DISCURSO
SOBRE
O
COLONIALISMO
Titulo original: Discours surte colonialísme Eis uma obra que dispensa o olhar dos prefaciadores.
Tradução do francês por Noémia de Sousa Moldado no estilo vulcânico de que o poeta Aimé Césaire
Capa de Vítor da Silva possui o segredo, o discurso é tão transparente _que a
sua substância só se presta a uma interpretação: trata-se
do processo dos valores da Europa capitalista, respon
sável por um odioso empreendimento etnocidário - a
colonização; e, nessa perspectiva, é o requisitório mais
virulento que um escritor negro jamais lançou, com tama
nho talento, ao rosto dos opressores. Talvez convenha
precisá-lo desde já: o autor dirigia-se aos intelectuais
burgueses que pretendiam representar então · a cons
ciência liberal, mas também a todos os militantes fincados,
do outro lado da barricada, na revolta nacionalista.
Foram estes últimos, como se verá mais adiante, que
melhor utilizaram este livro explosivo.
Se me permito a intrusão destas quantas páginas, pre
valecendo-me dos laços de amizade que há vinte anos
me ligam a Césaire, é para recordar aos leitores que vão
descobrir o Discurso sobre o Colonialismo na sua versão
portuguesa, as circunstâncias e o contexto histórico em
Impresso em Portugal que este brulote foi aceso. Escrito. inicialmente como um
6 AJMt ClSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 7
artigo, pedido ao autor por uma revista efémera que estava pronunciada em sessões da Assembleia da IV Reptl
longe de arvorar ideias progressistas, o texto foi objecto blica, Césaire faz desfilar diante dos olhos dos leitores
duma primeira edição em 1950 e de outra, revista e o vasto fresco dos horrores da dominação francesa em
aumentada, cinco anos mais tarde*. Inscrevia-se de chofre África, em Madagáscar, na Indochina e nas Antilhas.
no âmago do principal acontecimento que, no amanhã Tudo isso permite apreender melhor a essência do colo
da segunda guerra mundial, modelava o devir dos povos nialismo que, segundo a sua demonstração, se reveste de
saqueados pela História, a saber: a reconquista da dois aspectos: o de um «regime de exploração desenfreada
identidade, materializada pela luta de libertação nacional, de imensas massas humanas que tem a sua origem na
Situado no próprio terreno duma certa intelligentsia violência e só se sustém pela violência», e o de uma
europeia, lá onde ela pretendia ser a única a julgar os «forma moderna de pilhagem». Sendo o genocídio a lógica
homens, a valorizar as culturas e a compreender as normal, o colonialismo é portador de racismo *: E é nesta
sociedades, Césaire compõe este discurso (no sentrdo gigantesca catarsis colectiva que o colonialismo desci
literal do termo, como era entendido no século XVIII), viliza simultaneamente o colonizador e o colonizado.
para expor e, de caminho, pulverizar a falaciosa argumen A condenação da civilização europeia foi irrefutável.
tação dos grandes pontífices do saber «universal>>; Ao que sei, ninguém, entre os plumitivos da época, se
Abordando os mais diversos domfnios- culturais -:... lite arriscou a responder ao panfleto, aliás de natureza polé·
ratura, política, etnologia, filosofia - ele revela e des mica. Contentaram�se, aqui e ali, em catalogar Césaire
mascara o racista que se ignora ou o moralista de gene entre os negros praticantes do racismo ao contrário ou
rosas intenções colonizantes. pregadores do regresso ao passado nostálgico das tradi
Mas situemos, entre as duas edições da obra, um texto cionais civilizações africanas ...
da mesma veia, publicado em 1954: «O Colonialismo não As páginas mais rigorosas de Aimé Césaire sobre o colo
Morreu».** Trata-se duma vasta e brilhante ilustração dos nialismo articulam-se, pois, com um momento de extrema
primeiros postulados enunciados no discurso. Auxiliado intensidade dramática para os povos colonizados. Enrai
por numerosos exemplos colhidos nos testemunhos de zam-se na trama dos acontecimentos que nessa época
colonialistas ferrenhos (Albert Sarraut), dos grandes
pioneiros (marechal Bugeaud, coronel de .Montagnac,
• Jean-Paul Sartre pronuncia-se no mesmo sentido: «De facto
conde d'Hérisson), de administradores (Vigne d'Octon), a colonização não é uma mera conquista - como foi, em 1850,
de escritores (Pierre Lati), e apoiando-se, em contra a anexação da Alsácia-Lorena pela Alemanha-; é, necessaria
ponto, na denúncia de deputados africanos (Boganda) mente, um genocídio cultural: não se pode colonizar sem liquidar
sistematicamente os traços particulares da sociedade indígena ao
mesmo tempo que se nega aos seus membros que se integrem
• l:ditions Réclame e Présence Africaine, Paris. na Metrópole e beneficiem das suas vantagens.» «Le Génocide».
•• La Nouveffe Critique, Janeiro de 1954. Artigo in Les Temps Modernes. Dezembro de 1967.
8 AIMt CtSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 9
faziam a história da Ásia e da África, sobretudo através « ... De sorte que, se a Europa Ocidental não toma de
do Vietminh, do A.D.A. (Rassemblement Démocratique moto próprio, em África, na Oceânia, em Madagáscar ...
Africain) e da F.L.N. da Argélia. Muito mais: exprimem o a iniciativa duma política das nacionalidades, a iniciativa
pensamento dos nacionalistas revolucionários. Por toda duma política nova fundada no respeito dos povos e das
a parte onde comunidades de colonizados (especialmente culturas; que digo eu? Se a Europa não galvaniza as
dos países negro-africanos) se viam confrontados com a culturas moribundas ou não suscita culturas novas; se
necessidade profunda de dizer a verdade das lutas popu não se torna despertadora de pátrias e civilizações, isto
lares, estes textos eram assimilados como a fonte nutridora sem tomar em conta a admirável resistência dos povos
da revolta, a alavanca da consciência anticolonialista. coloniais, que o Vietname simboliza actualmente de
Essa é a razão porque o discurso se tornou uma arma maneira esplendorosa assim como a África do R.D.A.,
preciosa no combate ideológico, o livro vermelho dos a Europa terá perdido a sua derradeira oportunidade e,
militantes, fossem eles professores primários, jovens, por suas próprias mãos, puxado sobre si o lençol das
funcionários, sindicalistas ou intelectuais. trevas mortais.»
O impacte deste livro tão breve quanto incisivo provi Sobre este ponto, o pensamento político de Aimé Césaire
nha do facto de, na opinião dos militantes, ir direito ao merece ser clarificado e sobretudo actualizado, à luz dos
essencial: ao vivido do colonizado. Penetrar no essencial seus escritos posteriores. Há quem argumente que o
dó colonialismo, significava, ao mesmo tempo, desmon discurso não insiste suficientemente na dinâmica do
tar os mecanismos de exploração do sistema, desvendar as facto nacional criado pelos movimentos de libertação.
contradições do pensamento burguês na matéria, mas Césaire vai justamente aprofundar uma noção pela qual
também indicar as vias que permitiam triunfar sobre se baterá no terreno concreto: o direito à iniciativa histó
«esta vergonha do século xx». rica dos povos, noutros termos, o direito à personalidade.
Ora, neste último aspecto, se nos cingirmos exclusiva Na sua célebre intervenção no primeiro Congresso dos
mente ao discurso, a visão do autor pode parecer, hoje, Escritores e Artistas Negros, nessa febril sessão da tarde
marcada por um certo idealismo. Ele admite-o sem reser de 20 de Setembro de 1956, o poeta, tirando a con -
vas. É certo que Césaire estigmatiza sem rodeios os limites clusão sobre as relações entre a situação colonial e a
históricos atingidos tanto pelo sistema colonial como cultura, defende a necessidade militante de os intelectuais
pelo capitalismo e lança o grito de alarme contra a eventual se comprometerem na via da libertação do demiurgo,
disposição dos colonizados «a correrem o grande risco mais claramente, na luta popular de libertação nacional.
'yankee·», Mas, adaptando o ponto de vista do Partido «Soou a hora de nós mesmos» - acrescentaria, um
a que então pertencia , (o Partido Comunista Francês), mês depois, para bem mostrar que, de futuro, a tomada da
o escritor, ao concluir a sua exposição, dirige-se à outra iniciativa seria total. Ou ainda: «Só a África pode revita
Europa nestes termos: lizar, repersonalizar as Antilhas.» Ora, a tomada de
10 AIMÉ CÉSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 11
O que é grave é que «a Europa», moralmente, espi força, tendo por detrás a sombra projectada, maléfica, de
ritualmente, é indefensável. uma forma de civilização que a dado momento da sua
E acontece que hoje não são unicamente as massas história se vê obrigada, internamente, a alargar à escala
europeias qLJe incriminam, mas o acto de acusação é pro mundial a concorrência das suas economias antagó
ferido no plano mundial por dezenas e dezenas de milhões nicas.
de homens que, do fundo da escravidão, se erigem em Prosseguindo a minha análise, verifico que a hipocrisia
juízes. é recente; que nem Cortez, ao descobrir o México do alto
Pode-se matar na Indochina, torturar em Madagáscar, do grande téocal/i, nem Pizarro, diante de Cuzco (e muito
prender na África Negra, seviciar nas Antilhas. Os colo menos Marco Polo, diante de Cambaluc), se proclamam
nizados sabem, a partir de agora, que têm uma vantagem os mandatários de uma ordem superior; que matam; que
sobre os colonialistas. Sabem que os seus «amos» pro saqueiam; que possuem capacetes, lanças, cupidez; que
visórios mentem. os babujadores vieram mais tarde; que, neste domínio, o
Logo, que os seus amos são fracos. grande responsável é o pedantismo cristão, por ter enun
E, porque hoje me pedem que fale da colonização e da ciado equações desonestas: cristianismo = civilização;
civilização, vamos direito ao embuste principal, donde paganismo = selvajaria, de que só se podiam deduzir
proliferam todos os outros. abomináveis consequências colonialistas e racistas, cujas
Colonização e civilização? vítimas haviam de ser os Índios, os Amarelos, os Negros.
