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Desinstitucionalização em saúde mental e práticas de cuidado

ARTIGO ARTICLE
no contexto do serviço residencial terapêutico

De-institutionalization of mental health and care practices


in the context of home-based care

Ana Karenina de Melo Arraes Amorim 1


Magda Dimenstein 2

Abstract In Brazil, the home-based care services Resumo Os serviços residenciais terapêuticos (SRT)
(HCS) are considered strategic and essential in the no Brasil são considerados estratégicos e imprescindí-
de-institutionalization process of patients who passed veis no processo de desinstitucionalização de egressos
years in psychiatric hospitals and lost their family de longas internações psiquiátricas que perderam
and social links. However, this service faces a series of vínculos sociais e familiares. No entanto, muitos são
problems and challenges in the wider context of health os problemas e desafios que este serviço evidencia no
care. This article seeks to analyze some of these prob- contexto mais amplo da atenção à saúde. Este artigo
lems and challenges based on the experience of the procura analisar alguns desses problemas e desafios a
home-based care service in Natal – RN and on the partir da experiência do SRT de Natal, Rio Grande
literature in this field. Proposed on the basis of the do Norte, e de contribuições da literatura do campo.
idea that the encounters between insanity and city Propostos com base na idéia de que os encontros en-
are potent destructors of the “asylum logic”, these tre loucura e cidade são potentes no sentido da des-
home-based care services put in question the current construção da “lógica manicomial”, os SRT são proble-
healthcare model, claiming to destruct the rigid and matizadores do modelo de atenção em saúde vigente,
hegemonic forms of residence and care. The aim of pois exigem a desconstrução das formas rígidas e hege-
this article is to discuss this “asylum logic” that sur- mônicas de morar e cuidar. Pretende-se problemati-
passes the limits of the concrete insane asylum pene- zar essa “lógica manicomial” que atravessa os limi-
trating some daily practices of the substitute services, tes dos manicômios concretos e se atualiza no cotidia-
taking advantage of the weak articulation between no dos serviços substitutivos em certas práticas e na
the mental health services. The lack of a strong con- frágil articulação da rede de saúde mental. A falta de
nection between the home-based care service and the articulação efetiva entre SRT e Centro de Atenção
psychosocial care center allows this logic to operate Psicossocial (CAPS) dá lugar a dispositivos biopolíti-
through day-by-day bio-political devices. Thus, we cos no cotidiano através dos quais essa lógica opera.
discuss the risks of this logic taking over and indicate Discutimos, então, os riscos de captura por esta lógi-
1
Departamento de some possibilities of avoiding this, defending a care ca e indicamos algumas das possibilidades de descons-
Psicologia, Universidade
model allowing for potent meetings with the city and trução, defendendo uma clínica que possibilite encon-
Potiguar (UnP). Av.
Salgado Filho 1600, Lagoa for the construction of “affectionate networks” pro- tros potentes com a cidade e a construção de “redes
Nova. 59056-000 Natal ducing life and liberty. de trabalho afetivo” produtoras de vida e liberdade.
RN. akarraes@terra.com.br.
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Key words De-institutionalization, Mental health, Palavras-chave Desinstitucionalização, Saúde men-
Programa de Pós-
Graduação em Psicologia Therapeutic homes, Care practices tal, Serviço residencial terapêutico, Práticas em saúde
Social, UFRN.
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Amorim,AKMA, Dimenstein M

