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Zimerman, D. E. (2005). Psicanálise em perguntas e respostas: Verdades, mitos e tabus. Porto Alegre: Artmed.
1
Momentos de contato profundo do analista com seu pensamento onírico de vigília (Ferro, 2007/2011).
2
O termo agregados faz referência às figuras do texto manifestado pelo paciente e às imagens que emergem
no campo analítico provenientes tanto do analisando quanto do analista (que podem ser um desenho, um
personagem de uma brincadeira, uma música, uma fala, um sentimento, uma lembrança de um filme, etc.).
O termo funcionais diz respeito à compreensão de que tudo o que é trazido à sessão tem relação com o
funcionamento mental do par analítico e às necessidades comunicativas do momento. Os agregados
funcionais auxiliariam a narrar as emoções vividas durante a sessão (Ferro, 1995).
19
CUIDADOS NO ESTABELECIMENTO DO
DIAGNÓSTICO PSICOLÓGICO NA INFÂNCIA E
ADOLESCÊNCIA
Jefferson Silva Krug
Flávia Wagner
O
estudo do desenvolvimento infantil e o reconhecimento de processos psicopatológicos na infância
são recentes, estando relacionados ao próprio entendimento contemporâneo da infância e do papel
da criança na sociedade. Dificuldades em relação a questões comportamentais na infância não eram
consideradas de ordem médica, mas de ordem moral, enquanto condições relacionadas a dificuldades
cognitivas resultavam em marginalização. A psicopatologia na infância começa a ser reconhecida no século
XIX, tendo seu maior progresso no século XX, período em que a testagem da inteligência, a psicanálise
infantil e as teorias de Piaget e Vygotsky se desenvolveram com mais força (Rey et al., 2015).
Apesar de recente, a concepção atual da infância e adolescência como períodos cruciais para o
desenvolvimento do indivíduo faz com que haja um investimento cada vez maior em prevenção e
tratamento de condições psicológicas e/ou psiquiátricas nessa faixa etária. Por isso, com grande frequência
os profissionais da saúde são procurados para analisar e orientar a respeito de questões comportamentais,
emocionais e cognitivas. O psicólogo, em geral, a partir de sua linha teórica, procura formular hipóteses
diagnósticas que possam auxiliar no estabelecimento do tratamento, na identificação das dificuldades que
necessitam de encaminhamento para outros profissionais e na orientação dos familiares e da escola. No
entanto, a avaliação diagnóstica de crianças e adolescentes requer cuidados específicos, que considerem,
além dos aspectos sintomatológicos, os aspectos desenvolvimentais, familiares e sociais. Assim, o objetivo
deste capítulo é apresentar uma discussão a respeito desses cuidados no processo avaliativo e no
estabelecimento do diagnóstico realizado pelo psicólogo.
O CUIDADO COM AS IMPRESSÕES INICIAIS
Antes de discutir os elementos que podem fazer parte de um diagnóstico psicológico, é necessário esclarecer
algumas noções sobre nossa compreensão de avaliação diagnóstica de crianças e adolescentes. Desde Freud,
sabese que a questão diagnóstica é composta por uma ambiguidade que se caracteriza, por um lado, pela
utilidade do estabelecimento precoce de um diagnóstico para determinar o tratamento e, por outro, pela
certeza de que a pertinência do diagnóstico só é confirmada ao longo do tratamento (Dor, 1987/1991). As
primeiras entrevistas configuramse como uma aproximação inicial que produz uma orientação diagnóstica
que se confirmará ou se modificará no transcorrer do tratamento (Blinder, Knobel, & Siquier, 2011).
Desde os primeiros textos de sua obra, Freud referiuse ao fato de que o conflito latente nunca é claro
no início de um acompanhamento, o que poderia fazer o profissional incorrer em erro diagnóstico se não
considerasse esse fato. Os motivos dessa condição residem nos efeitos das defesas, além da dissimulação
consciente. Dessa forma, o diagnóstico não pode ser construído apenas a partir de fatos reais, uma vez que
eles decorrem de histórias “contadas”, portanto, subjetivas, que constituem os passos iniciais da elaboração
do diagnóstico (Lowenkron & Frankenthal, 2001).
