CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
FORTALEZA – CEARÁ
2015
CÍCERO DA SILVA OLIVEIRA
FORTALEZA – CEARÁ
2015
À minha mãe, d. Teresinha,
e à minha irmã, Naizete,
pelo alicerce que representam
na minha trajetória.
AGRADECIMENTOS
(ROGER CHARTIER)
RESUMO
Este estudo tem por objetivo refletir acerca dos rituais religiosos da Irmandade de Penitentes
autoflagelantes da Vila do Genezaré, município de Assaré, sul do Estado do Ceará, levando
em consideração suas perspectivas estéticas e performáticas. Para tanto, os procedimentos
metodológicos uniram a realização de uma série de entrevistas com os oitos membros do
grupo, gestores públicos municipais e lideranças católicas locais, balizadas pelos fundamentos
da História Oral, com análise de matérias de jornais impressos, leis daquele município que
regem as políticas públicas culturais municipais e produções cinematográficas que têm como
protagonistas sujeitos e coletivos adeptos de crenças e práticas marcadas pela autoimposição
de sacrifícios inscritos nos corpos dos praticantes. Regidos por alguns desacordos, tais rituais
permanecem sofrendo re-interpretações e re-elaborações que põem em evidência as
negociações e vitórias alternadas dos indivíduos sobre o grupo, do nomotético sobre o
idiográfico, do passado sobre o presente, revelando assim, a fragilidade das oposições entre
norma social e sujeito, memória e invenção, comunicação e expressão, desejo e realidade, atos
repetitivos e improviso. Em outro sentido, a memória da Irmandade, em permanente
construção, está sujeita a inúmeras disputas em torno do jogo recordar/esquecer constante nas
elaborações mnemônicas que, por sua vez, apontam para interesses dos mais diversos:
econômicos, religiosos, políticos, científicos, culturais etc., ou, não raro, uma associação de
todas ou algumas destas preocupações combinadas.
This study aims to reflect on the religious rituals of the Penitents Self flagellant Brotherhood
in Genezaré, Village located in Assaré, city in the southern of Ceará State, taking into account
their aesthetic and performative perspective. Therefore, the methodological procedures united
themselves to hold a series of interviews with the eight group members, municipal
administrators and local Catholic leaders, determined by the fundamentals of Oral History,
with analysis of newspapers printed materials, laws from that city which rule the municipal
public cultural policies and film productions whose protagonists and collective fans of beliefs
and practices marked by self imposing sacrifices entered in the bodies of practitioners.
Governed by some disagreements such rituals remain suffering re-interpretations and re-
elaborations that highlight the negotiations and alternate victories of individuals on the group,
the nomothetic on the idiographic, the past on the present, revealing the fragility of
oppositions between social norm and subject, memory and invention, communication and
expression, desire and reality, repetitive acts and improvisation. In another sense, the memory
of the Brotherhood, in permanent construction, is liable to numerous disputes around the
constant issue remember / forget in mnemonic elaborations that, in turn, point to the most
diverse interests: economic, religious, political, scientific, cultural etc. or, not rarely, a
combination of all or some of these concerns combined.
INTRODUÇÃO
1
Erigido à condição de Vila pela Resolução Provincial nº. 1.159 de 19 de julho de 1865, desmembrado de
Saboeiro, o município de Assaré está localizado a uma distância média de 560 km da capital cearense, Fortaleza.
De acordo com o professor Francisco Régis Lopes Ramos (2011, p. 25) “O Cariri é uma região localizada no sul
do Ceará. O nome originalmente referia-se aos nativos que viviam por lá (e em outros lugares). O povoamento
do Cariri, pelo homem branco, teve seu início no final do século XVII. Eram os criadores de gado de
Pernambuco e da Bahia que vinham para a região atraídos, provavelmente, pelas vantagens que o sertão não
oferecia: solo fértil e fontes de águas que raramente secam”.
14
essa relação penitentes/morte. Morreram os antigos irmãos de penitência que deixaram nas
suas memórias modelos de execução dos rituais hoje apenas parcialmente seguidos. Ainda, os
narradores destacam enquanto narram seu processo de envelhecimento que limita sua atuação
durante os rituais e a morte surge como uma metáfora quando a narrativa sugere o medo do
fim da trajetória de práticas penitenciais no Genezaré, a “morte” do grupo.
No segundo capítulo, a análise dos rituais dos Penitentes do Genezaré indica que
os espaços destinados à sua execução dependem das distintas maneiras que historicamente a
irmandade é percebida pela comunidade local, pelas lideranças da Igreja Católica de Assaré e
pelo poder público municipal, além de instituições socioeducativas ou de produção cultural.
Nesse processo, espaços antes impensáveis ou tidos por improváveis aos Penitentes passam a
ser cenários para execução de seus rituais com toda a sua carga performática. Tal fenômeno é
pensado a partir das experiências de outras irmandades com trajetórias semelhantes.
Finalmente, no terceiro capítulo, a atenção está voltada para a forma como aqueles
indivíduos integrantes de uma irmandade autoflagelante interpretam os rituais que executam
na relação com o corpo de cada indivíduo. Nesse sentido, ganha destaque a noção dos
entrevistados do sacrifício como mecanismo de comemoração do flagelo vicário de Jesus
contrariando, dessa forma, algumas definições sacralizadas em relação aos significados do
sofrimento que membros de irmandades de penitentes impõem a si. Ainda pode ser percebido
que nem todos os Penitentes do Genezaré praticam os rituais de autoflagelo utilizando como
argumento a aquisição de novas formas de compreensão do sacrifício ou do ofício das
irmandades e, ainda, por ser o corpo passível de limitações que vão sendo acentuadas com o
passar dos anos, conforme já referido.
Uma vasta bibliografia indica que a noção de ritual (ou rito) tem sido pensada de
formas variadas e aplicada na análise de situações aparentemente sem nexos entre si. Apenas
para exemplificar, recentemente foram reunidos em uma só obra, trabalhos que fazem uso da
noção de ritual como ferramenta analítica para refletir sobre o Programa de Desligamento
Voluntário (PDV) implementado pelo Banco do Brasil em 1995, as formas e gestos cotidianos
empregados no vestir, os cuidados com o corpo a partir da etnografia de vestiários femininos
de academias de ginástica e musculação, a “montagem” de uma DragQueen, performances
em um bar às sextas-feiras à noite, o desfile de uma nação de maracatu cearense, os
espetáculos de Rock Metal, a pesca artesanal, a cura segundo uma tribo indígena, cultos na
Igreja Presbiteriana, práticas romeiras na cidade de Juazeiro do Norte, retomadas de terras por
indígenas, criação de entidade bancária por uma associação de moradores e programas
eleitorais na televisão (RODRIGUES, 2011). Vale dizer que, de acordo com a proposta da
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organização, todos os trabalhos constantes na obra imediatamente acima referida fazem uso
da teoria antropológica considerada clássica, cujo tema das reflexões é os rituais, para pensar
questões contemporâneas. Em concordância com Roberto DaMatta (1997, p. 37), os autores
dos trabalhos acima entendem “que [...] tudo pode ser posto em ritualização porque tudo o
que faz parte do mundo pode ser personificado, reificado”.
Em busca de uma definição para ritual, Paul Connerton (1999), a princípio,
reconhece o “desacordo substancial quanto à forma como a palavra ritual deveria ser
utilizada”. Entretanto, o referido autor opta por uma definição que ele considera “sucinta e
funcional”. O ritual designa para ele “uma actividade orientada por normas, com carácter
simbólico, que chama a atenção dos seus participantes para objectos de pensamento e de
sentimento que estes pensam ter um significado especial” (LUKES apud CONNERTON,
1999, p. 50).
Dessa forma, Paul Connerton (1999) destaca que os ritos são portadores, a um só
tempo, de elementos expressivos e formais. Ainda, extrapolando os limites da formalidade, os
rituais são envolvidos pelo senso de obrigação que os seus executores sentem em relação ao
que executam. Finalmente, os efeitos dos rituais fogem do limite do espaço-tempo da sua
execução e ofertam “valor e sentido” à existência dos seus praticantes.
Em análise mais abrangente que toma como referência igualmente as distintas
perspectivas teóricas que têm os rituais como tema, Valerio Valeri (1994) observa que, ainda
durante o século XIX, duas abordagens foram adotadas por estudiosos que tentaram dar aos
rituais um tratamento científico. Para o autor, trata-se da abordagem “intelectualista” e da
perspectiva “funcionalista” representadas, no primeiro caso, por Tylor, Frazer e, mais
recentemente, por Lévy-Strauss e Horton, e no segundo caso, associada a William Robertson
Smith. Se na primeira abordagem, os rituais sugerem pelas ações dos seus executantes crenças
que são produto de “processos e preocupações intelectuais”, na outra abordagem, tomando
como exemplo as ações rituais religiosas, os ritos teriam por função “reproduzir a sociedade”
(VALERI, 1994, p. 327-329).
Sintetizando os argumentos de Valerio Valeri (1994), tanto considerar o rito como
um ordinário veículo comunicativo com raízes inconscientes (perspectiva estrutural-
funcionalista) ou como uma banal expressão ou realização de crenças pautadas em decisões
essencialmente conscientes (perspectiva intelectualista) indica teorias de frágeis sustentações
em relação aos rituais. Para Valeri (1994), se os ritos possuem potencial comunicativo ou
expressam crenças, não deve ser desprezada a sua capacidade de produzir e através deles
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serem obtidas “informações novas”. Os ritos, assim, são valorizados na sua capacidade
criadora de conhecimento.
Estudar os rituais dos Penitentes do Genezaré sob a perspectiva apresentada por
Valeri (1994) é perceber o diálogo constante e, por vezes, tenso entre formas cristalizadas de
pensar irmandades semelhantes e os seus rituais e as interpretações alternativas ofertadas
pelos praticantes. Esse exercício sugere uma ação intelectual consciente que envolve
pesquisador e os Penitentes na produção de “reinterpretações, críticas, reformas etc.” Trata-se,
sobretudo, de um desafio, visto que os ritos portam “um conjunto de signos sem contudo
oferecer o código que os permita interpretar completamente” (VALERI, 1994, p. 345).
Igualmente importante na análise dos rituais é perceber sua capacidade de pôr em
evidência conflitos, contradições e aquilo que é aparentemente destituído de sentido na
sociedade (ou em um grupo numericamente de proporções reduzidas como os Penitentes do
Genezaré) e nas experiências individuais dos sujeitos. Certamente, os ritos possuem distintos
aspectos que podem ser combinados de forma que alguns deles sobressaiam em um ou outro
momento específico do ritual.
Em suma,
Dessa forma, para que rituais sejam executados seus praticantes empreendem
escolhas que resultam na divulgação de encontros entre pares construídos historicamente
como inconciliáveis ou em disputas (“ordem/desordem, natureza/cultura,
exclusão/integração”, dentre muitos). Em outra perspectiva, assumir essas decisões seletivas
e executá-las caracteriza opções que são inscritas pelos sentidos e nos sentidos dos praticantes
e que resultam em sensações agradáveis para os executantes, ainda que marcadas por dores ou
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2
Principalmente capítulos IV (A Religião como Sistema Cultural) e V (“Ethos”, Visão de Mundo e a Análise
dos Símbolos Sagrados) daquela obra.
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constante nas construções mnemônicas que, por sua vez, sugerem interesses dos mais
diversos: econômicos, religiosos, políticos, científicos, culturais etc., ou, não raro, uma
associação de todas ou algumas destas preocupações combinadas.
Se pudesse sugerir uma metáfora imagética para os rituais dos Penitentes do
Genezaré ela seria a recorrente figura de um palimpsesto. Os rituais em questão comportam
novos “textos” que são impressos sobre “escritos” cujas antigas marcas não desapareceram
por completo. Nesse processo de re-apropriação contínua do material e do que nele havia sido
registrado, é possível ler novas mensagens e encontrar vestígios inteligíveis de uma produção
recuada no tempo.
Se “Roskoff demonstrou o declínio na crença no Diabo, e Bloch a crise do
milagre régio” (MATA, 2010, p. 77; BLOCH, 1993), a secularização do mundo de forma
como previsto na aurora da Modernidade sucumbiu no seu nascedouro. Os fenômenos
religiosos permanecem dignos de atenção de historiadores capazes de construí-los como
objeto de pesquisa ofertando-lhes tratamentos teórico-metodológicos consistentes ainda que
envolvidos por problemas e dificuldades os quais competem aos homens denunciar e aos
deuses perdoar.
Em síntese, os rituais dos Penitentes do Genezaré atribuem um sentido ao passado
a partir das experiências presentes e constroem suas imagens do contemporâneo a partir de
suas vivências, em uma relação com o mundo que segundo Roger Chartier (2002b, p. 23) tem
por objetivo “fazer reconhecer uma identidade social, exibir uma maneira própria de estar no
mundo, significar simbolicamente um estatuto e uma posição” através do conjunto das
representações que elaboram.
As palavras de Pierre Bourdieu ditas aos alunos da Escola de Altos Estudos em
Ciências Sociais em um seminário no mês de outubro de 1987 e constantes na epígrafe desta
introdução pareceram a mim adequadas ao que ora apresento para apreciação. Disse-as a mim
e transmito-as aos leitores. Trata-se de um discurso ainda em aberto, entregue às críticas, um
relato dos problemas e dificuldades enfrentadas e alguns não superados pelo seu autor e que
os olhos e as mentes atentos saberão apontar sem dispêndio de maior esforço.
Ainda que nada modesto, o objetivo deste trabalho é também indicar novas
possibilidades de pensar os rituais de uma forma geral e, de forma específica, a variedade de
fenômenos religiosos que caracterizam a contemporaneidade. Permanecendo no campo das
finalidades, desejo que os resultados aqui exposto sejam “[...] reconhecidos como válidos
tanto por crentes quanto por descrentes – supondo-se, é claro, que tanto uns quanto outros
coloquem o valor da integridade intelectual acima de todos os demais” (MATA, 2010, p. 19).
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NA MEMÓRIA:
NARRATIVAS ORAIS RE-INVENTANDO OS RITUAIS DA
IRMANDADE DE PENITENTES DO GENEZARÉ
3
No âmbito desta pesquisa, decurião é o líder de uma irmandade de penitentes autoflagelantes responsável pela
organização, nos mais variados aspectos, das atividades do grupo e por verificar se os seus irmãos de penitência
conservam posturas cotidianas tidas por mais aceitáveis entre os membros de tal irmandade. No caso específico
dos Penitentes do Genezaré, a ausência de vícios (principalmente álcool e tabaco) entre os membros daquela
Irmandade ocupa especial atenção do decurião Deca Pinheiro.
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4
Pequeno chicote de couro com aproximadamente 30 cm de comprimento que une em uma das suas
extremidades três lâminas metálicas afiadas, cada uma delas com pouco menos de 5 cm de comprimento,
denominado cacho da disciplina, cacho ou simplesmente disciplina.
5
Nas suas pesquisas realizadas no município baiano de Andaraí, Carolina Pedreira (2010, p. 6) analisou os
benditos cantados nos rituais de alimentação das almas realizados por “alimentadeiras” das almas de uma
irmandade de penitentes local. Para esta pesquisadora, “Os benditos hagiológicos, chamados de benditos ou
incelências, são rezas cantadas ou cantos rezados que versam sobre história de santos e santas, sobre a vida de
Jesus, seu sofrimento na Cruz, o padecimento e força de Nossa Senhora (e de muitas Nossas Senhoras),
ressaltando agruras e/ou feitos heroicos dessas e outras entidades”. O mesmo objetivo textual é verificado nos
benditos entoados pelos Penitentes do Genezaré e vale ainda destacar a noção que benditos assumem funções de
oração que objetivam abençoar os seus cantores ou aqueles por quem intercedem.
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em alguns casos, de forma independente das escolhas humanas. Decerto, nossos sentidos
parecem sofrer de forma mais imediata aquilo que estimula os processos capazes de produzir
recordações aparentemente inesperadas. Um cheiro, um toque, um gosto, um som, uma
imagem acometem um instante e, de imediato, retomamos um lugar, uma situação ou alguém
que há muito pareciam adormecidos da nossa existência.
Ainda que levado a concordar com a autora, tenho por certo e procurado destacar
nestas páginas o esforço da memória, as tentativas quase desesperadas e voluntárias dos
Penitentes do Genezaré estabelecerem vínculos com o seu passado, de forma enfática, através
dos seus rituais; Lutar contra o esquecimento a partir das circunstâncias presentes. Trata-se
mesmo de uma elaboração refletida na constituição de uma tradição com características que
atendem aos anseios de uma coletividade específica. Construção, é bem verdade, sempre
problemática e nunca com resultados homogêneos que impedem uma atuação criativa dos
indivíduos.
De fato, operar com a intenção de estabelecer continuidade com o passado é um
dos mais destacados objetivos das tradições (HOBSBAWN, 2012, p. 8). É preciso que seja
dito, entretanto, que as tradições necessariamente não são produtos de uma longa duração. O
relativamente novo pode ser tido por tradicional, reivindicar para si uma trajetória maior do
que aquela que dispõe em verdade e assim dilatar o tempo na direção de sujeitos, épocas e
acontecimentos significativos para o grupo em um rico processo de ficcionalização de si e da
coletividade como têm realizado os Penitentes do Genezaré, conforme segue.
A tradição no seu afã de estabelecer vínculos entre presente e passado faz questão
de manter com o máximo de rigor possível repetições que sejam capazes de transmitir para os
indivíduos do presente os valores por ela divulgados e comemorados. Cada gesto, vestimenta
e palavra, cada silêncio e olhar, cada prece e alimento, dizem de um passado idealizado e
desejado o qual não morreu e que não deverá sob nenhum efeito ser esquecido. A tradição
leva os homens a dizerem de si: “nós devemos ser reconhecidos como aqueles que não
esquecem o seu passado, não traem os seus valores. Representamos o que foi construído sobre
duras penas pelas mãos dos homens e pelos desígnios dos deuses”.
Contudo, a tradição não é apenas uma reprodução literal e irredutível do
memorável. Se ela promove uma viagem dos homens ao seu passado tido por significativo
para um grupo, nesse percurso, os viajantes levam consigo a bagagem da contemporaneidade
e no presente o passado buscado encontra os seus motivos e a sua renovação. A tradição é
mesmo “condenada à mudança”, a sua “enfermidade” nos dizeres de Henri Hatzfeld (1993, p.
65). No terreno das religiosidades, a tradição não está livre das suas características
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anteriormente mencionadas, sofre perdas e acréscimos, vive momentos, tem seus acordos
revistos, logo ganha atributos de um objeto semântico.
Retomando símbolos tradicionais ainda que situada em um universo problemático
porque em constante transformação, a tradição religiosa requer para si a sua origem divina
(HATZFELD, 1993, p. 46). Os indivíduos ligados a uma tradição desse tipo desenvolvem
uma memória capaz de comemorar acontecimentos, lugares e pessoas que podem representar,
a um só tempo, experiências que fundem o domínio do histórico e do mítico, do não-vivido
pelos narradores com o imediato de quem lembra, do distante no tempo e no espaço com a
vivência entre familiares que partilham dos mesmos símbolos e constituem a mesma tradição
tal qual acontece com os Penitentes do Genezaré.
Dentre os símbolos que têm marcado a trajetória penitencial de distintas
irmandades de leigos autoflagelantes, a cruz merece destaque pela sua presença a reforçar as
elaborações centradas na noção de sacrifício. De fato, a cruz como instrumento simbólico
reflete para os rituais dos Penitentes do Genezaré uma vinculação com uma longa trajetória de
usos cristãos daquele símbolo que cruzou o Atlântico junto com os portugueses no início do
século XVI. Para Riolando Azzi (1978), a cruz funcionou como um marco de conquista e
ainda hoje estabelece os espaços litúrgicos, a mesma cruz que extrapolando as tentativas de
controle eclesiástico torna-se uma expressão da “devoção popular”.
Cruzes brancas costuradas na parte da frente e na parte de trás dos coletes (opas)
azuis que os Penitentes do Genezaré usam sobre camisas geralmente brancas durante os seus
rituais. Feita de madeira e com aproximadamente cinquenta centímetros de comprimento, ela
está quase sempre presente em uma das mãos do decurião Deca Pinheiro. Cruz que indica o
local de uma sepultura e sugere um espaço de devoção aos mortos tão caro aos rituais daquela
Irmandade. Cruz vazia, em posse de decuriões de outras irmandades exibindo um pedaço de
pano branco envolvendo parcialmente o ponto de encontro dos dois pedaços de madeira
dispostos perpendicularmente na sua construção. Instrumento de representação da Paixão e
ressurreição do Deus encarnado. Cruz em sinal sobre a fronte, a boca e o peito a fim de
proteger os Penitentes no início de cada Terço rezado em favor das almas dos mortos.
Símbolo, portanto, criado e reinterpretado pelos homens, portador de uma mensagem capaz de
pôr seus criadores em diálogos consigo e com os seus próximos.
Dessa forma, nesse complexo emaranhado simbólico que alimenta e garante certa
estabilidade à tradição religiosa, a noção de revelação ganha relevância. Deve ser admitido,
portanto, que no processo de conservação e transmissão da revelação, repousa sobre a tradição
a preocupação com a fidelidade dos seus ditos, repetidos em meio a um mundo polifônico e
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na construção e manutenção dos mundos. Uma alegria ou a morte não são, por esse princípio,
acidentais, são fragmentos de uma conversa entre os homens e seus deuses. Nada para aqueles
homens que adotam princípios religiosos pode fugir dessa relação.
Diante do que se tem dito, deve ser admitido que os Penitentes do Genezaré
através dos seus rituais compartilham da noção que não existe uma tradição religiosa “pura”.
O encontro com a emergência de uma tradição é sempre uma empresa com grandes riscos de
insucesso para os que optam por essa aventura. Mais coerente é mesmo buscar pelos pequenos
“momentos da tradição”, suas variações que atendem as sugestões de algum tempo presente,
sua aceitação ou rejeição a partir do que pensam os contemporâneos (HATZFELD, 1993). É
preciso compreender a tradição como um empreendimento não apenas socialmente
constituído, mas indefinido e inacabado porque em construção é o próprio mundo onde ela
atua e os indivíduos que dela participam. E isso não diminua sua capacidade de estruturar e
sustentar o mundo dos homens, colocar em harmonia os integrantes de um grupo entre si e os
indivíduos e os seus grupos com os deuses e com os mortos.
O estudo dos rituais dos Penitentes do Genezaré reconhece e busca, sobretudo, o
encontro com esse “momento da tradição” bordado nas e a partir das relações e interpretações
que os membros da Irmandade têm elaborado na sua trajetória de mais de sessenta anos desde
a chegada dos Duarte ao município de Assaré.
Assim, o mundo no qual a tradição religiosa atua não é apenas cambiante,
problemático e inacabado. Ele também revela toda a sua imperfeição e a necessidade de ser
reconstruído continuamente. Como bem afirma Peter Berger (1985, p. 19), “se é necessário
que se construam mundos, é muito difícil mantê-los em funcionamento”. Nesse sentido, a
religião é um dos muitos empreendimentos coletivos capazes de estabilizar ainda que
momentaneamente o mundo dos homens frequentado pelos deuses e vitimado por desalinhos
e alguma sorte.
Na sua qualidade de empreendimento coletivo e marcado pela capacidade criativa
dos homens, a religião retroage sobre seus criadores. Tem-se, na realidade, uma via de mão
dupla. Assim, “Em todas as suas manifestações, a religião constitui uma projeção imensa de
significados humanos na amplidão vazia do universo, projeção essa, que na verdade, volta
como uma outra realidade para assombrar os que a produziram” (BERGER, 1985, p. 112).
Homens e religião inventam-se mutuamente, portanto, através de um processo contínuo de
exteriorização, objetivação e interiorização6.
6
Conforme argumentos de Peter Berger (1985). Ver capítulo I daquela obra.
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humana, seres que vigiam até mesmo o que foge ao controle dos sentidos mais atentos entre
os mais cuidadosos homens.
Nesse aspecto, o homem religioso produz em si as marcas da autoanulação, da
autolimitação levada ao extremo. do sacrifício. Suas posturas e gestos, a sua voz e os seus
escritos são mensageiros de uma revelação, são instrumentos da tradição, por certo, tem o
máximo conservadorismo como alvo. Na verdade, os homens religiosos são guardiões de uma
ficção, têm na sua trajetória a desilusão de nunca atingir plenamente os seus objetivos,
fracassam duplamente. Em primeiro lugar, o novo é inevitável. Sem as demandas do presente
a tradição perderia o seu significado, ela é destinada à mudança como mencionado
anteriormente a partir das reflexões de Henri Hatzfeld (1993, p. 147). Em outro sentido, a
autoanulação humana na sua plenitude é uma impossibilidade ainda que o homem seja
instigado a reconhecer a supremacia dos deuses. Persevera, contudo, o desejo do sacrifício
sem o qual os rituais religiosos seriam expressões carentes de maior significado. Os rituais
dos Penitentes do Genezaré trazem essa marca.
Nesse sentido, Henri Hatzfeld (1993) oferta mais uma vez sua contribuição para
melhor interpretação dos significados presentes nos rituais motivo desse estudo. Pela presença
dos sacrifícios nos rituais, os homens dizem para si e para o outro o que os seus deuses
significam para quem sacrifica e ritualiza. Em outras palavras, “[...] todos os sacrifícios, sejam
quais forem as suas diferenças, situam de maneira comparável o homem e o deus a qual ele
faz um sacrifício” (HATZFELD, 1993, p. 149). Sacrificar, portanto, é estabelecer
comparações, fundar relações de poder entre os homens e seus deuses. Ainda que
reconhecendo que os poderes despertados ou manipulados pelo sacrifício são desconhecidos
ou, por vezes, temidos, os homens anseiam por essa relação com os detentores de tais poderes.
