Marcos A F Ferreira 1
Leni D Weigelt
Maria Luiza Macedo
Hildegard H. Pohl
Daiani J Tirp
Fernanda B Muller
INTRODUÇÃO
1
Docente e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional – UNISC.
Brasil. Líder do grupo de pesquisa do CNPq “Formação e operação da agenda pública: Relações políticas,
mercado e cidadania: marcospoa@uol.com.br / marcosf@unisc.br
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Política pública de saúde: o conflito entre ser o novo ou fazer (o mesmo) de novo ...
obstante, as lições da epidemia não foram suficientes para retirar a separação entre
prevenção e cura do texto do Sistema Nacional de Saúde de 1975, que a consagrava
como um dado histórico intocável.
Na vigência do sistema atual – SUS – a partir de 1990, os problemas com a
destinação dos recursos públicos mudaram em algumas de suas características. O gestor
nacional, o Ministério da Saúde é o único financiador da política neste nível, sendo
acompanhado pela participação dos níveis sub-nacionais correspondentes, as secretarias
estaduais e municipais, que complementam o volume de recursos públicos para o
conjunto das atividades. Dessa forma, a distribuição de níveis de competência gerencial
e financeira através da descentralização do sistema tem possibilitado, a partir das
prerrogativas assumidas pelos municípios pós-constituição de 1988, multiplicar os
espaços de decisão sobre muitos tópicos estratégicos e operacionais da policy.
A descentralização dá ao gestor municipal maior autonomia e flexibilidade nas
ações, podendo o mesmo utilizar os recursos públicos conforme as necessidades ou
demandas da população. Esse processo possibilita inúmeros desenhos de organização,
conforme os interesses e os arranjos políticos negociados em cada contexto local.
No processo da descentralização, os municípios assumem compromissos com o
sistema de saúde, de acordo com a modalidade de gestão a que se propõem. Assim,
também o modo como os recursos são transferidos é diferente para os municípios que
assumem mais responsabilidades na gestão plena do sistema, tanto que esse passa a
receber a maioria das verbas diretamente no Fundo Municipal de Saúde, que se constitui
de contas municipais criadas especificamente para a saúde. Tornar a administração
desse fundo o mais transparente possível e localizá-lo no âmbito do poder decisório da
secretaria municipal e do conselho municipal de saúde tem sido ponto de pauta de
muitas discussões do controle social, inclusive em conferências de saúde.
Portanto, ao mesmo tempo em que o município em gestão plena recebe mais
recursos para administrar, necessita uma maior organização interna, seja para controlar
os gastos, ou para planejar e executar uma política de saúde próxima de suas
necessidades, já que também passa a obter uma maior liberdade de ordenamento do
sistema no nível local.
No decorrer deste processo, são feitas críticas variadas como, por exemplo, às
sucessivas investidas de recentralização por parte da União com as Normas operacionais
Básicas - NOBs e Normas Operacionais de Assistência à Saúde - NOAS, passando pela
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paralisia decisória dos níveis estaduais, até a fúria privatista e inépcia de muitas
secretarias municipais.
Entre algumas das questões mais centrais a preocupar os que reconhecem no
SUS um patrimônio da cidadania estão os movimentos de várias ordens a desfigurar
continuamente os princípios mais caros da política. Misoczki (2002), em sua crítica sem
tréguas aos desvios autoritários que volta e meia assombram a política de saúde
reconhece na presença do Banco Mundial a partir dos anos noventa, uma influência
decisiva a reordenar os pontos da agenda de saúde. Com o Banco veio a reforma do
Estado e os compromissos de ajuste fiscal, onde entra em debate uma avaliação dos
limites fiscais do Estado brasileiro em financiar a totalidade da política de saúde em
seus termos universalizantes e de integralidade. Para a autora as propostas do PACS e
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PSF personificam o empenho em focalizar esforços nos pobres, o principal alvo de
uma política de saúde afinada com os preceitos do Banco Mundial.
Nesse sentido, as recomendações do relatório do Banco Mundial, em 19893,
sinalizam qual a configuração público-privada desejável para os tempos vindouros da
política brasileira de saúde. Afirma que o setor público deve ter a responsabilidade de
reconhecer seus limites e, assim, explorar as vantagens que o setor privado oferece,
desde que corretamente regulado, ampliando e qualificando a oferta de serviços através
da multiplicidade de prestadores. Quer dizer, a atenção médica – é exatamente disso que
se trata aqui – é concebida e difundida como um bem necessário de ser ofertado em
termos da racionalidade de mercado, onde as escolhas maximizadoras da clientela vão
ao encontro de seus desejos e satisfação.
