. [...] foi preciso que o sofrimento; se tornasse
inexplicável, se tornasse um mal escandaloso [mal de scandale] para que o mal da
Mancha se tornasse ele mesmo mal de falta.” (p. 48)
“Um interdito é bem mais do que um juízo de valor negativo, que um simples “isto não
pode ser”, “isto não pode fazer”, é até mais que um “tu não deves” no qual eu me sinto
lesado por uma ameaça; sobre o interdito para Jackson para da vingança que ele levar a
cabo se for violado; o “tu não deves” reveste-se de sua gravidade, do seu peso, através
do: “se não morres”. Por conseguinte, o interdito antecipa em si mesmo o castigo do
sofrimento; e o constrangimento moral do interdito carrega consigo a f g afetiva da
punição. Um tabu um tabu não é senão e isso: uma punição antecipada e afetivamente
para Avenida na interdição; assim, o poder do interdito é no medo preventivo, um
poder mortal.” (p. 48-49)
3. O simbolismo da nódoa
“Eis os dois traços arcaicos objetivo e subjetivo da Mancha algo que infeta, e um temor
que antecipa ou desencadear da cólera vingadora da interdição. São estes dois traços que
já não compreendemos a não ser como momentos “superados” da representação do
mal.” (p.49)
“Esses dois traços nunca serão simplesmente abolidos, mantendo-se sempre presentes e
(22)
transformados em momentos novos. Nos gregos os poetas trágicos e os oradores
áticos são testemunhas de um nascimento das representações e das práticas catárticas
relacionadas á mancha; [...] mas o mundo dá mancha não persiste apenas sob a forma de
uma sobrevivência; ele fornece o modelo da Imaginação com o qual são construídas as
ideias fundamentais da purificação filosófica.” (p. 49-50)
“[...] a mácula nunca foi literalmente uma nódoa; o impuro nunca foi literalmente o
sujo, o imundo; também é verdade que o impuro não chega aceder ao nível abstrato e o
do indigno se não a magia do contato desvanecer-se-ia; a representação da Mancha está
na zona cinzenta.” (p. 51)
“[...] a mácula na medida em que é o “objeto” da superação ritual, ela mesma símbolos
do mal: a mancha ou a mácula esta está para a nódoa como o polimento está para
lavagem; a mancha não é uma nódoa, mas é como uma nódoa; é uma nódoa simbólica.”
(p. 51)
“A mancha faz a sua aparição no universo humano por meio da palavra; a sua angústia é
comunicado pela palavra; antes de ser comunicada, essa angústia é comunicada pela
palavra a oposição do puro e do impuro é dita; e é a palavra que exprime que institui a
própria oposição. uma nova é uma nova simplesmente porque está aí, muda; o impuro é
ensinado pela palavra institucional do tabu.” (p. 52)
“É precisamente o vínculo da mancha a uma palavra que define, que faz aparecer o
caráter originariamente simbólico da expressão do puro e do impuro. Assim, a
“interdição” que exclui o culpado de todos os lugares sagrados de públicos - também
sagrados porque são públicos - significa exclusão do manchado de um espaço sagrado.
Depois do julgamento, o criminoso é objeto da interdições ainda mais graves, que, por
assim dizer, o anulam A ele e a sua mancha; exílio e morte trata-se, portanto, de
anulações do manchado e da mancha.” (p. 55)
“[...] o exilado não é simplesmente excluído de uma área do contato material; ele é
escorraçado para fora de um ambiente humano que é em si mesmo determinado pela lei;
a partir daí, o exilado já não assombrada o espaço humano da Pátria no ponto onde
acaba a pátria; também aí acaba a sua mancha; além disso, mataram assassino no
território da Pátria ateniense é purificá-lo; matá-los fora desse território é matar um
ateniense novos rituais de asilo e de acolhimento poderão, outro lado, outros olhos, e no
contexto de uma legislação diferente, restituir-lhe uma nova pureza.” (p. 56)
“[...] e sempre aos olhos de um outro que nos envergonha, e perante a palavra que
exprime o impuro e o puro, que a nódoa é uma mancha.” (p. 56)
4. A sublimação do amor
“O temor do impuro, de facto, já não é medo físico tanto quanto a mancha já não é, ela
mesma, nódoa. O temor é impuro é como um medo; mas já enfrenta uma ameaça que,
para lá das ameaças do sofrimento e da morte visa, a diminuição da existência, a perda
do núcleo pessoal.” (p. 57)
“[...] o medo da vingança não é um simples medo passivo, envolve já uma exigência, a
exigência de uma punição justa. Essa exigência encontra na lei de retribuição a sua
primeira expressão e uma aproximação provisória. Dissemo-lo anteriormente, essa lei é
experienciada, em primeira instância, como uma fatalidade esmagadora; é o
desencadear de uma cólera elementar agudizada pela insolência da violação; no entanto
essa Fatalidade sofrida envolve uma legalidade exigida, uma justiça que retribui de
forma justa; se o homem é punido porque peca, então deve ser punido como peca. Esse
dever Ser discernido através do temor e tremor, é o princípio de todas as nossas
reflexões sobre a punição.” (p. 58)
“A medida da pena não é nada sem a sua finalidade por outras palavras, aquilo que é
visado na vingança e a expiação, ou seja, a punição que remove a mancha, mas aquilo
que é visado nessa ação negativa de remover e a reafirmação da ordem. Ora, a ordem
não pode ser reafirmada fora do culpado sem o ser também dentro do culpado; portanto,
o que é visado através da vingança e da expiação, é a própria emenda, ou seja, a
restauração do valor pessoal do culpado através da punição justa.” (p. 59-60)
“Se se perguntassem então qual é o núcleo que se mantém imutável ao longo de todas
essas simbolizações da mancha, haveria que responder que apenas um próprio processo
da consciência que simultaneamente conserva e supera a mancha que o seu sentido se
manifesta. [...] Se, portanto, a sinceridade pode ser uma purificação simbólica, todo o
mal é, simbolicamente nódoa: a nódoa é o primeiro “esquema” do mal.” (p. 61)