Nesse complexo de gestos, posturas e vozes, os homens em sacrifício demonstram para si e
para os outros ainda toda a incerteza que envolve o mundo, o seu constante tatear por
caminhos misteriosos repletos de sombras medonhas. Sobretudo, os homens constroem seus
deuses, dão a eles características de acordo com o poder a eles atribuídos para resolução de
situações específicas (HATZFELD, 1993, p. 147- 152).
Assim,
A partir dessa noção, não é difícil admitir os sacrifícios presentes nos rituais dos
Penitentes do Genezaré possibilitam uma sinergia entre os seus executantes e entre estes e os
seus deuses. Isso só é viável porque os rituais afirmam a existência de um além, outro mundo,
distância com aproximações possíveis estabelecidas por rituais, por sacrifícios. Existe mesmo
nos rituais em questão o encontro dos homens com “presenças incertas” através da abertura da
“porta da transcendência”. O homem que ritualiza e sacrifica expressa os seus anseios e
angústias, expõe suas dúvidas e medos, os mais íntimos e os mais facilmente publicáveis,
espera respostas dos deuses de acordo com a urgência das suas reivindicações. Não é difícil
aceitar que os rituais promovem aberturas para uma “dupla transcendência”: “A invenção do
símbolo e do que é simbolizado é simultânea” (HATZFELD, 1993, p. 137). Sem as tentativas
de autoanulação de quem ritualiza tantos encontros teriam suas possibilidades de ocorrência
reduzidas ainda que a autolimitação tenha sempre sua plenitude como um ponto nunca
atingido.
Nesse encontro entre humanos e dos homens com o inumano (HATZFELD, 1993,
p. 147), no qual aqueles que ritualizam e sacrificam reconhecem que o poder encontra-se nas
mãos do outro, sob o domínio dos deuses, os Penitentes contentam-se com a dor, quer seja ela
corporal ou não, em uma atitude denominada por Peter Berger (1985) de “masoquista”. Para
este autor, masoquismos e sadismos são elementos recorrentes nas relações humanas. Em
relação aos Penitentes do Genezaré, ambas as atitudes podem ser identificadas nas situações
ordenadas de acordo com as normas dos sacrifícios.
Dessa forma,
totais fundamentado nas obrigações de dar e nas obrigações de receber e de retribuir. O autor
destaca o “caráter voluntário, por assim dizer, aparentemente livre e gratuito, e no entanto
obrigatório e interessado, dessas prestações”. Nesse sentido, interessa menos o valor ou
tamanho do objeto da dádiva e mais o estabelecimento da obrigação, da reciprocidade.
Primeiramente, a dádiva não pode ser rejeitada sob pena de desestabilizar a
relação entre as partes envolvidas no sistema de prestações totais. Em segundo lugar, é
igualmente penoso fugir da obrigação da retribuição. Portanto, os homens dão presentes e
ofertam de si uns aos outros e aos deuses e esperam receber do outro não menos do que o
objeto da graça dada. Quando os Penitentes do Genezaré sacrificam, eles ofertam mais do que
bens ou outras dádivas tangíveis, seguem com os seus sacrifícios as suas almas como
presentes aos seus deuses como um fardo a pesar sobre aqueles que foram agraciados.
Ocorre, entretanto, uma sensível diferença entre as obrigações prestadas por
homens entre si e pelos homens com os seus deuses. Os Penitentes reconhecem que os deuses
possuem uma capacidade única de retribuir com correção o preço das coisas ofertadas e,
assim, “[...] é dos deuses que se deve comprar” (MAUSS, 2003, p. 206), receber dádivas
materiais ou intangíveis como resposta ao sacrifício. Nessa relação análoga a trocas
comerciais não raras poder, riqueza, desprendimento são associadas aos sacrifícios entregues
a quem são julgados os verdadeiros donos ou administradores das dádivas ofertadas e de todo
o que há: os deuses ou os mortos. É urgente que essa relação entre homens e seres além seja
fundada com base na impossibilidade de não sacrificar e no risco de fazê-lo de forma
inadequada. É por demais arriscado negligenciar tal obrigação, melhor é fundar e conservar a
comunhão e a aliança com aqueles que detêm o poder que os homens de mãos vazias carecem
para manter a sua existência em harmonia com os seus semelhantes e com todo o universo de
seres inanimados, divinos e demoníacos, vivos e mortos, com a natureza. E dessa forma, a
história ganha um sentido.
È preciso dar, receber e retribuir. Diante desses “três temas da dádiva” pode-se
concluir que os esses sistemas de prestações totais fazem parte de um complexo de relações
que os homens constroem. São os homens em sociedade que forjam as suas instituições,
elaboram as suas normas e transferem a autoria da sua obra criadora para o supra-humano.
Nessa contextura, apela-se para situações que garantam a harmonia entre as partes envolvidas
e negligenciá-las pode colocar em risco não somente o estado presente das relações entre
homens e entre os grupos e seus deuses, mas também comprometer o sentido da história e
uma drástica re-significação da memória social dos envolvidos marcada pela ideia do
sacrifício como uma tentativa urgente e desesperada de agradar aos deuses e de outras formas
39
7
Para o autor, os próximos são “[...] essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos, (e que) estão
situados numa faixa de variação das distâncias na relação entre si e os outros” (RICOEUR, 2007, p.141). Se o
meu nascimento e a minha morte são para além dos extremos entre a minha capacidade de rememorar e a prática
continua dos meus projetos e sonhos, para os meus próximos, meu nascimento e a minha morte adquirem
importância talvez jamais atribuída pela sociedade em geral senão pelos seus valores estatísticos e perspectiva
demográfica. Dessa forma, os próximos devem ocupar espaço privilegiado na atribuição dos verdadeiros sujeitos
das operações da memória.
41
peregrinação ou um convite, uma morte ou uma missa não devem ser desprezados na sua
importância para os mesmos temas.
Ao dialogar com os Penitentes do Genezaré sobre uma possível origem das
práticas penitenciais na trajetória da humanidade sobre o mundo, os mais velhos não
titubeiam: “Jesus foi o primeiro penitente”. E não apenas isso, tomando como referência os
relatos bíblicos do Novo Testamento nos Evangelhos, os narradores admitem serem os
apóstolos uma irmandade de penitentes fundada por Jesus. Portanto, não raro afirmam que o
ideal é que toda e qualquer ordem penitencial semelhante a que integram tenham o número de
doze membros conforme suposto modelo deixado pelo Homem das Dores.
Com isso, as narrativas orais dos Penitentes do Genezaré insistem que a memória
social do grupo une a apropriação de outras tantas narrativas tornadas conhecidas pela fala
dos mais antigos membros de irmandades com novas formas de interpretação de alguns
escritos. O que os mais antigos penitentes transmitiram nos diálogos e nos cânticos foi aos
poucos sendo incorporado ao repertório das narrativas dos atuais membros da Irmandade de
Nossa Senhora, muito do não-visto e não-vivido toma por esse mecanismo a forma de uma
experiência pessoal dos narradores que chega aos seus contemporâneos por intermédio dos
recursos da oralidade. Alguns dos nossos diálogos revelaram as barafundas referidas.
“Seu” Luizinho Camilo, por exemplo, fala na primeira pessoa do plural ao
mencionar os rituais executados pelos penitentes na zona rural do município de Lavras da
Mangabeira quando aquele narrador ainda era uma criança, antes de sua família migrar para o
município de Assaré. Na verdade, sua inserção em irmandades de penitentes ocorreu apenas
quando o mesmo já contava com aproximadamente vinte e cinco anos de idade e habitava
paragens assareenses. Suas narrativas orais indicam que suas vivências de penitente são
reforçadas com as recordações que guarda dos diálogos mantidos com o seu pai, o velho
decurião Camilo Duarte, e com o seu tio Quinco Duarte.
Em outro sentido, a memória social dos Penitentes do Genezaré atua na re-
significação de textos bíblicos e de outros produtos escritos. A ideia de uma irmandade com
doze penitentes, em referência ao número de apóstolos arregimentados por Jesus, é
significativa mais não exclusiva nas insinuações que os narradores fazem da apropriação de
textos escritos pela Irmandade. Tentativa que sugere alguma frustração ao decurião Deca
Pinheiro.
Diante de uma exigência contemporânea, o líder da Irmandade de Penitentes do
Genezaré tem que conformar-se com um grupo que conta com apenas oito integrantes. Na
falta dos doze membros, quantia julgada adequada, que acrescentaria “beleza” à Irmandade,
42
Carvalho (2011, p. 62) constatou o mesmo fenômeno promovido pelos “Ave de Jesus”,
penitentes mendicantes, do município de Juazeiro do Norte. De acordo com a autora,
A Missão Abreviada tem como autor o padre português Manuel Gonçalves Couto
(1819-1897). Desde o seu subtítulo fica presente a intencionalidade do autor: Para despertar
os descuidados converter os pecadores e sustentar o fructo das missões. Logo no seu início, o
livro afirma ainda que: “É destinado este livro para fazer oração, e instrucções ao povo,
particularmente povo d’Aldeia”. E mais, “Obra utilíssima para os parochos, para os capellães.
Para qualquer sacerdote que deseja salvar almas, e finalmente para qualquer pessoa que faz
oração pública” (COUTO, 1871, p. 3).
44
O texto do padre Manuel Couto circulou e obteve grande aceitação nos sertões
nordestinos desde meados do século XIX por intermédio das Santas Missões. Não apenas os
párocos, mas igualmente leigos letrados e iletrados tiveram acesso à Missão Abreviada e,
assim, puderam tecer suas reinterpretações dos escritos do padre Couto. São quase 1.000
páginas exortando os cristãos à prática de boas obras, à conservação das virtudes ensinadas
pelo Salvador, à penitência8.
A tradição oral e os recursos da escrita unem-se, portanto, na constituição da
memória social dos penitentes do Cariri cearense. Digno de nota é não haver nenhuma
menção dos Penitentes do Genezaré aos textos citados como referência pelos “Ave de Jesus”.
E quando perguntados acerca de A Machadinha de Noé e da Missão Abreviada os narradores
do Genezaré alegaram completo desconhecimento. Por outro lado, suas narrativas orais
confirmam apropriações e reelaborações de benditos publicados em livretos e de passagens
bíblicas como exemplificado na referência ao número de penitentes adequado a uma
irmandade na sua tentativa de equiparação ao número de apóstolos segundo os evangelhos e a
tradição cristã.
Narrativas orais que tomam como referências outras falas e incontáveis escritos
que permitiram o acesso dos Penitentes do Genezaré a personagens essenciais na constituição
da memória social do grupo e não menos significativa para os seus rituais.
Passo a destacar agora mais alguns personagens marcantes nas narrativas orais
dos Penitentes do Genezaré.
Nascido Geovanni Bernadone em Assis, em 1181 ou 1182, Francesco tornou-se
com o passar dos anos
8
De acordo com a historiadora Edianne Nobre e com o historiador Jucieldo Alexandre (2011), “A narrativa da
Missão Abreviada tinha a conversão como objetivo maior. Tornar crível as penas pós-morte, e principalmente,
tornar possível a crença nos espaços do além. Temos assim, na narrativa do padre Couto, uma percepção de um
mundo permeado pelas noções de sagrado e de profano que contém os elementos/conteúdos fundamentais para a
construção de um mundo mítico (CASSIRER, 2004)”.
45
O fato de o Santo de Assis ter optado por virtudes associadas de forma direta ao
Homem das Dores, tais como pobreza e humildade e haver organizado grupos fundamentados
em princípios considerados semelhantes ao do cristianismo primitivo, contribuiu de forma
significativa para sua eleição como personagem central de um “novo modelo de santidade”
como afirma Jacques Le Goff (2011) no fragmento citado imediatamente acima. E não apenas
isso, a sua busca por uma plena identificação com o Deus encarnado permitiu que na sua
carne fossem inscritas as marcas dolorosas de sofrimentos análogos ao do Salvador através de
estigmas. Assim, São Francisco é um dentre a imensidão de crentes que têm no Filho de Deus
seu exemplo e que, a partir da relação mística que mantêm com o Salvador, torna-se exemplar
para quem anseia a mesma e mais completa possível relação e identificação de si com o
Cordeiro de Deus sacrificado no Calvário.
Não é difícil perceber, portanto, os caminhos que levam um servo que toma o seu
Senhor como modelo tornar-se ele mesmo, o servo, um exemplo para outros que perseguem
essa mesma trilha. Igualmente, não é difícil aceitar que a Irmandade de Penitentes do
Genezaré tenha pelo Santo de Assis uma destacada devoção digna de referência em suas
narrativas orais. São Francisco é uma das personagens capazes de estabilizar a relação
daqueles Penitentes com a tradição a qual afirmam dar continuidade. Escolhas inscritas no
corpo do Santo de Assis e nos corpos dos liderados de Deca Pinheiro. Na sua busca de
estabelecer uma continuidade com o passado, os integrantes daquela Irmandade têm em
Francisco mais um elo humano entre tempos, tornando fragmentos caóticos em um todo
inteligível, ofertando coerência à memória social do grupo. Francisco foi santo porque foi
servo, tornou-se modelo porque é santo disposto a atender os seus devotos nas suas carências
e angústias.
Fortalecendo a relação entre os Penitentes do Genezaré e o Santo em questão
encontram-se as graças alcançadas por aqueles que chegam diante do sujeito da sua devoção
em súplicas e dádivas. Há ainda uma questão local unindo os Penitentes e o Santo de Assis:
São Francisco é o padroeiro do Genezaré e o decurião Deca sente-se com o seu grupo
representante da comunidade e da religiosidade local, participa com os seus liderados das
festas alusivas ao seu padroeiro e, assim, laços afetivos e contratuais entre devotos e santos
são reforçados e renovados anualmente a cada mês de outubro nas festas franciscanas locais.
No mesmo sentido em que tenho exposto a relação dos Penitentes do Genezaré
com São Francisco devo mencionar a presença do padre Cícero Romão Batista (1844-1934)
nas narrativas orais dos integrantes do grupo e na constituição da sua memória social.
46
9
Antiga forma de grafia da palavra “Juazeiro”, conforme presente em Ralph Della Cava (1976).
47
que criara. A atenção e palavras do Filho de Deus naquele instante são voltadas para o
inexperiente sacerdote que contara naquela ocasião com vinte e oito anos de idade e que ouve
a voz do Cristo a dizer-lhe: “E você, padre Cícero, toma conta deles”. Meses depois o padre
decidira permanecer em Joaseiro exercendo seu sacerdócio entre os pobres daquela não
menos carente localidade.
Menos de vinte anos depois daquela abnegada decisão, Joaseiro tornara-se um
lugarejo marcado por “[...] fenômenos extraordinários como viagens ao Purgatório, Céu e
Inferno, aparecimento de hóstias ensanguentadas, estigmas de crucificação, sangramento de
crucifixos de metal maciço, relatos de visões, profecias, êxtases e comunhões espirituais”
(NOBRE, 2011b, p. 20). Protagonizando tais fenômenos, o padre Cícero e pelo menos nove
beatas daquele universo de devotas, dentre as quais ganha destaque Maria de Araújo (1863-
1914).
Fatos extraordinários divulgados pela imprensa e através das narrativas orais dos
sertanejos que visitavam a terra do padre Cícero ou tomavam conhecimento das bem-
aventuranças que aquele lugarejo reservava aos seus moradores através dos viajantes que
cortavam todo o interior do Nordeste brasileiro, um consequente vertiginoso crescimento
populacional e o padre aos poucos ia tornando-se o padrinho (“padim”) daquela gente que ali
chegava em grandes levas na transição do século XIX para o século XX. Figura que pela
proximidade com os “afilhados” chegava a substituir os pais na criação e proteção dos órfãos
separados irremediavelmente, sobretudo, da presença paterna.
Os novos moradores e moradoras do Juazeiro não raro eram organizados
religiosamente em irmandades de penitentes lideradas por alguém com reconhecida
experiência no trato das questões religiosas mais elementares e que contasse com uma
conduta considerada irrepreensível pela comunidade. Indispensável, da mesma forma, era que
o líder contasse com a aprovação e benção do “padim Ciço”. Dentre tantos grupos de
penitentes o caso mais notável foi, sem nenhuma dúvida, a Ordem dos Penitentes do
Caldeirão da Santa Cruz do Deserto liderada pelo beato José Lourenço (RAMOS, 2011)10.
Dessa forma, foi inicialmente gestada a denominada “questão religiosa do
Juazeiro” (DELLA CAVA, 1976). A Igreja, representada pela sua hierarquia imediata na sua
avidez por controle das crenças e práticas dos fiéis, não assistiu passiva ao desenrolar dos
fatos com suas mencionadas consequências.
10
A narrativa cinematográfica O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto (1986), do cineasta Rosemberg Cariry,
reconstrói parcialmente a trajetória da irmandade de penitentes liderada pelo Beato José Lourenço (1872-1946)
através dos relatos orais de alguns sobreviventes dos embates entre as forças militares do Governo e os
moradores da localidade.
48
11
Através da narrativa cinematográfica de Rosemberg Cariry, Juazeiro: A Nova Jerusalém, além da
anteriormente mencionada O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, e de Petrus Cariry (A Ordem dos Penitentes)
pode-se ter acesso a das muitas informações que alimentam os argumentos presentes nesse parágrafo.
49
estabelecida em um passado distante e ideal, não são apenas municípios ou seus conjuntos que
constituem suportes materiais à memória social dos Penitentes do Genezaré. Uma sombra de
uma árvore, uma cruz à beira de um caminho, um cemitério, um palco, uma rua, uma igreja
compõem igualmente a cartografia do permitido aos rituais dos Penitentes do Genezaré
elaborada a partir das suas rememorações transmitidas através das suas narrativas orais.
Cada espaço mencionado nas narrativas dos membros da Irmandade de Penitentes
do Genezaré pode tomar a forma de um lugar propício ou inadequado à prática dos seus
rituais. Dos espaços mais dilatados aos de menores proporções, afastados pelo tempo ou pelos
lapsos geográficos, dos mais característicos aos mais inusitados são conjugados na
constituição desses olhares sobre o passado que têm o suporte material do espaço como
referência. O presente permite essa reconstrução. Esse é um trabalho da memória que carrega
consigo os traços fortes das sensibilidades, reconstruindo essa cartografia os Penitentes do
Genezaré reinventam-se a si mesmos e a Irmandade que integram.
Suas trajetórias passam a ser vistas a partir dos cenários das suas realizações, a
cada lugar é atribuído uma voz a dizer de onde todos vêm e em qual ponto encontram-se do
caminho (“Eu vim de lá e estou aqui”). É possível mesmo contemplando os espaços
estabelecer um destino; As errâncias não são passos perdidos porque há lugares indicando os
pontos significativos da trajetória.
Mas, falar de lugares é ir além do topográfico visto que também há
Ciço” e emendou que “tudo o que ele havia dito estava se cumprindo”. Para outros penitentes
da Irmandade, Jesus fundou o primeiro grupo. Também, “os penitentes vêm desde o começo
do mundo”. Personagens e acontecimentos vão sendo colocados um ao lado do outro como
contemporâneos.
Se Jesus é antes de tudo e fundou as primeiras irmandades de penitentes, em outro
sentido, “tudo vêm” do padre Cícero que também é encarado como um personagem fundador
das ordens de penitentes. Nessa complexa elaboração, padre Cícero é partilhou do mesmo
tempo da existência de Jesus, ambos estavam presentes num tempo mítico, dentro e fora da
história simultaneamente, antes de tudo e assim inaugurando as práticas penitenciais de
leigos.
A esses personagens e acontecimentos com tantos cenários distintos, juntam-se
nomes do convívio dos Penitentes do Genezaré incorporados à sua memória social. São
antigos penitentes cujas trajetórias são reconstruídas e divulgadas através das narrativas orais
de Deca Pinheiro e seus irmãos de penitência. Sem dúvida, Camilo Duarte e seu irmão Quinco
são objeto das menções mais frequentes. Entretanto, outros penitentes com trajetórias de vida
consideradas não tão exemplares como as dos velhos Duarte são igualmente comemoradas
com algumas referências nas falas dos atuais integrantes daquela Irmandade. De qualquer
forma, as narrativas orais que integram parte do corpo de fontes desta pesquisa cujo resultado
segue nessas páginas unem a memória em torno de penitentes cujos exemplos de dedicação e
sacrifício jamais serão atingidos, na concepção dos narradores, a outros que “não tinham
coragem de se cortar” ou “num sabiam de nada”, como bem afirma Deca Pinheiro em riso e
em relação a alguns dos membros de irmandades anteriores das quais fizera parte.
Esse é um processo ainda em construção e não é condição essencial para fazer
parte dos personagens integrantes da memória social dos Penitentes do Genezaré ser também
penitente. Suas narrativas orais fazem menção igualmente a indivíduos com marcas recentes
na trajetória do grupo e que nunca integraram irmandades de penitentes. São padres, gestores
públicos, pesquisadores, cineastas, repórteres, que de alguma forma são vinculados aos seus
rituais a partir das relações que os penitentes têm estabelecido desde o início dos anos 2000
ou um pouco antes. Novas relações, dessa forma, vão produzindo novos lugares,
acontecimentos e personagens a serem integrados à memória daquela Irmandade.
Pode ser percebido, portanto, que as narrativas orais dos Penitentes do Genezaré
promovem o diálogo de distintos e separados espaços, acontecimentos e personagens. Nesse
processo, vivos e mortos encontram-se pelo trabalho da memória dos narradores. E, em
complemento a essa afirmação, devo dizer que ao reconstruir os seus rituais pelo esforço do
51
ainda que nos seus projetos objetivem distâncias seguras. Finalmente, atribuem parte das suas
falas aos seus antepassados. Presente projetado no passado e passos no caminho inverso. Não
seria isso mesmo o estabelecimento de uma tradição? Mortos e vivos seguindo juntos
dispensando concordarem sempre e em tudo.
Decerto, as veredas dos Penitentes do Genezaré são repletas de mortos que,
através das narrativas orais daqueles homens, adquirem capacidade de rejuvenescimento.
Acredito que esse seja um ponto que revela a idiossincrasia da oralidade: com os seus
recursos, os mortos são reinventados com maior fluidez, parecem igualmente dotados de
maior dinamicidade. A cada novo diálogo, outras possibilidades de os mortos serem
renovados juntamente com os passados aos quais pertencem. Alimentando esse processo, o
presente e os vivos com as suas curiosidades não satisfeitas, com suas novas formas de olhar
os seus mortos, portando um mais incrementado universo de possibilidades de análise.
Portanto, historiografia e oralidade, cada uma ao seu modo, buscam a paz com os
mortos em face de uma luta sem tréguas contra a morte – “Toda sociedade humana, em última
instância, consiste em homens unidos perante a morte” (BERGER, 1985, p. 64). Os grupos ou
as sociedades convivem com o inevitável processo de falências físicas. Em contrapartida,
elaboram suas muitas versões para explicar ou disfarçar sua derrota ou incompetência diante
da ceifa fatal. Dessa forma, a morte compreende toda a humanidade e cultura dos homens e
adquire características que interessam o fazer historiográfico (ARIÈS, 2003, VOVELLE,
2004). A história, nesse aspecto, nas palavras de Michel Vovelle (2004, p. 59), deve “[...]
reencontrar os homens e compreender suas reações diante de uma passagem que não admite
fraudes”.
Na qualidade de empreendimento coletivo dos vivos, a religião bem representa
uma elaboração contra a morte ao mesmo tempo em que tenta guardar a paz dos vivos com os
mortos, dos vivos uns com os outros, dos mortos entre si, do presente com o passado.
Decerto, num repertório de infindáveis causas, todos morrem e transformam os caminhos dos
vivos em passeio dos mortos em desassossego.
Dessa matéria humana no seu sentido mais amplo, dado natural e objeto de
refinadas e diversas elaborações culturais, a morte e os mortos, os Penitentes do Genezaré
encorpam os seus rituais. Basta lembrar, talvez, que o seu calendário anual regular de
atividades religiosas coletivas compreende os eventos executados ao longo da Semana Santa e
do Dia de Finados. Com menor rigidez em relação a datas, foi anteriormente mencionado que
os Penitentes do Genezaré podem ser convidados pela população local para intercederem pela
54
alma dos mortos através de Terços rezados em locais específicos, algumas vezes atendendo às
exigências de uma promessa feita pelo devoto ao seu santo de devoção.
As Semanas Santas reservam para os cristãos muitas oportunidades e exigências
de comemoração dos sofrimentos vicários de Cristo em favor da humanidade. O conjunto de
sete dias em questão tem início com o denominado Domingo de Ramos que faz referência ao
relato bíblico conhecido como “a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém” e é findado no
domingo seguinte, o de Páscoa, no qual os cristãos acreditam ter o Senhor ressuscitado. A
Sexta-Feira daquela Semana marca as comemorações da agonia e morte de Jesus na cruz do
Calvário. Suas dores e as afrontas por ele sofridas são recordadas pelas palavras, gestos e
autoimposições de cristãos dirigidas aos seus corpos e mentes. Os rituais do período trazem a
mensagem de um Cristo sofredor, que morre, mas vence a morte em favor da humanidade.
Dessa forma, o sofrimento, o sacrifício é compreendido como um prenúncio de salvação na
medida em que cristãos elaboram suas comemorações que articulam os dois estágios de uma
mesma obra redentora expressa, por exemplo, nas palavras do apóstolo Paulo,
Antes de tudo, vos entregue o que também recebi: que Cristo morreu
pelos nossos pecados segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as escrituras. E apareceu a Cefas e, depois, aos doze. Depois,
foi visto por mais de quinhentos irmãos de uma só vez, dos quais a maioria
sobrevive até agora; porém alguns já dormem. Depois foi visto por Tiago, mais
tarde, por todos os apóstolos e, afinal, depois de todos foi visto também por mim
como por um nascido fora de tempo [...] E, se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa
pregação, e vã, a vossa fé.. (BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Tradução de João
Ferreira de Almeida. Revista e atualizada no Brasil. 2. ed. São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1993).