Quanto aos pobres, para eles o Estado e seu sistema oferecem duas estratégias
que, se combinadas com sucesso, vão permitir: primeiro, que recebam alguns bens
públicos na forma de serviços selecionados de baixo custo, o que muitos denominaram
de “cesta básica da saúde” e, ao mesmo tempo, estejam atentos para participar do
grande jogo do mercado através da noção de empowerment4 para dar conta dos demais
itens que dizem respeito aos cuidados de sua saúde. Segundo o Banco, a tradição do
centralismo paternalista brasileiro incutiu nas classes populares o encorajamento de
receber serviços gratuitos. Sem provocar nenhuma alteração nas condições objetivas de
vida da população miserável do país, os programas a serem implementados teriam a
2
PACS – Programa de Agentes Comunitários de Saúde e, PSF – Programa de Saúde de Família.
3
Adult Health in Brazil: Adjusting to New Challenges, World Bank, 1989.
4
Traduzida para o português como “empoderamento” em vários textos.
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5
Um dos mais prestigiados referenciais teóricos de análise de políticas públicas, estruturado com base em
conceitos da economia. Para eles, não há “falhas de mercado”, um conceito da economia contemporânea
que reconhece a impossibilidade do mercado satisfazer algumas pautas de necessidades humanas que, por
tal razão, deveriam ficar a cargo do Estado; antes, existem maus governos, que interferem de forma
incompetente nas leis de mercado impedindo a livre escolha, o que justificaria a “saída pelo mercado”
para um grande número de iniciativas ainda reconhecidas como de Estado. Para os adeptos desta vertente,
a política consiste num instrumento indesejável, que distorce a simplicidade das demandas sociais,
canalizando-as para a instrumentalidade dos ganhos eleitorais. SIMMONS, Randy T., MITCHELL,
William C. Para além da política. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
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as regras devem prevalecer para cuidar melhor da saúde da população. Não bastasse o
reconhecimento no que é básico – promoção à saúde e prevenção – também os sistemas
complexos de atenção, onde a densidade tecnológica é compulsória para diagnose e
terapêutica, também aí as respostas mais qualificadas são encaminhadas na forma de
bem público.
Essas considerações são importantes para apontar o quanto dos esforços para
criar, manter e aperfeiçoar um sistema público de saúde deve se basear numa reflexão
séria sobre seus compromissos e os efeitos que provoca. Interferir positivamente nos
níveis de saúde das populações – esse é seu desígnio. O setor privado não tem esse
horizonte como meta, na medida em que sua atuação é essencialmente voltada para o
plano individual. Se uma política de saúde frustra a população usuária por seus
resultados pífios cabe entender onde se encontram os nós críticos a serem atacados para
melhorar o sistema.
Percentual de muito baixo peso ao nascer 1,70 1,50 1,60 1,30 1,30 1,40
Percentual de baixo peso ao nascer 9,10 9,20 8,70 9,00 9,34 9,50
Percentual de partos em mães adolescentes (< 20 17,00 17,10 17,30 20,20 19,70 19,10
anos)
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Coeficiente de Mortalidade Infantil.
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Tabela 2 - Participação das despesas próprias com a receita de impostos – Limite constitucional
(V/I) Evolução do percentual mínimo da despesa própria com saúde/receita líquida de impostos
(*) Santa Cruz do Sul, RS.
QUADRO I – Gastos públicos em saúde, segundo origem dos recursos e natureza do gasto. Santa Cruz do Sul, janeiro e abril de
2003.
JANEIRO ABRIL
Tipo de Gasto
Fonte municipal Fonte estadual Fonte federal Fonte municipal Fonte estadual Fonte federal
Hospital Santa Cruz (AIHs) - - 285.625,00 - - 252.687,06
Hospital Santa Cruz (honorários
médicos, consultas,
8.000,00 - 4.118,00 15.237,50 - 42.789,08
procedimentos, alta
complexidade e hemoterapia)
Hospital Santa Cruz (UTI
- - - 40.000,00 - -
pediátrica)
Hospital Ana Nery - - 213.297,47 38.000,00 - 213.743,41
Anestesias 31.289,89 - - 17.558,01 - -
Sindicato médico (honorários) 10.750,00 - - 83.750,00 - -
Consultas e procedimentos
29.675,35 - 27.974,50 16.839,51 - 2.800,00
especializados
Exames auxiliares de
diagnóstico (laboratoriais,
2.860,71 - 132.599,64 1.689,18 - 36.915,80
radiológicos, eco e
tomográficos)
Hospital Monte Alverne - - 24.412,15 2.000,00 - 19.307,50
Órteses e próteses - - - - - 10.728,94
AFAVI 59.799,79 - - 55.729,49 - 26.720,00
UNIRIM - - - - - 107.110,94
UTRAVARP 13.340,00 - - 9.108,00 - -
RH próprio (salários e
obrigações, incluindo vales 585.296,35 3.279,97 6.578,36 566.001,26 19.012,74 34.770,75
transporte e alimentação)
Outros* 17.205,63 3.758,50 65.587,94 108.231,95 57,12 304.653,65
Total 758.217,72 7.038,47 760.193,06 954.144,90 19.069,86 1.052.227,13
Fonte: RGMS – Santa Cruz do Sul – RS.
