FAGUNDES TELLES
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
2008
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FICHA CATALOGÁFICA
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A minha esposa Cátia, pela fantástica existência ao meu lado.
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“As pessoas pensam que sonhos não são reais apenas
porque não são feitos de matéria, de partículas. Sonhos são reais.
Mas eles são feitos de pontos de vista, de imagens, de memórias
e trocadilhos, e de esperanças perdidas.”
Neil Gaiman
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AGRADECIMENTOS
acreditar em mim.
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O FANTÁSTICO E O MEDO: UMA LEITURA DE MISTÉRIOS DE LYGIA
FAGUNDES TELLES
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira.
Bessière, H.P Lovecraft, Vax, Furtado e Cesarini, busca-se nesta dissertação identificar os
Mistérios, que reúne diversos contos da autora. A inserção nos mistérios de Lygia revela um
universo em que os temas do abandono e da solidão serão os pontos de partida para uma
reflexão sobre a morte, sobre os sentimentos reprimidos e sobre as relações humanas sempre
definido pelos diversos autores citados nesta dissertação e conferem dramaticidade aos contos
da autora.
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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ABSTRACT
FAGUNDES TELLES
como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira.
The dissertation undertakes a study of the fantastic narrative through Lygia Fagundes
Telles stories, observing mainly the effect of the fear and of the "double" Freudian in the
characters' characterization. Being taken previously into account the studies presented by
Todorov, Bessière, H.P Lovecraft, Vax, Furtado and Cesarini, is looked for to identify the
lines of the fantastic, of the unusual and of the wonderful in the narratives that compose the
collection Mysteries, that it gathers the author's several stories. The insert in Lygia's mysteries
reveals an universe in that the themes of the abandonment and of the solitude they will be the
starting points for a reflection on the death, on the repressed feelings and about the human
relationships always permeated of anguish and suffering. The presence of the dreamlike
atmosphere, of the physical transformations and of the supernatural it helps to build a scenery
that is adjusted to the concept of fantastic defined for the several authors mentioned in this
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
4 CONCLUSÃO
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 INTRODUÇÃO
palavra é derivada do grego Mysterion e indica aquilo que está fechado (Cunha, 1986, p.524).
Com esse título, estão reunidos alguns contos de Lygia Fagundes Telles que podem ser
estranho.
Lygia Fagundes Telles é uma escritora que escreve sobre as relações humanas de
forma universal. Contista e romancista, a autora adentra nos sentimentos de seus personagens
e de seus leitores e resgata sempre, através de uma voz nem sempre perceptível, um fio de
esperança sobre as tão obscuras relações entre vida e morte, fé e ceticismo, passado e
desdobram, onde o duplo remete a uma sensação inquietante, onde o ambiente onírico surge
com seus temores, se insere na linha de estudos sobre a narrativa literária brasileira e visa a
examinar alguns aspectos através dos quais o fantástico e o estranho atuam na construção do
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A narrativa fantástica é um gênero que, ao longo dos tempos, vem despertando a
curiosidade de muitos estudiosos que a ela tem se dedicado na intenção de torná-la, por assim
dizer, definível; entretanto, estes estudos têm se mostrado incapazes de abarcar a totalidade de
sua representação. Definir o fantástico já é por si só uma tarefa monumental, pois, como
afirmou Borges, o fantástico foi a linguagem preferida dos escritores do mundo inteiro, em
todos os tempos, e que o realismo não passava de uma excentricidade. (Apud. TAVARES,
2003, p.7)
muitas vezes o fantástico está associado a elementos que nos levam a questionar as leis
naturais. A concepção de realidade leva a muitas interpretações. O mundo racional teve seu
auge no Século das Luzes e a visão de mundo pragmática substituiu a visão religiosa e
subjetiva dos anos anteriores. Nesse caminho, o homem moderno buscou na Razão as
respostas a suas dúvidas milenares e acreditou que a Ciência seria capaz de orientá-lo, mas
homem e a realidade está sempre sendo questionada. A realidade é um conceito formado por
paradigmas que determinam o que é verdadeiro dentro de uma lógica comum ao momento e
ao meio em que está inserida. A res, de onde surge o termo Real, é a coisa material que pode
ser percebida pelos indivíduos e que se opõe ao eidos ou a essência, modelo postulado por
Platão.
mimese, e operar a mimese consiste em agir sobre a physis, criando uma nova realidade feita,
na literatura, de palavras. Se o Real é aquilo que se julga ordinário, o Fantástico é tudo o que
foge dessa concepção, é o extraordinário, o que está fora da ordem, o insólito, pois não se
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O conto fantástico surge como a relação entre a realidade do mundo que habitamos e
mora em nós e nos comanda. O sobrenatural e o medo são temas recorrentes da condição
humana e, ao buscar no insólito um lugar para seus anseios, o homem conseguiu um alívio
para suas frustrações e esse é externado através de narrativas em que o mundo que
Um dos temas recorrentes na literatura fantástica, embora não essencial para a sua
construção, mas ainda assim presente em muitos textos é o medo. O medo é um sentimento
essencial na construção tanto do indivíduo quanto da sociedade, uma das paixões mais tristes
segundo Spinosa, porém a mais necessária, sem a qual jamais teríamos sobrevivido, já que ela
é responsável pelo instinto de sobrevivência. Para H.P. Lovecraft, o medo é uma das mais
desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivo claros; quando nos assombra
sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser
vislumbrada em toda parte, mas em lugar algum se pode vê-la. Medo é o nome que damos a
nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito, do que pode e do que não
pode, para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance. (BAUMAN,
2008, p.8)
Nesse terreno do desconhecido, Lygia adentra em contos que sugerem mais do que
adentrarem em sua própria escuridão e nos quais uma atmosfera de medo encontra-se
presente.
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As muitas discussões sobre a narrativa fantástica, sobre o estranho e o medo podem
ser direcionadas aos contos que compõem a coletânea Mistérios. Publicada em 1981 pelos
professores e ensaístas Maria Luiza e Alfred Opitz, o livro foi lançado na Alemanha com o
título de Contos fantásticos e reúne desde contos antigos, como “A estrela branca”, publicado
em 1949 na obra Cacto vermelho, até contos de 1977, como “A presença”, publicado em
de Lygia Fagundes Telles, os traços mais significativos desse gênero e perceber a sedução que
sobre o tema e ainda levando em consideração a conceituação que Freud nos apresenta sobre
elemento que confere dramaticidade às relações pessoais, sempre movidas por uma
angustiante sensação de abandono e solidão. A morte é muito mais terrível quando precedida
da certeza de sua presença sorrateira nos cantos do inconsciente, que se revela lentamente e
Tão presente nos contos como a morte física está a morte social, o abandono, a
realidade e submergem no insólito a fim de nele encontrar alívio. É o caso de contos como
“Emanuel”, “Natal na barca”, “As formigas”, “O Muro”, entre outras narrativas em que a
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Procuraremos então fazer uma abordagem do fantástico que possa se aplicar aos textos
idéia de que seus textos exploram esses temas a fim de obter uma força de dramaticidade que
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2 UM OLHAR SOBRE O FANTÁSTICO E O MISTERIOSO
Podemos destacar entre esses os que, ao nosso ver, tiveram relevante papel na definição das
Cesarini servirão de base a nossas reflexões, para nos nortearmos num universo amplo e rico
estrutura formal para a literatura fantástica, partindo do princípio de que toda obra literária se
possui papel importante nas narrativas fantásticas, o que é ratificado por Furtado ao afirmar
No entanto, para que esta hesitação ocorra, três condições devem ser satisfeitas: o
leitor deve considerar o mundo das personagens como um mundo de criaturas vivas e hesitar
entre uma explicação natural e uma explicação sobrenatural; a hesitação deve ser confiada a
2
Entrevista publicada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u43369.shtml
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uma personagem, que se torna um leitor implícito; e, por último, é necessário que o leitor
adote certa atitude para com o texto, ao recusar tanto uma leitura alegórica quanto uma leitura
poética.
Assim, o fantástico dura o tempo da incerteza, pois se escolhermos uma resposta que
nos faça sair da dúvida, entramos em dois outros gêneros vizinhos, o estranho e o
maravilhoso.
fatos apenas a aparência de serem sobrenaturais por seu caráter insólito, ou seja, seria um
fornecer uma explicação aceitável, como por exemplo: o sonho, a loucura, a alucinação, as
quais o fenômeno pode ser explicado. É o caso dos contos de fadas, em que encontramos
conta”; portanto, no maravilhoso a postura adotada pelo leitor é uma postura alegórica dos
fatos, pois tais acontecimentos são vistos como a representação simbólica do real.
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Segundo Corbin, a alegoria é uma operação racional que não implica passagem a um
novo plano do ser nem a uma nova profundidade de consciência daquilo que já pode ser bem
conhecido de uma outra maneira (Apud Chevalier, 2005, p.12). Para Todorov, a alegoria é
uma proposição de duplo sentido, mas cujo sentido próprio se apagou inteiramente. (Todorov,
2004, p.69) A alegoria propõe não uma leitura direta, e sim uma indireta dos acontecimentos
narrados. Assim, quando ouvimos o dito popular “A vaca foi pro brejo” não pensamos no
animal e em seu ato, mas sim num problema difícil de se resolver. A leitura alegórica deve ser
entendida como contrária à literariedade e, portanto, foge à concepção do fantástico, pois esse
maravilhoso, e nele os acontecimentos insólitos atuam como algo perturbador, porque eles se
colocam no seio do mundo real, obrigando o leitor a optar por uma das duas explicações: ou
trata-se de uma ilusão, efeito da imaginação – as leis naturais continuam a ser o que são –, ou
então os fatos ocorreram realmente e não podem ser explicados pelas leis que conhecemos.
Entre o estranho e o maravilhoso, Todorov afirma haver subgêneros que estão entre
numa escala gradativa entre o estranho puro e o maravilhoso puro. O fantástico-estranho seria
Mirabilia, de onde deriva a palavra maravilhoso. Esse vocábulo tem na sua raiz a indicação
daquilo que se vê, mas antes de indicar a singularidade o termo remete a um universo plural
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Os mirabilia não são apenas coisas que o homem pode admirar com os
olhos, coisas perante as quais se arregalam os olhos, originalmente há,
porém, esta referência ao olho que me parece importante, porquanto todo um
imaginário pode organizar-se à volta desta ligação a um sentido, o da vista, e
em torno de uma série de imagens e metáforas que são metáforas visivas.
