http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1283
Resumo
O presente artigo discute as formas de violência, seus modos de atuação, naturalização e
invisibilidade, às quais as pessoas travestis e transexuais são submetidas em Santa Catarina,
Brasil. A partir da aplicação de questionários a 100 pessoas trans, foi possível elaborar um
perfil psicossocial desta população e identificar as violências específicas pelas quais passa,
além de seus principais agentes. Os tipos mais frequentes são a discriminação, as violências
psicológica, física e institucional, sendo indicados também os serviços de segurança pública,
educação, saúde e assistência social como autores. Despossuídas de direitos e marginaliza-
das dos serviços públicos, essas pessoas, em suas maioria, trabalham como profissionais do
sexo e foram expulsas de casa e da escola quando começaram a tornar mais visível seu gê-
nero. Buscamos problematizar os modos como as violências incidem sobre corpos desviantes
da cisheteronorma, incluindo aqui como as políticas públicas têm reconhecido (ou não) os
direitos dessas pessoas.
Palavras-chave: Vulnerabilidades; Violências; Travestis e Transexuais; Políticas Públicas
Abstract
This study discusses the forms of violence and their ways of acting, naturalization and in-
visibility that transvestites and transgender individuals are subjected in Santa Catarina,
Brazil. Through the applying of questionnaires to 100 trans individuals, it was possible to
elaborate a psychosocial profile of this population and identify the specific violence they
pass through and the main agents of them. The most frequent types are discrimination,
psychological, physical and institutional violence and public security, education, health and
social assistance services are pointed out as the main perpetrators. Dispossessed of rights
and marginalized of public services, these people, in their majority, work as sex workers
and were cast out of home and school when begun to make visible their gender. We seek to
problematize the way violence act on deviant bodies of cisheteronorm, including how pub-
lic policies have acknowledged (or not) the right of these individuals.
Key words: Vulnerabilities; Violences; Tranvestites and Transgender; Public Policies
84 Camillo, Bruna; dos Santos, Marília; Filgueiras, Maria & Amaral, Mariana
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Vulnerabilidades mapeadas, Violências localizadas 85
árias (Rezende, 2015). Essas manchetes re- de inserção no mundo do trabalho para além
centes evidenciam o extremo da violência e a da prostituição e de acesso a direitos como a
crueldade a que homens transexuais e mulhe- saúde pública. A dificuldade de aceitação – e
res travestis e transexuais estão expostas/os. por vezes, negação mesmo – das identidades
das pessoas travestis e transexuais explicita
Os dados divulgados pela Transgender Europe
como histórica e culturalmente produzimos
(TGEU, 2014), uma organização europeia que
uma compreensão sobre o gênero/sexo. As-
mantém um projeto de monitoramento siste-
sumimos aqui gênero como performativo, na
mático dos assassinatos de pessoas trans, a
linha de debates da filósofa Judith Butler 1
partir de relatos ao redor do mundo, apontam
(1990/2003), que o compreende como “a esti-
o alto índice de mortalidade dessa população,
lização repetida do corpo, um conjunto de
especialmente no Brasil. O último monitora-
atos repetidos no interior de uma estrutura
mento, divulgado em 30 de outubro de 2014
reguladora altamente rígida, a qual se crista-
demonstra que, no período de outubro de
liza no tempo para produzir a aparência de
2013 a setembro de 2014, foram assassinadas
uma substância, de uma classe natural de
226 pessoas trans em 28 países. O país com o
ser” (Butler, 1990/2003, p. 59).
maior número de vítimas é o Brasil – 113 pes-
soas trans foram mortas nesse período –, se- Mesmo antes de nascer somos posicionados
guido do México com o segundo maior núme- dentro de uma lógica binária que considera
ro, 31 vítimas. duas possibilidades de existência: homem ou
mulher. Essa identificação se dá a partir do
Diante de dados como estes é importante
reconhecimento dos genitais: pênis produziri-
pontuar que muitas pessoas travestis e tran-
am homens e vaginas produziriam mulheres. A
sexuais morrem invisibilizadas, uma vez que
partir dessa assignação toda uma gama de
não constam dos boletins de ocorrências poli-
comportamentos e papéis sociais são atribuí-
ciais e nas estatísticas de mortalidade, tam-
dos e expectáveis no decorrer do desenvolvi-
pouco fazem parte do (re)conhecimento de
mento. Assim, se produzem verdades sobre o
suas famílias tendo seus corpos enterrados
sujeito que advém do seu sexo.
