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ESTANTE DE PSICANALISE Laplanche, J. — A Angistia Laplanche, J. — Castracao/Simbclizacdes Laplanche, J. — A Sublimagao Tallaferro, A. — Curso Basico de Psicandlise Bion, WR. — Uma Meméria do Futuro I: — © Sonho Ferenczi, S. — Didrio Clinico Lagache, D. — A Transferencia McDougall, J. — Teatros do Corpo Laplanche, J., Cotet, P., Bourguignon, A. — Traduzir Freud Laplanche, J. — O Inconsciente e 0 Id Futuros lan Ferenczi, S, — Obras Completas ‘Outras obras de interesse Bettelheim, B. ~ A Fortaleza Vazia Blos, P. — Adolescéncia Bowiby, J. — Apego e Perda — Apego Bowlby, J. — Apego ¢ Perda — Separacto Bowiby, J. — Apego e Perda — Perda Dolto, F. — Sexualidade Feminina Braier, E. A. — Psicoterapia Breve de Orientagio Psicanalitica Goldstein, J, Froud, A., Solnit, A, J. — No Interesse da Criangs? Mannoni, M. — A Crianga Retardada e 3 Mle Spitz, R.A. — 0 Primeiro Ano de Vida Valabrega, J.-P, — A Formagao do Psicaralista Winnicott, D. W. — Privagho e Delingignsia PROBLEMATICAS IV 0 INCONSCIENTE E OID J. Laplanche seguido de O inconsciente: Um estudo psicanalitico por Jean Laplanche e Serge Leclaire m Martins Fontes Sdo Paulo — 1992 Titulo original: LINCONSCIENT ET LE GA Publicado por Presses Universitaires de France Copyright by © Presses Uriversiaires de France, 1981 Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., 1984, para 2 presente edicdo 14 edigdo brasileira; novemibro de 1992 Tradugdo: Alvaro Cabral Revisdo da tradugdo: Claudia Berliner Revisto tivografica: Flora Maria de Campos Fernandes ‘Sandra Rodrigues Garcia Produsio grfice: Geraldo Alves Composigdo: Alexandre Augusto Nunes Copa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Dados Intermacionas de Catlogagio na Publicaeo (CIP) “Clmara Rraslin oo Livro, SE, Brasid Tapanche, Jean ‘ nconscente eo 1 guid de: O Ineonssente = um tudo psleanalico / Jean Lplanche, 8. Lexa ; [duc ‘AWvaro Cabral. Sio Pedlo Martins Fontes, 1992. — (state de Pacandis) ISBN 85-336.0082.5 1.14 (Psicologia) 2. Subconsiente 1. Lesaire, . I ‘Tilo, 1. See 92.2009 cDp-1s4.22 Tice para eatlogosstemdtco: 1. Id: Plcloni 184.22 Todos os direitos para a lingua portuguesa reservados LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramatho, 330/340 — Tel.: 239.3677 101325-000 — Sao Paulo — SP — Brasil Adverténcia Sumdrio I. Referéncia ao inconsciente: — 8 de novembro de 1977 Ensinar a psicandlise na Universidade. . A “tese””: uma contribuicdo... Romper e reatar.. — 15 de novembro de 1977 Espirais desde Bonneval. Espirais da castracdo. — 29 de novembro de 1977 A sublimagio e 0 origindrio. ... O inconsciente: cadaver ou espectro? Referéncia tedrica e pratica. inconsciente na cultura. As vias de Leclaire Realismo ou intencao significante. — 6 de dezembro de 1977 Verdade da maquinaria. O “querer significar’” ndo da lugar ao conflito. .. Esclarecimentos sobre os dois modos de escuta. . A sesso: formagio do inconsciente. 12 14 23 28 27 30 31 32. 35 36 Insuficiéncia do critério “conscitncia””....... 40 E insuficiéneia da oposi¢ao puramente “tépica”” 1 4 ee 13 de dezembro de 1977 | © modelo da metibole e suas interpretagdes........... 107 . 1 .. nas linguas naturais. oe io ‘A abordagem “funcional”. ooo . 43 | pay “an a rearesdo formal oe o Para nos situarmos exatamente 412 i 27 Oa aaca ane 7 O inconsciente de um texto? us Sonhos de em cima e sonhos de embaixo. . 50 pecan 8 ybro de 1977 | eee ees ; | — 21 de novembro de 1978 © micleo da realidade psiquica 32 7 i 0 © sonho nao é comunicagao. 35 \ ano passado: 0 inconscientee o recaleamento....... As transposigdes de um sistema a outro: as duas hipoteses 57 | O inconsciente: detido em 1915?.......... an Gog | Novidade ¢ retorno em psicandlise....+..+ ++ 120 0 ees Primeira t6pica: descoberta da “‘outra coisa’” psiquica, . 122 Hipotese funcional e recalcamento originario. 60 } Périplo do inconsciente:.