(Le Goff, 2001, p. 17-8)
O maravilhoso na Idade Média, durante os séculos V e XI, foi uma herança combatida
num primeiro momento pela Igreja cristã, pois remetia a patrimônios culturais de sociedades
antigas e pagãs e representava um dos elementos mais perigosos da cultura tradicional, visto
Já nos séculos XII e XIII, o maravilhoso irrompe nas cortes e nas novelas de cavalaria
contribuindo com a figura mítica do cavaleiro medieval, que provava sua excelência ao
enfrentar e vencer monstros, dragões e outros elementos fantásticos. O herói passa por toda
uma série de maravilhas e é também auxiliado por elas, maravilhas como a espada mágica,
porções encantadas, anéis e uma série de objetos que contribuem para esse efeito do
maravilhoso.
divina o poder de execução desses atos. A Igreja já não teme o poder dele e até se beneficia da
Sobre a arte gótica, pode-se dizer que ela fez uso constante do tema do sobrenatural,
Lovecraft mostra que elementos tão comuns aos textos fantásticos, como os relatos
a literatura fantástica, como forma estabelecida e reconhecida, tardar tanto para nascer e
afincar-se definitivamente na cultura literária, pois os sentimentos que formam sua essência
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Felipe Furtado, em A construção do fantástico na narrativa, declara que qualquer
sobrenaturais. Por outro lado, tais manifestações não irrompem de forma arbitrária num
designa o fantástico. Entende-se por positivo ou negativo o conceito que o leitor naturalmente
tem de atos bons ou ruins como, por exemplo, uma fada transformar um sapo em príncipe ou
Magicus, que inicialmente poderia remeter a uma concepção tanto positiva, como no caso da
magia branca, quanto negativa, no caso da magia negra, mas que acabou por deslizar para o
lado do mal e passou a ser caracterizado como um sobrenatural maléfico ou satânico e, por
fim, o Miraculosus, que seria o sobrenatural cristão de onde provem o milagre e sempre
organiza como uma estrutura cujos componentes se interrelacionam, devemos procurar esta
ambigüidade nos vários níveis que compõem a obra: verbal, sintático e semântico. O nível
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personagens, é o que melhor conviria ao fantástico, pois relata os acontecimentos facilitando a
O aspecto semântico refere-se aos motivos e temas. Todorov faz uma distribuição
espaço; Os temas do “eu” podem ser designados como “temas do olhar”, devido à importância
Os temas do “tu” tratam preferencialmente da relação do homem com seu desejo (seu
ponto de partida é o desejo sexual), ou melhor, com seu inconsciente, ao entrar em relação
Em termos genéricos, pode-se falar dos temas do “tu” como “temas do discurso”,
pelo fato de a linguagem agir como agente estruturante da relação do homem com outrem.
São eles: o desejo sexual puro e intenso, o diabo e a libido; a religião, a castidade e a mãe; o
incesto; o homossexualismo; o amor a mais de dois; a crueldade, que provoca ou não o prazer;
temas do “tu” são, portanto, os temas que relacionam o homem ao seu desejo e o seu
inconsciente É importante observar que, na categorização dos dois grupos temáticos, não
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encontramos uma tentativa de interpretação dos temas, apenas a constatação de sua presença
Todorov, que tem como base a hesitação, decorrendo daí uma conseqüência fundamental: na
medida em que saímos da hesitação entramos em gêneros vizinhos ao fantástico; logo, poucas
Entretanto Todorov, ao fazer seu estudo sobre o fantástico, deixa de lado obras
sobrenatural para dar-lhe uma aparência cada vez mais natural e o final da história é o mais
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Embora se apóie num conceito subjetivo, já que transfere a conceituação do fantástico
pois a associação com o sentimento do medo e do horror será de grande utilidade na análise
de alguns textos de Lygia Fagundes Telles onde o elemento que se poderá associar ao
essencial” a fim de se produzir uma indefinição por parte do leitor. A exemplo disso o autor
cita o elemento onírico como produtor desse efeito. Sonho e realidade se misturam, se
onírico provoca essa “obscuridade essencial”. O elemento onírico produz esse efeito em
contos como “A mão no ombro”, “As formigas”, “Natal na barca”, “O encontro”, que serão
analisados posteriormente.
acontecimentos narrados. O que a faz diferir de Todorov, no entanto, é que, para ela, a
incerteza seria a impossibilidade de se escolher entre as explicações, visto que nenhuma delas
poderia ser considerada verossímil, enquanto para aquele se deve optar por uma resposta e
levar o texto aos gêneros vizinhos do estranho e do maravilhoso. Para a autora existiria uma
dupla explicação dos acontecimentos tanto pela ordem natural quanto pela sobrenatural, mas
23
suas contradições e da sua reclusa mútua e implícita.(...) (Apud Cesarine,
2008, p.65)
Por fim, Cesarini, em sua obra O fantástico, considera o fantástico um modo e faz distinção
entre as tendências da crítica de limitar o fantástico a obras e escritores do século XIX, como a de
Todorov, e a de expandir o conceito de fantástico a obras pertencentes a outros modos como a fábula,
são a posição de relevo dos procedimentos narrativos no próprio corpo da narração, o uso da
que transita entre os mundos naturais e extra-naturais, as elipses ou os vazios narrativos, que
presença da noite, da escuridão, do mundo obscuro e das almas de outro mundo, a vida dos
(...) a literatura fantástica não pode ser reduzida a uma simples operação
retórica e lingüística, mas trata-se – como sempre ocorre quando tratamos
com elementos de ambigüidade e com o cômico – de algo que afunda suas
raízes nas mais profundas camadas de significado e toca a vida dos instintos,
das paixões humanas, dos sonhos, das aspirações. (Cesarini, 2008, p.100)
24
experiência perturbadora a redescobrir dentro de si, e através dos eventos
vividos ou narrados, formas de conhecimento ou sensações pertencentes a
modelos culturais até então abandonados. (Cesarini, 2008, p. 104)
Com base nessa visão de Cesarini sobre o fantástico, além das outras aqui trabalhadas,
Fagundes Telles. Veremos como os temas comuns ao fantástico são também recorrentes em
alguns contos de Lygia Fagundes Telles e como eles acentuam um estilo particular de tratar as
Não existe de fato uma tradição do fantástico na literatura brasileira. A incursão por
esse tema é feita de forma tímida por alguns autores que, vez ou outra, se ocupam desse
universo. Podemos citar alguns deles, de várias épocas, que se arriscaram no terreno do
fantástico.
Narrativas produzidas por Machado de Assis, Coelho Neto, Murilo Rubião, Carlos
Drummond de Andrade, José J. Veiga, Álvares de Azevedo, Guimarães Rosa, Jorge Amado,
Érico Veríssimo, Monteiro Lobato, João Ubaldo Ribeiro, Orígenes Lessa, Aluísio Azevedo e
alguns outros mais fizeram uso de elementos insólitos. O escritor e estudioso Bráulio Tavares
Biblioteca Nacional e algumas coletâneas foram publicadas com o intuito de reunir contos que
fizessem parte de um gênero que pudesse ser classificado como fantástico. Dentre essas
Entretanto, a diversidade de autores comprova não haver uma unidade que possa servir
25
até a amplitude que o termo fantástico possui levou a uma classificação heterogênea de
Textos que vão da fábula ao gótico, da fantasia à ficção científica e ao conto de terror
costumam ser classificados como literatura fantástica e talvez seja essa a única ponta que liga
Durante muito tempo e ainda hoje, tem-se sobre as narrativas fantásticas uma
concepção depreciativa e talvez esta possa ser uma das explicações de não haver autores
especialistas nesse tipo de narrativas. Se, por um lado, Tolkien, C.S Lewis, Poe, Hoffmann,
King, entre outros, têm sua consagração ao explorarem o tema da fantasia, do terror, do
sobrenatural, por outro lado, pouquíssimos autores brasileiros possuem reconhecimento por se
dedicarem ao fantástico. Podemos destacar Murilo Rubião, que dedicou sua obra quase que
exclusivamente ao conto fantástico lato senso, e José J.Veiga, que tem entre suas melhores
fantástico em algumas de suas mais significativas obras. Muitas coletâneas da autora já foram
reunidas incluindo contos que podem se enquadrar no gênero fantástico. A primeira dessas
coletâneas, e a escolhida para esse estudo pela sua relevância dentro da obra de Lygia, é a
Brasil, em 1981, com o título Mistérios. Outras antologias foram feitas utilizando a mesma
temática, como por exemplo, Histórias de mistério, publicada em 2004 pela Rocco,
organizada por Rosa Amanda Strausz, e Venha ver o pôr o sol e outros contos, publicada pela
Ática em 1988, que também traz em sua maioria os contos fantásticos de Lygia.
multiplicidade de autores e obras que foram denominadas com o termo fantástico nos leva a
uma convicção de que não há um caminho único e delimitador de um gênero, mas sim um
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conjunto de temas e formas que são recorrentes em algumas narrativas que costumam ser
Assim, temas como o duplo, o sonho, a loucura, a solidão, o medo serão vistos como
elementos relevantes na obra de Lygia e sinalizarão para um ponto de contato com a literatura
fantástica. Os mistérios de Lygia Fagundes Telles são elementos que representam o lado
obscuro de seus personagens e ultrapassam o limite entre o real e o irreal para revelar desejos
ocultos.
27
3 PENETRANDO OS MISTÉRIOS DE LYGIA FAGUNDES TELLES
“A minha história é uma forma
de acreditar no ser humano.”3
(LYGIA FAGUNDES TELLES)
a algo familiar que se desdobra em algo desconhecido. Para o autor, o estranho relaciona-se
indubitavelmente com o que é assustador, com o que provoca medo e horror. E esse
sentimento brota do que era próximo e íntimo e foi reprimido tornando-se distante e estranho.
momento da vida e que não foram superadas passando, portanto, a perturbar e desorientar o
personagem.
área em que o indivíduo está inseguro a respeito de sua própria orientação em redor. Para o
seu surgimento, algo que havia sido sempre habitual, íntimo e, portanto conhecido e
familiar. O estranho é, portanto aquela categoria que remete ao que é conhecido, de velho, e
há muito familiar, pois nem tudo que é novo e não familiar é assustador, algo tem de ser
Nos contos de Lygia Fagundes Telles, são percebidas várias situações que podem ser
entendidas como o estranho conceituado por Freud e que causam efeito de “incerteza
3
Entrevista publicada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ ult90u396352.shtml
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intelectual” no leitor. Em narrativas como “A caçada”, por exemplo, a personagem se vê
diante de algo que remete ao familiar, uma cena representada na tapeçaria de uma loja de
antiguidades parece suscitar no protagonista uma lembrança, nessa cena, uma caçada é
retratada e num primeiro plano se encontra um caçador segurando um arco, num segundo
plano, há um outro caçador que espreita a caça por entre as árvores. A caça, no entanto, não
aparece, está oculta, mas vai se revelar como elemento fundamental da narrativa. Aos poucos,
provocando uma ruptura entre o mundo externo, vivido pelo personagem, e o mundo interno,
Essa tapeçaria representa a cena de uma caçada, e essa cena, de certa maneira, parece
familiar ao protagonista, que, num primeiro momento, não consegue recordar exatamente de
onde provém essa identificação, mas, no decorrer da narrativa, essa familiaridade vai
personagem se reconhece no papel da caça e finda por sair do mundo natural e adentrar na
tapeçaria. Da mesma forma que Freud atribui papel relevante ao olhar na analise que faz do
conto de Hoffmann, assim temos, na narrativa, um personagem que reconhece, através desse
mirar, o seu sentimento reprimido. O medo da morte e a luta contra o abandono fazem desse
cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo meu Deus! Em que tempo teria assistido a essa
Para Freud, a presença do estranho se faz através de algo reprimido que retorna, o
estranho seria algo familiar, mas que foi alienado através de um processo de repressão e esse
impulso, que deveria permanecer oculto, veio à luz. O Estranho é sempre uma área em que o
indivíduo está inseguro a respeito de sua própria orientação em redor; quanto mais orientado
29
em relação aos seus arredores, menor a possibilidade de que ele considere estranhos os
encontro”, uma narrativa em que a personagem se encontra num campo aparentemente nunca
antes visitado, porém aos poucos essa paisagem vai se tornando familiar. A dúvida da
incerteza e aos poucos o unheimlich torna-se heimlich, pois a personagem vai reconhecendo o
gradativamente passa dessa incerteza para a terrível convicção, provocando, nesse percurso, a
sensação de medo e de horror visto que a lembrança de ter vivido aquela mesma cena a
conduz para uma experiência terrível. “Onde, meu Deus?! – perguntava a mim mesma. –
Onde vi esta mesma paisagem, numa tarde assim igual?...” (M. p.69). Da mesma forma em
[...] Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem,
mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase
sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, esse madrugada!