como indigentes. Consequentemente o núme-
ro de pessoas trans vítimas de homicídio é Além disso, no tocante à dimensão desejante,
ainda maior do que o apresentado pelas orga- a heterossexualidade opera como padrão
nizações. Pode se dizer que a morte dessas normativo dado pela natureza, designando
pessoas é o ponto extremo de uma grande ca- como “sadio e normal” o roteiro que prevê
deia de violências cotidianas às quais estão que homens devem gostar de mulheres e mu-
submetidas, incluindo humilhações, explora- lheres de homens e assim o fazem pela con-
ção sexual, extorsões, agressões físicas, den- tingência reprodutiva da espécie humana. Um
tre outras modalidades, como pode ser identi- padrão heteronormativo que segundo Butler
ficado na pesquisa que iremos relatar. (1990/2003), refere-se a uma ideia de nature-
za humana na qual se compreende como cer-
Os movimentos sociais LGBTs e diferentes se-
tezas universais e hegemônicas que os sujei-
tores da sociedade civil, assim como pesqui-
tos são em sua essência heterossexuais. Esta
sas acadêmicas, vêm alertando insistente-
norma para agir precisa constantemente ser
mente para a vulnerabilização desta popula-
reafirmada, e para isso, é importante que se-
ção. Trata-se de um cotidiano atravessado pe-
ja aceita como inata e inquestionável, servin-
lo preconceito, desatendimento de direitos
do de sustentação para moldar as relações so-
fundamentais e pela exclusão estrutural que
ciais em um padrão binário e hierárquico.
configuram esse desamparo e demonstram a
precariedade do acesso à cidadania por parte Butler (1990/2003) problematiza as possibili-
da população LGBT (Jesus, 2010). dades de inteligibilidade dos corpos e rela-
ções a partir da atuação da heteronorma,
Diante desse alerta há de se problematizar
considerando que:
que atravessamentos da nossa organização
societária, incluindo aqui as políticas públi-
cas, produzem como efeito a intensa margina-
lização dessas pessoas, em especial das tra- 1
No presente texto seguimos o procedimento adotado
vestis e transexuais, via de regra expulsas de por pesquisadoras feministas que mencionam o prenome
casa e da escola, com enormes dificuldades do/a autor/a na primeira vez em que citado como forma
de reconhecimento do gênero.
A grade de inteligibilidade cultural, por meio do lação à pertença das mulheres trans ao campo
qual os corpos, gêneros e desejos são naturaliza-
político do feminismo:
dos [...] presume que, para os corpos serem coe-
rentes e fazerem sentido (masculino expressa Proponho pensar a exclusão das mulheres trans*
macho, feminino expressa fêmea), é necessário da mulheridade (os efeitos de sentido que corro-
haver um sexo estável, expresso por um gênero boram a construção da “mulher verdadei-
estável, que é definido oposicional e hierarqui- ra/biológica/de nascença”) se dando através da
camente por meio da prática compulsória da he- produção de sentidos de evidência acerca dos su-
terossexualidade (Butler, 1990/2003, pp. 215- jeitos homem e mulher como forma de interpela-
216). ção ideológica pela cisgeneridade compulsória.
