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Autor de As consolações da filosofia e Desejo de status

Com um texto apaixonado e repleto de curiosidades


que nos remete aos ensaios do século XIX, Botton
afasta-se do rigor de uma teoria crítica da arquitetura
para produzir um arsenal de considerações que permitem
ao leitor comum criar relações de identidade
e vínculos emocionais com a arquitetura.

MARCOS SÁ, arquiteto e autor


de Ornamento e modernismo

Hoje em dia esperamos que livros de não-ficçâo sejam


ou cômicos ou sóbrios: nos façam rir ou nos informem,
alertem ou aterrorizem com histórias de crianças miseráveis
ou desastres políticos. A idéia de que a escrita possa ser
as duas coisas, casual na sua forma e séria no conteúdo,
está praticamente esquecida. Ela sobrevive,
no entanto, na obra de Alain de Botton.

The New York Review of Books

BOTTONA AR
QUITETURA DA
FELICIDADE
Títuio original
THf: ARCHlTECTLfRF. OFIIAPPJMESS

Copyn%bt O 2006 by Aliütia dc Borton

l odo» tis direito* n*timd(ta; nenhuma parte desta publicito pode


ücr repruduirda ou transmitida por inviocleiròmix), «niTinico. fotocópia
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preparou úc originai*
FELIPE ANTUNES DF OLÍVEIUA c
LUIZ PAULO LEAL

ClP-Brwsil Catalogação- n:i*!dnte.


Sindicato Saciou «d do» Editores de I,ivio>, RJ

D3JVa
De Bolion, AJain, 196* 1*-
A arquitetura da felicidade/Ai* in de Botloii; traduzo de Talita M
Rodrigue». - Rio »lr Janeiro: Ro íc o . 20í.)7.
Trjiluçôo dç: The ardmeciure ol hiippiness
lSRN'97K-B5-325-2U,0-6
1. Arquitetura « Aspectns [«ioolngtcos. 2. Arquitetura e soriidatic.
3. Arquitetura - Estética. I. Titulo.
07-1201 CDI) 720.13 CDU 72.01
Sumário

i. A importância da arquitetura 9

II. Em que estilo devemos construir? 27

III. Construções que falam 77

IV. Lares ideais 10$

V. As virtudes das construções 169

VI. A promessa do campo 257


I. A importância da arquitetura
1.
donos retornaram depois de períodos de ausência e, olhando ao redor,
Uma casa geminada numa rua arborizada. Hoje cedo, a casa ressoava lembraram quem eles eram. As lajotas do pavimento térreo falam de
com gritos de crianças e vozes de adultos, mas desde que o último ocu- serenidade e graça amadurecida, enquanto a regularidade dos armários
pante partiu {com a sua mochila) há poucas horas, da ficou sozinha da cozinha é um modelo de ordem e disciplina que não intimida. A
para curtir a manhã. O sol surgiu por cima da empena dos prédios em mesa de jantar, com a toalha de oleado estampada com grandes botões-
frente e agora entra pelas janelas do andar térreo, pintando as paredes de-ouro, sugere uma explosão de alegria aliviada por uma carrancuda
internas de um amarelo amanteigado e aquecendo a fachada de ásperos parede de concreto próxima. Junto da escada, pequenas naturezas-
tijolos vermelhos. Dentro das faixas formadas pela iuz do sol, partícu- mortas com ovos e limões chamam a atenção para a complexidade e
las de pó movem-se como obedecendo ao ritmo de uma valsa silencio- beleza das coisas cotidianas, Na prateleira sob a janela, um jarro dc
sa. Do vestíbulo, o murmúrio baixo do tráfego alguns quarteirões vidro com centáureas ajuda a resistir à atração da melancolia. No andar
adiante pode ser percebido. Ocasionalmente a caixa de correio se abre superior, uma sala vazia e estreita é espaço para tramar pensamentos
para receber um folheto melancólico. revigorantes, sua clarabóia 3bre para nuvens impacientes que migram
A casa dá sinais de gostar do vazio. Ela se reorganiza depois da rápido sobre gruas e canos de chaminés.
noite, limpando os seus pulmões e estalando as juntas. Esta criatura Embora esta casa não tenha soluções para uma grande parte dos
digna e amadurecida, com suas veias de cobre e pés de madeira aninha- males que afligem seus ocupantes, seus aposentos são evidência de uma
dos numa camada de argila, suportou muita coisa: bolas lançadas con-
felicidade à qual a arquitetura deu a sua característica contribuição.
tra as laterais do seu jardim, porcas batidas com raiva, tentativas de
plantar bananeira ao longo dos seus corredores, o peso e os ruídos de
equipamentos elétricos e encanadores inexperientes sondando as suas 2.
vísceras. Uma família de quatro pessoas, acompanhada de uma colônia No entanto, a preocupação com a arquitetura nunca esteve livre de um
de formigas ao redor das fundações e, na primavera, ninhadas de tor- certo grau de desconfiança. Dúvidas surgiram a respeito da seriedade
dos nas chaminés. Ela também empresta um ombro a uma frágil (ou do assunto, o seu valor moral c o seu custo. Um insdgante número de
apenas indolente) ervilha-<le-cheiro que se encosta no muro do jardim, pessoas entre as mais inteligentes do inundo desdenharam de qualquer
regalando-se com a corte peripatética de um círculo de abelhas. interesse pela decoração e o design, equacionando o contentamento,
A casa se transformou numa testemunha bem informada. Foi cúm- pelo contrário, com questões imateriais e invisíveis.
plice das primeiras seduções, vigiou os deveres de casa sendo feitos, Dizem que Epíteto, o filósofo estoico da Grécia Antiga, indagou a
observou bebês envoltos em cueiros recém-chegados do hospital, foi um amigo que estava muito triste porque a sua casa havia sido total-
surpreendida no meio da noite por conversas sussurradas na cozinha. mente destruída num incêndio: 4'Se você compreende o que governa o
Experimentou noites de inverno, quando as suas janelas ficavam frias universo, como pode se queixar por pedacinhos de pedra e rocha boni-
como sacos de ervilhas congeladas, e crepúsculos no auge do verão, ta?” (Não se sabe quanto tempo mais durou esta amizade.) Diz a lenda
quando as suas paredes de tijolos tinham o calor de um pão recém- que, depois dc escutar a voz dc Deus, a eremita cristã Alexandra ven-
saído do forno. deu a sua casa, fechou- se numa tumba e nunca mais olhou para o
Ela proporcionou nao apenas refugio físico mas também psicoló- mundo lá fora, enquanto outro eremita, Paulo de Sceta, dormia sobre
gico. Tem sido uma guardiã da identidade. Ao longo dos anos, seus um cobertor no chão de uma choupana de barro sem janela e recitava

m
300 orações por dia, sofrendo apenas quando soube de um homem A premissa para se acreditar na importância da arquitetura é a
santo que conseguia recitar 700 c dormia num ataúde. noção de que somos, queiramos ou não, pessoas diferentes em lugares
Essa austeridade tem sido uma constante histórica. Na primavera diferentes - ca convicção de que cabe à arquitetura deixar bem claro
de 1137, o monge cisterciense chamado São Bernardo de Claravai fez para nós quem poderíamos idealmente ser.
a volta completa do lago Genebra sem sequer notar a sua presença ali.
Da mesma forma» depois de quatro anos no seu mosteiro, São Ber- 4.
nardo não foi capaz de dizer se a área de jantar tinha um teto abobada- As vezes ficamos ansiosos para exaltar a influência daquilo que nos
do (e tem) ou quantas janelas havia no santuário da sua igreja (três).
cerca. Na sala de estar de uma casa na República Tcheca, vemos um
Numa visita ao Convento dos Cartuxos de Dauphiné, Sao Bernardo
exemplo de como paredes, cadeiras e pisos combinam-se para criar
deixou os seus anfitriões atônitos ao chegar num magnífico cavalo
uma atmosfera em que as melhores facetas de nós mesmos têm chance
branco diametralmente oposto aos valores ascetas que professava. Mas
de florescer. Aceitamos com grande gratidão o poder que um simples
ele explicou que tinha pedido emprestado o animal a um tio rico e não
quarto possa ter.
notara a sua aparência nos quatro dias de viagem pela França.
Mas sensibilidade à arquitetura tem também seus aspetos mais
problemáticos. Se um único aposento é capaz de alterar o que senti-
mos, se a nossa felicidade pode depender da cor das paredes ou do for-
Não obstante» essa determinação em menosprezar a experiência visual
mato de uma porta, o que acontecerá conosco na maioria dos lugares
sempre veio acompanhada de tentativas iguaImente persistentes de dar
uma forma elegante ao mundo material. Muita gente entortou as cos- que somos forçados a olhar e habitar? O que vamos sentir numa casa

tas entalhando flores nas vigas dos seus telhados e cansou a vista bor- com janelas que parecem as de uma prisão, carpete manchado e corti-
dando animais nas suas toalhas de mesa. Essas pessoas renunciaram ao nas de plástico?
descanso no fim de semana para esconderem feios cabos de eletricida- E para impedir a possibilidade de angustia permanente que pode-
de por trás de prateleiras. Pensaram cuidadosamente em como seria a mos ser levados a fechar nossos olhos para quase tudo que nos cerca,
melhor superfície para se trabalhar na cozinha. Imaginaram morar nas pois nunca estamos longe de manchas de umidade e tetos rachados,
casas caríssimas que aparecem nas revistas e ficaram tristes, como cidades despedaçadas e estaleiros enferrujados, Não podemos perma-
quando se cruza com uma pessoa desconhecida e sedutora numa rua necer indefinidamente sensíveis aos ambientes que não temos como
cheia de gente. melhorar - e acabar tão conscientes quanto temos condições de ser.
Parecemos divididos entre a necessidade de atropelar nossos senti- Repetindo a atitude dos filósofos estoicos ou de São Bernardo ao redor
dos e nos adaptar anestesiados aos nossos ambientes e o impulso con- do lago Genebra, talvez nos vejamos argumentando que, em última
traditório de reconhecer o quanto as nossas identidades estão indele- instância, não importa muito a aparência dos prédios, o que está no
velmente associadas ao lugar onde vivemos, e junto com ele se trans- teto ou corno a parede é tratada - confissões de desapego que se origi-
formarão. Um quarto feio pode coagular vagas desconfianças quanto nam não tanto de uma insensibilidade ao que é belo quanto do desejo
ao que está faltando na vida, enquanto outro ensolarado, revestido com de afastar a tristeza que teríamos dc enfrentar ficando expostos às mui-
pedras calcárias cor de mel, é capaz de dar sustentação às nossas maio- tas ausências de beleza.
res esperanças.

1f 4 •> ríi »>' r <® t m ►*> 'J <> f* t ' A i ^ /,


Não faltam razões para se desconfiar da ambição de criar uma arquite-
tura grandiosa. As edificações raramente tornam palpáveis os esforços
que a sua construção exige. Elas calam timidamente as falências, os
atrasos, o medo e a poeira que impõem. O ar casual é uma característi-
ca freqüenic do seu charme. Só quando tentamos construir nós mes-
mos é que somos iniciados nos tormentos associados com o trabalho de
convencer materiais e outros humanos a cooperarem com nossos pro-
jetos, de garantir que dois pedaços de vidro se juntem numa linha per-
feita, que uma lâmpada fique suspensa exatamente sobre a escada, que
um hoiler acenda quando deve ou que os pilares de concreto combi-
nem com o telhado.
Mesmo quando alcançamos nossas metas, as construções que faze-
mos têm uma dolorosa tendência a se desmontarem de novo com uma
excessiva rapidez. E difícil entrar numa casa recém-decorada sem nos
sentirmos já tristes com a decadência que aguarda impaciente para
começar: logo as paredes vão rachar, os armários brancos ficarão ama-
relados e os tapetes manchados. As ruínas do mundo antigo sao uma
lição irônica para quem está esperando que os construtores terminem
o seu trabalho. Como os proprietários das casas de Pompéia devem ter
se sentido orgulhosos!
No seu ensaio "Sobre a transitoriedade” (1916), Stgmund Freud
lembra um passeio que fez nas montanhas Dolomitas com o poeta
Rainer Maria Rilke. Era um delicioso dia de verão; as flores desbrocha-
vam e borboletas coloridas dançavam sobre os prados. O psicanalista
sentia-se contente por estar ao ar livre (chovera a semana toda), mas o
seu companheiro caminhava de cabeça baixa, os olhos fixos no chão, e
permaneceu taciturno até o fim do passeio. Não é que Rilke não visse
a beleza ao seu redor; ele simplesmente não podia deixar de perceber a
A arquitetura pode tomar vívido pura nós tpiem poderíamos ideahnente ser. impermanência de tudo aquilo. Segundo as palavras de Freud, ele não
Mies van dfcr Rohe, sala de jantar, Tugendhat House, Brrto, 19J0
foi capaz de esquecer “que toda esta beleza escava destinada à extinção,
que ela desapareceria quando chegasse o inverno, como toda a beleza
humana e roda a beleza que os homens criaram ou venham a criar”.
Freud mio foi complacente com essa atitude. Para ele, ser capaz de dia possa estar coberta de lava, ser carregada por um tornado, sucum-
amar qualquer coisa atraente, por mais frágil que fosse, era sinal de bir a uma mancha de chocolate ou ficar suja de vinho.
saude psicológica. Mas a atitude de Rilke, embora inconveniente, ajuda
a enfatizar como aquelas pessoas mais fascinadas pela beleza podem ter 6.
uma consciência muito aguda da sua efemeridade, e se entristecer com A arquitetura causa perplexidade também pela inconsistência da sua
isso. Esses melancólicos entusiastas verão o buraco de traça por baixo capacidade de gerar a felicidade que a torna atraente para nós.
da amostra do tecido da cortina e a ruína por trás do plano. São capa- Enquanto um prédio bonito pode ocasionalinente exaltar um estado de
zes cie, no ultimo momento, cancelar o encontro com um corretor de espírito em ascensão, haverá moinemos em que o local mais agradável
imóveis ao perceberem que a casa anunciada, assim como a cidade e até do mundo não conseguirá expulsar a nossa tristeza ou misantropia.
a própria civilização, em breve estará reduzida a cacos de tijolo sobre os Podemos nos sentir ansiosos ou com inveja mesmo que o chão
quais as baratas rastejarão triunfantes. Talvez prefiram alugar um onde pisamos tenha sido importado de uma pedreira longínqua e as
quarto ou morar num barril para não verem a lenta desintegração dos esquadrias de janelas primorosamente entalhadas tenham sido pintadas
objetos que amam. de um cinza tranquilizante. O nosso metrônomo interior pode não se
No seu auge, a paixão pela arquitetura pode nos transformar em sensibilizar com os esforços dos operários para criar uma fonte ou cul-
estetas, figuras excêntricas que precisam vigiar as suas casas com a tivar uma fileira simétrica de carvalhos. Podemos entrar numa discus-
atenção de guardas de museus, patrulhando seus quartos em busca de são mesquinha que termina em ameaça de divórcio dentro de um pré-
manchas, com um pedaço de tecido úmido ou esponja na imo. Os este- dio de Geoffrey Bawa ou Louis Kalin, As casas podem nos convidar a
tas não terão outra escolha a não ser privarem-se da companhia de
aproveitá-las com uni humor que não conseguimos evocar. A arquite-
crianças pequenas e, durante o jantar com amigos, ignorarem a conver-
tura mais nobre pode às vezes fazer menos por nós do que um cochilo
sa para se concentrarem na possibilidade de alguém inclinar-se para
à tarde ou mna aspirina.
trás e, inadvertídamente, deixar uma marca na parede.
Aqueles que dedicaram a vida trabalhando pela beleza arquitetôni-
Seria agradável recusar-se violentamente a dar importância real a
ca sabem muito bem como podem parecer fúteis os seus esforços.
ocasionais manchas. Entretanto, os estetas nos forçam a pensar se a
Depois de um exaustivo estudo dos prédios de Veneza, num momento
felicidade não depende às vezes da presença ou ausência de uma
de depressiva lucidez, John Ruskin reconheceu que poucos venezíanos
impressão digital, se em certas situações o belo e o feio estão apenas
alguns milímetros de distância um do outro, se uma única marca tal- pareciam de fato elevados espiri tua imente pela sua cidade, talvez â mais
vez não derrube uma parede ou uma pincelada distraída não arruine a bela tapeçaria urbana do mundo. Ao lado da Basílica de São Marcos
pintura de uma paisagem. Deveríamos agradecer a estas almas sensí- (descrita por Ruskin em As pedras de Veneza como <Lum livro de orações,
veis por nos apontarem com teatral honestidade a possibilidade de um vasto missal com iluminuras, encadernado em alabastro em vez de
uma autêntica antítese entre valores concorrentes: por exemplo, o pergaminho, incrustado com pilares de pórfiro em vez de pedras pre-
apego à beleza arquitetônica e a busca de uma vida familiar exuberan- ciosas, e escrito por dentro e por fora em letras em ouro e esmalte”)
te e afetuosa. eles sentam-se nos cafés, leem jornais, pegam sol, discutem e roubam
Como foram sensatos os antigos sábios ao nos sugerirem que dei- uns aos outros enquanto, no alto do telhado da igreja, sem serem
xemos de fora do nosso ideal de contentamento qualquer coisa que um observadas, aas imagens de Cristo e seus anjos os protegem”.

\ wirrànrMa fl'A aruuitctipra


D o tilda de um poder que é tão duvidoso quanto» muitas vezes,
inexpressivo, a arquitetura sempre concorrerá em desvantagem peias
riquezas da humanidade com demandas utilitárias. Como é difícil justi-
ficar o custo de colocar abaixo e reconstruir uma rua medíocre mas que
serve às suas finalidades! Como é espinhoso ter de defender, diante de
necessidades mais tangíveis, os benefícios de realinhar um poste de ilu-
minação torto ou substituir uma esquadria de janela que não se encaixa
direito. A bela arquitetura nada tem a ver com as vantagens óbvias de
uma vacina ou dc uma tigela de arroz. A sua construção por conseguin -
te jamais será uma prioridade política, pois por mais que o mundo feito
pela mão do homem pudesse na sua totalidade ser, por meio dc incan-
sável estorço e sacrifício, moldado de forma a rivalizar com a praça de
São Marcos, por mais que pudéssemos passar o resto de nossas vidas na
Vil la Rot onda ou na Glass House, ainda assim estaríamos freqüen te-
mente de mau humor.

/.
As casas bonitas não falham apenas como garantia de felicidade, elas
também podem ser acusadas de não melhorarem a personalidade de
quem vive dentro delas.
rf&Hn
Parece sensato supor que as pessoas possuem algumas das caracte- LJvv • li
rísticas das construções pelas quais se sentem atraídas: se elas se ale-
gram com o charme de uma casa dc fazenda antiga com paredes dc
pedras irregulares cinzeladas, montadas com argamassa leve, apreciam
o jogo das luzes de velas nos ladrilhos decorados à mão, ficam fascina-
das com bibliotecas onde as prateleiras do chão ao teto estão repletas
de livros que exalam um doce cheiro de poeira e se contentam em dei-
tar no chão observando a borda de um intrincado tapete turcomano,
então elas sabem o que é paciência e estabilidade, ternura e suavidade,
inteligência e conhecimento da vida, ceticismo e confiança, Nós espo-
ramos que esses entusiastas se empenhem em impregnar as suas vidas Ainda ifiú/tj cstvriarmu frftfthrfitementf dc mau humor.
inteiras com os valores personificados nos objetos que apreciam. Philip lohn.son. The Glass Mouse. New Ganaan, ConnecEicuL 1949
Mas, sejam quais forem as afinidades teóricas entre o belo e o bom,
é inegável que, nu prática, casas de fazenda, pavilhões dc caça, mansões
e apartamentos à beira do rio tem abrigado inúmeros tiianos, assassi-
nos sádicos e esnobes, personalidades com uma desaíentadora indife-
rença peias disparidades entre as características manifestadas nos
ambientes qne frequentam e em suas vidas.
Pinturas devocionais da Idade Média talvez tentem nos lembrar da
tristeza e do pecado, talvez procurem nos afastar da arrogância e dos
interesses mundanos e nos tornar adequada mente humildes diante dos
mistérios e sofri mentos da vida, mas ficarão na parede de uma sala de
estar, mudas, enquanto mordomos circulam com suas bandejas de sal-
gadinhos e os assassinos tramam o próximo golpe.
A arquitetura pode muito bem trazer mensagens morais; só nao
tem poder de impô-las, Ela sugere, em vez de ditar leis. Ela nos convi-
da, c não ordena, a seguir o seu exemplo e não é capaz cie impedir a vio-
lência contra si mesma.
Deveríamos ter a gentileza de nao culpar as edificações pelo nosso
próprio fracasso em honrar o conselho que elas apenas sutil mente
proferem.

8.
E possível dizer, no fim, que a desconfiança com relação à arquitetura
gira em torno da modéstia das alegações que podem ser feiras realisti-
camente a seu favor, A reverência por construções belas nao parece
urna grande aspiração onde devemos depositar nossas esperanças de
felicidade, pelo menos quando comparada com os resultados associa-
dos ao desatar de um nó cientifico, a se apaixonar, a acumular uma for-
tuna ou a deflagrar uma revolução. Dar uma profunda importância a
um campo que tem tão poucos resultados e, no entanto, consome tan-
tos de nossos recursos, nos força a reconhecer uma inquierante e até
degradante falta de aspiração.
Por sua ineficácia, a arquitetura tem a mesma insignificância da jar-
dinagem: o interesse por maçanetas dc porta ou cornijas nos toros pode A ineficácia vuind th: inn.t caw honiut.
parecer tão ridículo quanto a preocupação com o desenvolvimento de líerimnn ffòring (dc branco) cm mm o embaixador frances t% \ direita,
moitas de roseiras ou de lavandas. E perdoável concluir que existem os generais Vuilleinin <: Miich. Ao fundo, Sttut*r< M/ffgarvtb e Dorotcin, Aíemanh
bsêeüío quin/e), c Lurmiif (I5J2) de Lucas Cran;icÍ>
causas mais grandiosas a que os seres humanos deveriam se dedicar
Entretanto, depois de nos defrontarmos com algumas das contra-
riedades mais graves que atormentam *a vida emocional e política, pode-
mos muito bem chegar a uma avaliação mais caridosa da importância
das coisas belas - ilhas de perfeição, onde é possível ouvir o eco de um
ideal que um dia t ivemos esperanças de desejar de forma permanente. A
vida talvez tenha de se mostrar para nós em algumas das suas cores
autentica mente trágicas antes que possamos começar a reagir visuai-
mente como sc deve às suas ofertas mais sutis, seja uma tapeçaria ou
uma coluna coríntia, urna telha de ardósia ou uma lâmpada. Não são os
jovens casais apaixonados que tendem a parar para admirar uma parede
de tijolos castigada pelo tempo ou unia balaustrada que desce para um
saguão, sendo o descaso por essa beleza circunscrita um corolário da
crença otimista na possibilidade de se alcançar uma variedade mais vis-
ceral c definitiva de felicidade.
Talvez precisemos ter deixado uma marca indelével em nossas
vidas, ter casado com a pessoa errada, perseguido uma carreira insatis-
fatória até a meia-idade ou perdido um ente amado antes que a arqui-
tetura comece a ter qualquer impacto perceptível em nós. Pois quando
falamos de nos “comover* diante de uma edificação, estamos aludindo
a uma sensação agridoce de contraste entre as qualidades nobres grava-
das numa estrutura e a realidade mais ampla c triste dentro da qual
sabemos que elas existem. Ficamos com um nó na garganta à visão do
belo por um conhecimento implícito de que a felicidade que ele suge-
re é a exceção.
Nas suas memórias, o teólogo alemão Paul Tillich diz que a arte
não o sensibilizava quando era um rapaz mimado e sem grandes preo-
cupações, apesar de rodos os esforços pedagógicos ele seus pais e pro-
fessores. Mas aí estourou a Primeira Guerra Mundial, ele foi convoca-
do e, num período de licença do seu batalhão (três quartos do seu con-
tingente morreriam no conflito), ele sc viu no Kaiser Friedrieh Mu-
stnitn, em Berlim, durante uma chuvarada. Afi, numa pequena galeria A ruiu vau c q s mh uí >mci assim.
superior, ele sc deparou com Madona e criança com oito anjos cantor et, de Ken Shutüeworth, Crescvht House, Wllishire, 1W7
Sandro Botticelli, eT ao encontrar com o olhar sábio, frágil, piedoso da
Virgem, surpreendeu-se ao começar a soluçar descontrola dam ente.
Ele experimentou o que descreveu como um momento de “êxtase
revelador”, as lágrimas transbordando dos seus olhos diante do con-
traste entre a atmosfera excepcionalmente terna do quadro e as lições
bárbaras que tinha aprendido nas trincheiras.
E no diálogo com a dor que muitas coisas belas adquirem o seu
valor. A familiaridade com o sofrimento acaba sendo um dos pré-
requisitos mais insólitos para a apreciação arquitetônica. Talvez,
muito além de todas as outras exigências, tenhamos de estar um
pouco tristes para que os prédios possam nos emocionar de verdade.

9.
Levar a arqtiitetura a sério, portanto, nos impõe algumas exigências
singulares e exaustivas. Ela requer que estejamos abertos a idéia de
que o ambiente em que vivemos nos afeta mesmo quando ele é feito
de vinil e seria caro e demorado melhorá-lo* Significa que somos
inconvenientcmenie vulneráveis à cor dos nossos papéis de parede e
que o nosso bom senso pode ser descarrilhado por uma colcha de
cama desastrosa. Ao mesmo tempo, significa reconhecer que os pré-
dios não são capazes de solucionar mais do que uma fração de nossas
insatisfações ou de impedir o mal de se manifestar diante do seu olhar
atento. A arquitetura, mesmo na sua forma mais consumada, será
sempre um pequeno e imperfeito (caro, tendendo à destruição e
moralrnente duvidoso) protesto contra o estado de coisas. Mais estra-
nho ainda, a arquitetura nos pede para imaginar que a felicidade
poderia muitas vezes ter uma característica despretensioso, não-
heróica, que ela pode ser encontrada numa carreira de tábuas de
assoalho ou num rastro de luz matinal sobre uma parede de gesso -
em cenas de beleza frágil e pouco dramática que nos emocionam,
porque estamos conscientes do pano de fundo mais sombrio ao qual
elas se contrapõem.
Madona e criança c o ím oito anjos cantores.
S;\ndro KorticeIU, 1477
10.
Mas, se aceitarmos a legitimidade do assunto, então uma nova e con-
trovertida série de questões se abre de repente, l emos que enfrentar
o pomo de disputa em torno do qual gira uma boa parte da história da

II.Emqueestilodevemosconstruir?
arquitetura* Temos que perguntar como seria exatamente um prédio
bonito.
Ludwig Wirtgenstein, tendo abandonado a academia por três
anos a fim dc construir uma casa para a sua irmã Círctl, em Viena,
compreendeu a magnitude do desafio, <lVocê pensa que a filosofia é
diííeil”, observou o autor de Trac tatus Logico Pb ilosophicus', “mas eu lhe
digo, ela não é nada comparada com a dificuldade de ser um bom
arquiteto,”
1*
O que é uma construção bonita? Ser moderno é achar esta pergunta
estranha e talvez impossível de responder, a própria noção de beleza já
parece um conceito condenado a inflamar discussões estéreis e infantis.
1
Como alguém pode dizer que sabe o que é atraente? Como alguém !

pode julgar entre pretensões de estilos diferentes que concorrem entre


i fr.
si ou defender uma escolha particular contra gostos alheios contrários?
*í"
A criação do belo, que um dia já foi considerada a principal função do ff?

arquiteto, silenciosamente evaporou-se dos debates profissionais sérios


e retraiu-se para um confuso imperativo de ordem íntima*

2. ■'
j. •
Nem sempre se considerou tão difícil construir da forma bela. Por mais ?_

de mil anos descontínuos na história ocidental, um prédio bonito era
sinônimo de construção clássica, uma estrutura com uma frente seme- % i-

lhante a um templo, decorada com colunas, proporções repetidas e


uma fachada simétrica.
Os gregos deram origem ao estilo clássico, os romanos o copiaram
e desenvolveram e, depois de um intervalo de uns mil anos, as classes
educadas da Itália renascentista o redescobriram. Da península, o clas- i-

sicismo se espalhou para o norte e para o oeste, assumindo sotaques


■s *•
locais, e foi expresso em novos materiais. As construções clássicas sur-
i
giram em lugares tão distantes quanto Helsinki e Budapeste, Savannah
e São Perersburgo. A sensibilidade foi aplicada a interiores, em cadei- i

ras, tetos, camas e banheiros clássicos. r* -


£

Embora os historiadores normalmente se interessem pelas dife-


renças entre os diversos tipos de classicismo, são as semelhanças que,
no fundo, mais surpreendem. Durante centenas de anos houve uma
quase unanimidade quanto a como construir uma janela ou uma porta,
como traçar colunas e frontões triangulares, como relacionar quartos
com corredores e moldar peças de ferro e frisos - hipóteses codificadas
Rrgrus pata colunas dássims.
pelos arquitetos eruditos da Renascença e popularizadas em com- Ilustração arquitetônica de Denis Díderot, editor. En<ydoprdiey 1780
pêndios para construtores comuns.
Esijur.uU: O Arco de Comtantino, Roma, c. 315 d.C. Es^ucrda: Maium Ciirrée, Níines, t\ 130 <LC.
Direita: Fachada posterior de Robert Adam, Kcdlcston Hall, 1765 Dirett*: Towti Hall; Birmingliauí, 1832, de joseph Hansoiii

Tão forte era este consenso que cidades inteiras adquiriram uma fiel adaptação, montada no meio de uma cidade industrial, da Maison
unidade de estilo que se estendia por uma série de praças c avenidas. Carrée romana, em Mimes (<:. 130 d.C.).
Uma linguagem estética datando de antes do Templo de Apoio, em Por conseguinte, uma boa parte do mundo criado peio homem
Delfos, acabou enfeitando as casas das famílias de contadores em no começo do período moderno não abalou, na sua aparência exter-
Edimburgo e advogados na Filadélfia. na pelo menos, muitas das hipóteses arquitetônicas dos contemporâ-

Poucos arquitetos clássicos ou seus clientes sentiram um impulso neos do imperador romano Marco Aurélio, ressuscitados por um

para serem originais. A fidelidade ao cânone era o que importava; repe- passe de mágica.

tição era a norma. Quando Robert Adam projetou Kedleston Hall


(1765), foi uma questão de orgulho para ele inserir uma reprodução
exara do Arco de Constantino (<c. 315 d.C.) no meio da fachada poste- Fratando-se de casas mais simples, mais baratas, houve de novo um
rior. A High School, dc Thomas Hamilton, em Edimburgo (1825), consenso quanto ao modo mais adequado de se construir, embora

embora construída com o cinza sombrio do arenito de Craigleith, sob o neste caso o cânone tenha resultado não de uma visão cultural comum,
cenário sepulcral dos céus escoceses, com vigas cie aço sustentando o mas de uma infinidade dc limitações.

telhado, foi louvada pela habilidade com que imitou a forma do Templo A primeira foi o clima que, na falta de uma tecnologia economica-

Dórico do Partenon, em Atenas (c. 438 a.C.). O campus Thomas mente viável que permitisse resistir a de, em geral ditava um cardápio
jefferson da Universidade da Virgínia, em Charlottesville (1826), austero de opções para a forma mais sensata de construir uimi parede,
inspirou se sem constrangimentos no Templo Romano de Fortuna montar um telhado ou erguer uma fachada. O custo do transporte de
Vi ri lis (c. 100 a.C.) e nos Banhos de Diocleciano (302 d.C.), enquanto a materiais limitava igual mente as escolhas estilísticas, obrigando a
a nova prefeitura de Joseph Hansotn, em Birmingham (1832), foi urna maioria dos proprietários n aceitar sem reclamações as pedras, madei-
ras ou barro disponíveis. As dificuldades de viajar também impediam a
divulgação de métodos de construção alternativos. O custo das impres-
sões fazia com que poucos vissem mais du que uma imagem de como
eram as casas em outras partes do inundo (o que explica por que, em
muitas obras de arte religiosa do norte da Europa, Jesus nasce em algo
parecido com um chalé).
As limitações deram origem a fortes identidades arquitetônicas
locais. Dentro de um certo raio, todas as casas eram construídas com
um determinado tipo de material nativo da região, que cedia a sua ubi-
qüidadc a outro tipo no lado oposto de um rio ou de uma montanha.
Urna casa comum de Kent poderia assim se distinguir imediatamenie
de outra na Cornualha, ou uma propriedade rural no Jura se distingui-
ria de outra em Engadíne. Na maioria das áreas, as casas continuaram
a ser construídas como sempre tinham sido, usando o que havia ao
redor, com uma ausência de consciência estética, o modesto orgulho
do seu proprietário se baseava em primeiro lugar na sua capacidade de
proporcionar abrigo.

4.
E ai, na primavera de 1747, um rapaz efeminado com um gosto pelo
luxo» golas de renda e fofocas comprou de um ex-cocheiro um chalé
com cerca de 16 hectares de terra, em Twkkenham, nas margens do
rio Tamisa - e se meteu a construir para si próprio uma casa dc campo
que complicou muito n noção dominante do que era uma casa bonita.
Muitos arquitetos poderiam ter oferecido a Horace Walpole, o
filho mais novo do primeiro-ministro britânico, Sir Robert, algo con-
vencional para a sua nova propriedade: uma mansão ao estilo de
Andréa Palladio, talvez um pouco parecida com a casa de seu pai,
floughton Hall, na costa norte de Norfolk. Mas na arquitetura, assim
como nas roupas, conversas e escolha de carreira, Wstlpolc se orgulha- Pothos vüttit mu is do tjut unta imtígcw (k couto ct a t/t as enuts cm outras partes Jo vtuttdu.

va de ser diferente. Apesar da sua educação clássica, o seu verdadeiro Sm.ii Iíwi.lit: Plact\ 1 enicnicu, Kcitl, jtiídt» (k# séeuln cie/.esse is

interesse era pelo período medieval, que o emocionava com a sua ico-
nografia dc abadias cm ruínas, noites enluaradas, cemitérios e (espe-
Untii novri ivMprrrrts/io de helext dom estiai. ! hc Long í íaliery, Strsiwberry IXili
J-Jnracc Walpole, Strawbcriy Hill,'] wickenham, 17 >0-92

cialmente) cruzados vestidos com armaduras. Walpole, portanto, Quando terminou» sendo por temperamento avesso a manter em
resolveu construir para si próprio a primeira casa gótica do mundo. silencio as suas realizações, Walpole convidou todo inundo que ele
Como antes dele ninguém havia tentado aplicar o vocabulário conhecia para ver a casa, o que incluía quase todos os formadores de
eclesiástico da Idade Média a um ambiente doméstico, Walpole preci- opinião e a pequena nobreza local. Por precaução, deu bilhetes de
sou ser criativo. Ele tez a sua lareira nos moldes da tumba do arcebispo entrada para o publico em geral também.
Bouchier, na Catedral de Canterbury, copiou o projeto das prateleiras Depois de uma visita, muitos dos atônitos convidados de Walpole
da biblioteca do túmulo de Aymer cie Valence, na Abadia de West- começaram a pensar se eles, também, não ousariam abandonar o estilo
iniiister, e se inspirou para o teto do seu salao principal nos qinidrdó- clássico cm lavor do gótico. A moda começou timidamente, com a
lios e rosáceas da Capela de Henrique VH. construção de ma is unia casa de campo nos arredores da cidade ou á
beira-mar, mas, em poucas décadas, estava acontecendo uma revolução
no gosto que abalaria a essência das premissas nas quais antes se apoia-
ra o consenso clássico. Prédios góticos começaram a aparecer na Grã-
Bretanha, depois pela Europa e América do Norte. Transcendendo as
suas origens como a fantasia de um diletante, o estilo adquiriu serieda-
de e prestígio arquitetônico, a ponto de, apenas uns cinqüenta anos
depois de Walpole inovar em Strawberiy Hili, os defensores do gótico
afirmarem - bem ao estilo de como os clássicos fizeram antes deles -
que a sua era a mais nobre e apropriada arquitetura de todas, a escolha
natural para prédios domésticos tanto quanto para parlamentos e uni-
versidades das grandes nações.

5,
Os fatores que promoveram o renascimento do gótico - uma consciên-
cia histórica maior, melhoria do sistema viário, uma nova clientela
desejando iinpacientemente variedade - em breve despertaram a curio-
sidade por estilos arquitetônicos de outras eras e terras. No início do
século dezenove, na maioria dos países ocidentais, quem pensasse em
construir uma casa via-se diante de um conjunto sem precedentes de
escolhas quanto à sua aparência.
Os arquitetos vangloriavam-se de suas habilidades para criar casas
nos estilos indiano, chinês, egípcio, islâmico, tirolês ou jacobino, ou
em qualquer combinação deles. Entre os mais versáteis dos novos polí-
matas estava um inglês chamado Humphry Repton, famoso por pre-
sentear clientes hesitantes com desenhos detalhados das muitas opções
estilísticas disponíveis para des.
Para os de recursos mais modestos, foram criados novOsS
compêndios, figurando entre os mais populares The Evcyclopaedia of
Cottage, Farm and Villa Arcbitecture (1833), de John Loudon, que ofe-
.4 tuais nobre c apropriada an/uiteturti de todití.
íinre Scfirií]!, Parlanicmo, Budapeste, 1904
reciam, àqueles que construíam as próprias casas, plantas que podiam
scr usadas para erguer construções de qualquer parte do mundo. Uma
iniciativa que rapidamente acabou com as arquiteturas regionais.
Íf H]E2CIA3T fr<DTHI€

Opções para a sua próx ima casa.