“descritivo” ceceeeees 122 inconsciente e 0 id. 8 +. dindmico... 123 O recaleamento a posteriori 67 . sistémico... 124 16 de janeiro de 1978 | . heterogeneo, 125 Contra-investimento e pregnancia de uma forma. . 70 1 — 28 de novembro de 1978 Reconhecimento do Ics ¢ a hipdtese t6pica. .. "4 a Perlaboragio ou ecmnémica. 5 Motivos para uma substituicdo do inconscient 126 os a ' Sobreposigdes das fronteiras tOpicas... .... 127 ein No conifito: oinconsciente nfo é0 apandgio de um dos pélos 130 © processo primario e a retérica. 8 | | O ego inconsciente: inconsciéncia de seu funcionamento, Formacao do simbolo mnémico..... 85 | pa tanccine aie —— 131 31 de janeiro de 1978 Os contetidos Ies: fantasias ou pulsOes? + 132 Ce 88 A segunda t6pica instala-se pelo topo 134 Um modelo para o recaleamento. 90 a aoe A célula saussuriana........ecsceceeeeeeeeeeeeees OB i . Significante no inconsciente Dilteees O j Instfaciasantropomérfiase nfo mais funeionss...... 135 ji | Para introduzir um “tid” . 1 i Ue | Groddeck tal como em si mesmo... 137 . ¢ “significado?”’.... 7 | “Monismo de Groddeck e terrorismo antifiloséfico de Freud 138 © inconsciente nada comunica..... 98 i Relatividade do dualismo alma-corpo. . 139 Recalcamento e seducao.. : ve A subversao da problematica corpo-alma foi ignorada Do discurso da mae ao inconsciente da crianga: por Groddeck. = we 14 um metabolismo. 100 i Reabsoredo do dualismo sexual - weve 141 Célula saussuriana e hegemonia estruturalista......... 102 Harries ae ee a Gracas a Hjelmslev: desvendamento do formalismo. ... 104 © id: desconhecido. ia — 12 de dezembro de 1978 Uma dialética sem sintese.. 5 Groddeck com Freud: predominio da sexualidade O simbolismo: com Freud. . © pansimbolismo: além ou aquém de Freud? Uma metodotogia fiel a Freud Diferengas na abordagem terapéutica. ...... Centracio na finitude do sintoma. A grande tradigao hermenéurica do Renascimento © pansimbolismo... O id, tomado de empréstimo ou domesticado Confronto de opinides, ou problemética....... O id: quatro opedes: pulsional, genética, impessoal, sépiea Povoamento e despovoamento da tépica. — 9 de janeiro de 1979 0 caldeirao do id. Debate sobre o afeto inconsciente. Independente da representaco, 0 afeto vira angiistia No saco do id, as pulsées. ‘A representincia: sua linha néo € univoca. Presenca do corpo: onde sitzar a fome? As regulagdes fisiolégicas. . ‘A auloconservagao em psicaxilise: constincia e evolusao do seu estatuto. — — 16 de janeiro de 1979 O adaptativo expulso do carapo psicanalitico © adaptativo vicariado no campo psicanalitico adaptativo nos limites do campo: trés exemplos sonho ¢ a fome ‘Animais e criangas: simples sonhos alimentares? . Qs sonhos de criangas sao de tipo ‘‘infantil””? Freud sonha com “Knédel”. Duplicidade on “politica teorica”” de Freud. Rank: bode expiatério teérico A fome no pode ser recalcada — 23 de janeiro de 1979 Id e pulsio de morte: um vinculo profundo. . A destrutividade: uma descoberta contra a sexualidade? . 146 146 147 nl d7 149 150 151 152 154 155 156 157 158 159 2 160 161 1 164 1 164 165 166 168 169 170 +172 173 1174 175 176 17 178 180 180 A nossa concepeao: um aprofundamento e um remanejamento . seeeeeee ~ 181 Uma descoberta... mas nao onde se a situa. 182 A pulsao de morte: é preciso interpreté-la. . + 183 Panorama de uma “‘divergéncia”’: da recusa.. 185 - A reducho....... 8s Pulsio de morrer , 188 Modalidades de uma “‘adesfo”......0..ccceeeresees 188 Nirvana e epicurismo.... » 189 30 de janeiro de 1979 Com Melanie Klein. vee IL Esclarecimentos quanto & angustia. 193 “Primariedade” do sadismo infantil. ~ 194 ‘Atague pela pulsio de morte igual a ataque pela libido. 195 ‘A questo: “idéia”’ da morte. . wees 196 ‘Angistia (de) morte, idéia da morte: ambigiidades deKlein 197 Klein e o tempo ‘auto’: projegao ou deflexdo?.....-- 200 7 de fevereiro de 1979 © devorador interno. : = 203, Esquema de uma deflexao origindria?.......