Os Terços rezados em favor dos mortos de acordo com convites elaborados por
terceiros trazem consigo alguns elementos de destaque na relação de irmandades de penitentes
com os mortos. Para que os Penitentes do Genezaré passassem a receber convites para
executar esse ritual anteriormente comum àqueles penitentes que chegaram ao município de
Assaré ao longo dos anos 1950, foi necessário, segundo os relatos de Deca Pinheiro. Luizinho
55
12
Deve ser lembrado que a crença no Purgatório já havia sido aprovada no Concílio de Lião, em 1274
(CAMPOS, 2006, p. 48).
56
espaço terreno e o além da purgação. Consideramos que esse espaço do além estaria
separado do plano terreno por uma linha bastante tênue, daí a possibilidade das
viagens espirituais ao Purgatório, bem como de visitas espectrais aos espaços
terrenos (NOBRE; ALEXANDRE, 2011, p. 107).
As veiz a pessoa que morreu aparece à pessoa que tem o seu bom coração, que tem o
seu corpo aberto, já própi pra receber aquelas alma. Aí quer dizer... que é o seguinte:
a alma, ela só procura uma pessoa quando ela vê que ele tá perparado pra receber
ela, né? Que ela tem medo... ela não vai se apresentar a todo mundo. Ela tem mais
muito medo de nóis do que nóis dela. Qualquer palavrinha é sujeita a se perder. E o
freguês tando perparado elas vem sem sobrossa, ta conhecendo. Foi o causo desse
penitente que andava na minha turma também que ele chegou ver – viu a primeira,
viu a segunda, viu a terceira, chegou a ver até seis alma aí quando foi pra ele ver a
sete, que é pra completar as sete que é pra fechar o corpo, mas que ele não resistiu,
não aguentou a pantarma que vinha com ela. Porque ele falava que a pessoa que
morre ainda com umas companhia do lado deles. Agora uns vem bem perparada,
bem organizadazinha com um bom equipamento, mas já tem outros que vem com
equipamento de outro sistema porque o povo disse que não aguentava ver aquele
movimento. Aí ele foi e mandou ela se afastar porque não queria nem ver ela não. Aí
ela se afastou-se e ele não pode fechar o corpo dele. Aí foi o tempo que ele morreu
também. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de 2012).
bom coração”. Assim, bondade e coragem funcionam para Deca Pinheiro como chaves que
abrem essa possibilidade de comunicação entre sujeitos que habitam mundos distintos com
“equipamentos” próprios. Os “equipamentos” que acompanham as almas dos mortos durante
seus encontros com os vivos podem provocar pavor nesses últimos. Dando espaços e
dobrando-se diante dos seus medos em momentos específicos, os vivos permanecem com
seus “corpos abertos”, ou seja, permanecem passíveis a novos encontros. Entretanto, o
objetivo de quem “vê almas” não seria atingir o sétimo encontro e “fechar o corpo” para
livrar-se desses embates tensos? Deca Pinheiro acredita que sim e seu antigo irmão de
penitência não conseguiu atingir seu objetivo, com o “corpo aberto” juntou-se aos mortos.
De qualquer forma, aqueles eram dias mais afastados no tempo (e aqueles eram
penitentes) nos quais as almas pareciam frequentar mais assiduamente o mundo dos vivos que
procuravam ouvir de forma mais atenta aos seus mortos. Na medida em que as narrativas
orais dos Penitentes do Genezaré tematizam sobre dias mais próximos dos atuais a aparição
de almas vai se dissipando e na mesma proporção os convites elaborados por moradores do
Genezaré para que os seus Penitentes intercedam em favor dos seus mortos também vão se
tornando mais esporádicos. Portanto, os rituais dos Penitentes do Genezaré sofrem também
influência das relações que vivos mantêm com os seus mortos, relações com as quais os
Penitentes igualmente contribuem pelas suas práticas religiosas coletivas. Nesse ponto, devo
dar mais atenção aos rituais executados no Dia dedicado aos mortos.
Os convites faltantes em outras ocasiões superabundam a cada 02 de novembro,
no Dia de Finados, comemorado anualmente no cemitério do Genezaré. Nos anos de 2012 e
2013 os rituais executados naqueles dia e mês trouxeram significativas contribuições para as
reflexões propostas nesta pesquisa. Destaco que, na verdade, ao tratar como superabundantes
os convites para que os Penitentes do Genezaré intercedam em favor das almas dos mortos no
dia a estes dedicados, levo em consideração o tempo disponível e os procedimentos que
envolvem os rituais executados naquele dia e mês.
Em 02 de novembro de 2012 cheguei ao Genezaré no início da tarde. Como
previamente já havia acertado os detalhes daquela visita com Deca Pinheiro, fui sem demoras
até a sua residência. Mantivemos alguns diálogos brevemente interrompidos pela necessidade
que o anfitrião tinha de realizar algumas atividades do seu cotidiano de agricultor que lida
com suas terras e alguns poucos animais como gado bovino, caprinos, ovinos e muares.
Naquela tarde, como em tantas outras ocasiões as conversas seguiam sem a exigência de
cuidados com gravação e anotações mais detalhadas. Não que o interesse do pesquisador
fosse de todo abandonado, apenas acreditava (e ainda acredito) que muitas das informações
60
que o praticante da História Oral busca (e ainda outras inesperadas ainda que igualmente
relevantes) podem ser atingidas em diálogos pouco engessados pelo peso das perguntas
previamente elaboradas e pela força da intimidação que os equipamentos de gravação
sugerem. Caso haja a necessidade de retomar um tema mencionado na informalidade de
algum diálogo, um novo momento poderá ser providenciado com a presença de maiores
rigores técnicos.
Antes que findasse aquela tarde, Deca Pinheiro e eu começamos, a passos
apressados, vencer a distância de pouco mais ou pouco menos de meia hora de caminhada
entre a casa daquele decurião e a residência de Fortunato na Vila do Genezaré. O motivo era a
reunião prévia dos Penitentes naquela residência para que em seguida tivesse início os rituais
daquela Irmandade destinados ao Dia de Finados. Em um pequeno quarto localizado logo na
entrada da casa de Fortunato, os Penitentes cobriam as suas roupas cotidianas com as
vestimentas características dos ofícios religiosos da Irmandade. Comumente, os Penitentes do
Genezaré têm transportado em nossos dias as vestimentas que devem ser utilizadas em seus
rituais em sacolas plásticas dessas que acompanham as compras feitas no comércio em geral.
O vestir-se para os rituais ocorre apenas esporadicamente de forma individualizada antes que
o grupo esteja ao menos parcialmente reunido.
Minha atenção foi chamada inicialmente por perceber que vestimentas estavam
sendo entregues a dois dos filhos de “Seu” Joaquim Camilo como se os mesmos fossem
integrantes da Irmandade e não apenas familiares de alguns dos Penitentes do Genezaré.
Minhas reflexões posteriores apontaram para o surgimento de novos pontos de encontro entre
os Penitentes, para que a partir desses locais os seus rituais sejam iniciados. Se em outros
tempos a escuridão e lugares ermos eram considerados os mais adequados para que aquelas
reuniões ocorressem, desde que os Penitentes passaram a manter relações mais próximas com
a população. Igreja e poderes públicos locais os encontros passaram a acontecer com menor
rigidez quanto ao espaço e horários considerados adequados. Contudo, os Penitentes do
Genezaré concordam apenas parcialmente quando o tema é posto para suas análises e algumas
situações evidenciam o desacordo13.
O Dia de Finados de 2013 pode ser citado como exemplo do que foi anteriormente
mencionado. Em processo semelhante ao ocorrido no ano anterior, cheguei à casa de Deca
Pinheiro e após os diálogos costumeiros a nossa direção foi a casa de Fortunato. Pela hora um
pouco avançada ainda que não fosse noite, Deca Pinheiro e eu, segundo sua sugestão,
13
Tema melhor discutido no capítulo seguinte deste trabalho.
61
optamos por esperar os demais Penitentes na pequena praça que está localizada em frente à
Capela de São Francisco na Vila do Genezaré. A impaciência do decurião não demorou a ser
demonstrada. Seus liderados mais uma vez tardavam em chegar, a hora combinada para o
encontro já havia sido desrespeitada e a mesma sensação que Deca Pinheiro sentia em relação
ao tempo parecia sentir em relação a si. Atacado por aquilo que considerava um desrespeito,
Deca Pinheiro permanecia esperando os seus Penitentes em meio a pequenas olhadas para um
lado e outro e com alguns suspiros entre algumas frases. Quando pudemos ouvir as vozes dos
liderados de Deca Pinheiro os quais entoavam seus benditos na medida em que caminhavam
em nossa direção já era noite. O ritual havia começado sem o seu líder. O decurião aguardava
os seus penitentes em praça pública.
De lá, seguimos até o cemitério local em uma caminhada de poucos mais de dez
minutos. No percurso, alguns moradores das imediações juntaram-se ao nosso cortejo que já
era partilhado também por algumas crianças e adultos que estavam na praça assistindo ao
encontro entre o decurião e seus Penitentes. Difícil precisar se o principal estímulo para que
seguissem conosco até o nosso destino fosse os Penitentes e os seus cânticos. Mais provável é
que aguardassem o momento adequado para realizarem a visita ao túmulo dos seus mortos
naquele início de noite. A caminhada parecia mais longa porque marcada pelos cânticos
melancólicos entoados naqueles minutos. Nem ao menos as advertências de Deca Pinheiro, o
qual pouco cantava durante o percurso, levou os seus penitentes a empreenderem passos mais
rápidos. Então, o percurso parecia prolongar-se mais ainda devido a ansiedade não sem
motivo do decurião dos Penitentes do Genezaré. Havia muito a ser feito naquela noite
dedicada aos mortos.
E o préstito seguia. Havia, porém, uma sensível diferença no percurso entre o ano
de 2012 e o ano subsequente: o caminho fora pavimentado e a iluminação pública rompera
com a escuridão tantas vezes experimentadas pelos Penitentes, demais moradores da
localidade e antigos habitantes residentes em outras localidades que voltam ao Genezaré para
as “visitas de covas” dos seus parentes a cada ano naquele dia e mês. Apenas o cemitério
ainda permanece sem os benefícios da energia elétrica. Transformações estruturais desse tipo
favorecem a instauração de novas sensibilidades relacionadas aos rituais dos penitentes, como
foi argumentado também pelo antropólogo Roberto Lima (2006) na sua pesquisa que trata das
práticas religiosas coletivas dos penitentes de Juazeiro (BA). Para este pesquisador, alterações
estruturais desse tipo provocam tensões e distintas interpretações entre os penitentes
envolvidos em rituais cada vez mais públicos e visíveis, gostos e desgostos de quem percebe
que os seus rituais sofrem influências externas.
62
As sensações de quem participa daqueles momentos não param por aí. Há sempre
muitas velas a iluminar ainda que de forma irregular aquelas horas e aquele lugar. Dispostas
diretamente sobre o chão, coladas com o seu próprio material sobre cruzes de madeira ou em
grades marcadas geralmente com as iniciais dos nomes dos falecidos, suas datas de
nascimento e/ou morte que cercam e identificam as covas ou organizadas em jazigos que
buscam a semelhança com pequenas igrejas, as velas proporcionam ao ambiente um cheiro
característico unido ao perfume de algumas flores que ao longo daquele dia e horas murcham
de forma apressada depositadas em alguns túmulos. As chamas das velas parecem sugerir
imagens, imaginações poéticas de crianças que brincam com aquela luz e de adultos com
olhar perdido e atraído pelas chamas (BACHELARD, 1989)14.
Finalmente, a pele sente a poeira e grava as marcas das muitas muriçocas e alguns
outros insetos que habitam os novembros e outros meses quentes na região. Também
14
Para Gaston Bachelard (1989), não é apenas o espaço que atua facilitando elaborações de imagens poéticas, a
chama de uma vela permite processo análogo. Assim, “Entre todas as imagens, as imagens da chama – das mais
ingênuas às mais apuradas, das sensatas às mais loucas – contêm um símbolo de poesia. Todo sonhador
inflamado é um poeta em potencial. Toda fantasia diante da chama é uma fantasia admiradora. Todo sonhador
inflamado está em estado de primeira fantasia. Esta primeira admiração está enraizada em nosso passado
longínquo. Temos pela chama uma admiração natural, ouso mesmo dizer: uma admiração inata. A chama
determina a acentuação do prazer de ver, algo além do sempre visto. Ela nos força a olhar. A chama nos leva a
ver em primeira mão: temos mil lembranças, sonhamos tudo através da personalidade de uma memória muito
antiga e, no entanto, sonhamos como todo mundo, lembram-nos como todo mundo se lembra – então, seguindo
uma das leis mais constantes da fantasia diante da chama, o sonhador vive em um passado que não é mais
unicamente seu, no passado dos primeiros fogos do mundo” (BACHELARD, 1989, p. 11).
64
15
Conjunto de orações (um Pai-Nosso, uma Ave Maria, um Glória ao Pai e uma jaculatória) de cada Terço que,
segundo a tradição católica, expressam a vida, morte e ressurreição de Jesus e indicam a terça parte de um
Rosário. Por sua vez, o Rosário é composto de quatro grupos de outros cinco mistérios, a saber: Mistérios
Gozosos (citados às segundas e sábados), os Mistérios Dolorosos (mencionados às terças e sextas-feiras),
Mistérios Gloriosos (comemorados às quartas-feiras e domingos) e, finalmente, instituído pelo papa João Paulo
II, os Mistérios da Luz que devem ser relembrados com periodicidade semanal a cada quinta-feira.
16
O Sinal da Cruz é um costume que não está reduzido apenas aos momentos litúrgicos do catolicismo
institucionalizado. Segundo Riolando Azzi (1978, p. 13), “Persignar-se tornou-se um hábito familiar aos
brasileiros: ao passar diante de um oratório, de uma igreja, de um enterro, de uma tumba, as pessoas geralmente
fazem o sinal da cruz. Como o fazem também com freqüência os banhistas antes de entrar na água da piscina ou
do mar, os jogadores de futebol antes da partida e os passageiros antes da decolagem do avião”.
17
De acordo com Robert Hertz (1980), algumas crenças religiosas fundamentam os usos e atribuições de cada
uma das mãos. Portanto, existe um dualismo socialmente construído entre o direito e o esquerdo como
característica de uma Lei de Polaridade. À mão direita compete honras e virtudes, bênçãos e a vida. Enquanto
isso, a esquerda guarda a morte e os poderes ocultos, as fraudes por fim. Com bases nessas construções, grupos
promovem uma verdadeira mutilação social, paralisar a mão esquerda para que a direita prevaleça.
65
partir daí um conjunto repetido por cinco vezes composto por um Pai-Nosso, dez Ave-Marias
e a Jaculatória ou Oração de Nossa Senhora de Fátima através da qual o fiel intercede por sua
salvação do “fogo do Inferno” bem como pelas almas que permanecem recolhidas ao
Purgatório. O objetivo do crente que reza o Terço em relação às almas dos mortos é óbvio:
que a cada uma delas seja permitido deixar o Purgatório e migrar sem mais demoras para o
Céu.
A parte conclusiva do Terço é marcada por orações de agradecimento, Salve-
Rainhas, ladainhas, oferecimento e súplicas mais diversas. Percebe-se que nessa conclusão o
fiel goza de maior liberdade para expressar seus desejos e necessidades. Também o devoto
inclui ali as orações destinadas aos seus santos de preferência e pode mencionar igualmente
pedidos feitos por terceiros. Por essa fluidez, é difícil precisar com rigor o tempo máximo que
será exigido para que um Terço seja finalizado.
Agora, imagine-se substituir cada uma das cinquenta Ave-Marias ditas logo após
a introdução do Terço (as três primeiras são conservadas) pela estrofe cantada e repetida
“Repouso eterno, daí Senhor/Da luz divina o esplendor”. Em outras palavras, para cada Ave-
Maria a pessoa responsável para liderar o Terço canta os versos acima e a assistência repete
sem ressalvas as mesmas palavras, respeitando a estrutura melódica, rítmica e harmônica do
que fora exemplarmente cantado. Isso é o Terço das Almas. Difícil descrever a monotonia
daquele conjunto de orações e cânticos a passar impressões que o tempo impreciso para a sua
execução torna-se maior ainda do que o exigido. O conjunto de características ambientais do
cemitério do Genezaré naquelas noites de 02 de novembro reunido às tensões preliminares
experimentadas pelos Penitentes sugerem, pelo menos momentaneamente, o agravamento
daquele quadro melancólico.
Como agir diante daquela situação na qual tempo e espaço não favorecem o
atendimento plausível de todas as demandas daquela data? Essa é uma questão que também
não encontra resposta unânime entre os Penitentes do Genezaré. As sugestões multiplicam-se.
Diante de convites para que quatro ou cinco “Terços de Penitente” sejam rezados em uma
única noite, Deca Pinheiro e seus liderados contemplam o inviável, sem poder simplesmente
responder negativamente aos convites dirigidos ao grupo, alguns deles objetos de promessa
dos vivos em favor dos seus mortos.
Cada solução apontada pelos Penitentes do Genezaré traz um obstáculo à sua
efetivação. Deca Pinheiro sugere que seja rezado um único Terço para todas as almas aos pés
da maior cruz de madeira erigida quase que ao centro daquele cemitério (o “cruzeiro”, como
denominam). Mas, como fazê-lo se tantas solicitações são para que seja “tirado um Terço das
66
Almas” em covas específicas, conforme desejos ou promessas. Eis um impasse e há quem não
queira abrir mão da sua solicitação? Alguns dos Penitentes liderados por Deca Pinheiro
sugerem que o grupo divida-se em pelo menos dois subgrupos para que ninguém fique sem o
devido atendimento das suas solicitações. A questão é como isso pode ocorrer se geralmente
uma única mulher está disponível para dar início e “puxar o Terço” (cantar a estrofe a
primeira vez) para que os Penitentes apenas “respondam”. Selecionada e convidada
previamente por Deca Pinheiro ou outro Penitente, a mulher com essa responsabilidade tem
também outras obrigações para aquela noite e precisa dividir-se entre elas para atender o
maior número possível de demandas. Em 2013, diferentemente do ano anterior, foi uma das
irmãs de “Seu” Luizinho e “Seu” Joaquim Camilo quem abraçou essa função. A solução
apresentada que aponta para uma subdivisão do grupo esbarra também no número
considerado pequeno de membros da Irmandade e consequentemente insuficiente para que a
divisão do grupo em primeira e segunda voz para os cânticos seja mantida em cada subgrupo.
A cada ano os Penitentes do Genezaré revivem essa tensão até o momento sem
solução definitiva. Ainda que iniciando os rituais daquela data por volta das dezenove horas e
estendendo-os até ultrapassar o limite das vinte e duas horas sempre há quem fique sem ter as
suas solicitações atendidas. Entretanto, há túmulos que não deixam de ser visitados
anualmente, a cada dois de novembro, pelos rituais dos Penitentes do Genezaré. Entre esses,
deve ser contado o do velho decurião Camilo Duarte. Entretanto, outro merece ser destacado.
D. Regina é uma viúva que há algumas décadas deixou o seu município de
origem, o anteriormente mencionado Lavras da Mangabeira, para fixar residência juntamente
com seu esposo no Genezaré. Após a morte do seu cônjuge, a viúva enlutada comprometeu-se
a cada Dia de Finados ofertar aos Penitentes do Genezaré uma breve refeição composta de
bolo, bolachas, refrigerantes e sucos logo que fossem encerrados os rituais da Irmandade no
cemitério local. O túmulo do seu marido é de visita indispensável naquela data e a alma do
seu morto beneficiada com as intercessões dos Penitentes liderados por Deca Pinheiro. Nesses
atos, d. Regina, na medida em que trabalha no processo de intercessão pela alma do seu
defunto, opera na construção da memória do seu ente saudoso. Ele era um penitente e sua
identidade como tal permanece em construção mesmo após a sua morte, nesse processo no
qual vivos falam pelos mortos. Seria isso um processo de vivificação ou mesmo de ficção da
vitória humana sobre o seu implacável destino? De qualquer forma, vivos e mortos
permanecem em diálogo incessante fruto dessa relação entre seres e mundos com
“equipamentos” distintos para citar, mais uma vez, uma feliz expressão de Deca Pinheiro.
67
E, os vivos não cessam de colocar palavras na boca dos seus mortos, falam em
nome deles e por eles. Como bem afirma Jöel Candau (2011, p. 143), a relação dos vivos com
os seus mortos são caracterizadas por elaborações de prosopopeias memoriais. De acordo
com sua definição,
18
De acordo com o professor Durval Muniz de Albuquerque Júnior (2007, p. 25) “A evidência é produto de uma
certa vidência, é construção de uma forma de ver, de uma visibilidade e de uma dizibilidade social e
historicamente localizada. É o próprio conceito, é o discurso lançado sobre a empiria que a transforma em
evidência. Nada é evidente antes de ser evidenciado, ressaltado por alguma forma de nomeação, conceituação ou
relato. Os documentos são formas de enunciação e, portanto, de construção de evidências ou de realidades. A
realidade não é uma pura materialidade que carregaria em si mesma um sentido a ser revelado ou descoberto, a
realidade além da empírica é simbólica, é produto da dotação de sentido trazida pelas várias formas de
representação. A realidade não é antes de um conceito, é um conceito”.
68
Getúlio Vargas, que ocupa a prioridade entre os políticos rememorados; De canções, gostos,
visões e odores que no passado estimularam os sentidos dos velhos e velhas de hoje; De
percursos e espaços urbanos da São Paulo de décadas anteriores; Do mito do bandido que
rouba dos ricos para doar aos pobres sem nunca ser capturado pela polícia; Dos dramas
familiares enfim. Há sempre algo a mais nas histórias de vidas do que trajetórias individuais
(BOSI, 1994).
A morte preenche grandes espaços nas histórias de vida registradas por Ecléa Bosi
(1994). Narrar a própria trajetória também sugere um encontro inevitável com a morte.
Morrem os combatentes; Desaparecem os políticos e outros personagens cotidianos que
ocuparam as ruas e/ou as páginas midiáticas; Já não existem os amigos e muitos dos
familiares – entes queridos que deixam saudades insuperáveis; Morre-se por epidemias e,
poucas vezes, a morte aparece tranquilamente nas narrativas (BOSI, 1994).
Em algumas ocasiões a morte surge como metáfora do sofrimento. “Uma
lembrança triste daquele tempo que eu presenciava como muita amargura: eu via meu pai
bater em minha mãe. Aquilo me mortificava, para mim era morte”, diz o Sr. Antônio (BOSI,
1994, p. 224). Em outros pontos, é a cidade dos tempos da infância que “morre” para que
surja um espaço incompreensível aos velhos.
Não deve ser esquecido que rememorar é também um encontro com a
degeneração do próprio corpo. “A mão trêmula é incapaz/ de ensinar o aprendido”, Sr. Abel
escreve em um poema (BOSI, 1994, p. 217); “Gostaria de viajar, mas não tenho meios. Fico
aí em casa, não posso me locomover com rapidez por causa das coronárias”, informa Sr.
Antônio (BOSI, 1994, p. 259).
Por outro lado, narrar é reconhecer uma vida que mesmo com a proximidade da
morte pode ganhar aspectos, ainda que superficiais, de rejuvenescimento. “Veja, hoje a minha
voz está mais forte que ontem, já não me canso a todo instante. Parece que estou
rejuvenescendo enquanto recordo”, testemunha o Sr. Ariosto (BOSI, 1994, p. 158).
Padre Cícero e São Francisco, ambos morreram. Jesus morreu! Se a falência das
funções vitais de cada um deles não serve de ponto final para as construções mnemônicas que
sugerem a relação dos três com os rituais da Irmandade de Penitentes do Genezaré, é
recorrente a lembrança dos narradores que eles morreram, como todos morrem.
A hagiografia que Deca Pinheiro e seus liderados divulgam através dos benditos
entoados pelo grupo faz questão de afirma o tipo de morte que cada santo cantado sofreu.
“Padim Ciço” foi aquele “que deixou o Juazeiro”, São Francisco morreu humildemente como
tantos outros pobres e Jesus ainda tem suas últimas horas de vida narrada através do “Bendito
70
da Quinta-Feira Maior” através do qual conta-se em detalhes minuciosos a sua agonia diante
da certeza que sua morte estava cada vez mais próxima. Tudo conforme crença defendida e
divulgada pela Irmandade.
Mas, poderia haver santidade e salvação sem que a morte agisse sobre homens e
mulheres capazes de superar o esquecimento que ela pode produzir em poucas gerações?
Decerto, para os Penitentes do Genezaré a missão do cristão, à semelhança e memória do
Filho de Deus, prevê uma vida de sacrifícios que comemoram os padecimentos e mortes de
todos aquelas e aquelas que têm no Cristo das dores o seu sumo exemplo. Outros sacrifícios e
sofrimentos também podem ou devem ser comemorados a partir das sugestões
contemporâneas como, por exemplo, as dores experimentadas por negros escravizados
durante um longo tempo da história dos domínios portugueses na América e do Brasil. A
missa celebrada a cada 20 de novembro, nos últimos anos, no terreiro da casa-grande do
Infincado traz essa mensagem abraçada pelo decurião dos Penitentes do Genezaré, conforme
páginas adiante. E assim, aqueles narradores permanecem estabelecendo vínculos entre a
morte e os mortos e os seus rituais.
Entretanto, a morte e os mortos que ocupam espaço privilegiado nas narrativas
orais dos Penitentes do Genezaré não são apenas aqueles de maior repercussão para a
cristandade ou, de forma mais restrita, o catolicismo. Alguns dos mais antigos penitentes com
os quais os atuais Penitentes do Genezaré conviveram ou deles tiveram notícia têm suas
trajetórias religiosas postas em diálogo com os rituais da Irmandade conforme executados
atualmente. Se por um lado a morte dos velhos é considerada pelos narradores como uma
impossibilidade para que o autoflagelo seja executado de acordo com o que eles pensam ser o
mais adequado, por outro lado a ausência de Camilo e Quinco Duarte, entre tantos penitentes
já falecidos, contribue para que aqueles que permanecem em atividade na Irmandade
reconheçam e divulguem que também sofrem degenerescência. Abdicar de alguns antigos
rituais como, por exemplo, longas peregrinações ou autoflagelos mais frequentes e exaustivos
é um dos argumentos recorrentes para adequações das práticas religiosas dos Penitentes do
Genezaré. Assim, a morte já ceifou os mais velhos e os atuais membros da Irmandade
reafirmam através das suas narrativas orais a consciência que o mesmo caminho aguarda a
todos.