Huniphry Rcpion, Cbaracters of lhuscs% 1816
Do esquerda poro a direkcM Chalé cm estilo suíço e chalé no estilo Old English
De John Loinlon, The Eucydoptwdia íi/XVmç e, Farm twd )'illa Artbtteetut,ex JH33

As mudanças no modo como as propriedades evoluíam abriam


novas oportunidades para o ecletismo. No século dezoito, Londres,
como quase todas as cidades européias, expandiu-se basicamente pelo
esforço de aristocratas proprietários de terras, que deram seus nomes
às quadras que abriram em suas antigas propriedades rurais e campos:
Lorde Southampton, Conde de Bedford, Sir Ri eh a rd Grosvenor e Um a/nsatw Jtíhico de beleza rw dvsupat 'ecimen to.
Duque de Portland. Estes homens tinham gostos em comum: sentiam- Bcilíurtl Son.in:, Londres, 1 7i$í

se à vontade com o ia tini c o grego, estudavam Cícero e Tácito, c


defendiam sincera mente o estilo clássico. Quando o Conde de Bedford
firmou contratos para a construção da praça que leva o seu nome, em
1776, as suas estipulações revelaram uma obsessão quase maníaca pela
harmonia clássica, estabelecendo normas para a altura exata de cada
andar, a espessura de cada esquadria de janela, a cor dos tijolos e o ripo
específico de madeira a ser usada nos assoalhos (“a melhor tábua de
jVlcruel ou Riga sem uma única mancha de seiva”). Tão preocupado
estava o conde com as proporções e a precisão clássicas que costumava
acordar de madrugada c sair com uma tesoura de jardinagem para se
certificar de que as moitas no centro da sua praça estivessem podadas
corrcumicmc pura crescerem de forma simétrica.
Noras tritões de beleza.
No entanto, no século seguinte, nobres e aristocratas deixaram do
John Fouhion, K.«írr Sm.vr, Devnnpnru
participar da especulação imobiliária, mesmo com a explosão da de- Piynjouth, IS24

:F.J■
Fachada principal, Casde Warri, Sirangford Longh, 1767 Fachada posterior. CastJe W aid

manda por moradias. Os que vieram depois deles náo eram típicos lei- ram construir uma casa. Ambos apaixonados por arquitetura, o
tores de Cícero e Tácito. Com mais frequência, eram empreendedores Visconde Bangor e Lady Arme Bligh descobriram, não obstante, que
com urna queda pela variedade e a extravagância. Instinti vam ente des- náo conseguiam concordar quanto a um estilo apropriado. O viscon-
denhosos da sobriedade marcial da tradição clássica, eles competiam de era uni classieistn. Ele queria algo com três alas, colunas embuti-
para atrair clientes pela jovialidade e exuberância de seus empreendi- das, proporções palladianas e janelas encimadas por Irontões triangu-
mentos, como simboliza uma rua em Plymouth que combinava, dentro lares. Annc, em contraste, era mais entusiasmada pelo gótico, prefe-
de apenas algumas centenas de metros, uma fileira de casas em estilo rindo telhados com ameias e pináculos, janelas cie arco ogival e qua-
dri fólios» Ela ouvira falar dos tetos de Strawberry Mi 11 e desejava
romano corindo, uma prefeitura dórica, uma capela oriental, duas resi-
imiito que os seus fossem iguais. A briga foi ficando cada vez pior, até
dências particulares no estilo jónico e uma biblioteca egípcia.
que o arquiteto do casai surgiu com uma solução de engenhos idade
saloniônica; ele dividiria a casa em duas. \ metade da frente seria
6.
construída no estilo clássico, os fundos no gótico. O acordo conti-
O único problema da escolha sem restrições, entretanto, é que ela
nuou no interior, com u sala de música e a escadaria em estilo clássi-
tende a nau ficar ião longe assim do caos total.
co, enfeitadas com frisos dóricos c colunas, enquanto o bondoir e os
O risco inerente a tamanha liberdade surgiu primeiro e notoria-
quartos particulares tinham um ar gótico, com tetos abrindo-se em
mente nas praias de um tranquilo lago na Irlanda do Norte, onde, em
leque e lareiras em arcos pontudos.
meados cio século dezoito, um aristocrata local c a sua mulher decidi-
Os críticos mais sensíveis ficaram pasmos e, com esses prédios em era um saguão que permitisse que a fumaça se dispersasse com segu-
mente, começaram uma ardente busca por um meio de restaurar uma rança, deixasse entrar a maior quantidade de luz natural e acomodasse
medida de consenso visual. “Sofremos de um carnaval de arquitetura”, uma multidão constante de pessoas viajando. Eles almejavam que as
queixou-se Augustus Pu gin, em 1836. “O bom senso enlouqueceu. fábricas pudessem abrigar maquinaria pesada e que os navios a vapor
Cada arquiteto tem a sua própria teoria/’ Em 1828, um jovem profis- transportassem cargas de passageiros impacientes com pontualidade
sional alemão chamado I Icinrieh Hiibsch publicou utn livro cujo título por mares agitados. Mas não pareciam se preocupar muito .se haveria
caracterizava o dilema de toda uma era: ln What Stylc Shall We Build? capitéis dóricos ou jónicos decorando as galerias superiores de uin
(Em que estilo devemos construir?) Deveria existir uma maneira dos navio, se um dragão chinês pareceria agradável na extremidade de uma
defensores dos estilos gótico, Oid English e suíço resolverem suas dis- locomotiva ou se as obras de distribuição de gás nos arredores da cida-
putas; tinha de haver um jeito de saber se era melhor decorar a sala de de seriam feitas num estilo toscano ou islâmico.
jantar com cadeiras egípcias antigas ou chinesas; um jeito de dar razão No entanto, apesar desta indiferença, os novos homens da ciência
a Lady Anne ou ao Visconde Bangor - e assim garantir que ns casas pareciam capazes de construir as estruturas mais impressionantes et em
nunca mais fossem construídas voltadas para duas direçòes diferentes. muitos casos, sedutoras da sua confusa era.
Mas onde encontrar esse princípio? Em que estilo exatamente os
arquitetos deveríam construir? 8.
A filosofia dos engenheiros desafiava tudo que a arquitetura profissio-
7, nal sempre defendeu. “Transformar algo útil, prático, funcional cm
À resposta que surgiu no final não foi reohnente uma resposta; pelo uma coisa bela, esse é o dever da arquitetura”, insistia Karl Friedrich
contrário, foi uma advertência de que talvez fosse irrelevante e até Schinkel. “A arquitetura, quando distinta da mera construção, é a
indulgente levantar essa questão. decoração da construção”, ecoava Sir George Gilbert Scott. Se o
A proibição de discussões sobre o belo na arquitetura foi imposta Palácio do Doge merecia ser classificado como excelente arquitetura,
por uma nova geração de homens, engenheiros que só tinham alcança- não era porque o telhado era impermeável ou porque dava aos funcio-
do reconhecimento profissional no fim do século dezoito, mas que nários do governo veneziano o número de salas necessário para as reu-
depois disso a Iça ram-se rapidamente a uma posição de destaque na niões, mas sim, os arquitetos sugeriam defensivamente, porque exibia
construção dos novos prédios da Revolução Industrial. Dominando as entalhes no seu telhado, um delicado arranjo de tijolos brancos e cor-
tecnologias do ferro e do aço, do vidro laminado e do concreto, des de-rosa nas suas fachadas, e arcos intencionalmeme pontudos, esguios
despertaram interesse e inspiraram admiração com suas pontes, hanga- e cônicos por toda parte - detalhes que não caberiam num projeto
res de estrada de ferro, aquedutos c docas. Mais singular ainda do que feito por um profissional diplomado na Ecole Polytechnique, em
as suas habilidades, talvez, foi o fato de que eles pareciam realizar tais Paris, ou na Academia de Engenharia de Dresden. Compreendia-se
projetos sem nunca perguntar diretamente a si mesmos qual o melhor que a essência da grande arquitetura estava no que era funcionalmen-
estilo a ser adotado. Encarregados de erguer uma ponte, eles tentavam te desnecessário.
projetar a estrutura mais leve possível, capaz de cobrir o maior vão com
o menor custo. Quando construíam uma estação de trem, o objetivo
. / trrtlcv/biçtú dít dtsfirisàti (steiiaf.
John Fouler, Bwiiumm Baker. For th RatJway Briilgv.
construção \h vijjpi tcntr.il, seicmlirci ilc IHtfO
9.
Os princípios da engenha ri a talvez tenham contestado hru ta Imente os
da arquitetura, mas uma sonora minoria de arquitetos do século deze-
nove, não obstante, percebeu que os engenheiros eram capazes de lhes
fornecer a chave crítica para a sua salvação - pois o que estes homens
tinham, e que lhes faltava dolorosamente, era a certeza. Os engenhei-
ros tinham chegado a um método aparentemente inexpugnável de ava-
liar a sensatez de um projeto: eles se sentiam confiantes em declarar
que uma estrutura era correta e honestei, desde que executasse com efi-
ciência as suas funções mecânicas; e falsa e imoral na medida cm que
estivesse sobrecarregada de pilares que não sustentavam nada, estátuas
decorativas, afrescos ou entalhes.
Discutir o belo considerando-se a sua função prometia desviar os
arquitetos de um lamaçal de disputas desconcertantes e insolúveis
sobre estética para uma busca nâo litigiosa da verdade tecnológica, pois
garantia ser tão estranho argumentar sobre a aparência de um prédio
quanto questionar a resposta de uma simples equação algébrica.
Com princípios funcionais figurando como uma nova medida de
valor, toda a história da arquitetura poderia ser examinada e suas
obras-primas reavaliadas em termos de seus relativos graus de veraci-
dade e falsidade. Os romanos eram considerados desonestos por terem
acrescentado colunas ao Coliseu, porque estes pedaços de pedra caros
e elegantemente esculpidos $6 fingiam sustentar os andares superiores,
enquanto de fato - como qualquer engenheiro podia ver - roda a estru-
tura apoiava-se apenas nos arcos.
Igualmence, Johann Balthasar Neumann havia mentido cm quase
todos os aspectos da sua igreja Vier/ehnheiJigen Pilgrirmge, cm Banz.
Aqui as paredes internas pareciam sustentar o prédio, mas na realidade
essa tarefa cabia a uma estrutura separada e oculta. Até o teto em abó-
“TransfomHar alga útil, prático, funcional etn unut coha belat esse é o dever da arquitetura. ’ bada, pintado, nada tinha a ver com o telhado de verdade, pois era uim
Palácio do Doge (detalhe), Veoeva, 134(1-142()
simples camada de estuque aninhada sob o verdadeiro, instalado dc
forma convencional.
Uw reto mnirmm.
Jolunn Brtlrivtsiir Neumann, s^rofíi Vier/Âihnheiligeri Pil^rimngc, Ban/., 1/72
renome internacional por suas opiniões categóricas a respeito da
arquitetura.
“Nossos engenheiros são saudáveis e viris, ativos e úteis, equilibra-
dos e felizes na sua obra”, ele exclamou em Por uma arquitetura (1923),
enquanto “nossos arquitetos sâo pessoas desiludidas ou desemprega-
das, orgulhosas ou rabugentas. Isto porque em breve não haverá mais
nada para eles fazerem. Não temos mais dinheiro para erguer suveni-
res históricos. Ao mesmo tempo, rodo mundo precisa tomar banho!
Nossos engenheiros proporcionam estas coisas e, portanto, eles serão
os nossos construtores.”
Le Corbusier recomendava que as casas do futuro fossem ascéticas
Àshmolean and Tnylorian Instiuite, de Charles Cockerell, Oxtbrd, Í840 e limpas, disciplinadas e econômicas. O seu ódio por qualquer espécie
de decoração chegava ao ponto de sentir pena da família real britânica
pela enfeitada carruagem dourada na qual ela ia abrir o Parlamento
Da mesma forma, julgava-se que Charles Cockerell havia iludi-
do e enganado quase vergonhosamente no seu projeto para o Ash-
mole a n Museum e o Taylorian Institute, em Oxford. Seu crime
tinha sido o de colocar pesadas colunas jónicas, capazes de suportar
quatro andares de cantaria, contornando o exterior do prédio, onde
não sustentavam nada mais pesado do que vasos e estátuas, deixando
o verdadeiro peso da estrutura a cargo de um conjunto de colunas
embutidas nas paredes.

10.
Como seria uma casa cujo arquiteto tivesse renunciado a qualquer inte-
resse pelo belo a fim de se concentrar exclusivamente no funcionamen-
to mecânico? Se o seu criador estivesse certo de suas intenções, ela tal-
vez se parecesse com Villa Savoye.
Na primavera de 1928, um casal parisiense chamado Pierre e
Emilie Savoye procurou Le Corbusier, um arquiteto suíço de 41 anos
de idade, e lhe pediu para projetar uma casa de campo para eles e o
filho pequeno Roger, num terreno arborizado que possuíam às mar-
A ROMA DOS HORRORES
gens do Sena, em Poissy, a oeste de Paris. Le Corbusier a esta altura
De Le (!orhu<iiei\ Pm' uma arquitetura, P>23
da sua carreira já construíra 15 residências particulares e adquirira

I
todos os anos. Ele sugeria que eles jogassem a monstruosidade entalha-
da do alto dos rochedos de Dover e aprendessem a viajar pelo seu reino
num carro de corrida Hispano-Suiza .1911. Ele até zombava de Roma,
o tradicional destino para a educação e aperfeiçoamento dos jovens
arquitetos* a apelidando de a “cidade dos horrores”, “a maldição dos
semi-analfabetos” e “câncer da arquitetura francesa” - por conta da
profanação de princípios funcionais com o excesso de detalhes barro-
cos, pinturas murais e es tatuaria.
Um ventilador dc baixa pressão Uma turbina elétrica de 40 mil quilowatts
Para Le Corbusier, a arquitetura verdadeira c genial - isso é, a
arquitetura motivada pela busca da eficiência - era mais fácil de ser DeLe Corbusier, Por uma arquitctura> 1 923
encontrada numa turbina elétrica dc 40 mil quilowatts ou num ventila-
dor de baixa pressão, Estas máquinas foram homenageadas em seu de Lambert fazendo a volta na Torre Eiffel - como o momento mais
livro com as fotos que antes* quando se escrevia sobre arquitetura, esta- significativo da sua vida. Ele observou que as exigências para voar
vam reservadas para as catedrais e teatros de ópera. necessariamente deixavam os aeroplanos livres de qualquer tipo de
Certa vez, quando o editor de uma revista lhe pediu para falar decoração supérflua e, assim, involuntariamente os transformavam em
sobre como era sua cadeira preferida, Le Corbusier citou o assento de peças arquitetônicas eficazes. Colocar uma estátua clássica em cima de
unia cabine de avião. E descreveu 3 primeira vez que viu urn aeroplano, uma casa era um absurdo tão grande quanto acrescentar uma delas a
na primavera de 1909, voando nos céus de Paris - era o aviador Comte um avião, mas, pelo menos, espatifando-se no solo por causa deste peso
a mais, a aeronave tinha a vantagem de deixar evidente o contra-senso.
“Uavhv accuse'\ ele concluiu.
Mas, se a função de um avião era voar, qual era a da casa? Le
Corbusier chegou (“cientificainente” ele garantiu aos seus leitores) a
uma lista simples de requisitos, todas as outras ambições para além
deles não passavam de “antiqualhas românticas”. A função dc uma casa,
ele escreveu, era proporcionar: “1. Proteção contra o calor, o frio, a
chuva, ladrões e curiosos. 2. Um receptáculo de luz e sol. 3. Um deter-
minado número de células apropriadas para cozinhar, trabalhar e ter
uma vida pessoal.”

11.
Coisas como estavam sendo construídas ao mesmo tempo que as nossas ferrovias. Por trás de um muro, no cume de uma colina em Poissy, um caminho
de cascalho curva-se por entre uma mata densa antes dc sair numa cla-
De Le Corbusier, The City of TvmomrtD and Its Phmnin^ 1925
reira, no meio da qual ergue-se uma caixa retangular, branca e esguia,
com janelas en vi d iaçudas nas laterais* sustentada acima do cliao por
uma série de colunas incrívelmenre delgadas. Uma estrutura no alto
da Vi 11 a Savoyc parece uma caixa-d'água ou cilindro de gás, mas a um
olhar mais atento ela revela ser um terraço com uma parede de prote-
ção em semicírculo. A casa parece uma peça de um mecanismo preci-
so, primorosa mente trabalhado, um objeto industrial de finalidade
desconhecida, com superfícies brancas impecáveis que num dia claro
refletem o sol com a intensidade luiutnescente das casinhas de pesca-
dores nas ilhas do Egeu. Parece que a casa nuo é mais do que uma visi-
tante temporária e que a estrutura no alto podería a qualquer momen-
to receber um sina) que acionasse os seus motores escondidos c a
erguesse lema mente por cima das árvores e vilas historicamente esti-
liza ti as ao redor, iniciando dc uma longa viagem dc volta para uma
galáxia remota,
A influência da ciência e da aeronáutica continua no interior. A
porta da frente, dc aço, abre para um hall de entrada tá o limpo, claro c
nu quanto uma sala de cirurgia. Há ladrilhos no cl vão, lâmpadas sem
acabamento no teto e, no meio do hall, uma pia convidando as visitas a
se lavarem das impurezas do mundo exterior. Dominando a sala, uma
iavoytí, Poissy,
rampa larga com um corrimão tubular simples leva aos aposentos prin-
cipais. Aqui, uma cozinha grande está equipada com todas as conve-
niências da sua era. Janelas de correr deixam entrar a luz natural nos na e dois sofás na sala dc estar, A vida doméstica hoje em dia está
quartos. Os banheiros são santuários dc higiene e atletismo; a tubula- sendo paralisada pela deplorável noção de que temos de ter móveis*,
ção exposta poderia estar em um submarino. o arquiteto protestou. “Esta noção deve ser eliminada e substituída
Mesmo nestes espaços íntimos, o clima continua técnico e auste- pela de equipamento* ”
ro. Não há nada irrelevante ou decorativo aqui, nenhuma rosácea ou “O que [o homem moderno] precisa é de uma cela de monge, bem
cornija, nenhum floreio 011 ornamento. As paredes encontram os iluminada e aquecida, com um canto de onde possa olhar as estrelas”,
retos em ângulos retos perfeitos, sem a atenuante influência de san- Le Corbusier escreveu. Quando os construtores terminaram a obra, a
eas. A linguagem visual inspira-se exelusivameme nas fábricas, a luz família Suvoye tinha motivos para se sentir confiante de que na casa
artificial é proporcionada por lampa das industriais. Há poucos projetada fiara eles pelo menos essas aspirações estariam perfeita men-
móveis, pois Le Corbuster recomendava aos seus clientes que tives- te satisfeitas.
sem o mínimo possível de pertences, reagindo com injuriado alarme
quando Madaine Savoyc expressou o desejo de encaixar uma poltro-
Le Corbusier, Villu S«)v'<>yt, Puiíisy. 1931
Não é que eles tenham perdido de vista a importância de despertar
Governado por um etos concebido por engenheiros, o modernismo sentimentos, a sua divergência era, pelo contrário, com o tipo de senti-
disse ter dado a resposta definitiva para a questão do belo na arquitetu- mentos que estilos arquitetônicos anteriores haviam provocado.
ra; o objetivo de uma casa não era ser bela, mas sim funcionar bem. Com a sua escadaria central na Villa Savoye, Le Corbusier- assim
No entanto, a nítida separação entre a discutível importância da como Ànge-Jacques Gabriel no pavilhão em estilo clássico do Petít
aparência e a mais evidente importância da funcionalidade sempre Trianon, em Versalhes, alguns quilômetros ao sul - estava tentando
girou em torno de uma distinção ilusória. Embora à primeira vista fazer algo mais do que apenas levar as pessoas até um andar acima. Ele
associemos a palavra “função* com a provisão eficiente de abrigo físi- estava tentando sugerir um estado de alma.
co, no final das contas c improvável que respeitemos uma estrutura que Apesar das suas pretensões a uma abordagem pura mente científica
não faça mais do que nos manter secos c aquecidos. e racional, a relação dos arquitetos modernistas com o seu trabalho
Nós queremos que quase todas as construções não apenas exerçam continuava sendo cm essência romântica: eles procuravam sustentar
uma função específica, mas também tenham uma certa aparência, que com a arquitetura um estilo de vida que lhes agradava. Seus prédios
contribuam para um determinado estado de espírito: de religiosidade domésticos eram concebidos como palcos para atores num drama idea-
ou erudição, mstícidade ou modernidade, comércio ou domesticidade. lizado sobre a existência contemporânea.
Podemos desejar que gerem uma sensação de segurança ou excitação,
de harmonia ou contenção. Podemos esperar que nos liguem ao passa-
do ou sejam como um símbolo do futuro, e vamos reclamar, não menos
do que faríamos com relação a uin banheiro que não funciona direito,
se este segundo nível de função, estético e expressivo, não for atendido.
Numa sugestão mais abrangente, John Ruskin propôs que busque-
mos nos nossos prédios duas coisas. Queremos que eles nos abriguem.
E queremos que ei es falem conosco — que falem conosco sobre aquilo
que achamos importante e precisamos ser lembrados.

13.
Na realidade, os arquitetos do movimento modernista, como todos os
seus predecessores, queriam que suas casas falassem. Não só do século
dezenove, ou da vida de privilégios e aristocrata, ou ainda da Idade
Média ou Roma Antiga. Eles queriam que suas casas falassem do futu-
ro, com sua promessa de velocidade e tecnologia, democracia e ciência.
Eles queriam que suas poltronas evocassem carros de corrida e aviões, Duas escadarias pura criar dois estados de espírito diferentes,
queriam que suas lâmpadas lembrassem o poder da indústria e os seus Ksqjerda: Le Pelii Trianon, Versalhes, 1768
Direita: Villa Savoye, Poissy, IV $1
bules de café, u dinamismo dos trens de alta velocidade*
14.
Tão forte era o interesse estético tios modernistas que cie várias vezes
prevalecia sobre considerações a respeito da eficiência. A Vi 11a Savoye
podia parecer uma máquina com intenções práticas, mas era na realida-
de uma extravagância com motivações artísticas. As paredes nuas foram
feitas à mão por artesãos com argamassa caríssima importada da Suíça,
eram delicadas como rendas e cão destinadas a gerar sentimentos quan-
to as naves incrustadas de jóias de igrejas da Contra - Reforma.
Pelos próprios padrões do modernismo, a cobertura da Villa
Savoye era igualmente, e ainda mais desastrosamente, desonesta. A
despeito dos protestos iniciais dos Savoye, Le Corbusier insistiu -
supostamente com base em argumentos técnicos e econômicos apenas
- que uma cobertura plana seria preferível a uma pontuda. Seria, ele
garantiu aos seus clientes, mais barato para construir, mais fácil para
conservar e mais fresco no verão, e Ma da me Savoye poderia fazer a sua
ginástica em cima dela sem ser importunada pelos vapores úmidos que
emanavam do térreo. Mas a família se mudara havia uma semana ape-
nas quando a cobertura por cirna do quarto de Ruger apresentou um
vazamento, deixando passar tanta água que o menino contraiu uma
infecção pulmonar, que se transformou em pneumonia, e ele acabou
sendo obrigado a passar um ano recuperando-se mim sanatório em
Chamonix. Em setembro de 1936, seis anos depois do término oficial
da construção da Villa, Madame Savoye resumiu os seus sentimentos
sobre o desempenho da cobertura plana numa carta (respingada de
chuva): “Está chovendo no hall, está chovendo na rampa, e a parede da
garagem está totalmente encharcada. E o que é pior, continua choven-
do no meu banheiro, que inunda com o mau tempo, pois a água passa
através da clarabóia.” Le Corbusier prometeu que o problema seria
sanado imediatamente, e aproveitou a oportunidade para lembrar à sua
Lm palio mvnutdu para afores nnm drama idealizado sobre a existência contemporânea. cliente que o projeto para a cobertura plana fora recebido com entu-
Propaganda da Mercedes-Benz, 1927, rendo ao fundo d Duoble-hcmse,
siasmo por críticos especializados em arquitetura no mundo inteiro:
de Le Corbusier e Picrrejcariiieret, VVeissruhofsiedlung» Snmgart, 1927
“Os senhores deveriam colocar um livro sobre a mesa no hall do pri-
meiro andar e pedir a todos os visitantes para registrarem por escrito os
Se os modernistas no íntimo desenhavam tendo em mente o belo, por
que justificavam o seu trabalho principaimente cm termos técnicos?
O medo parece ter sido a origem da sua discrição. O fim da crença
num padrão universal de beleza havia criado um clima em que nenhum
estilo era imune ás críticas. Objeções à aparência das casas modernistas,
expressas por adeptos da arquitetura gótica ou tirolesa, não poderiam
ser desprezadas sem provocar acusações de arbitrariedade e arrogância.
Na estética, como na política democrática, o árbitro final se tornara
uma figura vaga.
Daí a sedução de uma linguagem científica para se defender dos
difamadores e convencer os indecisos. Até o Deus do Antigo Testa-
mento, diante das contínuas queixas das tribos de Israel, precisava às
vezes tocar logo num pedaço de arbusto do deserto para inspirar res-
peito na sua platéia. A tecnologia seria a lenha ardente dos modernis-
tas. Falar de tecnologia tratando-se da casa de alguém era apelar -
agora que a influencia do cristianismo minguava e a cultura clássica
BeIo> mas não ã prova de chuva, estava sendo ignorada - à força cie maior prestígio na sociedade, res-
Cobertura, Villa Savoye, 1931 ponsável pela penicilina, pelos telefones e aeroplanos. A ciência, pelo
visto, determinaria até a inclinação do telhado.
seus nomes e endereços. Verão que bela coleção de autógrafos será.”
Mas esta sugestão não serviu de consolo para a insatisfeita família 16.
Savoye. “Após imímeros pedidos de minha parte, o senhor finalmente Mas, na verdade, a ciência raramente é tão categórica. Em 1925, o
reconheceu que esta casa que construiu em 1929 é inabkável”, re- arquiteto e projetista Marcei Breuer apresentou uma cadeira que foi
preendeu Madame Savoye no outono dc 1937. “À sua responsabilida- anunciada como a primeira solução sobriamente lógica para “o pro-
de está em jogo e eu não tenho que arcar com as despesas. Por favor, blema de sentar1’. Cada parte da cadeira B3 era o resultado, ele expli-
torne-a habitável imediatamenre. Espero sinceramente não ser preciso cou, de um esforço imenso para banir "o extravagante em favor do
recorrer à justiça.” Só a deflagração da Segunda Guerra Mundial e a racional”.
consequente fuga da família Savoye de Paris salvou Le Corbusier de ter O assento e o encosto da B3 eram de couro pela sua durabilidade;
de responder no tribunal pelo projeto da sua máquina-de-morar prati- a forma angular inclinada era a resposta inevitável para as necessidades
camente inabitável, embora belíssima. das vértebras humanas; e a sua estrutura em aço, por ter uma resistên-
cia cem vez maior do que a madeira, não ia lascar nem rachar nunca.
Mas o esforço de Breuer para encontrar uma justificativa científica Uma cada*a ditada pela ciência f
Cadeira B5, de Marcei Breuer. 1925
para a sua cadeira nào foi capaz de transpor uma realidade inexpugná-
vel: embora seja necessário recorrer a materiais específicos quando sc
constrói uma ponte, mio existe uma necessidade técnica corresponden-
te limitando a imaginação de quem projeta um móvel para a sala de
estar, que só precisa sustentar o peso de um corpo humano - e, portan-
to, terá o mesmo sucesso se for feito com aço vergado, carvalho,
bambu, plástico ou fibra de vidro, Uma cadeira pode satisfazer igual-
mente bem a sua modesta missão sendo uma cadeira B3, Queen Anne
ou Windsor. A ciência sozinha não pode nos dizer como deve ser o
aspecto das nossas cadeiras.
Mesmo em incumbências mais complexas, as leis da engenharia
raramente ditam um estilo em particular, A Torre de Telecomuni-
cações Montjuíe, em Barcelona, por exemplo, poderia ter diversas for-
mas e conrinuar transmitindo os seus sinais adequadamente, A antena
poderia ter sido esculpida parecendo uma pêra em vez de um dardo; a
base poderia ter sido feita para parecer uma bota de montaria e não a
proa de uma nave espacial. Dezenas de opções teriam funcionado bem
do ponto de vista mecânico. iMas como reconheceu seu arquiteto,
Santiago Cala trava, poucos desenhos teriam comunicado com a devida
poesia as promessas de modernidade ao povo de Barcelona.

17.
As incoerências do relacionamento do modernismo com a ciência nos
levam dc volta à confusa quantidade de opções arquitetónicas que os
primeiros modernistas um dia esperaram erradicar. Voltamos ao car-
naval da arquitetura. Por que não emalhar flores nos nossos prédios?
Por que nao usar painéis de concreto gravados com imagens dc aero-
planos e insetos? Por que nào revestir um arranha-céu com motivos
Cadeiras fu ndonuií.
islâmicos? Esquerda: Cadeira dc braço laqueada estilo
Se nem engenharia nem a tradição podem nos dizer como nossas Queen Amie, c. 1710
casas devem ser neste mundo pluralista e desrespeitoso, nós precisamos Direita: Cadeira de braço Windsor, dc espaldar
alto, década de 1850
de liberdade para explorar todas as opções estilísticas. Devemos rcco-
nheeer que a questão do que é belo é, ao mesmo tempo, impossível de
esclarecer, vergonhosa, c até antidemocrática.

18.
No entanto, deve haver um jeito de superar este estado de estéril rela-
tivismo com ajuda da provocante observação de John Ruskin sobre a
eloquência da arquitetura. Ela concentra as nossas mentes na idéia de
que os prédios não são apenas objetos visuais sem qualquer ligação com
conceitos que possamos analisar e depois avaliar. Os prédios falam - e
sobre tópicos facilmente discemíveis. Eles falam de democracia ou
aristocracia, franqueza e arrogância, hospitalidade ou ameaça, simpatia
pelo futuro ou anseio pedo passado.

Arte em vez. de dctídtl.


Ao lado: Santiago Ca Lurava, 'forre de Telecomunicações Monrjuk, Barcelona, |W1
O fttarm da escolha.
Esquerda: Herzog and de Mc uru n, Biblioteca da EBerswalde Teclmioil Schooi, Kberswahk, 1W(>
Direita: Proposta Ue arranha-céu.Jeaii Noind, Duha, 2004
ajuda a explicar a seriedade ou o caráter vicioso em que tendem a se
desenrolar as disputas a respeito do papel da arquitetura.

19.
A vantagem de desviar o toco da discussão do que é estrita mente visual
para os valores promovidos pelas construções é que nos tornamos
capazes de lidar com as discussões sobre a aparência das obras de arqui-
tetura mais ou menos como fazemos com debates mais amplos a respei-
Esquerda: Tias Kddiuft', aparelhe de chá, Parsgruiid, 1% 1 to de pessoas, idéias c agendas políticas.
Direita: Aparelho de chá Blue Cumeo, Sèvres, 1778
Argumentos sobre o que é belo não se revelam mais fáceis de solu-
cionar do que as disputas sobre o que é certo c o que é errado, mas tam-
bém não são mais difíceis. Podemos aprender a defender ou atacar um
O desenho de qualquer objeto transmite uma impressão das atitu-
conceito de beleza do mesmo modo que podemos defender ou atacar
des psicológicas e morais que ele defende. Nós podemos, por exemplo,
uma posição legal ou atitude ética. Podemos compreender e explicar
sentir duas concepções distintas do que é a realizaçao emanando de
publicameiue por que consideramos uma construção desejável ou
uma simples cerâmica escandinava, de um lado, e de uma porcelana
ofensiva com base nas coisas sobre as quais ela nos fala.
decorada de Sèvres, do outro - a primeira convida a uma graciosa sen-
A noção que as construções falam nos ajuda a colocar no centro
sibilidade democrática, já a segunda evoca uma disposição cerimonio-
das nossas charadas arquitetônicas a questão dos valores .segundo os
sa, representativa de uma classe.
quais queremos viver - e não mera mente como queremos que as coi-
Em essência, o design e a arquitetura nos falam sobre o tipo de
sas pareçam.
vida que deveria desenvolver-se mais adequadamente dentro e ao redor
deles. Eles nos falam de certos estados de espírito que buscam incenti-
var e sustentar. Enquanto nos mantêm aquecidos e nos ajudam meca-
nicamente, eles nos convidam a sermos tipos específicos de pessoas.
Elas falam de visões de felicidade.
Descrever um prédio como belo, portanto, sugere mais do que
uma simples afeição estética; implica uma atração pelo estilo particular
de vida que esta estrutura está promovendo com seu telhado, maçane-
tas, molduras de janelas, escadas t móveis» Sentir uma sensação de
beleza é sinal de que encontramos uma expressão material de certas
idéias que temos do que seja viver bem.
Similarmente, os prédios nos parecem ofensivos nào porque agri-
dem uma preferência particular e misteriosa, mas porque conflitam
com a nossa compreensão do justo sentido da existência - e isso nos
O (ju? àestjitwus qne nwtvt prédios nos digam?
Esquerda: Mklud Shanly Home^ Oakingron Place. Middlesex, 2005
Dircira: Escritório cie Makftto Yainagudit* Villa, KanitAíiwa, 2003
m. Construções que falam
1.
Se nosso interesse por construções e objetos é real mente determinado
tanto pelo que eles nos dizem quanto pelo desempenho de suas funções
materiais, vale a pena falar sobre o curioso processo pelo qual combi-
nações de pedra, aço, concreto, madeira e vidro parecem capazes de se
expressarem -* e podem em raras ocasiões nos ciar a impressão dc esta-
rem nos falando sobre coisas significativas e emocionantes.

Corremos um risco, é claro, se ficarmos muito tempo analisando os


significados que emanam de objetos práticos. Preocupar-se em decifrar
a mensagem codificada ruim interruptor de iuz ou mima torneira é
ficar vulnerável, mais do que o normal, ao escárnio ditado pelo bom
senso dc quem procura nesses acessórios pouco mais do que um instru-
mento para iluminar o seu quarto ou pam escovar os dentes.
Para nos vacinar contra este comportamento ridículo e adquirir
confiança para cultivar uma atitude oposta com relação aos objetos,
mais meditativa, vale a pena fazer uma visita a um mo seu de arte
moderna. Em galerias pintadas de branco abrigando coleções de escul-
turas abstratas do século vinte, nos é oferecida uma rara perspectiva de
como exara mente massas tridimensionais podem assumir e transmitir
significados-* uma perspectiva que, por sua vez., nos permitirá conside-
rar nossos acessórios e casas de outro jeito.

3.
Foi na primeira metade do século vinte que os escultores começaram a
evocar em igual medida reações de admiração e de revolta ao exibirem
peças às quais parecia difícil dar um nome. Obras sem um interesse
pelas ambições miméticas que dominaram a escultura ocidental desde
os gregos antigos e que, apesar de certas semelhanças com equipamen- 0 ífue objetos iibstratos podetn dizer.
tos domésticos, também nao tinham nenhuma aptidão prática. Iknrv Mo ore, Dunsfimutst 1934

Mas, mesmo com essns limitações, os artistas abstratos alegavam


que suas esculturas eram capazes dc expressar os remas mais nobres.
Muitos críticos concordaram. Herbert Read descreveu a obra de
Henry Moore como um tratado sobre a bondade e a crueldade huma-
nas num mundo do qual Deus havia recentemente se retirado, enquan-
to, para Davi d Sylvester, as esculturas de Alberto Giacometti expressa-
vam a solidão e o desejo do homem alienado do seu eu autêntico na
sociedade industrial.
Pode ser fácil rir da grandiloquência de frases sobre objetos que às
vezes parecem gigantescos protetores de ouvido ou cortadores de
grama de cabeça para baixo. Mas, em vez de acusar os críticos de esta-
rem vendo demais em pouca coisa, devemos permitir que as esculturas
abstratas nos demonstrem a variedade de idéias e emoções que todos os
tipos de objetos não representativos podem transmitir. O dom da
maioria dos escultores talentosos tem sido o de nos ensinar que gran-
des idéias, por exemplo, sobre inteligência ou bondade, juventude ou
serenidade, podem ser transmitidas com pedaços de madeira e corda
ou engenhocas de gesso e metal do mesmo modo que é possível fazer
isso usando palavras ou figuras humanas ou de animais. Às grandes
esculturas abstratas conseguiram nos falar, na sua peculiar linguagem
dissocíativa, sobre, temas importantes de nossas vidas.
Em troca, estas esculturas nos deram uma chance de focalizar com
incomum intensidade o poder de comunicação de todos os objetos,
inclusive nossos prédios e móveis. Inspirados pela visita a um museu,
talvez nos censuremos por nossa prosaica crença anterior de que uma
tigela para saladas é apenas uma tigela para saladas, em vez de, na ver-
dade, ser um objeto sobre o qual pairam leves mas significativas asso-
ciações com a totalidade, o feminino e o infinito. Podemos olhar para
uma entidade prática como uma escrivaninha, uma coluna ou todo um
prédio de apartamentos e neste caso, também, localizar expressões a bs-
tratas de alguns dos temas importantes de nossas vidas.

