MUNDUS NOVUS:
POR UM NOVO DIREITO AUTORAL *
Joaquim Falcão
cinco infantes: D. Pedro, D. Fernando, Armesto, 1992, p. 186). Desta falsa atri-
D. João I, D. Duarte e D. Henrique, este buição de autoria nasceram América e a
projeto está na origem dos caminhos das imortalidade de Américo. O que mais
Índias e do avançar pelo mar oceânico. pode um mortal desejar? Sem este erro,
Fez de Lisboa o Silicon Valley e o Cape morreria errado e usado, incompreendi-
Canaveral de então. do, quase falido, como o próprio Colom-
Nos dias de Vespúcio, na Ibéria, sob bo e dezenas de outros navegadores.
os efeitos do Projeto de Sagres, D. Com recursos de D. Manuel, Fer-
Manuel, o Venturoso, e os reis católicos nando e Isabel, Lorenzo ou de amigos
de Castela e Aragão, Isabel e Fernando – como Gianetto Berardi,Vespúcio cruzou
ela muito mais rainha do que ele rei – o Atlântico três ou quatro vezes.7 Foi a
arriscavam a fortuna e o poder. Arrisca- Venezuela, Salvador, Haiti, Cabo Frio,
ram até mesmo as jóias da coroa. Finan- Cabo Verde, passando pela ilha de Fer-
ciavam descobertas. Competiam. Com- nando de Noronha, que lhe impressio-
pletavam o mundo. Inventavam o futuro. nou pela exuberância das aves e peixes e
Ainda, no momento certo, Vespúcio mar e rochas. Quase paraíso.
trocou de profissão. Em Sevilha encon- Sempre que voltava a Europa, pres-
trara o desafio das descobertas. Não tava contas aos seus patrocinadores.
resistiu. Escolheu uma nova profissão, a Escrevia seus relatórios, memorandos,
profissão certa, de riscos maiores dos e-mails de viagem. O que relatavam estas
que a dos próprios banqueiros. Aliou-se cartas, precioso depositório de informa-
à nova tecnologia que começava a revo- ções a correr o mundo civilizado?
lucionar o mundo: a caravela latina e a Contavam de tudo. Dos céus e dos
navegação astronômica. Foi ser navega- mares. Das tempestades e da bonança.
dor. Hoje os navegadores singram mares Das estrelas que guiavam e das estrelas
virtuais. Ontem, Vespúcio foi singrar que confundiam. Dos ventos a desviar e
mares oceânicos. Navegadores e inter- dos ventos a aproveitar. Das novas ter-
nautas, gêneros da mesma espécie, os ras, dos mares e dos rios. Animais e pei-
aventureiros das inovações tecnológicas. xes nunca vistos.Vespúcio comunicava o
Mas não bastou Américo Vespúcio ter espanto e a admiração. A perda de fôle-
nascido na família certa, na cidade certa, go, diante de tudo, nunca dantes visto.
no século certo, deixar a profissão certa Falava de homens e mulheres, da nova
na hora certa e escolher nova profissão raça, de pele vermelha, carnes duras –
certa. Foi preciso mais para que ele ficas- mulheres de peitos rígidos como não se
se famoso, conhecesse a glória e chegas- imaginaria numa européia, confessa. Das
se aos dias de hoje. Pelo menos um erro terras incertas. Falava dos hábitos, da culi-
lhe foi indispensável: o erro do monge nária, da doçura, da cordialidade, da trai-
Martin Waldeseemuller, concedendo- ção, da bravura. Falava e se espantava com
lhe, e não a Colombo, a autoria do des- a antropofagia dos novos povos. Comiam-
cobrimento da América (Fernández- se uns aos outros, carnes saborosas,
14_REV2_p229_246.qxd 11/16/05 21:59 Page 235
sempre evidente, entre o direito de pro- Torvalds em seu quarto, não. Iniciaram
priedade intelectual, enquanto criação suas aventuras basicamente sem capital.
