É preciso romper com o círculo virtuoso das análises
óbvias. Dessas análises sem vida, feitas mais de virtuosismos que de amor Michel Maffesoli
Apesar da intensa produção acadêmica sobre as atuações dos
indivíduos nas cidades, o desafio da pesquisa urbana ainda se configura como uma empreitada estimulante. Mais ainda, se a cidade em questão for tão familiar para o pesquisador. Os cenários, os trajetos e as vivências, podem se transformar em rotina e cegar os olhos do citadino que resolve se aventurar como pesquisador nesse campo. O que é vivenciado de perto, pode não ser visto com toda magnitude que se vê quando se está longe. Entretanto, nessa produção acadêmica, buscamos respaldo teórico e metodológico para certificarmos de que nossa visão do que é comum e repetitivo não deixe de nos revelar o exótico, ou seja, mesmo na cidade, tão familiar aos nossos olhares, o exótico se faz presente e cabe ao bom cientista social identificá-lo. Dessa forma, toda a gama de relações sociais que, à primeira vista, não revela a intensidade da vida das coletividades urbanas, mas que, através do estudo do espaço de sociabilidade produzido no estacionamento do Carrefour de Natal-RN, aponta para uma dinâmica social pouco observada. Pesquisar um estacionamento, em si, já pode parecer fadado a mesmice e pode suscitar estranheza e incredulidade. Mas, e quando um estacionamento é ocupado não para o propósito inicial de seu uso? E quando um estacionamento se torna a mais frequentada área de sociabilidade de uma cidade? Evidentemente que algo está acontecendo. Nesse sentido, esse trabalho investiga os porquês do sucesso de uma área privada e da sua utilização como espaço de lazer e sociabilidade. Quais fenômenos interferiram nesse hábito de encontros no local? Quais sociabilidades acontecem? Nesse subcapítulo, nos referimos aos procedimentos metodológicos utilizados nessa pesquisa. O foco principal é auxiliar no entendimento de como foram coletadas as informações e conexões que possibilitaram mostrar que, às vezes, um estacionamento não é apenas um estacionamento. As possibilidades de entendimento de um determinado objeto de estudo são inúmeras. Não se conhece o objeto sem deixar primeiro que ele fale, ou seja, o ponto de partida de toda pesquisa deve ser o mergulho ao campo. Muitas vezes, somos condicionados a levar toda uma gama teórica a fim de que o campo se adeque a tudo àquilo. Deixamos assim, de trazer o campo à luz, porque ele já sufoca envolto a olhares enviesados. O Carrefour, ou C4, como foi apelidado carinhosamente pelos frequentadores, não tem simplesmente um estacionamento. Logo de cara é possível notar uma movimentação de pessoas que torna o espaço um lugar de reflexão. Entretanto, qualquer suposição que seja feita, à primeira vista, pode ser minimalista e desacreditada. Além disso, o C4 não era totalmente desconhecido por mim quando resolvi pesquisá-lo. Anos antes, eu frequentava quase que diariamente para desopilar ou ter um momento mais introspectivo, longe dos embates cotidianos. Percebia que outras pessoas faziam o mesmo. Entretanto, somente na produção do pré-projeto dessa dissertação que me dei conta que aqueles encontros poderiam significar muito mais do que simplesmente aproximações aleatórias de amigos ou namorados. Mas como encontrar algo novo de um lugar tão familiar? Ainda na graduação em Ciências Sociais, nesta mesma instituição, fui apresentado ao texto da Jeanne Favret-Saada (1990), o texto mostra as dificuldades de se chegar a um ponto específico de observação etnográfica e aconselha para o “Deixar afetar-se”, ou seja, Favret-Saada refere-se a um determinado período de campo em que o pesquisador é afetado por ele, como se o campo falasse por si. Entretanto, a contribuição mais valiosa de Saada para mim foi levantar o debate sobre a questão do afeto na antropologia. “Ser afetado” é mais do que descobrir uma linha de raciocínio para descrever o campo, é experimentar ao máximo as sensações que os atores sociais vivenciam, possibilitando assim, uma real experiência com o objeto estudado. Numa defesa do afeto enquanto categoria importante no trabalho etnográfico, Favret-Saada afirma: Quando reconhecem [o afeto], ou é para demonstrar que os afetos são mero produto de uma construção cultural, e que não têm nenhuma consistência fora dessa construção, como manifesta uma abundante literatura anglo-saxã ou é para votar o afeto ao desaparecimento, atribuindo-lhe como único destino possível o de passar para o registro da apresentação, como manifesta a etnologia francesa e também a psicanálise. Trabalho, ao contrário, com a hipótese de que a eficácia terapêutica, quando ela se dá, resulta de um certo trabalho realizado sobre o afeto não representado. [...]