No alto: Alberto Giacomccii, Hora Jov Traços, 1930; J as per Morrison, mesa ATM, 2003
No meio: Anthony Caro, Sussurrmd^ Í9t>9; Mies vau der Rnhe, coluna. Pavilhão de
Barcelona, 1929
Embaixo: Doiiakl judd, Sem titulo, 1989, Dicncr e Diencr, Migro*, Lucerna, 2000
4.
E uma luminosa manhã na Tate Gall ery* St. I ves, Comua lha. Sobre
um pedestal descansa uma escultura em mármore ele Barbara Hcp-
worth, exibida pela primeira vez em 1936. Embora não esteja claro o
que exatamente estas três pedras significam ou representam - um mis-
tério que se reflete no seu título reticente, Dois segmentos e uma esfera
não obstante elas conseguem prender e recompensar o nosso olhar. O
seu interesse centraliza-se na oposição entre a bola e a cunha sobre a
qual ela se apoia. A bola parece instável e cheia de energia; sentimos a
intensidade com que ela quer rolar pela aresta e sair deslizando pela
sala. Contrastando com esta impulsividade, o segmento cm forma de
cunha transmite maturidade e estabilidade: parece satisfeito em balan-
çar de um lado para o outro, embalando e domando a inquietação da
sua carga. Ao ver a peça, somos testemunhas de um relacionamento
terno e brincalhão, que torna-se majestoso no mármore branco polido.
Em um artigo sobre Hepworth, o crítico psicanalítico Adrian
Stokes tentou analisar o poder desta obra aparentemente simples. Ele
chegou a uma convincente conclusão. Se a escultura nos toca. ele arris-
cou, talvez seja porque inconscien temeu te a compreendamos como um
retrato de família. À mobilidade e a forma arredondada da esfera nos
sugerem sutilmente urn bebê de bochechas gorduchas se contorcendo,
enquanto as amplas formas oscilantes do segmento remetem a uma
mãe calma, indulgente e de quadris largos. Percebemos vagamente no
todo um tema central de nossas vidas. A sensação que temos é a de uma
parábola em pedra sobre o amor materno.
O argumento de Stokes nos leva a duas idéias. Primeiro, que não
precisa muito para interpretarmos um objeto como mna figura huma-
na ou animal. Um pedaço dc pedra pode nao ter pernas, olhos, orelhas
ou quase nenhuma das características associadas a um ser vivo; basta
haver a mera sugestão de um quadril maternal ou de um rosto de bebê Barbam Hepworth, Dois seirrut/Hos r mna esfera,
e começamos n interpretá-lo como uma figura. Graças a esta tendên-
cia a fazer projeções, podemos acabar emocionados com uma escultu-
ra de Hepworth tanto quanto com uma imagem mais literal de leniu -
ra materna, pois para os nossos olhos interiores não há diferença entre
a capacidade expressiva de uma pintura representativa e a de um con-
junto de pedras.
Segundo, as nossas razões para gostarmos de esculturas abstratas e,
por extensão, de mesas e colunas não se encontram afinal tâü distantes
de nossos motivos para reverenciar cenas representativas. Dizemos que
obras de ambos os gêneros sao belas quando conseguem evocar aque-
les que nos parecem ser os atributos mais atraentes e significativos dos
seres humanos e animais,

5.
Se olharmos bem, não faltam sugestões de formas vivas nos móveis e
casas a nossa volta. Há pinguins nas nossas jarras de água e personagens
robustos e presunçosos nas nossas chaleiras, graciosos cervos em nos-
sas escrivaninhas e bois nas nossas mesas de jantar.
Um olhar enfastiado, cético, nos encara do telhado do Wértheim
Department Store, de Aifred Messe!, em Berlim, enquanto pernas de
insetos de cabeça para baixo guardam o Castel Béranger, em Paris, Um
besouro agressivo espreita no Putrajaya Convention Centre da
Malásia, e uma criatura mais cordial, parente do porco-espinho, no
Sage Arts, em Gateshead.

Parcos-ctphtbos, besouros, olhos e pernas.


No sentido horário a partir da figura superior à esquerda: Foster
Sage .\rts Centre, Gateshead, 2005
t Eijjas Kasturi, Centro de Convenções, Putrajaya, 2005
AHrcd Messe], Lojas de Departamentos Wertlieim, Berlim, 1904
Hector Cuinvard, Ceaste] Béranger, Paris, 1 S9õ
deusa de meia-idade Hera; e a coluna corímia, a mais enfeitada das três
Até em coisas tão diminutas quanto fontes tipográficas detectamos e a que tem o perfil mais alto e esguio, encontrou o seu modelo na bela
personalidades bem desenvolvidas, poderíamos sem grande dificuldade divindade adolescente Afrodite.
escrever um conto a respeito de suas vidas e sonhos. As costas retas e a Em homenagem a Vitruvius, podemos nos distrair nas viagens de
postura alerta e vertical de um U
F Helvético sugere um protagonista carro alinhando os pilares das pontes nas estradas com os devidos equi-
pontual, limpo e otimista, enquanto o seu primo Poiiphilus, com a valentes bípedes. Um passeio pode revelar uma mulher sedentária e
cabeça caída e os traços suaves, tem um tom mais sonolento, mais aca- alegre sustentando uma ponte, um contador meticuloso, nervoso, com
nhado e mais pensativo, A história pode não terminar bem para ele. um ar autoritário sustentando outra.
Se podemos julgar a personalidade de objetos a partir de caracte-
rísticas aparentemente minúsculas (a mudança de poucos graus no

ff
angulo da borda pode transformar uma taça de vinho de recatada em
arrogante), é porque primeiro adquirimos esta habilidade com relação
aos humanos, cujos carateres podemos imputar a partir de aspectos
B Helvético Poiiphilus
microscópicos do tecido da sua pele e músculos. Um olho deixará de
insinuar um pedido de desculpas para sugerir hipocrisia com um movi-
mento que é, num sentido mecânico, iinplausivelmente pequeno. A
Numa loja de artigos para cozinha encontra-se também uma varie-
espessura de uma moeda separa uma sobrancelha que achamos estar
dade igualmente vívida de tipos. Taças com pé parecem genericamen-
preocupada de outra que parece concentrada, ou uma boca que sugere
te femininas, embora esta categoria englobe matronas cordiais, ninfe-
mau humor da que sugere tristeza. Codificar essas variações infinitesi-
tas e intelectuais afetadas e nervosas, enquanto os copos mais masculi-
mais foi a obra de urna vida inteira do pseudoci enrista suíço Johann
nos contam entre eles lenhadores e carrancudos funcionários públicos.
Kaspar Lava ter, cujo livro Essays on Pbysiognomy (1783), em quatro
volumes, analisou quase todas as conotações concebíveis de traços
faciais com desenhos de um exaustivo conjunto de queixos, cavidades
oculares, testas, bocas e narizes, com adjetivos interpretativos relacio-
nados a cada ilustração.

Triste e sarcástico Ardiloso mas vulgar Meigo e demente

A tradição de relacionar móveis e prédios com seres humanos vem


desde o autor romano Vitruvius, que casou cada uma das três principais
ordens clássicas com arquétipos humanos ou divinos da mitologia
grega. A coluna dórica, com o seu capitel simples e perfil atarracado,
tem o seu equivalente no musculoso e marcial herói Hércules; a colu- O que M mm significam.
na jónica, com sua base e volutas decoradas, correspondia à obstinada Johann Káspar Lavjter, Raaysm Pbythgitofny, 1783
6.
Mesmo quando os objetos não se parecem nada com pessoas, achamos
fácil imaginar que tipos de personalidades humanas eles poderiam ter.
Tão refinada 6 a nossa habilidade para detectar paralelos com os
seres humanos nas formas, texturas e cores que podemos interpretar
uma personalidade a partir da forma mais humilde que há. Uma linha
Benevolente e meiga Brutal ç cínica Estúpida ç muito sensual é eíoqüente o bastante. Uma linha reta sinalizará alguém estável e sem
graça, uma ondulada parecerá afetada e calma, e outra cheia de pontas
remeterá a uma pessoa zangada e confusa.
A riqueza de informações que estamos acostumados a deduzir das
formas vivas ajuda a explicar a intensidade de sentimentos gerados por
estilos arquitetônicos rivais. Quando apenas um milímetro separa uma
expressão letárgica de outra benevolente, é compreensível que muitas
coisas pareçam associadas às diferences formas de duas janelas ou linhas
do telhado. Para nós é natural sermos tao discrimínadores com relação
aos significados dos objetos entre os quais vivemos quanto somos a res-
Considere as estruturas dos encostos de duas cadeiras. Ambas
peito dos rostos das pessoas com quem convivemos. parecem expressar um estado de espírito. A estrutura curva fala de
Sentir que uma construção c desagradável talvez seja simplesmen- desenvoltura e brincadeiras, a reta de seriedade e lógica. E, no entanto,
te não gostar do temperamento da criatura ou ser humano que reco- nenhum dos feitios se assemelha a uma forjna humana, Ainda assim, as
nhecemos vagamente na sua fachada - assim como dizer que outro estruturas representam de uma forma abstrata dois temperamentos
edifício é bonito significa sentir a presença de uma personalidade diferentes. Uma peça de madeira reta se comporta no seu próprio meio
agradável se ele assumisse uma forma viva. O que buscamos numa como uma pessoa estável c sem imaginação agiria em sua vida, enquan-
obra de arquitetura não está, afinal, tào longe do que procuramos num to os meandros de uma peça curva correspondem, embora obliqua-
amigo. Os objetos que descrevemos como belos são versões das pes- mente, à elegância casual de uma alma serena e requintada.
soas que amamos.
A facilidade com que somos capazes de ligar o mundo psicológico
com u externo, visual e sensorial, semeia a nossa linguagem com metá-
foras. Podemos falar de alguém que é enrolado ou soturno, mole ou
duro. Podemos desenvolver um coração de açu ou um humor negro.
Podemos comparar uma pesso3 com um material como concreto ou
uma cor como vinho e ter certeza de estarmos transmitindo algo sobre
a sua personalidade.
O psicólogo alemão Rudolf Arnheim cerra vez pediu aos seus alunos
para descreverem um casamento bom e um casamento ruim com base
em apenas uma linha. Embora possamos nos sentir pressionados, tentan-
do adivinhar os pensamentos de Arnheim acerca dos rabiscos a seguir,
poderíamos chegar perto porque eles conseguem muito bem captar
alguma coisa das características de dois tipos diferentes de relacionamen-
to. Em um deles, curvas suaves espelham o curso pacífico e fluente de
uma união de amor, enquanto pontas girando violcntainentc servem
como um sinal taquigráfico visual de sarcasmos e bater de portas. Temperamentos contrastantes.
Esquerda: Palácio Ducal, Urbino, 1479; direita: Catedral de Bayeux, 1077

Se, avançando um pouco mais no exercício de Arnheim, recebêsse-


mos a tarefa de produzir imagens metafóricas da Alemanha em dois
períodos da sua história, como um estado fascista e uma república
democrática, e se nos permitissem trabalhar com pedra, aço e vidro em
Duas histórias sobre a vida ironjugal, dc ftudolf xArnhcini, Vistud Thhikhig, 1969 vez de um lápis apenas, é provável que não nos saíssemos melhor do
que os projetos icônicos de Albert Speer e Egon Eiermann, que cria-
ram pavilhões para Feiras Mundiais antes e depois da Segunda Guerra
Sc até rudes rabiscos num pedaço de papel podem falar com preci- Mundial. A proposta de Speer para a Feira de Paris de 1937 faz uso das
são e fluência sobre nossos estados psíquicos, (piando prédios inteiros metáforas visuais no seu mais alto grau: altura, massa e sombra. Mesmo
estão em jogo o potencial expressivo cresce exponencialmente. Os sem olhar para a insígnia do governo que a patrocinou, nós quase cer-
arcos pontudos da Catedral dc Bayeux transmitem ardor e intensidade, tamente sentiríamos algo ameaçador, agressivo e desafiante emanando
enquanto os seus equivalentes no pátio do Palácio Ducal, em Urbino, deste colosso neoclássico de 153 metros. Vinte e um anos e uma guer-
personificam serenidade e equilíbrio. Como uma pessoa superando os ra mundial depois, no seu Pavilhão Alemão para a Feira Mundial de
desafios da vida, os arcos do palácio resistem equitativa mente à pressão 1958, em Bruxelas, Egon Eiermann iria recorrer a um trio de metáfo-
de todos os lados, evitando as crises espirituais c efusões emocionais às ras bem diferente: horizontalidade para sugerir calma, leveza para dar
quais os arcos da catedral parecem inevitavelmente atraídos. idéia de delicadeza e transparência para evocar democracia.
I ão eloqüentes são os materiais e as cores, portanto, que é possí-
vel fazer uma fachada falar sobre como governar um país e que princí-
pios deveriam reger a sua política exterior, idéias políticas e éticas
podem ser escritas em esquadrias de janelas e maçanetas dc portas.
Uma caixa de vidro abstrata sobre uma base de pedra pode ser uma ode
à tranqiiilidade e à civilização.

1.
Existe ainda um terceiro modo como objetos e construções transmitem
significados, que podemos começar a entender se formos convidados
para jantar na casa do embaixador da Alemanha, cm Washington, DC.
Situada numa colina arborizada na região noroeste da capital, a residên-
cia é uma estrutura imponente com um ar clássico e formal, paredes
externas revestidas de calcário branco e o interior dominado por pjsos
de mármore, portas de carvalho e móveis de couro e aço. Convidados
para sair na varanda para nina taça de vinho espumante do Reno e salsi-
chas tipo coquetel antes do jantar, veríamos - levando-se em conta uma
relevante consciência histórica - algo ta o inesperado e chocante que só
poderíamos ficar de boca aberta enquanto nossos impecavelmente poli-
dos anfitriões apontassem para características da linha do horizonte no
seu inglês perfeito. Não seriam as silhuetas dos pontos mais importan-
tes da cidade, entretanto, que nos deixariam pasmos mas, sim, o pórtico
em si, sussurrando em nossos ouvidos histórias de paradas à luz de
tochas, desfiles militares e saudações marciais. Tanto nas suas dimen-
sões como nas suas formas, a fachada dos fundos da residência do
embaixador da Alemanha tem uma incrível semelhança com a galeria de
Albert Speer na praça de Armas de Nuremberg.
Quando as construções nos falam algo, elas também o fazem usan-
do citações - isto é, despertando lembranças c fazendo referências aos
contextos nos quais vimos anteriormente seus equivalentes ou mnde-

No alto: Albert Speer, Pavilhão <la Alemanha, Feira Mundial, Parts 19*7
Embaixo: Egon Eiermann. Pavilhão da República Federativa Alemã. Feira Mundial,
Bruxelas, 1958
Esquerda: C. F. A. Voyscy, Moorcrag, Cumbria, 1899
Direita: Sralbrholmen, perto de Mariefred, Suécia, t. 1850

Passando a pé pelo Cinema Carlton, na Essex Roa d, em Londres,


Esquerda: Albert Speer, galeria. Zeppelinleld, Ntiremberg, 1939 podemos observar algo curiosamente egípcio nas janelas. Este termo
Direita: Osv/aM Matrhias Unge rs, residência do embaixador estilístico nos ocorrerá porque, em algum momento do nosso passado
da Alemanha, Washington, DC, 1995
- talvez numa noite em que assistíamos a um documentário sobre o
Egito Antigo durante o jantar nossos olhos prestaram atenção aos
los. Elas comunicam por meio de associações. Parece que somos inca-
ângulos dos monumentais pórticos dos templos em Garnac, Luxor e
pazes de olhar prédios ou móveis sem atá-los às circunstâncias históri-
Philae. O fato de agora podermos recuperar esse detalhe quase esque-
cas e pessoais das nossas observações; conseqüentemente estilos arqui-
cido e aplicá-lo ao estreitamento de uma janela no centro de Londres é
tetónicos e decorativos tornam-se, para nós, suvenires emocionais dos
prova do processo sináptico pelo qual o nosso subconsciente é capaz de
momentos e cenários nos quais os encontramos.
dominar informações e fazer associações que talvez fôssemos total-
Tão atentos são os nossos olhos que o mais leve detalhe pode des-
mente incapazes de articular conscientemente.
pertar lembranças. O “B” barrigudo ou o “G” de boca escancarada de
uma fonte Art Deco bastam para inspirar devaneios com mulheres de
cabelos curtos e chapéus-coco, e cartazes anunciando férias ein Palm
Beach e Le Touquet.

A D t; DI f GI IJ KI VI h O P Q P S I UVWX YZ
Assim como uma infância pode vir à tona com o cheiro de um
sabão em pó ou uma xícara de chá, toda uma cultura pode brotar dos
ângulos formados por algumas linhas. Um telhado com forte inclina-
ção pode de imediato suscitar idéias sobre o movimento inglês Arts and
Crafts, enquanto outro de duas águas quebradas pode com a mesma
rapidez trazer à lembrança fatos da história sueca e férias no arquipéla- Esquerda: Templo de Isis, Philae, r. 140 a.C.
go ao sul de Estocolmo. Direita: George Cole* Cinema Carlton, Essex Road, Londres, 1930
Confiando nas nossas capacidades associativas, os arquitetos Poderíamos definir objetos genuinamente belos como aqueles
podem entalhar seus arcos e janelas com a certeza de que serão com- dotados de suficientes atrativos inatos para resistir às nossas projeções
preendidos como referências ao Islã. Podem revestir seus corredores positivas ou negativas. Eles personificam boas qualidades, e não sim-
com tábuas de madeira sem pintura e aludir com segurança ao rústico plesmente nos fazem lembrar delas, Podem portanto sobreviver às suas
c despretensioso. Podem instalar grossas balaustradas brancas ao redor origens temporais ou geográficas e comunicar suas intenções muito
das sacadas e saber que suas casas dc veraneio à beira-mar falarão de depois que suas platéias iniciais desaparecerem. Podem sustentar os
transatlânticos e da vida náutica. seus atributos muito acima do fluxo e refluxo de nossas associações
Um aspecto mais perturbador das associações está na sua natureza injustamente generosas ou condenadoras.
arbitrária, no modo como elas podem nos levar a emitir um veredicto
sobre objetos ou prédios por razões que nada têm a ver com suas virtu- 8.
des ou defeitos especificamente arquitetônicos. Talvez façamos mu jul- Apesar do potencial expressivo de objetos e construções, discussões a
gamento com base no que eles simbolizam e não naquilo que eles são. respeito do que eles falam ainda sao raras. Parece que nos sentimos
Podemos decidir que detestamos o gótico do século dezenove, mais à vontade refletindo sobre fontes históricas e tropos estilísticos do
por exemplo, porque ele caracterizava uma casa onde fomos infelizes que nos aprofundando em significados antropomórficos, metafóricos e
nos tempos da universidade, ou insultar o neoclassicismo (exemplifi- evocativos. Ainda é estranho iniciar uma conversa sobre o que um pré-
cado pela residência do embaixador alemão ou pela obra do arquiteto dio está dizendo.
Karl Fricdrich Schinkel) porque o estilo teve o azar de ser o preferido Talvez achássemos essas atividades mais fáceis se as características
dos nazistas. arquitetônicas estivessem mais cxplicitamente associadas com seus
Como prova da volubilidade com que estilos arquitetônicos e pronunciamentos — se existisse um dicionário, por exemplo, que corre-
artísticos caem vítimas de associações desastrosas, precisamos notar lacionasse de forma sistemática veículos e formas de comunicação com
apenas que, na maioria dos casos, eles só precisam de tempo para recu- emoções c idéias. Um dicionário assim ofereceria úteis análises de
perar o seu charme. A passagem de algumas gerações nos permite olhar materiais (de alumínio e aço, de terracota e concreto), assim como de
para objetos e construções sem os preconceitos que entravam quase estilos e dimensões (de cada angulo de telhado concebível e cada gros-
todas as eras. Com o passar do tempo, podemos olhar para uma esta- sura c tipo de coluna). Ele incluiria parágrafos sobre a importância de
tueta do século dezessete retratando a Virgem Maria sem que imagens linhas convexas e côncavas. E de vidros espelhados e transparentes.
de jesuítas excessivamenle zelosos ou as fogueiras d3 Inquisição nos O dicionário se pareceria com os gigantescos catálogos que infor-
perturbem. Com o tempo, somos capazes de aceitar e amar o deralhis- mam os arquitetos sobre acessórios para iluminação e ferragens, mas,
mo do rococó por seus próprios méritos, sem vê-lo como um mero em vez de focalizar o desempenho mecânico e a obediência às normas
símbolo de decadência aristocrática abreviada pela vingança revolucio- de construção, discorrería sobre as implicações expressivas dc cada ele-
nária. Com o tempo, podemos até conseguir ficar na varanda da mento numa composição arquitetônica.
residência do embaixador alemão e admirar as orgulhosas e ousadas Na sua preocupação abrangente com minúcias, o dicionário reco-
formas do seu pórtico, sem que nos persigam visões de tropas de assal- nheceria o fato dc que, assim corno a alteração dc uma único palavra
to e desfiles à luz de archotes. pode mudar todo o sentido de um poema, da mesma forma a nossa
impressão de uma casa pode se transformar quando uma verga de cal-
cário retilínea é trocada por outra fracionada de tijolos, formando uma
curva. Com ajuda de um recurso desse tipo, poderíamos nos tomar lei-
tores e escritores mais conscientes do ambiente cm que vivemos.

9.
Entretanto, por mais útil que um manual desse tipo pudesse ser, regis-
trando o que a arquitetura nos diz, por si só ele não seria capaz de
explicar o que há em certos prédios que f;r/ com que pareçam falar
be lamente.
Os prédios que admiramos são em essência aqueles que, de diver-
sos modos, exaltam valores que pensamos valerem a pena - isto é, que
se referem, seja por meio de seus materiais, formas ou cores, a qualida-
des positivas lendárias como amizade, bondade, sutileza, força e inteli-
gência. Nosso senso de beleza e a nossa compreensão do que é viver
bem estão interligados. Buscamos mensagens associadas à paz em nos-
sos quartos de dormir, metáforas de generosidade e harmonia em nos-
sas cadeiras e um ar de honestidade e franqueza nas nossas torneiras,
Podemos nos emocionar com uma coluna que encontra o teto com
graça, com os degraus de pedra gastos que sugerem sabedoria e com a
soleira de uma porta georgiaíia que demonstra alegria e cortesia na sua
bandeira em semicírculo.
Stendhal propôs a expressão mais cristalina da íntima associação
entre gosto visual e os nossos valores quando escreveu:44O belo é a pro-
messa de felicidade.” O seu aforismo tem a virtude de diferenciar o
nosso amor ao belo de uma preocupação acadêmica com a estética, e de
integrá-lo em vez disso ás qualidades de que precisamos para prosperar
como seres humanos completos. Sc a busca dc felicidade é a aventura
fundamenta] de nossas vidas, parece natural que da deva simultanea-
mente scr o tema essencial a que o belo alude. l hna promessa de i/legria e atvttsiit.
Mas, como Stendhal era sensível a complexidade do que precisa- Thontits ! .everton, janela com bandeira, HcJford Square, \ 783
mos para sermos felizes, de sensata mente não quis especificar um tipo
determinado de beleza. Como indivíduos nós podemos, afinal de con-
tas, achar a vaidade não menos atraente do que a gentileza, ou a agres-
são tilo interessante quanto o respeito. Utilizando a palavra abrangen-
te “felicidade”, Stendhal levou em conta a vasta gama de objetivos que
as pessoas perseguem. Compreendendo que a humanidade estará sem-
pre em conflito com relação aos seus gostos visuais assim como aos seus
valores cticos, ele observou: “Existem tantos estilos dc beleza quanto
visões de felicidade.”
Dizer que uma obra de arquitetura ou design é bela é reconhecê-la
como uma interpretação dc valores fundamentais para o nosso desen-
volvimento, uma transubstanciação de nossos ideais individuais num
meio material.
Todo fstílo arquitetônico filia de uma mmpreeusào de felkidadr.
John Pardey, Duckett Mouse» New Fortst, 2004
IV. Lares ideais
Memória Dependemos do que está a nossa volta obliquamente para personi-
ficar os estados de espírito e as idéias que respeitamos e, então, nos
L lembrar deles. Nós queremos que nossas construções nos mantenham
Se é verdade que as construções e mobílias que descrevemos como fiéis, como uma espécie de molde psicológico, a uma visão benéfica de
belas evocam aspectos da felicidade» poderíamos então perguntar por nós mesmos. Colocamos ao nosso redor formas materiais que nos
comunicam aquilo de que precisamos interiormente - mas estamos
que achamos essas evocações necessárias. E fácil compreender por que
sempre correndo o risco de esquecer Recorremos a papeis de parede,
desejamos que atributos como dignidade e clareza tenham um papel
bancos, quadros e ruas para impedir o desaparecimento de nossas ver-
em nossas vidas, menos claro é por que também necessitamos que os
dadeiras identidades.
objetos a nossa volta nos falem deles. Por que faz diferença o que o
Em troca, tendemos a honrar aqueles lugares cuja perspectiva
ambiente cm que vivemos tem a nos dizer? Por que os arquitetos sc
combina com a nossa e a legitimiza chamando-os de “lar”» Nossos lares
preocupam em projetar prédios que comuniquem idéias e sentimentos
não precisam nos oferecer abrigo permanente ou guardar as nossas
específicos, e por que somos afetados de forma negativa por lugares
roupas para que mereçam esse nome. Faiar em lar com relação a uma
que reverberam o que consideramos serem alusões erradas? Por que
construção é simplesmente reconhecer a sua harmonia com a nossa
somos vulneráveis, tão inconvenientemente vulneráveis, ao que os
própria canção interior preferida. Lar pode ser um aeroporto ou uma
espaços que habitamos dizem?
biblioteca, um jardim ou um trai ler de comida na beira da estrada.
Nosso amor pelo lar é, por sua vez, um reconhecimento do quan-
2. to a nossa identidade não é autodeterminada. Precisamos de um lar no
A nossa sensibilidade ao que nos cerca pode ter origem numa caracte- sentido psicológico tanto quanto no físico: para compensar uma vulne-
rística incômoda da psicologia humana: o modo como abrigamos den- rabilidade. Precisamos de uni refúgio para proteger nossos estados
tro de nós muitas identidades diferentes, e nem codas parecem igual- mentais, porque o mundo em grande parte se opõe às nossas convic-
mente “nós”, tanto que em determinados estados de espírito podemos ções. Precisamos que nossos quartos nos alinhem com versões desejá-
nos queixar de termos nos afastado do que julgamos ser o nosso eu veis de nós mesmos e mantenham vivos os nossos aspectos importantes
verdadeiro. e evanescentes.
Infelizmente, o eu de que sentimos falta nesses momentos, o as-
pecto autêntico, criativo, espontâneo e indefinível da nossa personali-
dade, nâo nos pertence para que possamos evocá-lo à vontade. O nosso São as grandes religiões do mundo que mais sc preocupam com o papel
acesso a ele é, a um grau modesto, determinado pelos lugares onde representado pelo ambiente na determinação da identidade e, assim -
estamos, pela cor dos tijolos, a altura dos tetos e o traçado das ruas. embora raramente tenham construído lugares onde possamos pegar no
Num quarto de hotel estrangulado por três vias expressas ou numa área sono demonstram a maior simpatia pela nossa necessidade de um lar.
devastada com prédios enormes e mal conservados nosso otimismo e O próprio princípio de arquitetura religiosa tem as suas origens na
propósito tendem a se exaurir, como água num vaso furado. noção de que o lugar onde estamos é crucial para determinar aquilo em
Começamos a esquecer que um dia tivemos ambições ou motivos para que somos capazes de acreditar. Para os defensores da arquitetura reli-
nos sentir animados e cheios de esperança. giosa, por mais intelectualmente convencidos que estejamos de nossos
compromissos com um credo, só continuaremos fiéis se ele for conti- verem tão ao sul e de trocar a neve glacial por uma simples chuva os
nuamente afirmado nas nossas construções. Por causa do perigo de ser- havia deixado extreniamente bem-humorados, o que eles expressavam
mos corrompidos por nossas paixões e desviados pelo comércio e o abrindo as embalagens dos canudinhos, cantando alto e pulando nas
palavreado da sociedade, precisamos de lugares onde os valores exte- costas uns dos outros - deixando confusos os funcionários da lanchone-
riores incentivem e reforcem as aspirações interiores. Podemos nos te sem saber se deveriam condenar tal comportamento ou respcitá-lo
aproximar ou distanciar rnais de Deus de acordo com o que está repre- como uma promessa de apetites vorazes.
sentado nas paredes e tetos. Precisamos de painéis de ouro e lazurita, Levado pelos volúveis finlandeses a encerrar às pressas a minha visi-
janelas com vidros coloridos e jardins de cascalho imaculadamente ali- ta, desocupei a mesa e saí para a praça logo ao lado, onde notei pela pri-
sados com ancinho para nos mantermos fiéis à parte mais autêntica de meira vez as formas bizantinas incongruentes e grandiosas da Catedral
nós mesmos. de Westminster, o seu campanário em tijolos brancos e vermelhos
erguendo-se 87 metros nos céus nevoentos de Londres.
4. Induzido pela chuva e a curiosidade, entrei num saguão cavernoso,
Poucos anos atrás, surpreendido por um pesado aguaceiro, com umas mergulhado num breu contra o qual milhares de velas votivas se desta-
duas horas à toa depois de esperar por um amigo que acabou não apa- cavam, as chamas douradas treme luzentes sobre mosaicos e represen-
recendo para almoçar, fui me abrigar num prédio de granito e vidro tações entalhadas da Via Sacra. Havia cheiros de incenso e sons de pre-
fiimê na Victoria Street, em Londres, sede da filial do McDonald’* em ces murmuradas. Pendendo do teto, no centro da nave, um crucifixo de
Westminster. O clima dentro da lanchonete era solene e concentrado. dez metros de altura, com Jesus de um lado e sua mãe do outro. Em
Os clientes comiam sozinhos, lendo jornais ou olhando para os ladri- torno do altar principal, um mosaico mostrava Cristo entronizado nos
lhos marrons, mastigando com uma severidade e rispidez que fariam a céus, rodeado de anjos, os pés descansando sobre um globo, as mãos
atmosfera de uma estrebaria parecer sociável e bem-educada. segurando um cálice transbordando com o seu próprio sangue.
O ambiente servia para tomar absurdos todos os tipos de idéia: que O alarido superficial do mundo externo dera lugar ao deslumbra-
os seres humanos podem às vezes ser generosos uns com os outros sem mento e ao silêncio. As crianças ficavam perto dos pais e olhavam em
esperança de receber alguma coisa em troca; que os relacionamentos volta com um arde intrigante reverência. Os visitantes instintivamen-
ocasionalmente podem ser sinceros; que a vida talvez valha a pena te sussurravam, como se imersos num sonho coletivo do qual não
suportar... O verdadeiro talento da lanchonete estava na geração de desejassem emergir. A anonimidade da rua havia se subordinado a um
ansiedade. A luz dura, os sons intermitentes de batatas congeladas mer- tipo peculiar de intimidade. Tudo que é sério na natureza humana
gulhando em bacias de óleo e o comportamento frenético dos funcio- parecia ter despertado; pensamentos sobre limites e infinitude, sobre
nários no balcão convidavam a se pensar em solidão e m falta de senti- impotência e sublimidade. O trabalho de cantaria dava relevo a tudo
do da existência num universo violento e caótico. A única solução era que era acomodado e monótono, e inspirava um desejo de estar à altu-
continuar comendo numa tentativa de compensar o desconforto pro- ra da sua perfeição.
vocado pelo cenário. Depois de dez minutos na C3tedrat, uma série de idéias que seriam
No entanto, a minha refeição foi perturbada pela chegada de uns inconcebíveis do lado de fora começaram a assumir um ar de sensatez.
trinta adolescentes finlandeses louros e altíssimos. O choque de se Sob a influência do mármore, dos mosaicos, da escuridão e do incenso,
parecia totalmente provável que Jesus fosse o filho de Deus e tivesse
caminhado sobre as águas do mar da Galiléia, Na presença das está mas
de alabastro da Virgem Maria, em contraste com as sequências regula-
res de mármores vermelhos, verdes e azuis, deixava de ser surpreen-
dente pensar que um anjo pudesse a qualquer momento descer, atra-
vessar as densas camadas de nuvens sobre Londres, entrar por uma
janela na nave, tocar um trompete dourado e anunciar ern latim a imi-
nência de um evento celestial.
Idéias que pareceriam loucura a quarenta metros dali, na compa-
nhia de uni grupo de adolescentes finlandeses e bacias de óleo para fri-
tura, tinham conseguido - por obra da arquitetura - adquirir suprema
importância e majestade.

As primeiras tentativas de enar espaços especificamente cristãos, cons-


truções com a intenção de ajudar seus ocupantes a se aproximarem das
verdades pregadas pelos evangelhos, datam de uns duzentos anos
depois do nascimento de Cristo, Nas paredes de cai iluminadas à luz de
velas de salas com tetos baixos sob as ruas pagãs de Roma, artistas inex-
perientes pintaram mdes representações dos acontecimentos da vida
de Jesus, num estilo primitivo que seria digno dos alunos menos talen-
tosos de uma escola de arte.

No qtit podemos aa'tditar aqui/


Esquerda: fvlsom, Pa ck and Robe tis Aichkccts, McDonald*;», A.sliduwa House,
Vktom Street, Loiuíres, 1975 A divisão dos pães, Catacumba de PrisciUa, Roma, século três d.C,
Dirc ira: John Fraitcis Beiidey, nave tia Catedral de Westminsfer* Londres, 1903
Essas dificuldades de expresso, no entanto, tornam as catacumbas
cristãs ainda mais emocionantes. Elas mostram os impulsos arquitetôni-
cos e artísticos nas suas tonnas mais punis* sem o refinamento propor-
cionado pelo talento ou dinheiro. Elas revelam como, na ausência de
grandes patronos ou artesãos, sem praticamente nenhuma habilidade
ou recursos, os fiéis sentirão uma necessidade de cobrir as úmidas pare-
des dos subterrâneos com os símbolos do seu Deus ■- para garantir que
aquilo que os cercam fortalecerá as verdades existentes dentro deles,
A partir do ano 3 79 d.C, quando o imperador Teodósio, o Grande,
declarou o cristianismo como a religião oficial de Roma, os arquitetos
das igrejas estavam livres para criar lares para seus ideais numa escala
grandiosa. Suas aspirações alcançaram uma apoteose durante a era das
catedrais, em gigantescas jóias de pedra e vidro destinadas a tornar
vívido o Paraíso dos livros sagrados,
Atxs olhos do homem medieval, a catedral era a casa de Deus na
terra. A queda de Adão pode ter obscurecido a verdadeira ordem do
cosmos, tornando a maior parte do mundo pecadora e irregular, mns
dentro dos limites de uma catedral, a beleza geométrica original do
Jardim do Éden ressuscitava, A luz brilhando através dos vitrais das
janelas prefiguravam aquela que irradiaria na próxima vida. Dentro da
caverna sagrada, as propostas do Apocalipse de São João deixavam de
parecer remotas e bizarras, e sc tornavam ao mesmo tempo palpáveis e
imediatas.
Hoje em dia, um passeio pelas catedrais com câmeras e guias nas
mãos nos faz experimentar algo bem diferente do nosso secularismo
pratico: um desejo peculiar e constrangedor de cair cie joelhos e adorar
um ser tão poderoso e sublime quanto nós somos pequenos e inade-
quados. Essa reação não teria, é claro, surpreendido os construtores
das catedrais, pois seus esforços estavam exatanientc direcionados para
a renúncia de nossa auto-suficiência, o propósito de suas paredes eté-
reas c tetos rendilhados é fazer as inquietações metafísicas não apenas
plausíveis mas irresistíveis até para as almas mais sóbrias.

Pájfiuü lado: Fachada ocidental, Giteclr.tl d« Rdim. ríqini» dc i i>4


6.
Os arquitetos e artistas que trabalharam a serviço cio Jslà nos seus pri-
mórdios foram igualmente motivados pelo desejo de criar um pano de
fundo que sustentasse as afirmações da sua religião. Acreditando que
Deus era a origem de todo o entendimento, o Islã deu uma ênfase par-
ticular às qualidades divinas da matemática. Artesãos muçulmanos
cobriram as paredes de casas e mesquitas com sequências repetitivas cie
formas geométricas delicadas e complexas, por meio das quais a infini-
ta sabedoria de Deus pudesse ser insinuada. Esta ornamentação, tão
agradavelmente intrincada num tapete ou xícara, torna-se nada menos
do que estonteante se aplicada a uma parede inteira. Os olhos acostu-
mados a ver os objetos práticos e triviais da vida diária, dentro de uma
sala dessas examinam um mundo despojado de todas as associações
com o cotidiano. Eles percebem uma simetria, sem conseguir muito
bem entender a sua lógica subjacente. Tais obras eram como produtos
de uma mente sem nenhuma das nossas limitações humanas, com um
poder superior não contaminado pela rudeza dos homens e, portanto,
digna de incondicional reverência.
Os arquitetos islâmicos escreveram a sua religião tanto literal quan-
to simbolicamente nos seus prédios. Os corredores do Palácio Alhambra,
dos reis Nasrid, exibiam citações dos textos sagrados, gravadas em pai-
néis numa escrita cu fica floreada. “Em nome do misericordioso Deus.
Ele é Deus somente, Deus inteiro. Não criou nada, nem é criado. E nin-
guém é Seu igual”, dizia um hino envolvendo uma sala de recepção escri-
to ao nível dos olhos. Na câmara principal da Torre de ia Cautiva pendia
um painel com letras entrelaçadas com fornias geométricas e vegetais em
desenhos de fosforescente complexidade. At-mulk li-llah (“O poder per-
tence a Deus”), declarava a parede, os traços das letras prolongados para
formar arcos semicirculares que dividiam, cruzavam e depois intercepta-
vam as pernas de uma segunda inscrição proclamando Al-yizz li-llah (WA
glória pertence a Deus”) - palavra e imagem em total união para lembrar
aos observadores o propósito da existência islâmica.