Introdução possibilidades de vida para todos” e devem garan-


tir “o acesso, o acolhimento, a responsabilização e
A história da reforma psiquiátrica brasileira é um a produção de novas formas de cuidado do sofri-
processo em construção e um projeto com dife- mento”2. Sendo assim, configuram uma modali-
rentes versões. A mais atual, que fundamenta as dade de serviço que pode ser considerada avança-
políticas de saúde mental, é a da desinstitucionali- da no sentido da desconstrução da loucura como
zação entendida como desconstrução de saberes, signo de aprisionamento, periculosidade e isola-
discursos e práticas psiquiátricos que sustentam a mento, pois aposta na convivência urbana dos “lou-
loucura reduzida ao signo da doença mental e re- cos” como cidadãos e busca concretizar a efetiva
forçam a instituição hospitalar como a principal substituição dos manicômios e a liberdade de ex-
referência da atenção à saúde mental1. No entanto, internos de circular pela cidade.
quando analisamos a realidade da saúde mental Na realidade específica da saúde mental no
brasileira, observamos que existe uma série de im- município de Natal (RN), foi implantado em maio
passes que dificultam a concretização deste proje- de 2005 o primeiro serviço residencial terapêutico,
to de desinstitucionalização. Dentre esses impas- de modo a despertar nosso interesse sobre o pro-
ses, encontram-se a redução da reforma a um pro- cesso de desinstitucionalização em curso neste con-
cesso de desospitalização sem a real desmontagem texto específico, tendo em vista que é uma primei-
do hospital psiquiátrico e o deslocamento comple- ra experiência com este tipo de serviço na região e
to da atenção em saúde mental para serviços subs- que, como tal, seria potencialmente livre de croni-
titutivos territoriais integrados à rede de saúde cidades e repleto de desafios em sua implantação e
mais ampla. Esta dificuldade gera, dentre outras funcionamento.
problemáticas, o fato de que os serviços que deve- Considerando as características e a concepção
riam ser substitutivos ao hospital psiquiátrico não de SRT tal como proposto pelo Ministério da Saú-
atendem à demanda em saúde mental da popula- de e as peculiaridades da experiência do SRT de Natal,
ção, colaborando para a existência de discursos esse trabalho visa a problematizar as práticas de
segundo os quais a reforma psiquiátrica tem pro- cuidado produzidas no seu cotidiano de modo a
movido desassistência e justificando a manuten- construir novas possibilidades de vida para usuári-
ção da estrutura psiquiátrica tradicional. Temos, os e técnicos e como estas práticas de cuidado, em
então, que a desinstitucionalização, como proces- alguma medida, podem também ser capturadas
so efetivo de desconstrução de saberes e práticas pela lógica manicomial, reproduzindo-a e impedin-
manicomiais, ainda se coloca como um projeto do a construção de vida para além do hospital, dos
cujas bases precisam ser mais bem desenvolvidas. muros institucionais e dos serviços de saúde em
Diante dessa realidade, procuramos lançar nos- geral. Colocamos, assim, em discussão, a clínica
sos questionamentos em relação ao mais recente que se pode desenvolver nesses serviços e algumas
dispositivo no processo de reforma psiquiátrica das problemáticas trazidas na literatura e outras
brasileira: o serviço residencial terapêutico (SRT). que emergem da própria experiência do SRT de Natal
O Ministério da Saúde2 indica que a criação de ser- que temos acompanhado, sabendo que esta mo-
viços residenciais terapêuticos é imprescindível para dalidade de serviço lança o desafio da desconstru-
a substituição dos leitos em hospitais psiquiátri- ção das formas habituais e hegemônicas de morar
cos por que estes serviços visam a oferecer condi- e de cuidar e clinicar, considerando as imprevisibili-
ções de vida para aqueles com histórico de longas dades que o encontro da loucura em sua estranhe-
internações psiquiátricas, moradores de rua e za e em suas formas institucionalizadas com a cida-
egressos de instituições penais e manicômios judi- de traz para moradores e cuidadores3.
ciários, ou seja, pessoas com vínculos familiares e
sociais comprometidos ou inexistentes. Para tan-
to, a Portaria nº 106/20002 estabelece a vinculação O processo de desinstitucionalização
de cada SRT a um serviço de referência, que se con- e a proposição dos serviços residenciais
figura como local de tratamento para os seus mo- terapêuticos
radores. Este serviço de referência pode ser um
CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), um servi- O processo de reforma psiquiátrica vem sendo
ço ambulatorial especializado em saúde mental ou construído no Brasil há vários anos e tem como
ainda uma equipe de saúde da família com apoio um dos seus pilares principais a desinstitucionali-
matricial em saúde mental. zação4, 5. No entanto, ao longo do processo histó-
Os SRTs “visam os processos de autonomia, de rico de construção da reforma, muitas são as con-
construção de direitos, de cidadania e de novas cepções e as práticas de desinstitucionalização, de
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modo que os projetos de reforma não são homo- no território existem forças vivas e não forças mor-
gêneos e o que efetivamente demarca uma real dis- tas [...] existem os homens que buscam trabalhar
tinção entre os projetos de reforma, [...] é a forma do sobre as inovações sociais [...]. Então, o saber do
lidar prático e teórico da desinstitucionalização, con- paciente, o saber do sujeito paciente, o saber dos fa-
ceito este que sofre metamorfose substancial e que miliares, esses saberes que existem no território de-
abre novas possibilidades para o campo da reforma4. vem ser incorporados em nossas práticas7.
Consideramos aqui a desinstitucionalização Com base nessas idéias de desinstitucionaliza-
como desconstrução de saberes e práticas psiquiá- ção como desconstrução e de território é que o
tricas, perspectiva que fundamenta o movimento modelo de atenção em saúde mental brasileiro foi
de reforma psiquiátrica e a política de saúde men- proposto no sentido de expandir e consolidar uma
tal brasileira, inspirada na proposta da psiquiatria rede de atenção extra-hospitalar, de modo a aten-