Também defendo a importância de se pensar ana-
Outra perspectiva conceitual e política que liticamente o conceito de cisgeneridade para
vem sendo colocada pelos movimentos femi- compreender a materialidade do sexo em sua
nistas que se propõem a problematizar as vul- maior totalidade ou complexidade (Bagagli, 2014,
nerabilidades das pessoas transexuais e tra- paragrafo 2).
vestis – conhecidos como transfeminismo – é a Os corpos que não se encaixam nessa lógica
da cisgeneridade. O termo propõe problema- cisgênera e heterossexual funcionam como
tizar a dimensão da identidade de gênero e resto, que Butler (1990/2003) vai situar como
seu valor em termos de relação de poder in- abjeto. Este resto não encontra no corpo so-
tra-gênero Designa pessoas cujo sexo declara- cial uma possibilidade de reconhecimento de
do ao nascer condiz com a performatividade sua singularidade e o respeito e legitimação
do gênero. Exemplo: uma pessoa que nasceu de uma autodeterminação da identidade.
com pênis, assignada como homem ao nascer,
circunda sua performance de gênero no mas- Jaqueline de Jesus & Hailey Alves (2007)
culino – aos elementos ligados ao “macho”. apontam para os efeitos dessa determinação
Teríamos então uma divisão binária novamen- do reconhecimento autônomo das identidades
te: pessoas cis como aquelas em que há uma de gênero:
coerência (colocada como compulsória) no A separação social, legal, comportamental e ati-
sexo-gênero, e pessoas trans que transgridem tudinal estabelecida entre homens e mulheres
desde o seu nascimento, com base na falaciosa
essa linha de causa e efeito demarcada. Por ideia de que sexo biológico (cromossomos, geni-
meio da cisgeneridade compulsória é que se tais) determina gênero, retira o direito das pes-
produzem as identidades de gênero tidas co- soas à auto-expressão e estrutura o sexismo como
mo naturais e normais de homens e mulheres, uma forma de apartheid com consequências psi-
cossociais e institucionais negativas, especial-
ou seja, uma pessoa assignada como mulher mente no que concerne ao direito à autodetermi-
ao nascer e que na sua constituição produz nação das pessoas (Rotblatt, em Jesus & Alves,
uma consonância com o dito sobre seu corpo 2007, p. 15).
e sua subjetividade, é uma mulher cis. A tran-
Tomar o gênero como performativo, ou seja,
sexualidade assim operaria a partir de uma
como uma norma que demanda uma insisten-
outra identificação que não a imputada no
te reiteração que marca a subjetividade e
nascimento.
produz corporeidades ajuda-nos a pensar que,
A discussão em torno da cisgeneridade não apesar da insistência, inevitavelmente algo
apenas desloca o debate para além da hete- falha. A norma não é capaz de marcar todos
ronorma e seus efeitos, como também com- os corpos da mesma forma e, com isso, o que
plementa ao esclarecer, inclusive, a confusão é tomado como um fato da natureza – a or-
de que pessoas “não-trans” seriam heterosse- dem binária de homens com pênis e mulheres
xuais, em uma errônea analogia às pessoas com vagina – se escancara como do campo das
trans como homossexuais (Jesus, 2015). Do relações humanas, uma vez que os desviantes
mesmo modo, evidencia o caráter ilusório da denunciam publicamente a ausência de uma
naturalidade da categoria cis e traz para o verdade a priori sobre nossos corpos, o vazio
campo de análise os efeitos do cissexismo, que atravessa a ideia de essência usualmente
como a desconsideração da existência de pes- ligada a uma perspectiva generificada de hu-
soas trans e seu apagamento político por meio mano. Confrontam os discursos cisheterosse-
da negação de direitos, sejam eles judiciais, xistas, misóginos e transfóbicos e anunciam –
médicos, educacionais, entre outros. em algum nível – que a condição humana ope-
ra antes na ordem da criação e da cultura do
Bia Bagagli (2014) também insere o termo cis- que do destino fatalista que nos relega à na-
generidade na discussão para pensar as ten- tureza.
sões que ocorrem no campo feminista em re-
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Vulnerabilidades mapeadas, Violências localizadas 87
Sujeitos da vulnerabilidade: corpos que cursos que não reconhecem essa população –
pesam e o direito à vida digna no exercício da autonomia sobre seus corpos e
desejos – como humanos, posicionando-os em
É no cenário dos debates em torno do leituras patologizantes e marginalizantes a
HIV/Aids que o conceito de vulnerabilidade partir de uma perspectiva transfóbica, que
proposto por José Ayres, Ivan França-Júnior, discrimina e não reconhece a existência e os
Gabriela Calazans & Heraldo Saletti-Filho direitos de homens transexuais e mulheres
(2003) tem um profundo impacto no tocante à travestis e transexuais.