No alto: tiú pula do Mausoléu <te Turabeg KJiannm, Kunya, Urgench, 1370
Embaixo: Ladrilhos de cerâmica, O Alcazar, Sevilha, século catorze
Tanto nos primórdios do cristianismo como do Islã, os teólogos
tinham uma ideia sobre a arquitetura que soa peculiar aos ouvidos
modernos, a ponto de ser digna de constantes investigações: eles pro-
puseram que os prédios belos rinhani o poder de nos aprimorar moral
c espiritual mente. Acreditavam que, em vez de nos corromperem, em
vez de serem uma ociosa indulgência para os decadentes, os ambientes
refinados podiam nos fazer avançar em direção à perfeição. Um prédio
belo poderia reforçar a nossa decisão de sermos bons.
Por trás desta distinta pretensão residia uma outra crença sur-
preendente: a dc uma equivalência entre os reinos visual c ctico. A
arquitetura atraente era considerada uma versão da bondade num idio-
ma na o verbal - e sua contrapartida feia, uma versão material do inuL
Assim, uma maçaneta dc porta sem enfeites que nos agradasse por sua
simplicidade podia funcionar simultaneamente corno um lembrete das
virtudes de sobriedade e moderação, assim como o sutil engaste de uma
vidraça no caixilho dc uma janela poderia veladamente pregar um ser-
mão sobre o tema da delicadeza.
A equação moral entre o belo e o bom confere a toda arquitetura
uma nova seriedade c importância. Ao admirar a nobre patina de um
antigo assoalho de madeira, não estaríamos mais - afinal de contas -
apenas nos deliciando com tuna peça dc decoração de interiores.
Estaríamos tendo urna aula de integridade.
Poderiamos até, sugeriram os primeiros teólogos, compreender
Deus melhor através do belo, pois foi Ele quem criou todas as coisas
i belas no mundo: o céu oriental ao amanhecer, as florestas, os animais e
are os artigos mais domésticos como uma graciosa poltrona, uma tige-
la de timões e um raio de sol da tarde brilhando através dc uma cortina
de algodão e batendo na mesa da cozinha. Em contato com prédios

Mm-Á
Pagina ao lado: Hm a! Jayyàb, paind decorativo eiu gesso, saía principal.
Turre rlt* to C úmriva, Palácio Athamhra, t. 1J 4U
Aí-ttiuik h flitk = O pmier pertence * Deus; /í/ te h-fbtfr - A glória pertence a Deus
atraente*, poder/amo* entender algo do refinamento, inteligência, meno: a incapacidade do homem de prosperar em igual medida em
bondade e harmonia do sen criador supremo. No século onze, o filóso- qualquer sala em que for colocado.
fo muçulmano Ibu Si ira notou que admirar um mosaico por ser perfei- O desafio para os construtores de casas comuns não é diferente do
to, ordenado e simétrico era ao mesmo tempo reconhecer a glória divi- enfrentado pelos arquitetos de Chartres e da mesquita de Masjid-l
na, pois Dcus está na origem de rudo que é belo”. No século treze, do
w
lmain, ern lsfahan, mesmo que seus orçamentos estejam mais próximos
outro lado da fé, Roberi Grosseteste, bispo dc Lincoln, nos pediu para dos pintores das catacumbas romanas. Num contexto secular, o nosso
imaginar “uma casa bela, este belo universo. Pense neste ou naquele objetivo também é identificar objetos e características decorativas que
objeto bonito. Mas depois, omitindo ‘este’ e ‘aquele1, pense nu que faz estão correlacionadas com certos estados interiores salutares e nos
‘este ou ‘aquele* objeto ser belo. Tente ver o que a Beleza é em si
1
encorajam a promovê-los dentro de nós mesmos.
mesma... Se conseguir, verá Deus Hle Mesmo, a Beleza qne reside em
todas as coisas belas". 9.
Uma segunda defesa consistente da visão se fez quando os primei- Imagine poder voltar no final de cada dia para uma casa como aquela
ros teólogos especularam que devia ser mais fácil tornar-se um servo fiel em Rõ, no norte de Estocolmo. Nossas rotinas de trabalho podem ser
de Deus olhando do que lendo. Eles argumentaram que a humanidade se frenéticas e cheias de compromissos, densas de reuniões, apertos de
moldaria mais eficazmente pela arquitetura do qne pela Escritura. Por má o pouco sinceros, mexericos e burocracias. Podemos dizer coisas em
sermos criaturas sensor ia is, os princípios espirituais tinham mais chan- que não acreditamos para conquistar nossos colegas, nos sentir invejo-
ces de fortalecer nossas almas se os assimilássemos pelos olhos cm vez sos e excitados com relação a metas a que essencialmente não damos
de pelo intelecto. Aprenderiamos mais sobre humildade contemplando importância.
a disposição de ladrilhos do que estudando os Evangelhos e mais sobre Mas, no final, sozinhos, olhando pela janela do hall o jardim c a
a natureza da bondade num vitral do que num livro sagrado. Passar o escuridão se formando, nos poucos retomamos o contato com um eu
tempo em espaços belos, longe de ser um luxo comodista, era conside- mais autêntico, que estava aii nos bastidores esperando que terminás-
rado a essência da busca para se tomar uma pessoa respeitável. semos a nossa representação. Nosso lado submerso extrairá coragem
das flores pintadas dos dois lados da porta. O valor da gentileza se con-
8. firmará nas dobras delicadas das cortinas. Nosso interesse por um
A arquitetura secular pude não delencler uma ideologia nitidamente modesto e afetuoso tipo de felicidade será favorecido pelas despreten-
definida, não citar nenhum texto sagrado nem adorar um deus, mas, siosas tábuas de madeira do assoalho. Os materiais a nossa volta nos
exa lamente como a arquitetura religiosa, ela tem o poder de moldar falarão das mais altas expectativas que temos com relação a nós mes-
aqueles que entram na sua órbita. A gravidade com qne as religiões em mos. Neste ambiente, podemos chegar perto de um estado mental
determinados momentos trataram a decoração dc seus ambientes nos marcado pela integridade e n vitalidade. Podemos nos sentir interior-
convida a dar igual importância à decoração de lugares p rola nos, pois meme liberados. Podemos, num sentido profundo, voltar para casa.
eles também podem oferecer um lar à melhor parte de nós mesmos. Sem homenagear nenhum deus, uma peça de arquitetura domésti-
Defensores da busca da beleza arquitetónica, secular ou religiosa, ca, náo menos do que uma mesquita ou capela, pode nos ajudar na cele-
justificam as suas ambições apelando basicamente para o mesmo fenó- bração dc nosso eu genuíno.
Assim como um quarto inteiro, um único quadro pode nus ajudar a
recuperar as partes perdidas e importantes de nós mesmos.
Veja a tela de William Nicholson com uma tigela* uma toalha de
mesa branca e algumas ervilhas debulhadas observadas bem de perto. A
primeira vista podemos experimentar uma certa tristeza jo reconhecer
o quanto nos distanciamos do seu espírito meditativo c observador, da
sua rnodestia e da valorização da beleza e nobreza da vida cotidiana.
Por trás do desejo de possuir o quadro e pendurá-lo onde podería-
mos examiná-lo regularmente, talvez esteja a esperança de que pela
contínua exposição a cie, as suas qualidades viessem a assumir um
poder maior sobre nós. Passar por ele como a última coisa que se foz de
noite ou de manhã quando saímos para o trabalho teria o eleito de um
ima que traria a superfície filamentos submersos de nossa personalida-
de. () quadro atuaria corno o guardião de um estado de espírito.
Valorizamos certas construções por sua capacidade de reequilibrar
nossa natureza deformada e encorajar emoções que nossos compromis-
sos predominantes nos forçam a sacrificar. Sentimentos como compe-
titividade, inveja e agressão dificilmente precisam ser elaborados, mas
a humildade em rrieio a um imenso e sublime universo, o desejo de
calma no início da noite ou a aspiração por gravidade e bondade não
formam uma parte correspondentemente confiável de nossa paisagem
interior - uma deplorável ausência que talvez explique o nosso desejo
de vincular essas emoções aos nossos lares.
A arquitetura pode amplificar c solidificar tendências transitórias e
tímidas, e portanto nos permitir acesso mais permanente a urna varie-
dade de texturas emocionais que de outra forniu só experimentaríamos
acidental e ocasionalmcnte.
Nào há necessidade de nada excepciona Imente doce ou simples

Niií» HtnjM*. Rü, imnc dir Ksioudmo* £. IH20 nos estados de espírito personificados nos espaços domésticos. Estes
espaços podem nos folar de tristeza e melancolia com a mesma facilida-
de com que nos falam do que é benigno. Não é necessária uma associa-
ção entre os conceitos de lar c dc beleza; o que chamamos de lar é qual-
quer espaço que consiga tomar mais consistenrcmeme disponível para
nós as verdades importantes que o mundo mais amplo ignora, ou que
nosso eu distraído e indeciso tem dificuldade em manter.
Construímos pelo mesmo motivo que escrevemos: para registrar o
que é importante para nós,

11.
Considerando-se a capacidade memorial da arquitetura, não pode ser
por coincidência que, em muitas culturas do mundo, as primeiras e
mais significativas obras tenham sido funerárias.
Há uns 4.000 anos, mima encosta na Pembrokeshire ocidental,
alguns dos nossos ancestrais neolíticos ergueram uma série de pedras
gigantescas com suas mãos nuas c as cobriram de terra para marcar o
local onde um de seus parentes estava enterrado. A câmara se perdeu
com o tempo, assim como o corpo e até a identidade do homem cujo
nome um dia deve ter sido pronunciado com reverência nas comunida-
des ao longo desta orla úmida das Ilhas Britânicas. Alas resta ainda a
eloqücnte capacidade dessas pedras dc transmitir a mensagem comum
a roda a arquitetura funerária, desde as sepulturas de mármore até os
rústicos santuários de madeira na beira da estrada -- a saber, "Recor-
dação”. A pungência da família rudemente cinzelada de pedras mus-
guentas, montando a sua solitária guarda numa paisagem por onde
nada passa, a não ser ovelhas e um ocasionai andarilho com capa de
chuva, é acentuada pela consciência de que não lembramos nada a res-
peito daquele que ela celebra - além, é efaro, do evidente desejo deste
líder de não ser esquecido, forte o bastante para inspirar seu clã a er-
guer uma laje pesando quarenta toneladas em sua homenagem.
O medo de esquecer alguma coisa importante pode motivar cm
nós o desejo de erguer uma estrutura, como um peso de papel para
manter no lugar as nossas lembranças. Podemos até seguir o exemplo
Wiliiam N'icholson». / tigeta policltt awi cruibffs, 19] 1 da Condessa de Mount Edgcumbe, que no final do século dezoito
mandou erguer um obelisco neoclássico de nove metros dc altura nu-
ma colina nos arredores de Plymouth, em memória a um porquinho

Lares ideais 123


No nltn: Câmara mortuária neolítica. Penrre Ifart, a otsre He Pemhrolrcdiirc, r. 2000 a.C.
Ao lado: Memorial a Cupido, Plytnoiith, <\ 17€>0

excepcional mente sensível chamado Cupido, a quem ela nao hesitava


em considerar um verdadeiro amigo,
O desejo de lembrar une os motivos pelos quais construímos para
os vivos c para os mortos. Da mesma maneira que levantamos marcos e
mausoléus para celebrar entes amados perdidos, construímos e decora-
mos as edificações para nos ajudar a lembrar as partes importantes mas
fugidias de nós mesmos. Os quadros c cadeiras nas nossas casas são os
equivalentes - em escala reduzida para o nosso cotidiano e sintonizados
com as exigências dos vivos - dos túmulos gigantescos da era paleolíti-
ca. Nossos acessórios domésticos também sao memoriais de identidade.
12. Ideais
Podemos de vez em quando, e com sentimento de culpa, sentir o dese-
jo de criar uma casa para nos vangloriarmos diante dos outros. Mas so- L
mente se a parte mais verdadeira de nós mesmos for egomaníaca é que Em 1575, a cidade de Veneza encarregou u artista Paolo Y^eionese de
a urgência de construir será dominada pela necessidade de se mostrar. pintar um novo teto para o grande salão no Palácio do Doge, a Sala dei
Pelo contrário, na sua forma mais autêntica, o impulso arquitetônico Collegio, onde a magistratura se reunia para deliberar, e onde dignitá-
parece associado a um desejo de comunicação e comemoração, uma rios c embaixadores eram recebidos.
ânsia de nos declararmos ao inundo por meio de um registro não ver- () resultado foi uma simroosa celebração alegórica do governo

bal, por intermédio da linguagem dos objetos, cores e tijolos: uma vene/jimo. Num painel central, Veronese retratou a cidade como uma
bela e sóbria rainha do mar, assistida por duas damas de companhia,
ambição de deixar que os outros saibam quem somos - e, nesse proces-
uma simbolizando a justiça (com uma balança na mão) c a outra, a paz,
so, lembrar de nós mesmos.
(com urn leão sonolento, mas de aparência nada dócil, preso a uma
coleira - só como garantia). Painéis menores nos cantos retraiam vir-
tudes venezianas suplementares. Humildade mostra uma jovem loura
com uma ovelha obediente descansando as patas dianteiras no seu colo,
No painel ao lado, Fidelidade, uma moreninha melancólica acaricia o
pescoço de nin sao-bernardo. Do lado oposto, está a Prosperidade,
representada por urna mulher de bochechas rosadas, levemente
rechonchuda num vestido curto, segurando uma cormicópia transbor-
dando de maçãs, uvas e laranjas, E do outro lado, a Moderação^ na qual
uma donzela robusta com os cabelos trançados e urn seio exposto sorri
impassível enquanto arranca as penas de uma águia de olhar feroz (pro-
vavelmente ali para representar os turcos ou espanhóis). A julgar pelo
teto de Veronese, pouco havia na República Veneziana que não fosse
justo, pacífico, dócil c fiei.
Pagina a menor: Pviok> Veronese-, HuvtnhUdt', Sala dei Collegio, Palácio do Dogft, Vreneza. c 1575
Ncsm página: Paolo Veronese, 0 Triaufbde Saía dei CoJicgio
Num terreno não muitos quilômetros distante dali, em 1566, um
erudito, cortesà o e mercador conhecido como cônego Paolo Al me rico
pediu ao contemporâneo dc Veronese, Andréa Palludio* para construir
uma casa de campo, onde ele e a sua família se redrariam para escapar
das intrigas e doenças endêmicas das lagunas da república. Paliadio
estava impressionado com a forma como as construções da Roma Anti-
ga haviam conseguido personificar hem os ideais de sua sociedade -
ordem, coragem* dedicação e dignidade - e quis que os seus próprios
projetos promovessem um conceito dc nobreza renascentista compa-
rável, A página de rosto do seu livro de 1570, lhe hour Books of
Anhiieetiire, deixaria explícita esta ambição didática por meio de uma
gravura mostrando duas donzelas cia arquitetura saudando a rainha da
virtude. As fachadas equilibradas da Vil la Rotomla, a casa grandiosa
que Palladio concebeu para Almerico, pareciam sugerir que neste
único lugar cio mundo, em meio às planícies ensolaradas do Véneco, as
lutas e concessões da vida cotidiana haviam sido superadas e suplanta-
das pelo equilíbrio e a lucidez. Ao longo dos fromÕes triangulares c das
escadarias da casa de campo, uma sequência de estátuas cm tamanho
real feitas pelos escultores Lorenzo Rubini c Giambatcista Al bane se
davam forma humana a figuras da mitologia clássica. Saindo para o ter-
raço para respirar um pouco depois de ler alguns capítulos de Sênecn
ou rever urn contrato do Levante* o proprietário da casa ergueria os
olhos para apreciar Mercúrio, protetor do comercio, Júpiter, deus da
sabedoria, ou Vesta, a deusa do lar - e sentir que, pelo menos na sua
moradia no campo, os valores que mais prezava estariam para sempre
expressos c glorificados na pedra.
Desde a época de Palladio, e devido em grande parte ao seu exem-
plo, a criação de casas que pudessem refletir os ideais de seus donos
tornou-se uma ambição central dos arquitetos em todo o Ocidente.
Antlrta Pa lí adi o, Vi Ma Roti>mb. Vênetc;, 1580 Km 1764, Lorde Mansfieki, presidente do Supremo Tribunal de
Justiça, encarregou Kobcrt Adam de coordenar a reforma da bibliote-
ca de Kemvood, a sua casa em lianipstead Heaih, com vista para
Londres. Sob a direção de Adam, a biblioteca tornou-se uma consagra -
ção opulenta da personalidade da suprema autoridade legal do país.
Suas prateleiras estavam repletas de volumes sobre filosofia e historia
gregas e romanas, e seu teto foi decorado com uma pintura oval alegó-
rica. Com o título Hercules atire glória c as paixões, o desenho mostrava
um jovem herói helénico, nitidamente uma versão do próprio
Mansfield, tentando decidir entre dedicar a sua vida ao prazer (na
forma das três graciosas jovens, uma delas desnudando uma rechon-
chuda coxa) ou tomar o caminho do sacrifício a uma causa cívica digna
(personificada por um soldado que apontava para um templo clássico).
O observador era levado a compreender que a virtude cívica venceria a
contenda - embora a pintura, com seu domínio magistral mente iraiia-
nado de tons de pele, parecia declaradamente estar fazendo uma defe-
sa mais atraente da outra alternativa. Outra seção do teto mostrava
Justiça abrnç/nuio pttZy iwnrrcio ennvegnçno (uma reunião há muito espe-
rada), enquanto sobre a lareira pendia um retrato de Lorde Manstielcl
pintado por Da vi d Martin, que havia escolhido - ou fora orientado a --
retratá-lo recostado no Templo de Salomão (o mais sábio de todos os
reis de Isi ad), sob o olhar aprovador dc iun busto de Homero (o maior
de todos os contadores de histórias), com a sua mão direita mantendo
aberto um volume de Cícero (o mais nobre dos oradores). Aqui estava
um homem de sagacidade bíblica, grega e romana.
Uns sessenta anos depois, a apenas alguns quilômetros ao sul, os
membros do Athenaeum Club, de Londres, uma instituição que aten-
dia (conforme afirmava o seu estatuto) a “pessoas dc distinta eminência
na ciência, literatura, artes e vida pública”, encomendaram um novo
prédio pura eles mesmos cm Pall Midi. Figuras clássicas, imitando as
d os Má r mo r cs d e El gin e e x ecn tad a s pe lo es cu 1 to r ] o h n } 1 enni ng,
foram arrumadas num friso ampliado com uns oitenta metros de com-
primento, envolvendo as três fachadas do clube. As figuras entreli-
nham-se com as atividades atenienses equivalentes às que interessavam Roberc Adam. biblioteca, Kcinvond (íouse, J“69

os cavalheiros ingleses lá dentro: cantar, ler, escrever e discursar. Sobre


a porta da frente ficava uma dominam? estátua dourada de Atena. A
deusa das artes e cia sabedoria olhava com expressão desafiadora para
PaII Mall, concentrada otn dar a iodos que passassem uma amostra das
personalidades e interesses dos associados lá dentro. Pelo visto, a pou-
cos metros do comércio superficial do Piccadiily, uma instituição tora
fundada para abrigar dentro das suas paredes um grupo de homens ple-
namente à altura daqueles que haviam glorificado a cidade de Atenas
na sua era dourada.

Diante dos tetos pintados e das estátuas, na treme de alegorias de nin-


fas e deuses, nossos olhos provavelmente passariam de relance e muda-
riam de loco. O estilo idealizado, que em muitos países dominou a
arquitetura entre os séculos dezesseis e dezenove, norrnalmente nos
parece entediante e hipócrita.
E difícil desprezar, e mais ainda perdoar, as freqüentes discrepân-
cias entre a arquitetura idealizada e a realidade de quem a encomendou
e viveu nela. Sabemos que Veneza, seja lá o que Veronese tenha suge-
rido, repetidamente se esquivou de praticar as virtudes alardeadas pelas
donzelas no teio da Saía dei Collegio, Sabemos que a cidade traficava
escravos, ignorava os pobres, dissipava seus recursos c impunha imode-
rada vingança sobre seus inimigos. Sabemos que La Sereníssima pinta-
va uma coisa e fazia outra. Sabemos, também, que a família Almcrico
caiu em desgraça ames mesmo que a casa projetada por Pa) 1 adi o esti-
ves se pronta c que seus sucessores, os Capras, não gozaram do maiores
favores por parte dos deuses do comércio e da sabedoria, que pareciam
zombar das aspirações da família lá de cima da construção. Por sua vez,
Lorde Mansíield, longe de unir os talentos de Cícero, Homero e
Salomão, era o arquétipo do advogado dc meados do século dezoito,
rude, parco na sua humanidade e perito em ocultar os seus instintos
Deciitms Bmton, Athenacitm Club, 1&24: I:.. H. líailcy, Auva, Í82c) mais básicos por trás de citações dos clássicos. Quanto ao Athenaeum,
a maioria dos seus sócios tinha entrado para o clube pela promoção
social c desperdiçava os seus dias sentada em poltronas de couro, vendo
a c huva cair, ingerindo sonoramente com idinhas de criança e negligen-
ciando suas famílias, eram tão semelhantes aos contemporâneos de construções nao era lembrar como a vicia normal mente c, mas sim nos
Péricles quanto o Piccadiliy Circus da Acrópole, mostrar como ela poderia ser, nos aproximando pouco a pouco da
Ao contrário das idealizações dos nossos antepassados, tendemos a satisfação e da virtude. Esculturas e prédios deveriam nos ajudar a res-
nos orgulhar do interesse que temos pela realidade. Reconhecemos o suscitar o melhor de nós mesmos. Eles deveriam preservar do esqueci-
valor das obras de arte exatamente quando deixam de lado os ideais mento as nossas mais nobres aspirações.
róseos e se mantêm fiéis aos fatos atuais. Prestigiamos estas obras por
nos revelarem quem somos, e nao o que gostaríamos de ser. 5.
Não obstante, a extrema excentricidade e distanciamento do con- E na filosofia alemã do fim do século dezoito que vamos encontrar as
ceito de idealização artística convida a um exame mais minucioso. expressões mais lúcidas da teoria da idealização artística. No seu A edu-
Poderíamos perguntar por que, durante uns três séculos, no princípio cação estética do hvmmt (1794), Friedrich Schiller propôs que a perfeição
da era moderna, os artistas eram aplaudidos pnncipalmente se fossem presente numa arte idealizada seria fonte dc inspiração, à qual podería-
capazes de reproduzir paisagens, pessoas e construções livres das mos recorrer quando tivéssemos perdido a confiança em nós mesmos e
imperfeições comuns. Poderíamos tentar entender por que os artistas estivéssemos em contato apenas com nossas falhas, uma atitude melan-
competiam entre si para pintar jardins e clareiras mais bucólicos do que cólica e âutodcstruúva que ele percebia como uma tendência da sua
um parque de verdade, por que esculpiam lábios e tornozelos de már- era. “A humanidade perdeu a sua dignidade”, ele observou, “mas a Arte
more mais sedutores do que aqueles por onde o sangue realmente fíuía, a resgatou e preservou como um marco. A verdade vive na ilusão da
e faziam retratos dc aristocratas e nobres que os mostravam mais sábios .Arte, e é a partir desta cópia, ou pós-imagem, que a imagem original
e magnânimos do que jamais foram. será mais uma vez restaurada,”
Rara mente eram a ingenuidade ou mesmo o desejo de enganar que Em vez de nos confrontar com evocações de nossos momentos
estavam por trás destes esforços. Os criadores dc obras idealizadas mais sombrios, as obras de arte devem ser, nas palavras de Schiller,
eram criaturas mundanas e acreditavam que suas platéias também o “uma manifestação absoluta de potencial”; elas funcionariam como
eram. Eviden tem ente os conselheiros reunidos sob o teto dc Veronese “uma escolta que desce do mundo ideal”.
seriam com frequência desviados por impulsos mais perversos do que Se as construções podem atuar como receptáculos de nossos ideais,
os retratados acima de suas cabeças. Igual mente, era sabido que a incli- é porque podem ser purgadas de todas as infelicidades que corroem as
nação de Mansfield para fazer jus ao seu cargo competia com o canto vidas normais. Uma grande obra de arquitetura nos falará de um grau
das sereias da riqueza e da fama, e que a esperança de conseguir algo dc serenidade, força, equilíbrio e graça a que nós, como criadores ou
que valesse a pena no transcorrer de uma tarde no Athenaeum Club espectadores, normalmente nao podemos fazer justiça - e por esta
raras vezes era mais forte do que o fascínio das fofocas e dos pães de mesma razão ela irá nos divertir e comover. A arquitetura provoca o
mel na sala de chá. nosso respeito na medida em que nos supera.
Para os defensores da tradição ideaiizadora, a idéia de que os artis- O potencial de um prédio idealizado nao precisa estar plenamente
tas estavam sendo ingênuos ao sugerirem algo diferente da realidade realizado para justificar o seu valor. Aos olhos de Wilhehn vou
teria em si mesmo parecido ingênua. O propósito da sua arte e das suas Hurubuldt, contemporâneo de Schiller, foram os prédios idealizados
dos gregos antigos que ofereceram aos ocidentais modernos as fomes
de inspiração mais nutritivas, embora ele acrescentasse no seu ensaio
“Conccrning thc Study of Amiquity” (1793) que a arquitetura grega
merecia o nosso interesse mesmo que apenas unia cópia das perfeições
que eia sugere pudesse ser recriada no unindo burguês de mente práti-
ca: “Nos imitamos os modelos gregos com plena consciência de que
eles sao inatingíveis; enchemos a nossa imaginação com as imagens da
sua vida livre, proveitosa, rica, sabendo que essa vida nos é negada".
Ç>uando o arquiteto Karl Friedrich Schinkd, amigo dc Humboldi,
começou a construir cm Berlim pontes, museus c palácios clássicos, ele
sabia que os berlinenses só seriam capazes rie admirar de longe a anri-
guidade que de reverenciava, e não reacendê-la, mas confiava que
alguma coisa da integridade e grandeza desse período ainda pudesse,
através da arquitetura, permear a capital prussiana. Conforme os mora
dores atravessavam a Schlossbrücke indo para um encontro ou passa-
Cuatifí ‘t hw ielvat ífásvko. vam pelo Novo Pavilhão no Palácio Charloirenhof numa caminhada
No :• Ito: k;iri Friednch SchinLcJ, SchloH.shruclíu. Berlim, 18' b estátua de domingo, a arquitetura de Schinkd - suas pontes repletas cie está-
ele Àlhcrt Wolff, 1853
tuas, suas colunas sóbrias, seus delicados afrescos - poderia ter uni
Na página >u> Iado: KatJ i i ju,lrich Sdiinlicl, AJtcs Atuacui», IScrliin, 1830
papel central, provocando um renascimento do espírito.
4.
Por mais que pareça que perdemos a paciência para as idealizações»
desdenhando pontes decoradas e estátuas douradas, somos por nature-
za incapazes de abandonar o conceito em si, pois, livres de todas as suas
associações históricas, a palavra “idealização” refere-se simplesmente a
uma aspiração de perfeição, um objetivo que ninguém, nem mesmo o
mais racionai dos seres, ignora totalmente.
De fato não é aos ideais em si que renunciamos, mas aos valores
específicos um dia reverenciados por obras proeminentes de idealiza-
ção. Desprezamos a antiguidade, não temos mais respeito pela mitolo-
gia, e condenamos a autoconfiança aristocrática. Nossos ideais agora
giram em torno de temas como democracia, ciência e comércio. E, no
entanto, continuamos comprometidos como nunca com a idealização.
Por trás de uma fachada prática, a arquitetura moderna jamais deixou
de tentar refletir para seus espectadores uma imagem seletiva de quem
eles poderiam ser, na esperança de aprimorar e moldar a realidade.
Ambições de idealização tornam-se muito evidentes sempre que
se empreende a construção de prédios públicos ostensivos. Os pavi-
lhões nacionais da Feira Mundial de 1992, em Sevilha, por exemplo,
eram no seu estilo discreto tao idealistas a respeito dos países patro- Uma vida ideal va Finlândia. Esquerda: .Monark Àrchitects, Pavilhão Finlandês»
cinadores quanto Veronese havia sido no seu retrato das virtudes do Fxpo ’92, Sevilha, 1992
Ideal de tmta ram ira bancária. Direita: FrankGchry, DZ Bank, Berlim, 2000
governo veneziano. A entrada do pavilhão da Finlândia, composta de
duas partes separadas mas conjugadas -- uma lâmina de aço polido
aninhada a uma estrutura curva de madeira clara falava de uma so-
Os funcionários do DZ Bank, em Berlim, também tiveram sua ver-
ciedade que havia conseguido conciliar perfeita mente os elementos
são de um ideal na sede ao lado do Portão de Brandemburgo. Embora
opostos do masculino e feminino, da modernidade e da história, da
o seu trabalho seja muitas vezes rotineiro e repetitivo, a caminho da
tecnologia e da natureza, do luxo e da democracia. Visto como urn
cafeceria ou de uma reunião, os empregados do banco podem olhar
todo, o conjunto continha uma promessa austeramente bela de uma
através do enorme átrio do seu prédio para uma estranha e elegante
vida digna e elegante.
sala de conferências lá embaixo, cujas formas flexíveis sugerem a criati-
vidade e o espírito jovial a que seus solenes chefes aspiram.
:

,}, S;-\:/ Í3.-R

Oscar NiwnovÉT. O «nírresso Nacional, Brasília, 1%0 Kidiard Neutra, casa de Edgar J. Kaufmann, Palm Sprints, 1946

Au* cidades inteiras podem nascer do desejo de evocar “uma escol- Brasil, assim como o caos e a pobreza das suas cidades costeiras.
ta que desce do mundo idealT* proposto por Schiller. Quando o presi- Brasília daria origem à modernidade que simbolizava. Ela criaria um
dente Kuhirschek revelou os planos para :t consmiçao de Brasília, em país à sua própria imagem.
1956, prometeu que a nova capita) seria M
a mais original e precisa O fato de Brasília acabar tendo a sua cota de mendigos e favelas,
expressão da inteligência criativa do Brasil moderno*, incrustada num grama ressecada nas espaçosas vias publicas e rachaduras nas paredes
planalto no interior do Brasil, eia seria um modelo da eficiência da da sua catedral não teria dissuadido os defensores da idealização na
burocracia moderna. O resto do pais, distribuído de forma completa- arquitetura, assim como as traições e incompetências sob o teto de
mente desordenada e tumultuada, poderia apenas, eventual mente, ten- Vcronese, a estupidez deuiro do Aihenaeum, o alcoolismo e desespero
tar reconhecer este ideal. Brasília na o rinha a intenção dc simbolizar iv a Finlândia ou o tédio terminal nos escritórios do DZ Bank. Para eles,
uma realidade nacional existente, mas, sim, a de criar uma nova reali- esses lapsos simplesmente ressaltavam a necessidade das formas ideali-
dade. Kspcravn-se que, com suas largas avenidas o ondulantes prédios zadas, que funcionariam como uma defesa contra tudo que continua
de aço c concreto, ela ajudasse a apagar a herança de colonialismo do corrupto e pouco imaginativo dentro de nós.
Na era moderna, a idealização provou ser t5o atraente na esfera Mas o termo “propaganda” refere-se a promoção de qualquer
doméstica quanto na publica. C'asais burgueses que moravam nos pavi- doutrina ou conjunto de crenças e, por si só, não tem nenhuma cono-
lhões de aço e vidro planejados por Richard Neutra em meados do tação negativa. O tato dc grande parte dessa promoção ter estado a
século vime na Califórnia podiam beber muito às vezes, mas pelo serviço de agendas políticas e comerciais odiosas é mais nm acidento
menos suas casas falavam de honestidade, tranquilidade, fé no futuro e da história do que uma falha da palavra. Uma obra de arte passa a ser
falta de inibição - lembrando aos seus donos, no auge de seus acessos uma peça de propaganda quando utiliza os seus recursos para nos dire-
de raiva ou complicações profissionais (quando a sua fúria ressoava na cionar para alguma coisa, na medida em que tenta intensificar n nossa
noite deserta), o que eles no fundo queriam. sensibilidade e a nossa prontidão para reagirmos de forma favorável j

Em 1958, num remoto afloramento rochoso na ilha de Capri, o um fim ou idéia.


escritor italiano Cu r/i o Malaparre concebeu uma casa para si próprio Sob esta definição, poucas obras de arte deixariam de ser conside-
que seria, como ele escreveu a um amigo, “um auto-retrato em pedra* radas propaganda: nÜo apenas fotos de fazendeiros soviéticos procla-
e u ui na casa como eu”. Com o seu orgulhoso isolamento, sua justapo- mando seus planos quinquenais, mas também os quadros de peras e
sição de rusticidade e refinamento, o seu impassível e ousado desafio
aos elementos, e sua dívida estética com a Roma Antiga dc um lado e o
modernismo italiano de outro, a casa realmente captou alguns traços
, ltíto-retrato ew pedra.
essenciais da personalidade de Mal aparte. Felizmente para os seus vísi- Our/Jo Malaparic (tom Adalberto Libera), Casa MaLipartc. Capri. 1943
tantes, entretanto, acabou não sendo um retrato por demais fiei do seu
proprietário em todas as suas facetas - uma perspectiva difícil para
qualquer casa, sem duvida, mas principalmente no caso de Mal aparte,
pois teria sido necessário incluir móveis pretensiosos, corredores sem
saída, talvez uma linha de tiro ao alvo (de foi um fascista até 1943) e
algumas janelas quebradas (ele gostava de beber e depois brigar). Em
vez de refletir as muitas fraquezas do autor, a Casa Mahiparte, como
todas as obras efetivas de idealização, ajudava o seu talentoso, porém
imperfeito, proprietário a se orientar em direção aos aspectos mais
nobres da sua personalidade.

5-
A arquitetura produzida sob a influência de uma teoria das artes ideali-
zadora poderia ser descrita como uma forma dc propaganda. À palavra
assusta, pois estamos inclinados a acreditar que a grande arte deve ser
livre de ideologias e admirada pelo que é em si mesma.
ricotas lustrosas; cadeiras; e casas dc aço c vidro nus margens cio deser- 6.
to da Califórnia. Adorar a atitude aparentemente perversa de dar a Lima consequência desconcertante de fixar os olhos num ideal c que
rodas essas coisas o mesmo rótulo serve apenas para acentuar u aspec- ele pode nos entristecer. Quanto mais bela ê uma coisa, mais tristes
to orientador de todos os objetos criados de forma consciente obje corremos o risco dc ficar. Portanto, parados diante de um quadro de
tos que convidam os observadores a imitarem e participarem cias qua- Pteter de Hooeh mostrando uni garotinho de rosto sério trazendo
lidades neles codificadas. arenciosameiue alguns pães para sua mae, ou diante do Royal Cres-
Visto por esta perspectiva, faríamos bem em na o perseguir a meta cem, projetado por John Wood, o Jovem, cm Ba th, talvez nos vejamos
impossível de eliminar por completo a propaganda; deveríamos, ao prestes a chorar.
contrário, fazer um estorço para nos cercar de exemplos mais dignos Nossa tristeza nào será rio tipo dolorido, e sim uma mistura dc ale-
dela. Nâo Iri nada a se lamemar na idéia de que a arte pode orientar gria e melancolia; alegria peja perfeição que vemos à nossa freme,
nossas ações, desde que as direções que cia nos aponte tenham valor. melancolia pela consciência de como é raro termos a benção dc encon-
Os teóricos da tradição idealizadora foram de uma franqueza animado- trar algo assim. O objeto perfeito coloca cm perspectiva a mediocrida-
ra insistindo que a arte deve tentar fizer as coisas acontecerem - e, de que nos cerca. Somos lembrados de corno gostaríamos que as coisas
o mais importante, temar nos fazer bem. fossem e de como nossas vidas continuam sendo incompletas.

John Wood, o Jovem, Rov.il Oosccnr, Uath, 1775

fy .-\ ,y ^
aatiaüJ&tei
As figuras de Pie ter de Hooch e a curva do Roynl Cresce nt nos
emocionam peio contraste com as emoções que normalmente colorem
nossos dias. Os gestos gentis da mãe e a expressão confiante c obedien-
te do filho nos tornam conscientes de nossas próprias atitudes cínicas e
; bruscas. O Royal Crescem, em roda n sua solene dignidade, destaca a
natureza trivial e caótica de tantas das nossas ambições. í ais obras cie
arte nos tocam porque são diferentes de nós e, no entanto, iguais ao
que gostaríamos de ser.
Os filósofos cristãos tem estado singularmenre atentos à triste/a
que o belo é capa/ de provocar, “Quando admiramos a beleza de obje-
tos visíveis, ficamos sem duvida felizes”, observou o pensador medie-
val Hugo de Sào Vitor, “mas ao mesmo tempo sentimos um enorme
vazio”. A explicação religiosa para esta tristeza, vão iniplausível do
ponto dc vista racional quanto psicologicamente intrigante, é que
reconhecemos o que é belo como símbolo da vida imaculada que
gozávamos no Jardim cio Eden. Embora possamos um dia reaver esta
sublime existência no Céu, os pecados dc Adão e Eva nos privaram
dessa possibilidade na Terra. O belo, portanto, é um fragmento do
divino, e a sua visão nos entristece ao evocar a nossa sensação de perda
e o nosso anseio pela vida que nos é negada. As qualidades inscritas
nos objetos belos são as qualidades de um Deus de quem vivemos
muito afastados, num mundo atolado no pecado. Embora as obras dc
arte sejam finitas, o cuidado tomado por quem as cria é grande o bas-
tante para que possam reivindicar a perfeição numa medida cm geral
inatingível pelos seres humanos. Estas obras são provas agridoces de
uma bondade a que ainda aspiramos, embora raramente nos aproxi-
memos dela em atos e pensamentos.
Mesmo deixando de lado seus elementos teológicos, esta história
ajuda a explicar o pesar associado aos nossos encontros com objetos
Pie ter ck Hooch, Menino trazendo pào, c. 1665 atraentes. Imagine um homem que está passando por unia fase muito
atormentada da sua vida, sentado na sala de espera dc uma casa em esti-
lo georgiano, no centro da cidade, antes dc uma reunião. Sem se inte-
ress;i.r pelas revistas à sua disposição, ele ui ha para o teto e reconhece
que, cm algurn momento do século de zoilo, alguém leve o trabalho de
desenhar um friso intricado, mas harmonioso, feito de guirtandas de
dores entrelaçadas, c o pintou numa mistura de branco, azul porcelana
e amarelo. O teto é um repositório das qualidades que o homem gosta-
ria de ter dentro de si mesmo: consegue ser ao mesmo tempo alegre e
sério, sutil c claro, formal c despretensioso. Embora deva ter sido
encomendado por pessoas não menos praticas do que ele, o desenho
tem uma profunda delicadeza sem ser sentimental, como um sorriso se
abrindo no rosto de tuna criança. Ao mesmo tempo* o homem está
consciente de que o teto contém tudo que ele não tem. Ele está enre-
dado em complicações profissionais que não consegue solucionar, está
constimtcmente cansado, uma expressão amarga se esboça no sen
rosto, e ele começa a gritar destemperada mente com pessoas estranhas
- quando tudo o que ele quer c explicar que está sofrendo. O teto é o
verdadeiro lar do homem, para onde ele não consegue achar o caminho
de volta. í lá lágrimas nos seus olhos quando um assistente entra m sala
para conduzi-lo à sua reunião.
A tristeza do homem nos leva a uma idéia complementar. É talvez
quando nossas vidas está o mais problemáticas que tendemos a ser mais
receptivos às coisas belas. Nossos momentos de depressão proporcio-
nam à arquitetura e à arte as suas melhores oportunidades, pois nesses
momentos o nosso anseio por qualidades ideais está no auge. NI5o são
as criaturas com mentes hem organizadas e tranquilas que mais se emo-
cionarão ao ver uma sala limpa e vazia onde a luz do sol inunda uma
generosa extensão de concreto e madeira, nem será o homem confian-
te de que seus negócios estão em ordem que desejará morar - e talvez
chorar-- sob n teto de uma casa planejada por Rohert Adam.

ukal hn/u.-íiin nu teto.