-++ 205 Klein inverossimil e Klein “observadora””..... ++ 205 Uma génese mitica 207 As oposigdes Kleinianes: um “jogo de armar”? + 208 Posigho parandide e posichio depretsiva... ..- 209 .. sua complementaridade dialética. .... sees 20 Pulsdes sexuais de vida e pulsOes sexuais de morte..... 212 Pulsio de objeto (total) e pulso de indice. .......-.++ 213 © inconsciente, um estudo psicanalitico.........e.:se50e00+ 215 por Jean Laplanche e Serge Leclaire 1 - Trés vias de acesso a0 realismo do inconsciente..... 215 a) Sentido e letra. Exame da critica de Politzer........ 215 ’) Os dois modos de escuta, As lacunas do discurso cons- ciente. A nogio de “formagdes do inconsciente”.... 222 c) O inconsciente e o problema da consciéncia.. + 224 11-0 inconscente como sistema em Freud. Orenacioe impasse das hipéteses freudianas.......- 227 a) Necessidade de uma segunda estrutura.....c..0-+++ 227 b) A hipétese da dupla inscrieao. veces BR ©) A hipétese econdmica. IIL - O “texto inconsciente” de um sonho. ... =. 232 a) Andlise de um sonho...... — +. 233 b) Da necessidade ao desejo. O problema da pulsdo..., 235 ©) Observaedes sobre os mecanismos do sonho e da interp tacdo. O “processo primério”. Ametéforaeametonimia 242 IV - O inconsciente é a condiedo da linguagem. Interde- pendéncia dos sistemas pré-consciente e inconsciente 245 a) Posigao do problema: linguagem e processo primario 245 b) Ficeao de uma linguagem em estado reduzido....... 246 c) A metafora constitutiva do inconsciente e o recalcamento originario 249 V - Estudo cltnico de alguns mecanismos fundamentais do inconsciente a 8 20, a) O recalcamento secundario e 0 recalcamento originario 256 b) A formagao do sintoma neurético. . 263 Adverténcia Desde 1962 na Ecole Normale e desde 1969 na UER® des Sciences Humaines Cliniques na Sorbonne (Université Paris, VII), venho bus- cando e expondo, num curso piblico, um método interpretativo e de levantamento de problemas, ao longo de certas eixos principais da teoria psicanalitica, Sob o titulo geral de Problématiques (Probleméticas), os cursos a partir dos anos 70-71! estio aqui reunidos. O texto oral sofreu apenas as modificagdes necessérias & sua publicagao em livro. Os temas dos anos sucessivos encadeiam-se segundo uma ldgica que nada tem de deliberada: o percurso rege-se ao mesmo tempo pelo contetido e por minha evolugao pessoal. Sé depois descortinei a possi- bilidade de, sem excessivos artificios, reagrupar esses temas num certo nuimero de volumes. O ciclo de um curso anual é iniciado, na maioria das vezes, por uma introducéo metodoldgica, mais ou menos extensa. Impressas emt itdlico, essas introducdes dispensam-me de retomar agui suas idéias. Sao orelato de uma reflexio posterior sobre as modalidades de minha abor- dagem, e sobre a legitimidade de desenvolvé-la “na universidade”. Eevidente que o leitor, segundo suas disposicdes e sua disponibi- lidade, poderd reagir a esta publicacdo de duas maneiras. O classicis ‘mo das no¢ées apresentadas, o fregiiente recurso ao comentario criti £0, os retornos e as repeticoes (exigidos pelo fato de me dirigir, a cada ano, a um auditério em grande parte novo) poderdo fazer com que es- tes textos sejam considerados um exemplo da muito desacreditada “exe~ gese freudiana”. Ou entéo, creditando-me uma certa paciéncia e bene- voléncia para acertar 0 passo comigo, talvez.o leitor seja receptivo a cer- tos aprofundamentos ow a certas sondagens, na tentativa de abordar aprépria teoria levando em conta o método analitica, de modo a fazer ranger determinadas articulacdes ea derivar certos conceitos. Airavés deste método de tornar problematica a doutrina, mas também a histé- ria e a clinica, esboga-se a configuracdo de uma outra tematica. * Unité Enseignement et Recherche: Unidade de Ensino e Pesquisa. (N. T.) 1. Foram inicfalmente publicados no Bulletin