democrática italiana. Essa versão da desinstitucio- der as demandas territoriais específicas sem desas-
nalização é caracterizada pela crítica epistemológi- sistir e indo além da pura desospitalização. Esta
ca ao saber médico psiquiátrico, na qual o sentido de rede hoje é constituída de unidades básicas de saú-
cidadania ultrapassa o do valor universal para colo- de (UBS), centros de saúde, serviços de pronto-
car em questão o próprio conceito de doença mental atendimento, ambulatórios, centros de atenção
que determina limites aos direitos dos cidadãos6. psicossocial (CAPS) e serviços residenciais terapêu-
Nesse sentido, o movimento de reforma psi- ticos (SRT).
quiátrica brasileira busca a desconstrução da rea- Nesta rede de serviços, destacamos os SRT por
lidade manicomial - para além da “queda dos constituírem os mais recentes dispositivos terapêu-
muros manicomiais” em sentido físico - e a cons- ticos oferecidos na rede, sendo reconhecidos como
trução de novas realidades, segundo novas bases avanço no processo de reforma psiquiátrica brasi-
epistemológicas, políticas e sociais, operando trans- leira. No entanto, caracterizando-se como serviços
formações de toda uma cultura que sustenta a vi- que devem ser “prioritariamente” locais de mora-
olência, a discriminação e o aprisionamento da dia e não de tratamento, ficando este sob a respon-
loucura. Para tanto, é necessária a desmontagem sabilidade dos outros serviços substitutivos da rede,
da cultura e da estrutura psiquiátrica que separou os SRT produzem questionamentos ao modo de
“um objeto científico, a doença, da existência glo- funcionamento da mesma, assim como apontam
bal complexa e concreta dos pacientes e do corpo desafios nos processos de produção de saúde que
social”6. O primeiro passo nessa desmontagem se desenvolvem diretamente nele ou a partir dele.
seria renunciar à perseguição da cura, na relação Para pensar tais desafios, é preciso considerar
problema-solução, tomando como objeto a exis- que, apesar do modelo assistencial proposto pelas
tência-sofrimento. Assim, a ênfase não é mais co- políticas de saúde mental nacional, regionais e lo-
locada no processo de cura no sentido da vida pro- cais e dos avanços no sentido da desospitalização
dutiva, mas no projeto de “invenção da saúde” e de com a implantação dos serviços acima destacados
“reprodução social do paciente” através da utiliza- e a expansão da rede, quando analisamos o pro-
ção das formas e dos espaços coletivos de convi- cesso de reforma psiquiátrica brasileira como um
vência dispersa6. A saúde passa, então, a ser enten- todo, encontramos uma série de impasses que
dida não mais a partir de parâmetros de bem-es- obstaculizam o processo de desinstitucionalização
tar definidos desde princípios biomédicos e regu- como real desconstrução.
lados pelo Estado, mas como produção da vida Dentre os impasses, está a chamada “instituci-
possível e com sentido para os sujeitos em suas onalização do CAPS”8, problemática que pode ser
singularidades nos diferentes espaços de sociabili- estendida para qualquer tipo de serviço substituti-
dade e solidariedade em que circulam. vo da rede de saúde mental. Se por um lado esta
Assim sendo, a concepção de território é fun- institucionalidade é necessária à legitimidade des-
damental na construção do cenário estratégico da tes serviços na rede de saúde, por outro, se corre o
saúde mental. O território é uma “força viva de risco que ela se transforme em institucionalização
relações concretas e imaginárias que as pessoas crônica e cronificada, reproduzindo o manicômio
estabelecem entre si, com os objetos, com a cultu- do qual quer escapar. Há, por exemplo, a repetição
ra, com as relações que se dinamizam e se trans- de certas práticas tutelares e absorção de deman-
formam”1. O trabalho no território não seria um das que “deveriam” ser atendidas por outros dis-
trabalho de promoção de saúde mental, mas de positivos da rede. A cada dia aumenta o número
“invenção de saúde”. Isso porque o que habitual- de usuários que freqüentam o CAPS, forçando-
mente se chama de comunidade pode ser “um gran- nos a questionar como construir outros projetos
de deserto, pode ser o lugar da anomia”, enquanto de vida que não dependam dos serviços e como
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escapar das práticas tutelares sem desassistir, bem campos sociocultural e político-jurídico, que con-
como criar fluxos de encaminhamentos, como ferem complexidade a esse processo e nos quais
criar efetivamente uma rede de assistência. uma lógica manicomial parece se operar de modo
A questão da inexistência ou da fragilidade de efetivo e amplo.
uma efetiva “rede” de atenção em saúde e, em espe-
cial, em saúde mental, pode ser observada na de-
sorganização de várias portas de entrada e a falta Lógica manicomial e dispositivos
de portas de saída, de modo que a rede não se faz, biopolíticos no cuidado em saúde mental
pois características essenciais como a descentrali-
zação e a conectividade não se operam e o que ve- Diante da complexidade do processo de desinsti-
mos é “um conjunto de pontos ligados frágil e bu- tucionalização e das problemáticas em torno dele,
rocraticamente”8. Isto por que se temos uma orga- é preciso considerar a existência de uma lógica
nização de serviços que se configura com uma for- manicomial que atravessa as mais diferentes reali-
te referência central, sem um fluxo de encaminha- dades no campo da saúde mental, dizendo respei-
mento e que não é objeto de pensamento e trans- to ao caráter asilar, segregante e tutelar dos pro-
formação permanentes, o que se configura é uma cessos de subjetivação na contemporaneidade, para
rígida estrutura “em grade” e não uma rede em que além desse campo específico de interesse. Esta lógi-
tenha lugar a liberdade e a invenção da saúde. Tal ca manicomial parece estar presente nos diferentes
desarticulação da rede reflete-se de modo mais es- espaços e tempos, configurando diferentes formas
pecífico na relação do próprio SRT com o CAPS de de controle da vida que superam as formas disci-
referência, trazendo diversos problemas para a aten- plinares de aprisionamento dos corpos10.
ção aos usuários. Na realidade de Natal, por exem- Para realizar a análise da lógica manicomial em
plo, podemos observar dificuldades na construção diferentes campos, as contribuições de Michel Fou-