No caso do diagnóstico de crianças, um problema apresentase de antemão: a organização do aparelho
psíquico e das defesas está em formação, não sendo possível equivaler o sintoma à doença. Essa realidade
justifica ainda mais a realização de avaliações diagnósticas iniciais, em que se busca discernir as
configurações do campo sobre o qual o profissional é chamado a intervir (Lowenkron & Frankenthal, 2001).
O CUIDADO COM O DIAGNÓSTICO PSICOPATOLÓGICO NA INFÂNCIA
Quando falamos em psicopatologia, temos de definir, em primeiro lugar, o que é considerado “normal”.
Existem múltiplos conceitos de normalidade e eles podem variar de acordo com a perspectiva teórica do
clínico. B. J. Sadock, V. A. Sadock e Levin (2007) destacam quatro perspecti vas: normalidade como saúde,
caracterizada pela ausência de psicopatologia; normalidade como utopia, que concebe a normalidade a partir
de um funcionamento ótimo do indivíduo; normalidade como média, que considera os comportamentos
como fenômenos distribuídos de acordo com uma curva normal (curva de Gauss); e normalidade como
processo, em que múltiplos siste mas e processos interagem estabelecendo mudanças ao longo do tempo, as
quais são essenciais para o entendimento do que é normal. A definição da Organização Mundial da Saúde,
que propõe a Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID10 (Organização Mundial
da Saúde [OMS], 1993), entende normalidade como um estado de bemestar físico, mental e social. A
quinta edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM5) (American Psychiatric
Association [APA], 2014, p. 20) define transtorno mental como uma “. . . síndrome caracterizada por
perturbação clinicamente significativa na cognição, na regulação emocional ou no comportamento de um
indivíduo que reflete uma disfunção nos processos psicológicos, biológicos ou de desenvolvimento
subjacentes ao funcionamento mental”. Obviamente, cada uma dessas definições apresenta vantagens e
desvantagens, e a operacionalização desses conceitos na prática clínica nem sempre é fácil.
Na infância e na adolescência, a definição de normalidade é ainda mais complexa. Em geral, as
dificuldades são trazidas pelos pais, a partir de sua própria percepção ou de uma solicitação da escola. Em
alguns casos, a criança ou o adolescente em questão pode não perceber ou não concordar que algo não esteja
bem. Em geral, as dificuldades que resultam na busca por atendimento estão relacionadas a quatro áreas
principais: sintomas emocionais, problemas comportamentais, atrasos no desenvolvimento e dificuldades no
relacionamento (Goodman & Scott, 2012). Determinar se os sintomas relatados pelos pais e os dados
coletados durante a avaliação psicodiagnóstica podem ser realmente considerados psicopatológicos requer
conhecimento aprofundado do desenvolvimento considerado típico (Sadock et al., 2007), sem excluir a
própria vivência subjetiva da criança ou do adolescente de seu(s) sintoma(s).
Podemos pensar, por exemplo, em uma criança com dificuldade para ficar longe da mãe ao ingressar
em uma escola: esse comportamento é, até certo ponto, esperado quando se trata de crianças pequenas. O
contrário, quando uma criança se desvincula com muita facilidade da mãe ou dos cuidadores na primeira
infância, isso pode sugerir a presença de alguma psicopatologia. Além disso, outra questão que auxilia nessa
análise é o impacto que os sintomas estão causando na vida da criança ou do adolescente. Isso pode ser
avaliado por meio do prejuízo em diferentes áreas do funcionamento, como, por exemplo, no ambiente
familiar, escolar ou ocupacional e social. A presença de sofrimento relatado pelo paciente também é um
indicador, bem como, em menor grau, o relato de terceiros a respeito das dificuldades causadas por seu
comportamento (Goodman & Scott, 2012).
O CUIDADO COM OS ELEMENTOS FAMILIARES E SOCIAIS
O primeiro aspecto a ser considerado no diagnóstico na infância e adolescência exige uma reflexão do
avaliador sobre a história, a rotina e as características da família e seus integrantes, bem como sobre a
dinâmica do funcionamento familiar. A literatura (Aberastury, 1962/1986; Castro, Capezatto, & Saraiva,
2009) aponta que a avaliação é o período em que se faz necessário compreender dados globais do paciente,
incluindo hábitos familiares, rotinas, valores, entre outros.