A maldição mais comum nesta matéria é deixarmo-nos Posto isto, admito que é bom pôr civilizações dife
iludir, de boa fé, por uma hipocrisia colectiva, hábil em rentes em contacto umas com as outras; que consorciar
enunciar mal os problemas para melhor legitimar as mundos diferentes é excelente; que uma civilização, seja
soluções que se lhes aplicam. qual for o seu génio íntimo, se estiola se se encerrar sobre
Equivale a dizer que o fundamental, aqui, é ver claro, si mesma; que, aqui, o intercâmbio é o oxigénio e que a
pensar claro - entenda-se, perigosamente-, responder grande sorte da Europa é ter sido uma encruzilhada e que
claro à inocente questão inicial: o que é, no seu prin o facto de ter sido o lugar geométrico de todas as ideias,
cípio, a colonização? Concordemos no que ela não é; nem o receptáculo de todas as filosofias, o ponto de acolhi
evangelização, nem empresa filantrópica, nem vontade mento de todos os sentimentos, fez dela o melhor redis
de recuar as fronteiras da ignorância, da doença, da tira tribuidor de energia.
nia, nem propagação de Deus, nem extensão do Direito; Mas então, pergunto: a colonização pôs verdadeiramente
admitamos, uma vez por todas, sem vontade de fugir às em contacto? Ou, se se prefere, era ela a melhor das
consequências, que o gesto decisivo, aqui, é o do aven maneiras para se estabelecer o contacto?
tureiro e do pirata, do comerciante e do armador, do Eu respondo não.
pesquisador de ouro e do mercador, do apetite e da E digo que da colonização à civilização a distância é
16 A!Mt CtSAIRE
-3-
18 A/MI: ctSA/RE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 19
enchem-se, os torcionários inventam, reqüintam, · discu Falei muito de Hitler. É que ele merece-o: permite-nos
tem em torno dos cavaletes. uma visão ampla e permite-nos apreender que a sociedade
As pessoas espantam-se, indignam-se. Dizem: «Como é capitalista, no seu estádio actual, é incapaz de fundar um
curioso! Ora! É o nazismo, isso passa!» E aguardam, e direito das pessoas, tal como se revela impotente para fun
esperam; e calam em si próprias a verdade - que é uma dar uma moral individual. Queira-se ou não: no fim deste
barbárie, mas a barbárie suprema, a que coroa, a que resume beco sem saída chamado Europa, quero dizer, a Europa
a quotidianidade das barbáries; que é o nazismo, sim, de Adenauer, de Schuman, Bidault e alguns outros, há
mas que antes de serem as suas vítimas, foram os cúm Hitler. No fim do capitalismo, desejoso de se sobreviver,
plices; que o toleraram, esse mesmo nazismo, antes de o há Hitler. No fim do humanismo formal e da renúncia
sofrer, absolveram-no, fecharam-lhe os olhos, legitima filosófica, há Hitler.
ram-no, porque até aí só se tinha aplicado a povos não E, desde logo, uma das suas frases se me impõe:
europeus; que o cultivaram, são responsáveis por ele, «Nós aspiramos, não à igualdade, mas sim à dominação.
e que ele brota, rompe, goteja, antes de submergir nas O país de raça estrangeira deverá voltar a ser um país de
suas águas avermelhadas de todas as fissuras da civili servos, de jornaleiros agrícolas ou de trabalhadores
zação ocidental e cristã. industriais. Não se trata de suprimir as desigualdades entre
Sim, valeria a pena estudar clinicamente, no pormenor, os homens, mas de as amplificar e as converter em lei.»
os itinerários de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês Isto soa claro, arrogante, brutal, e instala-nos em plena
muito distinto, muito humanista, muito cristão do século selvajaria ululante. Mas desçamos um grau.
xx que traz em si um Hitler que se ignora, que Hitler Quem fala? Tenho vergonha de o dizer: é o humanista
vive nele, que Hitler é o seu demónio, que se o vitupera é ocidental, o filósofo «idealista». Que s.e chame Renan,
por falta de lógica, que, no fundo, o que não perdoa a é um acaso. Que tenha sido tirado dum livro inti
Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem,. tulado La Réforme lnte//ectuelle et Mora/e, que tenha
não é a humilhação do homem em si, é o crime contra sido escrito em França, no amanhã de uma guerra que a
o homem branco, a humilhação do homem branco e o França quisera que fosse do direito contra a força, diz
ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até muito sobre a ética burguesa.
aqui só os árabes da Argélia, os «coolies» da Índia e os «A regeneração das raças inferiores ou abastardadas
negros de África estavam subordinados. pelas raças superiores está dentro da ordem providencial
E aí está a grande censura que dirijo ao pseudo-huma da humanidade. O homem do povo é quase sempre,
n ismo: o ter, por tempo excessivo, apoucado os direitos entre nós, um nobre renegado, a sua mão pesada é mais
do homem, o ter tido e ainda ter deles uma concepção atreita ao manejo da espada do que do utensílio servil.
estreita e parcelar, parcial e facciosa e, bem feitas as contas, Prefere bater-se a trabalhar, isto é, regressa ao seu pri
sordidamente racista. meiro estado. Regere imperio populos, eis a nossa vocação.
20 A!Mt C!SAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 21
Derramai esta devorante actividade sobre os países que, assegurar que os bens deste mundo, «se ficassem inde
como a China, concitam a conquista estrangeira. Dos finidamente repartidos, como o seriam sem a colonização,
aventureiros que desinquietam a sociedade europeia, não corresponderiam nem aos desígnios de Deus, nem
fazei um ver sacrum, um enxame como os dos Francos, às justas exigências da colectividade humana»?
dos Lombardos, dos Normandos, e cada qual estará no Dado - como o afirma o seu confrade em cristianismo,
seu papel. A natureza gerou uma raça de operários - é o Rev. P. 8 Muller- « ... que a humanidade não deve,
a raça chinesa - duma maravilhosa destreza de mão não pode tolerar que a incapacidade, a incúria, a preguiça
e quase sem nenhum sentimento de honra; governai-a dos povos selvagens deixem indefinidamente sem emprego
com justiça, cobrando-lhe, pelo benefício de tal governo, as riquezas que Deus lhes confiou para as colocarem ao
um amplo erário em proveito da raça conquistadora, e ela serviço do bem de todos».
ficará satisfeita; uma raça de trabalhadores da terra, é o Ninguém.
negro; sede para ele bom e humano e tudo estará em Quero dizer: nem um escritor encartado, nem um aca
ordem; uma raça de senhores e soldados é a raça euro démico, nem um pregador, nem um político, nem um cru
peia. Que se reduza esta nobre raça a trabalhar no ergás zado do direito e da religião, nem um «defensor da pessoa
tulo como os negros e os Chineses, e ela revolta-se. humana».
Entre nós, todo o revoltado é, mais ou menos, um sol E, todavia, pela boca dos Sarraut e dos Barde, dos
dado que errou a vocação, um ser feito para a vida heróica Muller e dos Renan, pela boca de todos os que julgavam
e que constrangeram a uma tarefa contrária à sua raça, e julgam lícito aplicar aos povos extra-europeus, e em
mau operário, soldado bom de mais. Ora a vida que revolta benefício de nações mais fortes e melhor equipadas, «urna
os nossos trabal.hadores faria a felicidade dum chinês, espécie de expropriação por motivo de utilidade pública»,
dum fel/ah, seres de maneira alguma militares. «Que era já Hitler que falava!
cada qual faça aquilo para que nasceu e tudo correrá bem.» Onde quero eu chegar? A esta ideia: que ninguém
Hitler? Rosenberg? Não, Renan. coloniza inocentemente, nem ninguém coloniza impune
Mas desçamos ainda mais um grau. E é o político ver mente; que uma nação que coloniza, que uma civilização
boso. Quem protesta? Ninguém, que eu saiba, quando o que justifica a colonização - portanto, a força - é já
senhor Albert Sarraut, botando discurso aos alunos da uma civilização doente, uma civilização moralmente ferida
Escola Colonial, lhes ensina que seria pueril opor aos que, irresistivelmente, de consequência em consequên�
empreendimentos europeus de colonização «um pretenso eia, de negação em negação, chama o seu Hitler, isto
direito de ocupação e não sei que outro direito de feroz é, o seu castigo.
isolamento que perpetuaria em mãos incapazes a vã Colonização: testa de ponte numa civilização da bar
posse de riquezas desaproveitadas». bárie donde, pode, em qualquer momento, desembocar a
E quem se indigna ao ouvir um certo Rev. P. 8 Barde negação pura e simples da civilização.