elaboração de políticas, em especial, mas não
apenas, no campo da saúde no Brasil. Muitas Ou seja, para ser um sujeito de direitos, me-
das ações anteriores a esse operador concei- recedor de reconhecimento por parte do Es-
tual tiveram um impacto estigmatizante, que tado é fundamental que se esteja contempla-
endossava preconceitos em torno da popula- do como um ser humano. É no tocante à con-
ção LGBT girando em torno da ideia de grupo dição humana que se reconhece a dimensão
e comportamento de risco. Assim, vulnerabi- inexorável da vulnerabilidade, e, por conse-
lidade como por eles proposto, busca incorpo- guinte, a necessidade de amparo. Nesse sen-
rar outros elementos (dimensões individual, tido, discorrem Maria Juracy Toneli & Marília
social e programática) para se pensar de for- Amaral (2013): “para que seja produzido o su-
ma mais complexa os fenômenos, na intenção jeito vulnerável, é necessário que esta série
de construção de propostas e práticas que de discursos e dispositivos de poderes e preo-
operem mais eficazmente na promoção e pre- cupações do governo seja acionada, tornando
venção em saúde. os indivíduos legítimos às políticas públicas e
dignos de seus direitos ‘humanos’” (p. 42).
No ensaio Diversidade Sexual e Políticas Pú-
blicas: compreendendo os vetores de subjeti- As barreiras para a construção de políticas
vação e as transformações no dispositivo da públicas – e efetivação destas – são inúmeras
sexualidade, Henrique Nardi (2013) retoma o quando temos como foco pessoas travestis e
conceito contextualizando-o no debate em transexuais, tendo em vista a perspectiva
torno das populações de sexos diversos e o transfóbica na qual se ancoram as ordenações
enuncia: de corpos e condição de legitimidade huma-
na. A atuação do imperativo heterossexual e
A vulnerabilidade mostra como o preconceito, a
discriminação, a ausência de igualdade de direi-
cisgênero, na sua dinâmica de legitimação de
tos, a moral sexual rígida marcada pela domina- algumas experiências e negação de outras,
ção sexual masculina, as relações de gênero opera na invisibilização destes sujeitos evi-
opressoras, a pobreza e a falta de políticas públi- denciada na carência de informação e aten-
cas produzem, em conjunto, as condições para
que as pessoas independente da sexualidade e da
ção por parte das políticas públicas (Toneli &
identidade de gênero não utilizem o preservativo Amaral, 2013).
e não realizem o tratamento adequado (Nardi,
2013, p. 253). O dispositivo da sexualidade tem como um de
seus efeitos a constituição da identidade de
Ao retomar o conceito de vulnerabilidade, gênero como um ideal regulatório produtor e
Nardi (2013) faz referência à questão do uso reprodutor de violência, identidade classifi-
do preservativo e à adesão ao tratamento do cada como coerente se inclusa no sistema bi-
HIV/Aids. No entanto, é possível realizar um nário (que supõe uma coerência interna de
manejo desse conceito para se problematizar seus termos). Há algo de ininteligível na tra-
a vulnerabilidade social de certos grupos, vestilidade e na transexualidade que perpassa
pensando os diferentes atravessadores desta a linha possível de simbolização. Quanto a ou-
condição, que tem como efeitos a marginali- tros eixos reguladores de poder, frequente-
zação, o não acesso aos serviços e a precari- mente homens e mulheres travestis e transe-
zação das condições de vida. xuais relatam discriminações referentes à ra-
Ao se fazer um recorte das especificidades da ça, à origem e à classe social. Esses eixos não
população de pessoas travestis e transexuais e devem ser somados, hierarquizados e defini-
buscar uma analítica em torno da produção dos como uma categoria primordial de opres-
de políticas públicas para elas, nos deparamos são, mas pensados juntos, em intersecção pa-
com o desafio que estas pessoas têm para que ra identificar estratégias de opressão e silen-
suas existências e modos de vida sejam reco- ciamento específicos para essa população,
nhecidos como legítimos. São inúmeros os dis- que, como apresentado, está sujeita a formas
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Vulnerabilidades mapeadas, Violências localizadas 89
transexuais vítimas de agressões, preconcei- portanto, que os corpos são efeitos de uma
tos e negação de direitos, em apenas um dos dinâmica de poder indissociável às suas nor-
estados brasileiros, país este com os maiores mas reguladoras e, assim, governados em sua
índices mundiais de violências letais contra produção pela norma regulatória do sexo e
esta população, conforme mencionamos ante- dos gêneros (Toneli & Amaral, 2011).