Dessa forma, resta em todos um propagado receio de que os Penitentes do
Genezaré deixem de existir enquanto Irmandade. São atormentados com a possibilidade de
não haver quem possa manter através dos seus corpos os rituais que têm marcado a trajetória
do grupo. Temem aquilo que consideram o mais provável, que a morte colha também os mais
71
velhos Penitentes da atualidade sem que haja quem possa substituí-los em um futuro tido por
certo e quem sabe breve. Se todos morrem, poderá também morrer a Irmandade. Nas palavras
de Deca Pinheiro, “Cê sabe! Hoje em dia se deixar o véio... o mais véio morrer e os fio não
acompanhar... quer dizer que se acaba, né?...”
E a morte, que tem alimentado ou rituais dos Penitentes do Genezaré, sem
maiores reservas, também ameaça a sua continuidade. A morte do grupo.
72
NO ESPAÇO:
OS RITUAIS DOS PENITENTES DO GENEZARÉ EM NARRATIVAS
SENSÍVEIS SOBRE POSSIBILIDADES E INTERDIÇÕES
Neste capítulo, os rituais dos Penitentes do Genezaré são pensados a partir das
narrativas orais que apontam para a relação entre os ofícios religiosos do grupo e os espaços a
eles destinados ou interditados. Levando em consideração que os espaços podem ser
compreendidos como constructos naturais, sociais e discursivos, optei por refletir acerca das
interpretações que os narradores ofertam à natureza e às espacialidades engendradas ao longo
da trajetória de mais de 60 anos contados a partir da chegada da família Duarte ao município
de Assaré.
Através das falas dos narradores, o Genezaré é representado inicialmente como
um espaço que ao longo dos anos 1950 e início dos anos 1960 impunha obstáculos à
organização de irmandades de penitentes e, por consequência, à execução dos seus rituais.
Tomando como referência os anos seguintes, as narrativas dos mais antigos membros da
Irmandade liderada por Deca Pinheiro falam do crescimento populacional da localidade e
reafirmam as dificuldades de estabelecer crenças e práticas penitenciais, naquele momento,
em um espaço cuja população, segundo as falas dos narradores, não compreendia bem o
sentido das irmandades e seus ofícios religiosos. Não obstante, ao longo das duas primeiras
décadas da segunda metade do século XX, três irmandades autoflagelantes foram organizadas
nas comunidades rurais que compõem o Genezaré e com o incipiente crescimento
populacional, os penitentes puderam ampliar os espaços destinados à execução dos seus
rituais, descrevendo trajetórias mais longas, principalmente nas peregrinações realizadas
durante as Semanas Santas e, fazendo parte desse processo, alguns poucos espaços privados
eram marcados pelo sangue dos autoflagelantes.
73
19
De acordo com as elaborações de Michel de Certeau (2007) e Gaston Bachelard (2008), as experiências
humanas com os espaços que constroem tornam-se eróticas na medida em que o caminhante observa e ao mesmo
é observado como objeto e produtor de uma elaboração prazerosa com características assemelhadas ao
voyeurismo (CERTEAU, 2007, p. 169-172). Em outro aspecto, contemplando os espaços, inventando-os pelo
olhar, os observantes e caminhantes alimentam a sua imaginação poética. A partir do que contemplam, eles
constroem imagens novas ainda que o contemplado seja justamente aquilo do seu convívio cotidiano, como uma
gaveta, por exemplo (BACHELARD, 2008).
74
Quase cinco horas da manhã. Os últimos que ainda há pouco dormiam já estavam
acordados e de pé. O fogão à lenha e algumas lamparinas auxiliavam a luz do sol nascente na
iluminação do ambiente. Entre um choro de criança e uma vasilha que caia ao chão, um novo
dia surgia e com ele a rotina cansativa do trabalho na agricultura era retomada. O aroma do
café que ocupava o ambiente indicava que ele estava pronto e deveria ser tomado com
brevidade. Enquanto isso, as enxadas eram preparadas para o seu ofício, os sons das suas
batidas contra alguma pedra no terreiro era o sinal que os mais atrasados naquele início de
jornada precisavam tornar seus movimentos mais ágeis. O sol em um ponto mais alto do céu
sentenciava: nenhum minuto a mais poderia ser perdido. Chapéus à cabeça, cabaças com água
penduradas por cordas, assobios marcando o ritmo das passadas. Enfim, a marcha. Os pés dos
caminhantes fugindo das irregularidades do trajeto marcavam o chão. Um dia aparentemente
comum naquele início dos anos 1950 no Sítio Picada, município de Lavras da Mangabeira,
Estado do Ceará.
Entretanto, entre uma canção e outra, em meio aos preparativos para a peleja
diária, o rádio anunciara que existia uma quantidade razoável de terras agricultáveis expostas
à venda no município de Assaré, localizado mais ao sul cearense. Aquela notícia ocupou
consideravelmente os pensamentos do agricultor e pai de família Camilo Duarte.
O senhor Camilo decidiu, depois de não poucas ponderações, visitar Assaré e
avaliar as condições da propriedade anunciada. O preço informado pelo vendedor era
sobremaneira atraente para aquela quantidade de terras, não obstante as grandes dificuldades
que os compradores teriam para estabelecer uma produtividade satisfatória naquelas paragens.
O retorno à Lavras da Mangabeira serviu para que Camilo torna-se público o desejo de vender
suas antigas terras naquele município. Propostas não demoraram a aparecer e a venda foi
efetuada talvez antes do previsto por ele. O dinheiro conseguido com a venda da propriedade
familiar em Lavras da Mangabeira foi suficiente para a aquisição das terras anteriormente
visitadas em Assaré. Para aquela família era de grande importância a conquista de maiores
faixas de terra agricultáveis para o sustento de todos os seus membros20.
20
Relato construído a partir das entrevistas concedidas por Luiz de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Luiz Camilo ou Luizinho Camilo, residente e domiciliado no Bairro Canto
Alegre, na cidade de Assaré (março de 2010, junho e julho de 2012) e por Joaquim de Holanda Duarte,
agricultor aposentado, 64 anos de idade, conhecido como Joaquim Camilo, residente e domiciliado no Sítio
Cacimba do Mel, município de Assaré (abril e maio de 2010).
75
21
De acordo com o Barão de Studart (2012, p. 345), o Barão de Aquiraz era um “Chefe político de grande
reconhecimento e merecido prestígio (sic) foi o director do partido chamado na Província de miúdo, e quando se
consumou a queda do throno recolheu-se à vida privada, vivendo para seus negócios e para a família, que com
razão o venerava”.
76
De fato, a paisagem não era das mais aprazíveis aos olhos. As estatísticas dos que
permaneciam na localidade depois de visitá-la não revelavam percentuais elevados, conforme
mencionado anteriormente. Braúnas, juazeiros, oiticicas cujas idades os grossos troncos
denunciavam ganhavam destaque em face da vegetação densa. A presença constante “da
cobra, da onça, do guaxinim” percebida pelos sons característicos que cada animal produz
indicava que o medo da morte era companheiro e vagava diuturnamente nos mesmos trajetos
de homens, mulheres e crianças. As casas eram raras e distantes umas das outras, apenas três
ou quatro para trinta ou quarenta habitantes em uma vasta extensão de terras. Fazia-se
necessário a construção de barracões para os trabalhadores que chegavam com a missão de
desbravar as matas insólitas daquelas paragens. No geral, aquelas rústicas habitações eram
feitas a partir do cruzamento de varas, dispostas de maneira quase perpendicular, amarradas
umas às outras com cipós, formando espaços quadriláteros que deveriam ser preenchidos com
folhas de oiticica as quais serviam também para a cobertura dos barracões. Moradia de tijolos
e telhas somente para as mulheres responsáveis pelo preparo do alimento diário. Dormia-se
em redes.
Os labores diários exigiam que os trabalhadores estivessem despertos antes do
raiar do sol. O difícil trabalho de derrubadas das matas era feito essencialmente com o uso de
machados cujo som dos ferimentos contra os troncos podia ser ouvido a longas distâncias.
Empregava-se mais tempo partindo as velhas árvores em toras menores e providenciando as
remoções do que nas suas derrubadas. E assim, passavam-se os dias e as paisagens ganhavam
novas cores com a remoção das camadas vegetais de mais longa duração que protegiam o solo
do Infincado.
Ao final da tarde, aqueles trabalhadores deveriam ainda enfrentar veredas
compridas e sinuosas que ligavam a população local às fontes de água boa para o consumo
cotidiano. Os últimos poços de água que restavam do rio intermitente de toda
circunvizinhança serviam ainda para o banho que abrandava momentaneamente o calor
intenso dos corpos exaustos. Não é difícil aceitar que o percurso de volta ao acampamento
devolvia àqueles homens parte da sujeira e calor ainda havia pouco amenizados. Armazenada
a água para as necessidades do dia seguinte, chegava a hora da refeição à base de produtos
derivados de milho, alguma carne de animais caçados nas proximidades e rapadura vinda das
feiras semanais na sede do município.
As noites, é preciso que se diga, não eram reservadas apenas ao descanso. O barro
de terrenos nas proximidades era adequado à fabricação de telhas e tijolos essenciais ao
surgimento de novas habitações mais confortáveis e seguras. Não demorou muito a surgir
77
22
Relato construído a partir das entrevistas concedidas por Luiz de Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Luiz Camilo ou Luizinho Camilo, residente e domiciliado no Bairro Canto
Alegre, na cidade de Assaré (março de 2010, junho e julho de 2012), por Joaquim de Holanda Duarte, agricultor
aposentado, 64 anos de idade, conhecido como Joaquim Camilo, residente e domiciliado no Sítio Cacimba do
Mel, município de Assaré (abril e maio de 2010) e por José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos
de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré.
Entrevistas concedidas em dezembro de 2011, janeiro e outubro de 2012.
78
estão sujeitos. Assim, a exuberância das matas do Infincado e sua baixa densidade
demográfica são interpretadas pelos Penitentes como obstáculos à mobilidade exigida pelos
seus rituais.
De fato, pensando nas falas dos Penitentes pode ser observado que eles referem-se
ao Infincado inicialmente como um dado da natureza no qual o esforço humano através do
trabalho dá novas características. Finalmente, suas narrativas interpretam o espaço onde
atuam, transformando paisagens naturais ou sociais, em paisagens construídas pelos sentidos.
Para o professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (2008a, p. 113), “A apreensão da
natureza, do mundo se faz através daquilo que parece, à primeira vista, ser também um dado
da natureza em nós, nossos sentidos”. Sob essa perspectiva, os Penitentes expressam nas suas
narrativas como o gosto dos alimentos sugere os tempos escassos do Infincado naqueles anos,
como o odor de alguns animais alertava-os dos perigos que rondavam seus caminhos – é
comum ouvir-lhes falar do “cheiro da onça” –, como os sons também podiam anunciar os
perigos ou contribuir para a localização de um companheiro que trabalhava fora do alcance do
campo visual dos demais, como o toque específico de alguns vegetais nos percursos tornavam
o caminho algo familiar, como a visão indicava os vazios demográficos na região que
dificultavam a execução dos seus rituais. Nesse sentido, para Yi-Fu Tuan (1983) os sentidos
proporcionam um mundo espacialmente organizado.
Para Deca Pinheiro, Luizinho Camilo e Joaquim Camilo os rituais dos penitentes
exigem espaços para seus movimentos. Por vezes, é sugerido que integrar uma irmandade é
“andar” com um determinado decurião. Deca Pinheiro relata da seguinte maneira seu ingresso
na primeira irmandade de penitentes da qual fez parte:
Quando eu entrei para a irmandade eu tava com doze anos de idade. Mas é assim,
porque meu pai era penitente. Aí meu pai, ele já adoentado não podia mais assumir o
cargo dele porque não podia mais viajar. Aí ele tinha vontade de... prá não se acabar
a irmandade, sabe? ‘Cê sabe! Hoje em dia se deixar o véio... o mais véio morrer e os
fio não acompanhar... quer dizer que se acaba, né? Aí eu sempre tinha tido aquela
vontade de andar na turma dele, do meu tio, mas eu com medo de meu pai não achar
bom porque de primeiro os pais não queria, nem quem soubesse quem era da famía
quem era um penitente. Aí eu comecei a assistir Terço, porque sabe a pessoa quando
tem vontade numa coisa, ele todo tempo acompanha aquele que tem vontade, né? Aí
Mané Carlo começou a tirar Terço e eu comecei a andar mais ele e fui me
agradando... Aí quando eu tava na base de onze anos aí Mané Carlo foi e disse: “ –
Meu fio, tu tem vontade de ser penitente? Porque tu não deixa o meu pé, todo tempo
onde eu tô tu tá mais eu”. “ – Mané Carlo, eu tenho muita vontade mas tenho medo
de papai brigar”. “ – Não. Briga não meu fio”. Eu entrei mais ele. Passei um ano.
Com uns treze ano [idade do entrevistado] foi que meu pai veio saber que eu era
penitente. Andava assim mais eles, sabe. Eu recebi o meu equipamento com
quatorze ano. Quando deu quatorze ano aí Tio Manuel Carlo disse: “ – Agora cê vai
receber sua opa, vai receber seu cacho e vai cumprir sua missão”. Aí assim eu fiquei;
mas sem pai saber. Andei, andei, andei, aí quando foi um tempo, assim mais um
outro ano a frente, aí nós fomos tirar umas esmola, um jejum, na Semana Santa – aí
79
o cabra quando vai tirar as esmolas o cabra [penitente] sai à boca do noite e chega
quatro hora da madrugada [risos] – aí eu sei que pai sentiu falta, sabe, deu, e
começou sentindo falta, toda noite sentindo falta, nas três ele disse assim: “ – José
onde é que tu tá que tu só chega à boca da noite?” “ – Não pai nós tava lá pelo
Arrojado, pelas festinhas, nos toquezim, nóis toca violão e só posso chegar essa
hora”. Aí ele disse: “ – Não.” Aí foi melhor eu dizer: “ – Não. Pai, eu tô indo mais
Tio Manel Carlo, lá na irmandade de Tio Manel Carlo” . Aí ele disse: “ – Tá meu
fio?” “ – Tô”. Ele disse: “ – Tudo bem. Porque eu não aguento mais. Eu já não falei
pra vocêis porque vocêis não tem idade. É muito novo, né?” Eu disse: “ – Pois é.
Mas já tô com quatorze ano. Ele já me entregou todo o equipamento, agora eu...
[riso] eu vou cumprir minha missão agora” (Relato de José Pinheiro de Morais,
agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011).
23
Esse cordão de cor branca está associado à memória e devoção a São Francisco de Assis. Assim, manifestou a
sua interpretação acerca do referido cordão, com seus sete nós, um dos “Ave de Jesus” entrevistado pela
socióloga Anna Christina Farias de Carvalho (2011, p. 93-94): “Cada nó representa um dos sete sacramentos da
divina eucaristia”. Dessa forma, para a autora, “Em suas representações de fé e da história religiosa, [...], os
penitentes sistematizam crenças que se afirmam enquanto aspectos identitários do grupo, exteriorizados através
de um código simbólico inteligível apenas naquele campo religioso”.
81
vista; Finalmente, à mão, o “cacho” da disciplina. O decurião além de portar a sua disciplina
levava sempre consigo uma cruz de madeira capaz de ser erguida e transportada apenas com
uma das mãos. No caso dos Penitentes do Genezaré suas opas são de cor azul e as cruzes
nelas costuradas são da cor branca. De acordo com Deca Pinheiro, a escolha das cores da
atual vestimenta da Irmandade foi procedida pela Secretaria Municipal da Cultura que sugeriu
vínculos entre a Irmandade e a padroeira de Assaré, Nossa Senhora das Dores, associada ao
azul e ao branco. Todos os elementos acima referidos podem ser considerados como
instrumentos para o enquadramento psicológico no seu duplo potencial de evocar a
ficcionalização e não permitir que a ficção seja assim percebida por seus praticantes
(VALERI, 1994).
Ao aproximarem-se das residências, os penitentes paravam e o decurião
continuava a caminhar até uma distância que pudesse ser identificado visualmente pelo dono
das casas quando as suas portas fossem abertas. As esmolas recolhidas eram geralmente
compostas por gêneros alimentícios produzidos na localidade: milho, arroz, feijão, jerimum,
melancias. Os alimentos arrecadados serviriam para o “jejum” da Sexta-Feira da Paixão, ou
seja, naquele dia de grande importância no calendário litúrgico cristão, os penitentes faziam
suas refeições a partir das doações das famílias visitadas. Era possível, também, que as
esmolas recebidas fossem repassadas para alguns que, com suas despensas vazias, nada
podiam ofertar aos penitentes, conforme relato do Sr. Luizinho Camilo.
É o mesmo senhor Luizinho Camilo quem narra como a irmandade de penitentes
liderada por seu pai Camilo Duarte atuava no momento de pedir esmolas:
Quando a gente chegava de noite nas casas para tirar as esmolas, o decurião se
aproximava e falava com o proprietário. A gente ficava com o rosto coberto, só o
decurião não cobria, e até quando chamavam a gente prá tirar um Terço se algum de
nóis quisesse água avisava ao decurião que pedia ao dono da casa. Às veiz ofereciam
janta quando a irmandade ia tirar um Terço: saía todo mundo da sala prá que a gente
pudesse tirar o barrete e jantar, mas o dono da casa às veiz ficava. (Relato de Luiz de
Holanda Duarte, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Luiz
Camilo ou Luizinho Camilo, residente e domiciliado no Bairro Canto Alegre, na
cidade de Assaré Entrevista concedida em março de 2010).
24
Refletindo sobre a categoria “santo popular”, Anna Christina Farias de Carvalho (2011, p. 179) defende que a
santificação popular depende substancialmente de “[...] algumas condições e virtudes que determinam a elevação
de um agente à esta condição”. Tais condições e virtudes são escolhidas pelos devotos a partir de construções
sócio-históricas relacionadas aos indivíduos e espaços das suas atuações.
83
serão solucionados. Nesse sentido, a fala de Deca Pinheiro é esclarecedora e aponta para
outras questões até aqui não exploradas nesta narrativa:
Na primeira parte dessa fala de Deca Pinheiro, ele apresenta o problema, ou seja, a
probabilidade de todo o trabalho do agricultor ter sido em vão e seus investimentos
financeiros no trato e plantio da roça não obterem retorno. O fato de ter acabado de chegar de
uma grande cidade naquele ano e haver adquirido rapidamente um terreno, sugere que ele
poderia já não dispor de tantos recursos financeiros para um ano inteiro de espera pela nova
quadra chuvosa e, ainda, que ele não possuía um estoque de alimentos suficiente para o
mesmo período.
A solução vislumbrada pela esposa do agricultor naquele tempo de chuvas
escassas foi apegar-se ao santo de sua devoção. Ela amava a sua terra e desejava não
abandoná-la. Poderia imaginar que os prejuízos com a lavoura serviriam de estímulo para o
seu marido voltar à cidade, visto que “ele não tinha muito amor à roça”. Sendo atendida no
seu clamor, a esposa amorosa convidaria os penitentes a rezarem um Terço no caminho da
roça. Dessa forma, ficam claras a necessidade e a promessa expostas ao santo de devoção.
O desenrolar do relato indica que:
Aí foi indo, foi indo... chegou a chuva, o legume segurou e ela foi e morreu. Antes
de... de... Depois bem com um ano ou mais ou meno – ela não rezou o Terço. Aí
foi... foi... ela morreu [...] Ele foi e mandou tirar o Terço na casa dele. Ela antes de
84
morrer tinha essa promessa a pagar, mas ela foi e faleceu e o marido mandou tirar o
Terço. aí pensou que o Terço... que a promessa tava paga. Ai demorou, demorou,
demorou. Quando foi na base de uns dois meis, ele comprando fumo numa lagoa
aqui em baxo [apontando com a mão esquerda para o lado norte da sua residência],
ela [a falecida] apareceu a vizinha [de quem o viúvo comprava o fumo] pedindo que
o Terço, a promessa não tinha sido valida, não tava paga, porque o Terço era no
camin da roça (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).
Aí nóis chegamo de tardizinha. Vicente Cazeca – inda foi Vicente Cazeca nesse
tempo – era o decurião. Aí nóis chegamo e o povo se reuniu todo, ajeitaro o santo lá
na mesa. Ai Vicente Cazeca [ininteligível] assim perto de nóis foi tirar... começou a
fazer o nome do pai e a vizinha [a quem a alma da falecida havia aparecido] caiu no
chão. Aí pegaro, butaro numa rede, aí ela chegou [a falecida] e baxou nela [vizinha]
e ela [vizinha] foi e desmaiou, né? Aí ela [vizinha] ficou dentro de uma rede e nóis
tirando o Terço e ela [vizinha] como morta, sem tomar forgo, nem se bulia nem
nada. O marido dela [vizinha] aperriado, pensando que ela [vizinha] tinha era
morrido – era o marido dela [vizinha]. Aí quando nóis terminamo de tirar o Terço aí
ela [vizinha] se levantou-se – saiu de dentro da rede. Ela foi, a merma mulher que
tava deitada pediu pra nóis cantar o bendito de São Miguel treis veiz ao redor da
casa, sabe? Cantemo o bendito, arrudiemo a casa treis veiz aí a promessa foi paga.
(Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade,
conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município
de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos meus).
Os três trechos transcritos acima, integrantes dos relatos de Deca Pinheiro, são
bastante significativos por diversos motivos, inclusive naquilo em que faz referência aos
elementos presentes em uma promessa, a saber: o reconhecimento que algumas situações
independem da capacidade humana de resolução, a crença que um santo de devoção pode
interferir nas adversidades do cotidiano, a certeza que os santos de devoção são suscetíveis a
atender os clamores dos seus devotos mediante promessas e a convicção que a promessa
somente será considerada paga se todos os critérios proclamados no momento do acordo com
o santo forem, ao menos inicialmente, cumpridos na sua integralidade.
85
Interessa, porém, nesse ponto perceber ainda aquilo que anteriormente havia sido
anunciado, ou seja, os penitentes mantêm vínculo com as populações das comunidades onde
atuam pelas promessas feitas por terceiros na certeza da disponibilidade dos penitentes em
cumpri-las. Por outro lado, os espaços construídos pela mobilidade dos penitentes dependem
do teor das promessas feitas. Assim, “tiraram o Terço na residência” conforme a exigência do
viúvo, retornaram para cumprir a promessa de acordo com o desejo da falecida, “no caminho
da roça”, finalmente, deram três voltas ao redor da casa cantando o bendito de São Miguel 25 –
exigência não contida no acordo entre a prometente e seu santo de devoção.
Dito isto, é fácil admitir que o crescimento populacional do Infincado aponta
outras possibilidades diante das dificuldades iniciais enfrentadas pelos penitentes para a
execução dos seus rituais:
Quando nóis chegamo aqui [1956] já tinha penitente [referência à família Duarte que
havia chegado em 1951]. Pouco. Não fazia muita saída porque o povo era pouco
demais e espaiado. Aí [os penitentes] achavam ruim – gente não tinha aqui. Era
muito pouco gente. Era somente as casinhas ali em baxo [apontando com a mão
esquerda para o lado sul da sua residência], as nossa ali [apontando com a mão
esquerda para o lado norte da sua residência]. Nóis moremo em casa aqui
[apontando com a mão esquerda para o lado norte da sua residência]. Tinha uma
base de umas trinta pessoa mais ou meno. Trinta a quarenta pessoa mais ou meno.
Depois foi vindo gente de Várzea Alegre, de São Francisco, de Lavras e foi
chegando gente e foro amuntuando o povo aqui, aí fizero um grupozim de gente
mais ou meno. Aí ficou melhó prá nóis porque tinha para onde a gente andar, para
onde a gente sair (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos
de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).
.
Mais uma vez o tema da mobilidade e sua relação com o espaço ocupa dimensão
considerável nas narrativas de Deca Pinheiro que, por sua vez, estão de acordo com o
pensamento de Luizinho Camilo.
A chegada de novas levas populacionais, certamente, permitiu maior mobilidade
dos penitentes, mas não garantiu que suas intervenções fossem solicitadas em quantidade que
pudesse estar à altura daquelas ocorridas no município de Lavras da Mangabeira. As
comparações, portanto, até hoje são inevitáveis:
25
Estudando a “trajetória histórica da iconografia e do culto ao Arcanjo Miguel e às Almas do Purgatório”, a
professora Adalgisa Arantes Campos (2004) confirma uma estreita ligação inicial entre as imagens de São
Miguel e as almas de cristãos no seu pós-morte. Caberia àquele arcanjo pesar a cada uma das referidas almas
nessa relação de proximidade. Com o avançar dos anos, a iconografia do santo passa por transformações e a
balança e almas somem das imagens e São Miguel ganha ares de guerreiro. Contudo, a antiga veneração a São
Miguel e às Almas do Purgatório permanece em voga e unidas ao longo dos anos pela atuação de irmandades
que reúnem a mesma devoção. Penso ser bastante significativo que para cumprir a promessa feita pela falecida,
de acordo com o relato de Deca Pinheiro, o bendito de São Miguel precisou ser entoado logo após o Terço das
Almas, exigência não contida inicialmente no acordo entre a prometente e o arcanjo, mas que reflete a crença
dos Penitentes nessa relação entre o Santo e as almas por ele pesadas.