Trabalhar com crianças implica conhecer como seus conflitos integram a dinâmica do sistema familiar
(Yanof, 2006). O diagnóstico é sustentado pela análise de informações referentes à história da família, às
rotinas de seus membros, às suas condições financeiras e à presença ou não de uma rede de apoio, como
empregada, babá, etc. Também se avaliam as características pessoais e profissionais dos pais do paciente,
uma vez que, como lembram Blinder e colaboradores (2011), devemse considerar no diagnóstico as
histórias e os desejos dos pais que sobredeterminam as características do filho. Do ponto de vista individual,
levase em consideração o sexo da criança, sua história pregressa e atual, a aparência física, os hábitos de
higiene, os afetos predominantes, a forma de se comunicar, a situação escolar, as preferências pessoais,
relacionamentos com irmãos e amigos e como lida com sua privacidade.
A estrutura e a dinâmica familiar também devem ser consideradas para o estabelecimento do
diagnóstico da criança. Para isso, ponderamos elementos como personalidade dos pais, interação e
funcionamento entre os membros da família, fantasias predominantes da família e agregados, além de
aspectos transgeracionais familiares. Avaliase a relação do casal, as funções parentais, os vínculos, as
visões dos pais quanto à criança e as condições de resiliência da família.
Entendemos que um dos objetivos das entrevistas com os pais é analisar a novela familiar, os lugares,
as alianças e os vínculos entre os membros da família. Para tal, examinamse as funções estruturais dos pais,
como a função materna, a função paterna, a função dos avós e dos tios e o lugar da criança e de seus irmãos
na constelação familiar.
O CUIDADO COM OS ELEMENTOS DESENVOLVIMENTAIS
Um psicodiagnóstico de criança ou adolescente deve levar em consideração elementos desenvolvimentais,
que abrangem a avaliação das características cognitivas, psicomotoras e emocionais.
Para Castro e Levandowski (2009), o conhecimento amplo do desenvolvimento emocional normal é
tão importante quanto conhecer e diagnosticar possíveis transtornos emocionais de crianças e adolescentes.
Ressaltamos que a observação e a compreensão do paciente tendem a ser orientadas pela perspectiva teórica
de trabalho do profissional sobre o desenvolvimento humano. Assim, falar em desenvolvimento em
psicologia é uma tarefa complexa, pois exige um posicionamento sobre a que teorias do desenvolvimento o
profissional está se referindo.
Escosteguy (2012, p. 8) entende que “Tanto para o processo de avaliação diagnóstica quanto no
processo de escolha terapêutica, em relação aos sintomas ou falhas apresentadas pelo paciente, a questão do
desenvolvimento, examinada sob múltiplos focos, ocupa posição central”. Pine (apud Escosteguy & Litvin,
1998) propõe que o profissional compreenda o fenômeno do desenvolvimento a partir do conceito de fases.
Assim, uma criança pode estar, simultaneamente, em uma grande variedade de fases, uma vez que nenhum
conceito abrange a totalidade de sua experiência em cada idade. Portanto, dependendo da teoria utilizada,
podese considerar, para fins diagnósticos, que uma criança de 2 anos esteja, ao mesmo tempo, na fase anal,
enfrentando determinado aspecto da fase de separaçãoindividuação, e na fase de formação da identidade de
gênero. Essa compreensão integradora possibilita a ampliação do olhar do psicólogo sobre o fenômeno do
desenvolvimento, não ficando restrito a apenas uma concepção teórica.
Para avaliar o desenvolvimento cognitivo, utilizamos, entre outras coisas, brinquedos e jogos como
instrumentos para essa avaliação, assim como a referência do desempenho escolar da criança e o resultado
de testes psicométricos. Já o desenvolvimento psicomotor, aspecto também abordado na literatura (Efron,
Fainberg, Kleiner, Sigal, & Woscoboinik, 1979/2009; Greens pan & Greenspan, 1993; Werlang, 2000),
engloba o diagnóstico de aspectos como motricidade fina, motricidade ampla, marcha e coordenação dos
membros superiores e inferiores. O desenvolvimento psicomotor, juntamente com o cognitivo, deve ser
interpretado de maneira dinâmica em relação aos elementos emocionais do diagnóstico psicológico
(Affonso, 2012a; Castro & Levandowski, 2009).