Rf>l>ert Acfcmi* Honv* 1 lon^c, PortiiwtH Sík is u v , Londres. ) - 7S
Embora uma reação comum ao ver algo belo seja querer comprá-lo,
nosso verdadeiro desejo talvez não seja uuuo o de possuir o que acha
mos belo quanto o de garantir acesso permanente às qualidades secre- Por que os ideais mudam
tas que ele personifica.
Possuir um objeto desses pode nos ajudar a realizar a ambição de L
assimilar as virtudes a que ele alude, mas não deveríamos presumir que Um antiquário numa das extremidades mais pobres do noroeste de
essas virtudes irao automaticamente, e com facilidade, passar para nós Londres. Do lado de fora, sirenes de ambulâncias sugerem conclusões
só porque possuímos tal objeto. Fazer um esforço para comprar algo homicidas para desavenças, helicópteros sobrevoam, e gente com
que consideramos belo pode de fato ser o modo mais sem imaginação meias descombinadas anunciam no meio da rua ns desastres do milênio
de lidar com o desejo que essa coisa desperta em nós, assim como ten- para transeuntes indiferentes.
tar dormir com alguém talvez seja a reação mais obtusa a um senti- Mas o termo “antiquário” talvez seja delicado e discreto demais
mento de amor. para captar a natureza deste estabelecimento. Não há cheiro de couro
O que buscamos, no nível mais profundo, é parecer com os obje- velho e vendedores de óculos bifocais; o lugar parece mais um depósi-
tos e lugares que nos tocam pela sua beleza, mais do que possuí-los to da receita federal ou um ferro-velho. E aqui que objetos fazem uma
fisicamente. última tentativa dc provocar a tentação de compradores que não
enxergam bem antes de serem levados para se desintegrarem num
aterro sanitário.
Num dos cantos encontra-se um item de aparência excepcional-
mente melancólica, um aparador com lados arredondados, colunas
eoríniias e um espelho de excelente qualidade. Embora as gavetas ainda
funcionem e o acabamento continue milagrosa mente perfeito, seu pre-
ço está mais próximo do preço dc lenha para fogueira do que de um
móvel, atestando uma feiura espalhafatosa demais para ser ignorada até
pelos mais bem-intencionados ou míopes.
E, no entanto, este aparador deve ler sido muito amado um dia. E
possível que uma criada passasse o seu espanador nele de vez em quan-
do rui ma ampla casa em Riehmond ou YVimbledon. Um gato talvez,
tenha esfregado feliz a sua cauda nele a caminho da sala cie estar.
Durante uma geração, ele ostentou pudins de Natal, taças de champa-
nhe e fatias de queijo Stilton. Mas agora, no canto desta loja, ele tem
toda a pungência de unia velha princesa russa exilada num pulgueiro de
Paris sonhando com um palácio etn São Petersburgo, contando para
quem quiser escutar como ela era atraente aos dezessete anos de idade
- mesmo que seu hálito cheire agora a desespero e álcool.
Achar as coisas belas naturalmente nos leva a imaginar que perma- Guiné, nas Ilhas Salomão, no Congo, cm Mali e no Zaire, e só então,
neceremos fiéis aos nossos sentimentos. Mas as histórias do design e da no alvorecer do século vinte, voltou a scr proeminente no Ocidente.
arquitetara dão muito pouca garantia quanto à fidelidade dos nossos Esta era uma arte governada por um espirito de simetria, regularidade
gostos. O destino do aparador é o mesmo do de inúmeras mansões, e geometria. Seja na forma de esculturas, tapetes, mosaicos ou cerâmi-
salas de concerto e cadeiras. Nosso senso de beleza oscila continua- ca, seja na obra de um cesteiro de Wewak ou de um pintor de Nova
mente entre diferentes polaridades estilísticas; o contido e o exuberan- York, a arte abstrata aspirava a criar uma atmosfera tranqüila, marcada
te; o rústico e o urbano: o feminino e o masculino - levando-nos a por planos visuais repetitivos, sem relevos, total mente livre de quai-

abandonar impiedosameme objetos para que pereçam em brechós. quet alusão ao inundo real.
Fm contraste, notou Worringer, a arte realista, que havia domina-
Isso nos leva a supor que as gerações futuras um dia caminharão
do a estética na Grécia e na Roma antigas e foi preponderante na
pelas nossas casas com a mesma atitude horrorizada e espantada com
Europa desde o Renascimento até o fim do século dezenove, buscava
que encaramos hoje em dia nniitas das posses dos que já morreram.
evocar a vibração e a cor da experiência tangível. Os artistas dessa espé-
Ficarão estupefatos com nossos papéis de parede e sofás, e acharão
cie esforçavam-se para captar a atmosfera de uma floresta de pinheiros
graça dos crimes estéticos que nós não conseguimos enxergar. Esta
assustadora, a textura do sangue humano, o volume de uma lágrima ou
consciência dá aos nossos afetos um certo nervosismo e fragilidade.
a ferocidade de um leão.
Saber que aquilo que amamos agora pode parecer absurdo no futuro
O aspecto mais atraente da teoria de Worringer - uma tese que
por razoes que fogem à nossa compreensão atual é tão difícil de supor-
pode ser aplicada tanto â arquitetura quanto à pintura - foi a sua expli-
tar com relação a um móvel numa loja quanto no contexto de uni côn-
cação do porquê dc a sociedade transferir a sua lealdade de um estilo
juge esperado num altar.
estético para outro. F.le acreditava que o fator determinante para a
Não é de se estranhar, portanto, que os arquitetos tentem com mudança estava nos valores que faltavam à sociedade em questão, pois
tanto afinco distinguir a sua arte do que está na moda, e façam tanta ela amaria na arte o que não possuísse em quantidade suficiente em si
questão (inutilmente, é claro) dc criar obras que não se tornarão ridí- mesrna. À arte abstrata, impregnada de harmonia, tranquilidade e
culas ao longo das décadas. ritmo, atrairia prindpalmente as sociedades ansiosas por calma - socie-
dades onde a lei c a ordem estavam desgastadas, as ideologias mudan -
2. do, e uma sensação de perigo físico combinava-se com uma confusão
Por que mudamos de opinião acerca do que achamos bonito? moral e espiritual. Nesse cenário turbulento (o tipo de atmosfera
Em 1907, uin jovem historiador cia arte alemão chamado VVilhelm encontrada em muitas metrópoles da América do século vinte ou nos
Worringer publicou um ensaio intitulado “Abstraction and Empathy'\ vilarejos da Nova Guiné, enfraquecidos por conflitos internos que
onde tentou explicar essas mudanças dc uma perspectiva psicológica. duravam gerações), os habitantes experimentariam o que Worringer
Ele começou sugerindo que em toda a história da humanidade chamou de “uma imensa necessidade de tranquilidade”, e portanro se
existiram apenas dois tipos básicos de arte, “abstrata” c “realista”, cada voltariam para o abstrato, para as cestas com motivos decorativos ou
uma podendo ser, numa determinada época de uma sociedade em par- para as galerias minimalistas cie Lower Manhattan.
ticular, mais prestigiada do que a outra. Durante milênios, a arte abs- Mas nas sociedades que tinham alcançado altos padrões de ordem
trata gozou de popularidade em Bizâncio, na Pérsia, ein Papua Nova interna e externa, dc modo que a vida já parecia previsível c por demais
segura, um anseio oposto surgiria: os cidadãos desejariam fugir das gar-
ras sufocantes da rotina e da previsibilidade - e se voltariam pai a a arte
realista, a fim de saciar a sua sede psíquica e se familiarizar novamente
com uma intensidade de sentimentos difícil de captar.
Podemos concluir a partir desse raciocínio que somos levados a
chamar alguma coisa de bela sempre que detectamos nela aquelas qua-
lidades nas quais nós pessoalmente, ou nossas sociedades de uma forma
mais geral, somos deficientes. Respeitamos mn estilo capaz dc nos afas-
tar daquilo que tememos e nos aproximar daquilo que desejamos: um
estilo que renha a dose certa das virtudes que nós nao temos. O fato de
precisarmos da arte é por si só um sinal dc que cortemos um risco
quase que permanente de desequilíbrio, de não moderarmos nossos
ext remos, de perdermos o nosso controle sobre o meio-termo entre os
grandes opostos da vida: tédio e excitação, razão e imaginação, simpli-
cidade e complexidade, segurança e perigo, simplicidade e luxo.
Se o comportamento de bebês e crianças pequenas servir de orien-
tação, entramos no mundo com nossas tendências ao desequilíbrio já
bem arraigadas, Nos nossos cercadinhos e cadeirões, geral mente
demonstramos uma felicidade histérica ou uni selvagem desaponta-
mento, amor ou ódio, euforia ou exaustão -- e, apesar cio desenvolvi-
mento de um comportamento mais moderado na idade adulta, rara-
mente conseguimos atingir um equilíbrio estável; atravessamos nossas
vidas como navios que teimam em singrar mares revoltos.
Nossos desequilíbrios inatos são agravados ainda mais por exigên-
cias práticas. Nossos empregos exigem muito das capacidades que
temos, reduzindo as nossas chances de conseguir manter uma persona-
lidade harmoniosa e nos fazendo desconfiar (com frequência na escuri-
dão que se avoluma numa noite de domingo) que muito daquilo que
somos, ou poderíamos ser, ficou sem ser explorado. A sociedade acaba

Respeitamos um estilo capaz d( nos afastar daquilo que ievtemos / nos aproximar
sendo formada por diversos grupos desequilibrados, cada um ansioso
do que desejamos por saciar a sua deficiência psicológica particular, compondo um pano
No aím, n esquerda: Saia de ráfia, K uba, século vinte de fundo sobre o qual são travados conflitos, com freqüência acalora-
No alto, à direita: Ajjnes Man iri. Sem titulo, 1962
dos, sobre o que é bonito*
hjnbaixo: Mosaico bizantino, liasiiic.i Jc Kanipanoptrra. CJhiore, sécuJo seis d.t~
3.
Sob essa ótica, uma determinada escolha estilística nos dirá tanto sobre
o que falta aos seus defensores quanto sobre o que eles gostam. Po-
demos compreender o gosto da elite do século dezessete por paredes
douradas lembrando simultaneamente o contexto em que esta forma
de decoração tornou-se atrativa: um cenário onde a violência e as doen-
ças eram ameaças constantes, mesmo para os ricos - solo fértil para se
começar a apreciar as promessas dc anjos erguendo no ar gtiirlandas de
flores e fitas.
Não deveríamos acreditar que a era moderna, que muitas vezes se
orgulha dc rejeitar sinais de nobreza deixando as paredes nuas, sem
reboco, seja menos deficiente. Apenas faltam coisas diferentes. A
ausência de civilidade não é mais a ameaça prevalecente. Na maioria
das cidades ocidentais, pelo menos, os bairros mais miseráveis foram
substituídos por mas limpas e bem traçadas. A vida numa boa parte do
mundo desenvolvido tornou-se escrupulosa, rotineira, regrada c abun-
dante do ponto de vista material, a tal ponto que esses desejos agora
voltam-se numa outra direção: para o que é natural e descomplicado,
grosseiro e autêntico - desejos que as famílias burguesas podem apla-
car com a ajuda de paredes mal acabadas e blocos de concreto.
■:
4.
Os historiadores com frequência notaram que o mundo ocidental no
final do século dezoito adquiriu um gosto pelo natural em todas as suas
principais formas de arte. Houve um novo entusiasmo por roupas
informais, poesias pastoris, romances sobre pessoas comuns, arquitetu-
ra sem adornos e decoração de interiores despojada. Mas não devemos
ser levados n concluir a partir desta mudança estética que os habitantes
do Ocidente estavam eles mesmos se tornando mais naturais nesta
época. Eles estavam se apaixonando pelo natural na sua arte exatamen-
U?n muro paru nos dtfnuln- da ameaça de fwbrtnu e ãegraduç/lo.
Nro alio: quarto dtr dormir <ltr AIu k í A<lé!auk% Palácio de Versa lhe s», 1765 te porque perdiam o contato com o natural em suas próprias vidas.
Uma proteção contra os perigos do privilégio. Graças aos avanços da tecnologia e do comércio, a existência para
Embaixo: Tomas Nollei c Hilde íluyghe. Casa dc Nollei c Liuyghe, Bruges, 2002
as classes altas européias tinha se tornado, neste período, excessiva-
mente segura e metódica, um excesso que as pessoas educadas procu-
ravam aliviar com férias em chalés e leituras de dísticos sobre flores.
No seu ensaio "Sobre poesia ingênua c sentimental” (1796), Fricdrich
Schifler observou que os gregos antigos, que passavam a maior parte
do tempo ao ar livre e cujas cidades eram pequenas e cercadas de flo-
restas e mares, raramente sentiam necessidade de celebrar o mundo
natural na sua arte. "Visto que os gregos não haviam perdido a natu-
reza”. ele explicou, "nao tinham grandes desejos de criar objetos
externos a cies nos quais pudessem recupera-la.” E então, voltando
para a sua própria época, Schiller insistiu: "Entretanto, conforme a
natureza começa pouco a pouco a desaparecer da vida humana como
urna experiência direta, nós a vemos emergir no mundo do poeta
como uma idéia. E de se esperar que a nação que mais se afastou do
que é natural seja tocada mais fundo pelo fenômeno da ingenuidade.
Esta nação é a França” - um país cuja finada rainha havia poucos anos
antes corroborado a tese de Schiller passando os seus fins de semana a
observar vacas sendo ordenhadas na aldeia rústica que construíra no
fundo do seu jardim.

5.
Em 1776, o artista suíço Caspar VVolf pintou um quadro com um
grupo de alpinistas descansando diante da gigantesca geleira de
Lauteranr, no alto dos Alpes suíços, perto de Berna. Empoleirados no
topo de uma rocha, dois dos alpjnisras olham para uma imensa geleira
marcada com fissuras. As meias, o tipo de chapéu e o guarda-chuva ele-
gante e caro sugerem que são aristocratas. Debaixo deles, na parte infe-
rior esquerda da tela, sem prestar atenção à paisagem, está um guia da
montanha, segurando uma bengala comprida, vestido com um casaco
grosseiro e um chapéu de camponês. A pintura é uma análise de como
estruturas psicológicas diferentes podem resultar em noções contras - Chulés paru coirigir os excessos de um pnhiào.

tantes de beleza. Mario Antoinctrc, Princc <lc Lignc, Hubcrt Roberc.


Aldeia chi Rainha, Pcril 1'riaiujri, VcrsaUie*, l?8.$
Embora ele deva conhecer estas montanhas melhor do que todos
os seus clientes, o guia não tem o interesse dos aristocratas pelo cena
rio. Eíe parece estar se escondendo ao lado de uma pedra grande.
Imagina-se que esteja ansioso pelo término da excursão c, no íntimo,
rindo dos cavalheiros que foram bater à sua porta na véspera, pedindo
para serem levados para almoçar nas nuvens, em troca de uma quantia
que ele não pôde recusar. Para o guia, a beleza está nas terras baixas,
nos prados e chalés, enquanto as altas montanhas são lugares assusta-
dores onde alguém com juízo na cabeça sobe apenas se for necessário,
para resgatar um animal ou construir uma barreira de neve para conter
a fúria das avalanches.
A data do quadro é significativa, porque foi neste ponto do calen-
dário da imaginação ocidental que as montanhas, desprezadas por sé-
culos como monstruosas aberrações, começaram a exercer uma atração
muito difundida entre os turistas aristocratas, que encontravam na sua
rude aparência e perkulosidade um grato alívio para o fastio e refina-
mento de suas vidas cada vez mais civilizadas. Um século antes e os
cavalheiros teriam ficado em suas propriedades, podando as suas sebes
em desenhos geométricos, sem sentirem nenhuma vontade de serem
lembrados da existência da desordem ou da natureza selvagem. Um
século depois e até o guia nativo e a sua família teriam começado a
olhar com mais benevolência os aspectos indomados da natureza, o seu
recém-descoberto interesse seria provocado pela expansão do aqueci-
mento central, previsões meteorológicas, jornais, correios e linhas fér-
reas, que hoje correm até pelos vales alpinos mais altos.
Mas neste momento, no topo de uma montanha, duas avaliações
do belo coexistiam lado a lado, essa divergência se explica por dois
modos diferentes de vida, ambos deficientes.

6.
Caspar VVolf, A geleira de iMitttraar, 1776 Em 1923, uin industrial francês chamado Henry Frugès encarregou o
arquiteto Le Corbusier, famoso mas ainda sem muita experiência, na
época com 36 anos de idade, de construir casas para alguns operários e
suas famílias. Situados ao lado das fábricas de Frugès em Lège e Pessac,
perto de Bordcaux, os complexos resultantes foram exemplos de
modernismo, cada um composto de uma série ele caixas simples com
longas janelas retangulares, tetos planos e paredes nuas. Le Gorbusicr
orgulhava-se muito da sua falta de alusões locais e rurais. Kle zombava
das aspirações do que chamava de “brigada folclórica r formado por
tradicionalistas sentimentais ~ e denunciava a intransigência da socie-
dade francesa com relação à modernidade. Nas casas que projetou para
os operários, a sua admiração pela indústria e a tecnologia expressou--sc
nos espaços de concreto, nas superfícies sem decoração e nas lâmpadas
elétricas nuas, sem lustres.
Adas os novos inquilinos tinham uma idéia diferente de beleza.
Nao eram cies que haviam se fartado de tradições c luxo, de delicadeza
e refinamento, nem eram eles que estavam entediados com o sotaque
regional ou os entalhes minuciosos das construções mais antigas. Nos
hangares de concreto, uniformizados com macacões azuis, eles passa-
vam o dia montando embalagens de pinho para a indústria de açúcar.
As botas eram longas e os feriados, poucos. Muitos haviam sido obri-
gados a deixar suas aldeias distantes para trabalhar nas fábricas de
Monsieur Frugcs, c sentiam saudades das casas e terrenos que tinham
antes. No final de um dia de trabalho na fábrica, continuar lembrando
o dinamismo da indústria moderna não era uma prioridade psicológica
urgeme. Em poucos anos, os operários transformaram os seus cubos
co rb ii si a nos idênticos cm espaços privados, diferenciados, capazes dc
fazê-los lembrar das coisas que a sua vida funcional lhes havia tirado.
Sem se preocuparem se estavam estragando os projetos do grande
arquiteto, eles acrescentaram às suas casas telhados pontudos, persia-
nas, pequenas janelas de caixilho, papéis de parede floridos e cercas de
estacas no estilo vernacular e, feito isso, passaram a instalar unia varie-
dades de fontes ornamentais e duendes nos jardins em frente de casa.

Páginn :l(í Iruio: J.e O tfbuskr, OlSiVs, PcSSAC, 5 c IW5


As preferencias dos inquilinos podem ter tomado direções diferen-
te>s do gosto do arquiteto, mas a lógica por trás do exercício destas pre-
ferências era a mesma. Assim como o renornado modernista, os operá-
rios da fábrica sentiarn-se atraídos por um estilo que evocava as quali-
dades com que as suas próprias vidas tinham sido insuficientemente
contempladas,

/ .

Compreender o mecanismo psicológico que está por trás do gosto tal-


vez não mude a nossa noção do que achamos belo, mas pode nos impe-
dir de reagir ao que não gostamos com simples desprezo. Deveríamos
saber perguntar imediatamente o que faltaria às pessoas para verem um
determinado objeto como belo e entender o teor das suas carências,
mesmo se não pudermos nos entusiasmar com as escolhas que fazem.
Podemos imaginar que urn sótão branco e racional, aparentemen-
te ordenado de modo massacrame, talvez seja a casa de alguém oprimi-
do em excesso pela convivência com a anarquia. Podemos, da mesma
forma, supor que os habitantes de um prédio malfeito, onde as paredes
são de tijolos pretos e as portas de aço enferrujado, estejam fugindo de
sentimentos provocados por seus próprios privilégios, ou os da sua
sociedade, assim como podemos presumir que edifícios espalhafatosa-
mente alegres, onde os telhados são curvos, as janelas deformadas e as
paredes pintadas com cores infantis, tocarão profundamente os buro-
cratas sem imaginação, que verão neles a exuberância que promete ser
a válvula de escape para uma enorme seriedade interior.
A compreensão da psicologia do gosto pode nos ajudar a fugir de
dois grandes dogmas da estética: a idéia de que existe apenas um estilo
visual aceitável ou (de uma forma ainda mais implausível) que todos os
estilos são igual mente válidos. A diversidade de estilos é uma conse-
Os prédios qtie *7ww.?ww dt belos' cowen trtmt (njuefos ijualuLidcs em tfue >nmos defiàmtes
quência natural tia multiplicidade das nossas necessidades interiores. E Esquerda: DavidAdjaye, Diny Mouse, Londres, 2 002
lógico nos sentirmos atraídos por estilos que falem de excitação ou dc Dirdci: Mtchelc Saec e Bruno Pingeot, PuWiuis JDrugstore, Paris, 2004

calina, de esplendor ou aconchego, pois essas são polaridades-chave em


V.Asvirtudesdasconstruções
torno das quais giram as nossas próprias vidas. Como Stendhal dizia:
; ■ ' f' \ ;• , --'
“Existem tantos estilos de beleza quanto visões dc felicidade."
Não obstante, esta amplitude de escolhas nos deixa livres para
determinarmos quais obras de arquitetura em particular respondem de
forma mais ou menos adequada às nossas necessidades psicológicas
genuínas. Podemos aceitar a legitimidade do estilo rústico, mesmo .v . <-»■. • V' :
questionando o modo como os inquilinos de M. Frugès tentaram
introduzi-lo em suas casas em Lege e Pessac. Podemos condenar os
duendes e ao mesmo tempo respeitar os anseios que os inspiraram.

8.
Os choques e evoluções na nossa percepção cio que é belo podem ser
dolorosos e caros, mas parece nao haver muitas chances dc deixá-los de
lado total mente: produzindo cadeiras e aparadores que provoquem
uma aura de charme unânime ou permanente, por exemplo. Choques
de gostos são um subproduto inevitável de um mundo onde forças con-
rinuamente nos dividem e exaurem de maneiras sempre novas, Como
sociedades e indivíduos tem unia história, is tu é, um registro de lutas e
ambições variantes, a arte também terá uma história - na qual haverá
sempre vítimas corno sofás, casas e monumentos desagradáveis, Na
medida em que o nosso desequilíbrio se altera, a nossa atenção é atraí-
da para novas partes do espectro do gosto, para novos estilos que decla-
raremos belos com base na idéia de que eles encarnam o que agora está
oculto dentro de nós.
1. são como os homens da caverna, de vez em quando conseguem acen-
Quando o nosso objetivo não é ser preciso ou conclusivo, pode ser fácil der uma chama, mas não são capazes de compreender como, muito
chegar a um acordo sobre o que é um lugar belo feito peio homem. rnenus comunicar aos outros a base da sua façanha. O talento artístico
Tentativas de apontar as cidades mais bonitas do inundo geralmeme é como um fulgurante fogo de artifício que risca a noite negra, inspi-
incluem alguns lugares muito conhecidos: Edimburgo, Paris, Roma, rando admiração nos observadores mas extinguindo-se em segundos,
San Francisco, Ocasionalmente citam Siena ou Sydney. Alguém se deixando para trás apenas escuridão c saudades,
lembrará dc São Pctersburgo ou Salamanca. Outras evidências da con- É pouco provável que mesmo aqueles que no íntimo nutrem uma
gruência de nossos gostos podem ser encontradas nos padrões das nos- noção dos princípios operantes por trás da beleza arquitetônica tornem
sas migrações durante as férias. Pouca gente opta por passar o verão em públicas as suas suposições, por medo de cometerem uma irracionali-
Milton Keynes ou Frankfurt. dade ou de serem atacados pelos guardiões do relativismo, prontos a
Mesmo assim, a nossa intuição sobre o que é atraente na arquite- censurar todos aqueles que usam gostos individuais como leis objetivas.
tura sempre se mostrou de pouca utilidade para criar leis de beleza
satisfatórias. Poderiamos esperar que hoje em dia já fosse fácil repro-
duzir uma cidade com o encanto de Ba th, assim como é simples produ- O medo nem sempre foi tao prevalecente. Em cpocas anteriores, os
zir gelei a de mirtilos em abundância. Se os humanos em algum mo- teóricos da arquitetura sustentaram com fervor o argumento de que
mento tivessem sido peritos em criar obras-primas de projeto urbano, era possível extrair das grandes construções os seus segredos. Con-
estaria ao alcance de todas as gerações seguintes arquitetar a vontade siderava-se a arquitetura tão suscetível à análise racional quanto qual-
um ambiente com o mesmo sucesso. Não seria necessário prestar quer outro fenômeno humano ou da narureza. Um estudo cuidadoso
homenagens a uma cidade como se tosse uma criatura rara; suas virtu- das construções mais admiráveis prometia conduzir às leis do beio,
des imediatamente estariam presentes no desenvolvimento de um novo cuja vívida expressão inspiraria aprendizes, intimidaria legitimamente
pedaço de campina ou cerrado. Não seria preciso concentrar nossas os clientes e divulgaria a arquitetura humana de uma forma mais
energias na preservação e restauração, disciplinas que prosperam com ampla pelo mundo todo.
o medo que sentimos da nossa própria inépcia. Não teríamos de nos Foi no Renascimento que esta ambição codificadora esporádica
alarmar com as águas que sobem ameaçadoras no litoral de Veneza. atingiu o seu apogeu com a publicação de The Four Books of Ar-
Ficaríamos tranquilos em ceder ao mar palácios aristocráticos, sabendo chitecmre (1570), de Andréa Palladio, talvez a tentativa ocidental mais
que podemos a qualquer momento criar novas construções que rivali- influente de expor de uma fortna sistemática os segredos dos prédios
zariam em beleza com essas velhas pedras. bem-sucedidos.
No entanto, a arquitetura está sempre desafiando as tentativas de Palladio especificou que, ao desenhar colunas jónicas, um resulta-
colocá-la num caminho mais científico, mais regrado. Assim como os do agradável poderia ser alcançado apenas se a arquitrave, o friso e a
segredos da boa literatura não ficaram para sempre revelados depois de cornija fossem projetados para terem uin quinto da altura da coluna,
iiarnht ou Munsfídd Park, as obras de Otto Wagner ou Signrd Lc- enquanto um capitel coríntio tinha que ter a altura igual à largura da
werentz nada fizeram para reduzir a proliferação de prédios inferiores. coluna no seu ponto mais baixo. Quanto à parte interna, ele insistia que
As obras-primas continuam a parecer ocorrências casuais e os artistas as salas deveriam ser pelo menos tão altas quanto largas, que as propor-
çõcs cerras entre os comprimentos e as laterais cias salas eram 1:1* 2:3 e eixos dos corredores e diâmetros das colunas. Poderíamos esperar que
4:4, e que um hall de entrada deveria ser colocado num eixo central, em a casa fosse reconhecida como um dos prédios mais extraordinários da
absoluta simetria com ambas as alas da casa. Londres contemporânea, uma herdeira anglo-saxônica da Viila
Rotonria. Mas, na realidade, a estrutura tem sido alvo de veredictos
3. menos elogiosos e, entre os mais fiancos, dc zombarias.
No entanto, apesar da segurança dessas afirmativas, as leis de Palladio Soo muitos os problemas da casa. Suas formas parecem não estar
não resistiriam tanto quanto a fama das soas casas. O que deixou desa- de acordo com n sua era, elas comunicam sentimentos de orgulho aris-
creditadas estas leis ~ e na verdade significou o fim gradual de qualquer tocrata que não combinam com ideais contemporâneos. A cor das
tentativa de desenvolver uma ciência das construções atraentes - foi o paredes c amanteigada demais, enquanto os materiais têm um poli-
número de exceções que elas pareciam deixar escapar, como uma rede mento e uma perfeição que prejudicam a envelhecida dignidade que
de pescar rasgada. dá charme às casas projetadas por Palladio. Pena que ele não tenha
Na extremidade norte do Regem\s Park, em Londres, fica urna tido oportunidade de incluir mais umas duas dúzias de leis da beleza,
mansão, construída mais de quatrocentos anos depois de publicado que teriam colocado ornamentos adicionais em torno dos muitos
pela primeira vez o tratado de Palladio, que segue rigorosaniente mui- defeitos da mansão.
tos dos seus princípios sobre proporção, posicionamento dos quartos, Assim como seguir Palladio nào nos leva inevitavelmente em dire-
ção ao belo, ignorar os seus conselhos está longe de condenar uma casa
à feiura. Imagine um chalé no Lake District: o hall de entrada prensa-
do num canto, os quartos sem simetria, as colunas feitas de carvalho
espesso e sem tratamento, os tetos mal chegando à altura de um
homem, suas proporções parecem nào seguir nenhuma fórmula tnate-
mática. E, no entanto, um chalé desse tipo pode nos seduzir intensa-
mente, mesmo desobedecendo a quase todos os princípios contidos nas
páginas competentes do lhe Four Banks of Architecture.

4.
Essas lacunas foram um golpe duro para os arquitetos. Frustrados,
eles se voltaram contra a própria idéia dc leis, declarando-as ingênuas
e absurdas, sintomas de mentes rígidas e utópicas. O conceito de bele-
za foi condenado como inerentemente indefinível e, portanto, silen-
ciosa mente evitado.
Uma resposta melhor para os contratempos associados aos prin-
cípios neopalladianos, no entanto, seria uma argúcia maior em vez de

O que as kit permitem. QuhiJan Terry e Rayjrtond Er uh, íonic Villa, Londres, 1090
nervoso silêncio. Mesmo não conhecendo tudo que contribui para a
beleza de uma construção, deveria ser possível arriscar teorias sobre o Ordem
assunto na esperança de provocar outras pessoas a contribuírem com
mais idéias, fazendo assim um conjunto de conhecimentos sempre em 1.
evolução. Do canteiro localizado nu final de uma ampla rua em Paris, a vista
Para ajudar a superar a nossa relutância em julgar o aspecto estéti- abarca espaçoso c simétrico corredor de prédios de apartamentos alti
co das construções, devemos considerar a nossa relativa confiança em vos, que culmina numa larga praça onde há um homem de pé, orgulho-
discutir os pontos fortes e as fraquezas dos nossos pares, seres huma- so, no topo de uma coluna. Apesar da discórdia do mundo, estes pré-
nos. Uma boa parte das conversas sociais resume-se a uma avaliação dios solucionaram os suas diferenças e humÜdemente se arrumaram em
dos diferentes modos como terceiros ausentes se afastaram de um ideal padrões repetitivos perfeitos, cada um garantindo que o seu telhado,
implícito de comportamento ou, o que é menos comum, como agem de fachada e materiais combinassem exatamente com os dos seus vizinhos.
acordo com ele. Tanto no registro coloquial como no erudito, somos Até onde o olhar alcança, nem uma mansarda ou balaustrada está tora
tentados a identificar vícios e virtudes, '‘fofocas”, como sendo apenas de linha. A altura de todos os andares e a posição de todas as janelas
uma versão vernacular de filosofia ética. Mesmo que rara mente desti- repetem-se ao longo da rua c do outro lado também. Arcadas erguem-
lemos nossos rancores e admirações em hipóteses abstratas, com fre- se até sacadas que levam a três andares de arenito descorado, que por
qüência seguimos as pegadas de filósofos que escreveram tratados com sua vez encontram gentilmente telhados em cúpula, revestidos de
o objetivo de identificar e dissecar a bondade humana. chumbo, interrompidos a cada poucos metros por solenes e geométri-
Podemos aprender a dar nomes às virtudes das construções cas chaminés. Üs prédios parecem ter se adiantado como ura corpo de
seguindo o que estes filósofos fizeram cnm as pessoas, isto é, definin- baile, cada um alinhando seus dedões do pé para o mesmo ponto do
do com cautela os equivalentes arquitetônicos da generosidade, mo- pavimento, como obedecendo à batuta de um rígido mestre de dança.
déstia, honestidade e delicadeza. Uma analogia da arquitetura com a O ritmo dominante dos prédios é acompanhado por progressões har-
ética nos ajuda a reconhecer que é pouco provável existir uma única mônicas complementares, compostas de lâmpadas e bancos. Para o
fonte de beleza num prédio, assim como uma qualidade apenas não visitante ou morador sensível, este espetáculo de precisão representa
define a excelência numa pessoa. As qualidades precisam surgir no uma idéia de beleza associada à regularidade e uniformidade, levando à
momento certo, em combinações específicas, para funcionarem. Um conclusão de que na essência dc um certo tipo de grandeza arquitetô-
prédio com as proporções certas, construído com materiais inadequa- nica reside o conceito de ordem.
dos, não estará menos exposto a riscos do que um homem corajoso A rua é o produto de uma inteligência distintamente humana.
sem paciência ou intuição. Sentimos a total improbabilidade dc que a natureza cric algo que se
Armados com uma ampla lista dc virtudes estéticas, os arquitetos e compare com este ambiente em coerência e linearidade. O cenário nos
seus clientes estariam livres do excesso de dependência dos mitos confronta com uma externalizaçao das operações mais racionais e deli-
românticos quanto às origens casuais ou divinas da beleza. Cora virtu- beradas dc nossas mentes. Podemos imaginar o tumulto que teria pre-
des melhor definidas e mais rapidamente integradas às discussões sobre cedido a calma que agora reina neste lugar: os dias de verão escaldante
arquitetura, teríamos mais chances de compreender de forma sistemá- ecoando com o barulho dos martelos e serras de centenas de operários.
tica e recriar os ambientes que amamos intuitiva mente. Os materiais que compõem esta rua certamente foram trazidos do
outro lado do país durante anos por uma legião de fornecedores, mui- optaria por permanecer alojado no Massif Central, sob florestas de
tos alheios aos seus colegas, lodos trabalhando sob a orientação do pinheiros, antes de ser persuadido a sair da sua sonolência ao som de
mesmo mestre planeja dor. Grupos de trabalhadores em pedreiras do uma sinfonia de outros materiais brutos, a hm de participar de uma
leste e do sul provavelmente passaram meses batendo seus cinzéis de colossal composição urbana. A charrete de um artesa o talvez tenha via-
modo similar, para produzir pedras que se acomodariam submissa men- jado dias paia chegar à cidade, seu condutor talvez tenha deixado para
te ao lado das suas vizinhas. trás sua família e se hospedado em estalagens baratas, para que um dia
A rua fala do sacrifício exigido por todas as obras cie arquitetura. As uma tubulação pudesse se unir silenciosa mente no segundo andar dc
pedras talvez preferissem continuar dormindo onde estavam há duzen- um prédio de apartamentos com uma pia de lavar as mãos, tornando a
tos bilhões de anos, assim como o minério de ferro das balaustradas vida muito mais descompliçada.

( lharies Perder o Pu t iv Iw^ir^iíií1. me <Sc (iasiigiiurie. Paris, IMJ


A rua de Paris nos comove porque reconhecemos o nítido contras-
te entre suas características e aquelas que em geral colorem as nossas
vicias. Dizemos que é bela porque temos excessiva familiaridade com a
sua antítese: na vida doméstica, com aborrecimentos e disputas mes-
quinhas, e na arquitetura, com ruas cujos elementos decidem mal-
humorada mente não considerar a aparência de seus vizinhos c gritar
caoticamente por atenção, como amantes ciumentos ou enraivecidos.
Esta rua ordenada é uma lição sobre os benefícios de se trocar a liber-
dade individual por um plano mais elevado e coletivo, no qual todas as
partes se tornam um pouco maiores ao contribuírem com o todo.
Embora sejamos criaturas inclinadas a discutir, matar, roubar e mentir,
a rua nos lembra que podemos ocasionalmente dominar nossos impul-
sos mais básicos e transformar um terreno baldio, onde durante sécu-
los lobos uivaram, num monumento a civilização.

2.
A ordem contribui para o fascínio de quase todas as obras substanciais
de arquitetura. Tão fundamental é esta qualidade, que está gravada até
no mais modesto projeto desde o seu início, em cuidadosos diagramas
de circuitos elétricos e tubulações, em fachadas e planos - belos docu-
mentos nos quais cada cabo e esquadria de porta foi medido e nos
quais, embora sem compreender o exato significado de certos símbolos
e números, podemos sentir a impressionante presença da precisão e da
intenção e nos encantar.
“Vocês gostam de se queixar dizendo que estes números áridos são
o oposto da poesia!”, resmungava Le Corbusier, frustrado por estar-
mos talvez fechando os olhos para a beleza inerente a essas plantas e a
simetria de pontes, prédios e praças. “Estas coisas sao belas porque, em
meio à aparente incoerência da natureza ou das cidades dos homens,
sao lugares de geometria, um reino onde impera a matemática práti-
ca... E a geometria não é pura felicidade?” A pura fdiadadr da geowctna.
1 Aulwig VVitEgenstrin, planta, VViugenstem Hou.sc. Viena, 1^28
Felicidade porque a geometria representa uma vitória sobre a
natureza e porque, apesar do que uma leitura sentimental possa suge-
rir, a natureza na verdade se opõe à ordem da qual dependemos para
sobreviver, Se deixada à vontade, a natureza não hesitará em destruir
estradas, derrubar nossos prédios, empurrar ervas daninhas pelos nos-
sos muros adentro e devolver ao caos primitivo cada característica do
nosso mundo cn ida dosa mente planejado. O estilo da natureza é cor-
roer, derreter, amolecer, manchar e devorar as obras do homem. E, no
final, cia vencerá. No final, ficaremos exaustos de resistir às suas forças
centrífugas destrutivas; nos cansaremos de consertar telhados e varan-
das, sentiremos sono, as luzes se apagarão e o mato espalhará à vonta-
de seus tentáculos cancerosos sobre nossas bibliotecas e lojas. À nossa
consciência histórica da calamidade inevitável é que nos táz especial-
mente sensíveis à beleza de uma rua, na qual reconhecemos as qualida-
des responsáveis pela nossa sobrevivência. O impulso para a ordem
revela-se sinônimo do impulso pela vida.