22 AIMÉ CÉSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 23
Da história das expedições coloniais respiguei algumas vítimas, a sombra da cidade, que se evaporava ao pôr
características que citei algures, com todo o vagar. -do-sol.»
Isso não teve a sorte de agradar a toda a gente. Parece Os factos são ou não verdadeiros? E as volúpias sádi
que é desenterrar cadáveres antigos. Vejamos: cas, as inomináveis delícias que fazem tremelicar a car
Seria inútil citar o coronel de Montagnac, um dos con cassa de Lati, quando retém, no fundo do seu binóculo
quistadores da Argélia? de oficial, um bom massacre de Anamitas? Verdade ou
«Para varrer as ideias que me assediam algumas mentira?* E se estes factos são verfdicos, como não está
vezes, mando cortar cabeças, não cabeças de alcachofras, ao alcance de ninguém negá-lo, dir-se-á, para os mini
mas verdadeiras cabeças de homens.» mizar, que estes cadáveres nada provam?
Conviria recusar a palavra ao conde d'Hérisson? Quanto a mim, se recordei uns tantos detalhes dessas
«É verdade que trazemos um barril cheio de orelhas hediondas matanças, não foi por deleitação morosa, foi
colhidas, par por par, aos prisioneiros, amigos ou ini porque penso que estas cabeças humanas, estas colheitas
migos.» de orelhas, estas casas queimadas, estas invasões góticas,
Deveria negar-se a Saint-Arnaud o direito de fazer este sangue que fumega, estas cidades que se evaporam à
a sua bárbara profissão de fé? lâmina do gládio, não é a tão baixo preço que nos
«Devasta-se, incendeia-se, pilha-se, destroem-se as desembaraçaremos delas. Provam que a colonização
casas e as árvores.» desumaniza, repito, mesmo o homem mais civilizado; que
Deveria impedir-se o marechal Bugeaud de sistematizar a acção colonial, a empresa colonial, a conquista colo
tudo isto numa teoria audaciosa e reivindicar-se dos egré nial, fundada sobre o desprezo pelo homem indígena e
gios antepassados? justificada por esse desprezo, tende, inevitavelmente, a
«Impõe-se uma grande invasão em África que se modificar quem a empreende; que o colonizador, para se
assemelhe ao que faziam os Francos, ao que faziam os
Godos.»
Deveria, enfim, relegar-se para as trevas do olvido o • Trata-se do relato da tomada de Thouan-An, publicado em
feito de armas memorável do comandante Gérard e le Figaro, em Dezembro de 1883, e citado no livro de N. Serban,
Loti, sa Vie, son Oeuvre. «A grande chacina tinha então começado.
silenciar a tomada de Ambike, cidade que, a bem dizer,
Tinham-se feito fogos de salvas-duplas! E era um prazer ver esses
nunca pensara em defender-se? ramalhetes de balas. tão facilmente diriglveis, abaterem-se sobre eles
«Os atiradores não tinham ordem de matar senão duas vezes por minuto, obedecendo a um comando metódico e
os homens, mas não os contiveram: Ébrios com o odor seguro... Viam-se alguns, absolutamente loucos, que se erguiam
do sangue, não pouparam nem uma mulher, nem uma tomados por uma vertigem de correr... Em ziguezague e todos
retorcidos, lançavam-se nesta corrida de morte, arregaçando-se até
criança ... Ao fim da tarde, sob a acção do calor, uma
aos rins, duma maneira cómica ... e depois divertíamo-nos a contar
pequena neblina se levantou: era o sangue das cinco mil os mortos ... » etc.
DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 25
24 AIMÉ CÉSAIRE
-4·
26 A/MÉ CÉSAIRE
DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 27
nosso caminho e que a Europa tem contas a prestar que as recusa; que é o homem africano que pede portos
perante a comunidade humana pela maior pilha de cadá e estradas e é a Europa colonizadora que regateia; que é
veres da história. o colonizado que quer avançar e é o colonizador que
Aliás, ao julgar a acção colonizadora, acrescentei que a o retém.
Europa se acomodou bastante bem com todos os feudais
indígenas que aceitavam servir; urdiu com eles uma
cumplicidade viciosa; tornou a sua tirania mais efectiva
e mais eficaz, e que a sua acção tendeu nada menos que
a prolongar artificialmente a sobrevivência dos passados
locais no que eles continham de mais pernicioso.
Eu disse - e é muito diferente - que a Europa colo
nizadora enxertou o abuso moderno na antiga injustiça,
o odioso racismo na velha desigualdade.
Se é um processo de intenção que me movem, mante
nho que a Europa colonizadora é desleal ao legitimar
a posteriori a acção colonizadora pelos evidentes progres
sos materiais realizados em certos domínios sob o regime
colonial, dado que a mutação brusca é sempre possível,
em História como em qualquer outro capítulo; que ninguém
sabe a que estádio de desenvolvimento teriam chegado
esses mesmos países sem a intervenção europeia; que o
equipamento técnico, a reorganização administrativa, numa
palavra, «a europeização» da África ou da Ásia não esta
vam - como o prova o exemplo japonês - de modo
algum ligados à ocupação europeia; que a europeização
dos continentes não europeus podia processar-se doutra
maneira que não sob a bota da Europa; que esse movi
mento de europeização estava em curso; que foi mesmo
afrouxado; que em todo o caso foi falseado pela domi
nação da Europa.
A prova é que actualmente são os indígenas de África
ou da Ásia que reclamam escolas e é a Europa colonizadora
3
antropofágica à qual me foi dado assistir na Assembleia Confesso que, pela saúde da Europa e da civilização,
Nacional francesa. esses «mata I mata!», esses «é preciso que o sangue jorre»,
Caramba, meus caros colegas (como se diz) tiro-lhes arrotados pelo ancião trémulo e pelo bom jovem; aluno
o chapéu (o meu chapéu de antropófago, bem entendido). dos santos padres, impressionam-me muito mais desa
Vede só! Noventa mil mortos em Madagáscar! A Indo gradavelmente do que o mais sensacional dos «hold-up» à
china calcada, triturada, assassinada, torturas arrancadas porta dum banco parisiense.
do fundo da Idade Média! E que espectáculo ! O fré E isso, estais a ver, nada tem de excepcional.
mito de satisfação que vos revigorava as sonolências! A regra, pelo contrário, é a velhacaria burguesa. Velha
Os clamores selvagens! Bidault, com o seu ar de hóstia caria cuja pista seguimos há um século. Auscultamo-la,
enconchada - a antropofagia hipócrita e santinha de pau surpreendêmo-la, sentimo-la, seguimo-la, perdemo-la,
carunchoso; Teitgen, coca-bichinhos como o diabo, o reencontramo-la, perseguimo-la e ela desdobra-se, cada
Aliboron da desmiolagem - a antropofagia das Pandec dia mais nauseabunda. Oh! O racismo destes senhores
tas; Moutet, a antropofagia aciganada, a frivolidade ron não me vexa. Não me indigna. Limito-me a tomar nota.
cante e o unto sobre a cabeça; Coste-Fleuret, a antro Constato-o, é tudo. Quase lhe estou grato por se exprimir
pofagia feita má educação e grosseria. e aparecer em pleno dia, como sinal. Sinal de que a intré
Inolvidável, meus senhores! Com belas frases solenes pida classe que outrora se ergueu ao assalto das Basti
e frias como cordas atam de pés e mãos o Malgaxe. lhas tem as pernas cortadas. Sinal de que se sente mortal.
Com algumas palavras convencionadas, apunhalam-no. Sinal de que se sente cadáver. E quando o cadáver gagueja;
Apenas o tempo de se molhar o gasganete, e estri o resultado são coisas deste sabor:
pam-no. Belo trabalho I Nem uma gota de sangue se «Havia uma extrema verdade neste primeiro mo vi
perderá! mento dos Europeus que se recusaram, no século de
Os que vão até ao fundo, nunca deitando água na Colombo, a reconhecer seus semelhantes homens degra
fervura. Os que, como Ramadier, pintalgam o rosto dados que povoavam o novo mundo... Era impossível
- à maneira de Sileno; Fonlup-Esperaber*, que engoma fixar um instante o olhar no selvagem sem ler o aná
os bigodes, género velho-Gaulês-de-cabeça-redonda; o tema escrito, não digo somente na sua alma, mas até na
velho Desjardins, debruçado sobre os eflúvios da doma forma exterior do seu corpo.»
e inebriando-se como de um vinho doce. A violência 1 E está assinado Joseph de Maistre.