de psychologic; depois, a partir de 1774-75, na revista Payehanalyse a "Université I Referéncia ao inconsciente — 8 de novembro de 1977 Todos os anos proponho-thes uma espécie de prefécio metodol6- gico que em meu intuito deveria ser breve mas que, afinal, necessita sem- pre de um certo desenvolvimento. Vocés encontrardo as marcas disto a0 longo da publicacdo destes cursos". Encontrardo particularmente — e precisamente — uma reflexdo continua sobre o sentido do que po- de significar “ensinar a psicandlise na Universidade”, com seus trés ter- mos: “ensinar”; “psicandlise”’ e “universidade”” Ensinar: 0 que pode ser um ensino digno desse nome? No fim ENSINAR A das contas, no éuma qualidade particular PSICANALISE da psicandlise merecer um ensino que ndo NA UNIVER- se resuma a um repisamento enfadonho, a SIDADE, uma repeticao, No nivel das ciéncias huma- nase igualmente no nivel da antiga mde de todas as ciéncias humanas, a filosofia, tal ensino jd constitui una exi- géncia, Iss0 quer dizer que um ensino digno de tal nome, onde quer que Se exerca, nas ciéncias humanas ou na filosofia (que ndo separo, de mo- ‘mento, deste ponto de vista), ndo pode ser outra coisa sendo 0 correla- tivo de uma pesquisa, Pode ser 0 relato, a apresentacéo formal de uma pesquisa em curso, que se desenvolve eventualmente — e em parte — num outro terreno, ou pode ser 0 proprio lugar de sua elaboragéo; 0 Presente ensino € 0 ponto de cristalizacdo da minha pesquisa, fecun- dada, evidentemente, pela experiéncia cotidiana da andlise. 1 Nesta sire das Problemdticas 2 O INCONSCIENTE E 0 1D Ensinar a psicandlise. Discuti longamente todas as prevengdes que ‘se multiplicaram contra esta formula em diferentes meios mas, em es- pecial, no meio analitico — prevenedes estas que acabaram por se de- finir numa oposicéo que nao é tao nova quanto se pretende, aquela entre 0 “saber”*ea “verdade”: a psicandlise seria 0 ugar da verdade, ao passo que o saber seria apenas 0 mododese defender, de imobilizar essa ver- dade. Se a oposicao nao é nova (ela data de hd muitissimo tempo: pense- seem Sdcrates e nos socrdticos, em sua exigéncia metodoldgica de na- da saber para chegar a uma certa verdade), certamente encontrou um novo vigor com a psicandlise e com a demonstragio precisa, na psica- lise, dos mecanismos de defesa que o saber possibilita. Subsiste, en- tretanto, 0 fato de que toda verdade pode, sem dtivida, imobilizar-se em saber, mas nao hd surgimento da verdade sem a base inicial de um certo saber. F tive acasiéo de lembrar que o mais recente pensador que retomou essa oposicio, refiro-me a Lacan, sublinhou por varias vezes que essa formula era profundamente desvirtuada se fosse utilizada co- ‘mo um dlibia fim de justificar apura e simples ignorancia. Seja como for, nao é de minha indole ir ensinar aos quatro ventos — os ventos das sociedades anallticas, dos coléquios ou da universidade — que a psi- candlise nao se ensina. O problema é apenas 0 de apurar como ela po- de ser dignamente exposta em relagao ao seu objeto, objeto que quali- Ficamos, de momento, de um modo muito extensive, o “inconsciente”: precisamente 0 tema de nossa investigagéo deste ano. Mas retorno & formula “ensinar a psicandlise na Universidade” para examinar rapidamenie o seu terceiru (erm. wa Universidade. A objeedo a ensinar a psicandlise nesses lugares, poderfamos dizer quese decompée em dois aspectos: un: individual ¢ 0 outro social, para néio dizer politico. Portanto, em relaedo aos individuos, ensinar a psicand- lise na Universidade colidiria, por definigio, com a ndo-especializagdo dos ouvintese, de um modo mais preciso, no que se refere & andlise, com 0 fato de ndo ser exigido dos ouvintes que sejam analistas e (jd que ser analista, em prinetpio, éser analisado) que sejam analisados. Essa no & em todo caso, uma condigéo necesséria; e eu diria, sobretudo: Gra- as a Deus! Gracas a Deus