A Problemática das
Mentalidades e a Inquisição
no Brasil Colonial
Ronaldo Vainfas *
cional: vinculada, como diziam Bran Colônia cumpriria sua função ate
dônio, Gandavo e tantos outros, à efe nuante da terrível tensão entre I) céu
tiva ocupação e exploração do terri e o inferno, possibilidades extremas.
tório. O paraíso desses portugueses, Purgatório dos brancos e inferno dos
lembra-nos Laura, confundia-se com o negros, reconheciam quase todos à ex
aproveitamento econômico das poten ceção de Vieira que, mestre da trans
cialidades naturais; só adquiria pleno figuração barroca, apregoava aos pró
sentido se conjugado ao processo de prios escravos o quão ilusório era o
colonização. inferno em que viviam se ardessem nO
Mas é fora desse domínio quase engenho como Cristo sofrera na
. -
edênico inerente à visão da natureza palXao.
que nossa autora descobre o sentido Nessa releitura do Brasil colonial
infernal da colonização. Na descrição em suas várias dimensões, Laura de
do ameríndio, seu corpo, costumes e Mello e Souza conjuga, pois, a des
crenças, a retratação predominante foi coberta do imaginário feita em Visão
a de uma humanidade inferior, anima· do paraíso e o sentido da colonização
lesca, próxima dos monstros selvagens de Caio Prado Júnior·, posteriormente
que habitavam o imaginário europeu sistematizado por Fernando Novais ' .
na baixa Idade Média. Humanidade E, dando continuidade ao que vislum
por si mesma inviável, governada por brara nos Desclassificados do ouro.,
um demônio onipresente. Frei Vicente entre a gente pobre das Minas acusa
do Salvador fora o primeiro, já no da de feitiçaria pelas autoridades ecle
século XVII, a vincular o triunfo do siásticas no século XVIII, desvenda
nome Brasil sobre a terra de Santa o mundo mágico da vida diária colo
Cruz ao pau avermelhado e abrasado, nial em variadas regiões - mundo
que mais convinha ao diabo que a esse que, a despeito de qualquer amo
deus. E, jesuítas à frente, desde o bigüidade, seria mesmo demonizado
século XVI impôs-se mesmo a demo pelo processo colonizatório.
nização dos indios, estendida depois
aos negros, e justificando ora a cate A reconstituição das mentalidades
quese, ora a escravidão, quando não coloniais (se assim podemos cha
ambas as estratégias colonizadoras. má-las), tal como aparece n'O diabo,
"Paraíso tetIestre pela natureza", suscita ainda importantes questões de
escreve Laura, "inferno pela humani ordem metodológica e historiográfica.
dade peculiar que abrigava", o Brasil Uma delas diz respeito simultanea
seria ainda "purgatório pela sua rela mente ao uso das fontes e ao enfoque
ção com a metrópole". Lugar onde teórico. A documentação básica utili
Portugal despejaria os indesejáveis do zada pela autora consiste nas denún
reino, os que deveriam expiar crimes cias e confissões das visitas do Santo
e pecados cometidos no aquém-mar. Ofício de Lisboa à Bahia (séculos XVI
A colonização do Brasil seria assim e XVII). a Pernambuco (século XVI)
retratada, e não apenas no tocante aos e ao Pará (século XVIII); nas devas
que para cá vieram degredados, coma sas gerais executadas nas Minas ao
uma viagem de purgação tal qual a longo do século XVIII; em cerca de
"nau dos insensatos" renascentista. Já 60 processos da Inquisição portugue
Antoni!, lembra-nos Laura, sintetiza sa contra acusados de feitiçaria na Co
va o Brasil como "purgatório dos lônia, concentrados no Arquivo Na
brancos", purgatório que também na cional da Tone do Tombo, em Lisboa.
170 ESTUDOS HISTÓRICOS - 1988/1
dos têm sido feitos ou projetados 12. A sair pela Editora Campus no
nesse campo 19, o que certamente con próximo ano.
correrá para o enriquecimento da his 13. Ver MOTT, Luiz. "Os pecados da
tória social e das meDtalidades no família na Bahia de Todos os Santos" in
Centro de Estudos Baianos. 1982 (baseado
período coloniaL
na visita ou devassa de 1813); LODOfilD,
Fernando Torres. "Visita pastoral de Vila
o diabo e a Terra de Santa Cruz é Maria do Paraguai em 1785". São Paulo,
por tudo isso um marco de referên mimeo, 1986; FIGUEIREDO, L. R. de A.
"O avesso da memória; estudo do papel,
cia Da historiografia brasileira. Obra participação e condição social da mulher
na qual a renovação metodológica se no século XVIII mineiro". Relatório final
alia ao criativo manuseio das fODtes, de pesquisa apresentado à Fundação Carlos
Chagas. São Paulo, 1984; Laura de Mello
iDteirameDte controladas pela historia
e Souza também publicou As devassas
U
19. Cito, entre outros, 8 tese de Lana marcada por O diabo, a tese recém-apre
Lagc da Gama Lima, ora em fase de sentada na pós-graduação em ciências so
redação, sobre a moral e o clero n8 Colônia, ciais da Universidade Federal da Bahia por
baseada em processos de solicitação do Lígia Belini (sob a orientação de Luiz
Tribunal de Lisboa; alguns trabalhos de MotO. A coisa obscura: mulher, sodomia
minha autoria: "Moralidades do trópico: e Inquisição no Brasil colonial. Salvador,
notas sobre casamento, celibato e fornica- agosto de 1987.