de espaços de comunicação entre os técnicos dos cault sobre o biopoder e aquelas de Gilles Deleuze e
serviços, o que impede as necessárias discussões Félix Guattari sobre a chamada sociedade de con-
acerca do modo como estes moradores devem ou trole e os processos de subjetivação na contempo-
não ser acompanhados pelo CAPS, bem como acer- raneidade capitalista colocam-se como interessan-
ca da regularidade e freqüência a tal serviço para tes e potentes na produção de reflexões.
participarem de suas atividades e receberem medi- A noção de biopoder no sentido do “poder so-
cação, sabendo-se que há uma equipe de cuidado- bre a vida” 11 diz respeito à gestão da vida incidindo
res no SRT. já não mais sobre os indivíduos (como no sistema
Assim, pela precariedade de espaços de discus- disciplinar), mas sobre a população que passa a ser
são entre os serviços, há a falta de clareza em rela- controlada, regulada em seus processos biológicos
ção às atribuições de cada serviço para com aque- (tais como a reprodução, a natalidade, a mortali-
les usuários, produzindo uma precária co-respon- dade e o nível de saúde). Assim, de acordo com as
sabilização pelo cuidado destes que, enquanto mo- idéias de Foucault10, enquanto a disciplina controla
radores do SRT, são considerados usuários “ex- cada indivíduo em seu corpo e em seus desejos nas
tras” pelo CAPS, contrariando a própria orienta- fábricas, prisões e manicômios, o biopoder, ou po-
ção oficial do Ministério da Saúde2 a respeito da der de regulação da vida, administra o homem en-
articulação desses serviços. quanto espécie viva nas cidades, na população, nas
Assim, observamos que a passagem de um regi- diversas instituições. Há, com a “derrubada dos
me tutelar para outra forma de cuidado que pro- muros” no sentido físico, uma diluição dos “mu-
ponha a produção de práticas de liberdade consti- ros” e o transbordamento da lógica de poder para
tui um processo cheio de atravessamentos, de modo outros setores da vida, fazendo-nos “prisioneiros a
que mesmo nos serviços substitutivos sobrevivem céu aberto”12. É nesse sentido que Deleuze sugere
condutas e posicionamentos que revelam não mais que os poderes sobre a vida encontram-se diluídos
uma estrutura manicomial, mas idéias manicomi- hoje na chamada “sociedade de controle”, através
ais que ainda circulam e se fazem presentes nos ser- do cruzamento entre a norma da disciplina e a nor-
viços de saúde mental e se atualizam “em práticas/ ma da regulamentação (operada pelo biopoder), e
discursos de exacerbada medicalização, de interpre- em relação aos quais devemos responder com as
tações violentas, de posturas rígidas e despóticas”9. “potências de criação da vida”13.
Por isso, ao analisarmos este processo de de- Na “sociedade de controle”13, controles implí-
sinstitucionalização da loucura no âmbito dos SRT, citos da vida nos atravessam de modo insistente e
não se pode pensar apenas no campo técnico-as- insuspeito. E eles dizem respeito, sobretudo, à re-
sistencial, mas também nas forças em jogo nos lação humana com o tempo e o espaço de existên-
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cia. Constatamos diariamente a nossa insuficiên- da instituição8 que não raro se justifica, no discur-
cia para acompanhar a sua velocidade, somos cha- so profissional, pela “dependência” aos medica-
mados a correr atrás de um futuro que parece es- mentos e ao acompanhamento médico.
corregar. E, nessa sensação de insuficiência, somos Em relação à delimitação do espaço, observa-
tentados a utilizar diferentes formas de controle mos que os usuários de serviços extra-hospitala-
do tempo, seja de ordem tecnológica e material res, sobretudo aqueles de regime semi-intensivo,
(máquinas do tempo), seja de ordem relacional percebem suas casas como “prisões de fim de se-
(rotinas, horas marcadas, controle da duração de mana”, que os protegem das ameaças da vida nas
quase todos os acontecimentos a que se está sujei- cidades e que a “vida livre” ou a vida possível parece
to diariamente). ser encontrada no contexto do serviço, de modo
No mesmo sentido, em relação aos espaços de que apenas dentro dos muros institucionais é pos-
existência, a lógica da globalização capitalista atual sível existir. Assim, a vida que é produzida de algu-
leva-nos a transcender territórios e a estar conec- ma maneira nos serviços parece não ter extensão
tados com a diversidade e a multiplicidade de cul- para a vida “lá fora”. Diante disso, indagamos: como
turas e lugares, de modo que podemos ter acesso a fazer acontecer esta extensão, ou melhor, como fa-
diferentes territórios identitários sem que esteja- zer acontecer o “livre trânsito” dessas pessoas na
mos fixos em nenhum deles. Porém, o que é am- vida comum das cidades, nos diferentes espaços e
plamente ofertado pelo mercado global capitalista tempos de vida? Ou antes, que “linhas” são essas
são formas de fixar identidades, através de estraté- que as amarram aos serviços e as impedem de cir-
gias de mídia, de suportes tecnológicos, de aprisio- cular livremente pelas cidades no trânsito para casa?
namentos teóricos e de pensamento. Dentre tais A existência dessa forma de dependência mar-
mecanismos de aprisionamento, destacamos aqui cada pela temporalidade e pela espacialidade pare-
as fixações identitárias na figura do doente mental ce evidente também nos usuários que são mora-
como signo de periculosidade, que sustenta a lógi- dores de SRT quando, tal como ocorre em Natal,
ca manicomial em nossa cultura. as atividades que exigem circulação pela cidade são
Assim, os mecanismos de controle e poder não restritas e dependem da disponibilidade dos técni-
estão mais evidentes ou claramente delimitados cos do SRT em acompanhá-los ou quando é esta-
como nas instituições totais psiquiátricas tradicio- belecida uma regularidade de participação nas ati-
nais estudadas por Goffman14, mas estão presen- vidades do CAPS do território e de busca pela me-
tes nos controles implícitos de espaço e tempo a dicação que os obriga a freqüentar este serviço sem
que todos estão sujeitos nos processos de fabrica- que isso esteja claramente atrelado aos projetos
ção de subjetividades na contemporaneidade15, 16 e terapêuticos, o que certamente resultaria em dife-