Quando? Percorrera aquela mesma vereda, aspirava aquele mesmo vapor,
que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? (M. p.25)
familiar, embora não possam ou não consigam afirmar com convicção de onde provem essa
lembrança. A partir do olhar, os personagens são despertados para o que lhes provoca o
sentimento de estranheza. A impressão de estarem revivendo algo que, por algum motivo foi
própria morte.
Para Freud, “o primitivo medo da morte é ainda tão intenso dentro de nós e está
sempre pronto a vir à superfície por qualquer provocação”(Freud) O autor afirma ainda que
marcadas por limites bastante fluidos, ou quase ausentes, entre o eu e o mundo externo, entre
o real e o imaginário, com maior ênfase da realidade interna, psíquica, na linha narcísica. O
enfoque desenvolvimentista não implica, contudo, uma total eliminação dessas concepções,
na medida em que estágios superiores de pensamento são alcançados. Tudo que se forma no
psiquismo sobrevive de alguma forma, podendo então haver uma superação básica dessa
realidade material, isto é, parecem passar pelo teste de realidade (e este tem como objetivo
que está lá), a antiga crença recebe novo vigor pela prova recente. Seu reviver é então sentido
primeiro sem restrições. Situa-se aqui o fenômeno do duplo enquanto duplicação, divisão e
intercâmbio do eu: personagens idênticos, processos mentais telepáticos revelando uma vida
A criação do duplo se deve, num primeiro estágio, a uma função de defesa narcísica
contra a morte, negá-la para se assegurar de que o ego não será destruído, recebendo, portanto
31
No conto de Lygia Fagundes Telles “A mão no ombro”, publicado inicialmente na
obra Seminário dos ratos, a presença do duplo se faz através do jogo narrativo que se alterna
entre sonho e realidade. O protagonista se vê aprisionado num sonho onde vai reconhecendo
cada elemento do cenário até perceber que já vivenciara aquela cena em algum momento.
Mas que jardim era esse? Nunca estivera ali nem sabia como o encontrara.
Mas sabia – e com que força – que a rotina fora quebrada porque alguma
coisa ia acontecer, o quê?! Sentiu o coração disparar. (p.193)
[...] já não podia fugir. E fugir para onde, se tudo naquele jardim parecia dar
na escada? Por ela viria o caçador de boné, sereno habitante de um jardim
eterno, só ele mortal. A exceção. E se cheguei até aqui é porque vou morrer.
Já?, horrorizou-se olhando para os lados mas evitando olhar para trás.
(p.196)
dando lugar a algo familiar, a uma experiência já realizada em algum momento da vida. Toda
essa cena que era familiar à psique foi reprimida e, ao retornar, é vista como estranhamente
familiar, inserindo o protagonista num universo onde ele não pode mais distinguir sonho da
realidade.
32
Nos textos de Lygia Fagundes Telles, o estranho surge como um encontro a ser
evitado, o fatídico encontro com a morte e consigo mesmo. A revelação dos medos
perturbadoras com as quais eles precisam aprender a lidar e a compreender. Faremos adiante a
análise dos contos de Lygia em que a presença do estranho pode ser vista como uma
experiência inquietante dos personagens que tem origem em sentimentos que deveriam
3.2 O Medo
Emoção presente na vida, o medo é um sentimento inerente ao ser humano, é natural e
essencial à nossa sobrevivência, uma garantia contra os perigos. Sartre afirma que todos os
homens têm medo e que quem não o tem não é normal. O medo nada tem a ver com a
ausência de coragem (Apud Delumeau,1999, p.19). Considerado por muitos teóricos como
Muitas são as facetas do medo que assolam o homem desde a Idade Média. O medo da
É evidente que o sentimento do medo não surge apenas na Idade Média, mas ele teve
uma grande amplitude nessa época, devido ao efeito de insegurança vivido pela sociedade,
insegurança essa que permanece durante o início da Idade Moderna. Delumeau, em sua obra
33
História do medo no ocidente, afirma que durante essa época o medo, camuflado ou
Para Bauman, em seu livro Medo líquido, a luta contra os medos se tornou tarefa para
a vida inteira, enquanto os perigos que o deflagram passaram a ser considerados companhias
que para eles o sentimento do medo poderia ser dominado e as ameaças refreadas. (Bauman,
2008, p.15) Não estamos imunes a esse sentimento, antes o percebemos como companhia
diária e até mesmo essencial. Se essencial por que evitá-lo, por que fugir de um sentimento
homem teme a violência, em vez de lançar-se à luta ou fugir dela, ele satisfaz-se, olhando-a de
fora. Encontra prazer em escrever, ler, ouvir, contar histórias de batalhas. Assiste com certa
angústias dos leitores, aliviando seu caráter destruidor. Nas narrativas em que esse tema é
explorado, podemos conviver com nossos mais primitivos temores sem, no entanto, correr o
risco. Talvez seja esse o grande fascínio que elas provoquem no interlocutor. Necessitamos do
medo ao mesmo tempo em que o evitamos, e não há nada melhor do que tê-lo atenuado pelo
surpresa, provocada pela tomada de consciência de um perigo presente e urgente que ameaça
medo da morte, da solidão, do fracasso, medos esses que, na modernidade, foram acrescidos
34
desemprego. Todos esses ligados à sensação de impotência. Para Bauman, o sentimento de
impotência, impacto mais assustador do medo, reside, contudo, não nas ameaças percebidas
estende entre as ameaças de que emanam os medos e nossas reações.(Delumeau, 1999, p.32)
sobre a base desse sentimento, Delumeau afirma ainda que se criou o Mal e dividiu-se a
sociedade entre o Bem e o Mal, construiu-se a imagem do Diabo para que nele se fizessem
confluir a causa de todos os males do mundo. Desde o mito de Pandora, se busca um culpado
por esses males estarem tão presentes em nosso meio e, no surgimento da modernidade no
ocidente, a figura do diabo representava todos os medos. Essa visão religiosa sobre o Mal e
através do sentimento do pecado e da culpa. É o Mal presente nos desejos, nas tentações a que
Dessa forma, observa Chauí que a cultura do medo é também a cultura da culpa.
O medo surge de nós mesmos, somos culpados pelos males a nós cometidos e à sociedade.
Ainda para Chauí, a cultura da culpa desloca o diabo de fora para dentro da consciência, a
cultura do medo, alicerçada sobre horror à plebe, opera igual deslocamento. Com a plebe, o
medo não aponta apenas para seu contrário –– a coragem ––, nem apenas exige inimigos
externos, mas vem do inimigo interno, nós mesmos. (Apud Chauí, 1987, p.41)
35
indivíduo exposto ao medo nunca tem certeza ou controle da sua reação e, portanto torna-se
Nos textos de Lygia Fagundes Telles que estudamos nesta dissertação, personagens
estão a todo o momento expostos ao medo, e reagem, como de esperado, das mais variadas
personagem a uma fantasia em que cria para si um companheiro que nada mais é do que seu
gato de estimação chamado Emanuel. “–– Emanuel –– eu respondo. E não digo mais nada
porque sinto que ninguém acredita nisso, que tenho um amante e que esse amante tem olhos
medo. Segundo Chevalier, o simbolismo do gato é muito heterogêneo, pois oscila entre as
tendências benéficas e maléficas, o que se pode explicar pela atitude, a um só tempo, terna e
dissimulada (Chevalier, 2005, p.461). Para Freud, em Interpretação dos sonhos, o gato é um
símbolo fálico. Silva afirma ainda a predileção da autora por gatos em suas obras. Segundo
ela, esse animal é temido pelos supersticiosos, amado pelos indolentes, exorcizado pelos
1985, p.63).
Poderíamos citar diversos autores que utilizaram a figura do gato como elemento
em que uma mulher parece dividir seu apartamento com um enorme tigre. Esse tigre, a todo
instante, é comparado a um grande gato.“Crescera pouco mais do que um gato, desses de pêlo
fulvo e com listras tostadas, o olhar de ouro. Dois terços de tigre e um terço de mulher, foi se
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Nesse conto, a narradora se encontra com uma amiga num café e essa passa a narrar
sua história. O foco narrativo se direciona para a história contada pela personagem Romana
que vive na companhia de um tigre em seu apartamento. Esse tigre é um auxílio contra sua
solidão da mesma forma que o gato Emanuel e, em ambos os casos, temos um processo de
mulher. Essas transformações atuam para desconstruir o medo da solidão. Bauman caracteriza
a exclusão como uma morte metafórica, o horror de ser excluído. Para o autor, a solidão e o
abandono são representações da morte, ou como ele mesmo afirma, uma morte em segundo
grau, pois a ruptura com os vínculos humanos se assemelha à ruptura da vida tal a fragilidade
que existe entre ambos e serve como lembrete constante da mortalidade que caracteriza a
Silva ressalta ainda a relação íntima entre a personagem e seu tigre exposta no título
do texto. Segundo ela, Tigrela seria uma combinação de Tigre + Ela, fazendo assim uma
referência que expressa os dois lados da personagem; um lado humano e outro animal.
encontra solitário e talvez seja a luta contra a solidão a principal causa dessas transformações,
produzindo um desesperado lance para afastar o medo de estar sozinho ou, citando Bauman,
emanadora de seus temores. O inevitável encontro com a morte metafórica está na raiz do
percebe nesse conto é que o ponto de partida não é a morte física, mas a morte social. Ainda
que sozinha na barca, a protagonista teme se aproximar dos demais passageiros, talvez para
Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só
sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela
solidão. (M. p.105)
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade.
Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver.
Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha força para
rompê-los. (M. p.107)
Nesse conto, a solidão é compartilhada por todos os personagens e não somente pela
protagonista. Há quatro passageiros numa barca que viaja numa noite de Natal: um velho
bêbado, uma mulher carregando uma criança e a protagonista. Todos estão sós. Todos
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase
no fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer
palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem
artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. (M. p.105)
Dessa forma, se percebe que a sensação do medo nada mais é que a exteriorização
daquilo que nos aflige e que em nós se abriga. O reprimido que ressurge com a força de nos
paralisar ou nos mover a atos inimagináveis. O maior de todos os medos, o medo da morte
38
sobrenaturais, em metamorfoses ou em sonhos criando assim um ambiente perfeito para o
surgimento do fantástico.
envolva o insólito e o sentimento do medo. São muitos os clichês consagrados dentro das
masmorras sombrias, cemitérios e uma enormidade de lugares tão lúgubres e sinistros que
Para Lovecraft, a atmosfera é o elemento mais importante num conto fantástico, pois
o critério final de autenticidade não é o recorte de uma trama e sim a criação de uma
certos artifícios que teriam por objetivo perturbar o leitor, através de uma atmosfera de
inquietação. (Apud Pessanha, 1996, p.17). Essa atmosfera poderia ser criada pelo ambiente
onírico. Sonho e realidade se misturam e produzem a incerteza. Tal fato pode ser percebido no
conto “A mão no ombro” em que o personagem se depara, no sonho, com a cena da própria
morte, mas esse espaço onírico vai, no decorrer do texto, se misturar ao espaço da vigília e
4
Entrevista publicada em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ ult90u396352.shtml
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A construção do espaço, no conto fantástico, também deve manter o caráter ambíguo
Essa descrição do espaço insólito, no entanto, não deve ser uma constante dentro da
narrativa e sim aparecer em momentos específicos a fim de que não se torne vulgar ou comum
forma comedida para que não perca o efeito de surpresa e não se insira a narrativa num
efeito grotesco e lúgubre. Elementos como os lugares fechados e escuros, casas velhas,
castelos em ruínas, por exemplo, foram usados e continuam sendo usados em demasia tanto
40
pelas narrativas góticas como nas narrativas dos séculos XIX e XX. Áreas isoladas, bosques e
O conto fantástico, como bem observa Furtado, evita quase sempre as grandes alturas,
preferindo espaços inferiores e subterrâneos como criptas e túmulos e também foge a espaços
mais utilizado, já que mantém a hesitação entre o visível e o não visível, entre o real e o irreal.