A dos fracos. Significativo: não é pela cabeça que as (Aqui temos a versão mística.)
civilizações apodrecem. É primeiro pelo coração. E depois dá ainda isto:
«Sob o ponto de vista de selecção, consideraria deplo
. rável o desenvolvimento numérico muito grande dos
• No fundo não é mau rapaz, como a seguir se provou, mas
desenfreado nesse dia. elementos amarelos e negros que seriam de eliminação
-s-
34 A/Mt CtSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 35
difícil. Se, todavia, a sociedade futura se organizar numa fossa, o mais abaixo ainda a que a pá possa descer, o senhor
base dualista, com uma classe do/ico-loira dirigente e Jules Romains, da· Academia Francesa e da Revue des
uma classe de raça inferior confinada à mais grosseira Deux Mondes (pouco importa, bem entendido, que o
mão�de-obra, é possível que este último papel incumba senhor Farigoule mude mais uma vez de nome e se faça
aos elementos amarelos e negros. Neste caso, aliás, não aqui. chamar Salsette para comodidade da situação).
seria um embaraço, mas uma vantagem para os dolioo O essencial é que o senhor Jules Romains consiga escre
·loiros ... t preciso não esquecer que (a escravatura) nada ver isto:
tem de mais anormal que a domesticação do cavalo «Só aceito a discussão com pessoas que aceitam a
011 do boi. Portanto, é passivei que reapareça no futuro hipótese seguinte: uma França que tenha no seu solo
sob uma forma qualquer. Provavelmente, isso produzir-se-á metropolitano dez milhões de negros, dos quais cinco
mesmo de maneira inevitável se a solução simplista não ou seis milhões no vale do Garona. O preconceito de raça
intervier: uma só raça superior, nivelada por selecção)> nunca teria aflorado as nossas bravas populações do
Aqui, é a versão cientista e está assinado Lapouge. Sudoeste 7 Nenhuma inquietação surgiria, se se tivesse
E dá ainda isto (desta vez; a versão literária}: posto a questão de entregar todos os poderes a esses
«Sei que devo crer-me superior aos pobres Bayas da pretos, filhos de escravos? ... Tem-me acontecido deparar
Mambéré. Sei que devo ter orgulho do meu sangue. com uma fila de uma vintena de negros puros ... Eu não
Quando um homem superior cessa de se crer superior, censuraria sequer que os nossos pretos e pretas mascas
cessa efectivamente de ser superior ... Quando uma raça sem «chewing-gum». Observaria somente ... que esse
superior deixa de se crer uma raça eleita, · deixa efectiva movimento tem por efeito pôr bem em destaque os maxi
mente de ser uma raça eleita.» lares e que as evocações que nos vêm ao espírito nos
E é assinado Psichari-soldado-de-África. aproximam mais da floresta equatorial do que da procis
Traduzido em glria jornalística, obtemos Faguet: são das Panateneias ... A raça negra não deu ainda, nem
«No fim de contas, o Bárbaro é da mesma raça que o nunca dará, um Einstein, um Stravinsky, um Gershvvin.»
Romano e o Grego. É um primo. O Amarelo, o Negro, não Comparação idiota por comparação idiota: já que o
é de maneira nenhuma nosso primo. Existe aqui uma ver profeta da Revue des Deux Mondes e outros lugares
dadeira diferença, uma verdadeira distancia - e muito nos .convida às aproximações «distantes», que permita
grande - etnológica. Afinal, a civilização nunca foi feita ao negro que eu sou, achar - ninguém é dono das suas
até agora senão pelos Brancos ... Se a Europa se tornasse associações de· ideias - que a sua voz tem menos a ver
amarela, haveria certamente uma regressão, um novo com o carvalho, e mesmo com os chocalhos de Dodone,
perí.odo de obscurantismo e de confusão, isto é, uma do que com o zurrar dos burros do Missouri.
segunda Idade Média.» Mais uma vez, faço sistematicamente a apologia das nos
E mais abaixo, sempre mais abaixo, até ao fundo da sas velhas civilizações negras: eram civilizações corteses.
36 AIMÉ CÉSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 37
Então - dir-me-ão - o verdadeiro problema é retornar Songho 7 Livrar-nos-ia de tantos mamarrachos sensacio
a elas. Não, repito. Nós não somos os homens do «ou nais que adornam tantas capitais europeias. Música
isto ou aquilo>>. Para nós, o problema não é de uma africana. Por que não 7
utópica e estéril tentativa de reduplicação, mas de uma E do que disseram, do que viram os primeiros explora
superação. Não é uma sociedade morta que queremos fazer dores... Não dos que comem à manjedoura das Compa
reviver. Deixamos isso aos amadores de exotismo. Não nhias! Mas dos d'Elbée, dos Marchais, dos Pigafetta !
é tão-pouco a sociedade colonial actual que queremos pro E de Frobénius ! Hein, sabeis quem é Frobénius? E lemos
longar, a carne mais imunda que jamais apodreceu debaixo juntos:
do sol. É uma sociedade nova que precisamos criar, com «Civilizados até à medula! A ideia do negro bárbaro
a ajuda de todos os nossos irmãos escravos, rica de toda a é uma invenção europeia.»
potência produtiva moderna, cálida de toda a fraterni O pequeno burguês não quer ouvir mais nada. Com um
dade antiga. bater de orelhas, afugenta a ideia.
Que tal seja possível, a União Soviética dá-nos alguns A ideia, a mosca importuna.
exemplos...
Mas voltemos ao senhor Jules Romains.
Não se pode dizer que o pequeno burguês não leu
nada. Pelo contrário, leu tudo, devorou tudo.
Simplesmente, o seu cérebro funciona à maneira de
certos aparelhos digestivos de tipo elementar. Filtra. E o
filtro só deixa passar o que pode alimentar a epiderme da
boa consciência burguesa.
Os Vietnamitas, antes da chegada dos Franceses ao seu
pais, eram gente de cultura antiga, delicada e requintada.
É uma lembrança que indispõe o Banco de Indochina.
Ponham a funcionar o esquecedor!
Estes Malgaxes, que hoje são torturados, eram, há
menos de um século, poetas, artistas, administradores 7
Chut l Boca calada! E o silêncio faz-se profuhdo como um
cofre-forte! Felizmente que restam os pretos. Ai, os pretos!
Falemos deles, dos pretos!
Ora bem, falemos deles, sim.
Impérios sudaneses? Bronzes de Benim 7 Escultura
4
rapace, todos responsáveis, todos execráveis, todos ameaça, ao que parece, fazer dos negros «vagabundos
negreiros, todos credores, de futuro, da agressividade morais».
revolucionária.
- Dos historiadores ou dos romancistas da civilização
E varre-me todos os obscurantistas, todos os inventores
(é tudo o mesmo), não deste ou daquele, de todos ou
de subterfúgios, todos os charlatães mistificadores, todos
quase, a sua falsa objectividade, o seu chauvinismo, o seu
os manobradores de algaraviada. E não cuides de saber
racismo sonso, a sua viciosa veemência na negação de
se esses senhores estão pessoalmente de boa ou má fé,
todo o mérito às raças não brancas, singularmente às
se pessoalmente são bem ou mal intencionados, se pes
raças melãnicas, a sua monomania de monopolizar toda
soalmente, isto é, na sua consciência íntima de Pedro ou
a glória em proveito da sua.
Paulo, são colonialistas ou não, o essencial é que a sua
muito aleatória boa fé subjectiva não tem nenhuma rela - Os psicólogos, sociólogos, etc., as suas opiniões
ção com o alcance objectivo e social da reles tarefa que sobre o «primitivismo», as suas investigações dirigidas,
executam, de cães de guarda do colonialismo. as suas generalizações interessadas, as suas especulações
E nesta ordem de ideias, cito, a título de exemplo tendenciosas, a sua insistência sobre o carácter «à parte»
(tomado intencionalmente em disciplinas muito dife dos não brancos, a sua renúncia pelas necessidades da
rentes): causa, no próprio momento em que cada um destes
senhores se reclama do racionalismo mais firme para
- De Gourou, o seu livro: Les Pays Tropicaux onde, acusar de mais alto a enfermidade do pensamento pri
entre opiniões certas, se exprime, parcial, inaceitável, a mitivo, a sua abjuração bárbara da frase de Descartes,
tese fundamental de que nunca houve grandes civili carta do universalismo: que «a razão está toda inteira em
zações tropicais, nunca houve civilização grande a não cada um» e «que não há o mais ou o menos senão
ser de clima temperado, de que, em todo o país tropical, entre os acidentes e nunca entre as formas ou naturezas
o germe da civilização vem e só pode vir dum além dos indivíduo·s da mesma espécie».
extra-tropical e sobre os países tropicais pesa, em vez,
da maldição biológica dos racistas, pelo menos e com Mas não andemos depressa de mais. Vale a pena seguir
as mesmas consequências uma não menos eficaz mal alguns destes senhores.
