A idéia de decadência
na história ocidental
Tradução
CYNTHIA AZEVEDO e PAULO SOARES
2 a EDIÇÃO
E D I T O R A
* R E C O R D
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2001
CAPÍTULO 4
DEGENERAÇÃO
A ruína do liberalismo
Meu bom amigo John, deixe-me alertá-lo. Você lida com lou-
cos. Todos os homens são loucos, de uma forma ou de outra.
•Foi Lombroso quem primeiro eitabeleceu que a pelagra era resultado de uma dieta pobre, e nfio de
cau»a hereditária, entre ai classes italiana» mais destituída».4
••Entre o» interessados, e mesmo fascinados, pela teona da degeneraç&o estava Friedrich Engel».5
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t o s primeiros rescos do homem de Neanderthal foram descobertos no vale Neander, perto de Düsseldorf,
na Alemanha, apenas três anos antes da publicação de A origem das espécies. Em 1841, sir Richard Owen
deu o nome "dinossauro" aos lagartos gigantes cujos ossos haviam sido descobertos na Europa e na
América do Norte desde 1770.
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* 0 próprio Darwin escreveu: "Assim, da batalha da natureza, da fome e da morte, o mais sublime objeto
que somos capazes de concebei; a saber, a produção de animais superiores, prossegue."
••Antes de Darwin, as teorias da evolução foram influenciadas pela teoria do biólogo do século XVIII
Lamarck, que afirmava que os animais podiam transmitir uma característica adquirida pela heredita-
riedade. Seu exemplo favorito era a girafa que pelo hábito de esticar o pescoço para alcançar a comida
adquiriu um pescoço mais comprido e transmitiu esse traço aos descendentes. Mesmo Darwin nSo ficou
imune à visSo de Lamarck sobre evolução, assim também como nâo ficou às doutrinas do teórico francês
da degeneraçSo, B. A. Morei. Entretanto o efeito final das teorias de Darwin, combinadas com a
pesquisa genérica do zoólogo alemão August Weismann, foi a derrota definitiva do pensamento de
Lamarck como teoria séria (embora ela viesse a ressurgir no século XX nas teorias do famoso geneticista
•oviético Trofim Lyssenko).
7 ARTHUR HERMAN
sua época, Lombroso supunha que os brancos eram superiores aos não-brancos
por hereditariedade. Entretanto, ele usou um modelo evolucionário gradual
emprestado de Darwin (embora este não tenha sido sua única fonte) para
explicar a diferença racial, em vez de um modelo difusionista ou gobiniano.
Considerava os africanos como sendo os seres humanos originais, seguindo
então um inevitável desenvolvimento para cima, do negro ao pardo, passando
pelo amarelo, até o branco. Os desenvolvimentos raciais refletiam o curso da
civilização do primitivo ao moderno J
//Os brancos europeus representavam o ápice evolucionário da espécie hu-
mana e a personificação dos dons morais e intelectuais do homem/"Somente
nós, os brancos, atingimos a simetria definitiva da forma física", escreveu em
O homem branco e o homem de cor (1871), repetindo o que Gustav Klemm
dissera quase três décadas antes. "Somente nós temos [concedido] o direito
humano à vida, e respeito pelos idosos, pelas mulheres e pelos fracos.
, tanto, essas conquistas civilizadas estavam sob ataque da reversão biológica.
De tempos em tempos, surgiam dentro da população geral indivíduos atávicos,
cujo comportamento selvagem e irracional os colocava à margem da norma
evolutiva padrão. Desviar-se dessa norma tornava-os criminosos perante a so-
ciedade civilizada, enquanto em sociedades primitivas seu comportamento
atrairia pouca ou nenhuma atenção.*/
/Para Lombroso, a criminalidade na civilização moderna era um anacronis-
. mo, a sobrevivência de um comportamento de um passado mais primitivo. O
criminoso exibia sintomas patológicos específicos, que Lombroso e posteriores
degeneracionistas chamaram de comportamento "anti-social", pois abalava a -
estrutura e as necessidades da moderna sociedade civilizada./O criminoso
nato era tão distante do homem evoluído moderno quanto um caçador de
cabeças de Bornéu: ambos haviam regredido a um estágio inicial da evolução
humana. Lombroso dizia: "Nasceu criminoso porque nasceu selvagem", e era
literalmente o que queria dizer.14
/Domo podemos identificar esses selvagens em nosso meio? Lombroso apon-
tou certos sinaisfísicosou "estigmas" que revelariam o atavismo de um crimi-
noso nato, "moralmente insano", a um observador bem treinado. Uma testa
baixa, arqueada; olhos duros e astutos; orelhas grandes e em forma de alça;
um nariz achatado ou empinado e mandíbula projetada para a frente ("como
•Uma das afirmações mai» controversa» de Lombroso era que "crime, para um selvagem, nSo é uma
exceção, mas a regra geral". Veja a resposta de Émile Durkheim em The Dtviuon of Labor in Society, pp.
164-165.