Como já foi citado, essa ambientação do fantástico não pode encenar apenas aspectos
sobrenatural como mais um elemento da indecisão a que se submete o leitor, pois o contrário
levaria a narrativa a se aproximar do ambiente maravilhoso. Assim, Felipe Furtado afirma que
fantásticas e responsável por criar a sensação de aflição que esse gênero narrativo cria. Nos
inquietante. Espaços recorrentes como o jardim e o bosque, por exemplo, estão sempre
41
caçada”, “O jardim selvagem”, “Lua crescente em Amsterdã”, “O encontro”, “Tigrela”, “A
As imagens mais freqüentes são o jardim, quase sempre com uma fonte e
uma estátua; a escada e o banco de pedra, gaiola ou armadilha, e o caçador;
as árvores, caminhos e alamedas. Todas são imagens de forte carga
simbólica e o leitor imediatamente percebe que elas ultrapassam o
denotativo, o cotidiano, deixando transparecer uma qualidade indefinível de
essência, de primordial, de mítico. (Silva, 1985, p.43)
Ainda para Silva, a imagem do jardim conduz à idéia de paraíso, Éden perdido pelo
qual se anseia, idéia essa reforçada tanto por Chevalier quanto por Tresidder. Para Chevalier,
poder sobre a natureza domesticada e num nível mais elevado, o jardim é um símbolo de
2005, p.513). Tresidder acrescenta ainda o princípio feminino do jardim como metáfora do
paraíso sexual constituído pela pessoa amada. (Tressider, 2003, p.181). Segundo Silva:
protagonista parece reconhecer o cenário pintado em uma tapeçaria. “Conhecia esse bosque,
esse caçador, esse céu – conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos
eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando?”
(p.25)
inquietação. Essa inquietação é partilhada tanto pelo protagonista quanto pelo leitor, que vão
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relembrar de onde conhecia a cena estampada na tapeçaria acabam por levá-lo cada vez mais
Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus
braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distinguir as serpentes enleadas
num nó verde-negro. Apalpou o queixo. Sou o caçador? Mas ao invés da
barba encontrou a viscosidade do sangue” (M, p.27)
Outro aspecto importante de se ressaltar é que, tanto no conto “A caçada” quanto nos
contos “A mão no ombro” e “O encontro”, o espaço do jardim está deslocado do tempo, o que
O homem estranhou aquele céu verde com a lua de cera coroada por um fino
galho de árvore, as folhas se desenhando nas minúcias sobre o fundo opaco.
Era uma lua ou um sol apagado? Difícil saber se estava anoitecendo ou se já
era manhã no jardim que tinha a luminosidade fosca de uma antiga moeda de
cobre. Estranhou o úmido perfume de ervas. E o silêncio cristalizado como
num quadro, com um homem (ele próprio) fazendo parte do cenário. Foi
andando pela alameda atapetada de folhas cor de brasa, mas não era outono.
Nem primavera, porque faltava às flores o hálito doce avisando as
borboletas, não viu borboletas. Nem pássaros. Abriu a mão no tronco da
figueira viva mas fria: um tronco sem formigas e sem resina, não sabia por
que motivo esperava encontrar a resina vidrada nas gretas. Não era verão.
Nem inverno, embora a frialdade limosa das pedras o fizesse pensar no
sobretudo que deixara no cabide do escritório. Um jardim fora do tempo mas
dentro do meu tempo, pensou. (M. p.193)
Nessas narrativas, o espaço atua como algo que traz à memória um tempo que o
personagem não sabe definir, onde ele hesita entre a realidade vaga da lembrança ou ao
universo onírico. Nesse tempo que se desvia de um tempo mensurável, não sabe se esteve
Mas se nunca estive aqui! Sonhei, foi isso? Percorri em sonho estes lugares e
agora os encontro, palpáveis, reais? Por uma dessas extraordinárias
coincidências teria eu antecipado aquele passeio enquanto dormia?.
Sacudi a cabeça, não, a lembrança – tão antiga quanto viva – escapava da
inconsistência de um simples sonho.(M. p.69,70)
Essa hesitação caracteriza bem o que Furtado chamou de espaço híbrido, onde real e
ilusório se misturam a fim de criar um cenário inquietante. Nesse caso, o cenário é narrado
apenas uma ilusão provocada pelo sonho. É nesse meio espaço que transita a narrativa, um
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espaço descontínuo e indefinido. Percebemos também que, nesses contos de Lygia, o espaço
que o personagem vai reconhecendo a proximidade com a morte, ele tenta a todo custo se
esquivar dela, mas se vê impedido de fazê-lo por uma força maior. O gradativo percurso em
direção à morte não pode ser evitado mesmo que façamos de tudo para isso.
coletânea Mistérios. Já foi observado que esse tema se amplia em todas as suas possibilidades,
como a solidão, o abandono e a vingança. A morte, no entanto, aparece sempre como recurso
Lygia Fagundes Telles. A casa assombrada, por exemplo, é o espaço onde se desenvolve toda
a narrativa de “As formigas”. Nesse espaço, a casa assume elementos humanos a fim de
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Quando minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos
imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos
tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e
apertei o braço da prima.
–– É sinistro. (M. p.31)
A figura do caolho está quase sempre associada a aspectos sinistros, a personagens que
provocam medo e paralisam seus adversários. Para Chevalier, o olho único do caolho é um
caso dessa narrativa, a humanização da casa revela o espaço híbrido e provoca a inquietação
No decorrer desse conto, outros elementos vão se acrescentando a esse espaço sinistro.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna.
Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas
recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas
pontas encardidas. Acendeu um charutinho. (M. p.31)
fim de provocar o efeito do terror ante a visão da personagem. Nem mesmo a irônica
intertextualidade com a Iracema, “de peruca mais negra do que a asa da graúna” (M. p.31) de
Alencar é capaz de suavizar a descrição, pois o que era idealização e harmonização com os
gerando uma sensação claustrofóbica. O acesso a esse quarto se dá por uma escada em caracol
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o que provoca uma vertiginosa impressão. Ambos os sentimentos inserem os personagens e o
leitor num ambiente desagradável. Esse estado é fundamental dentro do conto fantástico, pois
desloca a narrativa para o que convencionamos chamar de estado inquietante, estado que foge
Lygia: a presença de cores como o cinza, o verde e o negro, por exemplo, são recorrentes e
num primeiro momento é escuro e frio, mas que pela manhã se torna quente e verde. A cor
um corpo humano, mas especificamente um dedo e nesse dedo há um anel onde o verde
aparece. Essa parte do corpo humano manteve-se quase intacta e ainda traz o enfeite,
coberta de musgo na qual o personagem se senta para conversar com uma moça. Em “A
estrela branca”, o cinza é o limite entre a visão e a cegueira. Em “O Muro” o verde e o cinza
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se misturam ante o olhar do protagonista “Quando ele abriu os olhos viu o vulto esfumaçado,
apenas um vulto em meio da sombra cinza-verde, o enfermeiro? Ouviu a própria respiração difícil,
simbolizada pelo cinza. Para Chevalier, o cinza é aquilo que resta após a extinção do fogo e,
fogo da vida. Simboliza a nulidade ligada à vida humana, por causa de sua precariedade. (M.
p.247). Ainda no conto “O Muro”, há uma personificação da morte descrita como uma moça
estão presentes também em outras obras da autora. Silva destaca a relevância desses
elementos:
Há ainda outros elementos relevantes que compõem o cenário nos contos de Lygia e
contribuem não só para a formação do espaço híbrido, mas também, como temos percebido,
para simbolizar essa relação entre vida e morte. Podemos citar ainda a presença do adjetivo
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A dona da loja também é descrita como uma velha como se ela também fizesse parte
da composição do cenário. Também é uma velha balofa a dona da pensão em “As Formigas”;
o velho bêbado e a mulher com aspecto de uma figura antiga em “Natal na Barca”; as
expressões de Ricardo, protagonista de “Venha ver o pôr-do-sol” que o deixam mais velho; o
Presença”.
Todos esses elementos que ambientam o cenário fantástico de Lygia Fagundes Telles
são responsáveis por criar uma atmosfera que insere o leitor num universo simbólico e
sobrenatural onde morte e vida duelam num tabuleiro dramático. Onde personagens recorrem
à memória e aos sonhos numa luta pela sobrevivência. Onde o tempo é tão volúvel e incrível
como determinados personagens. Nesse insólito espaço, somos levados a questionar a razão
espaço, dos personagens e o conceito de estranho para tentar entender o processo criativo da
autora.
fim de demonstrar sentimentos e sensações cotidianas na vida do ser humano. Lygia explora
temas como a solidão, o abandono, o medo e, principalmente, a dificuldade de lidar com esses
temores.
O olhar que recai sobre a narrativa nem sempre é direto, muitas vezes é oblíquo,
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histórias dentro da história e há várias possibilidades de leitura e busca por causalidades,
sejam elas naturais, extra-naturais, provocadas por sonhos ou delírios. Esse estilo mutável
Os detalhes do cenário que a autora compõe são carregados de força simbólica e não
apenas fazem parte do espaço, mas contribuem ativamente na dinâmica do conto. Vimos
como elementos são recorrentes, tais como o jardim, as cores, as imagens de estátuas, bancos
e escadas. Tudo confere vigor ao texto e leva o leitor a querer explorar nos detalhes as
Somos convidados a muitas viagens pela ficção de Lygia, e muitas dessas viagens são
que assistem passivamente a seu destino ser refeito em ciclos que se repetem exaustivamente
em imagens, em sonhos. Personagens que vêem o retorno do que foi reprimido como uma
nos outros, e aqueles que, não aceitando a exclusão, se vingam de forma cruel da mais cruel
das penas, que é o abandono ou então, através do processo de transformação física, encontram
companhia.
também são temas comuns aos textos fantásticos. Seguiremos quatro linhas temáticas
iremos propor uma aproximação entre eles e o efeito de solidão e de abandono vivenciado
negação da morte e, por fim veremos o tema das transformações físicas vivenciadas pelos
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personagens, que buscam aliviar a sensação de desconforto perante seus problemas e usam
Os contos em que esses temas aparecem foram escolhidos a partir de um critério que
abandono e de morte. “Venha ver o pôr do sol” é um conto onde o horror se expressa através
irão inserir o leitor num mundo de acontecimentos estranhos e sobrenaturais. Contos como “A
encontro deste com a morte. A presença do duplo se insere nesses contos gerando a
ambigüidade necessária ao gênero. Esse encontro com a morte é evitado de todas as maneiras
como se fosse possível fugir dela, mas em todos eles percebemos o inevitável encontro com o
Por fim, veremos como a metamorfose, tema constante em muitas obras fantásticas, se
insere na vida dos personagens e surge muitas das vezes sem uma causalidade explícita ou
então são associadas à loucura. A transformação física é parte de um processo de desejo por
são contos que exploram esse tema, ainda que essa transformação não seja explícita, apenas
sugerida.
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3.4.1 A morte e o medo e as representações da solidão
na coletânea Mistérios. Nessa narrativa, a narradora-personagem faz uma viagem numa barca
sem querer lembrar por que nela estava. Primeiramente, percebe-se a caracterização do espaço
semânticos que conotam negatividade: “em redor tudo era silêncio e treva” (M. p.105); a
embarcação era “desconfortável, tosca” (M. p.105), “despojada” e “sem artifícios” (M. p.