privada, e o processo de inovação incre- Dependeram do acesso ao conhecimen-
mental do conhecimento, enquanto to, mas não necessariamente do acesso
criação pública. Ambos interdependen- ao capital. Esta a diferença fundamental.
tes e de relação circular. Como então Segundo, a atual legislação tende a
conciliar um direito autoral privatista do exagerar a capitalização do autor, muitas
século passado, que ainda pretende con- vezes em detrimento do interesse públi-
trolar este processo, com a gigantesca co da inovação descentralizada e acumu-
pulverização da inovação que a tecnolo- lativa.Temos visto, por exemplo, o siste-
gia do século XXI possibilita e estimula? mático prolongamento do prazo de anos
Atenção. É engano pensar que esta- a decorrer antes da entrada da obra em
mos diante de uma simplória dicotomia domínio público, muito além de uma
interesse privado do autor versus interes- remuneração razoável.
se público do avanço do conhecimento. Walt Disney pôde se beneficiar em
A defesa do interesse privado se legitima muitas de suas criações do fato de a obra
como um interesse público também. de Hans C. Andersen já estar em domí-
O atual direito autoral foi construí- nio público (cf. Lessig, 1999, passim).
do a partir da premissa de que é do inte- Na época, o prazo legal para saída do
resse público proteger e fortalecer o domínio privado era de 32 anos após a
processo de inovação. Este fortaleci- morte do autor, se os direitos perten-
mento, por sua vez, seria realizado por cessem a pessoa física. Este prazo che-
meio da capitalização do autor. Capitali- gou a 70 anos. Mas a nova legislação
zação fundamentada em duas premissas: americana, ao estender em mais 20 anos
a inovação necessita de mais e mais capi- o domínio privado sobre as obras exis-
tal, e os interesses pessoais do autor tentes17 – o novo prazo é de 90 anos –,
também dependem da capitalização. não permite que outros se beneficiem da
Essas premissas, válidas ontem, são ver- mesma forma das criações de Disney.18
dadeiras ainda hoje? Com a nova legislação, o interesse públi-
Elas enfrentam dois tipos de críticas. co foi adiado em 58 anos!
Primeiro, o que distingue a era virtual A tendência legislativa de prolongar
da era industrial ou da era das descober- o prazo de proteção dos direitos auto-
tas é justamente o fato de que o navega- rais termina por desequilibrar a balança
dor de hoje não depende tanto do capi- em que são sopesados os interesses de
tal financeiro como dependeram ontem capitalização do autor e a demanda de
Colombo, Cabral, Américo e Vasco da toda a coletividade por acesso às obras
Gama. Estes só puderam navegar depois intelectuais – indispensável ao processo
de encontrar o capitalista, seja em D. de inovação.
Manuel, seja em Isabel de Castela. Mas No Brasil, o prazo geral de proteção
Bill Gates em sua garagem ou Linus das obras intelectuais é de 70 anos, a
14_REV2_p229_246.qxd 11/16/05 21:59 Page 243
NOTAS
* Agradeço a Diego Werneck, Carlos Affonso, 1947 e maio de 1498, Vespúcio andava na Andaluzia, no
Horácio Falcão, Ronaldo Lemos e Antonio Sáenz de sul da Espanha. (...) Restam três navegações – estas são
Miera pela leitura prévia e sugestões. reais” (Bueno, 2003, p. 60).
16 Nos termos dos incisos III e IV art. 29 da Lei de 20 Uma opção que aparentemente une os dois
Direitos Autorais. navegantes ao longo dos séculos, já que, “apesar das
posições políticas e das restrições culturais de Portugal da
17 Por intermédio do Sonny Bono Copyright Term época (impostas pela política do segredo), ele [Vespúcio]
Extension Act (USA 1998). sentia necessidade e prazer de descobrir, compreender,
interpretar e divulgar os frutos das próprias intuições
18 No caso de direitos que pertençam a pessoa como elevado exemplo da projeção universal do renasci-
jurídica, o prazo da legislação americana foi ampliado mento italiano” (Fontana, 1994, p. 71).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Joaquim Falcão
D IRETOR DA FGV - D IREITO R IO