86
Lá aonde nóis tava, no Arrojado era quase tudo de penitente, era que nem em Várzea
Alegre – a terra que dá mais penitente é Várzea Alegre. O povo acreditava demais,
nóis tirava muito Terço. Era difícil passar uma semana prá nóis não tirar treis ou
quatro Terço por semana porque todo mundo achava bonito, achava bom, apreciava.
Aqui não, tanto fazia o povo ver um penitente como ver uma pessoa acolá. Ficava
dentro da igreja aí quando terminava o Terço que nóis começava a cantar, aí pronto:
ficava só nóis dentro da igreja. O povo não dá valor. Prá nóis tirar Terço aqui... há
um Terço quando eu faço uma promessa ou quando eu falo: “ – Fulano, vamo tirar
um Terço assim, prum falecido”. Num cruzeiro, numa cruz que tiver, mas pra
convite não (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).
Talvez possa ser sugerido que as narrativas de Deca Pinheiro sejam contraditórias.
Anteriormente foi transcrito trecho onde ele menciona pagar a promessa que uma devota não
conseguiu cumprir em vida e na citação imediatamente acima ele reclama da completa
ausência de convites da população local para a irmandade tirar Terços. Penso que o problema
da aparente contradição pode ser resolvido se for percebido as distintas temporalidades que
ele emprega na construção dos seus relatos. Em primeiro lugar, Deca Pinheiro fala da época
em que residia no sítio Arrojado, em Lavras da Mangabeira, onde a frequência dos Terços
mediante convite era, em média, segundo ele, de três vezes por semana. Em um segundo
momento, ele menciona os dias nos quais o Infincado já havia experimentado um relativo
crescimento populacional e já possuía até mesmo igreja (essa fase será discutida no próximo
tópico). Finalmente, Deca Pinheiro realiza um salto para os dias atuais nos quais os convites
para Terço praticamente desapareceram. Portanto, a promessa paga em nome da falecida e
acima mencionada pode ser encaixada em um dos lapsos presentes nesse último trecho
transcrito.
De qualquer forma, penso serem bastante significativas as suas impressões por
dois motivos, quer seja pela construção de lugares de memória com ênfase não apenas nos
aspectos considerados dignos de elogios, quer seja pela necessidade que os participantes de
um ritual têm de concordar, em certo sentido, com o significado do que está sendo executado
(CONNERTON, 1999, p. 51). Ora, esta última afirmação considera que a assistência dos
rituais dos penitentes não é uma parte alheia ao que presenciam. Dessa forma, para o narrador
aqueles que abandonam a igreja durante os rituais dos penitentes sugerem que talvez não
concordam com aquelas práticas e a presença dos seus praticantes naquele espaço sagrado.
Os obstáculos à mobilidade que os penitentes encontraram no Infincado sugerem
ainda que algumas experiências que o “ter para onde andar” permitiam estariam
comprometidas. Andando o penitente relacionava-se com a comunidade e vivenciava as
87
manifestações do sagrado. Chamo à atenção para mais um relato de Deca Pinheiro que traz
um evento ocorrido nos seus tempos de penitente em Lavras da Mangabeira.
Lá foi o seguinte: lá era um morro muito grande, que nem esse morro que tem aqui
na Baxa Queimada [localidade entre a sede do município de Assaré e o Genezaré], lá
tinha os menino e era um baxão. Lá era um serrote, lá tinha uns menino que foram
tirar... caçar umas maravaia [varetas utilizadas como lenha]... era dois meninozim
assim [estende a mão a uma altura de pouco mais de um metro do chão]. Aí viram
um vultuzim, vulto de uma mulher. Aí quando chegaram em casa: “ – Pai, acolá tem
uma mulher debaxo de um pé... debaxo de uma moita, na sombra de uma moita”. Aí
o véio disse: “ – Conversa é essa?” “ – É pai!” “ – Pois vamo lá me mostrar”. E foro
e nada, né? Aí ficou as criança vendo. Aí o pai deles, o pai das criança foi e chamou
o finado Manel Carlos [decurião de penitentes e tio do entrevistado] para nóis ir tirar
esse Terço lá. Aí o vulto pelo sinal que ele dizia era uma santa, sabe? O jeito da
roupa tudim... era uma santa. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011).
26
Em O Sagrado e o Profano, Mircea Eliade (2010) sugere que existem revelações mais amplas e repentinas do
sagrado (hierofanias) e a possibilidade do próprio Deus (ou deuses) colocarem-se diante dos homens revelando
suas características e desígnios. Outra forma do sagrado revelar-se na história é através de intervenções
salvadoras em favor dos seus protegidos. Assim, o termo epifania (do grego epiphaino) pode adquirir um uso
militar (“o aparecimento repentino de um inimigo”) ou a intervenção salvadora do Deus cristão através da
aparição do Seu filho. Na liturgia católica a epifania é também uma festa comemorado aos 06 de janeiro, data
considerada como da visitação dos “Reis Magos” ao menino Jesus (EPIFANIA. In: Dicionário Teológico
Enciclopédico. São Paulo: Loyola, 2003. p. 235-236).
88
Em relação aos Penitentes do Genezaré, pode ser notado que em alguns momentos
para eles a distinção entre sagrado e profano é bastante fluida ou mesmo insustentável como é
comum entre grupos religiosos que celebram as festas de uma vertente do catolicismo
genericamente denominado “popular”. Em outros momentos, acentua-se a percepção das
noções de puro e de impuro quando em alguns momentos evitam frequentar bares e ambientes
89
Tinha... o serrote era muito alto e o véio brocou uma vareda, arrancou umas pedras
até chegar em cima. Quando chegou em cima ele fez um campo, alimpou, sentou
uma cruz27 onde tinha um pé-de-pau mocó dessa grossurinha assim mais ou menos
[com as duas mãos apontado as pontas dos dedos de uma mão para outras sugere
uma circunferência de aproximadamente trinta centímetros de diâmetro] – uma
moitinha bonita, aí o véio cortou o pé-de-pau mocó prá poder assentar uma cruz. A
santa pediu aos menino que dissesse o pai deles que não era prá ter cortado o
pezinho-de-pau que era a sombra dela, sabe? Aí o véio foi e enfiou, cavou o buraco
e enfiou... pediu a ele para cavar um buraquinho e enfiar o pé-de-pau de novo. Aí o
véio furou o buraco e pegou o pé-de-pau mocó e ele ficou lá. Pronto. Ele nunca caiu
e foi... Nóis chegava e tirava o Terço. O cabra tirava o Terço doze hora do dia –
Terço, missa doze hora do dia. O cabra se ajoelhava na terra e não sentia terra
quente, só aquele ventim frio, sabe? (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011).
.
27
Lembro nesse instante das constatações de Riolando Azzi (1978) mencionadas em outras páginas dste
trabalho..
90
Nóis andava de péis, porque animal aqui era difícil, as estrada era tudo dentro das
roça – era mei difícil andar aqui a cavalo. Era tudo de péis. Nóis tirava daqui pro
São Domingo, do Limoeiro prá riba bem treis légua [município de Antonina do
Norte que faz fronteira com o município de Assaré a oeste]. Nóis ia de péis. Saia
daqui por uma hora dessa [pouco depois das dezesseis horas] quando era sete da
noite nóis tava lá. Saia de lá quando terminava o Terço, negoço de oito hora da noite
prá nove. Quando terminava o Terço metia o pé na estrada de lá pra cá, quando o dia
amanhecia tava em casa. Sem ter estrada, por vareda e nos escuro. E assim... ia aqui
pros Palácio [estendendo a mão direita para o lado do nascente], pro lado de Santa
Maria [apontando para o lado sul da sua residência], em cima da Serra dos Palácio
[referindo-se à propriedade de uma família nas circunvizinhanças do Genezaré].
Nesse tempo aqui as casa era difícil, era longe uma das otra. Tinha umas
barraquinha aqui no beiço do rio [Rio da Barriguda, único que passa nas
proximidades da Vila do Genezaré]. No Genezaré não tinha casa de jeito nenhum.
Tinha uma casa no Sítio Currais, tinha otra lá no Charcão [sítio]. Sendo uma ribeira
91
que nem era a nossa de muita casa lá em baxo no Cedro28, na ribeira, o cabra
[penitente] não andava pelas estrada, era só dentro dos mato. (Relato de José
Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca
Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista
concedida em dezembro de 2011).
Quando era prá ser um Terço, o Manel Carlo [decurião] dizia: “ – Ô meu fio! Tal dia
tem um Terço”. Ele... Nóis se reunisse... se fosse numa casa ali mei distante nóis se
reunia tudim ali de tardizinha e saía e ele saía com nóis trocendo camin prá não
passar de frente às casas, por dentro dos mato, saía na estrada e assim ia seguindo.
Quando era pra Terço da Coresma29, já tinha o ponto certo: era um tabuleiro grande
que tinha, numa casa véia que tinha caído, era perto da casa dele [decurião]. Aí ele
planiou, tirou os torrão tudim, ajeitou, aí butava o cruzeiro lá. Levava uma mezinha
aí butava o cruzero lá encostado na mesa. Aí nosso ponto era assim: duma grota que
tinha assim como um fumo branco. Aí ele [decurião] disse: “ – Bom. O ponto de
vocêis é aquele ali. Vão prá lá. Aí quando for prá começar o Terço eu vem aqui e
28
O sítio Arrojado a qual faz referência Deca Pinheiro, não obstante distar apenas seis quilômetros do município
do Cedro, é pertencente ao município de Lavras da Mangabeira, de onde decorre a referência a Cedro.
29
Segundo as falas de Deca Pinheiro, Luizinho Camilo e Joaquim Camilo os rituais das irmandades de
penitentes sustentam vínculos muito estreitos com o período da Quaresma. Iniciado na denominada Quarta-Feira
de Cinzas, primeiro dia após a terça-feira “gorda” do Carnaval, “[...] esses 40 dias de penitência e de jejum que,
desde sua difusão no século IV, preparam e precedem a festa da Páscoa, estendendo-se depois ao Natal e ao
Pentecostes”, na verdade, período que atinge o seu ponto mais alto com as comemorações da Paixão, morte e
ressurreição de Jesus (LE GOFF; TRUONG, 2011. p. 58).
92
levo vocêis”. Ai começava... um ia prá lá... lá de minha casa lá pro ponto era pertim:
era como daqui ali naquela casa ali [apontando para uma casa ao sul da sua
residência]. Ai eu ia logo prá lá. Seis hora eu ia logo prá lá pro ponto. Aí começava
a encostar. Um começava a assobiar, um dava um assobio no canto 30, outro dava
noutro, outro dava noutro, outro ia assobiando aí ia se ajuntando tudim. (Relato de
José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como
Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré.
Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos meus).
A vegetação associada à escuridão das noites sem lua era, portanto, outro
elemento constituinte do espaço adequado para a reunião dos penitentes antes dos seus rituais.
Era preciso, como foi dito, que um sinal sonoro fosse produzido indicando onde cada um
estava por entre as árvores que serviam de abrigo.
Com frequência aparece nas narrativas dos penitentes que nem ao menos os
familiares sabiam quem daqueles que habitavam sob o mesmo teto fazia parte de alguma
irmandade. Os penitentes afirmam que saiam de casa com todo o “equipamento” escondido
dentro de um saco que não permitia a identificação do seu conteúdo e somente vestiam sua
indumentária para os rituais quando distante de olhos curiosos. Interrogando Deca Pinheiro
sobre como as roupas eram fabricadas sendo que nem ao menos os familiares sabiam que
tinham penitentes na sua família, ele me respondeu: “Tinha uma costureira que fazia prá nóis.
Ela sabia”.
Ainda sobre esse tema, as narrativas dos penitentes sugerem que manter distância
dos terreiros das residências era uma autoimposição dos penitentes com vistas à preservação
da identidade. Eles andavam
Só nas vareda mermo. Metia no rumo da mata e ia simbora. Não podia andar pelas
estrada. O cabra ia e pegava a estrada, mas assim, quando chegava bem acolá
[apontando para seu lado direito] nóis já num ia passar na frente dela [casa]. Quando
chegava assim faltando umas deiz braça ou quinze, nóis entrava por dentro dos
mato, arrudiava pelo oitão da casa ou pelo quintal da cozinha saía na estrada de novo
e ia simbora (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de
idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama,
município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011).
30
O mesmo recurso utilizado nesses encontros foi também constatado por Roberto Lima (2006) entre os
penitentes do Médio e Baixo São Francisco, no Estado da Bahia.
93
agoureiro, a pessoa pode adoecer, não se sabe ao certo o que acontecerá. E isto não
devido aos penitentes propriamente, e sim porque além dos vivos, andam também os
mortos na penitência, e ninguém pode se arriscar a ver uma alma penada.
Essa é uma questão ainda não aprofundada nesse trabalho. De qualquer forma,
Deca Pinheiro deixa bastante nítido que, andando, o penitente encontrava espaços que eram
interditados às irmandades.
Dessa forma, provocado por Michel de Certeau (2007) e pelas reflexões do
professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (2008a) o espaço pode ser igualmente
compreendido como o produto de ações, movimentos humanos, que jogam com os lugares,
com a ordem estabelecida “seja ela qual for” (CERTEAU, 2007, p. 201). Na relação entre as
irmandades de penitentes do Genezaré e a população local existiam elementos capazes de
configurar uma determinada estabilidade na coexistência entre os envolvidos, lugares
possíveis e interditados. Portanto, quebrar algumas regras implicaria situações indesejáveis.
Contudo, os Penitentes ao descreverem seus trajetos em peregrinações indicam sua
capacidade de forjar espaços, essas “unidade(s) polivalente(s) de programas conflituais ou de
proximidades contratuais” (CERTEAU, 2007, p. 202).
Se lugar é ordem, “A ordem efetiva das coisas é justamente aquilo que as táticas
“populares” desviam para fins próprios [...]” (CERTEAU, 2007, p. 88). Pelos seus trajetos em
peregrinações integrantes dos seus rituais, os Penitentes do Genezaré
[...] se, de um lado, [...] tornam efetivas algumas somente das possibilidades fixadas
pela ordem construída (vai somente por aqui, mas não por lá), do outro aumenta o
número dos possíveis (por exemplo, criando atalhos ou desvios) e dos interditos (por
exemplo, ele(s) se proíbe(m) de ir por caminhos considerados lícitos ou obrigatórios.
Seleciona portanto. (CERTEAU, 2007, p. 178).
Nesse sentido, o espaço gestado pelas ações dá-se a experiência dos indivíduos,
torna-se experenciável. De acordo, com Yi-Fu Tuan (1983) os espaços evocam sensações, não
estão pois limitados a operações de cálculo e mapeamento, e nesse processo de experenciar os
espaços os indivíduos conhecem e reconstroem realidades a partir das emoções vinculadas a
um ou outro espaço que experienciam. Experiência, portanto, vincula-se a capacidade de
aprender, experienciar “significa atuar sobre o dado e criar a partir dele” (TUAN, 1983, p.
10).
Os Penitentes do Genezaré através das suas falas fazem referência aos vínculos
emocionais que mantêm com os espaços que têm construído ao longo da trajetória de mais de
60 anos desde que a família Duarte chegou ao município de Assaré. A complexidade dos seus
94
Já eram distantes os dias nos quais o Infincado contava com três irmandades de
penitentes quando mantive os primeiros contatos com os Penitentes do Genezaré em 2009.
Muitos dos mais antigos membros daquelas irmandades haviam morrido, como era o caso do
velho Camilo Duarte e seu irmão Quinco Duarte, alguns deixaram a localidade e fixaram
residência em outros municípios do Ceará ou, ainda, em outros Estados da Federação.
Com o número reduzido de penitentes, Joaquim Camilo entra em acordo com os
demais remanescentes da irmandade do sítio Cacimba do Mel e convida Deca Pinheiro, o
último dos autoflagelantes do Sítio Lama ainda residindo na localidade, para liderar aquele
grupo, hoje formado por 08 integrantes, a saber:
Dessa forma, a Irmandade de Nossa Senhora, maneira menos usual pela qual é
conhecida os Penitentes do Genezaré, agrega os últimos penitentes daquela localidade. Os que
contam com mais de 60 anos de idade nasceram no município de Lavras da Mangabeira,
portanto, fazem parte dos grupos migrantes que chegaram à Assaré nos anos 1950. Fortunato,
Luizeto e Antônio de Dôra fazem parte da família Duarte, mas são nascidos no Genezaré,
logo, ingressaram em irmandades de penitentes quando estas já contavam com uma trajetória
de algumas décadas na localidade. Finalmente, Bacum é o único que não confirmou em
nossos primeiros diálogos a presença de penitentes entre os seus familiares. Segundo ele, “Me
lembro dos penitentes mais antigos. Tinha ‘Seu’ Quinco Duarte e ‘Seu’ Camilo Duarte que
vieram prá cá antes mesmo d’eu ter nascido” e confirma da seguinte maneira o despertar do
seu interesse com vistas ao ingresso em irmandades de penitentes: “Eles [os Duarte] e os
penitentes tiravam esmolas e cantavam os benditos. Me lembro deles nesses serviços. Sempre
tive vontade de ser penitente” (Grifos meus).
A população da localidade havia crescido de forma inquestionável e a sua
infraestrutura revelava melhorias consideráveis quando os seus penitentes precisaram adequar
seus rituais aos novos espaços frequentados pela Irmandade. Logicamente, nem todas as
96
interdições impostas aos penitentes tiveram fim com o passar dos anos. De qualquer forma,
algumas residências passaram a ter suas portas abertas para que as irmandades executassem os
seus rituais com a aprovação das famílias que solicitavam dos penitentes o pagamento de
promessas após graças alcançadas ou como forma de intercessão pelos mortos. A narrativa de
Deca Pinheiro confirma algumas informações do Sr. Luizinho Camilo, referidas
anteriormente, e revela quando os espaços internos das residências tornaram-se também um
espaço para os rituais dos penitentes:
Era assim, né? De primeiro os cabra [penitentes] não se avistava com todo mundo,
quando chegava a hora da Semana Santa que era a hora de tirar as esmolas, a gente
ficava aqui naqueles acero de terrero [apontando para a frente da sua residência], a
gente ficava lá, o otro só vinha o decurião. O fregueis [dono da residência] abria a
porta, o cabra [penitente] vinha e pedia as esmolas, ele [dono da residência] e [o
decurião] pegava as esmola, o cabra [decurião] ia e botava lá no saco, lá mesmo a
gente oferecia e de lá mermo a gente ia simbora. Ninguém conhecia. Hoje tá tudo
diferente. Depois... até na turma de Vicente Cazeca era assim também, mas depois
que entrou Chico de Carlo, entrou o Fernando, sendo decurião, aí eles começaro a
querer entrar dentro de casa. O povo chegava: “ – Homi, vamo entrar aqui dentro de
casa. Nóis vamo tirar um Terço dentro de casa, tirar um bendito enquanto eu faço
um café”. Ai a muié fazendo um café ia prá dentro e nóis dentro de casa, cantando
bendito dentro de casa. Aí chegava aquele povão ali que era vizim, era os fio, era o
véio dono da casa. Aí nóis... eles começaro a descobrir o rosto, né? Aí foi mudando,
aí ficou tudo diferente. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado,
76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio
Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos
meus).
Depois que começaro a se acostumar nóis [penitentes] com o povo e o povo com
nóis [risos]. Aí começaro a tirar Terço dentro da casa do povo. Eles chega, o povo
chega e convida a gente prá dentro de casa, aí quando era a hora do café ou da janta,
o cabra [penitente] tira aqueles pano tudim, se senta na mesa ali, aí todo mundo fica
sabendo quem é. Todo mundo tá conhecendo. Pronto! Famia com famia. Primo com
primo. Era tio com tio. E tudo vai mudando . (Relato de José Pinheiro de Morais,
agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011). (Grifos meus).
97
meados dos anos 1960, por sugestão do padre Agamenom de Matos Coelho31, parte do antigo
latifúndio do Barão de Aquiraz, denominado até aqueles dias Infincado, passa a ser chamado
Genezaré.
A construção da capela de São Francisco ocorreu quando era pároco em Assaré o
citado padre Agamenom. De acordo com as falas de Deca Pinheiro e, principalmente, de
Luizinho Camilo, até o fim do ministério daquele vigário as irmandades de penitentes
enfrentaram algumas dificuldades de acesso ao interior dos templos católicos no município.
Por duas vezes, conta o Sr. Luizinho Camilo, a Irmandade de Penitentes da Cacimba do Mel
venceu em peregrinações os mais de 24 km de distância que separa aquela comunidade da
sede do município de Assaré com o objetivo de pagar promessas após graças alcançadas na
Matriz de Nossa Senhora das Dores, padroeira municipal, e precisou enfrentar as resistências
daquele pároco. Somente depois de muita insistência em meio a um diálogo tenso, o padre
ordenou ao sacristão que abrisse as portas do templo aos rituais dos penitentes. As palavras do
decurião Camilo Duarte ao pároco, naquele instante, não foram amenas: “Nóis fizemos nossa
parte. Nóis volta sem pagar a promessa, mas o pecado não é nosso”.
Nesse sentido, Deca Pinheiro sugere que a mudança ocorrida na infraestrutura do
Genezaré que, de fato, permitiu aos seus penitentes um espaço adequado e com restrições de
acesso reduzidas foi a construção do cemitério na localidade.
Não há concordância entre os Penitentes entrevistados quando exatamente a
participação das irmandades em cerimônias do catolicismo oficial tornou-se efetiva. Para
Deca Pinheiro, o padre Manoel Alves Feitosa, após assumir a vaga de vigário deixada pela
morte do padre Agamenom no ano de 1980, formalizou inúmeros convites para que os
penitentes “participassem das missas” que eram celebradas com frequência irregular na capela
que ele mesmo, padre Manoel, havia mandado erigir na Serra dos Carlos, localidade onde
anteriormente residiram penitentes integrantes de uma irmandade que atuava naquelas
paragens.
Para o senhor Luizinho Camilo o papel pioneiro que Deca Pinheiro atribui ao
padre Manoel Feitosa deveria ser aplicado ao padre Vileci Basílio Vidal que foi pároco em
Assaré muito recentemente, no período de outubro de 2008 a agosto de 2010. Contudo, a
discordância dá-se somente em relação a quem abriu prioritariamente as portas do catolicismo
oficial aos penitentes. Para ambos, Deca Pinheiro e Luizinho Camilo, e indistintamente para
31
Pároco de Assaré desde 15 de maio de 1938 (conforme Ata de Posse lavrada no Livro de Tombo nº. II da
Paróquia de Nossa Senhora das Dores, às fls. 26-27) até a sua morte em 1980.
99
todos os Penitentes do Genezaré, o padre Vileci Vidal foi indispensável para que a Irmandade
adquirisse legitimidade entre os moradores da localidade.
Assim narra Deca Pinheiro acerca da atuação do padre Vileci Vidal no processo
que levou ao reconhecimento local dos valores histórico-culturais que as irmandades de
penitentes encerram:
Padre Vileci também começou a explicar, também aí o povo tão tudo chegando. Já
tem movimento aí na igreja, esse mermo movimento pras escolas, pras prova tudim.
Todo dia os aluno vem aqui em casa, viero fazer intrevista aqui comigo, viero
filmar, né? Gravar. Que nem aqueles minino que chegaro treis aqui em casa pras
prova deles. Pediro o livro32 e eu mandei pra tirar as prova dele. (Relato de José
Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca
Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista
concedida em dezembro de 2011).
32
Referência à publicação do projeto Os Penitentes do Genezaré: fé, cotidiano e tradição (OLIVEIRA, 2011).
33
Relato de Vileci Basílio Vidal, pároco de Assaré entre outubro de 2008 e dezembro de 2010. Depoimento
concedido por escrito em maio de 2012.
34
Sobre a Comunidade do Caldeirão e a Ordem dos Penitentes ali instaurada no início do século XX, um dos
livros do professor Régis Lopes traz significativas contribuições (RAMOS, 2011)
100
espaços privados das residências e nesse instante lamentando que a comunidade do Genezaré
não “sabia o que era penitente”? É possível sugerir pelo menos duas respostas para esse
problema. Em primeiro lugar, o reconhecimento anteriormente mencionado não era unânime,
as casas abertas aos penitentes não correspondiam à totalidade das habitações do Genezaré.
Em segundo lugar, para muitas pessoas que compõem as novas gerações da localidade os
penitentes e seus rituais constituíam algo ou verdadeiramente desconhecido, ou imaginado
parcamente mediante as narrativas esporádicas dos mais antigos. Havia, portanto, a
necessidade, segundo os Penitentes, de alguém para assumir o papel educativo que foi
exercido pelo padre Vileci Vidal durante o período no qual esteve à frente da Paróquia de
Nossa Senhora das Dores em Assaré.
Para Deca Pinheiro, o conhecimento que o padre Vileci possui acerca das
irmandades de penitentes está ligado à sua naturalidade, afinal “... esse aí [padre Vileci] você
sabe como é também, é da região do Cariri, terra de penitente” (Grifo meu). Anteriormente, o
decurião dos Penitentes do Genezaré igualmente indicou que com a “explicação” do padre
Vileci outras entidades começaram a sentir interesse pela história de vida dos Penitentes, tal é
o caso da Escola de Educação Infantil e Ensino Fundamental Joaquim Neco da Costa, do
Genezaré, que tornou as trajetórias individuais dos Penitentes e coletivas das irmandades um
conteúdo didático cobrado em avaliações de desempenho discente daquele estabelecimento de
ensino. Deca Pinheiro afirma ter fornecido inclusive material para as pesquisas dos alunos.
Com isso, a residência do decurião recebe novos visitantes de forma mais frequente e a sua
irmandade é convidada a comparecer em eventos naquela escola. Entretanto, a comunidade
escolar recebe os rituais dos Penitentes do Genezaré nas suas adequações ao ambiente
socioeducativo com alguns benditos e nenhum sangue.