A ordem arquitetônica nos atraí, também, como uma defesa contra a


sensação de complicações excessivas. Aceitamos bem os ambientes fei-
tos pelo homem que nos dão uma impressão de regularidade e previsi-
bilidade na qual podemos confiar para descansar nossas mentes. Não
gostamos muito, afinal, de surpresas constantes.
Um sinal de como gostamos pouco disso é o esforço que muitas
vezes empreendemos para apreciar uma paisagem. Nos deleitamos
quando chegamos ao topo de montanhas, terraços panorâmicos, res-
taurantes com vista para o horizonte e postos de observação, onde
encontramos o prazer básico de conseguir ver o que está lá longe, c
acompanhar a trajetória de estradas e rios pela paisagem, cm vez de vê-
los surgir de repente na nossa frente.
Um prazer comparável pode ser encontrado em construções, por
exemplo na janela de uma casa de campo que abre para uma alameda Os prawes de uma paisagem ordenada.
longa, num corredor que corta uma casa de ponta a ponta ou numa No alto: Cari Frederik Aiirlcrantz, Sturehof Estate, peno dc Estocolmo, 1781
série de pátios simétricos em torno de um eixo perfeito. Nestas cons- Embaixo: Chiisropher Wnsn e. seus sucessores, Hospital de Grecmvkh, <. Ióv5

truções ordenadas, temos a sensação de ter domado as imprevisibi!idades


a que estamos sujeitos e, dc uma forma simbólica, adquirimos coman- tetos para que deixassem de lado as suas ambições individuais em prol
do sobre um futuro incomodamente desconhecido, da coerência coletiva. **A melhor forma já existe e ninguém deveria
temer usá-la, mesmo que a idéia básica venha de outra pessoa. Chega
4. dos nossos gênios e originalidades. Continuemos a nos repetir.
Embora tenhamos tendência a acreditar - tatuo na arquitetura quanto Deixemos um prédio ser igual a outro. Não teremos as nossas obras
na literatura - que uma obra importante deva ser complicada, muitos publicarias no Deutsche Kunst nnd Dekoration e não chegaremos a ser
prédios bonitos são surpreendeu temente simples, e até repetitivos nas professores de arte aplicada, mas teremos servido a nós mesmos, à
suas formas. As charmosas casas geminadas em Bloomsbury ou os pré- nossa época, à nossa nação e à humanidade da melhor maneira que nos
dios de apartamentos em Paris foram erguidos de acordo com um é possível.”
padrão invariável e sínguUrmeme básico, estabelecido em rígidos códi- Poucos arquitetos escutaram. A incumbência de projetar uma casa
gos de construção municipal. Durante gerações, esses códigos impedi- ou escritório continua sendo uma oportunidade para reconsiderar o
ram os arquitetos dc usar a imaginação, deixando-os presos a uma desenho de uma esquadria dc janela ou porta de entrada desde sua ori-
estreita seleção de materiais e formas aceitáveis, e, como o casamento, gem. Alas um arquiteto preocupado em ser diferente pode, no final, ser
restringiram a escolha em nome da prudência. tâo problemático quanto um motorista ou um médico com excesso de
Ü fato de os códigos de construção terem desaparecido em muitas imaginação. Por mais importante que a originalidade possa ser em
cidades, junto com os modestos e satisfatórios edifícios ordenados, pode determinadas áreas, a contenção e a fidelidade aos procedimentos
ter sua origem no perverso dogma que surpreendeu a arquitetura profis- destacam-se como as virtudes mais importantes em muitas outras.
sional no período romântico: a fé num vínculo necessário entre grande- Raramente desejamos scr surpreendidos por novidades ao virarmos
za arquitetônico e originalidade. Durante o século dezenove, os arquite- uma esquina. Queremos coerência nos nossos prédios, pois nós mes-
tos eram recompensados de acordo com a originalidade das suas obras, mos estamos com frcqüênda próximos da desorientação e do frenesi.
de modo que construir uma casa ou escritório de uma forma conhecida Precisamos da disciplina que a similaridade oferece, como crianças
se tornou tão desprezível quanto plagiar um romance ou poema.
precisam de horário regular para dormir e alimentos leves e conheci-
Esta ênfase no talento individual teve o efeito involuntário de dila-
dos. Sentimos necessidade de que nossos ambientes atuem como guar-
cerar a trama euidadosamente tecida das cidades, “Não se passa um dia
diões de uma calma e de uma orientação sobre as quais temos um con-
sem que escutemos os nossos arquitetos sendo solicitados a serem ori-
trole precário. Os arquitetos que mais nos beneficiam talvez sejam
ginais e inventarem um novo estilo”, observou John Ruskin. em 1849,
aqueles generosos o suficiente para esquecerem as suas pretensões a
perplexo com a súbita perda de harmonia visual. O que poderia ser
gênios e se dedicarem a montar caixas graciosas, mas predominante-
mais nocivo, ele perguntava, do que acreditar que uma “nova arquite-
mente sem nenhuma originalidade. A arquitetura deveria ter a segu-
tura deva ser inventada a cada vez que construímos um asilo para
rança e a bondade de ser um pouco entediante.
pobres ou uma igreja paroquial”? Ele propôs que a arquitetura deveria
ser a obra de umtta escola, de modo que desde o chalé até o palácio, e
5.
da capela ate a basílica, cada aspecco da arquitetura das nações seja tão
corrente quanto o seu idioma ou a sua moeda7’. Meio século depois, e Por outro lado, o nosso amor pela ordem nào é ilimitado. Reco-
num estado de espírito semelha me, Adulf Luus tez um apelo aos arqui- nhecemos isso quando estamos diante de um prédio de escritórios com
muitos amfares, no qual todas as janelas consistem em quadrados idên- Vecchic, pois embora ambas sejam programáticas, apenas a do palácio
ticos de vidro espelhado preso a estruturas de alumínio idênticas, todos é dotada de um desenho suficienteinente elaborado para tornar vívida
os andares são iguais, mio há nenhuma distinção óbvia entre direita e a sensação de ordem. Esta grande caixa gótica, na qual nenhum andar
esquerda ou frente e fundos, e nem mesmo uma antena desgarrada ou repete outro na altura ou desenho decorativo, prende o nosso olhar
uma câmera de segurança tem permissão para perturbar essa harmonia. enquanto tentamos decifrar nas suas formas uma inteligência que po-
Em vez de despertar a nossa admiração com sua natureza evidente- demos apenas supor, mas não compreender de imediato. Não existe
mente ordenada, tal caixa pode provocar sentimentos de lassitude e ali um sistema simples de repetições. As janelas do último andar c os
irritação. Quando a vemos, tendemos a esquecer o esforço necessário arcos do andar terreo são da mesma família, mas têm tamanhos e
para arrancar ordem do caos ~ ao contrário de louvar o prédio por sua intervalos variados. Os nichos em forma de trevo no topo repetem os
regularidade, talvez o condenemos pelo sen tédio. entalhes sobre as colunas da galeria do primeiro andar, sem, entretan-
Apreciamos a ordem quando percebemos que ela está acompa- to, estarem alinhados com cias, cada andar parecendo buscar um
nhada da complexidade, quando sentimos que diversos elementos caminho congruente mas independente. Há mudanças de estado de
foram ordenados - janelas, portas c outros detalhes foram tecidos espírito conforme o olhar sobe pela fachada, de modo que enquanto o
num desenho que consegue ao mesmo tempo ser regular e intrincado. andar térreo transmite um ar sensato e bem acabado, com os pés
Assim, na praça de São Marcos, em Veneza, é a fachada do Palácio do enterrados simples e submissamente no chão, o primeiro andar assu
Doge que nos chama a atenção e nos encanta, não a das Procuraria me o caráter de um vestido bordado. Amassa lisa com tijolos brancos
e cor-de-rosa que se assenta por cima evoca o desenho de uma toalha
de mesa, com os arcos da galeria agora transformados em borlas e os
arcos do térreo, em pernas de mesa. O conjunto acaba numa nota ale-
gre, os ornamentos da linha do telhado sugerindo chapéus cie carnaval
saudando os céus de Veneza.
Em comparação, não há enigmas para nos deter ou abismar na
fachada clássica das Procnratic Vccehie. O olhar deduz de imediato o
esquema por trás do seu desenho, onde o andar térreo define um
padrão que é imitado prosaicamente, em escala menor, tanto no pri-
meiro corno no segundo andar. A diferença entre este prédio e o
Palácio do Doge é como a diferença entre uma batida de tambor
monótona e uma fuga de Hach.

6.
O modo mais óbvio de criar complexidade numa fachada é variar no
Os Imites Jti ordem.
tratamento de portas e janelas. Mas um efeito complexo e agradável
P rédi u ile e scr 11 óri os >' Preniun, New j c rsey, 19 95
O tédio da ordem. Mauro Oxlueci, Pmcuraüc Y'ecchie, Veneza, 1532 O pyazrr/la vidi fti io/n/étiudii o•///« . Pálido vo D**gc, Vene/;:, i "U) f 120

também pode ser obtido com o uso de tijolos, pedra calcária, mármo- lado a lado, extremidade com extremidade, unidos por uma argamassa
re, cobre patinado, madeira e concreto, materiais de aparência um cor de creme, conformaiido-se ao mesmíssimo esquema, perlei íuincn-
tanto rude e pouco civilizada, em cada um deles parece haver algo tu equilibradas entre a singularidade e a concórdia.
orgânico e indomado. A beleza é um resultado provável quando se Pisos de la lotas podem nos apresentar uns quadro .semelhante de
mipóe ordem li esses materiais vitais: u espírito se alinha com a lógica. harmonia entre lói\as contrárias. Existem pisos nos quais pedras gran -
Corno aconselhou Novalis: “Numa obra de arte, o caos deve tremelu- des, obtusas, foram persuadidas por um pedreiro a ocupar o seu lugar
zir através do véu da ordem.** dentro de uma grade metódica. Percebe-se como ;i.s características
Existem paredes de alvenaria que honram períeitameute as idéias excessivas destas pedras Jorani temperadas, corno cias foram educai las
desse poeta germânico, onde cada tijolo parece vivo, indisciplinado e pura superara se Iva geriu ainda evidente nas rochas us perus de onde vie-
individual, carregado de uma personalidade distinta e história. Uni ram. Elas tiveram de renunciar :i sua rebeldia, aparar suas barbas mus-
tijolo pode scr nodoso c escuro, outro róseo c inocente, uni terceiro guentas e alisar suas verrugas c joanete ;, tudo em prtd da disciplina
tciinosaniente pequeno, um quarto colorido e texturizadccomo pão de comum -- contribuindo par;? um piso onde podemos apreciar a ordem
nozes. No entanto, todas estas características díspares se acomodarão sem risco de tédio, e o vigor sem sombra de uii.uqun.
pelos tijolos grosseiros e variados das fachadas e pela localização à beira
de um canal sombrio, tempestuoso - detalhes que garantem que o pré-
dio acabará sendo correto, magnífico e ordenado.
Ern uma parte adjacente cio mesmo empreendimento imobiliário
holandês, um código dc construção rígido força uma fileira de casas a
adotarem dimensões idênticas, uma largura de 4,20 metros e uma altu-
ra de 9,50 metros. No entanto, dentro destes limites, uni alto grau de
exuberância e inventividade c permitido em termos de materiais, esti-
Pisos de madeira oferecem prazeres análogos quando as tábuas, los dc janelas e alturas dos andares. Conforme o nosso olhar vai passan-
que um dia tiveram ü pulsar da natureza fluindo dentro delas, sub- do pelas fachadas de frente para os canais, nós nos deliciamos com suas
mctem-se à vontade da serra e, no entanto, ainda guardam em si sufi- variações enquanto admiramos os rigorosos parâmetros dentro dos
cientes sinais de vida para se contraporem à geometria do carpinteiro. quais elas estão, Uma ética similar predomina em Telc, na República
Podemos ver redemoinhos, rodopios e imperfeições, como se a madei- Tcheca, onde a rígida planta baixa especificada para as casas em tomo
ra fosse urn rio turbulento porém congelado. Irregularidades permane- da praça principal é compensada por um liberalismo com relação a cor.
cem - um nó que não foi aplainado, uma depressão ou empenamento moldura e formato dos telhados. O resultado lembra urna cativante fila
que não foi alisado mas ainda assim estas características são gracio- de colegiais cuja principal semelhança (e talvez a única) é a de serem
sas, e não lembranças de ameaçadora complexidade, pois estão cuida- todos da mesma altura.
dosamente contidas dentro de uma série de calmas linhas paralelas e
ângulos retos, fixada por longos pregos de ferro.
A tensão viva entre ordem e caos pode ser explorada não apenas
por meio dos materiais, mas também nas linhas da construção e no
local onde ela está. Se o Park Crescem, de John Nash, cm Matylebone,
tivesse sido construído numa linha reta, por exemplo, não passaria de
uma fileira relativamente banal de casas geminadas. O que torna sua
beleza especial é a nossa sensação dc que a ordem que ele exibe foi
alcançada contra a atração contrária e subversiva exercida por uma
curva. Podemos imaginar a dificuldade que fui colocar cada prédio no
ângulo exato com relação aos seus vizinhos c moldar uma fachada em
torno de um teimoso semicírculo.
O Langhaus, um bloco de apartamentos projetado pelo escritório Diener e Diener, Langhaus, Java Ishmf Amsterdã, 200 J
de arquitetura Diener e Diener nas docas ao leste de Amsterdã, consis-
te em utna estrutura maciça, extremamente repetitiva, mas que tem sua
regularidade atenuada pela sequência assimétrica das janelas (6:12:21),
Essas obras enfatizam a verdade da antiga íimima que diz que a beleza
fica entre os extremos da ordem e da complexidade. Assim como não
podemos valorizar a segurança sem lembrar que existe o perigo, tam-
bém é só num prédio que flerta com a confusão que podemos com-
preender o tamanho da nossa dívida para com a nossa capacidade de
ordenação*

À esquerda, jno aí to: West 8/ Home o Sporenburg í fou&os. Amsterdã, ](>(>7


A esquerda, embaixo: Praça prineipai, Teli Aflora via do Sul, século de/esse is
l:ferrando wm o tédio* >wk‘(> pehi cmür <• a ctn-va.
John V.ish, Parle C!nüicciH% 3 SI 2
Equilíbrio

1.
Por trás do prazer gerado peia justaposição de ordem e complexidade,
podemos identificar a virtude arquitetônica complementar do equiH-
brio. Quando os arquitetos habilmente encontram urn ponto médio
entre qualquer oposição - inclusive o velho e o novo, o natural e o arti-
ficial. o luxuoso e o modesto, c o masculino e o feminino eles geral-
utente produzem belos resultados.

jm
Durante anos a construção barroca etn forma de U que abriga o
Instituto de Jornalismo, em KichstStt, teve um pátio no meio, vazio
salvo por um canteiro de flores c um bicicleta ri o. Então, cm meados
da década de ! 980, a pressão por mais espaço levou os diretores do
instituto a encomendarem uma nova estrutura ao arquiteto Karljosef
Schattner, que jogou um bloco de concreto c vidro inegavelmente
moderno no vazio entre as decoradas alas já existentes. Apesar de
serem de estilos dramaticamente diferentes, as parles velha e nova
adquiriram uma sedutora harmonia, assim como uma curiosa eo-
dependência, em que uma precisa da outra para reduzir as suas falhas e
acentuar os seus encantos. Retirar dali uma delas deixaria a outra pare-
cendo peda n temente conservadora ou brutal mente moderna, enquan-
to juntas elas realizam uma divertida síntese de temperamentos.
No saguão do Vale Center for Briiish Al t, de Louis Kahn, em New
llavcn, outra reconciliação de opostos se faz por meio da interação
entre paredes de concreto e painéis de carvalho inglês. Seria difícil
citar dois materiais com menos coisas em comum do que este par. A
força, longevidade c nobreza do carvalho há muito proporcionam aos
ingleses uma imagem idealizada do seu próprio caráter. Foi com este
Reihe um d vias, e ulipu se perde. pano de fundo de carvalho rica mente te.xturizado que gerações de cava-
Karljoücf SchiUnier, Instituto de Jornalismo, Fkhsiãm 198 lheiros leram o Daily Tclegrab em seus clubes, e professores almoçaram
nas faculdades de Oxford e Cambridge. Foi entre os carvalhos que
Robin 1 lodd se refugiou da lei l (Carlos II sc escondeu dos exércitos cie
CromwelL O curvallio inales foi responsável pelo teto cia Abadia de
WestiTiinsrer e pelos navios da frota de Nelson. Em torno de painéis de
madeira polida pairam, portanto, associações com a vida rural, a a ris to
crucia t a história, além dos cheiros de couro e uísque - sem falar nas
idéias românticas de nacionalidade.
Bem longe de tudo isto está o concreto, material que personifica
velocidade, economia e, na sua variedade reforçada, força bruta. Ele é
um meio essencialmeiue moderno e democrático cuja i edescoberta por
arquitetos do início do século vinte tornou possível muitas das estrutu-
ras funcionais da era tecnológica, incluindo silos para grãos, garagem,
torres e armazéns.
Entretanto, como um anfitrião inteligente diante de um par de
convidados para jantar de mundos nitidamente opostos, Kahn ajuda
estes dois elementos diferentes a reconhecer as virtudes um do outro e

S0R
a superar as suas mútuas desconfianças. Ele consegue reconciliá-los,
mas não tenta disfarçar ou diminuir as suas diferenças. Sem constran-
gimento s cm deixar o seu concreto nu e sem temer acentuar a sua
pobreza e aridez, Knlm nos encoraja a descobrir um novo tipo de bele -
za nas massas de cor cinza-elefante. Ao mesmo tempo, ele aberta men-
te nos deixa saborear e celebrar os antigos prazeres do carvalho, mos-
trando méritos como os tons quentes, a clareza e a granulação estriada
que o tempo lhe conferiu. Corno convém a uma construção dedicada às
pinturas de uma das nações mais torturadas pela rivalidade entre histó-
ria e modernidade, o Yale Genter for British Art é um elegante ensaio
sobre como passado c presente podem aprender a coexistir c sc com-
plementar mutuamente. Ao fazer isso, a construção esboça pura nós o
ideal contemporâneo do modo de ser inglês.
No alto dos Alpes italianos, uma outra construção soluciona urna
O ideal cüitizMpuràntQ do modo de ser biglêi. Lmás Kahn, Yale Centser for British Art. New Haven, 1977
tensão comparável entre campo e cidade, e entre os estilos rural t
industrial. A Casa de Pedra, do escritório de arquitetura I íerzug and de
Mcuron, é uma estrutura de concreto aparente onde estão empilhadas,
soltas, sem argamassa, pedras que saíram das pedreiras das encostas ao
redor. Tais pedras são do tipo usado durante séculos para construir os
celeiros e casas de fazendas da região. Elas são tão irregulares na cor e
na forma que chegam à beira da incoerência rústica, salvas apenas pela
geometria racional da sua moldura de concreto. Como o Yalc Conter
de Kahn, a casa de Herzog and de Meuron impressiona ao tecer um
padrão de beleza com dois elementos estéticos - significando, também,
dois tipos de felicidade - que jamais imaginaríamos compatíveis.

3.
Para explicar o encanto do equilíbrio entre elementos contrastantes
nas construções, parece natural levar a discussão para além da arquite-
tura, pois não é apenas a beleza visual que torna atraentes estas obras
equilibradas, mas também, e até principaimentc, a evidência de que
elas possuem irnia espécie de benevolência ou maturidade, distinta-
Ipãp mente humanas.
Parece que não podemos evitar projetar semiconscientemente a
nossa própria dinâmica interna nos prédios, correlacionando as oposi-
ções que certas construções exibem a aspectos concorrentes de nossos
próprios carateres. A tensão entre curvas e linhas retas numa fachada
ecoa a tensão entre razão e emoção em nós mesmos, E uma integrida-
de humana que vemos na madeira não envernizada, e uni hedonismo
humano que encontramos nos painéis dourados. Vidraças com dese-
nhos de flores e blocos de concreto preto (como os encontrados nas
paredes externas da Biblioteca da Universidade de Utrecht) parecem
equivalentes naturais a traços masculinos e femininos.
Por isso o equilíbrio que aprovamos na arquitetura, e que sagra-
mos com a palavra “belo", alude a um estado que, num nível psicoló-
gico, podemos descrever como saúde mental ou felicidade. Como as
IIvT/og aml \lt. iMouron. (Jasj r.1c PcJra. TyvoJc, Ugúrb, 1VSS
construções, nós também contemos opostos que podem ser concilia-
dos com mais ou menos sucesso. Nós também podemos descer a
extremos - de caos ou rigidez, decadência ou austeridade, machismo
ou efeminação mesmo quando instintiva mente reconhecemos que o
Homens c mulheres, VVjcJ Arets, biblioteca tia Universidade de Utredit, 2004 í/w prédio equilibrada é uma promessa de vida equilibrada.
Interior, Solar Skogahoim, Nãrke, c. 1790

nosso bem-estar depende da nossa capacidade de acomodar e neutra- que as cadeiras encontrassem um piso num tom semelhante ao delas --
lizar nossas polaridades. feito de mármore, talvez, ou parque primorosamente envernizado -
As tentativas que fazemos de harmonizar nossos aspectos diver- encontramos, ao contrário, tábuas de madeira grosseira, sem verniz,
gentes em geral não têm a ajuda do mundo que nos cerca, que tende a do tipo que veríamos num palheiro. Uma outra combinação surpreen-
enfatizar uma gama dc antíteses incômodas. Pense, por exemplo, nos dente pode ser vista nas decorações das paredes, cujos motivos florais
truísmos que sustentam que não se pode ser ao mesmo tempo engraça- neoclássicos, que se esperaria estarem coloridos em tons fortes de
do e sério, democrático e refinado, cosmopolita e rural, prático e ele- vermelho e dourado, foram pintados em tons desbotados de cinza e
gante ou masculino e delicado. castanho.
Prédios equilibrados discordam. Veja, por exemplo, a tradicional O solar propõe um novo ideal humano, no qual o luxo não trans-
antítese entre luxo e simplicidade. A idéia de luxo tende a ser associada mitiria decadência nem uma perda de contato com as verdades demo-
com grandeza, pompa e arrogância - enquanto a simplicidade tem sido cráticas do espírito, e no qual a simplicidade poderia ser sintetizada
relacionada com a esqualidez, incompetência e deselegância. Entre- com a nobreza e o refinamento.
tanto, o interior do Solar Skogaholm, na Suécia, decorado no fim du Se certos prédios sutilmente equilibrados nos emocionam, é por-
século dezoito, contradiz de forma triunfal qualquer insinuação sobre a que são exemplos de como poderíamos conciliar aspectos conflitantes
impossibilidade de casar estas duas qualidades. do nosso caráter, dc como nós também poderíamos aspirar transformar
A mobília tem detalhes em estilo rococó refinado, com curvas e nossos opostos incômodos em algo belo.
guirlandas de flores delicadas e aristocráticas. Mas conforme o olhar
vai descendo para o chão, algo incomum aparece. Onde esperaríamos
Elegância

1.
Para o viajante que sai dc trem cie Zurique para o sul, atravessando os
Alpes numa manhã de verão, a paisagem começa com cenário pastoril
ondulante, onde vacas se banqueteiam numa grama verde luminosa e,
ocasionalmente, olham para os vagões que passam com seus olhos cas-
tanhos tristes, quase sábios. Por urna hora, pelo menos, a natureza está
no auge da sua benevolência. E só depois da cidade dc Chur que o cená-
rio bucólico dá lugar a algo mais severo. A grama luxuriante é pouco a
pouco substituída por um terreno de cascalho c pedras. Paredes escar-
padas cie granito erguem-se ao lado do trem, alternando se com abis-
mos íngremes, silenciosos a não ser pelos gritos das águias e o estalar de
galhos quebrados. Ao longo de encostas implausivelinente alcantiladas,
famílias de pinheiros agarrarn-sc a saliências estreitas como soldados
diligentes montando guarda. Enquanto dentro do vagão tudo continua
como era nas terras mais baixas - fotografias de um lago ainda estão pre-
gadas corretamente na parede perto da porta, uma garrafa de suco de
maçi continua cheia em cima da mesa - lá fora viajamos através de um
lugar que parece uma das luas menos hospitaleiras de Júpiter.
Num vale tão íngreme que suas paredes gelatinosas parecem
jamais terem sido aquecidas pelo sol, uma depressão de centenas de
metros termina num furioso rio marrom coalhado de pedras e amorei-
ras silvestres. A medida que o trem contorna a montanha, uma vista se
abre, revelando que, vários vagões mais adiante, a locomotiva ver-
melho-vinho tomou a inesperada decisão dc atravessar ele um lado do
vale para o outro, uma manobra que começa a executar sem fazer uma
pausa para consultar as autoridades superiores. Ela avança sobre o abis -
mo e atravessa uma pequena nuvem, com a enérgica formalidade que
sc poderia associar a mais rotineira das atividades, para a qual preces e
adorações seriam certameme desnecessárias e teatrais. O que tornou
esta proeza possível c uma ponte para a qual nada neste cenário nos
preparou - uma ponte de concreto total mente maciça mas delicadíssi-
ma, sem a mais leve mancha ou impureza, que só pode ter caído dos
2.
céus por obra dos deuses, pois é impossível imaginar que houvesse
Decorre daí que a impressão de beleza que extraímos de uma obra
neste lugar tão distante um local para os humanos descansarem suas
arquitetônica pode estar proporcionalmente relacionada com a imen-
ferramentas. A ponte parece não sc impressionar com as pedras afiadas
sidade das forças contra as quais ela se opõe. O poder emocional de
à sua volta, com os humores infantis do rio e as caretas feias e contor-
uma ponte sobre um rio volumoso, por exemplo, está concentrado no
cidas das rochas. Ela se satisfaz em reconciliar os dois lados do abismo
ponto onde os píeres encontram mas resistem às águas que sobem
como um juiz imparcial, modesto e voluntariamente prosaico sobre as
ameaçadoramente ao redor deles. Estremecemos só de pensar em mer-
suas próprias conquistas, com vergonha de chamar a nossa atenção ou
gulhar os nossos próprios pés nessas águas turbulentas e veneramos o
despertar a nossa gratidão.
concreto reforçado da ponte pelo modo corajoso como ele desvia as
No entanto, a ponte é testemunha de como um certo tipo de beleza
correntes que o assediam. Da mesma maneira, as pesadas paredes de
está associado à nossa admiração pda força, pelos objetos feitos pelo
pedra de um farol adquirem o caráter de um gigante indulgente e bon-
homem capazes de suportar o ímpeto assassino do calor, do frio, da gra-
doso durante um vendaval rancoroso que faz o possível para derrubá-
vidade e do vento. Vemos beleza nos telhados de ardósia espessa que
las, assim como, num avião atravessando uma tempestade, chegamos
desafiam as tempestades de granizo, nas barreiras contra o rnar que des-
quase a amar os engenheiros aeronáuticos que, em tranquilos escritó-
prezam as ondas que as espancam, nos ferrolhos, rebites, cabos, vigas e
rios em Bristol ou Toulouse, projetaram as asas de alumínio cinza -
contrafortes. Ficamos emocionados com edifícios - catedrais, arranha-
escuro capazes de passar por turbulências com a graça das asas de um
céus, hangares, túneis, tirantes - que compensam as nossas inadequa-
cisne. Nós nos sentimos tão seguros quanto nos sentíamos quando éra-
ções, a nossa incapacidade de atravessar montanhas ou levar cabos de
mos crianças e nossos pais nos levavam para casa cie madrugada, enco-
uma cidade para outra. Respondemos com emoção às criações que nos
lhidos no banco de trás do carro, debaixo de um cobertor, de pijamas,
permitem transpor distâncias que nlo poderíamos cruzar a pé, que nos
abrigam nas tempestades que não poderíamos agiicntar, que captam sentindo a escuridão e o frio da noite entrar pela janela contra a qual
sinais que jamais ouviríamos com os nossos próprios ouvidos e que pen- nosso rosto se apoiava. Há beleza naquilo que é mais forre do que nós.
dem delicadamente de rochas de onde cairíamos instantaneamente para
nossa morte. 3.
Não obstante, como a beleza é tipicamente o resultado de algumas
qualidades trabalhando em conjunto, pode ser preciso mais do que
força para garantir o encanto de uma ponte ou de uma casa. Tanto a
ponte de Saiginatobel, projetada por Robert Maillart, corno a ponte
Pênsil de Clifton, projetada por Isambard Bt unel, são estruturas fortes;
ambas nos fazem venerá-las por nos transportarem com segurança evi-
tando uma queda fatal - e, no entanto, a de Maillart é a mais bonita das
duas pelo modo excepcionalmente ágil e aparentemente fácil com que
executa a sua tarefa. Com o seu maciço trabalho de alvenaria e pesados
Bcrnarcl Lovell, Charles Husband, Telescópio Loveíl, Jodreíi Bank, Cheshire, 1957
tirantes de aço, a construção de Brune) tem algo parecido com um
nos desagrada pelo estardalhaço que faz da sua tarefa de sustentar, com
múltiplos tirantes volumosos, alguns pedaços vc! ativa mente leves de
vidro. Ha uma desproporção entre o modesto desafio que se apresenta
ao toldo e a sofisticação de sua resposta, que infringe os princípios da
elegância - assim como Santiago Ca la trava nos deslumbra com a eco-
nomia e discreta inteligência com que suas esculturas desafiam as for
ças dn gravidade.
Também na literatura isso acontece. Admiramos a prosa onde um
pequeno e astutamente montado conjunto de palavras transmite uma
grande quantidade de idéias. ‘ Todos nós temos força suficiente para
suportar as desgraças alheias'1, escreve La Rochefbucauld num aforis-
mo que nos transporta com uma energia e exatidão comparáveis às da
['.$q uen fa: RoIxrrl Mailiart, j>onte ée SaIginíie<)foe], $chiers. 1931)
ponte de Àlaillart. O engenheiro suíço reduz o numero de suportes da
Direita: Uambard Brund. ponre Pcnsil âe. Cljfton, BrLscuL 1864
estrutura, assim como o escritor francês compact* mima única frase o
que mentes menos privilegiadas teriam usado paginas para expressar.
homem de meia-idade, atarracado, que ergue as calças e em voz alta Nós nos encantamos com a complexidade à qual o gênio deu uma apa-
chama a atenção das pessoas antes dc pular de um ponto a outro, rência de simplicidade.
enquanto a ponte de Maillart se assemelha a uni atleta que salta sem

Ê»
cerimônia e cumprimenta com seriedade o publico ames dc sair do
pódio. M duas pontes realizam proezas ousadas, mas a de Maillart pos-

_Jlli
sui a virtude adicionai de fazer a sua proeza parecer fácil c como sen-
timos que nào é, ficamos ainda mais maravilhados e a admiramos. À
ponte é dotada de uma subcategoria da beleza a que podemos chamar
dc elegância» uma qualidade presente sempre que uma obra arquitetô-
nica consegue executar bem um ato de resistência - segurar, transpor,
abrigar - com graça e economia, além de força; quando ela tem a
modéstia de nau chamar a atenção para as dificuldades que superou.

4.
Sendo assim, não descrevemos uma pesada viga de aço como elegante
quando da sustenta apenas o tampo de uma mesa, nem dizemos que
uma xícara de chá é elegante quando suas hordas tem quatro centíme- Esquento: Midiacl Unpkíns, Bracken 1 [cjuse, l-onurcs, 1 ^ /I
tros de espessura. O toldo de Alichael TIopkins para a Bnicken Mouse D i rc í ia; Santtog* > Ca la L nt va, Rttnn tuv 7 ot t m, 1^85
5.
Para considerarmos uma obra arquitetônica elegante, portanto, nào
basta que ela pareça simples: precisamos sentir que a simplicidade que
ela demonstra foi conquistada a duras penas, que da soluciona uma
grande dificuldade técnica ou natural Dizemos que é elegante a esca-
daria de Shaker, em Pleasant Hill porque sabemos - sem nunca lermos
construído uma escada pessoalmente - que uma escadaria é uma coisa
complicada, c que combinações de pisos, espelhos de degraus e balaus-
tradas raramente se aproximam da sóbria inteligibilidade da obra de
Shaker. Consideramos uma casa suíça moderna elegante porque nota-
mos que as suas janelas foram unidas sem emendas às suas paredes de
concreto, e reconhecemos a perfeição com que a construção foi execu-
tada. Admiramos obras muito simples que pareceriam, sem um esforço
imenso, muito complicadas.

ó.
Oportunidades importantíssimas para criar elegância ou o seu oposto
estão no modo como as colunas são projetadas para sustentar os tetos.

Esquerda: Escadaria, Shaker Hotise, Ple&sam. Hill, Kenmcky, 1841


Direita: Silvia (iiniir t\ lJvio Vacchmi, casa em lSeimveil am See, IVW
Como nós gostaríamos de nos cvMportar com r? fação ao peso que somos obrigados a carregar.
Esquenta: Kosttif and Partnes, estação de metrô, Cana 17 Wliarf, 1099
Direita: Palácio Gomares, Alhambra, Granada, 1370
Mesmo sendo leigos, conseguimos ter tnna boa noção da espessura que o tamanho da esquadria que o sustenta. Quando vidraças minúsculas
seria necessária para sustentar uma estrutura com segurança e admira- estão presas dentro de estruturas inexplicavelmente amplas, tendemos
mos aquelas colunas que parecem modestas em rei aça o ao peso que a sentir o mesmo desconforto que sentimos quando alguém usa muitas
suportam. Enquanto algumas colunas têm ombros bem largos mas palavras para dizer pouca coisa. Em contraste, as casas georgianas de
parecem descontentes por carregarem um andar que seja, outras sus- Bath nos encantam pelo jeito etéreo como suas janelas parecem pairar
tentam tetos altos como os de catedrais sem esforço aparente, equili- sobre suas fachadas. Reconhecendo a intensa beleza da vidraça susten-
brando pesos enormes sobre seus estreitos pescoços como se estives- tada com desvelo, ao contrário do que às vezes fazem seus colegas pos-
sem levantando no ar estruturas de linho. Sentimos prazer diante de teriores, os arquitetos de Bath no século dezoito competiam uns com
uma aparência de leveza ou delicadeza frente à pressão - colunas assim os outros para criar esquadrias em que as mais finas dc madeira pudes-
parecem nos oferecer uma metáfora de como nós gostaríamos de nos sem segurar as maiores superfícies de vidro. Forçando os limites da tec-
comportar com relação ao peso que somos obrigados a carregar. nologia, eles reduziram a espessura das vidraças de 38 mm (nas primei-
As janelas são uma outra oportunidade para expressar a elegância ras casas em Queen Square) para 29 mm e, no final, para meros 16 mm
arquitetônica. O ponto aqui é a relação entre a quantidade de vidro e — criando janelas com a mesma graça fascinante de uma bailarina pin-
tada por Degas, fluidamente rodopiando o seu corpo de síifide num
eixo de meros cinco dedos.