(*) Despesas com segurança, conta de luz, telefone e internet, aluguéis, vigilância, manutenção, transporte de pacientes e pagamentos aos sindicatos dos metalúrgicos, fumo
e trabalhadores rurais
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Com a saúde municipalizada desde 1992, Santa Cruz do Sul conta com um
Conselho Municipal de Saúde, criado em setembro de 1991, responsável pelo controle
social de ações e decisões no âmbito da saúde. Em 1998, o município aderiu à Gestão Plena
do Sistema Municipal, sendo gestor da saúde, o secretário municipal da saúde. Como
recurso inicial de aproximação da dinâmica política que estrutura o sistema municipal,
foram analisados as atas do Conselho Municipal de Saúde e projetos de lei a serem
enviados para a Câmara Municipal.
A observação de reuniões do Conselho Municipal de Saúde (CMS) nos últimos
quatro anos têm demonstrado que vêm ocorrendo uma melhor organização da comunidade,
principalmente dos representantes dos movimentos populares e dos sindicatos responsáveis
pela deliberaçao, avaliaçao e fiscalizaçao das ações desenvolvidas na área da saúde. Porém,
na análise das atas dos conselhos para o ano de 2003 é possível levantar alguns pontos que
permitem situar mais claramente o desempenho desse foro decisório, principalmente
daqueles atores que corporificam os interesses privados. O poder de articulacao presente
nas negociações do setor privado na maioria das vezes influencia a elaboração de
instrumentos legais garantidores de seu sucesso nesta arena de negociação.
Entre os fatos positivos observados nas atas está o de uma Comissão de Finanças
bastante ativa, assim como uma Comissão de Análise das Ações que examinam o Relatório
de Gestão, as ações empreendidas pela administração, bem como as movimentações do
Fundo Municipal de Saúde. Observa-se também, que os conselheiros revelam uma
preocupação com o funcionamento do conselho, principalmente no que diz respeito à
presença das entidades representadas. Em cada seção cada ausência é relatada e lida sua
justificativa. Ela pode ser aceita ou não através de votação entre os membros. As ausências
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Termo citado por Mendes Gonçalves, p.257, referindo-se ao modelo clínico de assistência, onde predomina
o tratamento sintomatológico, cujo objetivo maior é o atendimento imediato da reivindicação terapêutica.
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persistentes de uma entidade durante 2003 teve como encaminhamento sua substituição por
outra entidade.
O nível de conflito em geral é baixo, não havendo confrontos importantes, e sim,
soluções negociadas com tendência a soluções/decisões consensuais a partir de alguma
flexibilização de tópicos com relação aos diversos temas tratados.
Nesse cenário, as demandas dos usuários têm revelado a fragilidade deste
segmento, seja pela escassez das mesmas e pelas dificuldades de serem ouvidas, discutidas
e levadas em conta para encaminhamento e institucionalização no sistema.
Por outro lado o setor de prestadores privados e da categoria médica têm obtido
freqüentes conquistas com o aval pouco crítico do segmento de usuários. Exemplar é a
interferência da categoria médica a respeito do cumprimento de sua carga horária na rede
pública. Os profissionais médicos deveriam registrar presença através de cartão ponto, o
que não era aceito pela maioria. Os mecanismos de controle da gestão municipal sobre os
médicos, para cumprimento da exigência administrativa fracassaram e esvaziaram-se sem
qualquer medida punitiva. Ao contrário, a categoria expressou seu descontentamento
através de um anteprojeto apresentado ao Conselho, que os liberava de cumprimento de
carga horária (contratual) liberando-os do cartão-ponto e, substituição do cumprimento da
carga horária por um número fixo de atendimentos por dia, sendo metade agendada
previamente e, a outra metade, que seriam consideradas “urgências”, todas acontecendo
durante o horário de atendimento oficial das unidades. O Conselho aprovou a sistemática
para experiência por noventa dias. O exame das atas de 2003 não revela qualquer sinal de
retomada do assunto de forma geral até o final do ano, esvaziando o caráter “experimental”
da medida. No entanto observou-se denúncia pontual de um bairro sobre as dificuldades
dos usuários com o atendimento médico, ouvida pelo Conselho no local, que encaminhou o
retorno daquela unidade específica para o regime anterior, ou seja, cumprimento da carga
horária pelos médicos. Faz-se necessário comentar que a demanda da categoria médica
apresenta caráter discriminatório com relação aos demais profissionais de saúde, exigindo,
inclusive, mudanças em itens da lei que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores
públicos do município.
Na relação dos representantes de usuários com as demandas hospitalares a tendência é de
aceitação dessas demandas mesmo que sua apreciação sofra interferências pontuais nos
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Bibliografia