riormente. Estamos, portanto, falando de
A fim de garantir o controle da norma, a per-
corpos nos quais incidem as marcas e os efei-
formance repetida entra em questão a partir
tos das discriminações.
dos gêneros reencenando uma nova experiên-
Você sofreu alguma dessas violências? % cia daquilo já significado socialmente, de sor-
Discriminação 87 te a estabelecer sua legitimação. Essa ação
pública (repetição estilizada de atos) é a for-
Violência psicológica 76 ma do gênero manter sua estrutura binária,
Violência física 62 de criar a aparência de substância, uma ilusão
Violência institucional 43 identitária, assim como as noções de sexo es-
sencial e de masculinidade ou feminilidade
Negligência 39
(Butler, 1990/2003). Essa ficção reguladora do
Violência sexual 30 gênero é produzida por meio da violência da
Abuso financeiro 21 norma da cisgeneridade e da heterossexuali-
Tortura 09 dade compulsória naturalizadas, que exigem a
coerência estável e oposicional entre sexo,
Trabalho escravo 07
gênero e desejo (Toneli & Amaral, 2011). Sob
Tráfico de pessoas 04 os fundamentos da existência/exigência de
Exploração infantil 03 uma coerência é que os corpos tornam-se a
Não sabe/não respondeu 02 maneira pelas quais as pessoas são invadidas
e violentadas pelo corpo do outro e pelos dis-
Tabela 1. Violências sofridas pelas pessoas cursos, produzidas que são e posicionadas
entrevistadas como abjetas.
Estes corpos tornam-se mais expostos às polí- São os abjetos, os invivíveis que circunscre-
ticas de vulnerabilidade. Ou seja, embora se- vem a esfera do vivível (Butler, 1990/2003).
jamos, como humanos, ontologicamente, ex- Essa não-existência posiciona homens transe-
postos uns aos outros, alguns se tornam mais xuais e mulheres travestis e transexuais no
vulneráveis, uma vez que, como afirma Butler plano do abjeto, corpos cuja existência pare-
(2006), ce não importar. De fato, importam, pois os
O corpo implica mortalidade, vulnerabilidade, abjetos precisam estar lá, ainda que numa hi-
agencia: a pele e a carne nos expõem ao olhar giênica distância, para demarcar as fronteiras
dos outros, mas também ao contato e à violência. da normalidade, de sorte que
O corpo também pode ser a agência e o instru-
mento de tudo isto, ou o lugar do “fazer” e do O abjeto designa aqui precisamente aquelas zo-
“ser feito” se tornam equívocos. Ainda que lute- nas “invisíveis”, inabitáveis da vida social que,
mos pelos direitos sobre nossos próprios corpos, sem dúvida, estão densamente povoadas por
os mesmos corpos pelos quais lutamos não são aqueles que não gozam da hierarquia dos sujei-
nunca totalmente nossos. O corpo tem invaria- tos, mas cuja condição de viver sob o signo do
velmente uma dimensão pública, meu corpo é e “invisível” é necessária para circunscrever a esfe-
não é meu. Desde o principio é dado ao mundo ra dos sujeitos (Butler, 1990/2003, pp. 19-20,
dos outros (Butler, 2006, pp. 40-41, tradução li- tradução livre nossa).
vre nossa).