7.
Se, conforme definimos, a elegância surge em parte do triunfo sobre um
determinado desafio arquitetônico - transpor um rio, suportar um teto
ou segurar uma vidraça no lugar -, então poderíamos acrescentar um
desafio mais abstrato a ser superado: a negligência. Apreciamos prédios
que parecem ter se livrado do peso do descuido e da indiferença.
Dentro dos robustos arcos da Bibliothèque Satnte-Geneviève, de
Henri Labrouste, em Paris, o visitante observador notará uma série de
florzinhas dc ferro fundido. Achar que elas são elegantes é reconhecer
o trabalho extraordinário por trás da sua criação. Num mundo atarefa-
do, muitas vezes desatento, elas são como símbolos da paciência e da
generosidade, representam um tipo de doçura e até de amor, uma bon-
dade .sem segundas intenções. Não há outro motivo para estarem ali a
não ser o fato de o arquiteto ter achado que elas distrairiam os nossos
A mágica proporção da esquadria para a vidraça e do pé para o corpo. olhos e encantariam a nossa razão. São também símbolos de polidez --
Esquerda: Marlborougíi Bnildmgs, Bath, sécuio dezoko o impulso de ir além do que é exigido para desempenhar tarefas rudes
Direita: Edgar Degas. A estrela, 1870
- e de sacrifício, pois teria sido mais fácil sustentar os arcos de ferro
Meiiri Labrousit:, Bjlilioihètmc Saiiitr-íJenevrève, 1850

com suportes em ângulos retos. Debaixo delas, o espírito talvez seja


mais prático, e lá fora, nas mas, sempre haverá pressa c crueldade, mas
no reto, num reino limitado, as flores rodopiam e, quem sabe, até riam
enquanto adornam uma sequência de arcos.
£mboni pertençamos a uma espécie que passa unia parte assusta-
dorainente grande do seu tempo destruindo coisas, íle vez em quando
somos tentados a acrescentar gárgulas, guii landas, estrelas ou coroas
de flores aos nossos prédios nem nenhum motivo prático. Nos floreios
mais primorosos podemos ler sinais de bondade, uma forma de bene-
volência congelada. Vemos neles a evidencia daqueles aspectos da
natureza humana que nos permitem prosperar e não simplesmente
sobreviver. Esses toques elegantes nos lembram que não somos exclu-
siva mente pragmáticos ou razoáveis: somos também cr ia unas que,
sem nenhuma possibilidade de lucro ou poder, de vez em quando
esculpem frades de pedra e moldam anjos nas paredes. Para não zom-
bar desses detalhes, precisamos dc uma cultura bastante seguia do seu
pragmatismo e agressividade, capaz de aceitar as exigências opostas da
vulnerabilidade e da brincadeira - uma cultura sufteientemente livre
Esquerda: William Kimnan (paru um projeto de Kohert Adam), dera lhe
da ameaça de fraqueza c da decadência para permitir celebrações visí- de balaustrada em ferro fundido, 20 St, jame1* Squ.ire, Londres. 1/74
veis de delicadeza. Direiu: Eradc. Wells C latíicdraJ, Somer.sci, 1326
Coerência KJ -.
Poucos anos depois, mudei-me para o lacto oeste da cidade, e a li come-
1. cei a ter sensações igualmente intensas com relação a um edifício (que
Durante anos, indo c vindo das compras, eu passei por uma casa que, fica entre três outros) em Shepherd?s Bush Green, construído no início
apesar dcscr unia das construções mais teias que já vi, ensinou-me mais dos anos de 1970, pelo arquiteto Sidney Kaye. O prédio era imponen-
sobre arquitetura do que muitas obras-primas. te para esta parte da cidade, com vime andares, o que o tornava visível
A casa ficava na extremidade de uma avenida arborizada, no norte desde Hampstead. A sua altura, entretanto, não o impedia de parecer
de Londres, onde chamava a minha atenção peia evidência de ter pas- atarracado. O edifício terminava silenciosamente, num plano raso, sob
sado por uma grave crise de identidade. Parecia que cada ala e cada o qual unia série de pesadas faixas brancas acentuava o eixo horizontal.
andar da casa linham sido projetados por uma equipe diferente de .As janelas, enquanto isso, não faziam concessões nem ás vistas nem às
arquitetos, sem que uma soubesse o que a anterior tinha feito, de progressões ascendentes, mas permaneciam idênticas na forma e no
modo que o resultado coletivo acabou sendo unia desconfortável col- tamanho desde o rerreo 3té o topo. Era como se a estética de um chalé
cha de retalhos de estilos contrastantes. Enquanto alguns aspectos da de praia do pós-guerra tivesse sido aplicada às dimensões de um
casa macaqueuvam um chalé Tudor, os outros puxavam para o gótico. arranha-céu, resultando num prédio que não tinha certeza se queria ser
Havia sugestões estridentes dos vocabulários do movimento Arts and visto lá de Hampstead ou preferia se aninhar modestamente no meio
Crafts e do estilo Qnecn Anne. Ate o último andar era contorcido, dos baixos e escuros prédios de tijolos mais comuns na área. Irritado
parecendo não saber bem se desejava ser uma mansarda ou um telha- com essa indecisão, eu tinha vontade de lhe pedir que se mantivesse
do comum. adequadamente discreto ou então que aproveitasse ao máximo a sua
altura e volume, que parasse de ficar vacilando entre humildade e auto-
afirmação, como um adolescente que insiste em subir no palco mas,
uma vez ali, só sabe olhar mudo e carrancudo para a platéia.
Só muitos anos depois é que compreendi a minha insatisfação com
a torre, graças a um ensaio dc Louis Sullivan de 1896, com um dos mu -
los mais intrigantes da história da crítica da arquitetura: “The Ta 11
Office Arristically Considered" (O prédio alto de escritórios considera-
do do ponto de vista artístico). Escrevendo no alvorecer da era dos
arranha-céus, Sullivan alertava seu leitores para o fato de que muitos
dos novos prédios altos corriam o risco da incoerência estilística. O
problema cra que, mesmo com sua enorme altura de vinte ou trinta
andares, seus temas decorativos enfatizavam o eixo horizontal, uma
orientação mais adequada a uma casa palia dia na de dois andares. A
Sinais de mmi crise de identidade. Esquerda: Londres, NW3
combinação fazia com que eles parecessem toscamente em conflito
A estetic.a dsr um chufe dc praza bifriés aplicada às dimensões de nni arranha-ahr
quanto aos seus objetivos, como se estivessem puxando ao mesmo
Direi ta: Sirincy Kaye, V mver Block, ShephcrtLs liush, 19? I
tempo para cima e para os lados. Sullivan pedia aos arquitetos que dei-
xassem que um princípio coerente orientasse os seus projetos de
arranha-céus. “A principal coerência do prédio alto c sor altivo”, ele
propunha. “Ele deve ,ser em cada centímetro uma coisa orgulhosa e
elevada, erguendo-se exultante de modo que da base ao topo seja uma
unidade, sem uma única linha discordante.” Em poucos anos, a sua
sugestão se realizaria cota Imente nos grandes arranha-céus de Nova
York e Chicago, cuja beleza parece o resultado desta decisão de falar
em uníssono sobre altura. Desde as suas portarias afuniladas no térreo
f:W*V*HCUaG^cran*»*w«5jf
2tw2í!2*~$**<**«*«w*inr-*.

até as luzes vermelho-rubi piscando para os subúrbios da ponta das


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suas antenas cie rádio, estes altos prédios de escritórios seriam tudo que
VairnvjarvnMí»:****««
<W-V*i***®**?»t'•$*!•
n-W.y»'gTX;X>l-^ntV,1*

Sullivan desejava: orgulhosos, elevados, exultantes e inegavelmente


SpTL

coerentes.
«*'l^lTSríT*

3.
Quando os prédios faiam, nunca é com uma voz única. Prédios sao
coros e não solistas; cies possuem uma natureza múltipla de onde sur-
gem oportunidades para belas consonâncias, além de dissonâncias e
discórdias.
Embora certos prédios pareçam ter chegado a um acordo quanro a
sua missão estética, convencendo seus elementos disparatados a se uni-
rem para dar uma contribuição lógica ao todo, outros parecem mais
indecisos sobre as suas intenções, seus traços desviando-se lamuríosa-
mente em direções contrárias. Eles podem discordar quanto ao seu
tamanho, com janelas, telhados e portas entrando cm conflito. Ou suas
formas podem ser testemunhas de discussões mal resolvidas sobre a
natureza da felicidade.
No pórtico de uma villa vienense projetada por Otto Wagner, por
exemplo, uma estátua nos fala do Oriente, as colunas ao redor falam
sobre a Grécia antiga, e o trabalho em ferro fundido remete a rendas

"Em ctidtí artithtíctm uimi < ot>/i orgulbostt c clronda."


(.'asa Gillicn, Woolwt.nlb üuildiug» Nova York, tVl.?
manhã, que consistia em arroz, sopa de missó e vegetais). Mas pelo
menos o hotel estava muito bem localizado. Ficava a cinco minutos a
pé do palácio real Huis Ten Bosch, em Haia, e, na direção oposta, a
uma caminhada de dez minutos do castelo Nijenrode, do século doze,
de Utrecht. Havia lojas de queijos por toda parte, parelhas cie cavalos
frisões e cinco antigos moinhos dc vento, AJétn disso, um campo de
300 mil tulipas cercava os prédios, acabando apenas onde o solo ini-
ciava a sua íngreme ascensão para as montanhas cobertas de densos
cedros japoneses.
Entretanto, nenhum destes detalhes parecia capaz de me livrar de
um humor pesado e cada vez mais peculiar que tomou conta de mim
assim que cheguei ao Hotel de TEnrope. A minha infelicidade devia ter
i'.st]uer<!a: Oito Wagner, vtíln, Hmtdbergstra.sse 26. Viena, 1886 alguma coisa a ver com o fato de que, apesar das aparências, eu não
Direita: Andréa Pulladw», Vil] a Contarini, J-bulova, H46 estava na Holanda, mas sim no Japão, a quarenta minutos de trem de
Nagasaki, num parque temático de 62 hectares chamado Huis 1 en
rústicas austríacas, criando uma sensação de caos em nenhum lugar Bosch Dutch Village. Este parque de diversões surrealista foi projeta-
evidente na Vi lia Conta rini de Palladio, onde a passagem em arco se do para recriar, com surpreendente fidelidade, o clima da Holanda
harmoniza com as colunas, a argamassa ajuda a contrapor a aspereza do anterior ao século vinte, com ruas e praças, uma rede de canais e o palá-
trabalho em pedra e a estátua compensa a austeridade do todo. cio real de Haia. Ao construí-lo, os japoneses, mestres nas artes
Poderiamos dizer que nada na arquitetura é feio em si mesmo; está manuais, tinham sido meticulosos em sua preocupação com a autenti-
simplesmente no lugar errado ou foi feito no tamanho errado, enquan- cidade: haviam consultado plantas arquitetônicas originais e importado
to a beleza é a filha do relacionamento coerente entre as partes. madeira e tijolos do outro lado do mundo. Mas essa exatidão histórica
tinha conseguido apenas tornar o lugar mais lúguhre e irritante.
4. C) desconforto gerado por estar num canto da Holanda no meio do
A incoerência arquitetônica irão se restringe aos projetos de prédios Japão rural nos alerta para mais uma coisa que temos que exigir dos
individuais. Ela pode também, e de forma não menos deplorável, resi- prédios: além de suas partes estarem em harmonia entre si, a constru-
dir no relacionamento entre o prédio e o seu contexto geográfico ou ção como um todo deve harmonizar-se com o ambiente onde está;
cronológico. deve nos falar dos valores significativos e das características de suas
Num verão, ansioso por uma pausa na rotina, fiz uma reserva para próprias localidades e eras. Pois, para um prédio, refletir o seu contex-
mim no Hotel de rEnropc, um prédio enorme de tijolos vermelhos to cultural talvez seja tão fundamental quanto reagir ao seu contexto
em estilo neo-renascentista, como se costuma ver nos bairros mais meteorológico - uma construção que ignore esse imperativo é como
caros de Amsterdã. Os quartos não eram baratos: um duplo standard um prédio nos trópicos cujas janelas não se abrem ou um edifício nas
custava 42 mi] ienes (mais um adicional de 2.300 ienes pelo café tia montanhas cujas janelas não se fecham.
WÊÊÊÊÊl&: &:£'**»•* :• ••; -V:1'' r " ; r y.-iXV
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:f;-:v >• ;•••;- > . - í £ • : / c . : Assim como é perturbador quando os prédios negam o ambiente onde
• ".‘o
estão, pode ser agradável encontrar evidências da tendência oposta -
construções marcadas por traços arquitetônicos distintamente locais,
ate nos detalhes mais insignificantes que chamam a nossa atenção ao
descermos num novo país.
Poucas horas depois de chegar ao Japão, deitado na cama de um
hotel em Tóquio, remando inutilmente dormir, notei pela primeira ve/,
como eram diferentes os interruptores e tomadas do meu quarto. Àexci-
tação dc ter chegado a um país desconhecido concentrou-se nesses aces-
sórios, que podem ser para um prédio o que os sapatos são para uma pes -
soa: indícios inesperadamente fortes de caráter Descobri neles arautos
das particularidades nacionais que haviam motivado a minha viagem.
Eram promessas de um tipo distintamente local de felicidade. Meus sen-
timentos não brotavam de uma ânsia ingênua de exotismo folclórico,
mas de um desejo de descobrir que as diferenças genuínas que existem
entre países podem encontrar a devida expressão na arquitetura. Eu que-
ria interruptores de luz e, por extensão, prédios inteiros que sinalizassem
para mim que eu estava aqui e nao ali, agora e nao no passado.
Dando um passeio à meia-noite, a pé, ao redor do hotel, vi muitos
outros sinais dc uma identidade indiscutivelmente japonesa. Num res-
taurante, fiquei maravilhado com o complexo painel de controle de um
vaso sanitário eletrônico. Peno de uma estação de metro, uma máqui-
na automática oferecia garrafas de água e, como se fosse a coisa mais
comum do mundo, saquinhos com garras de lagosta secas. Havia pré-
dios equipados com fileiras de hidrantes multicoloridos e, num super-
mercado, tubos de algas flutuando em gelatina dara. Num fliperama,
cansado e confuso entre jogos de direção e ski, uma maquina me desa-
fiem a conseguir meu jantar pescando um caranguejo com um conjun-
No alto: Huis Tç ji Bosch Dutch ViHage, Nagasaki, 1992 to de pinças motorizadas.
Embnixor Hotel de PEuropc, Huis Tcn Bosch, 1992
Voltei para cama e mergulhei em sonhos dc um outro fuso horá-
rio, iluminados por imagens fragmentadas de painéis de néon, jardins
cobertos de limo, trens-bala, quimonos e crustáceos.
Os primeiros modernistas nao teriam reclamado disso, pois esta-
vam esperando uma era racional quando os estilos locais desaparece-
riam completamente da arquitetura, assim como tinha acontecido no
desenho industrial. Não havia, afinal de contas, uma ponte ou um
guarda-chuva ao mesmo tempo modernos e com cor local. Adolf Loos
tinha comparado o absurdo de se querer um tipo de arquitetura espo-
ei fica mente austríaca ao se desejar uma incide ta ou telefone que tos-
sem tipicamente austríacos. Se a verdade era universal, por que exigir
uma arquitetura local? T óquio parecia simbolizar o sonho modernista
de uma pessoa nâo saber nunca, olhando apenas os prédios, em que
país tinha vindo parar.

7.
Havia, não obstante, um ou outro lugar onde buscar alívio estético.
Mariíu? Carcher, Shinjuku, Tóquio
Um amigo me recomendou passar a noite num antigo ryokan, ou hos-
pedaria, fiel em quase todos os detalhes à arquitetura c desenho do
6.
período Edo (1615-1868).
Infelizmente, na manha seguinte T óquio estava menos disposta a satis-
fazer o meu desejo por cor local Um estado de espírito prático havia
tomado conta da cidade, enquanto vinte milhões de pessoas dirigiam-
se para o trabalho. As ruas dos bairros comerciais estavam cheias de
carros e gente de terno escuro: eu poderia estar ern qualquer outro
lugar do mundo. Com seus painéis luminosos apagados, os prédios
eram intencionalmente normais. Aglomerados de arranha-céus inex-
pressivos dominavam a linha do horizonte, suas formas comuns pare-
ciam rir silenciosamcnte das doze horas que passei num aviáo para che-
gar até elas. Peio interesse arquitetônico, eu poderia muito bem estar
cm Frankfurt ou Detroit.
Até em bairros mais residenciais, a arquitetura carecia quase total-
mente de raízes étnicas ou sabor local Vastos empreendimentos imo-
biliários espalhavam-se por toda parte, as casas eram construídas com
materiais genéricos e formas que nao surpreenderiam em quase nenhu- £<>qnerd;í: Arranha-cétis, S h i odod iv, I nq»i<>
ma parte do mundo desenvolvido. Aparentemente havia muito pouca Direita: Kamagaya City, Prefeitura dc Chih», Í(W

coisa de japonês na arquitetura japonesa.


O ryokav ficava a uma hora de trem, nos arredores de Tóquio, ani-
nhado entre montanhas e envolto em névoa. Rodeado de pinheiros e
jardins de limo, ele consistia num longo pavilhão de madeira coberto
com um tradicional kazraraneyanc (relhas cerâmicas). Unia recepcio-
nista vestindo quimono e tabi (meias com separação para o dedão do
pé) guiou-me até o meu quarto, que era revestido defusuma (portas de
correr) e divisórias de sboji (papel) decorados com caligrafia tradicio-
nal. A vista dava para um rio e uma encosta arborizada. Antes do sol se
pôr, curti um onsen (banho ao ar livre) numa fonte natural ao lado,
depois bebi um chá de cevada gelado numa cabana no jardim. O jantar
chegou num conjunto de caixas imaculadas. Saboreei o yosc-tm.be (sopa
japonesa) e kounonrorro (picles) - depois peguei no sono ao som da água
escorrendo pela encosta da montanha sobre antigas pedras vulcânicas.
Mas, de manha, a minha tristeza voltou com a perspectiva de ter de
retornar a Tóquio. Desconsolado, comi uma tigela de algas marinhas
secas c meditei sobre o cisma entre a perfeição estética do Japão histó- Uma arquitetura que não aceita a pessoa que nos tornamos depois de adultos.
Poundbury, Dorehester, 1994
rico e o tédio sem graça da sua encarnação moderna.
Na viagem de volta, dentro do trem, atravessando rapidamente a
desoladora paisagem de insípidas casas c prédios dc apartamentos, cu 8.
até comecei a desaprovar o mundo do ryokan^ incomodado com a sua Durante a minha estada, ví algum indícios ocasionais de que os japone-
incapacidade de traduzir as realidades modernas e se adaptar a elas, o ses tendem a associar os seus novos prédios ao passado do seu pais.
seu fracasso em descobrir um jeito de transportar os seus antigos Mas, na sua maioria, essas tentativas pareciam desanimadas, excessiva-
encantos para um novo idioma. mente sentimentais ou mesmo conipletamente impacientes.
A minha frustração com o ryokan era semelhante a um sentimento Numa parte de Quioto apinhada de gente, no topo de uni inócuo
que experimentei um dia na Inglaterra, numa visita a Poundbury, um prédio de escritórios, em meio a aparelhos de ar condicionado e ante-
vilarejo nos arredores de Dorehester estilizado à moda tradicional. nas, um minúsculo santuário tradicional parecia ter caído do céu em
Apesar cio seu moderado sucesso em captar o espírito tia vicia rural no resposta a certas necessidades interiores que a arquitetura moderna
século dezoito, o lugar era enlouquecedor pela sua incompatibilidade não conseguiu satisfazer. Passado e presente não fizeram nenhum
com as exigências psicológicas e praticas da sociedade contemporânea. movimento aqui no sentido de uma integração; pelo contrário, estavam
Parecia um antigo parente de quem se era muito amigo na infância, felizes em coexistirem, embora aparentemente nada pudessem lazer
mas que não compreende nada do adulto que se formou posterior men- para assimilar os pontos fones um do outro.
te pelas circunstâncias da vida, seja para melhor ou para pior. Km outro lugar, os apartamentos tinham miniaturas dc árvores dt
cedro do lado dc fora das suas portas de entrada e jardins de limo err
9.
Eu já havia notado algumas dificuldades de tradução num novo
empreendimento imobiliário em uma das praças clássicas mais famosas
dc Londres. Os arquitetos responsáveis pelo prédio de escritórios que
domina o lado noroeste da Manchester Square perceberam correta-
mente que o tratamento dado às janelas era a chave da harmonização
com as fachadas existentes, e portanto fi/eram o seu prédio com esqua-
drias brancas e retangulares.
Por uma infelicidade, estes arquitetos não registraram que as esqua-
drias clássicas são dignas de nota não por causa da sua cor ou formato,
mas por serem esbeltas c elegani.es - qualidades que os arquitetos
lamentavelmente sacrificaram ao recorrer a peculiares molduras com-
pactas formadas por perfis 1 de aço. Apesar do seu sincero desejo de res-
Shijo-dori, Quioto peitar o passado, os arquitetos haviam ignorado as verdadeiras razoes
pelas quais valia a pena respeitar o passado. Se eles se orientassem por
tinas penduradas nas varandas. Eu vi caligrafias tradicionais em corti- um outro conjunto de janelas, as da fachada do Queen\s fiuilding, em
nas de banheiro e telas de sbqfi fixadas em portas de cozinha. Comi em Cambridge, teriam se saído melhor, Embora suas esquadrias não sejam
restaurantes que ofereciam “salas antigas autênticas” aos turistas que brancas, mas de um preto cintilante, e sejam horizontais em vez de ver-
não se incomodassem com cenários de plástico. O telhado de uma ticais, elas parecem ter mais as verdadeiras qualidades da arquitetura
companhia de seguros ou uma agência de correio pode ocasionalmen- clássica do que qualquer uma das suas companheiras no prédio de
te curvar-se para cima nas pontas, num cumprimento ao estilo Londres, que supostamente respeitaria mais esse estilo. E raio uma ver-
Tokugawa. dadeira homenagem parecer realmente uma verdadeira homenagem.
Mas essas tentativas fracassam em fugir do kitsch, o que ilustra bem
as dificuldades de se encontrar uma forma moderna que incorpore
aspectos tradicionais de uma cultura. Divisórias de papel não darão a
uma casa o espírito japonês, nem o concreto e o cobre patinado garan-
tirão que ela não o terá. As verdadeiras herdeiras de casas Tokugawa
com frequência não têm nenhuma semelhança externa com suas mes-
tras: a semelhança é mais sutil, dependendo dc proporções e relações -
assim como os melhores tradutores de Murasaki Shikibu são muitas
vezes aqueles que tornam amplas liberdades na tradução de palavras
isoladas, sabendo que a transposição metódica raramente é o melhor Fsquercla: GMW Archiiects, lado noroeste, Munchesler Square, Londres, 2001
modo dc ser fiel às intenções originais. Direita: Lado sudeste. Manches ter Square, final du sccuio dezoito
construtores da Huis Ten Bosch talvez tenham esperado, nem tão res-
trita quanto a proposta por Goethe). Se acabamos considerando certos
estilos como produtos indissolúveis de lugares específicos, isso é ape-
nas um tributo à habilidade com a qual arquitetos nos induziram a ver
o ambiente através dos seus olhos, fazendo suas realizações parecerem
inevitáveis.
O que se discute, então, não é tanto o que um estilo nacional é,
mas o que cie pode ser. E prerrogativa dos arquitetos selecionar os
aspectos do espírito local que eles querem colocar em relevo. Enquan-
to a maioria das sociedades experimenta diversos graus de violência e
caos, por exemplo, não vamos querer que nossos prédios reflitam esses
Classicismo com afiarêticiu de modernismo.
aspectos do zeitgeirt. Por outro lado, não nos sentiríamos à vontade se
Vlichiid HopJáns, Queeifs Buíldin^, Emmunuel Collegç, Oimbrklgc, 1995
os arquitetos abandonassem de todo a realidade para produzir projetos
que não fizessem nenhuma referência à nossa moral ou aos nossos
10. objetivos prevalecentes. Mão nos agrada a fraude nas construções,
Como seria um bom exemplo de arquitetura japonesa moderna, eu assim como nos indivíduos.
fiquei imaginando ~ um que evitasse o kitscb e tosse coerente com o seu Um predio adequadamente contextua li zado pode ser definido
lugar e tempo? como aquele que incorpora alguns dos valores mais desejáveis e as mais
O aspecto nacional desta questão tem, às vezes, no caso de outros altas ambições da sua era e lugar - um predio que sirva como receptá-
países, provocado respostas quase místicas, sugerindo que fronteiras de culo de um ideal viável.
uma certa forma demarcam personalidades objetivas, reconhecíveis, Os atributos de um prédio assim poderiam ser comparados com u$
que os prédios de um determinado lugar deveriam interpretar e? de um protótipo admirável do scr humano no mesmo contexto, Oscar
depois, passivameme refletir. Em “On German Architecture” (1772), Niemeyer certa vez manifestou o desejo de que as suas obras arquite-
J. W. Gocthe declarou que a Alemanha era na sua “essência” uma terra tónicas expressassem os pontos de vista e atitudes dus brasileiros mais
cristã, e que o único estilo adequado para os novos prédios alemães era, esclarecidos da época; elas respeitariam o peso e os privilégios do pas-
portanto, o gótico. Ao ver uma catedral, escreveu Goethe “um alemão sado colonial do seu país sem serem dominadas por eles, seriam sensí-
deveria agradecer a Deus por ser capaz dc proclamar cm voz alta:4Isso veis à tecnologia moderna, mas conservariam unia saudável jovialidade
é arquitetura alemã, nossa arquitetura’”. e sensualidade. E, acima de tudo, cie observou, teriam afinidade com as
Mas, ua realidade, nenhum país jamais possuiu um estilo ou está “praias brancas, as enormes montanhas - e as belas mulheres bronzea-
preso a ele. A identidade arquitetônica nacional, como a identidade das” do Brasil.
nacional em geral, é criada e não ditada pelo solo. História, cultura, Um retrato semelhante, desta vez de um Sn Lanka ideal, anima a
condições climáticas e geografia oferecerão uma ampla variedade de ilha do Parlamento de Gcoffrey Bawa, nos arredores de Colombo.
temas possíveis para inspirar os arquitetos (nao tão ampla quanto os Aqui os prédios são uma síntese cias preocupações locais c internado-
âi)kv-' vü,
*Uma casa como eu."
Uttt idad brusihin^ satrívtl às "praias br/mcat, às enormes montanhas -
Gcoftrey Bawa, ilha tio Parlamento, Colombo, 1982
t us teias mulheres bronzeadas".
()s c a r N i c me yc r, ca sa tl e K u h i tsc hc k, P aro pulha, M ina s íít rai s, 194 3

Numa ruela em Tóquio, uma dessas casas mostrava ao mundo um


nais, históricas e modernas, os telhados evocando as quatro águas dos
rosto inexpressivo de concreto. Uma porca de entrada de aço dava para
mosteiros e palácios reais da Kandy pré-colonial, enquanto os interio-
uma passagem estreita que, por sua vez, abria para um amplo átrio caia-
res combinam com sucesso traços cingaleses, budistas e ocidentais. Os
do de branco, iluminado por uma luz difusa que brilhava através das
prédios de Bawa proporcionam não apenas uma sede para o poder
janelas de vidro fosco no telhado. Embora fosse um espaço doméstico,
legislativo da nação, eles nos oferecem também uma sedutora imagem
tinha um vazio e uma pureza tipicamente associados às construções
do que seria um cidadão moderno do Sri Lanka,
religiosas. Um convidativo esconderijo do mundo, a casa parecia estar
honrando a crença zen-budisto numa necessidade de criar um refúgio
11.
da vida diária, não para renunciar à realidade, mas para chegar mais
Existem alguns prédios residenciais, cm Tóquio e outras cidades, em
perto de algumas das suas fundamentais verdades interiores,
sutil harmonia com ns aspirações secretas das grandes obras tradicio-
Não havia janelas com vista nesta casa, talvez para ajudar os seus
nais da arquitetura japonesa.
habitantes a enxergar melhor o que verdadeiramente precisa ser visto.
As virtudes da arquitetura dessa nação - simplicidade, eficiência,
A luz que vinha do alro tinha a mesma luminosidade indireta, delicada,
modéstia, elegância - podem ser reencontradas em casas que, ao olhar
que emanaria de uma divisória shoji. O arquiteto tinha percebido, ao
casual, parecem não ter contam com o passado. Só depois de um exame
contrário de seus colegas menos talentosos, que este efeito luminoso
mais atento percebe-se que uma sensibilidade quase idêntica à das casas
não depende do uso do papel e madeira e pode scr alcançado de um
antigas foi expressada com materiais contemporâneos.
Te?,uka Archjreets, casa Jyubak*), Setagaya-ku/[Vh |uin, ?l)04
modo mais duradouro, com painéis de vidro tratado com jato de areia.
externas dc uma casa dc veraneio, a poucas horas de carro de Tóquio,
Graças a eles» a casa tinha um ar abstrato, espiritual: estar lá dentro era eram de ferro áspero e enferrujado, manchado de limo e água.
se sentir perto de um reino de sombras e névoa. Quando chovia, ouvia- Nenhuma tentativa tinha sido feita para limpar essas manchas ou pro-
se o tamborilar da água lá cm cirna, mas o vidro não revelava as nuvens teger o material com um a rede de canos de drenagem; na verdade,
de onde as gotas caíam. Esta era uma arquitetura projetada para afastar
parecia haver uma satisfação deliberada em observar a natureza atacar
a mente dos fenômenos e orientá-la para as essências.
as obras do homem. Os arquitetos das casas de chá mais antigas
Numa segunda casa, duas alas estavam ligadas por um átrio aberto,
tinham, pela mesma razão, deixado a madeira sem envernizar, valori-
de modo que no inverno era preciso sair para passar da saia de estar aos
zando a conseqüente patina e as marcas do tempo, que viam como
dormitórios. Embora isto confirmasse tuna queixa ocidental frequente
sábios símbolos da transi loriedade dc todas as coisas. No seu Elogio da
quanto ao misterioso aspecto glacial das casas japonesas, era evidente
sombra (1933), Juniehiro Tanizaki tentou explicar por que ete e seus
que esta falta de isolamento estava longe de ser acidental. Pelo contrá-
conterrâneos achavam as imperfeições tão belas: '‘Achamos difícil ficar
rio, ela estava associada a um desejo, de origem zen, de lembrar aos
á vontade com coisas que brilham c cintilam. Os ocidentais usam pra-
moradores a suo conexão com a natureza e sua dependência deia, isso
tos e talheres de prata, aço c níquel, c os esfregam até ficarem bem bri-
é, lembrar a unidade de todos os seres vivos. Urna caminhada até a
lhantes, mas nós não concordamos com esta prática. Embora às vezes
cozinha cm pleno inverno era uma lição breve e cáustica sobre o lugar
usemos a prata nas chaleiras, decantadores e tacas de saque, preferimos
do homem num universo maior e mais poderoso que ele. Só que este
não lhe dar polimento. Pelo contrário, começamos a apreciá-la só
mundo natural rnais amplo era evocado de formas mais abstratas, não
quando o lustro sc desgastou, quando eia começa a assumir uma pátina
pela visão dc um jardim repleto de pés de frutas maduras, mas pela pró-
escura, fosca.” Escritos budistas associaram uma intolerância às imper-
pria temperatura do ar, um fino tapete de musgo e três pedras vulcâni-
cas cuidadosameiiLe dispostas. feições da madeira e da pedra com o fracasso em aceitar a natureza ine-

Estas grandes casas modernas que encontrei eram muitas vezes rentemente frustrante da existência. Ao contrário do nosso próprio

simples no seu mobiliário, ecoando a antiga atração da estética japone- declínio, entretanto, aquele representado nos materiais e obras arqui-
sa pelo va/j o e pela austeridade. O cortesão medieval Kainu no tetônicas eram de um ripo eminentemente gracioso, pois madeira,
Chomei, no seu Tate ofthc Tcn Foot Squarc Hut (1212), descreveu a pedra e concreto envelhecem devagar e com dignidade. Eles não
liberdade daqueles que se despojam de posses supérfluas e ouvem os estilhaçam-se histericamente como o vidro, ou rasgam como o papel,
murmúrios dc suas próprias almas. Cabanas simples de madeira con- mas descolorem com um ar nobre e melancólico. As paredes enferruja-
quistaram, portanto, um lugar privilegiado na imaginação japonesa. Os das e manchadas da casa dc veraneio sao uru engenhoso receptáculo
grandes senhores dos períodos Motnoyarna (1573-1614) e Edo deixa- para pensamentos sobre declínio e mortalidade.
vam de meses em meses suas mansões e castelos c iam para cabanas,
seguindo a idéia zen de que a iluminação espiritual só pode vir através 12 .
de uma vida sem adornos. Reinterpreiações modernas bem-sucedidas de estilos arquitetônicos
Outras moradias modernas eram igual mente fiéis ao gosto tradi- tradicionais nos comovem não apenas num nível estético. Elas nos
cional japonês pela imperfeição dos materiais. As pesadas paredes mostram como nós, também, podemos passear entre épocas e países,
nos inspirando no que o moderno t: universal sem abandonar nosso
passado e nossos regionalismos.
As melhores casas modernas sentem-se feliz.es em reconhecer a sua
juventude e em beneti ciar-se honestamente dos avanços dos materiais
contemporâneos, mas cias lambem sabem reagir aos temas fascinantes
dos seus ancestrais e podem, por conseguinte, curar os traumas gerados
por uma era de mudanças brutais e rápidas. Sem defender em demasia
a história que professam amar, elas nos mostram como nós podemos
transportar as partes valiosas do passado e do local onde estamos para
um futuro global inquieto.

13,
Poucos meses depois de voltar do Japão, eu estava viajando pelas estra-
das da Holanda e percebi que os holandeses às vez.es eram tao capazes
de produzir pastiches quanto os japoneses. Lá também havia casas que
não davam nenhuma pista de que viver no presente também poderia
scr bom e, portanto, embora muito mais coerentes com a sua localiza-
ção do que suas irmãs perto de Nagasaki, nao eram menos incoerentes
com a sua era.
Mas, na estrada a oeste de Amsterdã, a caminho de Haarlem e do
litoral, encontrei um novo bairro do vilarejo de Vijfhuizen que corrigiu
triunfante todos os erros da Huis Ten Bosch Dutch Vil 1 age, pois suas
casas não só haviam sido construídas no país certo como também
haviam se adaptado muito bem ao século em que estavam.
De longe, o vilarejo parecia tradicional. Os telhados eram pontu-
dos e as casas espaçadas como numa típica área suburbana. Só chegan-
do perto é que se começava a notar mumees contemporâneas: os perfis
das construções eram nitidamente aguçados, como sugerindo um
toque de ironia ou consciência com relação às suas formas primordiais. ítaontilia^âú ito ajtTiga rom o novo tjuwui monumbit ãti Stn\u.
Os telhados, em vrez de serem de telha, eram de placas de aço canelado, Portr Zumthnr. Casa Gugahin, Versam,

enquanto as paredes, em vez de serem de ri joios, eram uma mistura de


painéis de aço e madeira igualmente canelados. Nesta combinação de
forma tradicional com materiais modernos, percebia-se o desenrolar Autocunheci mento
de uma conversa mu toa mente respeitosa entre passado e presente.
As casas souberam se acomodar à realidade da Holanda moderna 1.
permanecendo ao mesmo tempo tranquilamente conscientes da sua Certa ve/, passei um verão num pequeno hotel, no segundo arrondisse-
linhagem. Pareciam reinvenções do lar holandês arquerípico que não ntcnt em Paris, bem perto da fria seriedade da velha Bibliothèque
sucumbiam à nostalgia nem à amnésia. Nationale, aonde ia todas as manhas na vã tentativa de pesquisar para
um livro que esperava escrever (mas nunca escrevi). Era uma parte
movimentada da cidade, e quando me entediava com o meu trabalho,
o que acontecia quase sempre, eu costumava me sentar num café ao
lado do meu hotel chamado Chez Antoine, mu nome que parecia ter
saído de um guia turístico. Antoine tinha morrido, mas seu cunhado,
Bertrand, assumira o café e o dirigia com incomum afabilidade e
carisma, l odos, pelo visto, paravam no Chez Antoine em algum
momento do dia. Mulheres elegantes tomavam café e fumavam um
cigarro no balcão de manhã. Policiais almoçavam ali, estudantes pas-
savam as tardes no terraço coberto, e de noite havia uma mistura de
intelectuais, políticos, prostitutas, divorciados e turistas, flertando,
discutindo, jantando, fumando e jogando pinball. Consequen-
temente, embora sozinho em Paris, e passando dias quase sem falar
com ninguém, eu nao sentia a alienação que costumava experimentar
em outras cidades - Los Angeles, por exemplo, onde morei algumas
semanas num prédio entre vias expressas. Naquele verão, como muita
gente antes e depois dc mim, eu nao imaginava felicidade maior do
que poder viver para sempre em Paris, continuando a rotina de ir para
a biblioteca, perambular pelas ruas e observar o mundo de uma mesa
de canto no Chez Antoine,

2.
Por isso fiquei surpreso ao descobrir, anos depois, folheando um livro
ilustrado sobre planejamento urbano, que aquela área onde eu ficara,
Coerência m lugar e nc tempo. inclusive o meu hotel, o café, a lavanderia, o jornaleiro e até a Biblio-
S333 Archttccrs, Novo quarteirão, Vijfhuizen, 2004 teca Nacional, estava dentro de uma zona que um dos arquitetos mais
3.
Le Corbusier havia traçado o seu esquema parisiense num momento de
crise urbana sem precedente. Em todo o mundo desenvolvido, as cida-
des explodiam em tamanho. Em 1800, a capital francesa abrigava 647
mil pessoas. Em J910, trés milhões se comprimiam dentro dos seus
inadequados limites. Uma boa parte da classe camponesa da França
tinha em poucos anos decidido largar coletivamente as suas foices e ir
atrás das grandes oportunidades que a cidade oíerecia ~ desencadean-
do uma catástrofe social e ambiental.
Sob os beirais dos prédios de apartamentos, era comum várias
famílias dividirem um único quarto. Em 1900, nos distritos mais
pobres de Paris, um banheiro costumava atender a setenta moradores.
Uma torneira de água fria era um luxo. Fábricas e oficinas localizavam-
se no meio de áreas residenciais, soltando fumaça e efluentes nocivos.
Crianças brincavam em pátios inundados de esgoto não tratado.
O futuro de uma grande í idade >
Cólera e tuberculose eram ameaças constantes. As mas ficavam atra-
Le Corbusier* Plano "Voisin” para Paris, I c)22
vancadas com o trânsito. Os jornais da tarde noticiavam acidentes que
provocavam várias mutilações. Depois de trombar com um ônibus, um
cavalo foi empalado num lampião na Avenue de POpéra. Não havia
in teligenres e influentes do século vinte quis sistematicamente dina - muito de pitoresco na cidade do início do século vinte.
mitar e substituir por um grande parque pontuado com dezoito torres
cruciíormes de sessenta andares que iria até o sopé de Montmartre. 4.
O plano parecia tão louco que fiquei intrigado. Descobri fotos de Le Corbusier estava horrorizado com essas condições. “Todas as cida-
Le Corbusier debruçado sobre a sua maquete, explicando-a para uma des caíram num estado de anarquia”, ele observou. “O mundo está
fila de vereadores e empresários locais. Ele não tinha rabo nem chifres. doente.” Diante da proporção da crise, medidas drásticas fazíam-se
Parecia inteligente e humano. Só depois de compreender bem como necessárias, c o arquiteto não estava disposto a sentimentalismos quan-
uma pessoa racional poderia ter a idéia cie destruir metade do centro de to aos seus efeitos colaterais. Paris histórica era, afinal de contas, ape-
Paris, só depois de entender as aspirações por trás do projeto e respei- nas um outro nome para Paris tuberculosa.
tar a sua lógica, me pareceu justo começar a ridicularizar esra notável O seu manifesto, contido em dois livros - The City ofTomonow
concepção do futuro de uma cidade, ou mesmo sentir-se superior a ela. and Its Planning (1925) e The Radiam City (1933) pedia um rompi -
nento dramático com o passado: “Os centros existentes devem vir
«baixo. Para se salvarem, todas as grandes cidades precisam recons-
rruír o seu centro.” A fim de aliviar a superpopulação, os antigos pré-
dios de poucos pavimentos teriam de ser substituídos por um novo
tipo de estrutura, que só recentemente havia se tornado possível gra-
ças aos avanços na tecnologia do concreto armado: o arranha-céu.
“Duas mi! e setecentas pessoas usarão uma porta da frente11,
maravilhava-se Le Corbusier, que chegou a imaginar torres mais altas,
C
algumas abrigando até 40 mil pessoas. Quando esteve pela primeira fí\j-M ts ff
\.r\j\ .i
vez em Nova York, ele ficou desapontado com o tamanho dos prédios. r>C_.