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nos negros e animais"); incisivos grandes; dedos dos pés e pés preênseis e
longos braços simiescos; uma barba rala e calvície.* O criminoso nato, como o
selvagem, também exibia insensibilidade à dor (Lombroso gostava de contar a
história dos homens de uma tribo africana que, ao se depararem com sapatos
pela primeira vez, deceparam os dedos dos pés para que estes coubessem) e
tendência à vingança, indolência e traição/Ò criminoso mantinha uma atitu-
de cínica diante da vida e em geral não era muito inteligente. Lombroso che-
gou a listar características físicas específicas que estariam ligadas a determi-
nados crimes: ladrões, por exemplo, normalmente tinham narizes torcidos ou
achatados (negróides), enquanto os dos assassinos eram retos e aquilinos, "como
o bico de uma ave de rapina". Assassinos e estupradores tendiam a ter sobran-
celhas espessas, ao passo que olhos pequenos, nariz grande e uma "expressão
de amabilidade estereotipada, singular" indicavam o contraventor e o falsá-
rio//Lombroso chegou a afirmar que apenas olhando para um recruta do exér-
cito italiano ele poderia predizer se o homem acabaria na prisão.15''
/dificilmente se pode levar a sério as idéias de Lombroso do ponto de vista
científico, e vale lembrar que muitos de seus contemporâneos também não o
faziam.1^Ainda assim, quando seu O homem delinqüente apareceu, em 1876,
Lombroso encontrou uma platéia receptiva entre os intelectuais progressistas
e os círculos políticos, tanto dentro como fora da ItáliaÍ3uas teorias contrasta-
vam o criminoso degenerado com a forma idealizada do homem europeu "nor-
mal", o orgulhoso produto do progresso liberal. Ao redor desses tipos normais,
a quem Lombroso identificava como "nossos compatriotas", havia pessoas que
'ainda guardavam as marcas de um passado brutal e retrógrado. Tendo vivido
e trabalhado na parte pobre do sul da Itália, Lombroso estava perfeitamente
consciente da distância que ainda separava o camponês do típico homem de
negócios de Turim ou do advogado de Milão no norte industrializado. Alguns
de seus contemporâneos chegaram a classificar o típico habitante das favelas
sicilianas ou napolitanas como o equivalente racial do negro africano.17/'
i /Lombroso e seus pares não consideravam injusta ou arbitrária a distinção
que faziam entre desviante e normal. Em sua concepção, essa distinção sur-
gia das forças do desenvolvimento histórico. O homem moderno civilizado
encontrava-se no ponto de interseção entre dois processos evolucionários
inexoráveis: a ascendência biológica dos macacos e o progresso como ser
•Toda» estas características fariam parte do repertório para descrição de criminosos em um novo gênero
literário em fins do sículo XIX: as história» policiai».
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•Lombroso citou solenemente um estudo alemão que pretendia mostrar que mesmo as abelhas, as mais
sociais de todas as criaturas, podiam se tomar desonestas quando o seu mel era misturado com conha-
que."
i
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•Fbr exemplo, a sinistra hUtória da notória família "degenerada" Jukej, do interior do Estado de Nova
York, foi sucintamente resumida em edições posteriores de O homem delinqüente: "Ancestrais de Max
Jukes: 77 criminoso*, 142 vagabundos, 120 prostitutas, deioito donos de bordel, 91 filhos ilegítimos, 141
idiotas ou que sofriam de impotência e sífilis, 46 mulheres estéreis."
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*A extremidade >ul da América do Sul, o lugar preferido pelo* primeiro» antropólogo» comparativo» para
estudar o "homem selvagem" em seu ambiente natural.
**Em muito» aspecto» seu» ponto» de vista lembram aqueles de Arthur de Gobineau, cujo Ensato sobrt
a desigualdade das raças humanas surgiu apenas um ano antes do Tratado sobrt a degenerando de Morei.
Ambos o» autores foram muito lido» na Alemanha, que o» colocou em contato com o» teórico» raciais
alemães, como Blumenbach e Carus; ambos foram profundamente influenciado» e amedrontados pelo»
acontecimentos de 1848, e ambos possuíam uma visão de mundo que poderia ser classificada como
antimodernismo ultracatólico.
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linhagem está estampada não com a marca do heroísmo, mas com a do dege-
nerado. Stoker nos dá uma descrição bem próxima da "fisionomia muito
marcada" do conde, que segue cuidadosamente as descrições de Lombroso
para oriporetrógrado, em especial na maneira como descreve a testa de Drácula:
proeminente, em forma de cúpula, suas "peculiares narinas arqueadas" e ore-
lhas pontudas, e sobrancelhas que quase se encontram acima do nariz. Os
caninos proeminentes de Drácula também servem como estigma, no sentido
usado por Lombroso, assinalando suas origens primitivas e seu apetite caniba-
lesco por sangue.28
Drácula não é possuído por nenhuma força demoníaca ou sobrenatural,
como seria o caso numa história do romantismo gótico anterior. Como o ladrão
e contraventor de Lombroso, ele é o produto desviante de uma natureza amoral.