A proximidade dos Penitentes do Genezaré com o catolicismo oficial no
município de Assaré durante o período em que foi pároco naquele município o padre Vileci é
confirmada pelo sacerdote da seguinte maneira:
De fato, a narrativa do pároco vem confirmar o que já haviam dito alguns dos
Penitentes: o padre Vileci possui algum conhecimento sobre os penitentes e seus rituais e com
sua liderança a Irmandade pode participar de eventos organizados pelo catolicismo oficial na
comunidade.
O momento referido, porém, não foi o único no qual o padre Vileci Vidal
organizou eventos cuja participação dos Penitentes foi requisitada. Ainda hoje existe na
propriedade Infincado, a antiga casa-grande sede da fazenda do Barão de Aquiraz, construída
em meados do século XIX, local onde desde ano de 2009 o terreiro é ocupado em um dia do
mês de novembro para a comemoração do Dia da Consciência Negra com uma missa dita pelo
mesmo padre Vileci, ainda que não esteja mais à frente da paróquia de Nossa Senhora das
Dores de Assaré. Na celebração ocorrem apresentações de grupos culturais de diversos
municípios caririenses e os Penitentes do Genezaré são convidados na qualidade de
representantes da localidade juntamente com os discentes e docentes da Escola de Educação
Infantil e Ensino Fundamental Joaquim Neco da Costa do Genezaré35.
Contudo, a participação dos Penitentes no evento, segundo Deca Pinheiro, tem
sido restrita ao seu comparecimento:
35
“Projeto de memória” inscrito nas exigências do presente, conforme, análise de Jöel Candau (2011)
mencionada páginas adiante.
102
Que nem agora dia de sábado [no final de 2011], na Crisma, eu até reclamei com
eles que era um dia próprio prá vim. Nóis somo representante da comunidade do
Genezaré, nóis somo obrigado a tá... o que houver dentro do Genezaré nóis estamos
representando o povo. Mas eles num viero nenhum, aí eu fui obrigado a reclamar a
eles... “ – É porque nóis num quer se apresentar de dia, porque nóis acha ruim”
[Responderam seus penitentes à reclamação]. (Relato de José Pinheiro de Morais,
agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro
de 2011). (Grifos meus).
Hoje eles [os demais Penitentes da Irmandade] não anda de dia, anda eu porque sou
decurião. Toda missa eu tô ali encostado no padre. Já tem gente que fala porque eu
ando com minha cruz prá riba e prá baxo. “ – Não. É a minha devoção!” Quem
quiser ser do jeito que eu sou, bem. Quem não quiser. Mas eu tô. Toda missa eu tô
com o meu cachozim, com meu cruzerim na mão. E graças a Deus inté agora não
recebi reclamação de padre nem nada. Eu acho que até o bispo (D. Fernando Panico,
bispo da diocese do Crato) achou muito interessante, me deu um grande apoio, disse
que eu podia assumir minha missão num caminho certo que nem eu tava. “ – Pois é,
bispo, eu tô nessa fé”. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio
Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em dezembro de 2011). (Grifos
meus).
103
36
Nascido no Sítio Serra de Santana localizada a 18 km da sede do município de Assaré aos 05 de março de
1909 e falecido aos 08 de julho de 2002 na sua cidade natal. O epíteto Patativa foi uma outorga conferida a
Antônio pelo cratense José Carvalho de Brito em alusão a um pássaro típico do Cariri cearense de canto forte e
melódico, “do Assaré” diferenciava aquele Patativa de outros tantos poetas com o mesmo apelido que surgiram
naqueles dias em distintos pontos dos sertões nordestinos. Além de inúmeros cordéis, Patativa do Assaré tem
publicado os seguintes livros: Inspiração Nordestina (1956); Inspiração Nordestina: Cantos do Patativa (1967);
Cante Lá que Eu Canto Cá (1978); Ispinho e Fulô (1988); Cordéis (1993); Aqui Tem Coisa (1994); Biblioteca
de Cordel: Patativa do Assaré (2000). Entre tantas parcerias desenvolvidas pelo poeta, merece destaque seus
diálogos poéticos com Geraldo Gonçalves de Alencar, ainda em plena produtividade, presentes nos livros
Balceiro. Patativa e Outros Poetas de Assaré (1991), Balceiro 2. Patativa e outros poetas do Assaré (2001) e Ao
pé da mesa (2001). Suas poesias foram musicadas por artistas locais (Cícero do Assaré e Gildário do Assaré,
como exemplo) e por cantores e compositores cujas carreiras artísticas possuem maior abrangência, podendo
citar Luiz Gonzaga e Raimundo Fagner. Sua vida e obra receberam reconhecimento público nacionalmente e
inúmeros foram os prêmios por ele recebidos, merecendo destaque os títulos de Doutor Honoris Causa
(Universidade Regional do Cariri – URCA, 1989; Universidade Estadual do Ceará – Uece, 1999; Universidade
Federal do Ceará – UFC, 1999; Universidade Tiradentes – Sergipe, 2000), o prêmio na categoria Culturas
Populares ofertado pelo Ministério da Cultura (MinC) e, finalmente, o ano 2009 (centenário do seu nascimento)
marcou a promulgação da Lei nº 12.132 de 17 de dezembro, publicada no Diário Oficial da União (D.O.U.) do
dia 18 de dezembro (Seção 01, pág. 01) estabelecendo aquele ano como o Ano Nacional Patativa do Assaré.
Vários são os interesses despertados ao longo das últimas décadas de distintos pesquisadores sobre sua trajetória
de vida e produção poética, dentre os quais destaco Gilmar de Carvalho (Universidade Federal do Ceará – UFC),
Raymond Cantel da Universidade de Sorbonne (1914-1986), Luiz Tadeu Feitosa (Universidade Federal do Ceará
– UFC) e, mais recentemente, Rafael Hofmeister de Aguiar (Universidade Federal do Rio Grande do Sul –
UFRGS) (CARVALHO, 2002; 2008; 2009; 2011. FEITOSA, 2001; 2003. AGUIAR, 2013).
104
Nesse cenário, com Assaré não poderia ser diferente. Interessa aqui perceber que
os projetos e ações culturais desenvolvidos pelo poder público municipal afetam diretamente
os indivíduos e grupos que desenvolvem atividades culturais dentro dos limites territoriais do
município. Assim, os Penitentes que “acham ruim se apresentar de dia” concedem que na
abertura oficial do festival Patativa do Assaré em Arte e Cultura estejam presentes no cortejo
que ainda sob a luz do sol começa seus movimentos pelas ruas da cidade. A partir dessas
constatações algumas questões devem ser apontadas.
Seria precipitado, logo indevido, julgar que os Penitentes sentem-se simplesmente
coagidos para garantir sua participação nos eventos organizados pela administração pública
municipal. A meu ver, de acordo com as falas dos Penitentes do Genezaré, outras perspectivas
podem ser vislumbradas conforme aponto adiante.
De qualquer forma, trata-se de elaborações mnemônicas ainda em construção nas
quais a trajetória dos Penitentes vincula-se a outros projetos memoriais contemporâneos e
conforme Jöel Candau (2011, p. 149), “A atividade de memória que não se inscreve em um
projeto de presente não tem carga identitária, e, com mais frequência, equivale a nada
recordar”.
Em primeiro lugar, o decurião Deca Pinheiro indica que a participação dos
Penitentes no evento pode garantir a visibilidade que a Irmandade por ele liderada carece para
dar continuidade às suas atividades e adquirir legitimidade na comunidade do Genezaré e no
município em que atua. Ele analisa as questões postas imediatamente acima da seguinte
maneira:
A irmandade hoje também participa das Festa de Patativa. Já tá com treis ano que
nóis estamo participando dela. Porque é que nem eu falei com o padre Vileci [à
época pároco em Assaré]... ele começou um sermão e falou que a irmandade não
pode andar se apresentado assim em mei de praça. Nesse assunto que ele tocou eu
achei que tocava a nóis também. Mas aí eu disse a ele que nóis tava entrosado dentro
da cultura, porque quem descobriro os penitente foi a cultura, aí entonce prá nóis
aumentar o nosso nome, entonce quer dizer que nóis fomo obrigado a entrar dentro
da cultura também. Tamo dentro da cultura. É uma irmandade de evangelização, é
visto, mas somo da cultura também. Aí ele achou bom... bem feito. A irmandade...
nossa devoção é uma e a cultura é ôtra. Uma nóis faiz lá na igreja e outra nóis faiz lá
no mei do tempo, lá na cultura. Acho que não tem diferença de uma prá ôtra de
mudança de devoção. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76
anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio
Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de 2012).
Dessa forma, para Deca Pinheiro, distintos espaços sugerem a adequação das
performances dos Penitentes. Trata-se, de fato, de uma escolha de posturas, expressões,
movimentos, entonações, mediante os diálogos estabelecidos entre os Penitentes e os
107
promotores dos eventos. E, com isso, mais uma vez os rituais dos Penitentes do Genezaré
afirmam a sua perspectiva estética, escolhas cujos resultados são agradáveis aos sentidos dos
praticantes.
Em um dos vários momentos na trajetória dos Penitentes em Genezaré nos quais a
igreja católica local manteve distância em relação às irmandades, o então Secretário
Municipal de Educação, Cultura, Turismo e Desporto38, o Sr. Francisco Eugênio Costa
Oliveira, tomou conhecimento da existência de penitentes no município e decidiu propor
aproximações entre a gestão pública municipal e a única irmandade que restava das três
anteriormente presentes no Infincado. A partir daquele momento ficou acordado que o
município estabeleceria tentativas de reconstrução da trajetória dos penitentes naquela parte
do município, o governo municipal passou a financiar as indumentárias do grupo e dois dos
seus membros (Deca Pinheiro e posteriormente Joaquim Camilo) foram contemplados com o
título de Mestres dos Saberes e Fazeres da Cultura Popular Assareense. A gestão pública
municipal da cultura a partir do início dos anos 2000 começou a requisitar a presença dos
Penitentes em seus eventos regulares, sendo que o de maior visibilidade é o Patativa do
Assaré em Arte e Cultura já referido.
Para Deca Pinheiro e alguns dos seus Penitentes, esse “reconhecimento” e
visibilidade experimentados pelo grupo são interpretados como uma “descoberta” da
Irmandade que permanecia com o campo de atuação restrito a uma parte específica da zona
rural do município, raramente saíam das imediações do Genezaré. A Irmandade, portanto,
sugere que a permanência das atividades do grupo poderia ganhar um novo impulso a partir
da relação dos Penitentes com o poder público municipal principalmente atendendo aos
convites para participações eventuais nas atividades que a “cultura” promovia. Com isso,
surgem novas formas de diálogo entre a tradição e as exigências do presente, entre antigos e
novos saberes, entre as sensibilidades sedimentadas na trajetória dos Penitentes e aquelas que
surgem a partir das relações que o grupo mantém com outros níveis de organização da vida
social.
Aquela resposta dada ao padre Vileci Vidal, a partir da sua interpelação, indica
que a Irmandade havia aceitado os argumentos em favor da ampliação das suas atividades
para além dos limites essencialmente religiosos. Ou seja, o grupo poderia desenvolver
atividades segundo as exigências da gestão pública municipal sem perder seu “caráter
38
Criada pela Lei Complementar nº. 003/2005. A Secretaria Municipal da Cultura, Turismo, Desporto, Lazer e
Recreação foi instituída apenas no ano de 2006 através da Lei Municipal 015/2006, até aquele momento existia
apenas uma Divisão de Cultura, Turismo e Desporto ligada à Secretaria Municipal da Educação.
108
evangelizador”. A Irmandade, para Deca Pinheiro, assumindo essa nova função não teria sua
fé comprometida, afinal o que se fazia na igreja, para ele, não era o mesmo mostrado em
praça pública. Portanto, a atuação dos Penitentes em novos espaços não anula a eficácia dos
seus rituais.
A participação dos Penitentes do Genezaré nos eventos organizados pelo poder
público municipal, é preciso que se diga, não significa que todas as exigências dos
organizadores serão aceitas. Em algumas negociações, a Irmandade impõe suas decisões. A
ordem dos grupos durante o cortejo de abertura do Patativa do Assaré em Arte e Cultura, por
exemplo, não foi aceita algumas vezes pelos Penitentes, conforme narra Deca Pinheiro:
A gente ia naquele grupo. Tem o primeiro grupo, tem o segundo grupo... a gente
andava tudo um bolo, tudo misturado. Quando foi prá essa derradera, prá festa de
Patativa [Patativa do Assaré em Arte e Cultura], nóis fizemo o seguinte: eu convidei
um companheiro que é Joaquim [Camilo] que é a primeira pessoa [depois dele,
decurião], “ – Nóis vamo ficar apartado. Nóis vamo dêxar esses grupo de mateu
[referência aos caretas], de reisado, de capoeira, essas coisa nóis vamo dêxar prá
frente e nóis vamo ficar prá trás mais a banda [de música municipal Manoel de
Benta]”. Aí ficou assim. Mas que pelo comum nóis é prá ir primeiramente, na frente
encostado na procissão, mas a banda [de música Manoel de Benta do município de
Assaré] ficou lá atrás, a derradera de toda. Aí nóis prá não ficar no meio daquele
chamego – cê sabe – que o grupo de reisado, de mateu, de careta é diferente do
nosso aí eu achei que não dava certo. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de
2012). (Grifos meus).
Ainda que um pouco contrariado por o grupo não ocupar a prioridade no cortejo,
Deca Pinheiro impõe sua vontade de não ter a Irmandade na proximidade desconfortável dos
grupos que ele considera “diferentes” dos Penitentes. Portanto, a Irmandade abandona o lugar
pré-determinado pela organização do evento e vai se refugiar nos últimos lugares do cortejo,
próximo das bandas de música com seus uniformes mais sóbrios e movimentos menos largos
se comparados, por exemplo, às performances dos grupos de reisado.
Pelo exposto, o consentimento dos Penitentes do Genezaré em fazer parte dos
diversos grupos que integram os eventos culturais organizados pelo poder público municipal
não sugere, em nenhum momento, posturas passivas em troca de novos espaços para sua
execução dos seus rituais. A presença da Irmandade nas programações referidas tem revelado
a indisposição do grupo para aceitar todas as normas impostas pela organização, tema
retomado no último capítulo deste trabalho.
Último dia do Patativa do Assaré em Arte e Cultura. O ano era 2010. Cinco de
março, data anunciada pelo jornal do Diário do Nordeste na qual os Penitentes do Genezaré
realizam a visita ao túmulo do poeta morto em 2002 e lá rezam o “Terço das Almas”, também
109
conhecido como Terço do Repouso Eterno. De fato, o encerramento do evento dá-se com a
Missa de Ação de Graças e a programação impressa e distribuída por diversos meios
midiáticos informa a participação dos Penitentes tal qual divulgado na matéria jornalística
mencionada anteriormente.
Entretanto, os Penitentes logo descobriram que a agenda de um evento é
suscetível de inumeráveis contratempos. Algumas das atividades divulgadas e dadas como
certas de acontecer podem mesmo não serem realizadas. Dirigindo-se ao Cemitério São João
Batista no centro da cidade, qual não foi a surpresa dos Penitentes:
Nóis fomo fazê visita de cova [no túmulo de Patativa], mas chegamo lá o cemitéro
tava fechado. Aí não deu certo a gente fazê. Foi naquele dia que a gente foi lá prá
igreja de São Francisco [capela localizada na sede do município]. O cemitéro tava
fechado, aí não deu certo a gente fazê. (Relato de José Pinheiro de Morais, agricultor
aposentado, 76 anos de idade, conhecido como Deca Pinheiro, residente e
domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré. Entrevista concedida em janeiro de
2012).
Assim lamentou Deca Pinheiro enquanto fazia planos para o ano de 2012 que era
iniciado.
Neste ponto, deve ser dito que a participação de irmandades de penitentes do
Cariri cearense em ações culturais organizadas pelas diversas instâncias dos poderes públicos
não está restrita a atuação dos Penitentes do Genezaré. A Irmandade da Cruz, já referida,
desde os anos 1970 tem presença regular, por exemplo, na Festa do Pau da Bandeira de Santo
Antônio de Barbalha e o seu antigo decurião, o Mestre da Cultura Sr. Joaquim Mulato de
Souza desfilou em carro alegórico da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira no
carnaval da cidade do Rio de Janeiro (SOUZA, 2000; BEZERRA, 2010). Com acesso a essas
informações e pela experiência recente, assim o Sr. Luizinho Camilo classifica o atual
momento das irmandades de penitentes do Cariri cearense em geral, e a fase vivenciada pelos
penitentes do Genezaré especificamente: “Até parece que hoje a gente faiz só uma pequena
representação do que era na época do meu pai”.
Já foi mencionado que o crescimento populacional do Infincado e a emergência
do Genezaré não garantiram que todas as portas estavam abertas aos penitentes. Igualmente, a
construção e inauguração da Capela de São Francisco em Genezaré não significou que os
penitentes tivessem acesso ao seu interior de acordo com o que julgavam ser mais
conveniente. Finalmente, a sua inserção nas atividades culturais do município não indica que
todas as atividades que incluem sua participação serão igualmente cumpridas.
110
Diante do exposto ao longo deste capítulo, a dimensão estética dos rituais cujos
espaços para sua execução sugerem pode ser percebida pela permissão e/ou interdição de
alguns elementos presentes nas ações rituais dos Penitentes do Genezaré. Assim, não é
aconselhável que nos palcos, no interior dos templos católicos, em presença de crianças, o
autoflagelo seja praticado. É preciso por vezes que o autoflagelante procure um lugar ermo
para entregar-se ao sacrifício. Nesse aspecto, ganham relevância, em detrimento do
autoflagelo interditado, os benditos, mais aceitáveis por parte da assistência dos rituais e que
possuem igualmente caráter performativo.
Ainda sobre o mesmo tema, participar de cortejo ao lado de grupos ditos de
“cultura popular” na abertura do Festival Patativa do Assaré em Arte e Cultura indica a
capacidade dos Penitentes do Genezaré de estabelecer aproximações e distâncias de coletivos
considerados mais assemelhados e de outros excessivamente distintos de si. Por vezes, no
trajeto as tentativas de manter seu canto audível é inútil, ele é abafado por instrumentos
percussivos e de sopro que preenchem mais fortemente o percurso, e resta-lhes os passos
carregados de significados e re-significações pelas ruas da cidade.
Em algumas ocasiões é preciso que os Penitentes do Genezaré improvisem um
trajeto, troquem o quase certo pelo possível quando algumas portas cerram-se aos seus rituais,
saiam da segurança do espaço anteriormente mapeado (o cemitério, por exemplo) para
incerteza dos encontros (em frente a uma capela, em outro ponto da cidade, por exemplo)
distantes do que fora anunciado e planejado pela organização de um evento cuidadosamente
elaborado.
111
NO CORPO:
PERFORMANCE E SACRÍFICIO, MEMÓRIA E LIMITE AOS
RITUAIS DOS PENITENTES DO GENEZARÉ
Neste tópico, intento destacar o caráter performático dos rituais das irmandades de
penitentes de uma maneira geral. De forma específica, voltando a atenção para os rituais dos
Penitentes do Genezaré e na centralidade do corpo nas suas execuções ganha destaque as
reações da assistência em face dos estímulos sensíveis que recebem quando presenciam
aquela Irmandade em orações, cânticos e sacrifícios.
Fazendo uso da noção de performance, o historiador e antropólogo Kélson
Chaves (2011) empreendeu estudo acerca “da experiência mágico-religiosa em terreiros de
Umbanda” da cidade de Limoeiro do Norte, no Estado do Ceará. Inspirado por Paul Zumthor
(2007), Chaves (2011, p. 34) observa que “a performance que acontece nos terreiros não
somente salta do corpo aos olhos como também incide sobre todos os sentidos de quem está
presente”. Experiência, portanto, que envolve a um só tempo corpos e sentidos de praticantes
e assistentes, todos de forma ativa, conforme também pode ser constatado durante os rituais
dos Penitentes do Genezaré.
Se, por um lado, a performance possui a conotação antropológica mencionada por
Paul Zumthor (2007) anteriormente referida, deve ser admitido que, em outro sentido, as
diversas reações sensíveis possíveis em um contexto performático são multifatoriais e estão
escritas em determinadas circunstâncias socioculturais e/ou de acordo com algumas
características dos sujeitos envolvidos em uma determinada performance – a faixa etária, por
exemplo, pode ser um dentre os referidos fatores. Assim, as reações de Freire Alemão e seus
companheiros durante a empreitada científica da Comissão Científica de Exploração das
Províncias do Norte, datada do início da segunda metade do século XIX, podem diferir
substancialmente da experiência performática vivenciada pelo médico e historiador caririense
Irineu Pinheiro na sua infância e mencionada adiante e ambas podem manter pontos
divergentes com as sensações que alguns indivíduos experienciam ao contemplar rituais de
autoflagelo de alguns dos Penitentes do Genezaré.
Sobre algumas performances de grupos autoflagelantes, os membros mais antigos
da Irmandade de Penitentes do Genezaré afirmam que as reações da assistência podem variar
dos desmaios ao horror, do medo estanque à desabalada carreira em sentido contrário ao local
onde os rituais são executados, da curiosidade ao descrédito. Assim, narrou o Sr. Luizinho
Camilo sobre um dos rituais executados pelos penitentes liderados por seu pai, o antigo
decurião Camilo Duarte:
114
Naquela época os penitente se açoitava. Tinha camarada que fazia rastro de sangue
no chão por onde andava, o sangue descia e tinha camarada que fazia rastro. Uma
veiz nóis fumo pro São Domingo, lá perto de Campos Sale [município limítrofe à
Assaré], fomo tirar um Terço lá e o povo lá num sabia não, num conhecia o que era
penitente... aí nos fomo. Aí a minha sogra faleceu e meu sogro disse que ia butar
uma grade de ferro lá no cemitéro, na cova dela. Ele comprou a grade, eu andei lá e
ele já tinha feito e eu falei com ele: “ – Olha! Pois quando o senhor for sentar essa
grade na cova dela o senhor me avise que eu chamo uma turma de penitente de lá de
nóis e papai vem com ela, com a turma de penitente, o senhor me avise o tempo”.
Ele disse: “ – Tá bom. Quando eu for levar ela (a grade) lá pro cemitéro e sentar ela
eu aviso”. Ele foi e tratou o dia de levar pra sentar lá. “ – Apôis nesse dia papai vem
com a turma de penitente pra tirar um Terço pra ela”. Aí fiquemo... nóis fomo. Aí
nóis fomo a turma e quando cheguemo lá, porque chegamo já de noite, era uma
légua da casa dele pra nossa, nóis fomo foi cedo, tudo a cavalo ninguém sabia por
onde era que ia e cheguemo lá seis hora na casa dele. Deixemo os animal tudo
amarrado e de lá fomo de pé pro cemitéro e lá os cabra se açoitaro. Agora, teve
gente lá que num teve corage de ver, teve muié que feiz foi esmorecer, desmaiar,
quando viu deu pilora... Ave Maria (risos) (Grifos meus) (Relato de Luiz de Holanda
Duarte, agricultor aposentado, 73 anos de idade, conhecido como Luizinho Camilo,
residente e domiciliado no Bairro Canto Alegre, cidade de Assaré. Entrevista
concedida em 21 de abril de 2013).
O relato do Sr. Luizinho Camilo não é o único a abordar tais tipos de reações
entre aqueles que presenciaram os rituais de autoflagelo das irmandades de penitentes que
grassaram nas terras que um dia pertenceram ao Barão de Aquiraz nem, tão pouco, os
desmaios ou a repulsa em face do encontro das lâminas cortantes com o corpo em sacrifício
parcialmente nus dos penitentes são exclusividades da assistência feminina, conforme
destacado na fala do penitente acima mencionada. Não menos significativo é o narrador fazer
questão de enfatizar uma diferença entre o tempo no qual “os penitentes se açoitava” e os dias
atuais marcados por tornaram-se cada vez mais raros os autoflagelos. O decurião Deca
Pinheiro faz questão ainda de conservar a prática não obstante os impactos que ela pode
causar em quem presencia o ritual, conforme relato que segue.
Dois de março de 2006. O jornal Diário do Nordeste anunciava que naquela data
teriam início as festividades alusivas aos noventa e sete anos de nascimento do poeta Antônio
Gonçalves da Silva – o Patativa do Assaré – na sua terra natal. A “diversificada programação”
contaria com “oficinas de teatro, cordéis, literatura popular, canto, desenho, pintura,
artesanato e gastronomia”. A matéria enfatizava ainda que “O ponto alto das comemorações
ocorrerá no dia cinco, começando às cinco horas, com alvorada festiva tocada pela banda de
música Mané de Benta”. O restante daquele dia, de acordo com a reportagem, contaria ainda
com “Café da manhã para os familiares de Patativa e convidados na residência do poeta,
missa de Ação de Graças, encontro dos grupos folclóricos, programas de rádio [...]”
115
O povo tinha medo quando saia os penitente porque é o seguinte: o povo de primero
tudo era assombrado assim porque tinha esse movimento de careta... cê sabe... tinha
esse movimento de careta o povo já tinha medo, os que já sabia o que era careta,
mateu – que era mateu de primero – já sabia não se incomodava, mas essa frangada
nova quando via uma turma de mateu dava trabai os pais porque eles entrava no mei
do mundo, faltava se perder. Mas depois começaro a ver os mateu, conhecer quem
era depois perdero o medo. Eu mermo dei uma carrera mei dia por dentro dum
baixio de carrapicho que dexei minha opa lá no carrapicho porque não aguentei sair
com ela. Porque os mateu de primero fazia medo a gente assim - porque sabe,
menino é bicho besta – as históra deles é diferente daquelas que vem pras Festa de
Patativa. Porque tem o reis congo, tem os careta e tem os mateu. Os careta as
mascara dele é que nem um funilzão, desse comprimento, ali é enfeitado de fita de
cima até em baxo e espéio. Todo canto tem espéio. E umas espadona na mão. Aí
quando eles via um rebanho de menino dizia: “Vamo capá!” Aí o caba pegava o
meio do mundo. Aí o povo confundia os penitente com os mateu. Aí perguntava: “ –
De onde vem esses careta?” Mas não era. As veiz quando os penitente ia tirar um
promessa passava a noite todinha andano. Nóis só andava de pé – não tinha
transporte nesse tempo – tirava tudo a pé. Por exemplo na Aratama. Na Aratama era
um povo que não sabe o que é penitente ainda. Que nem lá no Assaré tem uma muié
que morava lá na Serra de Santana... na... ali da Altaneira pra lá um pouco, quem vai
pra Bonita, naquela chapadona que tem. Era morava no Assaré e o pai dela faliceu.