dição geográfica. Não me alargarei sobre o caso dos historiadores, nem
dos historiadores da colonização, nem dos egiptólogos,
- Do Rev. P. 8 Tempels, missionário e belga, a sua sendo o dos primeiros por demais evidente e no caso
filosofia banta lodosa e mefítica como de regra, mas dos segundos, o mecanismo da sua mistificação foi
descoberta muito oportunamente, como outros o hin definitivamente desmontado por Cheikh Anta Diop, no
duísmo, para exorcizar o «materialismo comunista», que seu livro Nations Negres et Cu/ture - o mais audacioso
42 AIMÉ CÉSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 43
que um negro escreveu até hoje e que contará, sem lações, da sua luta libertadora, do seu combate concreto
dúvida, no despertar da África*. pela vida, pela liberdade e a cultura, que ele espera a sal
Voltemos antes atrás. Ao senhor Gourou, precisa vação dos países tropicais, mas do bom colonizador;
mente. dado que a lei é formal, a saber: que «são os elementos cul
Será necessário dizer que é com grande sobranceria que turais preparados nas regiões extra-tropicais que asseguram
o eminente sábio mede as populações indígenas, as quais e assegurarão o progresso das regiões tropicais para uma
«não tiveram a mlnima participação» no desenvolvimento população mais numerosa e uma civilização superion>.
da ciência moderna 7 E que não é do esforço destas popu- Eu disse que havia ideias certas no livro do senhor
Gourou: «O meio tropical e as sociedades indígenas»
escreve ele, fazendo o balanço da colonização «sofre
• Cf. Cheikh Anta Diop, Nations Negres et Cu/ture, Éditions ram a introdução de técnicas mal adaptadas, as corveias,
Présence Africaine, 1955. Tendo Heródoto afirmado que os Egípcios
as cargas pesadas, o trabalho forçado, a escravatura, a
não eram primitivamente mais do que uma colónia dos Etíopes;
tendo Deodoro da Sicília repetido a mesma afirmação e agravado
transplantação dos trabalhadores duma região para outra,
o seu caso retratando os Etlopes de modo a não poder haver confu mudanças súbitas do meio biológico, condições especiais
sões (Plerique omnes - para citar a tradução latina - nigro sunt novas e menos favoráveis.»
colore, facíe síma. crispis capí!is, livro Ili, § 8), importava ao máximo Que palmarés! A cara do reitor! A cara do ministro
rebatê-los. Admitindo-se isso, e quase todos os sábios ociden
quando lê isto I O nosso Gourou rompeu as amarras;
tais fixaram deliberadamente o objectivo de arrebatar o Egipto
à África, com o risco de nunca mais poderem explicá-lo, havia várias pronto; vai dizer tudo; começa: «Os países quentes típicos
maneiras de o conseguir: o método Gustave Le Bon, afirmação brutal, encontram-se perante o seguinte dilema: a estagnação
impudente: «Os Egípcios são Camitas, isto é, brancos como os económica e salvaguarda dos indígenas ou o desenvol
Udios, os Getulos, os Mouros, os Númidas, os Berberes)); o método vimento económico provisório e regressão dos indígenas.»
Maspero, que consiste em relacionar, contra toda a verosimilhança,
«Senhor Gourou, é muito grave r Advirto-o solenemente
a língua egípcia com línguas semíticas, mais especialmente com o
tipo hebreo-aramaico, donde se tira a conclusão de que na origem que com este jogo é a sua carreira que fica em causa.»
os Egípcios só podiam ser Semitas; o método Weigafl, geográfico, Então o nosso Gourou prefere contemporizar, omitir
segundo o qual a civilização egípcia só podia ter nascido no e precisar que, se o dilema existe, só existe no quadro
Baixo Egipto e que dai teria passado ao Alto Egipto, subindo o rio ... do regime vigente; que se essa antinomia constitui
dado que não podia descê-lo (sic), Compreende-se que a razão
uma lei de ferro, não é mais do que a lei de ferro do
secreta desta impossibilidade é que o Baixo Egipto está próximo
do Mediterrâneo, portanto das populações brancas, ao passo que capitalismo colonialista, logo duma sociedade não só
o Alto Egipto fica próximo do país dos negros. perecível, como já em vias de perecer.
Sobre este assunto, e para opô-las à tese de Weigalf, não deixa Geografia impura e quão secular!
de ter interesse recordar as opiniões de Scheinfurth (Au Coeur de Se há melhor, é o Rev. p_e Tempels. Que se pilhe, que
l'Afrique, t. 1) sobre a origem da flora e da fauna do Egipto, que
situa «a centenas de milhas a montante do rio)),
se torture no Congo, que o colonizador belga deite a
44 AIMÉ CtSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 45
mão a toda a riqueza, que mate toda a liberdade, que só pedem satisfações de ordem ontológica. Salários
oprima todo o brio - que vá em paz, o Rev. P.ª Tempels decentes! Habitações confortáveis I Alimentação I Estes
consente-o. Porém, cuidado! Os senhores vão ao Congo? Bantos são puros espíritos, digo-vos eu: «O que eles d!:lse
Respeitai, não digo a propriedade indígena (as grandes jam antes e acima de tudo, não é a melhoria da sua
companhias belgas poderiam tomar isso como uma situação económica ou material, mas sim o reconheci
foice na sua seara), não digo a liberdade dos indígenas mento do branco e o seu respeito pela sua dignidade
(os colonos belgas poderiam ver nisso propósitos subver de homem, pelo seu pleno valor humano.»
sivos), não digo a pátria congolesa (arriscava-se a que o Em suma, uma chapelada à força vital banta, uma pis
governo belga tomasse muito mal a coisa), digo: Os senho cadela à alma imortal banta. E estais quites! Confessai
res vão ao Congo, respeitai a filosofia banta 1 que é barato!
«Seria verdadeiramente inaudito» escreve o Rev. P. 8 Tem Quanto ao governo, de que se queixaria? Pois que
pels «que o educador branco se obstinasse a matar no - nota o Rev. P. 8 Tampeis, com evidente satisfação - «Os
homem negro o seu espírito humano próprio, essa rea Bantos nos consideram, a nós, os brancos, e isto desde o
lidade única que nos impede de o considerar um ser primeiro contacto, do seu ponto de vista possível, o da sua
inferior I Seria um crime de lesa-humanidade, da parte do filosofia banta» e «nos integraram, na sua hierarquia dos
colonizador, emancipar as raças primitivas do que é valo seres-forças, num escalão bastante elevado».
roso, do que constitui um núcleo de verdade no seu Por outras palavras, consegui que à cabeça da hierar
pensamento tradicional, etc.» quia das forças vitais bantas tome lugar o branco, e o
Que generosidade, meu Padre! E que zelo! Belga singularmente, e, mais singularmente ainda, Alberto
Ora bem, sabei que o pensamento banto é essencial ou Leopoldo, e a manobra está completa. Obter-se-á esta
mente ontológico; que a ontologia banta assenta sobre maravilha: o Deus banto será garante da ordem colonia
as noções verdadeiramente essenciais de força vital e lista belga e todo o Banto que ousar levantar-lhe a mão
de hierarquia de forças vitais; que, enfim, para o Banto, será sacrílego.
a ordem ontológica que define o Mundo vem de Deus• Pelo que toca ao senhor Mannoni, as suas considerações
e, decreto divino, deve ser respeitada ... sobre a alma malgaxe e o seu livro merecem que se lhe
Admirável! Toda a gente ganha com isso: grandes com preste atenção.
panhias, colonos, governo, excepto o Banto, natural Sigamo-lo passo a passo nas voltas e reviravoltas das
mente. suas sortezinhas de prestidigitação, e ele demonstrar
Sendo o pensamento dos Santos ontológico, os Bantos -vos-á, claro como o dia, que a colonização se funda
na psicologia; que pelo Mundo fora há grupos de homens
• É claro qua aqui criticamos não a filosofia banta, mas a utili atacados, não se sabe como, dum complexo que é mesmo
zação que certas pessoas dela empreendem fazer, para fins políticos. preciso designar por complexo da dependência, que esses
46 AIMÉ CÉSAIRE
DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 47
grupos são psicologicamente formados para ser depen autonomia, bens supremos e também fardos do Oci
dentes; que têm necessidade da dependência, que a dental.»
postulam, que a reclamam, que a exigem; que este é o caso E o Malgaxe? direis vós. Raça serva e mentirosa,
da maior parte dos povos colonizados, e dos Malgaxes, diria Kipling. O senhor Mannoni diagnostica: «O Mal
em particular. gaxe não tenta sequer imaginar semelhante situação
Bolas para o racismo! Bolas para o colonialismo 1 de abandono ... Não deseja autonomia pessoal nem livre
Cheira a bárbaro de mais. O senhor Mannoni tem melhor: responsabilidade.» (Bem o sabeis, vejamos. Estes pretos
a psicanálise. Ornamentada de existencialismo, os resul não imaginam sequer o que é a liberdade. Não a dese
tados são supreendentes: consertam-se e apresentam-se jam, não a reivindicam. São os instigadores brancos que
como novos os lugares-comuns mais batidos; explicam-se lhes metem isso na cabeça. E se lha dessem, não sabe
e legitimam-se os mais absurdos preconceitos; e, magica riam que fazer dela.)