que se colocam de modo peculiar na realidade da rentes arranjos em função das necessidades de saú-
atenção à saúde mental brasileira. de singulares a cada um.
Situando tal lógica na atenção em saúde men- Esta desarticulação em relação aos projetos te-
tal, observamos que, seja na rotina diária de ativi- rapêuticos de cada morador fica evidente, pela re-
dades nos serviços substitutivos, seja no tempo de cusa ou insatisfação de alguns moradores em fre-
institucionalização no hospital psiquiátrico ou nes- qüentar o CAPS, por se sentirem “presos” lá den-
tes serviços ou no tempo “fora” dos serviços, a ex- tro ou por não verem sentido no que fazem no
periência e a relação que se estabelece com o tempo serviço. Além disso, tal recusa parece colocar a ne-
se colocam de modo que há uma espécie de “con- cessidade de se pensar novas práticas de cuidado
trole da vida pelo tempo” que liga de modo impor- destinadas aos usuários do CAPS de modo geral.
tante os usuários aos serviços e que os separa da Práticas estas que devem ser discutidas junto aos
vida “lá fora”, da vida na cidade para além das “li- cuidadores do SRT ou aos familiares dos usuários
nhas de ônibus” (rotineiramente utilizadas pelos em geral no sentido de, por exemplo, se desenvol-
usuários e que constituem uma das poucas formas verem “fora” dos muros físicos do CAPS, na circu-
de contato com a cidade para além da casa e do lação pela cidade, o que poderia permitir a cons-
serviço). trução de projetos terapêuticos que efetivamente
Dessa forma, é pertinente questionarmos como atendessem as necessidades de saúde de cada usu-
certos limites de tempo (permanência no serviço ário vinculadas aos seus “projetos de felicidade”17.
durante a semana, freqüência ao serviço, período Diante dessa constatação, parece necessário que
destinado às atividades desenvolvidas), que são todos os envolvidos estejam atentos a estas for-
estabelecidos pelos serviços através do exercício dos mas de captura biopolítica que sutilmente se opera
saberes e poderes que nele circulam, funcionam de no cuidado a esses usuários, de modo a fazer a
modo a deixá-los numa espécie de “dependência” clínica se movimentar. Para tanto, não seria neces-
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sária a criação de parcerias e espaços de discussão processo de subjetivação, que perpassa o pensa-
efetivos sobre as peculiaridades do trabalho e os mento de Gilles Deleuze e Félix Guattari15, 16. Ou
projetos terapêuticos de cada usuário? Em que seja, interessa-nos a produção ou fabricação de
medida esses projetos estão vinculados aos seus subjetividade no contexto capitalista da atualidade,
“projetos de felicidade”17? A vinculação do SRT com com as forças de ordem política, social, ética e esté-
o CAPS implica um trabalho atento a questões tica que caracterizam o momento contemporâneo.
como estas e que respeite as necessidades de saúde Colocando a subjetividade sob o signo da ex-
singulares a cada morador, o que exige a criação de terioridade, Guattari19 propõe a idéia de cidade
alternativas de cuidado que escapam ao modelo subjetiva. Nesta proposição, a cidade e a subjetivi-
terapêutico institucionalizado de CAPS. dade seriam uma mesma coisa, desde que ambas
Quando consideramos esta realidade específi- fossem remetidas à dimensão da exterioridade e
ca do SRT, que é ao mesmo tempo uma casa na virtualidade que lhes é comum, naquilo que am-
qual os moradores, como em qualquer casa, de- bas comportam de meios a serem explorados, tra-
vem poder circular a qualquer tempo por diferen- jetos de vida a serem percorridos, devires a serem
tes espaços sociais e públicos, podemos pensar que inventados. A cidade subjetiva representaria essa
esses mecanismos de controle e as estratégias de processualidade da produção subjetiva no sentido
resistência à lógica manicomial vão incidir sobre o da invenção que se opera na coletividade e não da
cotidiano dos moradores e cuidadores, nas rela- serialização, homogeneização e reprodução da vida.
ções que estes estabelecem entre si, nos mais varia- Nesse sentido, Baptista18 propõe que pensemos
dos âmbitos da vida que estão construindo juntos na cidade como espaço de subjetivação em que a
e também sobre as práticas de cuidado em saúde heterogeneidade, o imprevisível, as impurezas, as
que ali estão se realizando. É nesse sentido que os estranhezas colocam desafios e exigem invenções
SRT têm se revelado como problematizadores da cotidianas aos modos de morar e habitar, cuja
atenção em saúde mental e, como tal, têm mobili- porosidade os distancia de um ato humano fixado
zado uma série de questionamentos relativos à clí- e de um modo particular de operar a existência
nica e aos modos de morar e habitar, tais como: que define a subjetividade como atributo indivi-
que clínica é possível neste contexto residencial sem dual. Tal porosidade permite a entrada dos para-
cair nas práticas tutelares? Que acolhimento e que doxos e contradições do espaço público, ameaçan-
formas de cuidado se fazem nesse novo modelo do, assim, certas modalidades de gerência da saú-
sem aprisionar a vida? Como se fazem essas for- de e do sofrimento que caracterizam a lógica ma-
mas de cuidado no transitar cotidiano entre casa e nicomial e exigindo a criação de novas formas de
cidade e tudo que a vida comum comporta? cuidar e de morar, não mais calcadas em modelos
Temos, assim, uma série de questões que exi- de vigilância do íntimo e em regimes de tutela legi-
gem análise sobre a cidade, como espaço em que o timados pela soberania dos saberes, ou em modos
cotidiano se faz e em que os diversos processos de de morar restritos à casa como espaço íntimo im-
subjetivação se produzem; sobre os modos de mo- permeável que bloqueia os sentidos da diversidade
rar como formas de lidar com o espaço e o tempo e inibe as construções e narrativas coletivas.
de vida cotidiana que, tradicionalmente, são natu- Considerando esta idéia da cidade como espa-
ralizados em modelos privatizados, impermeáveis ço de subjetivação, pensamos, então, no encontro
e higiênicos de habitar e sobre a clínica como um entre loucos e cidade, no qual estas experimenta-
conjunto de equipamentos teóricos e práticos de ções podem se fazer. Segundo Amarante4, baseado