. É – parece-me – urgente, reabilitar a velha “sensibilidade”, visto que estamos mais bem equipados para abordá-los do que os filósofos do século XVII. (FAVRET-SAADA, 2005, p. 01)
Além disso, em suas investigações sobre a feitiçaria em Bocage, iniciada
em 1968, Favret-Saada tece críticas sobre o material produzido até então pelos antropólogos que a antecederam nessa investigação, pelo fato deles apenas observarem os rituais se baseando tão somente nas informações que compravam de um ou outro nativo. Ou seja, o que contava para esses antropólogos era a observação e não a participação. Sua pesquisa se fez, portanto, primeiramente pela inserção ao território dos feiticeiros. Trabalho difícil, visto que o acesso só foi concedido quando ela própria se assumiu enfeitiçada, deixando a pesquisadora, no dado momento, em segundo plano. O distanciamento do “nós” e “eles”, tão difundido pelos antropólogos anglo-saxões que não aceitavam a presença de feiticeiros na Europa da época, foi combatido por Favret-Saada que salientava o fato de que essa divisão entre nativo e etnólogo era mais uma tentativa de proteção e distanciamento do objeto do que uma realidade empírica consistente. “Afetar-se” seria, portanto, não negar a especificidade com que determinado objeto estabelece suas relações sociais e que, para compreendê- lo, se faz necessário incorporar os hábitos, costumes e vivências desse contexto. A observação participante, estando a observação e a participação como algo indissociável, resultaria numa aproximação mais eficaz com o objeto. “Ser afetado” como prerrogativa de entendimento não apenas hierárquico (pesquisador – objeto), mas sendo o objeto incorporado ao pesquisador de tal maneira que o segundo passe realmente a integrar o primeiro. Todavia, esse “afetar-se” na pesquisa desenvolvida por Favret-Saada faz sentido no momento que o objeto realmente era algo estranho ou exótico para ela, o que levaria a um processo de iniciação com o objeto, ou seja, Favret- Saada realmente não conhecia bem seu objeto ou ao menos não a fundo. Nas pesquisas urbanas, o desafio é justamente fazer o contrário, afetar-se, mas procurando distanciar-se das ideias e convicções prévias de que se tem do espaço urbano tão familiar. Nesse sentido, olhar o C4 não mais como um frequentador com demandas específicas, mas agora, como um pesquisador não preocupado com as rações próprias de frequentar o local, mas sim, com as razões dos demais frequentadores que, em grande parte, formavam grupos relativamente grande de pessoas. Algumas opções metodológicas foram testadas como a aplicação de questionários e entrevistas gravadas, mas nenhuma delas surtiu o efeito esperado seja pela pobreza do material obtido, seja pela ruptura parcial da sociabilidade causada pela interferência do pesquisador e do gravador a mostra. Diante dessas problemáticas, abri mão de tudo que salientava minha presença enquanto pesquisador naquele espaço. Passei a frequentar o lugar como mais um dos que ali estacionam em busca de tranquilidade e reflexão. Aos poucos, fui interagindo com os grupos de amigos que lá encontrava e percebi que somente assim eu conseguiria captar a essência dessa sociabilidade, mais ainda, captar a importância e as verdadeiras razões para o estacionamento ter se transformado em um lugar tão frequentado. Optei, portanto, pelo método da observação participante. Através da etnografia e da contribuição teórico-prática de alguns autores que utilizam o método em seus campos, percebi que a pesquisa começou a ganhar corpo. Defendida por autores como José Guilherme Cantor Magnani (2002), Roberto Da Matta (1974), Mariza Peirano (1995), Márcio Goldman (2000), a etnografia é utilizada como método capaz de explorar as possibilidades de interpretação da vida urbana.