mente, a nuvem transforma-se em Juno.. Se se assinala ao senhor Mannoni que os Malgaxes
É melhor escutá-lo: todavia se revoltaram por várias vezes desde a ocupação
«O destino do Ocidental depara com a obrigação de francesa e ultimamente, ainda, em 1947, o senhor Mannoni,
obedecer ao mandamento: Deixarás pai e mãe. Esta fiel às suas premissas, explicar-vos-á que se trata dum
obrigação é incompreensível para o Malgaxe. Todo o comportamento puramente nevrótico, duma loucura colec
Europeu descobre em si, a um momento do seu desen tiva, dum comportamento de «amok»; que na circunstância,
volvimento, o desejo ... de romper os seus laços de depen aliás, não se tratava, para os Malgaxes, de partir à con
dência, de se igualar ao pai. O Malgaxe, nunca! Ignora quista de bens reais, mas antes de uma «segurança imagi
a rivalidade com a autoridade paterna, a 'contestação viril', nária», o que implica, evidentemente, que a opressão de
a inferioridade adleriana, provas que o Europeu deve que se queixam é uma opressão imaginária. Tão nitida
atravessar e que são como que as formas civilizadas.. . mente, tão demencialmente imaginária, que não é inter
dos ritos de iniciação pelos quais se atinge a virilidade ... » dito falar de ingratidão monstruosa, segundo o tipo clás
Que as subtilezas do vocabulário, as novidades termi sico do Fidjiano que queima o estendal do capitão que lhe
nológicas não vos assustem I Conheceis o estribilho: sarou os ferimentos.
«Os Pretos-são-Crianças-grandes.» Pega-se nele, veste-se, Que, se se faz a crítica do colonialismo que leva
baralha-se. O resultado é Mannoni. Pode parecer um pouco ao desespero as populações mais pacíficas, o senhor
penoso, à partida, mas à chegada, vereis, reencontrareis Mannoni explicar-vos-á que, no fim de contas, o respon
todas as vossas bagagens. Nada faltará, nem mesmo o sável não é o branco colonialista, mas sim os Malga
célebre fardo do homem branco. Portanto, atentai: «Por xes colonizados. Que diabo I Eles tomavam os brancos
essas provas {reservadas ao Ocidental [A.C.]), triunfa-se por deuses e esperavam deles tudo o que se espera da
do medo infantil do abandono e adquire-se liberdade e divindade!
48 AIMÉ CÉSAIRE
DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 49
crescente na nossa família francesa ... A sua emoção mentas originais da raça que, propagando a cultura,
seria a mesma se visse a França, inversamente, integrar-se criam a beleza e a dignidade duma humanidade superior.»
na família negra (ou amarela ou vermelha, pouco importa), Esta filiação, o senhor Yves Florenne conhece-a.
isto é, diluir-se, desaparecer?» E está longe de ficar embaraçado.
É claro, para o senhor Yves Florenne, é o sangue que Muito bem. Está no seu direito.
faz a França e as bases da nação são biológicas: Como não está no nosso direito indignarmo-nos.
«O seu povo, o seu génio são feitos dum equilíbrio Porque, enfim, é preciso tomarmos o nosso partido e
simultaneamente milenário, vigoroso e delicado e ... cer dizermos duma vez por todas que a burguesia está
tas rupturas inquietantes desse equilíbrio coincidem com condenada, cada dia que passa, a ser mais intratável,
a infusão massiva e, muitas vezes, arriscada, de sangue mais abertamente feroz, mais despudorada, mais sumaria
estrangeiro que ela tem vindo a sofrer desde há uns ménte bárbara; que uma lei implacável estabelece que toda
trinta anos.» a classe decadente se vê transformada em receptáculo
Em suma, a mestiçagem, eis o inimigo. Não mais a onde afluem todas as águas sujas da História; que é uma
crise social! Não mais a crise económica! Já não há senão lei universal que toda a classe, antes de desaparecer, deve
crises raciais I É claro, o humanismo não perde os seus previamente desonrar-se completamente, omnilatera/mente,
direitos (estamos no Ocidente), mas entendamo-nos: e que é com a cabeça enterrada no esterco que as socie
«Não é perdendo-se no universo humano com o seu dades moribundas soltam o seu canto do cisne.
sangue e o seu espírito que a França será universal, é
permanecendo ela mesma.»
Eis onde chegou a burguesia francesa, cinco anos após
a derrota de Hitler! E é aqui precisamente que reside o
seu castigo histórico: ser condenada a ruminar o vómito
de Hitler, aí regressando como por vício.
Porque, enfim, o senhor Yves Florenne esmerava-se
ainda à volta de romances campesinos, de «dramas da
terra», de histórias de mau olhado, quando Hitler, o olho
tão mau como o dum agreste herói de jettatura*, anun
ciava:
«O fim supremo do Estado-Povo é conservar os ele-
Monstruosidade? Aerólito literário? Delírio duma ima ouro e do entesoiramento; restituir o verdadeiro lugar ao
ginação doente 7 Ora vamos! Como é cómodo r admirável episódio do «omnibus» e consentir em encon
A verdade é que bastou a Lautréamont contemplar, trar aí, muito chãmente, o que lá está, a pintura quase
olhos nos olhos, o homem de ferro forjado pela socie nada alegórica duma sociedade onde os privilégios, con
dade capitalista, para apreender o monstro, o monstro fortavelmente instalados, se recusam a ajustar-se para
quotidiano, seu herói. dar lugar ao recém-chegado, e - diga-se de passa
Ninguém nega a veracidade de Balzac. gem - quem recolhe a criança duramente enjeitada?
Mas, atenção: tomai Vautrin, no regresso dos países O povo! Representado aqui pelo trapeiro. O trapeiro
quentes, dai-lhe as asas do arcanjo e os arrepios do de Baudelaire:
paludismo, acompanhai-o, na calçada parisiense, por
uma escolta de vampiros uruguaios e formigas tambo Et sans prendre souci des mouchards, ses sujets,
chas, e tereis Maldoror. Epanche tout son coeur en glorieux projet.
Variante do cenário, mas é bem do mesmo mundo, é li prête des serments, dicte des fois sublimes,
bem do mesmo homem que se trata, duro, inflexível, sem Terrasse les méchants, releve les victimes.•
escrúpulos, amador, como ninguém, «da carne dos
outros». Então, na verdade, compreender-se-á que o inimigo de
Para abrir aqui um parêntesis nos meus parêntesis, quem Lautréamont fez o inimigo, o «criador» antropófago
penso que virá o dia em que, com todos os elementos e estupidificante, o sádico «alcandorado num trono de
reunidos, todas as fontes verificadas, todas as circuns excrementos humanos e ouro», o hipócrita, o debochado,
tâncias da obra elucidadas, será possível dar dos o madraço que <{come o pão dos outros» e que volta e meia
Cantos de Ma/doror uma interpretação materialista e encontramos, morto de bêbado «como um percevejo
histórica que fará ressaltar desta epopeia frenética um que durante a noite mascou três tonéis de sangue»,
aspecto por demais menosprezado - o da implacável compreender-se-á que não é para além das nuvens que
denúncia duma forma muito precisa de sociedade que se deve ir procurar essa criatura, mas que mais depressa
não podia escapar ao olhar ·mais agudo por volta a encontraremos no anuário Desfossés e num qualquer
de 1865. confortável conselho de administração!
Importaria antes, bem entendido, desembrenhar o cami Mas deixemos isso.
nho dos comentários ocultistas e metafísicos que o enco
brem; devolver a sua importância a certas estrofes negli • E sem cuidar dos denunciantes, seus vassalos,
genciadas - aquela, por exemplo, entre todas estranha, Expande o coração inteiro em glorioso projecto.
da mina de piolhos, em que só aceitaremos ver, nem Presta juramentos, dita leis sublimes,
mais nem menos, que a denúncia do poder maléfico do Fulmina os maus, levanta as vítimas.
56 AIMÉ CÉSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 57
Os moralistas não podem impedi-lo. É imperdoável não recordar o senhor Massis que, por
A burguesia, como classe, está condenada, quer se volta de 1927, partiu em cruzada pela defesa do Ocidente.
queira, quer não, a ser responsável por toda a barbárie da Queremos assegurar-nos de que melhor sorte será
História, as torturas da Idade Média e a Inquisição, a razão reservada ao senhor Caíl/ois que, para defender a mesma
de Estado e o belicismo, o racismo e o esclavagismo, causa sagrada, transforma a sua pena em boa adaga
em suma, tudo contra o que protestou em termos inolvi de Toledo.
dáveis, no tempo em que, classe ao ataque, encarnava o Que dizia o senhor Massis? Deplorava que «o destino
progresso humano. da civilização do Ocidente, o destino do homem, numa
Os moralistas não podem impedi-lo. Há uma lei de palavra» estivessem hoje ameaçados; que de todos os
desumanização progressiva em virtude da qual de futuro lados se empenhassem «em invocar as nossas angústias,
não haverá, não pode haver agora, senão a violência, a cor em contestar os títulos da nossa cultura, em pôr em causa o
rupção e a barbárie na ordem do dia da burguesia. essencial do nosso haver», e o senhor Massis jurava partir
la esquecer o ódio, a mentira, a presunção. em guerra contra esses «desastrosos profetas».
la esquecer o senhor Roger Caillois*. O senhor Caillois não identifica doutra maneira o ini
Pois bem, o senhor Cai/lois, investido para toda a eter migo. São os «intelectuais europeus» que, «por uma
nidade da missão de ensinar a um século cobarde e des decepção e um rancor excepcionalmente agudos», se
bragado o rigor do pensamento e a preservação do estilo, encarniçam, há uns cinquenta anos, «a renegar os diver
o senhor Caillois, dizíamos, acaba de sentir uma grande sos ideais da sua cultura» e que, por isso, sustentam,
cólera. «nomeadamente na Europa, um mal-estar tenaz».