cuidado e de produção de saúde, que tradicional e nas reflexões de Basaglia, o louco, expropriado de
modernamente têm se operado e se naturalizado seus direitos, de sua família, de sua comunidade de
em modelos também privatizados, impermeáveis e origem e do convívio com a sociedade, deve ter na
higiênicos, sem espaço para a criatividade na cons- cidade o espaço real “dos processos de validação
trução de novas práticas e modelos teóricos18. social dos sujeitos”. A proposta basagliana defende
então a necessidade do encontro entre a loucura e
a cidade, entendendo esta como “território”1. E,
Cidade e subjetivação: (des)construção nesta proposta, tal encontro deve ser orientado
de modos de morar e clinicar pela desinstitucionalização e atravessado pelas prá-
ticas de cuidado promovidas pelos serviços substi-
Na análise das questões que envolvem a cidade, os tutivos, mas também por outras estratégias, práti-
modos de morar e clinicar que nossa problemática cas e redes de cuidado e equipamentos sociais que
exige, consideramos a subjetividade no sentido do possam vir a ser desenvolvidas na cidade, nos es-
seu processo de produção, mais precisamente como paços micropolíticos de vida, como extensão ou
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não daquelas práticas dos serviços. Aqui lembra- Cuidado e invenção de saúde
mos o acompanhamento terapêutico como estra- no contexto dos SRT: contribuições à clínica
tégia que tem se revelado interessante no processo
de desinstitucionalização construído a partir de Considerando a realidade dos SRT, Baptista3, 18 in-
dispositivos residenciais por basear a terapêutica daga como as experiências que se processam nes-
na potência deste encontro da loucura com a cida- tes dispositivos podem interpelar, fazer deriva, tra-
de, possibilitando uma “clínica em movimento”20. zer reflexões para as propostas clínicas já existen-
Atentando especificamente para os SRT, as prá- tes. Ou seja, os SRT constituem um convite a pen-
ticas de cuidado podem ser pensadas como “práti- sar a clínica como política e vice-versa, fazendo
cas cotidianas”21 e, por conseguinte, é preciso con- emergir a potencialidade crítica da clínica em saú-
siderar também o que se poderia chamar de “risco de mental.
de captura” manicomial, no sentido já exposto, a Tradicionalmente, nos campos da formação e
partir dos modos de morar e cuidar que são desen- da prática clínica em saúde mental, tem-se a repro-
volvidos nesta casa. Enquanto um dispositivo que dução acrítica das dicotomias sujeito/objeto, teo-
se pretende antimanicomial por tentar promover a ria/prática, interior/exterior, consciente/inconscien-
construção da vida de pessoas que foram cronica- te, clínica/política, entre outras. E esses campos pa-
mente institucionalizadas, os SRT e especificamente recem fundados na crença em uma postura neutra,
os modos de morar e as práticas de cuidado que que busca a correção e conversão homogeneizante
são construídos, neles e a partir deles, no encontro do que é desviante, do que está fora da norma,
com a cidade, podem operar ou não na contramão através de operações de estabilização e estancamento
da lógica manicomial. Daí algumas questões emer- do sofrimento e do estranho que move o desejo e a
gem e merecem atenção no cotidiano de cuidado criação da vida. Têm-se, assim, modelos de repro-
desta realidade: o que este encontro dos loucos com dução do mesmo no que diz respeito à produção
a cidade pode comportar de virtualidade, de possi- subjetiva que se faz na clínica, modelos que se colo-
bilidade de novos traçados de vida, sabendo que o cam “como instrumentos biopolíticos, por encer-
manicômio se estende à cidade em suas linhas tam- rarem em si o poder de separar a vida do vivo, o
bém virtuais? Como eles vão atravessar, viver na desejo do ser. Subordinação do vir a ser ao ímpeto
cidade e circular no cotidiano urbano com os ma- da prescrição de modos de existir no mundo”22.
nicômios invisíveis existentes? Que visibilidade será No que se refere aos SRT, a clínica tem sido
possível construir para arrancar-lhes das invisibili- baseada na estratégia do acompanhamento tera-
dades manicomiais? Será o movimento desses mo- pêutico que se fundamenta na “clínica das psico-
radores um “pseudo-movimento”12 que os fará ses” segundo referenciais psicanalíticos20. Assim,
permanecer num mesmo lugar, num nomadismo apesar de constituir uma estratégia potente, o acom-
apenas físico e não subjetivo? O desafio da clínica panhamento terapêutico, assim referenciado, cor-
que se opera nestes serviços parece ser o de sondar re o risco de fazer a clínica prescindir das experi-
que tipo de meio uma cidade ainda pode vir a ser, que mentações quando coloca como foco de interven-
afetos ela favorece ou bloqueia, que trajetos ela pro- ção uma “estrutura psíquica” a priori conhecida
duz ou captura, que devires ela libera ou sufoca [...] que responde como doença diante da realidade
que potências fremem nela e à espera de quais novos social com a qual precisa restabelecer o vínculo
agenciamentos12. simbólico a todo custo. O sucesso terapêutico con-
Desta forma, os SRT em curso no país enfren- siste, então, numa “solução de compromisso” tra-
tam o peculiar desafio de pensar se é possível uma duzida como uma espécie de “acordo social” do
“clínica do morar”18 que traz em seu lastro questi- desejo. Pode-se perder, assim, a potencialidade que
onamentos aos tradicionais equipamentos teóri- o encontro da loucura com a vida comum na cida-
cos psi e aos novos espaços inspirados na desinsti- de tem a oferecer no sentido da desconstrução das
tucionalização, que devem partir da desnaturali- formas de se viver em sociedade e da abertura ao
zação do morar e da própria clínica e da abertura novo que nenhum acordo simbólico pode dar con-
às experimentações que estes novos dispositivos ta, pois o desejo transborda, não se “estrutura”,
da luta antimanicomial exigem e convidam na ta- não faz acordos, simplesmente deseja13.
refa de produzir saúde. Neste sentido, a prática clínica pode ser pensa-
da, em suas potencialidades criativas, como algo
que se faz para além de settings predefinidos, técni-
cas pré-fabricadas, parâmetros de normalidades e
subjetivações preconfiguradas. O encontro dos lou-
cos com a cidade nos convida a pensar a clínica a
202
Amorim,AKMA, Dimenstein M