! rr . . '7
“Os seus arranha-céus são muito pequenos"’, ele disse a um surpreso
L
jornalista do Ilerald Tribum. .....'........-j1ÍS
Construindo para cima, dois problemas se resolveriam de uma só
ir
tacada: a superpopulação e o desenvolvimento urbano desordenado.
Com espaço suficiente para todos nas torres, as cidades não precisa-
riam se espalhar para fora dos seus limites e devorar as áreas rurais
nesse processo. “Precisamos eliminar os subúrbios”, recomendava Le Um arranhu-dv para 40 mil pessoas.
Corbusicr. Essa objeção aos subúrbios baseava-se tanto no seu ódio Oe l e Corbusicr, The Cif)' nf Tomorrvw and Us Plannmg. 1925

pela mentalidade dos suburbanos, que considerava estreita, quanto na


estética das casas com cercas. No novo tipo de cidade, os prazeres
urbanos estariam disponíveis para todos. Apesar da densidade popula-
cional de mil habitantes por hectare, todos estariam confortavelmente
abrigados. Até o porteiro teria o seu próprio apartamento, acrescentou
Le Corbusier.
Haveria amplos espaços verdes também, visto que ate cinqüenta
por cento dos terrenos urbanos seriam dedicados a parques - pois,
segundo o arquiteto: “As quadras de esportes devem ficar na porta de
casa.” Na verdade, a nova cidade não teria simplesmente parques, cia
mesma seria um vasto parque, com grandes torres entre as árvores. Nas
coberturas dos prédios de apartamentos, haveria partidas de tênis e
banhos de sol às margens de praias artificiais.
Simultaneamente, Le Corbusier planejava abolir a rua dentro da
cidade: “Nossas ruas não funcionam mais. Ruas sao uma idéia obsole-
ta, Não deveria existir nada parecido com uma rua; temos de criar algu -
^7
ma coisa para substituí-las.” Ele observava com ar fulminante que o
Dc Le C-iOrhusier. TAr C/ry ofTomorron) and Its Plirtning, 1925 desenho das mas de Paris datava de meados do século dezesseis, quan-
A separação entre carros e pessoas era apenas um elemento do pro-
jeto de Le Corbusier para uma reorganização total da vida na nova
cidade. Todas as funções ficariam desembaraçadas. Não haveria mais
fábricas, por exemplo, no meio de áreas residenciais, portanto nâo
haveria mais ferro sendo forjado enquanto crianças tentavam dormir
nas vizinhanças.
A nova cidade seria um lugar de espaço verde, ar puro, amplas
áreas e flores - e não apenas para uns poucos, mas, como um trecho do
livro The Radiant City prometia, “para todos nós!!!”.

Ironicamente, os sonhos de Le Corbusier ajudaram a criar os conjun-


te ciuawietiio represesua um
tos habitacionais que agora cercam a Paris histórica, o deserto do qual
novo desenvolvimento na hisió-
i jii da hucniíni<bdw: -t morre une- Tudo aqui é paradoxal e devrmlenudo: iihtrdiufo individual desrruiiido *os turistas desviam o olhar em confiiso horror e desprezo ao entrar na
dia ta; ou peío menos uma umea- liberdade o>lctiv*. laita de disciplina.
fK-nuiméiUfi. cidade. Pegar um trem urbano para o mais violento c degradado destes
De Le Corbusier, The Riuíiant City, 1933 lugares é entender tudo que Le Corbusier esqueceu sobre arquitetura
e, num sentido mais amplo, sobre a natureza humana.
do “havia apenas dois veículos com rodas no tráfego, a carruagem da Por exemplo, ele esqueceu como é complicado quando alguns dos
rainha e a da princesa Diana”. Ele lamentava que as legítimas necessi- seus 2.699 vizinhos resolvem dar uma festa ou comprar um revólver.
dades dos carros e das pessoas estivessem sempre e desnecessariamen- Ele esqueceu como é enfadonho o concreto armado sob um céu cin-
te relacionadas, recomendando, portanto, que os dois ficassem separa- za. Ele esqueceu como é desconfortável quando alguém acende uma
dos dali para frente. Na nova cidade, as pessoas teriam caminhos só fogueira no elevador e a sua casa fica no 44* andar. Ele também esque-
para elas, serpenteando por bosques e florestas (“Nenhum pedestre ceu que, embora haja muita coisa desagradável nos bairros miseráveis,
jamais encontrará um automóvel, jamais!”), enquanto os carros goza- nós nem notamos o traçado das suas ruas. Apreciamos prédios que for-
riam de imensas e exclusivas vias expressas, com trevos suaves, garan- mam linhas contínuas a nossa volta e nos fazem sentir seguros a céu
tindo assim que nenhum motorista tivesse que diminuir a velocidade aberto corno se estivéssemos num quarto. Existe algo de irritante numa
por causa de um pedestre. paisagem que não é nem predominantemente livre de edifícios nem
Mais do que Paris, Nova York era para Le Corbusier o símbolo da rigidamente compacta, mas cheia de prédios distribuídos sem respeitar
cidade sem lógica, porque tinha conseguido introduzir arranha-céus, os esquinas ou linhas, uma paisagem que nos nega o verdadeiro prazer
prédios do futuro, num mapa de ruas estreitas mais adequadas a uma tanto da natureza quanto da urbanização. E como um ambiente assim
colonização medieval. Na sua viagem pelos Estados Unidos, ele aconse- é desconfortável, há sempre um maior risco de que as pessoas reajam n
lhou os seus cada vez mais confusos anfitriões a demolirem Manhattan ele de forma abusiva, urinem nos pneus jogados nos canteiros mal cui-
para dar espaço a um novo projeto urbano, mais “cartesiano”. dados entre os seus edifícios, incendeiem carros, injetem drogas e
6.
expressem todos os aspectos sombrios da sua natureza, aspectos contra
os quais o cenário não pode protestar. Novamente é de se esperar que as omissões tenham sido causadas pela

Na sua ânsia dc separar carros de pedestres, Le Corbusier também dificuldade de compreender o que precisamos e traduzir isso na lingua-
perdeu cie vista a curiosa co-dependênria destas duas forças aparente- gem inequívoca da planta arquitetônica. E fácil reconhecer quando um
mente contrárias. Ele esqueceu que sem pedestres para fazê-los dimi- quarto está iluminado correta mente e uma escadaria foi bem planejada,
nuir a velocidade, os carros vão correr rápido demais e matar seus muito mais difícil é converter esta noção intuitiva de bem-estar numa
motoristas, e que sem os olhos dos carros em cima deles, os pedestres compreensão lógica das suas causas. Projetar significa fazer um esforço
podem se sentir vulneráveis e isolados. Admiramos Nova York exata- para desaprender aquilo que acreditamos já saber, distinguir paciente-
mente porque o tráfego e a multidão foram coagidos a formar uma mente os mecanismos por trás dos nossos reflexos e reconhecer o mis-
aliança difícil porém frutífera* tério e a atordoante complexidade de gestos cotidianos como apagar
Uma cidade construída em bases aparentemente racionais, onde as uma luz ou abrir uma torneira.
diferentes partes (as residências, o shopping center, a biblioteca) estão Não admira que muitos prédios sejam tristes testemunhas do difí-
separadas umas das outras por um vasto terreno cortado por vias cil trabalho de autoconhecimento. Não admira que existam tantos
expressas, priva seus habitantes do prazer de descobertas incidentais e quartos e cidades onde os arquitetos falharam em traduzir uma com-
pressupõe que marchemos de um lugar para o outro com um propósi- preensão inconsciente das suas próprias necessidades em planos con-
to perseverante. Mas, mesmo saindo de casa com o objetivo ostensivo fiáveis para satisfazer as necessidades cios outros.
de consultar um livro na biblioteca, podemos nos encantar no caminho Nosso comportamento é repleto de excentricidades que frustram
observando o peixeiro arrumando seus peixes de olhos arregalados tentativas dc previsão. Em vez de sentarmos numa poltrona macia no
sobre camadas de gelo, os operários içando sofás estampados para den- meio da sala, podemos decidir que nos sentimos mais confortáveis
tro de prédios de apartamentos, as delicadas folhas verdes abrindo-se empoleirados num banco duro encostado na parede. Podemos ignorar
para o sol da primavera, ou a menina de cabelos castanhos e óculos
o caminho feito para nós por um arquiteto paisagista a fim de traçar o
lendo um livro no pomo de ônibus.
nosso próprio atalho - assim como nossos filhos acham mais divertido
Lojas e escritórios acrescentam excitação a áreas residenciais que
brincar ao redor da abertura de ventilação de um estacionamento do
seriam inertes. O contato com atividades comerciais, mesmo do tipo
que num playground construído para isso.
mais casual, nos dá uma energia que nem sempre somos capazes de
Nossos projetos dao errado porque nossos sentimentos de satisfa-
produzir sozinhos. Acordando solitários e confusos às três horas da
ção são tecidos com fios tênues e inesperados. Não basta que as cadei-
manhã, podemos olhar pela janela e nos consolar com os painéis de
ras nos sustentem com todo o conforto, elas devem além disso nos dar
néon piscando na fachada de uma loja do outro lado da rua, anuncian-
a sensação de que nossas costas estão protegidas, afastando de certo
do cerveja engarrafada ou pizza 24 horas e, do seu jeito peculiar, evo-
modo um medo ancestral do ataque de predadores. Quando nos apro-
cando uma confortadora presença humana nas horas paranóicas da
ximamos das portas de entrada, gostamos daquelas que têm uma
madrugada.
pequena soleira na frente, uma balaustrada, um toldo ou uma simples
Tudo isto Le Corbusier esqueceu - como os arquitetos muitas
vezes fazem, fileira de flores ou pedras - características que nos ajudam a marcar a
transição entre o espaço público e o privado e acalmar a ansiedade de na. Aprendemos as lições erradas com as nossas tristezas, enquanto
entrar ou sair de casa. tentamos em vão compreender as origens da satisfação.
Em geral não sofremos de um sentimento crônico de pânico quan- Os lugares que chamamos de belos sio, ao contrário, obra daque-
do aspectos sutis do projeto foram ignorados; apenas somos obrigados les raros arquitetos com a humildade para se indagar corretamente
a fazer um esforço maior para vencer a confusão c o desconforto. Mas sobre os seus desejos e com a tenacidade para traduzir suas fugazes per-
se alguém nos perguntasse onde está o problema, talvez não soubésse- cepções do que é felicidade em projetos lógicos - uma combinação que
mos identificar as características malignas do ambiente. Talvez recor- lhes permite criar ambientes que satisfaçam as necessidades que temos,
rêssemos a uma linguagem mística, citando improváveis harmonias mas nunca conhecemos conscientemente.
entre sofá e tapete, magnetismos pouco auspiciosos emanando da porta
ou energia negativa saindo pela janela - esses termos compensam a
nossa dificuldade ern explicar o que nos irrita. Embora os nossos senti-
mentos quanto a determinados lugares não possam realmente desafiar
a razão, nao é difícil entender por que procuramos uma superestrutura
religiosa que dê substância aos nossos indefiníveis descontortos.
Entretanto, esses desconfortos podem sempre ser vistos como o
resultado nada oculto de uma falta de empatia, obra de arquitetos que
se esqueceram de homenagear as sutilezas da mente humana, que se
deixaram seduzir por uma visão simplista de quem podemos ser, em
vez de prestar atenção a realidade labiríntica de quem nós somos.

7.
O fracasso dos arquitetos em criar ambientes agradáveis espelha a
nossa incapacidade de encontrar felicidade em outras áreas da vida. A
má arquitetura é, no final, um fracasso tanto de psicologia quanto de
projeto. E um exemplo materíaí daquela mesma tendência que em
outros campos nos ieva a casar com a pessoa errada, escolher empregos
inadequados e fazer reservas para férias malsucedidas: a tendência a
nao compreender quem nós somos e o que nos deixará satisfeitos.
Na arquitetura, assim como em muitas outras coisas, quando pro-
curamos explicações para nossos problemas nos fixamos em alvos
banais. Ficamos zangados quando deveríamos entender que na verda-
de estamos tristes e destruímos ruas antigas quando deveríamos em vez
disso introduzir nelas sistemas sanitários adequados e iluminação urba-
VI. A promessa do campo
Um campo, em algum lugar fora da cidade. Durante alguns milhões cie
anos, ele dormiu sob uma camada dc gelo. Depois um grupo de pessoas
com pronunciadas mandíbulas inferiores se estabeleceu ali, acendeu
suas fogueiras e ocasionalmente sacrificou animais para deuses estra-
nhos sobre unia base dc pedra. Milênios se passaram, inventaram o
arado, semearam trigo c cevada. Monges se tornaram os donos do
campo, depois o rei, em seguida um mercador e, no final, um fazendei-
ro, que recebia generosas quantias do governo para cedê-lo ao colori-
f a ’ de botões-de-oiiro, margaridas e trevos vermelhos.

i^V-í; O campo leve uma vida agitada. Um bombardeiro alcmào. mniro


longe do seu alvo, voou sobre ele na guerra. Crianças interromperam
longos passeios de carro para vomitar na sua margem. Pessoas deita-
ram nele de noite e ficaram imaginando se as luzes lá em cima eram
estrelas ou satélites. Omitólogos a travessaram-no a pé com meias cor
de aveia e localizaram famílias de rouxinóis pretos. Dois casais norue-
gueses passeando de bicicleta pelas Ilhas Britânicas acamparam aqui
por uma noite eT nas suas barracas, cantaram “Arme KmirsdoTrer” e
"Meliom Bakkar og Berg". Raposas andaram em volta. Camundongos
fizeram jornadas exploratórias. Minhocas ficaram embaixo da terra.
Mas o tempo se esgotou paru o campo. O canteiro de dentes-de-
leao em breve será a sala de estar do numero 24. Poucos metros mais
adiante, entre as papoulas vermelhas, vai ficar a garagem do número 25,
e ali, nos beijos-de-freira brancos, a sua sala de jantar, onde uma pessoa
que ainda não nasceu um dia discutirá com seus pais. Acima da sebe,
ficará um quarto de criança, desenhado por uma mulher que trabalha
mnn computador dentro de um escritório com ar-refrigerado, num
centro comercial perto de uma via expressa. Um homem num aeropor-
to do outro lado tio mundo sentirá saudades da sua família e se lembra -
rá cia casa, que terá suas fundações fincadas onde agora existe um char-
co. Great Corsby Vil 1 age fará o possível para afirmar sua inevitabilida-
de e seu tempo, e nada mais será dito sobre os rouxinóis, piqueniques ou
as longas noite de verão ao som dc “Mellom Bakkar og Bergv.
setor da vida. Não deveríamos nos intimidar com a mediocridade
A construção de novas casa* é normalmente um sinônimo de profana- arquitetônica, como não nos intimidamos diante dc leis injustas ou
ção, com o surgimento de bairros menos bonitos do que a área rural argumentos absurdos.
que substituíram. Devemos recuperar uma sensação de maleabilidade por trás do que
For mais amarga que seja esta equação, na maioria dos casos nós a está construído. Não existe um roteiro predeterminado orientando para
aceitamos passivos e resignados. Nossa aquiescência vern da autorida- onde vão as máquinas de tcrraplenagcm ou gruas. Apesar de lamentar-
de que os prédios podem adquirir pelo simples fato de existirem. A suo mos a quantidade de oportunidades perdidas, não há razão para abando-
massa e solidez, a falta de pistas quanto às suas origens, a dificuldade e nar a fé na eterna possibilidade de melhorar o que já foi feito.
o custo envolvido na sua remoção dàu a eles a indiscutível convicção de
uma feia montanha ou parede rochosa. a.
Nós, portanto, evitamos levantar - seja com relação ao grande edi- Sem dúvida, não havia nenhuma razão predeterminada para que cer-
fício, o novo vilarejo com cara dc antigo ou a mansão à beira do rio - a tas áreas de Londres ficassem tão feias assim. Em setembro de 1666,
mais básica e incensada das questões políticas: “Quem fez isto-” No depois que quase toda a cidade foi destruída no Grande Incêndio,
entanto, uma investigação do processo que dá origem às construções Christopher Wren apresentou a Carlos II projetos para a reconstru-
revela que obras infelizes, no final, podem sempre ser atribuídas não à ção da capital com bulevares e praças, vistas panorâmicas e avenidas
mão de Deus, a uma necessidade econômica ou política insuperável, simétricas, e também um coerente sistema de estradas c uma zona
aos desejos arraigados de compradores ou a algum novo nível de depra- portuária adequada. Londres poderia ter tido uma imponência seme-
vação humana, mas a uma combinação prosaica dc falta dc ambição, lhante à de Paris e Roma; poderia ter sido uma grande cidade euro-
ignorância, ganância e acaso. péia, e não a cidade escarrapachada que prenunciou Los Angeles e a
Um empreendimento que estraga mais de 40 quilômetros quadra- Cidade do México.
dos de área rural será obra de uin punhado de geme que não é particu- Carlos II elogiou Wren pela beleza e inteligência do seu plano.
larmente pecadora ou maldosa. F.le pode se chamar Derek ou Mas a decisão não dependia só dele, sem o poder absoluto, ele era
Malcolm, Hubert ou Shigeru, pode gostar dc golfe e de animais, no obrigado a se submeter a opinião da Câmara, controlada por merca-
entanto, em poucas semanas, ê capaz de colocar em andamento um dores preocupados com seus impostos e com dificuldades relaciona-
projeto que vai arruinar de forma substancial uma paisagem por das aos seus direitos de propriedade. As idéias de Wren foram avalia-
trezentos anos ou mais. das por uma comissão indicada pela Câmara e consideradas comple-
Essa mesma maneira banal de pensar, que na literatura não produz xas demais. O medo e o conservadorismo prevaleceram e, em feverei-
nada pior do que livros incoerentes e peças chatas, quando aplicada à ro do ano seguinte, o plano estava esquecido, os bulevares de Wren
arquitetura, deixa feridas que serão visíveis do espaço sideral. A má entregues à fantasia e Londres abandonada aos interesses dos merca-
arquitetura é um enorme erro congelado. Alas é apenas um erro e, ape- dores que, relutando em ceder uma fatia dos seus lucros anuais, fica
sar da impressionante quantidade de andaimes, concreto, barulho e ram muito satisfeitos em condenar a cidade a mais de três séculos dc
dinheiro que tendem a acompanhar o seu aparecimento, não merece dc inferioridade.
nós uma consideração maior do que uma asneira em qualquer outro
4.
A natureza contingente da má arquitetura fica óbvia também quando,
examinando os antigos mapas dos subúrbios de Londres» vemos que os
quilômetros de deterioração urbana existentes hoje foram um dia enor-
mes pomares e prados. Havia fazendas em White City c macieiras cm
Wiltesden Junction. O terreno onde as formas desfiguradas de She-
phercPs Bush e Harlesden ficam hoje foi antigamente uma área cheia
de possibilidades, onde poderiam ter sido construídas ruas que compe-
tiriam com as de Bath e Edimburgo.
A PI, K A *f
Tlie <hy nfLO*l>0*KWTj the Yc*i of ÜÜR i«<S6 I .f'i&
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M '*f . .uf dl* yiíWjClTr.aiçcjwi !o thí «mu tii>. ngn <jf oívnatrjrrfjiwjsfl rrMssr*r\ A idéia parece pretensiosa só porque relutamos em imaginar que
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M/ ytÃsris* .r.ivu.v* fruA-r/i
M^* *•/,;:V-7Í <7.-Ví Mo/r/Jrttj/jrfr */*»-a •* num pedaço de terra comum, onde nada de significativo jamais aconte-
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ivntPt./i&\/ltw-■ '— 1

■ ("Àii>ty4ur /Slht > , ceu (fora a lent a gestação de gerações de maçãs), poderia ter sido ergui-
sÂjtiuM-\JyrttunJJ'—• I do um dos grandes espaços urbanos do mundo - outro Royal Crescem
ou Charlotte Square. Tendemos a cair numa série de hipóteses absur-
das que nos impedem de exigir mais dos arquitetos: supomos que a
beleza feita pela mão do homem foi predestinada a existir cm certas
partes do mundo, mas não ern outras; que as obras-primas urbanas são
produto de pessoas muito diferentes e melhores do que nós mesmos; e
que prédios superiores devem ter um custo extraordinariamente mais
alto do que a feia arquitetura que costuma tomar seu espaço.
Mas, na verdade, não havia nada de muito promissor nas colinas de
Bath antes de John Wood, o Velho, chegar lá. Também não existia nada
'rrf./tf,/
de especial nos campos perto do pantanoso North Lodh, próximo ao
> £* .y /r^ '/■ >'*« .vrj-**. ^^1 At« Si ,_..2::^-^X //»rtíbrtC,.*4'^AX-v.-vX<>,*>/<>+ coração medieval de Edimburgo, ames de James Craig traçar a sua
■^yÍt t.|A*í/-|'-/>■]*.fcjtjT-f,*,4í.-/Í n:<yvS/Âr ' Vi r * , . t i
hLrvVjjylmjJtÁ'K^rLvjjTrrr/t-nyítujYj&y.fJfh
•*Jrp Li»jxa(,|Nir«ii >*^nv - .A .. I 1 .Ar~*w planta para a NewTown. Ambos eram extensões comuns de terra, com
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grama, ovelhas, margaridas, árvores e, no caso de Edimburgo, enxames
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preciso notar que Wood e Craig, embora tivessem ambos muita imagi-
f 4é**j-h*S. W,- ~^-t i/~x S+ y t i Wi/OddfB^n.
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■7i?.7~+*t**.aST^^ms*>*f.7*?. -W,* a v, iw
nação e perseverança, não eram dotados de nenhum lalcmo excepcio-
Chrisíopher Wreii,.^ PLm of /bc Ciry ofLtmJw, 1666 nal. As praças residenciais, os jardins e avenidas que construíram resul-
taram de princípios muito bem conhecidos havia gerações. Mas estes
homens estavam inspirados pela perspectiva de criar uma cidade lcgeti-
daria, uma nova Atenas ou Jerusalém, e nesta ambição encontraram a
segurança para vencer os inúmeros desafios práticos envolvidos na
transformação de campos verdes em ruas atraentes. A fé num destino
especial e a certeza de estar vivendo um momento privilegiado da histó-
ria podem muito bem ser sensações megalomaníacas c equivocadas, mas
proporcionam meios indispensáveis para que a beleza possa prevalecer.
Dinheiro também não é desculpa. Embora não fosse barato cons-
truir os crescentes de Bath e a New Town de Edimburgo, estaríamos
injustamente culpando a pobreza pela falta de inspiração ao afirmar
que um orçamento apertado algum dia já condenou um prédio à feiura
~ como uma visita aos subúrbios ricos de Riyadh e as casas dos peque-
nos comerciantes de Siena atestam rápida e pungentemente.
Cansado de ouvir dizer que nenhuma grande cidade pode ser cons-
truída na era moderna porque o capital necessário não estava disponí-
vel, Ce Corbusier perguntou com sarcasmo: “Não temos os recursos?
Luís XIV usou pás e picaretas... O equipamento dc Hausmann também
foi pobre: a pá, a picareta, a carroça, a colher de pedreiro, o carrinho de
mão, as ferramentas simples usadas por todas as raças antes da era
mecânica.” Nossas gruas, escavadeiras, concreto de secagem rápida e
máquinas de soldar não nos deixam com mais nada para culpar a não
ser a nossa incompetência.

5.
Pergunte à construtora que tipo de casas vão ser erguidas no campo
condenado e você receberá um folheto do departamento de marketing,
em papel lustroso, mostrando cinco modelos diferentes de moradia,
cada um com o nome dc um monarca inglês. O tipo Eiizabeth II gaba -
se de maçanetas de porta cromadas e fogão de aço inoxidável; o George
V tem sala de jantar com vigas de fibra de vidro e um telhado neo-Aro

A promessa de Sbepbenfs fíusb.


and Crafts; e o Henrique VIII é inevitavelmente um modelo legalista
John Roccjue, A Swvey ujLowlon and Counhy Ten Aiiks AwuruL 1746 neo-Tudor.
Se, depois de passar os olhos pelo elegante material promocional,
ainda nos sentíssemos inclinados a questionar a aparência destas cons-
truções, é quase certo que o responsável pelo empreendimento respon- c madeira não envernizada. Surgiu uma palavra para a qual não existe
deria com um argumento conhecido e aparentemente invencível: essas equivalente em nenhum idioma ocidental, ivabi, identificando beleza
casas sempre venderam rápido c bem. Seríamos lembrados com firme- das coisas transitórias, despretensiosas, simples, inacabadas. Havia waln
za de que desprezar esses projetos significaria, portanto, ignorar a lógi- para ser apreciado numa noite solitária num chalé no meio do bosque,
ca comercial e tentar negar aos outros o direito democrático ao próprio escutando a chuva cair. Havia ivabi num velho conjunto descombinado
gosto, o que por fim nos colocaria em conflito com dois dos grandes dc louças de barro, em tinas simples, cm paredes manchadas e cm
conceitos autoritários da nossa civilização: dinheiro e liberdade. pedras ásperas, desgastadas e cobertas de musgo e líquen. As cores rnais
Mas essa defesa não deixa de ter suas falhas. Algumas entraram em irabi eram cinza, preto e marrom.
foco quando voei para o Japão, a caminho da Huis Ten Sosch e do Mergulhar na estética japonesa e alimentar uma simpatia pela sua
ryokav. Comprimido mima poltrona na janela, sem conseguir dormir, atmosfera pode servir para nos prepararmos para o dia em que, por
com o Círculo Polar Ártico brilhando num verde luminoso lá fora, exemplo, encontrarmos num museu de cerâmica tigelas de chá tradi-
recorri a um livro chamado The Pleasures ofjapanese Literature (1988), cionais feitas pelo artista Hon’ami Koetsu. Não vamos considerar essas
escrito por Donald Keene, um especialista americano em cultura peças estranhas bolhas de matéria uniforme, como talvez fizéssemos
japonesa. sem o legado de 600 anos de reflexões sobre o encanto do wabL Te-
Keene observou que a noção de beleza dos japoneses’ há muito remos aprendido a apreciar uma beleza que não nascemos vendo. E,
tempo se diferenciou da ocidental: ela tem sido dominada por um nesse processo, desconstritiremos a idéia simplista, forte mente promo-
gosto pela irregularidade e não pela simetria, pelo impermanente e não vida pelos construtores dc mansões de plástico, de que aquilo que uma
peio eterno e pelo simples, em vez do enfeitado. O motivo disso não pessoa atualmente acha bonito deve ser tomado como limite de tudo
tem nada a ver com o clima ou a genética, acrescentou Keene, mas é o que gostará para sempre.
resultado das atitudes de escritores, pintores e teóricos, que ativamen- Em 1900, o romancista japonês Natsume Soseki viajou para a
te deram forma ao conceito de beleza da sua nação. Inglaterra e observou, com uma certa surpresa, que poucas coisas que
Contrariando a crença romântica de que concordamos natural-
mente com uma idéia adequada de beleza, parece que nossas faculdades
visuais e emocionais precisam de fato de constante orientação externa
para ajudá-las a decidir a que coisas devem ficar atentos c o que devem
apreciar. uCultura” é a palavra que atribuímos à força que nos ajuda a
identificar entre as nossas muitas sensações aquelas que merecem nossa
atenção e valorização.
No Japão medieval, poetas e sacerdotes zen orientavam os japone-
ses para aspectos do mundo a que os ocidentais raras vezes deram
publicamente mais do que uma atenção insignificante ou casual: flores
de cerejeira, peças de cerâmica deformadas, casca lhos alisados com
A púsúbduhiâe de ver betezji onde não tínhamos piwurado antes.
ancinho, musgo, chuva caindo sobre as folhas, o céu no outono, telhas HorTami Koetsu < ] 55H-1637). potes de chá
ele achava belas comoviam os ingleses. ‘‘Certa vez riram de mim por- haver muita beleza nas pedras velhas antes que sacerdotes e poetas
que convidei alguém para ver a neve. Em outra ocasião» descrevi como japoneses começassem a escrever sobre elas.
os sentimentos dos japoneses são afetados profundameme pela lua, e A resposta do construtor» defendendo os gostos existentes, está
meus ouvintes ficaram um pouquinho intrigados... Fui convidado a ir basicamente negando que os seres humanos possam chegar a amar
para a Escócia e me hospedar muna casa palaciana. Üm dia, quando o algo que ainda não notaram. Mesmo usando termos relacionados â
dono e eu saímos para passear no jardim, notei que as trilhas entre as liberdade, essa alegação esconde que, para escolher bem, é preciso
fileiras de árvores estavam cobertas com uma espessa camada de mus- conhecer as opções.
go. Elogiei, dizendo que as trilhas tinham adquirido uma aparência de Devemos lembrar as lições dos jardins de musgo e das peças de
coisa antiga. E o meu anfitrião respondeu que pretendia ern breve cerâmica rústica na próxima vez que considerarmos um conjunto habi-
mandar o jardineiro raspar fora todo aquele limo.” tacional reacionário. Devemos ter liberdade para imaginar quantos
Sempre existiu, é claro, um ou outro ocidental que viu beleza em gostos poderiam evoluir simplesmente se novos estilos fossem coloca-
pedaços de cerâmica rústica ou gostou da aparência de um cantinho dos diante dos nossos olhos e novas palavras entrassem no nosso voca-
coberto de musgo. Mas é difícil defender esses valores dentro de uma bulário. Vários materiais e formas até agora ignorados poderiam reve-
cultura cujas preferências voltam-se, em vez disso, para casas palladia- lar suas qualidades enquanto que o status quo seria impedido de se
nas ou porcelanas de Delft. Podem rir na nossa cara se tentarmos elo- impor como a ordem natural e eterna das coisas.
giar fenômenos para os quais não temos as palavras certas para descre- Depois de serem adequadamente apresentados ao verdadeiro
ver. Somos capazes de nos censurar antes que os outros o façam. alcance da arquitetura, os prováveis compradores de uma casa de tijo -
Podemos até nem perceber que extinguimos a nossa própria curiosida- los vermelhos no estilo nco-Tudor talvez olhassem um pouco mais
de, assim como podemos esquecer que temos algo a dizer até encon- além do seu desejo original. Talvez alguns até se surpreendessem ao
trarmos alguém disposto a ouvir. perceberem o interesse por urna caixa tosca de concreto de aparência
Apesar de ridicularizarmos aqueles que fingem entusiasmos estéti- wabi, cujas virtudes teriam aprendido a ver graças a uma jornada de
cos na esperança de conquistar respeito, a tendência oposta é mais pun- educação estética.
gente, ela nos leva a reprimir as nossas verdadeiras paixões para não
parecermos estranhos. Podemos nos calar quanto ao nosso afeto por 6.
flores, por exemplo, até que uma leitura de Wordswurth endosse esse Para não nos desesperarmos com a idéia de que será necessária muita
sentimento, ou abafar nossa vontade de observar a neve solenemente, coisa para realizar uma autêntica evolução no gosto, vamos nos lem-
como um ritual, até que o mérito dessa pratica seja confirmado por brar de como foram modestos os meios com que se realizaram as revo-
Natsume Soseki. luções estéticas anteriores.
Sao livros, poemas e pinturas que muitas vezes nos dão a confian- Umas poucas construções c um livro em gerat foram suficientes
ça para levar a sério sentimentos que, de outra forma, talvez nem pen- para fornecer modelos viáveis que outros pudessem seguir. Nietzsche
sássemos em reconhecer. Oscar VVilde se referiu a esse fenômeno observou que o evento portemosainente conhecido como o ‘‘renasci­
quando gracejou dizendo que não havia fog em Londres antes de mento italiano”, que poderíamos imaginar ter sido armado por inúme-
VVhistler começar a pintar o Tâmisa. Da mesma forma, não devia ros atores, foi de fato obra de uma centena de pessoas apenas. A inova-
çáo relacionada a esse evento, que os livros didáticos chamam dc
"renascer do classicismo”, dependeu de um número ainda menor de
fatores: uma única construção, o Hospital dos Inocentes de Brunelles-
chi, e um tratado, Tcn Booh im Arcbittcture (1452), de Leone Battista
AJberti; isso bastou para imprimir uma nova sensibilidade no mundo.
Foi preciso apenas um livro, Vitruvius Britamiieus (1715) de Colen
Campbell, para fixar o estilo palladiano na paisagem inglesa, e mais ou
menos 200 páginas cie Por uma arquitetura (1923), escrito por Le
Corbusier, para definir a aparência de uma boa parte dos ambientes
construídos no século vinte. Certos prédios - como a Schròder House,
a Farnsworth House, as Califórnia Case Study Houses - causaram um
impacto bastante desproporcional aos seus tamanhos e custos.
Em todos estes deslocamentos tectônicos, a tenacidade das forças
motoras foi tão importante quanto os recursos à sua disposição. Os
grandes arquitetos revolucionários foram uma síntese do artístico e do
prático. Eles sabiam como desenhar e pensar, mas também como lison-
jear, encantar, provocar e jogar pacientemente jogos longos e cuidado-
sos com seus clientes e com os políticos. Como a época do absolutismo
já acabou (Lc Corbusier não foí o primeiro arquiteto a observar isso
com pesar), não podemos mais nos comportar como Luís XIV, que só
precisava acenar com a mio para que prédios mudassem de posição
como se fossem os brinquedos de uma criança.
Numa era democrática, mais coletiva, os arquitetos tiveram de se
transformar em atores de reuniões políticas. Charles Holden, por exem-
plo, foi capaz (junto com Frank Pick) de convencer o governo britâni-
co, instintivamente contrário à arquitetura séria, a abrir caminho para
várias obras- primas como as estações das linhas do metrô suburbano de
Londres. Como Le Corbusier observou com sagacidade: "Devemos
sempre lembrar que o destino das cidades se decide na Prefeitura.*

Aprendendo a reconhecer os matutos do concreto bruto.


7.
Miiv te.Mac11 Arelihccls, casa, Vora Iborg, 1999
Há poucas censuras mais severas contra a arquitetura do que a tristeza
que sentimos com a chegada dc máquinas de terraplenagem, pois o
nosso pesar quase sempre vem rio desgosto com o que vai ser construí-
do e não de unia aversão à idéia de desenvolvimento em si.
Quando bandos de operários chegaram para traçar os crescentes
de Bath ou a NewTown de Edimburgo, abrindo caminho por entre as
amoreiras silvestres e prendendo cordas de medição na terra, poucas
lágrimas foram derramadas com a iminente destruição. Embora hou-
vesse sem dúvida algumas velhas e nobres árvores no lugar onde seriam
construídas ruas residenciais, embora possivelmente existissem tocas
para raposas e ninhos de passarinhos, estes sucumbiram à serra e à pá
com apenas um momentâneo pesar pelos seus prévios habitantes, pois
esperava-se que aquilo com que se pretendia substituí-los proporcio-
nasse uma compensação mais do que adequada. St. James s Square era
uma boa alternativa para um campo de margaridas, havia uma espécie
de beleza que nem uma árvore poderia aspirar em Calton Hill, nenhum
riacho podería igualar a serenidade no Royal Creseenr. Como obser-
vou William Morris, se tivéssemos vivido em Veneza nos seus primór-
dios e observado os atoleiros da laguna - nódoas lamacentas de um tipo
que ainda se vê nos arredores da cidade - sendo transformados em ruas
e canais, “teríamos reclamado conforme uma ilhota após outra fosse
ocupada por construções, mas pouco*. Nem ficaríamos excessivamen-
te tristes, pensou Morris, ao observar “Oxford deslocar-se gradativa-
mente do seu ponto de origem em Oseney... e as grandes universidades
e nobres igrejas consumissem cada vez mais a relva e as flores de
Oxfordshire*.
Devemos aos campos que nossas casas não sejam inferiores à terra
virgem que substituíram. Devemos aos vermes e às árvores que os pré-
dios com os quais os cobrímos sejam promessas dos mais altos c inteli-
gentes tipos dc felicidade.

Os benvfía<x do absolutismo para a arquitetura.


Gravura de Luís XIV ordenando i construção de Lc.s Invalides, em 1672, por
R, fionnarrf, reproduzido em The City ofTmtomnr and /ft' PhtMtmg {\{)lS)y de
Le Corbusier: “b.le bá capaz de dizer; 'Nos queremos isto.’ Ou 'A^sim nos agraíLiV*'
'''/Vt iittfii?.t mhimuilo a>tifo/ rnc uma ithyta (i}>os ouff u fostt *)<:uptui<( (>(>r coustru(ótrs. mus poíiw. ’ C.,;i < i Ort>, V , J 4 > 0, (* >v«in!■> i c 13;is h il •>tnc< > Jj uo11
As lacunas que cercam Vciie/ii
Heidersbtírger/Anur; p.94r ©Gordon Beal/O tk M Ungers; p.95tí Martin
Charles; p.95tr johner» Photomca/Cíetty Images; p.95bl A.F. Kersting;
p.95br ©Crown Copyright/NMR; p.99 Philippa Lewis/Fdificc; pp. 102-3
James Al orris; p. 105 Bernhard Leimer; p.l 101 Aiain de Botton; p.llOr
©Jarrnld Puhlishing and Wcstminscer Cathedrai, reproduzida com permissão
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS A: Simon Prosscr, JuJicttc Mitchell, do editor; p.lll Sciila; p.113 Ateliê Michel Jolyot; p.H5t AKG lmages/
Franecsca Aiain, llclen Fraser, Tom Weldon. Steve Markiug, Mary-Jane Gcrard Degcorgv; p.l 15b VVcrncr Forman Archive; p.116 Aiain de Botton;
p.l 20 Agencc Ingaiil) Snitt; p.122 Scottish National Galleries of Art; p.124
Gibson, Thotuas Manss, Lisa Sjukur, Joana Níemeyer, Kelvin Murray,
Foirean PicUirc Library; p.125 Lucinda Lambton/Arçaid; pp.127» 128-9,
Míriam Gross, Dorothy Straight, Dan Frank, Nicolc Aragi, Neil Crosnhie,
130 Cameraphoto Arte, Venezia; p.133 A.F. Kersting; p.l 34 Henning
Carnline Dawnay, Charlotte e Samuel. Marks/Edifke; p.l38 Rov.George@Goddess-Athena.org; p.l39 BPK Berlim;
CRÉDITOS DAS FOTOGRAFIAS: <) autor e os editores desejam agradecei às p.l411 Museum of Finnish Architeciure: p.!41r Christiau Ríchter; p. 142
instituições e aos indivíduos que geutilmeiite forneceram o material fotográfi- Tonv Morrison/South American Pictures; p. 143 ©J. Paul Getty Trust. Usada
co usado neste livro. Todos os esforços foram feitos no sentido dc entrar em cum permissão, julius Shalman Photography Archive, Research Libraiy at the
(<cctv Research Institute; p.145 Dr. Petra-L/iebl Osbomc: pp. 146-7 John
contato com os detentores dos direitos autorais, mas caso tenha ocorrido
Hesdrine; p.l48 Permissão dos Curadores da WalJacc Collection; p.l51
algum erro ou omissão, o autor e os editores terão prazer de acrescentar o devi-
CoLinauhl Institute uí An; p.l56il VVei ner Forman Archive; p.!56tr ©Agnes
do crédito em edições subsequentes deste livro. Martin, cortesia de PaceWildenstein, Nova York/Christie^ Irnages; p.l56b
Todos os desenhos e fotografias dc Le Corbusier nas páginas a seguir são Department of Antiquities, Cyprns; p.l 58t Courrauld Institute of Art; p.l 58b
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