O propósito é explorar as possibilidades que esta última [etnografia],
como método de trabalho característico da antropologia, abre para a compreensão do fenômeno urbano, mais especificamente para a pesquisa da dinâmica cultural e das formas de sociabilidade contemporâneas. [...] Desde as primeiras incursões a campo, a antropologia vem desenvolvendo e colocando em prática uma série de estratégias, conceitos e modelos que, não obstante as inúmeras, críticas e releituras constituem um repertório capaz de inspirar e fundamentar abordagens sobre novos objetos e questões atuais. (MAGNANI, 2002, p. 01) A etnografia é um método polêmico, muitos a veem como específica da Antropologia, cujo tracejado e utilização exige uma técnica pouco encontrada nas academias. O aper
Utilizar a etnografia em meio urbano se torna ainda mais desafiador. As
vicissitudes da cidade podem, por vezes, ludibriar o pesquisador menos atento às possibilidades de interpretação da vida urbana. Os trabalhos que, numa visão macrossocial, preocupam-se unilateralmente da interpretação das forças ditas superiores na cidade (Instituições, política, variáveis demográficas, etc), acabam por sonegar a presença atuante dos atores sociais que, numa perspectiva local, microssocial, desenvolvem uma pujante vida coletiva associada que termina por dar o rosto da cidade em que moram.
A cidade pensada como entidade à parte de seus moradores pensada
como resultado de forças econômicas transnacionais, das elites locais, de Lobbies políticos, variáveis demográficas, interesse imobiliário e outros fatores de ações, atividades, pontos de encontro, redes de sociabilidades. Já os moradores propriamente ditos, que, em suas múltiplas redes, formas de sociabilidade, estilos de vida, deslocamentos, conflitos etc., constituem o elemento que em definito dá vida à metrópole, não aparecem, e quando o fazem, é na qualidade da parte passiva (os excluídos, os espoliados), de todo o intrincado processo urbano. (MAGNANI, 2002, p. 14,15)
Nosso trabalho, aborda justamente a intensidade dessas conexões entre
os atores e sua ação social que transformou o espaço do estacionamento privado do Hipermercado Carrefour em uma praça de forte sociabilidade e convívio harmonioso. Sem, todavia, deixar de lado a importância espacial, social e política que, nesse contexto, se torna chave de interpretação de seu sucesso como área recreativa no coração da cidade de Natal/RN. Realizando uma etnografia do espaço, através da observação participante, coletamos dados e entrevistas que nos possibilitaram desenvolver uma linha de interpretação sobre o sucesso do C4 e sua inserção fixa na rotina diária dos moradores da cidade. O espaço se tornou tão viável que é frequentado não apenas pelos moradores do bairro de Candelária, onde está inserido, muito pelo contrário, a maioria dos frequentadores advém de áreas marginais da cidade, ou seja, os bairros próximos que muitas vezes são conhecidos no imaginário citadino como bairro onde a violência urbana é maior. Portanto, pensar a cidade como espaço de constante mudanças sociais e estilos de vida que, por vezes, tem sua imagem alterada de acordo com atividades recentes de seus moradores e/ou eventos não previstos. No segundo capítulo, sustentamos a tese de que a violência urbana – crescente desde os anos 2015 – vem moldando não apenas o cotidiano dos moradores, mas também acaba por suscitar novos espaços de sociabilidades e convivências.
Tempo de Reação Simples Auditivo e Visual em Surfistas Com Diferentes Níveis de Habilidades Comparação Entre Atletas Profissionais, Amadores e Praticantes