Aí: “ – Deca, vamo tirar um Terço lá em casa pra papai?” “ – Vamo. Tá certo!” “ –
Lá em casa e no cemitéro”. Aí nois fumo, Cirito foi mais nóis. Levou nóis nesse
tempo. Cheguemo lá negoço de seis hora se arrenchemo na casa dela, quando deu
seis e mea mais ou meno peguemo o carro e viema cá pro cemitéro. Chegamo lá já
tava tarde... já era sete hora. Chegamo no cemitéro tava cheio de gente. Aí quando
nóis descemo do carro tudo trajado... menino, aí de um rebanho de gente nesses mei
de mato, por dento das capoeira, chega estrondava, rapaiz. Lá no cemitéro da
Altaneira. Aí o povo correro tudo. Assombrado. Achando que era uma visage. Aí foi
que dissero que era os penitente. Tiremo o Terço, se cortemo muito. Era tarde, nóis
fumo oito penitente. Tiremo cinco por corte e os treis foro cantar. Mas nois achemo
graça nessa noite. Tinha muié... Tinha dois penitente que se cortou tanto que o
39
Com suas máscaras, fantasias, chocalhos e pedidos de esmolas, os Caretas atuam desde o Domingo de Ramos
até o denominado Sábado de Aleluia, anualmente, ao longo das Semanas Santas. No último dia, realizam a
malhação do Judas, conhecida na região também como “Festa dos Caretas”, que pode contar com afluência da
população das comunidades onde são realizadas as suas festas e performances (ULISSES, 2007).
117
sangue pingava no chão. Tinha uma véia que dismaiou e a ôta pedindo, chorando pra
nóis não se cortar. Bestera! Quanto mais pedia, mais chorava, mais o cacho nóis
castigava. Porque ali é o seguinte: depois que nóis começa a se cortar pode pedi,
pode chorar, pode cair, que nossa obrigação é tirar o Terço todo se cortando. (Relato
de José Pinheiro de Morais, agricultor aposentado, 76 anos de idade, conhecido
como Deca Pinheiro, residente e domiciliado no Sítio Lama, município de Assaré.
Entrevista concedida em janeiro de 2012).
40
Acerca da trajetória da Comissão Científica de Exploração, nomeada em outros pontos deste trabalho,
simplesmente Comissão, foram consultados a dissertação de Mestrado em História de Paulo César dos Santos
(2011) e um artigo da historiadora Francisca Hisllya Bandeira Cavalcante (2011) além dos Diários de Viagem de
Francisco Freire Alemão (2006; 2007) que compõem o corpo de fontes da pesquisa cujos resultados ora seguem.
118
Não há informações no relato até aqui explorado sobre as horas seguintes antes do
raiar do sol. Talvez também jamais se conheça as perguntas elaboradas e as respostas
ofertadas naquele diálogo entre os curiosos cientistas e “um pobre penitente” caririense.
Perdas são sempre inevitáveis nos relatos.
Contudo, sob a luz da manhã fazia-se urgente para aqueles cientistas adentrar ao
templo de onde ouviram os primeiros sons que, inclementes, tiram-lhes o sono na noite
anterior. Manchas de sangue coloriam irregularmente as paredes da igreja ainda sem teto,
porque em construção, e no chão algumas poças não haviam sido absorvidas pela terra do
espaço sagrado.
Os rituais dos penitentes conforme descritos eram executados no interior do
templo ou pelas ruas, chegando a uma aproximação razoável das residências. Os flagelantes
podiam usar para açoitar seus corpos tanto disciplinas, como outros instrumentos
contundentes ou cortantes – acima aparece referência a tijolos e pedras. Se na Vila de Lavras
usavam casacos ou lençóis para cobrir os corpos seminus, na povoação de Venda as ceroulas
erguidas até as coxas puderam ser notadas.
119
preciso daquela recente emergência) por um líder fanático, um certo padre Agostinho. Ainda
para Freire Alemão, as práticas penitenciais eram estimuladas ou por remorsos, ou por
exacerbação indevida dos sentimentos religiosos que nele, cientista, obedecia a moderação
sugestiva da racionalidade.
São encontros mediados quase na sua totalidade pela audição. De forma explícita,
os Diários não indicam que seu autor havia mantido contato visual ou travado diálogos com
os penitentes; Ele apenas “ouvia” os cânticos, os lamentos, tentava identificar com clareza os
sons das disciplinas, nem sempre obtendo sucesso. Seus registros dependeram
consideravelmente das informações que outros membros da Comissão e das localidades
visitadas podiam fornecer.
Os contatos entre os membros da Comissão Científica de Exploração das
Províncias do Norte e penitentes do Cariri cearense, entretanto, sugerem outras dimensões. Se
nos seus relatos Freire Alemão aponta semelhanças entre a Província do Ceará e o Rio de
Janeiro (ALEMÃO, 2006, p. 84), o encontro com os penitentes é estar muito próximo com o
estranho, o in-usual. Trata-se do embate entre os recursos da Coroa a serviço do projeto de
construção da nação e as mãos vazias dos pedintes; O choque entre as sensibilidades educadas
e adequadas às exigências do processo civilizador e a exposição imoderada dos sentimentos;
O tenso diálogo entre o desejo de saber que alimenta a escrita e as respostas que se perdem no
tempo e no espaço; A oposição entre o movimento patrocinado pela ciência e a circulação
obrigatória de quem experimenta os interditos; Disputas entre a lógica da mão hábil à pena e
aquelas experientes no manuseio das disciplinas; A manutenção da distância entre o corpo
abandonado à rede de dormir e aquele entregue à exaustão dos sacrifícios noturnos – este
último seminu, parcialmente visível e sempre dizível.
Avanço abrupto no tempo e o Cariri cearense e os seus penitentes ainda estão sob
observação. “Na sala de visitas, cujas luzes se haviam apagado, alguns dos presentes
procuravam ver por entre as fasquias das rótulas o préstito que passava na rua cheia do tinir
dos ferros das disciplinas e do clamor angustioso dos devotos” (PINHEIRO, 2010a, p. 230).
O historiador do Cariri e caririense Irineu Pinheiro (1881-1954) narra no texto
parcialmente transcrito acima de O Cariri: seu descobrimento, povoamento, costumes, cuja
primeira edição data de 1950, um encontro que manteve na sua infância com uma procissão
de penitentes que desfilava suas angústias e disciplinas nas ruas da cidade do Crato.
O homem que escreveu suas memórias acerca das suas sensações infantis diante
de uma procissão de penitentes nas ruas da sua cidade natal era integrante de um grupo que
re-inventou o Cariri em meados do século passado (CORTEZ, 2000). Era um intelectual que
121
manuseava vários recursos pertencentes ao universo daqueles que dominam a escrita. Esse era
o seu lugar social.
Irineu Pinheiro informa em um dos seus escritos citados preliminarmente que
“Por me ter referido a procissão de penitentes, mui comuns antigamente no sul do Estado,
relembro uma a que assisti no Crato, de noite, dentro de casa, as rótulas fechadas, um frio de
terror a coar-me a alma de menino”. Algumas horas depois da procissão, “No dia imediato
viam-se grossos pingos de sangue nas lágeas das calçadas, no patamar, no piso e nas paredes
da Matriz. Em uma dessas paredes desenhava-se, nitidamente, a mancha vermelha das costas
de um dos flagelados” (PINHEIRO, 2010a, p. 230).
O que significava para ele “assistir” aquela procissão? Ouvir os clamores
angustiados dos penitentes? Identificar o tinir das disciplinas? Ver com alguns adultos por
entre “as fasquias das rótulas”? Não é possível para mim através do seu texto responder a
essas questões. Da mesma forma que é difícil atribuir significado único ao “assisti” por ele
proferido, torna-se complicado não ponderar mais de uma possibilidade quando Irineu
Pinheiro afirma: “viam-se”. Uma coisa certa: para quem costuma registrar nos seus escritos
“vi”, “li”, “ouvi”, “conversei”, “tive nas mãos” sempre de forma enfática, “viam-se” ao invés
de “vi” justifica alguma dificuldade de interpretação.
Ouvidos certamente, vistos talvez, aqueles penitentes executando seus rituais nas
escuras ruas do Crato inventavam espacialidades. As sólidas paredes não conseguiam deter os
sons e o que era externo estabelecia insegurança para quem declarava a casa ambiente
inviolável. Não é preciso que os olhos vissem para que a alma sentisse terror. O corpo
também sofria aquela experiência, o alargamento do espaço que a procissão dos penitentes
provocava. A alma e o corpo do dicotômico, Dr. Irineu Pinheiro, responderam, portanto, à
fluidez das fronteiras pelo caráter performático daquele ritual.
Mas, afinal o que faz em meio aos elementos escolhidos em prol da “valorização
do Cariri”, objetivo dos escritos daqueles especialistas, a presença aterrorizante dos
penitentes? Como relatar a persistente presença do “atraso” no seio da modernidade? Há
solução para essa aporia? É preciso justificá-la. Da história vem a resposta.
O historiador Irineu Pinheiro afirmara que “Sempre houve no Cariri, inda hoje
existem em alguns municípios, companhias de penitentes, que se fustigam com disciplinas de
ferro, às horas mortas da noite”. Contudo, a ocorrência de irmandades de penitentes no Cariri
cearense não é emblema de uma exclusividade negativa visto ser “Muito longínquo, no Brasil,
o hábito dos homens se disciplinarem por penitência” (PINHEIRO, 2010a, p. 230). O Cariri,
portanto, não é o único que sofria o horror daquela presença, o fardo daquelas performances.
122
A temporalidade por ele adotada indica que a modernidade tratava aos poucos de
extirpar daquele presente aqueles indivíduos, seus rituais e performances: o “antigamente” das
“mui comuns procissões de penitentes do sul do Estado” estava sendo superado “pela
presença atual de companhia de penitentes apenas em alguns municípios”.
Dessa forma, se a presença de irmandades autoflagelantes não tornava o Cariri um
lugar qualitativamente inferior aos demais, ainda era possível afirmar que sua filiação ao
moderno podia ser comprovada pela superação das antigas formas de vivenciar a
religiosidade. Em outras palavras, para Irineu Pinheiro, os penitentes estavam em vias de
extinção dentro dos limites geográficos do Cariri cearense.
Em O folclore no Cariri (1960), J. de Figueiredo Filho, outro “especialista da
produção cultural” (CORTEZ, 2000), contemporâneo de Irineu Pinheiro, afirma “Depois de
passarmos revista em atraente motivo folclórico [Dança do pau-de-fita], dos mais bonitos, por
sua variedade, com jovens a dançarem, fitas de côres e orquestras, iremos entrar em terreno
bem sinistro”. O tema abordado por ele na sequência “Só o nome faz arrepiar os cabelos da
gente” (sic). Contudo, naqueles dias “graças a Deus, estão praticamente extinto do panorama
caririense”. Ele falava dos penitentes, “... fruto do falso misticismo, exacerbado por religião
mal compreendida. Em Crato mesmo, cabeça pensante da região, já medrou irmandade de
penitentes”, porém, ele continua, “Presentemente, êsses castigadores de si mesmo, por
motivos de misticismo exagerado, refugiam-se em Jardim e tendem a desaparecer”
(FIGUEIREDO FILHO, 1960, p. 94).
Em Figueiredo Filho (1960), portanto, havia oposição indiscutível entre as cores e
sons, a juventude e a dança, presentes no pau-de-fita e o aspecto “sinistro e horripilante” dos
penitentes em seus rituais, tratando-se, portanto, de performances distintas e de formas
variadas de interpretações de tais performances. Os penitentes, conforme sua visão, eram de
todo ignorantes (não compreendiam os verdadeiros princípios religiosos) e incapazes de
controlar seus sentimentos (neles tudo era exacerbação e exagero). A sentença decretada pelos
“especialistas da produção cultural”, responsáveis pela (re)invenção do Cariri, nesse caso, só
poderia ser uma: os penitentes são refugiados do passado naqueles dias e lugares, seu
desaparecimento é uma tendência e, por isso, Deus deveria ser louvado. A modernidade e o
Cariri não mais suportavam aquela presença, aqueles “castigadores de si” experimentavam os
limites de ambos, tempo e espaço. Jardim (última fronteira caririense) era também seu último
estágio antes do desaparecimento completo.
Posto assim, a sentença de extinção proferida contra os penitentes por aqueles
“especialistas da produção cultural”, ecoa as palavras de Freire Alemão (2006. p. 219) ditas
123
pouco mais, pouco menos de um século atrásantes quando afirmava já em 1859 que em
alguns pontos do Cariri a penitência já havia “acalmado muito” e em outros “cessado de
todo”.
Se em nenhuma parte dos seus escritos os intelectuais cratenses falam da presença
de irmandades autoflagelantes no município de Barbalha, como bem destacou Patrícia
Bezerra (2010), também não há nenhuma referência nos seus textos a tais presenças nem em
Lavras da Mangabeira, nem em Assaré, municípios que trazem na sua trajetória as marcas dos
rituais dos penitentes. Igualmente, as décadas seguintes não confirmaram a sentença de
extinção proferida por aqueles intelectuais e, dessa forma, novos olhares sobre as irmandades
de penitentes do Cariri cearense surgiram e grupos autoflagelantes até recentemente
conhecidos apenas em reduzidos espaços geográficos adquiriram visibilidade em círculos
mais amplos.
Entretanto e em oposição ao horror, medo e repulsa, não deve ser descartado ainda
que existam pessoas que vejam beleza nos rituais dos penitentes, nos benditos que a muitos
sugerem melancolia, no sangue a escorrer pelos corpos e roupas até atingir o chão deixando
sua marca que não se apaga facilmente, como bem afirma o Penitente, desde os quinze anos
de idade, conhecido como Fortunato que durante muito tempo praticou os rituais de
autoflagelo, muito embora tenha abdicado de tal prática há alguns anos. Para ele, o desejo de
ingresso na irmandade de penitentes liderado por seus familiares mais antigos passou pela
atração que as performances dos autoflagelantes provocavam em si. Sons, cheiros e cores
estimularam os seus sentidos e contribuíram para sua escolha, conforme seu relato.
Performances eficientes capazes de estimular indivíduos ingressarem em
irmandades, conforme mencionado por Fortunato. Por outro lado, Antônio de Quinco traz à
superfície dos diálogos a desconfiança que parte da assistência mantém quando presenciam o
sangue a jorrar e escorrer pelo corpo do penitente entregue ao sacrifício. Para aquele narrador,
os rituais dos penitentes expostos em transmissões televisivas, possibilidade forjada a partir
de interesses e relações contemporâneos, sugerem que os telespectadores acreditem que os
resultados daquelas performances sejam substancialmente recursos imagéticos, efeitos
especiais, não raros em produções audiovisuais. Dessa forma, pode ser sugerido que existe
uma relação entre as formas de contato da assistência com os rituais dos penitentes e as
sensações e interpretações divulgadas sobre as práticas penitenciais e seus praticantes.
Adjetivados de acordo com suas performances e em consonância com os lugares
sociais de homens letrados – e por homens letrados – filiados a projetos políticos de invenção
de espacialidades regionais e nacionais através dos seus discursos, restava a tais sujeitos e
124
julgados indignos pelo grupo (portanto, corpo capaz de ser controlado e autocontrolável) e,
exigência igualmente essencial, ser um corpo de um cristão católico, um corpo disposto ao
sacrifício.
Entretanto, mesmo observando tais características a Irmandade dos Penitentes do
Genezaré mantém suas idiossincrasias entre grupos semelhantes e entre os seus membros
formas de pensar e agir também não são homogêneas. Sobretudo, com o passar dos anos esse
corpo que ocupa espaço privilegiado na execução dos rituais adapta-se a novas exigências,
algumas performances são aos poucos abandonadas porque reinterpretadas e outras surgem
como demandas históricas. Com isso, a velhice que impõe obstáculo a realização de certos
rituais não implica a exclusão de um membro da Irmandade. De forma contrária, os mais
antigos Penitentes, na sua longevidade, são valorizados pela capacidade de reter e transmitir
conhecimentos tidos por essenciais à continuidade das atividades do grupo.
Permanece, portanto, a trajetória e o desejo de sacrifício inscrito no corpo e pelo
corpo do penitente cristão.
O corpo tem história, não obstante a constatação estarrecida e inquietante de
Jacques Le Goff e Nicolas Truong (2011). E o cristianismo é, de fato, uma religião na qual o
corpo ocupa centralidade. É pela “anunciação-encarnação, que Deus deu aos humanos uma
chance de salvar-se, corpo e alma” (GÉLIS, 2010, p. 19). Pelo sacrifício do próprio Deus
encarnado a história adquire um sentido e a humanidade um destino, Céu e Inferno como
únicas possibilidades eternas.
Desde os seus primórdios o cristianismo dotou o corpo que sofre ou as dores que
afligem a carne de uma conotação espiritual. Saber conviver com o desgosto que o corpo
encerra tem sido uma exigência nunca desprezada no difícil caminho de comunhão com o
Deus da encarnação. É preciso, portanto, refletir acerca dos sofrimentos do Cristo inscritos no
seu corpo entregue sem reservas pela salvação eterna da humanidade.
No campo do aparato simbólico relacionado ao corpo do Salvador, de acordo com
Jacques Gélis (2010, p. 27), desde o Medievo, “Os instrumentos da Paixão simbolizam o
percurso doloroso do Redentor e cada um deles, por sua materialidade, um momento de
aviltamento do seu corpo”. Por essa capacidade de atuar na produção de memórias acerca do
sofrimento vicário do Cristo das dores, os instrumentos da paixão começam a ser venerados e
atingem o ponto máximo do seu culto ao final do século XV e início do século seguinte. Estar
diante de representações da coroa de espinhos, dos pregos e/ou da lança é, de certa forma,
manter contato com o corpo aviltado do Salvador, com o seu sangue e sacrifício, com as suas
imensas dores e solidão. Entretanto, outras formas de devoção vinculadas ao corpo do
128
“Homem de Dores” surgem e se expandem e suas chagas, coração e sangue tornam-se objetos
de veneração e símbolos, a um só tempo, de dor e redenção, de aflição e cura para os males da
alma e também dos corpos dos cristãos. Buscava-se até mesmo sentir os seus sofrimentos
ocultos. Em outro sentido, a Igreja fortalece a centralidade do corpo de Cristo na história
através do dogma da transubstanciação. Alimentar-se do corpo divino é uma esperança que
produz a certeza da salvação (GÉLIS, 2010, p. 43).
Que graça indizível para um cristão era, além da possibilidade, de comungar do
corpo do Salvador, poder sentir na sua própria carne dores semelhantes ao padecer do seu
Senhor! Não foram poucos os que sentiram o prazer que essas virtudes proporcionavam. A
hagiografia de alguns bons cristãos encerra essa certeza; Desejava-se mesmo o “martírio
contínuo” durante toda a existência terrena (GÉLIS, 2010, p. 53).
Não são poucas as restrições alimentares, não raros os banhos em águas com
temperaturas muito baixas, comuns o uso perene dos cilícios e o dormir em condições de
desconforto ou submeter-se a poucas horas de sono, precisas as errâncias e como privilégio de
alguns eleitos e eleitas de Deus, surgem corpos que recebem inscrições divinas, os estigmas
da Paixão, ou uma doença quase sempre duradoura como sinal de eleição. Tais atitudes ou
marcas podiam vir como fruto de um desejo ardoroso ou súplica insistente do cristão, como
uma resposta divina, ou como um desígnio soberano do Deus todo-poderoso a fim de agraciar
ou admoestar seus filhos e filhas.
Alimentar-se de forma comedida e apenas do que arrecadam de esmolas durante
as Semanas Santas, como forma de comemorar o sofrimento de Jesus, foi até recentemente
uma prática recorrente entre os Penitentes do Genezaré.
Dessa forma, a trajetória do cristianismo pode ser pensada através dos corpos que
almejam assemelharem-se ao corpo do Cristo das dores, mas que mesmo assim resiste à
entrega, às exigências institucionais, cria suas formas de aproximação com o Salvador,
elabora seus mecanismos de relação com a própria carne, escolhe suas formas de
autocontrole. Portanto, trata-se de corpos que se percebem cercados de construções de
sentidos atribuídos a si. Corpos que, por vezes, tentam negar sua natureza e apoiam-se nas
elaborações culturais do seu tempo. Esses mesmos corpos convivem e creem em noções como
pecado, salvação, Céu, Inferno e Purgatório, castigo e medo, eternidade e fim do mundo, o
Cristo das dores no centro da história.
Nessa trajetória inscrita na longa duração, emergem e ganham destaque
irmandades de leigos caracterizados por formas bastante específicas de domar o próprio
corpo, de conviver com o temor da danação eterna para si e para os outros, do receio do fim
129
42
Surgidos através da separação da Ordem Franciscana em Frades Menores Conventuais e Observantes no ano
de 1517, por força da Bula Ite vos do papa Leão X, os Capuchinhos optaram por um modelo Observante mais
próximo daquilo que consideravam a origem das prioridades franciscanas. Luís da Câmara Cascudo assim
caracterizou os Capuchinhos que atuaram no Brasil: “As sandálias, a barba longa, o hábito rústico, a coragem
diária, o hábito das missões sem conforto (andavam a pé e não carregados em redes por escravos como era
corrente entre outros missionários) e sem fim deram aos capuchinhos, em trezentos anos de campanha, a glória
no coração do povo” (CASCUDO apud HOORNAERT, 1990, p. 51) (grifos meus). Ao longo do século XX,
mereceu destaque nos sertões nordestinos do Brasil a atuação do Frei Damião de Bozzano (1898 – 1997) que
desembarcou no Brasil em 1931 e contribuiu para evangelização, segundo os moldes católicos, sobretudo,
através das denominadas Santas Missões que liderou ao lado de outros capuchinhos. Encontra-se em processo de
elaboração a noção de santidade do Frei, que ao lado do padre Cícero Romão Batista e do padre Ibiapina, ganha
especial atenção dos penitentes caririenses nas elaborações mnemônicas de/sobre as irmandades as quais
integram.
131
cada corpo torna-se espaço privilegiado de uma produção simbólica acerca do individuo e das
suas crenças, do seu grupo e das tentativas de dominação que o corpo sofre, da capacidade
corporal de resistir e de inventar em face dos interditos que o cerca, das trajetórias no tempo e
aventuras no espaço. Trajetórias de vida e memórias coletivas, rituais e crenças re-
apropriados e re-significados de acordo com a inscrição daqueles que delas fazem uso nas
exigências e relações presentes, no encontro negociado entre sugestões e resistências, entre
destituições e invenção de tradições.
De fato, a trajetória das atuais irmandades de penitentes do Cariri cearense, dentre
as quais a Irmandade de Penitentes do Genezaré pode ser contada, tem sido marcada pelo
signo da re-apropriação e re-elaboração dos elementos mencionados anteriormente. Nesse
ponto, pode-se afirmar mesmo que o “catolicismo penitencial” tantas vezes já referido dialoga
muito proximamente com a noção de “catolicismo diferenciado”, conforme elaboração de
Anna Christina Farias de Carvalho (2011). Para a autora, as irmandades de penitentes do
Cariri cearense não seguem as crenças e práticas mais ortodoxas do catolicismo, antes operam
seguidas re-apropriações dos dogmas sem negá-los na sua totalidade e efetuam re-elaborações
capazes de proporcionar um universo religioso marcado por experiências místicas entre os
devotos e os seus deuses.
Pelo exposto, as crenças e os rituais das irmandades de penitentes do Cariri
cearense possuem vínculos dinâmicos com a instituição que fornece os dogmas sobre os quais
aqueles grupos leigos atuam no processo continuo de re-apropriação e re-elaboração dos bens
simbólicos de salvação. Ainda pode ser visto que mudanças paradigmáticas na Igreja podem
exigir adaptações das irmandades de acordo com as disputas sempre presentes entre tentativas
de controle, de um lado, e resistência, do outro. O processo de romanização, nesse sentido, foi
emblemático, segundo os argumentos de Anna Christina Farias de Carvalho (2011).
De fato, o processo de Romanização (ou Ultramontanismo), segundo a professora
Edilece Souza Couto (2010, p. 73-74), foi um conjunto de ações no qual “reformas na
formação intelectual e atuação do clero” operavam na tentativa de fortalecer a supremacia
clerical sobre o laicado, a ascendência de Roma sobre o tradicionalismo. Em suma, “(1)
restaurar o prestígio da igreja e a ortodoxia da sua fé e (2) remodelar o clero tornando-o
exemplar e virtuoso [...]” (DELLA CAVA, 1976, p. 32),
Não sem altos custos, as irmandades de penitentes resistiram àquelas tentativas de
controle e ao longo do século XX experimentaram outros resultados na sua relação com a
Igreja e com o Poder Público. As irmandades de penitentes do Cariri cearense e de outras
133
partes do território nacional são reinventadas como uma tradição cultural digna de valorização
e políticas de preservação, memória ainda em gestação.