105); a grade da barca era de “madeira carcomida” (M. p. 105); o chão era feito de “tábuas
miséria e o sofrimento: “O velho, um bêbado esfarrapado” (M. p. 105), “Era uma mulher
jovem e pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma
figura antiga” (M. p. 105), o que irá compactuar com o estado de espírito da narradora-
personagem.
A narrativa começa descrevendo uma barca com quatro passageiros, um velho, uma
Natal. O Natal é normalmente uma festa celebrada pela família e geralmente torna-se um
refere aos quatro passageiros como mortos, evidenciando a aproximação entre a solidão e a
quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão.
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É importante ressaltar o paradoxo de a situação ser versus parecer, pois os personagens
possuem essa aparência de morte, mesmo estando vivos. A aparência de mortos é resultado do
parece não perceber essa “morte metafórica” e prefere não tentar uma aproximação com os
demais passageiros. O conto não explicita a causa de a protagonista estar naquela barca numa
noite de Natal, mas vamos recolhendo pistas que apontam para uma personagem que perdeu a
A barca possui aspecto ambíguo, pois tanto pode simbolizar a viagem feita pelos vivos
como pelos mortos, segundo Chevalier. (Chevalier, 2005 p.121) Percebemos, no entanto, que
as metáforas de morte espalhadas pelo conto vão sendo, aos poucos, contrapostas pelos
num amanhã de renovação parte do comentário dessa mãe e dá início a uma aproximação com
que se contrapõem e que a aproximam de uma figura mítica. Seus olhos sempre trazem um
brilho, seu rosto resplandece, mas suas vestes escuras, pobres e puídas, lhe dão um aspecto de
uma figura antiga. Seu meio sorriso pode evidenciar, ao mesmo tempo, alegria e tristeza.
Esses elementos antitéticos que caracterizam a mãe evidenciam os aspectos que serão
revela também uma crença, uma possibilidade de esperança que se pode perceber na visão da
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–– De manhã esse rio é quente – insistiu ela, me encarando.
–– Quente?
–– Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma
peça de roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira
vê que vem por estas bandas? (M. p.106)
com a mulher e ouve dessa uma história trágica de abandono e morte. A mulher traz um filho
doente no colo, perdeu o filho mais velho num acidente e foi abandonada pelo marido.
–– Seu filho?
–– É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena
achou que eu devia consultar um médico hoje mesmo. Ainda ontem
ele estava bem, mas de repente piorou. Uma febre, só febre... -
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o
olhar tinha a expressão doce. - Só sei que Deus não vai me abandonar.
(M. p.106)
–– É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro,
estava brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E
atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alo, mas caiu de tal
jeito... Tinha pouco mais de quatro anos (M. p.106/7).
–– Meu marido me abandonou (M. p.107)
A partir do instante em que ouve os sucessivos relatos trágicos, a personagem-
narradora se vê imersa numa série de sentimentos. Primeiramente considera a mulher apática
devido ao posicionamento desta diante de sua tragédia pessoal, o que refuta logo em seguida.
Depois se irrita e por fim a considera conformada já que a mulher parece aceitar passivamente
tudo o que de ruim lhe acontece.
[...] Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos
vivíssimos, aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa
irritação me fez andar.
–– A senhora é conformada. (M. p.108)
A narrativa se conduz sem qualquer elemento que possa ser considerado sobrenatural
narradora e a mulher que se encontra com a criança de colo e essa conversa gira em torno da
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sem saber porque, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo
daquela confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanha.
(M. p.108)
desconhecido por essa, que é o sentimento de fé, da crença. Ela se refere à fé com o pronome
indefinido tal, mostrando-se dessa forma cética em relação à atitude da mulher. Essa passa
–– Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão
desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e
chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde
toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que
ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais
uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante, ao menos mais
uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no
banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu,
quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi meu
menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele
me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto,
tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol
batendo em mim. (p.108/9)
Podem ser percebidos nesse trecho alguns elementos que fazem parte do conjunto de
símbolos explorados por Lygia Fagundes Telles. Entre eles, o jardim e o banco, representando
Nesse momento se opera uma transformação nessa mulher, o choro e a tristeza que a
Não se pode observar, no entanto, nenhum elemento ainda que acuse a presença do
insólito, já que podemos encontrar no sonho a causalidade para esse reencontro com o filho
morto. Somente no desfecho da história percebemos um relato que pode ser enquadrado na
categoria do fantástico, quando a narradora percebe que a criança no colo da mulher estava
morta e descreve sua percepção com clareza e certeza, não deixando dúvida sobre a morte da
criança.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para
fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança.
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Deixei cair o xale novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto.
Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A
mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.
(M. p.109)
Por três vezes a narradora repete que o menino no colo da mãe estava morto
daquela mulher tentando fugir do horror que essa passaria ao saber que seu único filho, a
Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que
ela descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a
barca fazia uma larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a
sacudir o velho que dormia: [...] (M. p.109)
Mas logo depois, ao deixar a barca, é surpreendida pela estranha ressurreição da
criança.
Acordou o dorminhoco! E olha ai, deve estar agora sem nenhuma febre.
–– Acordou?!
Ela teve um sorriso.
–– Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos - aqueles olhos que eu vira cerrados.
Tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face de novo
corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.
–– Então, bom Natal! - disse ela, enfiando a sacola.
Encarei-a Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu
rosto Resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa. E acompanhei-a com o
olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim reiniciando seu afetuoso
diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-
me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde
e quente. Verde e quente. (M. p.109)
Este fato precisamente poderia ser apontado como elemento que provoca hesitação
por parte tanto da personagem quanto por parte do leitor. A causalidade não nos é
provocada pelo fato. Estaria realmente o bebê morto, teria ele ressuscitado ou seria apenas
expressão “estava morto”, que ocorre por três vezes e pela surpresa da narradora ao
perceber, ao sair da barca, que a criança agora se encontrava vivo nos braços da mãe.
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A narrativa fantástica provoca a incapacidade de opção pelo racional ou pelo
irracional; assim, a ambigüidade está sempre presente quando não se pode discernir algo,
isto é, afirmar se o fato estranho que está sendo narrado faz parte do mundo natural ou do
sobrenatural; é nesse dilema inquietante que reside o fantástico e é esse dilema que propõe o
não natural. Contribui para esse encaminhamento o fato de ser noite de Natal e, portanto,
momento propício para a realização de milagres, ou até mesmo para o despertar da fé, que é
a própria convicção das coisas que não se podem definir pelo aspecto empírico.
A conclusão do conto aponta para uma possível explicação do título. O que renasce
não é apenas o menino no colo da mãe, mas também a fé da narradora: fé nas pessoas, nos
laços humanos. Com essa experiência, ela aprende ou desperta coisas que, até então, não
imaginava que existissem, como, por exemplo, a fé. Vemos que a presença do insólito no
conto funciona como um subterfúgio estético para revelar antes de tudo o traço mais marcante
através de um narrador heterodiegético, o que rompe com o padrão comumente usado nas
narrativas fantásticas. A voz que narra não participa da história. Entretanto, a recorrência ao
ocorre o conto. Todorov afirma que sem acontecimentos estranhos o fantástico não pode
nem mesmo aparecer (Todorov, 2004, p.100). Nesse conto, a exposição dos acontecimentos
insólitos vai se revelando aos poucos na atitude das personagens e o cenário é um elemento
de grande importância para o desenvolvimento da narrativa. Pode-se dizer que esse conto
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O ambiente macabro, o espaço e o distanciamento do narrador proporcionam o clima
elementos cotidianos, mas a estrutura do texto combina esses elementos com situações
se encontrar. O encontro é um pedido de Ricardo, como se fosse o último entre os dois, e ele
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À medida que avançava, as casas
iam rareando, modestas casas espalhadas sem simetria e ilhadas em terrenos
baldios. No meio da rua sem calçamento, coberta aqui e ali por um mato
rasteiro, algumas crianças brincavam de roda. A débil cantiga infantil era a
única nota viva na quietude da tarde. (M. p.205)
fantástico é um labirinto, onde o personagem parece não achar saídas nem no tempo, nem no
espaço. É atirado a locais que desconhece e nos quais não gostaria de estar. A normalidade é
último encontro romântico nada tem de costumeiro, antes evidencia a sensação de desconforto
vivenciada pela personagem. Os vocábulos que são usados para descrever o ambiente
possuem forte adjetivação negativa, ”tortuosa ladeira”, “casa espalhadas sem simetria”,
condições apropriadas para que o pavor se manifeste. Existem locais que são recorrentemente
Raquel e, portanto, há uma forte aproximação entre um e outro. Neste se encerra o fim de um
Esses espaços são heterogêneos. De certa forma, o mal está sempre presente nesse
universo. Geralmente, os personagens das narrativas fantásticas seguem uma trajetória que
não é retilínea, isto é, atravessam por lugares tumultuados que podem levá-los a percursos
parâmetro para avaliar tal sentimento está de acordo com a lógica cotidiana, ou seja, é a partir
Aos poucos, vamos percebendo várias situações ambíguas. O sorriso de Ricardo fica
entre o malicioso e o ingênuo, O cemitério, símbolo de morte, crianças espalhando vida pelo
local, e o próprio personagem, que no início é descrito como tendo um jeito jovial passa a
58
As mudanças na caracterização do personagem se dão como uma antecipação da sua
atitude final. Ricardo vai deixando a ambigüidade para assumir o aspecto macabro daquele
que havia articulado sua vingança até nos pequenos detalhes. Insatisfeito pelo término do
relacionamento, incapaz de lidar com o abandono, Ricardo conduz Raquel para uma morte
silenciosa e terrível, mais terrível ainda por ser uma morte solitária como a que ele mesmo
julga experimentar.
magro”, tem “cabelos crescidos e desalinhados” e “um jeito jovial de estudante” (M. p.205).
De Raquel, recebemos as informações, através do olhar e das falas de Ricardo, que “está uma
coisa de linda” (M. p. 205) e tem olhos verdes, “assim meio oblíquos” (M. p.210). Os olhos
oblíquos fazem pensar imediatamente em uma das mais famosas personagens da Literatura
Brasileira, criada por Machado de Assis, a Capitu, de Dom Casmurro. A relação com essa
personagem machadiana talvez suscite o sentimento de traição em Ricardo, visto que ele se
sente desprezado e trocado pelo amante rico de Raquel. Muitas são as relações de
intertextualidade nos textos de Lygia. Vimos, por exemplo, a referência à Iracema de Alencar
em “As formigas”.
em matéria de riqueza e ciúme, ele não é comparável a ninguém. Ricardo, por sua vez, ficou
“mais pobre ainda” (M. p. 89) do que era antes. Neste caso, foi empregado o grau
da personagem.
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A oposição evidente entre os dois acentua a atitude de Ricardo que, não se achando na
condição de competir com o novo amor de Raquel, encontra um único caminho possível:
A presença da morte então vai surgindo cada vez mais intensa no cenário e nas
atitudes de Ricardo:
obediente pela qual a personagem se deixa levar mostra a dominação e o poder que Ricardo
ainda possui sobre ela.“Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança.
Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de
O encontro de Ricardo e Raquel caminha para o desfecho e ele vai passando por uma
transformação, trocando seu perfil dúbio e assumindo o lado sombrio, gerando, assim, o
paisagem ao redor.