para a andlise, nao ser exigido que, para ou- vir falar de andlise na Universidade, se possua um certificado de andli- se, 0 que seria muito simplesmente 0 fim da andlise como proceso in- dependente, atépico, nao normativo. O dia em gue a andlise se torne objeto de um certificado que outorga um direito— néo como resulta- do de seu processo mas como sancio puramente formal em decorrén- cia de ter sido feita —, entio trata-se de qualquer outra coisa menos de anélise. Resta um problema de natureza mais metodoldgica, mais REFERENCIA AO INCONSCIENTE _ “técnica”: que jd ndo tem nada a ver com a objegao formalista: 0 que que significa e implica falar de andlise aos “‘ndo necessariamente ana- lisados”’? A um puiblico ndo selecionado seguncio win critério como po- de ser o de uma sociedade de analistas, onde, em principio, um ensino administrado a pessoas que, de um modo ou de outro, tém em sua bagagem uma andlise pessoal? Pois bem, tenho-me perguntado mui- tas vezes o que significava essa oposiedo, se mantida em toda a sua ri- gidez, com essa espécie de exclusividade que tem sido fregiientemente pronunciada pelos analistas (ndo falo de Freud mas de outros analis- tas depois dele e de todas as correntes); exclusividade que pode traduzir- sede mil maneiras: distingdo entre um ensino exotérico e um ensino eso- ‘érico, um semindrio aberto e um semindrio fechado, seminérios de ini- ciagdo e semindrios reservados aos alunos, etc. Creio que isso manifes- fa muito pouca fé na andlise e, no que se refere ao ouvinte deste ensino, na receptividade, na reatividade do seu inconsciente. A andlise esté lo- calizada num espaco e num tempo, 0 espaco de tratamento eo tempo de sua duracép, se hem que, precisamente, essa limitacdo jé provoque uma outra péfeunta: quem nao sabe que a andlise se prolonga em auto- andlise e, diria eu, que jd € precedida por uma auto-andlise? Mas, de um ponto de vista mais geral, 0 que seria da andlise se ela nao se refe- risse a algo acessivel em cada wi e que, precisamente, extravasa dos limites do tratamento analtico? Havia “andlise”’ é bom quese persua- darn disso, antes da andlise e antes de Freud, tal como havia inconsciente ow transferéncia. A menos que se adote af uma visto epistemoldgica — cujo representante mais eminente e mais elogitente é Michel Foucault — que pessoalmente considero insustentdvel no seu idealismo histori- cista; dizem-nos, por exemplo, sem outra forna de proceso, que 0 ho- ‘mem (e ndo apenas uma certa idéia de homem) nasceu no séeulo X VIIT emorreu no séewlo XX, que a vida (e nao a biologia) nao existia antes do século XVIII; ou ainda, para voltarmos ao nosso terreno, que o in- consciente nada significa antes de Freud, que néo se pode falar deuma existéncia do inconsciente antes de Freud. Sem nos alongarmos sobre essa questdo de historia da humanidade e para tampouco falar da hu- ‘manidade mas de cada um de nds, existe, do mesmo modo, andlise fo- rado espaco mais restrito da pratica analitica, e néio foi apenas por um capricho que fornulei as coisas nestes termos: vocés todos sio, nds to- dos somos “os que estiveram, 05 que estdo ou os que vao estar (futu- ri)” em andlise, mesmo que, em sua vida, nenhum de vocés tenha ja- mais se estendido num diva. Renunciar a ensinar a andlise a ndo-ana- listas, a ndo-necessariamente-analistas como é 0 caso de vocés (mes- ‘mo se, por outro lado, estivessem todos, por acaso, “em andlise”: nao 4 O INCONSCIENTE E 0 ID o estariam necessariamente, em funcdo da presenca aqui), é renunciar @ inventar, a reinventar incessantemente um modo de ensino que seja permedvel & inspiracio da andlise, permedvel ao inconsciente. E um pro~ blema que terei de voltar a evocar quando chegar 0 momento de expli- car como passei este ano das pesquisas e desenvolvimentos respeitan- tes & simbolizacao ou @ sublimac4o” para o tema que hes proporei ago- ra: 0 do inconsciente. Com