Os aspectos emocionais incluem diferentes tópicos do desenvolvimento afetivo, podendo to mar como
base diversas teorias. A Figura 19.1 (Escosteguy & Litvin, 1998), por exemplo, compila diferentes teorias
psicológicas sobre o desenvolvimento emocional infantil e suas correspon dências em relação à idade. A
avaliação dos as pectos desenvolvidos nessas teorias mostrase útil para a construção de um diagnóstico
psicológico de crianças e adolescentes.
FIGURA 19.1 ╱ COMPARAÇÃO DAS DIFERENTES TEORIAS PSICOLÓGICAS SOBRE O
DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL INFANTIL E SUAS CORRESPONDÊNCIAS EM RELAÇÃO
À IDADE.
Fonte: Escosteguy e Litvin (1998).
O desenvolvimento emocional inclui, ainda, a capacidade da criança e do adolescente para lidar com
determinadas situações e realizar certas operações que não envolvem apenas aspectos cognitivos ou
psicomotores. Assim, avaliamos, principalmente, as capacidades de simbolizar e representar algo que não
está concretamente presente, além das capacidades de criatividade, abstração e tolerância à frustração.
A capacidade de simbolizar é entendida como a condição da criança de fazer trocas com o psicólogo,
distanciarse dos dados concretos de sua história, dar sentido aos objetos a sua volta, bem como criar
histórias, brincar, imaginar e usar metáforas. Metaforizar pode ser definido como um modo como os seres
humanos caracterizam sua experiência. As metáforas transformam o concreto em algo mais complexo
(Yanof, 2006), sendo, assim, uma espécie de brincadeira por meio de palavras (Gueller, 2008), e estariam,
portanto, diretamente relacionadas à capacida de criativa da criança, geralmente observada por meio do uso
de materiais desestruturados, em momentos em que perde em algum jogo ou quando erra na produção de
seus desenhos. Em adolescentes, por exemplo, observase isso em relação à capacidade de atribuir sentido
às suas escolhas por músicas, filmes, passatempos, ídolos, entre outros. Também recomendamos avaliar
aspectos do desenvolvimento emocional como as capacidades de vínculo, insight, reparação, resiliên cia,
integração, continência, organização e de lidar com a culpa.
Para muitos psicólogos, o diagnóstico da problemática ou crise da criança e do adolescente, como
afirma Affonso (2011b), é realizado dentro do contexto evolutivo. Nesse modelo, a investigação das etapas
e de suas aquisições cognitivas e emocionais tem papel de destaque. Castro e Levandowski (2009)
entendem ser importante que, no trabalho analítico, o profissional complemente sua visão clínica com
conhecimentos provenientes da psicologia do desenvolvimento, o que o auxiliará no estabelecimento de
diagnósticos mais precisos, tendo em vista os parâmetros da normalidade.
Embora se compactue com a valorização da avaliação do desenvolvimento da criança, cabe realizar
uma importante ressalva. Pensar esses elementos do ciclo vital como etapas sucessivas traz, em si, um
paradoxo. Por um lado, remete à ideia de sequência e ordenamento que possibilita uma descrição das etapas
constitutivas do ser hu mano. Por outro, sugere uma padronização que pode anular o olhar à complexidade e
à singularidade da experiência de vida (Macedo, 2006, p. 10).
Podese pensar em . . . um tipo de ordenamento do que é compartilhado e, até mesmo, definido
frente a critérios mais estáveis e comuns às pessoas, o que chamaríamos de uma visão mais
própria da Psicologia do Desenvolvimento. Contudo, podese também optar por . . . um olhar que
enfatiza a complexidade dos ordenamentos psíquicos e a dinamicidade de experiências. Portanto,
desde esse ponto de vista ganha espaço a opção por um olhar interrogativo que visa não apenas o
comportamento humano, mas principalmente, aspectos referentes ao processo de subjetivação.