–– Mas é esse abandono de morte que faz o encanto disto. Não se encontra
mais a menor intervenção dos vivos. Veja – disse, apontando uma sepultura
fendida, a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda – o musgo já
cobriu o nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as
folhas... Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome
sequer. Nem isso. (M. p.209)
lembrança e da saudade seria uma maneira de atenuar o efeito da morte e manter uma chama
de vida, por isso a morte perfeita é aquela que nada deixa para a lembrança. Ricardo
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experimenta esse espectro de morte metafórica, essa exclusão da vida de Raquel e quer
Ricardo então apela para uma história sobre uma paixão infantil e sobre a morte dessa
paixão e de sua mãe que vai tocar o coração de Raquel e sensibilizá-la e fazer com que ele
–– Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha
prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha
trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu
e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas,
fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas. (M. p.210)
Chegam a uma capelinha e Ricardo convence Raquel a entrar nela, a fim de observar
“seus mortos” e depois a incita a descer até a catacumba para observar a semelhança dos
olhos da prima Maria Emília, por meio da fotografia colocada no medalhão preso à gaveta
onde a prima estaria enterrada. “Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais
aos seus.” (M. p. 212). O ardil armado por Ricardo alcança êxito. “Ela desceu a escada,
encolhendo-se para não esbarrar em nada” (M. p. 212). Raquel, ao se aproximar da foto que
seria da prima de Ricardo, percebe a farsa ao ver que a menina havia falecido há mais de cem
protagonista presa numa catacumba num cemitério abandonado produz esse efeito também no
leitor, suscitando os mais terríveis pesadelos. Ricardo parece ainda zombar de Raquel. “Uma
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réstia de sol vai entrar pela frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando
devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr-do-sol mais belo do mundo.” (M. p.213)
início o convite nada tinha de romântico, era na verdade um chamamento à morte. Para
Chevalier, o simbolismo do sol é bastante diversificado, tanto pode estar relacionado à vida
como à morte. “O sol imortal nasce toda manhã e se põe toda noite no reino dos mortos;
portanto, pode levar com ele os homens e, ao se pôr, dar-lhes a morte.” (Chevalier, 2005,
p.836) O pôr-do-sol mais belo do mundo é a própria morte vista do ângulo da solidão.
ralação ao mal que tanto teme. (Manguel, 2005, p.11) No caso da narrativa, o mal que tanto se
teme é o mal do abandono e da solidão que agora se confirma tanto para Ricardo quanto para
Raquel. Abandonada e entregue à morte Raquel pode partilhar do sentimento que provocou
em Ricardo ao abandoná-lo.
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O primeiro contato com a casa não se mostra nada agradável, pelo contrário, a visão
Por não terem condições de escolha, resolvem ficar assim mesmo naquela pensão.
sombrio e humanizado. Suas janelas ovaladas que parecem olhos, seu aspecto velho, seu
cheiro desagradável, seus móveis decadentes, sua escada caracol, seu quarto pequeno e
A dona da pensão também provoca sensação estranha, pois sua descrição a aproxima
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna.
Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas
recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro descascado nas
pontas encardidas. Acendeu um charutinho. (M. p.31)
O interior da pensão acentua esse cenário macabro com seus móveis velhos e
atulhados, com uma escada em caracol e um quarto claustrofóbico, como vimos no capítulo
Toda a narrativa acontece durante a noite. A chegada das personagens à pensão. “já era quase
noite”(M. p.31). O surgimento das formigas e o sonho com o anão também acontece durante a
noite “ – As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.” (M.
p.36). A noite e a escuridão são, sem dúvida, elementos que despertam a sensação do medo.
Durante a Idade Média, a noite era identificada ao Mal, o oposto de Deus e do Bem
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representados pela luz. As trevas sempre foram associadas a forças malignas e ao
relação da noite com o sonho estreita essa presença do medo já que, segundo a Epopéia de
A dona da pensão mostra-lhes o quarto onde elas ficarão. A chegada ao quarto se faz
em espiral para chegar ao minúsculo quarto, lugar onde acontecerá uma transformação de
nível natural para sobrenatural, pois é dentro do quarto que os elementos insólitos começam a
surgir. A escada contribui para este clima estranho que será vivenciado pelas personagens
Embaixo da cama, dentro do quarto em que elas ficarão e onde dormia o antigo
inquilino, ficara uma caixa de ossos que pertencia a esse que também era estudante e cursava
medicina. É interessante ressaltar que a dona da pensão se refere ao antigo estudante usando
interrompido. Essa utilização verbal produz uma dúvida no leitor. Não ficamos sabendo o que
aconteceu com o antigo estudante e por que motivo ele abandonou o caixote com os ossos do
anão.
Como uma das estudantes fazia Medicina, a mulher ofereceu-lhe a caixa e ela
aceitou. A estudante logo examina os ossos e vê que o que parecia serem ossos de criança,
na verdade, eram de um anão. A figura do anão é também uma imagem recorrente nos contos
de Lygia. Silva afirma que o anão é um ser estranho, cujo processo de crescimento se
interrompeu misteriosamente antes de concluído, sua presença é um dado que causa mal-estar
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Frye situa anões e gigantes no mesmo domínio mítico visto que uns e outros
fogem do padrão comum da normalidade. Numa interpretação psicológica,
eles podem ser tomados como projeções da personalidade do protagonista,
que aumenta ou diminui a realidade a seu redor, de conformidade com seu
estado de espírito. (Silva, 1985, p.80)
como metáfora da psique humana situa o conto no nível da imaginação O terror vivenciado
pelas protagonistas se aproxima então do modelo de Lovecraft, onde o medo se instaura mais
pela sugestão do que pela evidência. Não há aparições terríveis, monstros ou cadáveres, a
espaço onírico é a fuga da realidade. O anão está vivo nos sonhos e morto na realidade, mas
realidade e sonho começam a se misturar quando, aos poucos, o esqueleto do anão vai
A presença das formigas, que caminham em direção ao caixote de ossos para “montar”
o esqueleto do anão é mais um fato estranho e sem explicação. O que as move não é revelado,
não há uma causalidade que possa justificar o acontecimento. As personagens fazem uma
série de suposições para a presença dos insetos, mas não conseguem encontrar respostas.
Dessa forma, o apelo sobrenatural surge, visto que protagonistas e leitores permanecem na
dúvida e na hesitação.
–– Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro até que calcei
ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote,
com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
–– Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda mais de anão. (M. p.34)
Após matarem as formigas, um novo acontecimento estranho surge. Uma formiga que
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No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que
encolheu.Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé,
já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos à cabeça, como uma pessoa
desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho. (M. p.35)
Essa mesma formiga ainda aparece mais uma vez e novamente humanizada e depois
anão vai se intensificando, a prima passa a tomar a aparência de uma formiga. Haveria uma
relação entre esses dois acontecimentos ou seria apenas uma impressão deixada pela
narradora? As atitudes da formiga parecem querer avisar sobre algo e esse fato é mais um que
Ela falava com um tom miúdo, como se uma formiguinha falasse com sua
voz. (M. p.38)
espaço e das personagens, é acrescida de fatos ainda mais estranhos e sobrenaturais. O fato de
haver formigas que vão reagrupando ossos de um anão toda a noite, agregado ao fato de essas
formigas desaparecerem durante o dia também, funciona como o elemento estranho do conto
e isso gera uma inquietante incerteza por parte da personagem. O cheiro estranho que
por parte da personagem narradora criam todo o clima de medo presente no texto.
no espaço dos sonhos. A presença masculina no conto é sempre inquietante. O antigo dono do
caixote, o anão, os namorados, o professor, estão sempre ligados a uma sensação de opressão,
alívio. É a prima que a faz acordar dos sonhos ruins, é a prima que oferece remédios contra a
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ressaca e, finalmente, das três noites dormidas no quarto da pensão, a única noite em que a
narradora não tem pesadelos é a noite em que ela dorme com a prima. Mais do que uma
leitura de apelo à questão da sexualidade das personagens, o que se pode observar é que a
presença do feminino seria uma relação com o inconsciente, relação essa que pode ser
verificada em vários outros elementos no conto como a casa e o caixote. Para Jung, o
Por fim, a atitude da fuga das personagens ao perceberem que o pequeno esqueleto
estava quase completo provoca um fato que pode ser associado ao estranho, já que a escolha
feita por elas caracteriza a ausência de uma causalidade e de uma explicação que possa ser
feita dentro de uma concepção empírica de mundo. Tampouco nos é provado que os fatos
prevista por Todorov ou, como quer Felipe Furtado, na ambigüidade a qual pretende encenar
ambos os elementos de fato antinômicos os quais levam o interlocutor a uma decisão vaga e
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Percebe-se que há uma gradação nos elementos sobrenaturais, o cheiro está mais forte,
as formigas estão mais rápidas e o grito que elas parecem ouvir acentuam o efeito de
que possui a ambigüidade necessária para mantê-lo no campo da hesitação, pois nem
personagem e nem leitor podem decidir se os acontecimentos são de fato sobrenaturais ou são
quando nos referimos a dois pontos do conto: o protagonista e a tapeçaria, sendo o primeiro
se anima mediante a atitude de quem o observa. Temos então o tema do duplo. Para Freud,
o “duplo” é marcado pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma
que fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu por um
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estranho. Nesse caso há uma duplicação, divisão e intercâmbio do eu (self) e, por
crimes, através das diversas gerações (Freud, 1996 p.296) Silva afirma ainda que:
estranha e familiar ao protagonista. Ainda em Freud, vemos que o duplo surge ao mesmo
Ao entrar no antiquário, local onde se passa a narrativa, o que mais chama a atenção
freqüentador do local, nota que cada vez que observa a tapeçaria, é como se ela sofresse
alterações dia após dia. Porém, essa mudança só se faz pelo olhar do protagonista, pois a
personagem de como e quando esta relação se estabelece. A cena parece, a cada dia, ficar
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fora reprimido, das lembranças pertencentes ao inconsciente do protagonista e, portanto, só
observáveis pelo próprio. “O homem acendeu o cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo
meu Deus! Em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...” (M. p.24).
começam a ser percebidos pelo narrador de forma bastante intensa, provocando o “efeito de
A descrição que o protagonista faz da cena revela uma aproximação cada vez mais evidente.
O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a
cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-
musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que
pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-
se pelo chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava
escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer
parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano. (M.
p.24)
negro-violáceo, são indícios de morte que está para acontecer na cena da caçada. A
ambigüidade das manchas que podem fazer parte do desenho ou serem efeitos do tempo
morte. A seta do caçador começa a aparecer, a seta que irá ferir o animal e levá-lo à morte.
que teria sido ele o pintor do quadro que possivelmente originou a tapeçaria, ou um simples
espectador, ou ainda um dos modelos, talvez. O cheiro de folhagem e terra que parece
70
emanar da cena da caçada fica cada vez mais presente, para o personagem. Em um dado
Observamos que a tapeçaria se anima cada vez mais, diante dos olhos do
personagem. “parece que hoje tudo está mais próximo [...]. É como se...” (M. p.25).
como se ela criasse vida, é como se ela fosse a lembrança daquele passado ali caracterizado,
bastante perturbado com algo que sua memória esforça-se por recordar e, naquele momento,
não consegue. A identificação com a obra, ou seja, com aquilo que está inscrito no tecido ––
A tapeçaria aparenta criar vida, dando a impressão de invadir o real. A arte mistura-
se com o cotidiano, o quadro parece ser a passagem da arte para a vida. A ligação entre o
quadro e o protagonista, que já se faz estreita diante das circunstâncias, dá-nos a impressão
de que ele sai do mundo real e mergulha no cenário da obra, passando da vida real e
presente para a vida criada e fixada pela arte da tapeçaria. Agora é o mundo real que se
torna fictício e vai se embaçando, enquanto a cena da tapeçaria fica mais viva.
início ao final de A caçada e, por meio dela, vê-se o aumento contínuo da incerteza e da
inquietação do protagonista.