partir do desejo de mundo que dissipa a dicotomia mais coerente com a proposta dos SRT que essa?
dentro-fora e permite a inserção de ambos num No encontro com a cidade, é preciso que o acolhi-
espaço compartilhado, possibilitando a produção mento-diálogo se coloque como prática de saúde,
de singularidades. Assim, a clínica constituiria uma de invenção de vida, de subjetivação e sociabilida-
ferramenta na invenção da saúde que se faz como de para os moradores, possibilitando a constru-
cartografia dos modos de existir, ou seja, como o ção dessas “zonas de comunidade”, desse “aumen-
percorrer/acompanhar os espaços de ruptura e pro- to da potência da vida” que é a própria liberdade.
pagação do novo, o “aguçar as sensações, abrir o
corpo, para torná-lo passagem de vozes/imagens
de mundo ainda não conhecido e experimentado”22. Considerações finais
E para pensar essa “produção de saúde” no
contexto dos SRT, parece-nos pertinente o convite Diante dessas considerações, temos que o SRT co-
de Teixeira23 a refletir sobre as conseqüências mi- loca-se fundamentalmente como um dispositivo
cropolíticas das práticas de cuidado, consideran- problematizador da atenção em saúde mental, exi-
do a possibilidade de operarem como autênticas gindo a constante reflexão sobre as práticas e sa-
“técnicas de reconstituição do laço social”, sendo, beres em jogo no processo de desinstitucionaliza-
portanto, amplamente coletivas. Ou seja, pensar ção em construção, sob pena de cairmos nas ar-
em “produção de saúde” é pensar nas práticas de madilhas da lógica manicomial, da “prisão a céu
cuidado que são coletivamente desenvolvidas em aberto”11.
“redes de trabalho social” a partir da experimenta- Desta forma, o trabalho no SRT exige, sobre-
ção e que possibilitam a vida e a saúde de indivídu- tudo, a construção efetiva de redes de cuidado en-
os e populações. tre os serviços e entre diferentes equipamentos so-
Assim, entendemos que há uma indissociabili- ciais, envolvendo a cidade com suas diferentes e
dade entre produção de saúde e de subjetividades, potentes estratégias de cuidado. Isto implica a
entre atenção, gestão e modos de existência movi- ampliação, a desnaturalização e o movimento cons-
dos por forças que lutam contra a conservação e a tante do próprio trabalho em saúde, do que se
reprodução das formas instituídas de viver e cui- entende por “clínica” a ser desenvolvida nos servi-
dar. Ou seja, há que se pensar a saúde “como expe- ços, especialmente nos CAPS.
riência de criação de si e de modos de viver [...], Temos, então, que os desafios colocados pelos
isto é, novos sujeitos implicados em novas práti- SRT têm origem e dirigem-se a diferentes espaços e
cas de saúde”24. atores envolvidos no cuidado de seus moradores,
Uma dessas novas práticas seria a do acolhi- assim como exigem a construção efetiva de redes de
mento que Teixeira23 propõe que seja pensada como cuidado e sociabilidade no trânsito dos moradores
“acolhimento-diálogo”, como uma “técnica de con- pela cidade. No entanto, isso parece depender de
versa” que define a dimensão pragmática dos en- transformações e iniciativas em diferentes níveis.
contros, seus domínios de ação (emoções e afetos) Num nível macropolítico, está a necessidade de
e de significação, evidenciando “redes de trabalho políticas públicas que exijam e possibilitem aos ser-
afetivo”. Tais “redes de trabalho afetivo” seriam re- viços a articulação com a vida “lá fora”, na constru-
des de produção de afeto, o que é “a própria pro- ção de redes de conexão e diálogo nos diferentes
dução de redes sociais, de comunidades, de formas espaços onde cada usuário circula e constrói sua
de vida (biopoder), de produção de subjetividades vida de modo a garantir a (des) construção perma-
(individuais e coletivas) e de sociabilidade”. nente das práticas de cuidado de acordo com as
Interessante destacar que, nesse sentido, na necessidades específicas de saúde de cada usuário.
prática em “redes de trabalho afetivo”, há a neces- Num nível micropolítico, estaria a articulação
sidade da construção da confiança naquilo que, entre os próprios técnicos, moradores e comuni-
inspirado em Espinosa, Teixeira23 chama de “zona dade mais ampla, na produção/invenção do cuida-
de comunidade”, em que se coloca o desafio da do destes moradores. Aqui estaria talvez a própria
alteridade, de aceitação do outro como legítimo condição de se pensar que este tipo de serviço tra-
outro e em que experimentamos novas intensida- balha para não ser mais necessário ao morador
des, às quais fomos conduzidos pelos afetos aumen- que, como uma pessoa qualquer na cidade, pode-
tativos que anunciam, por sua vez, outros modos de ria buscar um “serviço de saúde” quando necessi-
existência, em que nos tornamos a causa última de tasse. E, para isso, devem ir se desenvolvendo redes
nossas paixões, em que entramos plenamente na posse sociais de apoio e cuidado, construídas no cotidia-
de nossa potência. Para Espinosa, a liberdade. Que no da cidade, com vizinhos, amigos ex-internos,
outra forma de conceber as práticas de saúde seria namorados, técnicos que viraram amigos acolhe-
203