Dessa forma, é importante considerar, na reflexão diagnóstica, os elementos desenvolvimentais à luz da
experiência da criança, não apenas em relação ao comportamento esperado para sua idade.
O CUIDADO COM OS ELEMENTOS SINTOMATOLÓGICOS
Qualquer diagnóstico na infância e na adolescência não pode prescindir de um exame apurado dos motivos
da consulta e das características do sintoma dos pacientes. Isso se justifica, entre outros aspectos, na medida
em que, para a literatura (Aberastury, 1962/1986; Blinder et al., 2011; Castro et al., 2009), os motivos
manifestos conscientemente trazidos por pais e pacientes quanto ao seu sofrimento merecem uma reflexão
especial para a compreensão dos motivos latentes inconscientes de seu sofrimento.
Dessa forma, levamos em consideração, para o diagnóstico, o motivo da consulta, em especial três
aspectos: os conflitos e sofrimentos relatados pela criança ou adolescente, as razões referidas pelos pais que
explicariam tal sofrimento e o porquê do momento da busca pela avaliação. Castro e colaboradores (2009)
afirmam que, no período de avaliação que precede o processo psicoterápico, é importante fazer alguns
questionamentos sobre o porquê da procura de atendimento naquele momento e se há algo especial que a
motivou. Os conflitos são analisados quanto à razão, ao grau de enfermidade e à consciência da criança ou
do adolescente, assim como em relação às semelhanças e diferenças quanto ao que preocupa os pais e o
filho. Por isso, mostrase importante investigar as fantasias de doença, cura e análise, e fazer um exame da
adequação da demanda.
Os sintomas merecem a escuta atenta dos profissionais. A descrição detalhada e, principalmente, os
desencadeantes dos sintomas são muito importantes para um posterior diagnóstico psicológico. A
investigação do diagnóstico a partir de uma perspectiva nosológica é uma das abordagens que o psicólogo
pode utilizar. Esse tipo de diagnóstico tem como base sistemas classificatórios como o DSM5 (APA, 2014)
e a CID10 (OMS, 1993). Obviamente, inúmeras preocupações surgem quando se objetiva classificar algo
tão complexo como o comportamento humano, ainda mais quando se trata de crianças e adolescentes. Uma
das principais críticas diz respeito a uma má interpretação de que a criança esteja sendo classificada,
quando, de fato, o que é classifica do é o transtorno (Volkmar, SchwabStone, & First, 2002). Há, diante
disso, um temor de que o indivíduo seja rotulado e seu comportamento reduzido a uma lista de sinais e
sintomas, sem considerar aspectos desenvolvimentais, sociais, familiares e culturais.
Apesar das críticas, a descrição do sofrimento psíquico em termos nosológicos pode oferecer
benefícios ao diagnóstico na infância e adolescência. A classificação dos transtornos mentais tem como
objetivos principais facilitar a comunicação em contextos clínicos e de pesquisa e possibilitar a identificação
de um conjunto de informações relevantes sobre cada transtorno, incluindo curso, prognóstico e
comorbidades mais frequentes, que poderão auxiliar no estabelecimento do tratamento e na avaliação do
sucesso da intervenção. No contexto da educação e da saúde pública, o estabelecimento de um diagnóstico
descritivo também permite o acesso a serviços complementares, como tratamentos especializados e métodos
de ensino adaptados às necessidades da criança ou do adolescente (Volkmar et al., 2002).
O diagnóstico descritivo é necessário, e a compreensão das causas, as explicações do sofrimento e os
aspectos descritivos da patologia são fun damentais a ele. Como afirmam Blinder e co laboradores (2011, p.
44), devese avaliar não apenas o sintoma, mas ir além dele, analisar o que não se vê à primeira vista. O
profissional “. . . não escuta o sintoma como sinal de algo que não funciona, mas o que se tenta encobrir
com ele”. Portanto, o diagnóstico deve almejar, também, o sentido do sintoma, devendo este permear o
raciocínio do psicólogo em todas as modalidades de atendimento clínico (Romano, 1999).