A narrativa fantástica, com efeito, deve provocar algo de estranho, que incomode,
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desconhecido, do oposto ao real. É necessária, sobretudo, a existência da ambivalência, da
ambigüidade.
francesa de um texto de Freud - das Unheimlich - onde o autor discute o medo na obra
provoca uma “inquietante estranheza” na medida em que o personagem percebe que fez
atende à ambigüidade que o gênero necessita e levanta a seguinte dúvida: como é possível a
um homem comum, ao visitar uma loja, identificar-se com uma figura inserida em uma obra
de arte e sentir, ao olhá-la, o mesmo frio e cheiro presentes no cenário da caçada? Seria
loucura ou ele estaria no quadro? E se estivesse, como, onde e quando tal fato aconteceu?
irracional; assim, a ambigüidade está sempre presente quando não se pode discernir algo,
isto é, afirmar se o fato estranho que está sendo narrado faz parte do mundo natural ou do
seja, do medo. Entre os temas da literatura fantástica que despertam esse sentimento, Freud
destaca, como já vimos, o tema do duplo, seja como uma identificação entre indivíduos, que
vezes apresenta os mesmos hábitos, retoma os mesmos crimes, destinos e até os mesmos
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nomes, independentemente do tempo e do espaço em que se insere o indivíduo duplicado,
não só provoca o medo, a angústia, advindos da estranheza da situação, como parece vir
relacionado ao tema da morte. Primitivamente, explica Freud, o duplo poderia ter tido um
transformaram em demônios.
esforços atabalhoados para fugir de algo que nos incomoda acabam nos levando cada vez
mais naquela direção (Freud). No conto analisado, o protagonista tentar fugir desse
Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus
braços. No fundo, lá no fundo do fosso podia distinguir as serpentes
enleadas num só nó verde-negro. Apalpou o queixo. Sou o caçador? Mas
ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue. (p.27)
Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e
estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre os galhos
e resvalaram pelo tronco de uma árvore! Lançou em volta um olhar
esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados
de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor tudo parado.
Estático. (...) comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada,
enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia
sangue o lábio gretado. (M. p.28)
(...) – Não... – gemeu de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E
rolou encolhido, as mãos apertando o coração. (M. p.28)
O personagem finda por unir-se a cena da tapeçaria revelando o seu fatídico encontro
com a morte. A relação dos homens com a morte é, em geral, de repulsa, devido ao fato de
que não a aceitamos e nem a compreendemos com clareza. Isso ocorre desde os tempos
primitivos até os dias atuais. O sentimento de angústia que esse tema causa tem origem,
provavelmente, no fato de a morte encerrar um mistério: aquilo que está oculto, quando vem
73
espaço é típico das fábulas e confere o efeito maravilhoso à narrativa. Aqui, o sonho revela
um cenário conhecido do protagonista. É um jardim cheio de elementos que aos poucos vão
se tornando familiares ao personagem. Vemos aqui novamente a temática do duplo, já que
as imagens do sonho do personagem são representações dele mesmo. Para Silva: “Nos
contos de Lygia Fagundes Telles a presença do duplo pode ter a função de busca de
identidade, de busca da libertação ou pode representar uma projeção da personalidade do
indivíduo.” (Silva, 1985 p.85)
Em “A mão no ombro”, o duplo representa tanto a projeção do indivíduo quanto o
Mas que jardim era esse? Nunca estivera ali nem sabia como o encontrara.
Mas sabia – e com que força – que a rotina fora quebrada porque alguma
coisa ia acontecer, o que?! Sentiu o coração disparar. Habituara-se tanto ao
quotidiano sem imprevistos, sem mistérios. E agora a loucura desse jardim
atravessado em seu caminho. (M. p.193)
De fato, esse monólogo são experiências que ele próprio vivencia. O confronto com a
situação de morte iminente é protagonizado por ele, tendo seu processo interno exposto
através da voz do referido narrador. A narração funciona como se fosse em primeira pessoa,
é a estátua. Tão viva parece suscitar a dúvida no personagem se ela é real ou não. Freud, em
seu ensaio sobre o estranho, afirma que um dos temas que pode produzir essa sensação é a
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eles. Uma estria negra lhe descia do alto da cabeça, deslizava pela face e se
perdia ondulante no rego dos seios meio descobertos pelo corpete
dasatado. Notou que a estria marcara profundamente a face, devorando-lhe
a asa esquerda do nariz. (...) Me dá sua mão que eu ajudo, ele disse e
recuou: um inseto penugento, num enrodilhamento de aranha, foi saindo
de dentro da pequenina orelha. (M. p.194)
pois, embora represente uma jovem moça, está deteriorada carcomida, corroída. Seus pés
ambigüidade se faz também entre as características da estátua que revelam também certa
sensualidade. “no rego dos seios meio descobertos pelo corpete desatado.”
do cenário onírico. Nos sonhos, os elementos que povoam o jardim não possuem vida e são
prenúncios da morte que será representada pelo caçador prestes a lhe tocar o ombro. Vimos
no início deste capítulo como a figura do caçador nos contos de Lygia está diretamente
ligada com a idéia de morte. Para Silva: “A presença do caçador, conforme se pode
observar, surge nos contos de Lygia como imagem da morte e tem como correlata a imagem
da grade – que também pode apresentar-se como gaiola ou armadilha”. (Silva, 1985, p.46)
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Nessa passagem, alguns elementos que já destacamos e que são recorrentes na obra
protagonista entre em pânico e tenta fugir do sonho como uma forma de escapar da morte e
faz um apelo à vida.“O que continuava difícil era fugir de si mesmo. No fundo secreto, fonte
de ansiedade, era sempre noite – os espinhos verdadeiros lhe espetando a carne, ô! Por que
E fugir para onde, se tudo naquele jardim parecia dar na escada? Por ela
viria o caçador de boné, sereno habitante de um jardim eterno, só ele
mortal. A exceção. E se cheguei até aqui é porque vou morrer. Já?,
horrorizou-se olhando para os lados mas evitando olhar para trás. A
vertigem o fez fechar de novo os olhos. Equilibrou-se tentando se agarrar
ao banco, Não quero!, gritou. Agora não, meu Deus, espera um pouco,
ainda não estou preparado! (M. p.196)
tudo não passara de um sonho. Ainda está vivo e o encontro com a morte, por mais real que
tenha sido, ficou para trás no sonho do qual acaba de despertar. A narrativa entra agora num
novo plano e apresenta a causalidade para todos os acontecimentos estranhos, visto que tudo
que ocorrera fazia parte do sonho do personagem. Nesse novo plano, todo o cenário é
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comum à realidade e o tempo decorre dentro da normalidade e do cotidiano de um homem
personagem e isso o faz refletir sobre a vida. Até imagina a própria morte, mas a vê como
todos os outros. Bauman afirma ainda que todos os animais compartilham desse medo, mas
que somente nós seres humanos temos consciência da sua inevitabilidade. (Bauman, 2008,
p.45) Embora seja a única certeza que tenha, o homem tenta, a todo custo, evitar seu
encontro. Nunca se acha pronto, mas ela é inegociável e irreversível e, ainda que tentemos
interessante observar como a sombra da morte leva o ser humano a ver o mundo de forma
maneiras distintas entre o desespero e a reflexão, mas todos modificam sua maneira de ler o
mundo que os cerca. Nessa narrativa, o personagem sofre uma mudança profunda, passa a
dar valor a detalhes que antes passavam despercebidos no movimento autômato de viver, e o
Não sabia que amava assim a vida. Essa vida da qual falava com tamanho
sarcasmo, com tamanho desprezo. (M. p.198)
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A convicção da morte é latente e o protagonista vivencia o dia como uma despedida.
O sonho teria sido um prenúncio do que estaria por vir. Através do olhar do protagonista a
narrativa nos leva a questionar valores como o amor, a família e a própria vida. Como nos
deixamos levar por atitudes vazias, como desperdiçamos nossa vida em atitudes fúteis, em
convenções sociais. Em certo momento, o personagem olha para sua esposa e se questiona
“mas há quanto tempo tinha acabado o amor?” (M. p.199). Vive-se como se estivesse
morto, sem que se realmente faça da vida um espetáculo único. Estamos tão próximos da
morte mas não percebemos isso, como o personagem tenta em vão dizer para seu filho e
para sua mulher, que estão alheios a essa verdade. Ele próprio passou a vida alheio às
pessoas que o cercam. Mas o sonho revelou esse aspecto frágil da vida e agora parece tarde.
Como se não soubesse que naquela manhã (ou noite?) o pai quase olhara a
morte nos olhos. Mais um pouco e dou de cara com ela, segredou ao
menino que não ouviu, conversava com o copeiro. Se não acordo antes,
disse num tom forte, e a mulher se debruçou na janela para avisar ao
motorista que tirasse o carro. Vestiu o paletó: podia dizer que quisesse,
ninguém se interessava. (M. p.199)
Num terceiro momento do conto, o personagem entra no carro para se dirigir ao seu
trabalho, porém não consegue dar a partida. Ele luta, mas não consegue, desiste e acaba
Nesse momento, temos a junção dos dois planos. Sonho e realidade se fundem no
personagem tente se libertar buscando agora no sonho o espaço da fuga, acaba se deparando
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Vemos então que a presença da morte através da temática do duplo se insere nos
aprendizagem. Lidar com temores como o da morte, arquétipo de todos os medos, não é
uma tarefa fácil, reconhecer nossas limitações, nossa incapacidade de fugir a um processo
natural da vida também não, mas o encontro com a morte pode deixar lições para a vida.
geralmente, essas transformações ocorrem sem que haja uma explicação natural ou
sobrenatural. A ausência de uma explicação para essas transformações faz com que o leitor
permaneça na dúvida e essa dúvida é um dos aspectos suscitados para que se caracterize a
segundo Todorov
[...] o sobrenatural começa assim que passamos das palavras às coisas por
elas designadas. Portanto, as metamorfoses constituem uma transgressão
da separação que se convencionou existir entre a matéria e espírito. (Apud
Silva, 1985, p.54)
dois deles essa é apenas sugerida, como nos casos de “Emanuel” e “Tigrela”, e em “Lua
Alice participando de uma reunião entre amigos e comentando sobre seu amante, Emanuel.
Embora esteja cercada de pessoas, Alice sente-se pressionada e solitária e tenta, através de
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personagem descreve um dos presentes que lhe é pouco conhecido, mas que a incomoda
bastante.
desejo de aceitação perante o grupo, para isso ela cria para si um amante rico e belo como
atormentam.
transforma em seu “amante ideal” para com ele tentar ser respeitada e não mais desprezada no
grupo de amigos. Nesse ponto, Alice cria a visibilidade e a importância que sempre desejou e
deixa para trás uma vida mesquinha e solitária. Ao falar sobre seu amante, Alice joga com a
ambigüidade entre o personagem inventado e seu gato real. Fantasia e realidade se intercalam
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leitor têm a convicção de que as descrições sobre o amante são, na verdade, descrições sobre
possibilidade de não ser uma mulher solitária, de ser amada e sentir-se importante perante o
diferente e a personagem tenta fugir dos amigos e fugir da ficção que ela mesma criou, mas é
impedida pela amiga, que ouve a campainha tocar e supõe ser o amante criado por Alice.