"O conde é um criminoso típico", uma personagem chega a dizer. "Assim ele
seria classificado por Nordau e por Lombroso."29 E também um parasita, como
os "inválidos da civilização" de Charles Ferré, vinculado às hordas produtivas
da sociedade de classe média/Ò dr. Van Helsing, inimigo e antítese natural
de Drácula, demonstra que vampiros existiram em todas as grandes civiliza-
ções, desde a Grécia e Roma à China. Drácula, entretanto, representa um
perigo particular para o que Van Helsing chama de "nosso científico, cético e
prosaico século XIX", pois ele abandona seu distante esconderijo na Transilvânia
rural para instalar-se em Londres, a grande e fértil cidade industrial. Ali ele
pode espalhar sua doença parasítica pela população urbana, drenando sua
vitalidade e criando um reino de mortos-vivos bem no coração da sociedade
moderna. '/
As personagens humanas em Drácula encontram-se engajadas numa guer-
ra pela civilização, na qual são forçadas a recorrer a métodos extremos e bru-
tais. É uma guerra em que tanto ganham quanto perdem: antes de matar
Drácula elas perdem a heroína do livro, Lucy Westenra (seu nome pode ser
interpretado como "luz do Ocidente") para os poderes monstruosos do conde.
Ela é permanentemente transformada de um modelo de feminilidade normal e
civilizado para o de uma fera faminta. O aparecimento assustador de Lucy
como vampira, o sangue escorrendo de seus lábios, sua "doçura transformada
em crueldade dura, impiedosa, sua pureza em voluptuosa lascívia", toma-se a
parábola de Stoker para explicar como o processo de degeneração destrói o
abrigo supostamente seguro e protegido da vida civilizada.7
O medo da degeneração mudou as percepções das pessoas das grandes
cidades industrializadas, como Londres e Paris, que não pareciam mais uma
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*Nâo t de surpreender que doi» leitores dedicados de A psicologia das massas fossem Adolf Hitler e
Be tu to Mussolini.
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A EUGENIA E O ESTADO
•Um desses adepto» foi W. R. Inge, deâo da Catedral de São Paulo e autor de Muticumo cruido; outro
foi H. G. Wells. Em 1912, Karl Pearson (que era socialista), discípulo e sucessor de Galton, organizou •
primeira Conferência Internacional de Eugenia, presidida pelo filho de Charles Darwin. Leonard, e à
qual compareceram várias personagens importantes, incluindo um jovem membro do Partido Liberal no
Parlamento chamado Winston Churchill.
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*Essa tempestade ficou mais violenta em 1903, quando Otto Weininger publicou seu Sao t personalidade.
Weininger alardeou que o» judeus eram uma raça efeminada e degenerada que estava naquele momento
espalhando sua doentia falta de espiritualidade e sentimento nacional por toda a sociedade moderna.
Como as mulheres, o* judeus eram "a encamaçâo da emoção, da sexualidade e da irracionalidade". O que
tomava as violentas afirmações de Weininger especialmente assustadoras — e convincentes, para alguns
— era que ele mesmo era judeu.
146 ARTHUR HERMAN
*Os neogobinianos, por lua ver, ignoraram Darwin e o monismo em seus artigos e ensaios.
148 ARTHUR HERMAN
•Isto era verdade n&o apenas na Alemanha. Karl ftarson, sucessor de Galcon, tomou-se admirador dos
nazistas, enquanto nos Estados Unidos o Escntório de Registro de Eugenia, tundado em 1912, manteve
contato muito intenso com a Sociedade para a Higiene Racial alemã e tomeceu a mspiraçio prática para
a lei de esterilização de 1933.
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•Mais tarde Freud louvaria seu professor Jean Martin Charcot, o maior especialista francês em distúr-
bios nervosos e teoria da degeneração, como "um dos maiores médicos, um gênio".
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•Freud havia se convertido & lei de recapitulaçâo de Emsr Haeckel, que afirmava que o embriío em
crescimento repete toda a história do passado evolutivo da espécie em seu próprio desenvolvimento. Isso
t expressado algumas vezes pela máxima de que a ontogenia recapitula a filogeni». Era um ponto de vista
sustentado por muito* biólogo* evolucionárío*, mas que Haeckel elevou ao nível de lei univereal.
i
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alturas do Palatino" e cada edifício ainda seria decorado por "belas estátuas
que lhes deram graça até a cidade ser sitiada pelos godos", mas também os
templos romanos estariam de pé no meio das basílicas cristãs e dos palácios da
Renascença. "O observador talvez tivesse que mudar a direção de seu olhar
ou sua posição" para ver ao mesmo tempo a antiga cidade e sua contraparte
moderna.80
/ a civilização como processo material transforma e altera o que veio antes;
como processo psicológico, um "processo civilizatório", não o faz e não pode
fazê-lo. Para Freud, o homem civilizado retém os instintos básicos de sua anti-
ga existência selvagem. No lado positivo, sua evolução social traz, em termos
freudianos, maturidade e independência. Ele supera o senso infantil de de-
samparo do homem primitivo e a necessidade de figuras protetoras paternalistas,
como deuses, papas e reis." A civilização incute nos indivíduos um senso de
sua própria autonomia e seu lugar em uma comunidade maior de ordem e
obrigação moral. Mas esse processo também envolve conflitos cornos instintos
primitivos que lhe dão vida.