Se por um lado, as relações das irmandades de penitentes com a hierarquia
católica têm contribuído substancialmente para a fabricação das identidades de tais
associações de leigos – fórmula sociológica desenvolvida por Anna Christina Farias de
Carvalho (2011) –, em outro sentido, esses diálogos entre leigos e hierarquia são inscritos na
sinuosidade das temporalidades difusas, nas rupturas imprecisas que marcam as trajetórias. Se
as identidades das irmandades de penitentes do Cariri cearense são resultados de re-
apropriações e re-elaborações do instituído, cujo produto é a mística, as mesmas irmandades,
cada uma ao seu modo, nos domínios de Cronos reinventam as suas próprias trajetórias,
encontram os seus limites, produzem novos argumentos simbólicos, convivem com novas
exigências, estabelecem novas relações, adaptam suas práticas, ajustam as suas crenças, mas
não são apenas o novo, não recusam os seus rastros e as marcas que trazem no corpo.
Elaboram e executam seus rituais do/no encontro indissolúvel do efêmero e do tempo remoto
e ainda assim memorável, do único com as multiplicidades, do “está escrito” com o que se
oculta. E o corpo, na sua qualidade de instrumento simbólico, alimenta e resulta dessas
experiências efetivamente dinâmicas e delineadas nos/pelos constructos históricos.
Os Penitentes do Genezaré, de fato, têm revelado nos nossos muitos diálogos
experimentados nesses mais de cinco anos de profícuos contatos serem dotados de sensível
consciência da inscrição dos seus rituais no tempo e no espaço e das exigências e resistências
impostas e resolvidas pelo corpo. Em boa parte das suas narrativas, eles afirmam, reiteram e
compartilham suas impressões acerca da trajetória dos rituais penitenciais dos quais a maioria
são adeptos desde o início da sua juventude. Para eles, sem exceção, muitas coisas têm
mudado com o avançar dos anos e permanecerá em continua transformação e o corpo é
evidência e promotor dessa dinâmica.
Os mais velhos não titubeiam em afirmar que “se cortar” – a forma como eles
fazem referência ao autoflagelo – sempre foi uma “obrigação” para todo e qualquer penitente,
com exceção do decurião que zelava apenas pela organização dos rituais e instrução moral
dos seus liderados. Em alguns casos, o líder de uma irmandade poderia punir aplicando
chicotadas a um penitente que, por algum motivo, se omitia da sua “obrigação” de ao findar
dos rituais haver produzido as marcas da penitência na carne. Deca Pinheiro afirma que, ainda
nos dias presentes, “[...] o penitente voltar pra casa, depois de sua obrigação, com o cacho
limpo e sem ter um sinal no corpo é um pecado dos mais graves para um penitente”. Com
base, nessa elaboração, Deca Pinheiro, ainda que exercendo a função de decurião, é o único
134
que ainda conserva a prática do autoflagelo durante alguns dos rituais da Irmandade que
lidera. Acerca da hesitação dos outros penitentes em manter ou iniciar-se em tais práticas, os
seus argumentos variam consideravelmente de um para outro.
Entre eles existem os que durante certo tempo infligiram a si a “disciplina” e que
hoje não mais conservam essa forma de ritual e há também os mais jovens do grupo que
nunca feriram seus corpos como parte dos rituais que executam. Entre os últimos, ocorre a
atribuição de circunstâncias alheias às suas vontades como obstáculo a iniciação na prática.
Para Bacum, um dos mais novos integrantes da Irmandade, o autoflagelo ainda
não foi realizado porque nos dias atuais o ritual deixou de ser uma exigência do decurião.
Antônio de Dôra afirma que nunca “se cortou” porque “hoje os tempos são outros”, os
penitentes não sofrem mais sobre a obrigação de impor a si tão pesado castigo. Por vezes, a
pressão daqueles que organizam eventos também é mencionada como fator para que os rituais
de autoflagelo não aconteçam. Diante de câmeras televisivas, em alguns casos, as
demonstrações de como se processa o ritual de autoflagelo ocorrem apenas com algumas
chicotadas no braço, conforme presenciei, evitando-se os excessos que poderiam causar
repulsa na audiência. Quando as matérias são vinculadas por mídia escrita impressa ou virtual,
algumas imagens descrevem os penitentes com marcas de açoite e sangue. Entretanto, trata-se
de uma imagem congelada de um ritual que pode ter sido executado ou não de acordo com os
padrões pertinentes ao grupo. Não é estranho aos penitentes na atualidade realizarem algumas
performances para provocar algum efeito esperado por aqueles órgãos de imprensa que em
determinada época do ano (principalmente na Semana Santa) vão à sua procura43. Contudo,
nem sempre as recomendações daqueles que elaboram convites para a “apresentação” dos
penitentes são efetivamente aceitas.
Em páginas anteriores, foram relatadas as tensões de um momento no qual a
Secretaria Municipal da Cultura de Assaré, organizando um evento, solicitou a participação
dos Penitentes do Genezaré. A recomendação do secretário era clara: não derramar sangue
visto que poderia manchar o tapete colocado no palco para o desfile das atrações (musicais e
43
Tenho acompanhado desde o ano de 2010 as matérias do jornal Diário do Nordeste que tratam da “abertura da
Semana Santa” no município cearense de Várzea Alegre e fazem menção à Procissão do Fogaréu com
participação de irmandades de penitentes do Cariri e Centro-Sul do Ceará. Ilustrando as matérias, imagens de
penitentes com suas vestimentas e equipamentos característicos. A Procissão do Fogaréu acima referida ainda
não contou com a participação dos Penitentes do Genezaré. Em 2010, Deca Pinheiro e seus liderados
aguardaram sem sucesso pelo veículo responsável pelo transporte do grupo do Genezaré até Assaré de onde
seguiram até Várzea Alegre. Como já havia ocorrido em outras ocasiões, o veículo contratado pela Prefeitura
Municipal de Assaré não cumpriu o acordado com a contratante e, mais uma vez, as expectativas dos Penitentes
do Genezaré foram frustradas. Naquele ano pude presenciar as expressões de decepção dos membros da
Irmandade em face de não realizar o desejo de participar daquela Procissão.
135
políticas) daquela noite. A resposta também consta anteriormente. Deca Pinheiro contraria as
expectativas dos organizadores e de boa parte do público. Não foram necessários muitos
açoites para que o seu sangue descesse das suas costas parcialmente desnudadas, passasse por
suas pernas avermelhando o branco da sua vestimenta e chegasse até o tapete desprotegido e a
partir daqueles instantes maculado pelo sangue do Penitente. Em outras situações, o grupo
afasta-se do público em busca da proteção de lugares ermos e na penumbra para que seus
rituais sejam completados conforme julgam ser o mais acertado para a Irmandade. Pode
ocorrer também de apenas o decurião afastar-se e praticar o autoflagelo distante dos olhos dos
outros membros do grupo e da assistência, em um ritual que intercala momentos públicos com
a solidão das “disciplinas” a ferir o corpo entregue de Deca Pinheiro. Para ele, sua
“obrigação” não carece de público, é algo da sua devoção particular, afinal, ele é único da
Irmandade que solitariamente ainda conserva essa prática. De qualquer forma, vê-se um corpo
a resistir às tentativas de controle e a carne que torna o seu policiamento um fracasso parcial
das instituições que, sob outra ótica, quer dizer aos Penitentes como seus rituais devem ser
executados, dar-lhes outra direção, imprimir-lhes novos sentidos que, ao menos, inicialmente
são rejeitados.
Os mais experientes nas práticas penitenciais sugerem que a reticência dos mais
novos diante da possibilidade de praticar o autoflagelo flutua entre as mudanças nos
significados atribuídos às irmandades na atualidade ou, mais simplesmente, a “falta de
coragem” dos atuais penitentes. As suas análises propõem uma comparação constante entre os
que as irmandades eram ontem e o que são hoje, entre o que se pensava delas na “época dos
seus pais” e o que se diz delas no presente e, não menos importante, quem eram os penitentes
dos tempos idos e quem são aqueles que integram as irmandades contemporâneas. Entretanto,
aqueles que durante algum tempo praticaram o autoflagelo para depois abandoná-lo quando
questionados acerca da dispensa da antiga prática penitencial, reafirmam que “os tempos são
outros” e justificam sua opção atual por causa das condições que o seu corpo impõem. Na
visão dos narradores, portanto, velhice comprometedora e saúde debilitada vêm tornar o corpo
do penitente um obstáculo dito intransponível à plena execução dos seus rituais.
O corpo com o passar dos anos já não suporta o peso dos flagelos, omite-se por
debilidade das longas jornadas, a voz já não diz os seus benditos como antes e empreende-se
muito maior esforço na tentativa de recuperar narrativas em forma de cânticos ou diálogos.
Tudo, na visão deles, parece mais penoso com o avançar do calendário. “Seu” Luiz Camilo
afirma que um dos seus parentes mais próximos manifestou o desejo não considerado novo de
136
ingressar na Irmandade. Agindo contra essa decisão encontra-se um corpo extenuado pela
idade e não favorecido por seguidos problemas de saúde.
E assim, já se vão alguns anos nos quais os Penitentes do Genezaré não
peregrinam durante as noites das Semanas Santas em busca de esmolas para os seus jejuns da
Sexta-Feira da Paixão. É possível encontrá-los anualmente em pequenas vias-sacras nas
imediações do Genezaré, sempre no início da noite, mediante convites e em companhia das
lideranças católicas e outros leigos da comunidade. Há, portanto, uma historicidade sendo
gestada pelo protagonismo do corpo que conserva em si as marcas do que produz no tempo e
no espaço.
Por outro lado, esses mesmos Penitentes que contam com mais de sessenta anos
de idade falam das suas primeiras tentativas de ingresso nas antigas irmandades lideradas por
seus familiares mais velhos como algo questionável por conta da pouca idade que contavam à
época. Diziam os mais antigos que “penitente é coisa fina, é trabalho pesado”, um fardo
igualmente difícil de carregar para aqueles jovens demais e para os que têm o corpo não
dispensado da atuação do tempo e isento das debilidades que algumas doenças podem causar.
E ainda, extrapolando os limites dos rituais, os penitentes carecem ter uma vida livre de
vícios, um corpo autocontrolável.
137
O tema das debilidades por causa de doenças marca de outra forma as narrativas
dos Penitentes do Genezaré: eles já foram objetos de alguma promessa ou entraram em acordo
com os seus santos de devoção em favor da saúde abalada de algum conhecido, familiar ou
mesmo um desconhecido. O acordo com um santo de devoção, ou uma promessa, implica que
a divindade ao atender a solicitação de devoto terá justa retribuição conforme o acordado e
não necessariamente a solicitação é feita por aquele ou aquela que carece da graça. Assim, o
senhor Joaquim Camilo usou durante algum tempo um hábito que fazia referência à memória
de São Francisco, Antônio de Dora ainda acompanha todo o trajeto da procissão em honra ao
padroeiro do Genezaré (o mesmo São Francisco) realizada anualmente descalço e Deca
Pinheiro a cada dia 20 mensal veste-se de preto para celebrar a atuação do padre Cícero no
seu corpo de penitente, livrando-o de um vício e devolvendo-lhe a saúde abalada por um
problema que causou para ele bastante embaraço. Segue o relato.
Deca Pinheiro foi fumante crônico durante boa parte da sua vida. A prática, para
ele considerada um vício, teve início ainda durante a sua adolescência e prolongou-se até um
dia de agonia extrema e posteriormente de libertação. Acometido por fortes dores intestinais e
ainda assim, o atual decurião da Irmandade de Penitentes do Genezaré empreendeu mais uma
jornada entre a sua residência e a lavoura que cultivava em um início de manhã, como ainda
hoje é de costume. Entretanto, as dores sofriam agravos e o corpo daquele homem penava
mais ainda sob o sol intenso de um dia sertanejo. Não demorou muito para que aquela
situação provocasse em Deca Pinheiro uma crise de diarreia, segundo ele, nunca antes nem
depois experimentada por seu corpo.
Em decorrência, dessa situação inicial ocorreu um inesperado desmaio e quando
aquele homem solitário e constrangido com a situação voltou aos sentidos percebeu as roupas
ensanguentadas e sujas igualmente pelo resultado daquela crise. Sua interpretação
rapidamente atribuiu a responsabilidade do abalo da sua saúde ao fumo. E, ainda mais
significativo, a forma que ele julgou mais pertinente para ter sua saúde restaurada foi solicitar
a intervenção do padre Cícero para a sua cura breve e em um futuro não muito distante a
libertação do seu corpo do vicio do fumo desde aquele instante interpretado como doentio. A
parte que caberia ao prometente seria todos os dias vinte, a cada mês, usar roupas pretas como
ato memorial ao padre que operara aquele milagre em sua vida e, ao mesmo tempo, Deca
Pinheiro deixaria de realizar tarefas laborais no mesmo dia.
Nesse sentido, o corpo é ao mesmo tempo objeto carente de livramento,
instrumento de culto a uma divindade e suporte de propagação da memória dos deuses que
produzem libertações e curas. Corpo liberto e entregue a algum sacrifício. Tem-se, portanto, o
138
corpo em destaque na relação do homem com seus protetores celestes. O corpo que a cada
mês esconde-se atrás de uma veste de luto e reserva-se de suas obrigações cotidianas a fim de
que somente o santo da sua devoção e libertação seja comemorado naquele dia, através dessa
mensagem propagada a todos pelo corpo liberto do prometente. Não obstante, no catolicismo
diferenciado (CARVALHO, 2011), pautado em uma relação mística de proximidade entre os
fiéis e os seres da sua devoção, há espaço para que alguns dos acordos sejam reformulados,
prazos para início ou término, duração ou formas alternativas para pagamento de promessas
podem surgir a partir de novas demandas. Deca Pinheiro, por exemplo, atualmente já não
conserva a sua escusa em realizar atividades laborais nos dias vinte de cada mês e acredita
que o seu santo protetor entende como normal esse rearranjo no acordo inicial entre ambos.
As mudanças que o tempo impõe servem de mecanismo para que o santo protetor, em alguns
casos, flexibilize suas exigências com o prometente e assim o corpo experimente maior
liberdade nas suas obrigações.
Admite-se, porém, que tal flexibilidade não ocorrerá em todos os casos, não seja,
portanto, uma regra. No capítulo anterior, for mencionado que em uma circunstância muito
específica um pagamento de promessa foi invalidado porque realizado contrariamente à forma
inicialmente acordada. O ritual precisou ser executado mais uma vez de acordo com a
exigência do santo que agraciara a prometente, nos dias do pagamento da promessa já
falecida, não obstante mais algumas exigências que deveriam ser cumpridas através de mais
esforço corporal dos penitentes. O anúncio que a divida da prometente ainda estava em aberto
mobilizou naquela situação recursos de comunicação entre o mundo dos vivos e dos mortos, o
diálogo fez-se notar através das reações do corpo daquela que recebera a mensagem da dívida
da falecida. O corpo da vizinha que manteve contato com a mulher morta, revelou o objeto da
aparição e permaneceu estático até que a promessa fosse efetivamente cumprida segundo as
exigências do santo que atendera a demanda da prometente.
O episódio narrado com maiores detalhes no capítulo anterior e referido apenas
pontualmente no parágrafo acima contribui ainda para a compreensão de que corpos que
padecem sob algum mal ou ameaça podem exigir uma intervenção dos penitentes capaz de
aliviar aquele corpo ameaçado e padecente das suas angústias e dores. Afinal, não seria esta
uma das funções do corpo do cristão: escrever no próprio corpo pelos sacrifícios a história de
libertação dos seus semelhantes do sofrimento presente e vindouro? Assim, não são poucos os
relatos dos membros da Irmandade de Penitentes do Genezaré que tornam conhecidos os
rituais nos quais intercedem pela amenização ou cura permanente de corpos padecentes.
139
de um membro dos mais respeitados do grupo em alguns dos seus rituais é, de certa forma,
reconstruir a beleza de outros tempos, dias idos, marcas que a memória investiga e reelabora,
é também dizer aos assistentes que aqueles jovens podem ser a garantia da permanência em
atividade daquela irmandade e desejar crer, construir ainda que desesperadamente, (n)esse
futuro.
Ao longo deste capítulo tem sido afirmado o caráter performático dos rituais da
Irmandade de Penitentes do Genezaré e de outros grupos semelhantes, ou seja, os seus rituais
provocam impactos sensíveis na assistência e tais impactos quando exercidos sobre
intelectuais vinculados a projetos de construções identitárias nacionais e locais alimentaram
impressões e análises que acabaram por se tornar textos de referência para quem deseja
conhecer a trajetória das práticas penitenciais de leigos organizados em irmandades na
América portuguesa e posteriormente no Brasil. Dar atenção a essas leituras é adquirir
informações não somente sobre penitentes e suas performances; é também perceber como
intelectuais interpretavam a partir do seu lugar social os grupos em questão e seus rituais.
Em outro sentido, fiz questão de estabelecer vínculos entre os rituais da
Irmandade de Penitentes do Genezaré e aspectos da tradição cristã inscritos em uma longa
duração na qual o corpo, na sua qualidade de elemento simbólico, ocupa espaço privilegiado.
Referenciados pelo martírio do Salvador, os cristãos e cristãs medievais ansiavam por ter seus
corpos assemelhados com o corpo do Homem das Dores e, diante desse quadro de desejo e
busca, as limitações e castigos autoimpostos tornaram-se presença constante no cotidiano e
registros de algumas cidades europeias daquele período. Calamidades sociais de grandes
proporções tendem a agravar as “crises de flagelação”. Assim, a certeza do pecado humano e
da ira divina, a expectativa do fim dos tempos e o horror da condenação eterna eram
interpretados à luz dos acontecimentos que marcavam a vida da cristandade na Idade Média.
Ainda que sujeitas às vicissitudes históricas e envolvidas talvez por outras motivações mais
de acordo com as realidades sugeridas ou impostas pelo tempo e por características de cada
grupo social, as práticas penitenciais praticadas por grupos de leigos organizados em
irmandades, algumas delas autoflagelantes, cruzam o Atlântico junto com os conquistadores
ibéricos e descrevem uma trajetória bastante profícua e ainda não sepultada pelo tempo nos
antigos domínios portugueses na América.
A Irmandade de Penitentes do Genezaré tem seus rituais fortemente marcados por
essa noção de sacrifício e autoimposição de limites ao corpo. O corpo do penitente, de acordo
com a concepção da Irmandade em questão, precisa ser autocontrolável e capaz de suportar as
exigências que as longas caminhadas, o autoflagelo, os jejuns impõem. Igualmente, abster-se
141
representam uma cultura local assareense vinculada aos saberes e fazeres do povo cearense
(reafirma-se a presença de irmandades de penitentes em outras partes do Ceará, especialmente
no Cariri), sem deixar de expor seu pertencimento à cultura nacional, tais são essas
elaborações em voga e em permanente reconstrução.
Antes de dar por encerrado este capítulo, desejo retomar uma fala recorrente de
alguns os Penitentes dos Genezaré, em especial algumas palavras do decurião Deca Pinheiro e
do penitente Fortunato. Para ambos, os rituais da Irmandade dos Penitentes do Genezaré têm
forte caráter memorialístico, servem para comemorar e divulgar os atos de Jesus em favor da
salvação da humanidade, entrega sem reservas inscrita no corpo e pelo corpo do Salvador e
comemorada pelos rituais dos Penitentes.
De fato, para Paul Connerton (1999), a memória dos grupos é conservada e
transmitida através de atividades performáticas com fortes conotações rituais, perspectiva não
contemplada nos estudos de Maurice Halbwachs (CONNERTON, 1999; HALBWACHS,
2006). O pensamento de Connerton (1999) aponta para o fato de que o trabalho da memória
social está presente e pode ser identificado em cerimônias comemorativas e em práticas
corporais. Nessa perspectiva, o corpo lembra e ajudar o lembrar dos grupos, contribui para um
recordar em conjunto.
Para dar consistência e poder de convencimento aos seus argumentos, Paul
Connerton (1999) mantém certa proximidade de Maurice Halbwachs (HALBWACHS, 2006)
ao afirmar que “As nossas memórias estão localizadas no interior de espaços materiais e
mentais do grupo” (CONNERTON, 1999, p. 42). Para um eficiente “recordar em conjunto”,
entretanto, faz-se necessário que além da capacidade de retenção das representações mentais
coletivas cada grupo tenha nos seus velhos, indivíduos ativos no compartilhamento das
referidas representações. As cerimônias comemorativas e as práticas corporais integram o
conjunto de atos de transmissão essenciais para a conservação da memória social. Os rituais, a
um só tempo, podem ser identificados com cerimônias comemorativas e exigir dos seus
praticantes um conjunto de posturas e gestos corporais específicos e decifráveis para o grupo,
além do mais quem executa um ritual declara certo tipo de concordância com aquilo que
executa. Ainda, pode ser afirmado que uma das características dos rituais é justamente sugerir
alguma continuidade entre o presente e o passado pelo conjunto de elementos invariantes que
dão a sua forma. A continuidade referida pode ser encontrada associada com comemorações
de acontecimentos inscritos na trajetória efetiva de um grupo ou na sua interpretação
mitológica da própria existência.
Em complemento a essa argumentação, para Paul Connerton (1999, p. 52)
143
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o mesmo propósito, tive acesso aos Livros de Tombo da Paróquia de Nossa
Senhora das Dores de Assaré e a Leis Municipais que sugerem como as produções culturais
locais são influenciadas pelo poder público do município. Não menos significativos foram os
diálogos mantidos com parte da filmografia dos cineastas Rosemberg Cariry e Petrus Cariry
que contempla facetas dos rituais e cosmogonias de outras irmandades de penitentes que
atuam no Cariri cearense, mais precisamente nos municípios de Juazeiro do Norte e Barbalha.
Ao empreender as análises necessárias a uma melhor compreensão de rituais na sua
qualidade de categoria analítica, pude deparar-me com um vasto e polifônico acervo de
produções científicas que têm nos rituais o tema privilegiado de análise. Em meio a tantas
visões, por vezes conflituosas ou complementares, optei pela concepção adotada por Valerio
Valeri (1994) a qual interpretei como “concepção estética dos rituais”. Em sentido amplo, a
estética conforme pensado nesse trabalho indica que os praticantes de determinado ritual
empreendem escolhas e executam seus rituais que ao final resultam em experiências
consideradas agradáveis aos sentidos dos praticantes e impactantes à assistência.
Com base no mesmo suporte teórico, pode ser percebido que os rituais dos Penitentes
do Genezaré realizados anualmente a cada Semana Santa e no Dia de Finados e
eventualmente quando convites são elaborados por terceiros para que os Penitentes
intercedam em favor das almas de algum dos seus mortos, na mesma medida em que atendem
à alguma exigência ou sugestão do contemporâneo produzem elaborações que têm, por
objetivo reivindicar uma continuidade com o passado inscrito em uma longa duração marcada
pelas noções de sacrifício e salvação, tão caras ao cristianismo. Dessa forma, os rituais dos
Penitentes do Genezaré dão visibilidade aos diálogos entre passado e presente conjugados em
um todo coeso. Entretanto, o futuro para os membros da Irmandade encerra os sinais de uma
incógnita que amedronta por não garantir a certeza que o grupo permanecerá em atividade
após a morte dos mais antigos integrantes da Irmandade.
Ainda refletindo diálogos entre elementos aparentemente inconciliáveis, os rituais dos
Penitentes do Genezaré indicam que, além do passado e presente, o individuo e o coletivo,
normas e invenções, a vida e a morte, os vivos e os mortos são articulados de forma a integrar
um mesmo conjunto complexo de crenças e práticas passível de reinvenções. Verificou-se a
partir dessa constatação um amálgama no qual são alternadas prioridades entre um ou outro
elemento do diálogo. Assim, retomando as análises de Valério Valeri (1994), as escolhas dos
sujeitos em um ou outro momento podem superar as exigências coletivas, a criatividade do
individuo burlar algumas regras tidas por tradicionais e mais adequadas ao grupo e a
148
relação aos Penitentes do Genezaré e seus rituais, também isso essa pesquisa não pode
constatar.
Estão postas, portanto, outras possibilidades de reflexão acerca dos rituais dos
Penitentes do Genezaré não contempladas nesse texto e que garantiriam uma contextualização
mais ampla e consistente não permitida pelo corpo de fontes construído paralelamente e de
acordo com os objetivos preliminarmente propostos. Confirma-se, assim, o caráter inconcluso
desse trabalho. Talvez o futuro reserve possibilidades de novas questões que carregam
consigo respostas plurais e o incremento do acervo de fontes permita estabelecer vínculos
mais amplos entre os rituais dos Penitentes do Genezaré e o campo religioso local não
redutível ao Catolicismo e as transformações que a Igreja Católica tem experimentado nos
últimas seis décadas.
De qualquer forma, julgo que a beleza desse trabalho é a própria virtude da História
Oral, qual seja: não reduzir sua narrativa a eventos, buscar os meandros das atribuições de
significados empreendidos pelos narradores. Sobretudo, dialogar com um elemento que em
nenhuma outra fonte o historiador pode encontrar em igual medida, como bem afirmou
Alessandro Portelli (1997), as subjetividades dos narradores.
O estudo dos rituais dos Penitentes do Genezaré proporcionou esse exercício
intelectual prazeroso.
150
FONTES
FONTES ORAIS:
Entrevistas com:
10. Marcos Salmo Lima Barreto, servidor público municipal de Assaré, 28 anos de idade,
residente e domiciliado à Avenida Honório Vilanova, Bairro Vila Nildália, Assaré. Secretário
151
Municipal da Cultura de Assaré entre janeiro de 2009 e abril de 2012. Entrevista concedida
em setembro de 2012.
FONTES ESCRITAS:
1. Vileci Basílio Vidal, pároco de Assaré entre outubro de 2008 e agosto de 2010.
Depoimento concedido em fevereiro de 2012.
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Manuscritas
Livro de Tombo nº. 01 da Paróquia de Nossa Senhora das Dores de Assaré (1894-2001)
Livro de Tombo nº. 02 da Paróquia de Nossa Senhora das Dores de Assaré (2001- )
FONTES AUDIOVISUAIS
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Juazeiro: A Nova Jerusalém. Dir.: Rosemberg Cariry. Brasil. Documentário. Cores. 72min.
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Documentário. Cores. 60min.
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