A observação e a descrição das manifestações psíquicas baseadas no sintoma, dessa forma, podem não
ser suficientes para a formulação do diagnóstico psicológico. A aparência do sintoma pode induzir a erros
de avaliação (Lowenkron & Frankenthal, 2001), o que gera a necessidade de escuta de outros elementos.
Para tanto, o psicólogo utilizará sua teoria de base, que oferecerá aportes para explicar o desenvolvimento
de determinada patologia. No caso da psicanálise, por exemplo, podemos chamar esses elementos de
“metapsicológicos”.
O CUIDADO COM OS ELEMENTOS METAPSICOLÓGICOS
Esse componente do diagnóstico psicológico de crianças e adolescentes pode incluir, por exemplo,
elementos como o nível de funcionamento/estrutura, o padrão de relações objetais, o tipo de
ansiedade/angústia predominante, o nível de autonomia, o nível de pensamento, os recursos egoicos, as
representações de self e a dinâmica do campo analítico.
Alguns psicólogos privilegiavam, nos processos avaliativos, a reflexão sobre as vicissitudes de
constituição do inconsciente de seus pacientes. O foco nesses aspectos, em detrimento da consciência,
reserva um espaço importante para a análise do funcionamento psíquico a partir das falhas no processo de
recalcamento, que impediriam a simbolização por possibilitarem a invasão de conteúdos conflitivos na
consciência. Nesse sentido, também é referida, assim como na literatura (Espasa & Dufour, 1994/1997), a
avaliação das características libidinais, táticas amorosas e destinos pulsionais que emergem da configuração
do inconsciente do paciente, representados pelos pontos de fixação e tipos de conflito (p. ex., pré ou pós
edípico).
Outro aspecto avaliado é o nível de funcionamento mental do paciente. Também definido como
organização da estrutura psíquica da criança, tratase de um elemento de reflexão acerca dos tipos de
organização psíquica e agrupamentos psicopatológicos definidos pela teoria. São exemplos disso as
organizações neurótica, psicótica, perversa e borderline. Para Efron e colaboradores (1979/2009), as
crianças neuróticas apresentam expressão lúdica com reconhecimento parcial da realidade, coexistindo áreas
livres de conflito e outras mais regressivas. Já na estrutura psicótica, predominaria o brincar concreto,
estereotipado e distante do “como se”. Essas organizações, a partir da Primeira Tópica freudiana, poderiam
ser entendidas examinando o predomínio de processos primários e secundários e, a partir da Segunda
Tópica, como resultantes das diferentes configurações da dinâmica entre id, ego e superego (Castro et al.,
2009; Efron et al., 2009; Espasa & Dufour, 1994/1997). Efron e colaboradores (1979/2009) entendem que a
análise do conteúdo da personificação do brincar infantil permite avaliar, por meio da qualidade e da ‐
intensidade das identificações, o equilíbrio existente entre superego, id e realidade.
Além disso, outros aspectos descritos na literatura (Blinder et al., 2011), como o modelo de relação
objetal predominante da criança, também são avaliados. Para isso, examinamse as posições paranoide e
depressiva propostas por Klein, e as características de integração e desintegração de si e dos objetos. O
mesmo ocorre em relação ao tipo de angústia/ansiedade predominante na criança.
Os níveis de autonomia e de pensamento também têm lugar na reflexão diagnóstica de crianças e
adolescentes. Em relação a esses aspectos, analisase a dependência e a independência da criança ou do
adolescente e o pensamento concreto ou abstrato como elemento diagnóstico.
Os recursos egoicos são elementos metapsicológicos costumeiramente avaliados em crianças e
adolescentes, algo recomendado em modelos de análise descritos na literatura (Castro et al., 2009; Espasa &
Dufour, 1994/1997). Incluise, aqui, a reflexão sobre as áreas psíquicas livres de conflitos e os mecanismos
de defesa. Estes últimos são entendidos em sua relação com as fases do desenvolvimento psicossexual, na
sua apresentação plástica ou rígida e em seu predomínio ou sua inexistência no quadro clínico da criança ou
adolescente. Efron e colaboradores (1979/2009) entendem que a plasticidade egoica se manifesta quando a
criança consegue expressar a mesma fantasia ou defesa por meio de diferentes mediadores, ou quando uma
grande riqueza interna é comunicada por meio de poucos elementos que assumem múltiplas funções no
jogo. A rigidez, por sua vez, é a tendência a recorrer ao mesmo mediador lúdico sempre que a criança está
em uma situação potencialmente desorganizadora.