Os dados explicitados pela Tabela 1 permitem
Se nossos corpos não antecedem ao discurso, pensar esses corpos como abjetos, aqueles
isso não quer dizer que possam ser reduzidos expostos às várias formas de violência decor-
ao discurso e, sim, que é por meio dele que rentes da cisheteronormatividade.
se produzem, são legitimados ou não, revol-
tam-se. Os corpos derivam das normas de gê- Em busca de identificar um pouco mais as
nero e sexualidade, normas essas que operam formas de violências às quais estão submeti-
na cultura, na sociedade, na política. As polí- das, as pessoas travestis e transexuais foram
ticas do corpo, por sua vez, são concernentes, questionadas/os se já sofreram algum tipo de
em última instância, às normas que fa- violência psicológica (era possível marcar
zem/produzem vidas vivíveis. Podemos dizer, mais de uma resposta) e detalharam os prin-
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lência e quais são suas manifestações mais tentes no Brasil (Guimarães, et al., 2013). Em
frequentes (mais de uma alternativa poderia outras palavras, é quando detectamos que pa-
ser marcada). ra as políticas públicas suas vidas não são
contadas, suas demandas não são acolhidas e
Se houve institucional, qual? Frequência
suas mortes não são apuradas.
Homofobia institucional 37
Quanto aos principais agentes das diversas vi-
Ausência de acesso a serviços 36
olências às quais as pessoas travestis e tran-
Recusa de atendimento 27 sexuais entrevistadas foram submetidas, a Ta-
Abuso de autoridade 27 bela 4 permite identificar alguns aspectos im-
Violência policial 24 portantes.
Demora excessiva 24 Por parte de quem você já sofreu
%
violência física/psicológica
Assédio sexual 18
População em geral 65
Assédio Moral 18
Colegas de trabalho 53
Omissão 12
Cliente 52
Prisão ilegal 06
Vizinhança 49
Não se aplica 41
Serviço público de segurança (polícia) 46
Tabela 3. Violência institucional sofrida pelas Serviço público de educação 42
pessoas entrevistadas
Serviço público de saúde 40
Observamos que assim como a violência psico-
Familiares 41
lógica, ainda há pouco conhecimento e, deste
modo, identificação da ocorrência e das for- Amigos 37
mas de violência institucional. No entanto, ao Parceiro/a 37
nomearmos os subtipos de violência instituci- Dona de casa 30
onal muitas pessoas dizem já ter sofrido al-
gum deles. Quando analisamos os dados, os Chefe do trabalho 25
números mais significativos de respostas des- Serviço social (CRAS) 15
tacam: a homofobia institucional (37%), a au- Membros do tráfico de drogas 11
sência de acesso a serviços (36%), a recusa de Não sabe/não respondeu 0
atendimento (27%), o abuso de autoridade
(27%), a violência policial (24%) e a demora Tabela 4. Principais agentes das violências sofridas
excessiva no atendimento (24%) como as for- pelas pessoas entrevistadas
mas pelas quais a violência institucional mais
Ao analisar as respostas dadas pela população
se manifesta.
entrevistada na Tabela 4 chegamos a uma
Se levarmos em conta as dificuldades de aces- confirmação do que vínhamos indicando em
so das pessoas travestis e transexuais aos ser- discussões anteriores: os locais, as institui-
viços públicos de saúde, assistência, educação ções, os serviços e as/os profissionais que
e segurança pública, estamos tratando de um atuam nas políticas públicas – que devem aco-
dos principais efeitos da violência institucio- lher, acompanhar e atender as demandas da
nal. Uma violência que se instaura e se capi- população – estão entre as/os principais auto-
lariza em diferentes áreas e por meio da atu- ras/es de violência de acordo com as pessoas
ação de diversos profissionais. Mostra disto travestis e transexuais informantes da pesqui-
são as formas pelas quais a homofobia e a sa.