O motivo? É a esse mal-estar, a essa inquietude, que o senhor
A inaudita traição da etnografia ocidental que, há algum Caíllois entende pôr fim*.
tempo, com uma deterioração deplorável do sentido das
suas responsabilidades, se engenha a pôr em dúvida a • É significativo que no próprio momento em que o senhor
superioridade omnilateral da civilização ocidental sobre Caillois empreendia a sua cruzada, uma revista colonialista belga,
de inspiração governamental (Europe-Afnque, n. 0 6, Janeiro de 1955),
as civilizações exóticas.
agredia a etnografia de forma absolutamente idêntica: «Antigamente,
Num ápice, o senhor Caillois entra em campanha. o colonizador concebia fundamentalmente as suas relações com o
A Europa tem a virtude de suscitar destes heroísmos colonizado como as dum homem civilizado com um homem selva
resgatadores no momento mais crítico. gem. A colonização repousava, assim, numa hierarquia, grosseira
certamente, mas vigorosa e clara.»
É a destruição desta relação hierárquica que o autor do artigo,
um tal senhor Piron, censura à etnografia. Como o senhor Caillois,
• Cf. Roger Cailtois: «lllusions à Rebours», La Nouvel/e Revue ataca-se Michel Leiris e Levi-Strauss. Recrimina ao primeiro o ter
Française, Dezembro e Janeiro de 1955. escrito, na sua brochura la Ouestion Raciale devant. la Science
58 A!Ml CÍSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 59
Com efeito, nunca, desde o Inglês da época vitoriana, rem do nosso no aspecto lógico ... Portanto não admitem,
nenhuma outra personagem passeou pela História uma tanto como nós, uma contradição formal ... Por conse
boa consciência mais serena e menos enevoada de dl'.ívidas. guinte, rejeitam, como nós, por uma espécie de reflexo
A sua doutrina? Tem o mérito de ser simples. mental, o que é logicamente impossível»*.
Que o Ocidente inventou a ciência. Que só o Ocidente Desperdiçado esforço! O senhor Caillois toma a recti
sabe pensar; que nos limites do mundo ocidental começa ficação por nula e sem efeito. Para o senhor Caillois, o
o tenebroso reino do pensamento primitivo, o qual, domi Lévy-Bruhl autêntico só pode ser o Lévy- Bruhl do
nado pela noção de participação, incapaz de lógica, é o primitivo que extravaga.
tipo acabado do falso pensamento. Ficam, naturalmente, alguns pequenos factos que resis
Aqui, temos um sobressalto. Objectamos ao senhor tem. A saber, a invenção da aritmética e da geometria
Caillois que a famosa lei de participação inventada por pelos Egípcios. A saber, a descoberta da astronomia
Lévy-Bruhl foi renegada pelo próprio Lévy-Bruhl; que no pelos Assírios. A saber, o nascimento da química entre
crepúsculo da sua vida proclamou à face do Mundo o os Árabes. A saber, a aparição do racionalismo no seio
seu erro «ao querer definir um carácter próprio da men do Islão, numa época em que o pensamento ocidental
talidade primitiva enquanto lógica»; que adquirira, pelo tinha uma feição furiosamente pré-lógica. Mas o senhor
contrário, a convicção de que «esses espíritos não dife- Caillois apressou-se a enxotar estes pormenores i mper
tinentes, sendo formal o princípio de «que uma descoberta
que não cabe num conjunto» não passa, precisamente,
Moderne: «Ê pueril pretender hierarquizar a cultura.» Ao segundo, o
dum pormenor, isto é, dum nada negligenciável.
combater o «falso evolucionismo», quando ele «tenta suprimir a diver Não nos enganamos se pensarmos que, assim lançado,
sidade das culturas, considerando-as estádios dum desenvolvimento o senhor Caillois não vai deter-se em tão belo caminho.
único que, partindo dum mesmo ponto, deve fazê-las convergir para o Depois de anexar a ciência, ei-lo que reivindica a moral.
mesmo fim». Particular realce é reservado a Mírcea Eliade, por ter
Mas não! O senhor Caillois nunca comeu ninguém!
ousado escrever-a seguinte frase: «Diante de si, o Europeu agora já não
tem indígenas, mas interlocutores. Ê bom que se saiba como encetar o
O senhor Caillois nunca pensou liquidar um inválido!
diálogo; é indispensável reconhecer que já não existe solução de Ao senhor Caillois nunca lhe veio a ideia de abreviar a
continuidade entre o mundo primitivo (entre comas) ou atrasado vida dos seus velhos pais! Pois bem, ei-la, a superiori
(idem) e o Ocidente moderno.» dade do Ocidente: «Esta disciplina de vida que se esforça
Finalmente, para terminar, é um excesso de igualitarismo que se
por conseguir que a pessoa humana seja suficientemente
reprova ao pensamento americano - tendo Otto Klineberg, professor
de psicologia da Universidade de Columbia, afirmado: «Ê um erro
capital considerar as outras culturas inferiores à nossa, só porque são
diferentes.» * les Carnets de Lucíen lévy-Bruh/. Presses Universitaires de
Decididamente, o senhor Caillois está bem acompanhado. France, 1949.
60 AIMÉ CÉSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 61
respeitada para que não se ache normal suprimir os velhos É o Ocidente que faz a etnografia dos outros, não os outros
e os inválidos.» que fazem a etnografia do Ocidente.
A conclusão impõe-se: face aos antropófagos, aos Intenso motivo de júbilo, não é verdade?
esquartejadores e outros comprachicos, a Europa, o Oci E a nenhum minuto vem ao espirita do senhor Caillois
dente, encarnam o respeito pela dignidade humana. que mais valia, afinal de contas, não ter havido a necessi
Mas adiante e estuguemos o passo, não vá o nosso dade de abrir os museus de que se envaidece; que a
pensamento transviar-se para os lados de Argel, de Mar Europa teria feito melhor se tolerasse a seu lado, bem vivas,
rocos e outros lugares onde, ju�tamente na hora em que dinâmicas e prósperas, inteiras e não mutiladas, as civi
escrevo, tantos valorosos filhos do Ocidente prodigalizam, lizações extra-europeias; que mais teria valido deixá-las
na semi-obscuridade das masmorras, aos seus irmãos desenvolverem-se e realizarem-se, em vez de nos dar para
inferiores de África, com tanto desvelo e solicitude, essas admirar, devidamente etiquetados, os seus membros espar
autênticas marcas de respeito pela dignidade humana sos, os seus membros mortos; que, de resto, o museu, por
que se chamam, em termos técnicos, «a banheira», «a si, não é nada; não significa nada, nada pode significar, lá
electricidade», «o gargalo da garrafa». onde a auto-satisfação beatífica apodrece os olhos,
Apressemo-nos: o senhor Caillois não chegou ainda onde o secreto desprezo pelos outros resseca os corações,
ao fim do seu palmarés. Depois da superioridade onde, confesso ou não, o racismo estanca a simpatia;
cientifica e da superioridade moral, a superioridade que nada significa se só se destina a prover às delícias
religiosa. do amor-próprio; que afinal o honesto contemporâneo
Aqui, o senhor Caillois não se deixa ofuscar pelo vão de São Luís, combatendo mas respeitando o Islão, tinha
prestígio do Oriente. A Ásia, mãe dos deuses, talvez. mais hipóteses de o conhecer que os nossos contemporâ
Em todo o caso, a Europa, senhora dos ritos. E vede a neos, mesmo untados de literatura etnográfica, que o
maravilha: dum lado, fora da Europa, cerimónias tipo desprezam.
macumba, com tudo o que comportam de «mascarada Não, jamais na balança do conhecimento o peso de
burlesca, frenesi colectivo, alcoolismo desbragado, explo todos os museus do Mundo pesará tanto como uma cen
ração grosseira dum ingénuo fervor», e do outro - do telha de simpatia humana.
lado da Europa -, esses valores autênticos que Cha A conclusão de tudo isto?
teaubriand já celebrava no Génie du Christianisme: «os Sejamos justos; o senhor Caillois é moderado.