Um estudo realizado por Krug (2014) apontou que, durante as entrevistas lúdicas diagnósticas,
profissionais que refletem sobre recursos egoicos do paciente costumam avaliar a presença e a intensidade
de mecanismos de defesa como repressão, negação, identificação, identificação projetiva, cisão, dissociação,
projeção, renegação, desmentida, formação reativa, isolamento de afeto, intelectualização, introjeção e
sublimação. Além disso, levam em consideração as representações de self dos pacientes como consequência
do uso dos mecanismos de defesa. Isso inclui, como exposto na literatura (Blinder et al., 2011), a construção
ou não de um falso self e a maneira como a criança se vê em relação à família e à escola.
Por fim, integramos, ao grupo de aspectos componentes do diagnóstico psicológico, a dinâmica do
campo analítico. Portanto, para o estabelecimento do diagnóstico psicológico nessa abordagem, é preciso
incluir a análise da transferência, da contratransferência e das resistências à avaliação. Esses elementos são
aspectos técnicos que auxiliam a compreender todos os outros elementos metapsicológicos descritos neste
tópico.
Para identificar a transferência, observamse as narrativas dos pacientes e a personificação feita em
sessão. A dinâmica do campo analítico é examinada a partir da reflexão dos fenômenos narrativos cogerados
pelo psicólogo e pelo paciente. A escuta é feita, portanto, a partir do “adoecimento” do campo pela doença
do paciente, sendo traduzido e interpretado, entre outros aspectos, mediante a análise da transferência e da
contratransferência (Ferro, 2007/2011).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Entendese que o diagnóstico psicológico de crianças e adolescentes está alicerçado no domínio e no uso de
formulações teóricas que, por sua vez, são construções advindas da reflexão clínica e da formação do
profissional. Para Blinder e colaboradores (2011), o período diagnóstico inicial coloca em jogo os elementos
teóricos que fizeram parte da formação do profissional, já que esse processo depende dos critérios que ele
maneja, que se articulam com as conceituações metapsicológicas sobre as quais repousam sua escuta.
Para que o diagnóstico psicológico da criança ou do adolescente atenda seu principal objetivo no
psicodiagnóstico, ou seja, orientar em direção à indicação terapêutica e ao encaminhamen to, é preciso
abordar, durante a avaliação, os elementos familiares e sociais, os elementos desenvolvimentais, os
elementos sintomatológicos e os elementos metapsicológicos implicados no caso atendido. Não é possível
afirmar que todos os psicólogos avaliam todos esses elementos citados em seus processos psicodiagnósticos.
É comum observar que os critérios que compõem o diagnóstico psicológico na infância e na adolescência
variam bastante entre profissionais, o que decorre da maior ou menor influência de teorias e autores em suas
práticas. Cada profissional tem um conjunto de referências que, articuladas, configuram sua base teórica e
técnica de trabalho, influenciando quais os elementos diagnósticos a serem considerados ou mais
valorizados. Portanto, ressaltase que o uso ou não dos elementos de reflexão diagnóstica aqui apresentados
depende dos aspectos teóricos com que cada profissional trabalha (Krug, 2014).
Por mais que este capítulo tenha aprofundado o olhar psicanalítico ao propor a inclusão de elementos
metapsicológicos na reflexão diagnóstica na infância e na adolescência, entendese que qualquer teoria
psicológica reconhecida pode oferecer seus parâmetros de análise, que serão fundamentais para a integração
dos dados colhidos durante o psicodiagnóstico de crianças e adolescentes. Tendo isso em mente, recomenda
se que cada profissional possa analisar e reconhecer os limites de sua prática, dispondose a articular
diferentes aspectos teóricos por meio de encaminhamentos que julguem ser benéficos ao paciente.
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