transfobia se apresentam na recusa das insti-
Entre os motivos mais citados pelas/os gesto-
tuições em utilizar o nome social e na nega-
ras/es das políticas públicas, quando discuti-
ção de direito ao uso do banheiro de acordo
das as dificuldades de acesso e garantia de di-
com o gênero, conforme pudemos apreender
reitos de pessoas travestis e transexuais, es-
por meio de comentários das pessoas entre-
tão: a falta de informações por parte das/os
vistadas durante a aplicação dos questioná-
profissionais, a carência de capacitações pro-
rios, e principalmente, quando se constata
fissionais e o despreparo das equipes para li-
que não há dados e informações sobre o nú-
dar com tal população (Chagas, 2006; Machay,
mero de pessoas travestis e transexuais exis-
2002). Se por um lado, sabemos da precarie-
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Vulnerabilidades mapeadas, Violências localizadas 93
dade das formações no que diz respeito às es- atenção à população de pessoas travestis e
pecificidades da população LGBTTI, e mais transexuais, parece não haver um desdobra-
amplamente, às discussões de gênero e sexua- mento nas práticas cotidianas dos serviços,
lidade, sabemos, também, que muitas áreas como se evidencia no número de pessoas que
têm mencionado em seus documentos a exis- relataram ter sofrido violências físicas e psi-
tência da população de pessoas travestis e cológicas neste tipo de serviço (40%). Essas
transexuais e seus direitos. No entanto, os violências relatadas seguidas de situações uti-
modos como esta população é reconhecida e lizadas a título de exemplo pelas pessoas en-
acolhida são importantes pontos a serem pro- trevistadas, incluem menção a deboches, des-
blematizados, para que sejam discutidos os respeito ao nome social, utilização de termos
índices de violência institucional e a indica- pejorativos, dentre outras modalidades.
ção das/os principais autoras/es de violências
Além dos relatos de práticas discriminatórias
físicas e psicológicas apresentados na pesqui-
desde a recepção dos serviços públicos de sa-
sa.
úde pela negação do uso do nome social entre
Ao realizarmos um levantamento dos docu- outras práticas de desrespeito, muitos ho-
mentos elaborados pelas políticas públicas de mens e mulheres travestis e transexuais rela-
saúde brasileira percebemos que esta é a área tam também situações de negligência, omis-
que mais faz referência às pessoas travestis e são e descaso que de antemão já evidenciam
transexuais. Como apontado anteriormente, a a negação do direito a saúde. O número de
entrada desta população como sujeitos das pessoas que afirmaram não ter procurado
políticas públicas deu-se a partir das ações li- atendimento médico, mesmo necessitando do
gadas ao combate de DST/Aids. Ou seja, é a serviço, também mostra o receio que muitas
partir de uma política estigmatizante, que pessoas trans relatam ter por serem chama-
atuava em uma perspectiva de grupo de risco das pelo nome de registro antes mesmo de se-
com alvo na doença, que os serviços públicos rem atendidas, entre outras formas de trans-
de saúde passaram a investir no acesso e tra- fobia.
tamento de saúde das pessoas travestis e
Adriane Geisler, Valéria Reis & Stephan Sperlin
transexuais, distanciando esta população da
(2013) ao discutirem sobre o direito à saúde
prevenção e do cuidado básico com a saúde
para população trans trazem o duplo estigma
em geral, assim como prostitutas, gays e usu-
que marca esta população nas suas trajetórias
ários de drogas (Pelúcio, 2007).
terapêuticas, assim como nas problemáticas
Também é na esfera das políticas da saúde ligadas ao nome social e acolhimento. O nome
que em 2008, a partir da Portaria Nº 1.707 de social se configura como uma política funda-
18 de agosto é instituído, no âmbito do Siste- mental, pois simboliza o reconhecimento de
ma Único de Saúde (SUS), o processo transe- pessoas travestis e transexuais em relação a
xualizador. Ainda que tenha surgido como res- sua identidade de gênero, garantindo com is-
posta às ações dos movimentos sociais, essa so que a entrada nos serviços de saúde seja
conquista de direitos carrega consigo a garan- de forma integral, universal e equânime, para
tia de acesso por meio do diagnóstico psiquiá- além do processo transexualizador, tal como
trico de Transtorno de Identidade de Gênero previsto pela Lei Nº 8.808 de 19 de Setembro
(previsto na Classificação Internacional de de 1990 que dispõe sobre os princípios do
Doenças - CID), mantendo, assim, a patologi- SUS.