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oscilando triunfante na proa do barco. Engulo penosamente a saliva, estou
salivando sem parar porque no medo a saliva cresce borbulhosa, quero
repetir que não pode ser ele e o anzol. (M. p.20)
Afonso vai atender à porta e volta com a notícia de que era Emanuel que havia
chegado. “–– É o Emanuel que veio te buscar.” O conto termina com essa fala do personagem
de leitura. Houve realmente a transformação física do gato no homem idealizado por Alice?
Emanuel pode ter aparecido, e então teríamos uma explicação natural e ficaríamos no
Afonso. Nenhuma dessas possibilidades, no entanto, pode ser desprezada ou aceita visto que a
personagens se encontram num bar. A narradora, em primeiro plano, e Romana que também
conduzirá uma narração. A descrição que a narradora faz de Romana mostra uma mulher
solitária e triste.
Encontrei Romana por acaso, num café. Estava meio bêbada mas lá no fundo
da sua transparente bebedeira senti um depósito espesso subindo rápido
quando ficava séria. Então a boca descia, pesada, fugidio o olhar que se
transformava de caçador em caça. Duas vezes apertou minha mão, eu preciso
de você, disse. Mas logo em seguida já não precisava mais, e esse medo
virava indiferença, quase desprezo, com um certo traço torpe engrossando o
lábio. Voltava a ser adolescente quando ria, a melhor da nossa classe, sem
mistérios. Sem perigo. Fora belíssima e ainda continuava mas sua beleza
corrompida agora era triste até na alegria. Contou-me que se separou do
quinto marido e vivia com um pequeno tigre num apartamento de cobertura.
(M. p.95)
animalizando. A relação entre Romana e o tigre indica também um processo de troca em que
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Uma noite, enquanto eu me vestia para o jantar, ela veio me ver, detesta que
eu saia mas nessa noite estava contente, aprovou meu vestido, prefere
vestidos mais clássicos e esse era um longo de seda cor de palha, as mangas
compridas, a cintura baixa. Gosta, Tigrela?, perguntei, e ela veio, pousou as
patas no meu colo, lambeu de leve meu queixo, para não estragar a
maquilagem, e começou a puxar com os dentes meu colar de âmbar. Quer
para você?, perguntei e ela grunhiu, delicada mas firme. (M. p.98)
motivar a ruptura dessa convivência. Muitas são as metáforas que apontam para um
Mas Romana, não seria mais humano se a mandasse para o zoológico? Deixe
que ela volte a ser bicho, acho cruel isso de lhe impor sua jaula, e se ela for
mais feliz na outra? Você a escravizou. E acabou se escravizando, tinha de
ser. Não vai lhe dar ao menos a liberdade de escolha? (...) Liberdade é
conforto, minha querida, Tigrela também sabe disso. Teve todo o conforto,
como Yasbeck fez comigo até me descartar. (M. p.100)
Vê-se então uma aproximação com o conto “Venha ver o pôr-do-sol” em que a
separação de um casal provoca uma atitude vingativa por parte daquele que foi abandonado.
Nossa briga mais violenta foi por causa dele, Yasbeck, você entende, aquela
confusão de amor antigo que de repente reaparece, às vezes ele me telefona e
então dormimos juntos. Ela sabe perfeitamente o que está acontecendo.
Ouviu a conversa. Quando voltei estava acordada, me esperando feito uma
estátua diante da porta, está claro que disfarcei como pude, mas é esperta,
farejou até sentir cheiro de homem em mim. Ficou uma fera. (M. p.100/101)
impossível. O ciúme e os atos possessivos e ferinos dessa levam a um desfecho fatal, pois se
desesperado ato do suicídio. Não sabemos, no entanto, se essa transformação ocorreu, pois
83
temos apenas o relato, não muito confiável, de Romana, já que essa se encontra bêbada. Tudo
principalmente quando ocorre a intromissão de um terceiro. O leitor, dessa forma, hesita entre
uma explicação natural e uma extra-natural. Se optarmos por uma leitura metafórica, ou se
se desfaz, porém não se pode eliminar de todo a possibilidade de que a transformação ocorreu
ratos” em 1977 é uma narrativa que também aborda a questão dos problemas de
relacionamento. Um casal se encontra num jardim, sentados e mudos, sem palavras ou gestos.
além dessa, outra imagem recorrente nos textos de Lygia que é a estátua reaparece.
estátuas estão tão próximos, mas separados pelo fim do relacionamento. A sensação que o fim
–– Vamos dormir aqui. Mas vê se pára de chorar, quer que venha o guarda?
–– Quero chorar.
–– Então chora.
Molemente ela se recostou numa árvore. Enlaçou-a. Os cabelos lhe caiam
em abandono pela cara mas através dos cabelos e da folhagem pôde ver o
céu. (M. p.62)
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–– Não me chame mais de querida.
–– Está bem, não chamo.
–– Não somos mais queridos, não somos mais nada.
–– Está certo. Agora vem.
–– O banco é frio, quero minha cama, quero minha cama - ela soluçou e os
soluços fracamente se perderam num gemido. - Que fome. Que fome. (M. p.
62)
Ele ficou olhando para os pés enegrecidos da jovem, forçando as tiras das
sandálias rotas. Subiu o olhar até o jeans esfiapado, pesado de poeira. (...)
(...) –– Você sabia contar histórias melhores. Sob a camiseta de algodão
transparente os pequeninos bicos dos seios pareciam friorentos. E não estava
frio. Foram escurecendo durante a viagem, ele pensou. Qual era a Ana
verdadeira, esta ou a outra?
(...) –– Minhas unhas eram limpas. E agora esta crosta - gemeu ela
examinando os dedos em garra.
(...) –– Nos sujamos quando acabou o amor. Agora vem, vamos dormir
naquele banco. Vem, Ana.
Ela puxou-lhe a barba.
–– Quando foi que fiquei assim tão imunda, fala!
–– Mas eu já disse, quando deixou de me amar. (M. p. 63)
Essa transformação física provocada pelo fim do relacionamento pode ser entendida
também como o desejo de mudança. Por várias vezes os personagens manifestam a vontade
de virar “outra coisa”. “- E agora? O que acontece quando não se tem mais nada com o
amor?” (...) “- Sopra o vento e a gente vira outra coisa.” (M. p. 66). Ambos pensam na
mudança, mas de forma diferente ele deseja virar um pássaro enquanto ela, uma
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O desejo verbalizado dos personagens vai se concretizar e o processo de
O vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o
avental lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo
dentro do guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do banco
vazio. Procurou por entre as árvores, voltou até o banco e alongou o
olhar meio desapontado pela alameda também deserta. Ficou
esfregando as solas dos sapatos na areia fina. Guardou o bolo no
bolso e agachou-se para ver o passarinho de penas azuis bicando com
disciplinada voracidade a borboleta que procurava se esconder
debaixo do banco de pedra. (M. p. 66)
Muitos são os elementos no texto que indicam que o fim do relacionamento foi
proposto pelo rapaz. A frieza deste, a perda do amor, a transformação de seu coração em
isopor, ou seja, a incapacidade de amar em contrapartida a mulher sente de outra forma, chora
se lamenta, se flagela. Pode-se dizer que também nesse conto a metamorfose é processada
com base no medo da solidão e do abandono. Tanto em “Lua crescente em Amsterdã” como
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6 CONCLUSÃO
Ao longo desse trabalho, pretendemos observar uma proximidade temática nos contos
de Lygia Fagundes Telles, a partir de uma leitura que evidenciasse o universo fantástico, a
percepção do estranho delimitado por Freud, a sensação do medo e a maneira de lidar com a
morte e a solidão. Todos esses elementos juntos acentuam o efeito dramático de personagens
uma linha que se fizesse constante nessas análises. Assim, observamos que a ambigüidade
encontra-se sempre no texto fantástico e procuramos também observar o que Freud vai
conceituar como estranho, isto é, aquilo que deveria permanecer oculto, no mistério, porém se
manifestou no que era familiar. Misterioso e oculto, nesse contexto, estabelecem um tipo de
sobrenatural de alguma forma deve invadir o real, para que eles se contaminem e façam
nascer o fantástico.
É o que ocorre na leitura que fazemos dos contos de Lygia Fagundes Telles, onde os
outro, e caracterizando, dessa forma, o ambiente insólito típico nas narrativas fantásticas.
entram em contato com o irreal ou situações que fogem da normalidade. Esse fato provoca
acontecimento.
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Vimos também a relevância do espaço na construção de cenários híbridos, em que real
leitura dos contos evidenciando como esse sentimento se faz presente nas narrativas e como
ele direciona suas personagens a atitudes que revelam seus dramas pessoais.
conduz o leitor ao limite de sua percepção. O apelo sobrenatural do texto revela angústias
como podemos verificar em “Natal na barca”, com o contato da protagonista com a idéia da
ressurreição de uma criança que na verdade sugere o resgate da fé, ou em “Venha ver o pôr-
do-sol”, quando a protagonista vive uma situação de extremo horror derivado de um ato
Portanto, podemos dizer que os contos de Lygia Fagundes Telles atendem à relação de
outros, dos quais a narrativa fantástica se utiliza para se constituir e provocar o efeito
desejado.
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A “inquietante estranheza”, presente neles, também se encontra em outros contos
analisados, o que nos permite dizer que a obra de Lygia Fagundes Telles apresenta
pudemos assinalar nos contos estudados, trazendo-as para a atualidade. O medo e a morte, de
certa forma, sempre serão temas atuais. A autora paulista, entretanto, renova-os por meio de
seu estilo permeado de reticências e interrogações que refletem, nos diálogos aparentemente
A escolha pelo caminho do insólito faz dos textos um misterioso universo de tramas
em que a lógica se dissolve nos dramas humanos. Onde os medos são enfrentados diretamente
portanto, que se pode fazer uma leitura que insira os contos da coletânea Mistérios no gênero
da literatura fantástica, nas narrativas insólitas, sem esquecer, no entanto o estilo singular de
Lygia Fagundes Telles que acrescenta a essas narrativas uma força vital e a coloca num lugar
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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11) __________, Os melhores contos fantásticos. Rio de Janeiro. Nova Fronteira. 2006.
12) CUNHA, Antônio Geraldo da, Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua
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13) DELUMEU, Jean. A história do medo no Ocidente. São Paulo. : Companhia das Letras.
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17) JUNG, Carl. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro. Nova Fronteira,1984.
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18) KEHL, Maria Rita. A psicanálise e o domínio das paixões in NOVAES, Adauto (org). Os
Sentidos da Paixão. São Paulo. Companhia das Letras. 1986.
20) LACAN, Jaques. O simbólico, o imaginário e o real. Uma visão sobre a conferência de 8
de julho de 1953 na sociedade francesa de Psicanálise
http://psicanaliselacaniana.vilabol.uol.com.br.
21) MANGUEL, Alberto. Contos de horror do século XIX. São Paulo. Companhia das Letras.
2005.
22) PAES, José Paulo. Os buracos da máscara : antologia de contos fantásticos. São Paulo.
Brasiliense. 1985.
23) _____, José Paulo. As dimensões do fantástico in Gregos e baianos. São Paulo.
Brasiliense. 1985.
24) PESSANHA, Cláudia Helena Ribeiro. Murilo Rubião : Uma estética do insólito. Rio de
Janeiro, UFRJ – Faculdade de Letras,1996. (Tese de Doutorado)
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Rio de Janeiro : Presença edições. 1985.
29) __________, (org) Fantastic, fantasy and science fiction literature catalog. Rio de
Janeiro. Fundação Biblioteca nacional/Departamento Nacional do livro. (s/d)
33) TRESSIDER, Jack. O grande livro dos símbolos. Rio de Janeiro : Ediouro, 2003
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