Ciência & Saúde Coletiva, 14(1):195-204, 2009


dores, comerciantes, motoristas de ônibus, entre de cumplicidade com todo e qualquer movimento
outros, multiplicando o cuidado na vida de todos e de entrega e de diferenciação.
cada um. O trabalho em saúde seria efetivado, assim,
Um desafio seria, então, o de viabilizar que a como prática intercessora, entendendo com Deleu-
circulação desses moradores na vida cotidiana, na ze13 intercessor como algo ou alguém que funciona
cidade múltipla, diversa e imprevisível, comporte a intercedendo a favor do estranho que nos habita,
possibilidade de encontros “aumentativos de po- invocando-o e acolhendo-o, não como aquilo que
tência”, produzindo liberdade e vida. E que essa há de monstruoso e perigoso, mas como aquilo que
viabilidade seja tomada como algo que esponta- há de mais potente em cada um. Assim concebido, o
neamente vai se fazendo também para além e trabalho em saúde exige esta mudança em nosso modo
aquém das ações dos profissionais de saúde, desde de subjetivação, [...] esta abertura para o estranho-
que as intervenções por eles realizadas nesse con- em-nós, que é mais do que o simples respeito democrá-
texto sejam constantemente objeto de reflexão, não tico pelo outro em seus direitos e deveres, pois é um
se reproduzindo em “pequenos manicômios”. desejo de se deixar afetar pelo outro, é um amor pela
Assim, outro desafio que se coloca é a descons- alteridade, pelo devir e a incerteza criadora25.
trução e a desnaturalização das práticas profissio- Desejamos assim que, na realidade de trabalho
nais a partir do acolhimento-diálogo no contexto nesses serviços residenciais, encontros com o es-
dos SRT sem incidir na clínica tradicional, na escu- tranho se façam, nos espaços porosos entre a casa
ta surda do modelo psicoterápico privado e indivi- e a cidade, os loucos e a casa, os loucos e a rua, os
dual. Para tanto, é preciso fazer-se “zona de comu- loucos e a cidade, os profissionais e os loucos, os
nidade”23 que seria, como nos sugere Rolnik25, um profissionais e a rua, os profissionais e a casa, en-
“sofrer junto com” feito ao mesmo tempo de indi- tre os loucos profissionais e a cidade, enfim, múl-
ferença a tudo o que se aproxima da homogenei- tiplos encontros que vão constituindo em redes de
zação (por exemplo, viver a queda como vítima) e trabalho afetivo produtoras de vida e liberdade.

Colaboradores

AK Amorim trabalhou na concepção, redação do


texto e pesquisa que dá subsídios ao artigo e M
Dimenstein orientou a pesquisa teórica e empírica
que fundamenta o artigo e trabalhou na redação e
revisão final do texto.
204
Amorim,AKMA, Dimenstein M

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