zação das identidades trans como via de aces-
Não apenas os serviços de saúde, mas tam-
so à saúde para esta população. Outro docu-
bém os de segurança pública (polícia) (46%),
mento importante é a Portaria Nº 1.820 de 13
de educação (42%) e de assistência social
de agosto de 2009 que dispõe sobre os direi-
(15%) foram citados, respectivamente, como
tos e deveres dos usuários do SUS fazendo
autoras/es de violências físicas e psicológicas,
menção ao direito ao uso do nome social nos
de acordo com os as/os informantes desta
espaços da rede de saúde pública, embora se
pesquisa.
tenha, cotidianamente, informes acerca do
não cumprimento dessa portaria pelos servi- No caso da violência policial conseguimos re-
ços. lacionar principalmente, mas não apenas,
com o trabalho exercido pela maior parte das
No entanto, apesar da saúde se configurar
pessoas trans que participaram da pesquisa.
como a área de concentração de políticas de
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assim, muitas pessoas trans não buscam os qualquer forma, fica aqui assinalada a neces-
serviços de assistência, e aquelas que os pro- sidade de atenção às singularidades das expe-
curam nem sempre conseguem ter seus direi- riências de mulheres e homens trans, sendo
tos assegurados. que estes últimos, pelo relato das/os entre-
vistadoras/es, foram poucos do ponto de vista
Diante das opressões e vulnerabilidades des-
quantitativo e se queixam de sua invisibilida-
tacadas nesta análise crítica dos dados do
de também entre o segmento de pessoas
questionário percebemos que estamos diante
trans. Mapear suas demandas específicas pode
de uma situação extrema de exclusão e de-
e deve ser tema de novas investigações.
sassistência aos direitos básicos da vida hu-
mana. Estamos diante da constatação de uma Nossa discussão, além de situar ações e con-
violência localizada acionada por discursos e dições que possibilitam violências, teve como
práticas que operam a partir de sistemas mui- proposta política indicar a importância de se-
to específicos de violências, aqui especial- rem pensados os modos como as políticas pú-
mente decorrentes da cisnorma e da hetero- blicas brasileiras têm possibilitado ou não o
norma. acesso, a promoção e a garantia de direitos
humanos e igualitários à população de pessoas
Considerações Finais travestis e transexuais. Essas questões serão
O mapeamento das vulnerabilidades apresen- melhor investigadas nos próximos passos da
tado permite demonstrar alguns vetores de pesquisa, agora por meio de entrevistas em
interseccionalidade nas formas de violências profundidade com gestoras/es, bem como
sofridas pela população de travestis e transe- análise dos principais documentos das políti-
xuais de Santa Catarina, suas dificuldades de cas públicas brasileiras que incluem (ou não)
acesso a serviços públicos de saúde, seguran- as especificidades das pessoas travestis e
ça, educação e assistência, bem como violên- transexuais.
cias em seu contexto de trabalho, familiar e
Referências
de relacionamentos próximos. Acreditamos
que estas opressões se firmam por meio da Ayres, José Ricardo; França-Júnior, Ivan; Calazans,
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situação nele circunscrita. Problematizamos Butler, Judith (2006). Deshacer el género. Barcelo-
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DIRECCIÓN DE CONTACTO
mariliapsico@hotmail.com
FORMATO DE CITACIÓN
Camillo Bonassi, Bruna; dos Santos Amaral, Marília; Filgueiras Toneli, Maria Juracy & Amaral de Quei-
roz, Mariana (2015). Vulnerabilidades mapeadas, Violências localizadas: Experiências de pessoas
travestis e transexuais no Brasil. Quaderns de Psicologia, 17(3), 83-98.
http://dx.doi.org/10.5565/rev/qpsicologia.1283
HISTORIA EDITORIAL
Recibido: 12/05/2015
1ª Revisión: 06/09/2015
2ª Revisión: 12/10/2015
Aceptado: 19/10/2015
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