dogmas e os mistérios da religião católica, a sua liturgia, Tendo estabelecido a superioridade do Ocidente em
o simbolismo dos seus escultores e a glória do cantochão». todos os domínios; tendo, assim, restabelecido uma
Enfim, derradeiro motivo de satisfação: sadia e preciosa hierarquia, o senhor Caillois oferece uma
Gobineau dizia: «Só há história branca.» O senhor Cail prova imediata dessa superioridade ao concluir pelo não
lois, por sua vez, constata: «Só há etnografia branca.» extermínio de quem quer que seja. Com ele os Negros
62 AIMÉ CÉSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 63
ficam com a certeza de não serem linchados, os Judeus justificam, de modo algum, urna desigualdade de direitos
de não alimentarem novas fogueiras. Somente, cuidado; a favor dos povos ditos superiores, como o desejaria o
importa que fique bem entendido que esta tolerância racismo. Antes lhes conferem encargos suplementares e
devem-na Negros, Judeus, Australianos, à magnanimidade uma responsabilidade acrescida.»
do senhor Caillois, não aos seus méritos respectivos, não Responsabilidade acrescida? Pois qual, senão a de
a um «diktat» da ciência, que só poderia fornecer verdades dirigir o Mundo?
efémeras, mas a um decreto da consciência do senhor Encargo acrescido? Pois qual, senão o encargo do
Caillois, a qual só pode ser absoluta; que nada condiciona, Mundo?
nada garante esta tolerância senão o que o senhor E aí vai Caillois-Atlas fincar-se filantropicamente na
Caillois deve a si próprio. poeira e carregar nos seus ombros robustos o inevitável
Talvez a ciência ordene um dia que se desembarace fardo do homem branco.
a estrada da humanidade de todos estes pesos pesados, Perdoar-me-ão ter falado tão longamente do senhor
estes empecilhos que as culturas atrasadas e os povos Caillois. Não que eu sobrestime em qualquer grau o
atardados constituem, mas estejamos tranquilos porque valor intrínseco da sua «filosofia» (poder-se-ia ajuizar
no momento fatal a consciência do senhor Caillois da seriedade dum pensamento que, reivindicando-se do
- que de boa consciência logo se metamorfoseia em espírito de rigor, se sacrifica com tamanha complacência
bela consciência - deterá o braço assassino e pronun aos preconceitos e chafurda com tal volúpia no lugar
ciará o Salvus sis. -comum), mas ela merecia ser assinalada, porque é signi
O que nos vale esta nota suculenta: «Para mim, a ques ficativa.
tão da igualdade das raças, dos povos ou das culturas, De quê?
só tem sentido se se trata duma igualdade de direitos e Disto: que nunca o Ocidente, no próprio momento em
não duma igualdade de facto. Da mesma maneira, um que mais se deleita com esta palavra, esteve tão longe de
cego, um mutilado, um idiota, um ignorante, um pobre poder assumir as exigências dum humanismo verdadeiro
(não se poderia ser mais gentil para os não Ocidentais), de poder viver o humanismo verdadeiro - o humanism�
não são respectivamente iguais, na acepção material da à medida do Mundo.
palavra, a um homem forte, clarividente, completo, sau
dável, inteligente, culto ou rico. Estes têm maiores capa
cidades que, aliás, não lhes conferem mais direitos,
tão-só mais deveres... Da mesma forma, seja por causas
biológicas ou históricas, existem, actualmente, diferenças
de nível, de potência e de valor entre as diferentes cul
turas. Delas decorre uma desigualdade de facto. Não
6
Oceânicos ou os Africanos. Na realidade abateram-se, umas gavam, a barbárie nascia espontâneamente. Os Gauleses
após outras, as muralhas aquém das quais a civilização destruídos transformaram-se em Bagaudas. Assim, a
europeia podia desenvolver-se livremente. queda violenta, a extirpação progressiva das fortalezas
Sei tudo o que há de falacioso nos paralelos históricos, particulares causaram o desmoronamento da civilização
nomeadamente no que vou esboçar. Não obstante, per antiga. Este edifício social era sustentado pelas naciona�
mitam-me transcrever aqui uma· página de Quinet pela !idades como se fossem outras tantas colunas diferentes de
parte não negligenciável de verdade que encerra e que mármore ou de pórfiro.
merece ser meditada. Quando foram destruídas, entre os aplausos dos sábios
Ei-la: do templo, cada uma dessas colunas vivas, o edifício
·«Pergunta-se por que é que a barbárie desembocou dum tombou por terra e os sábios dos nossos dias buscam
só jacto na civilização antiga. Julgo poder dizê-lo. ainda como foram passiveis num momento tamanhas
É espantoso que uma causa tão simples não salte aos olhos ruínas!»
de todos. O sistema da civilização antiga compunba�se Então, eu pergunto: que fez a Europa burguesa senão
dum certo número de nacionalidades,- de . pátrias que, isso 7 Ceifou as civilizações, destruíu as pátrias, arruinou
embora parecessem inimigas ou mesmo se ignorassem, as nacionalidades, extirpou «a raiz da diversidade». Já
se protegiam, se apoiavam, se guardavam umas às·outras. não há diques. Já não há avenidas. Chegou a hora do
Quando o Império Romano, expandindo-se, empreendeu Bárbaro. Do Bárbaro moderno. A hora americana. Violên
a conquista e a destruição desses corpos de nações, os cia, desmesura, esbanjamento, mercantilismo, «bluff», gre
sofistas deslumbrados julgaram· discernir,• no fim desse garismo, a imbecilidade, a vulgaridade, a desordem.
caminho, a humanidade - triunfante em Roma. Falou-se Em 1913, Page escrevia a Wilson:
da unidade do espírito humano: não passou dum sonho. «O futuro do Mundo é nosso. Que faremos quando,
Acontecia que essas nacionalidades eram outras tantas dentro em pouco, a dominação do Mundo nos cair nas
avenidas que, protegiam a própria Roma ... Pois quando mãos?»
Roma, nessa pretensa marcha triunfal para a civilização E em 1914: «Que faremos nós desta Inglaterra e deste
única, destruiu, sucessivamente, Cartago, o Egipto, a 1 mpério, brevemente, quando as forças económicas tive
Grécia, a Judeia, a Pérsia, a Dácia,·os Gauleses; aconteceu rem posto entre as nossas mãos a direcção da raça?»
que tinha devorado ela própria os diques que a protegiam Este Império ... e os outros ... ""
do oceano humano ·que a iria sübmergir. Ao esmagar os E, de facto, não vedes com que ostentação esses senhores
Gauleses, o magnânimo César não.fezmais do que abrir acabam de desfraldar o estandarte do anticolonialismo?
o caminho aos Germanos, Tantas sociedades, tantas lín «Ajuda aos palses deserdados», diz Truman. «A época
guas extintas, cidades, direitos, lares aniquilados, fizeram do velho colonialismo passou.» É ainda Truman.
o vácuo à volta ·de Homa e, aonde· os bárbaros não che- Entenda-se que a grande finança americana julga che-
68 AfMÉ ctSAIRE DISCURSO SOBRE O COLONIALISMO 69
gada a hora de pôr a saque todas as colónias do Mundo. se não se torna despertadora de pátrias e civilizações, isto
Portanto, caros amigos da banda de cá, cuidado! sem tomar em conta a admirável resistência dos povos
Sei que muitos dentre vós, enojados da Europa, da grande coloniais, que o Vietname simboliza actualmente de maneira
asquerosidade de que fostes testemunhas involuntárias, esplendorosa, assim como a África do A.D.A., a Europa
se voltam - oh r em pequeno número - para a América, terá perdido a sua derradeira oportunidade e, por suas
e se habituam a ver nela uma possível .libertadora. próprias mãos, puxado sobre si o lençol das trevas mortais.
«Que bênção!» - pensam e[es. O que, claramente, quer dizer que a salvação da Europa
«Os 'bufldozers' 1 Os investimentos massivos de capitais 1 não tem a ver com uma revolução nos métodos; tem a ver
As estradas I Os portos r com a Revolução; aquela que, à espera da sociedade
- Mas o racismo americano! sem classes, substituirá a estreita tirania duma burguesia
- Oral O racismo europeu nas colónias tornou-nos desumanizada pela preponderância da única classe que
aguerridos I» tem ainda missão universal, porque na sua carne sofre
E eis-nos prontos a correr o grande risco «yankee». de todos os males da História, de todos os males univer
Então, uma vez mais, cuidado l sais: o proletariado.
A americana, a única dominação de que se não escapa.
Quero dizer, de que se não escapa completamente indemne.
E já que falais de fábricas e de indústrias, não vedes,
histérica, em pleno coração das nossas florestas e dos
nossos matos, cuspindo as suas escórias, a formidável
fábrica, mas de lacaios, a prodigiosa mecanização, mas
do homem, o gigantesco estupro do que a nossa humani
dade de espoliados soube ainda preservar de íntimo, de
intacto, de imaculado, a máquina, nunca vista, a máquina,
mas de esmagar, de triturar, de embrutecer os povos?
De tal modo que o perigo é imenso ...
De tal modo que, se a Europa ocidental não toma de modo
próprio em África, na Oceânia, em Madagáscar, isto é,
às portas da África do Sul, nas Antilhas, isto é, às portas
da América, a iniciativa duma política das nacionalidades,
a iniciativa duma política nova fundada no respeito dos
povos e das culturas; que digo eu? se a Europa não galva�
niza as culturas moribundas ou não suscita culturas novas;