3 Idem, ibidem.
1
Nas aulas de seu Curso da orientação lacaniana dedicadas à introdução da
leitura ao Seminário da angústia4 Miller diz que vai utilizar um fio de Ariadne
para se orientar nesse seminário, cuja finalidade seria “ludibriar o prestígio e
os engodos multiplicados por Lacan que não diz tudo que sabe”5. Trata-se de
dizer que a função do objeto pequeno a prevalece sobre o que é apresentado
de sua substância, de sua natureza, de sua identidade. Este instrumento foi
inspirado a ele pelo esquematismo utilizado por Lacan em “A instância da
letra”, e que tinha como objetivo opor metáfora e metonímia. Miller afirma que
Lacan desvia, modifica, os símbolos de adição e subtração, (+) (-), acentuando
que é um método lacaniano tomar as operações matemáticas e nelas introduzir
mudanças para fazê-las funcionar no discurso analítico.
i(a) i(-) a
a i(+) a
4
MILLER, J.- A. Curso de Orientação Lacaniana 2003-04, Un éffort de poésie, inédito. Vou me
basear na “Introdução à leitura do Seminário X, A angústia, de Jacques Lacan”. Em: Opção
Lacaniana, n° 43, maio de 2005.
2
ocultação. Ou seja, neste jogo o que é mostrado está aí para dissimular outra
dimensão.
Miller sublinha que esse esquema é uma aplicação da matriz que ele nos
forneceu. Para ele, tudo que Lacan desenvolve sobre a oposição entre o acting-
out e a passagem ao ato, assim como sobre a oposição entre luto e
melancolia, corresponde a essa lógica. Neste ponto, um conceito é essencial: o
de cena. De um lado cena imaginária, mas também cena do Outro, porque em
relação ao real, o simbólico e o imaginário estão do mesmo lado.
3
Ocorre assim a Miller opor ou desunir a função do ato e a do inconsciente,
havendo na passagem ao ato um não querer saber mais nada. Miller resume
essa formulação deste modo: sai-se da cena por uma certeza encontrada
numa identificação em curto circuito com o objeto a, lembrando que Lacan
chama essa identificação de identificação absoluta com o objeto a fora de
cena.
Miller situa então, de forma bem cortante, a oposição que ele formula entre o
real e a verdade. Qual é a única interpretação do acting-out? “Você diz a
verdade, mas não toca na questão”. Quando se quer passar o real para o
significante, o que encontramos? Apenas a mentira. Isso só pode ser feito
através de uma mentira, de uma mise-en-scène. Há então toda uma disjunção
realizada por Lacan no seu ensino entre o verdadeiro e o real, que repercute
na disjunção entre o desejo e o gozo.
4
Miller vê, assim, surgir nesse seminário a crítica do desejo de Freud como
desejo de verdade: “Freud recusa ver na verdade, que é a sua paixão, a
estrutura de ficção como sendo sua origem”. Miller, numa nota, cita Lacan, que
se referia a seus ouvintes: “Pois aqueles que nos vem ouvir, não são os que
estão fazendo primeira comunhão”. Trata-se então para Miller de diferenciar a
paixão freudiana pela verdade e a posição de Lacan. Freud chegou a acreditar
na mitologia apesar de si mesmo. O Freud que Lacan nos apresenta não pensa
que a verdade possa ser separada da mentira e por isso atormenta sua noiva
por não lhe ter dito tudo. Lacan considera que é também por isso que a
feminilidade ficou opaca para Freud, na medida em que esta se embaraça
menos com a verdade e mantém uma relação mais direta com o gozo.
Lacan acentua ainda que o acting-out é mostração, mas não velada em si. Está
velada para nós. O que é mostrado é o resto, o que cai. Entre o sujeito barrado
na sua estrutura de ficção e o outro, o que surge é o resto, a libra de carne.
Retomando a discussão sobre o caso de Ernst Kris na “Direção do tratamento”,
Lacan nos mostra que Kris queria conduzir seu paciente pelas vias da verdade,
mostrando-lhe de forma irrefutável que não era plagiário. Kris lhe diz que lera
seu texto: ele era original e os outros é que o copiavam. O sujeito não pode
contestá-lo, mas, diz Lacan, ele se lixa para interpretação de Kris. Ao sair da
sessão, vai comer miolos frescos. Assim, acentua Lacan, ele ensina a
reconhecer um acting-out, ou o que ele designa como pequeno a ou a libra de
carne.
5
acentua Lacan, não há necessidade de análise para que haja transferência.
Assim, a transferência sem análise é o acting-out.