efeito, nesimbolizacdo e na sublimagao uma importante questo que, em ultima instancia, supera todas as outras, consiste em saber se hd simbolizagdes nas quais, poder-se-ia dizer, 0 incons- ciente penetra, sublimages que permanecem permedveis ao inconsciente. Dizia eu que a repugnancia em falar de andlise na Universidade pode assumir uma outra forma; nao mais em relagdo aos individuos (sa- ber se eles sdo ou nao analistas, portanto, ouvintes possiveis, abertos deste discurso) mas em funcdo da Universidade, considerada agora co- mo instituigdo. Objeca, no mais amplo sentido da palavra, “politica” ‘e que poderia ser assim formulada: ao ensinarmos psicandlise na Uni- versidade, ndo estaremos participando de uma institucionalizacéo da psicandlise? O que me interessa nessa objecdo é 0 problema de uma po- Iitica de andlise (nao o problema politico no sentido geral e habitual do termo, no sentido cfvico), ou seia, na sua possibilidade de se man- ter numa certa atopia, numa certa ndo-institucionalidade, sem cai, en- tretanto, no esoterismo, sem se dar ares de sociedade secreta (alids, a “‘sociedade secreta”’ nao seria uma outra forma de instituieao?). Fala- ‘se, por vezes, como sea era das caiacumisas, 0 momento de entrar no maquis, se divisasse no horizonte para a andlise. No fim das contas, é uma eventualidade imagindvel, numa sociedade elvil que estaria com pletamente confundida com asua instituigao, mas é uma eventualida- de desreal no estado atual. Seja como for, essa relagdo “politica” en- tre a andlise ea Universidade é, emiiltima instdncia, na minha opinido, avicissitude propria de uma relagie de forcas. Uma instituicdo — a ins- tituigdo universitdria — fortementeestruturada, muito integrada social- mente, estreitamente finalizada do ponto de vista de seus objetivos, nao deixaria lugar para um ensino da andlise digno desse nome. Felizmen- te, a Universidade em certos momentos — ela talvez o fosse mais ha alguns anos — e em certos setores — precisamente este setor mal fina- lizado, pouco rentével, que é 0 das ciéncias humanas —, a Universida- de, dizia eu, permanece um pouco aberta a todos os ventos. E prin palmente 0 caso deste DEA** inclusive deste 3° ciclo, a cujo respeito direi, = Ver Problematicas I, Castrac#~/Simbolleagdes, ¢ Problemdticas I, A sublima- ‘0, Martins Fontes, 1988 ¢ 1989. (N. T.) **DEA: Diplome d'Etudes Approfordies, obtido ao fim do primeiro ano de pre- paragiio do 3° cielo. (N. R.) REFERENCIA AO INCONSCIENTE 5 para que vocés se desesperem, que, a bem da verdade, tém apenas uma utilidade social muito duvidosa e marginal, néo thes servirdo de muito no mercado de trabalho, a menos que se arquitete alguma saida um tanto fraudulenta, o que tampouco é imposstvel, Mas, tomados ao pé da le- tra, sao diplomas que conferem o direito a efetuar pesquisas e, even tualmente, um documento de apoio para postular um cargo docente. Pois bem, dessa relacdo de forcas que faz, com que a Universidade es- teja aberta a todas as correntes, com que este 3° ciclo seja ele préprio ‘marginal, a andlise deve tirar todo 0 proveito que puder, enquanto durar essa relacda, desde que cada analista docente faca regularmente uma ava- liagio de sua participacdo no trabalho universitério; isso para nao correr o risco de perder a alma, Por certo, ndo se tome esta apologia do ndo- finalizado, do ndo-rentdvel, por uma tomada de posicao a favor de “qualquer coisa’’; ndo € isso 0 que pretendo dizer, em absoluto: a aber- turaa todos os ventos, a todas as correntes, ndo significa 0 arbitréria.. Eis, pois, um “DEA’, eis um “3° ciclo” e, A TESE": UMA com muita freqiléncia, ougo indagar, quan- CONTRIBUIGAO do recebo um estudante: quais sio as suas exigéncias para uma tese, 0 que éum traba- Jho universitdrio? Tal tema me interessaria, mas serd realmente “‘uni- versitério””? E, até, quantas paginas se devem propor para que seja real- ‘mente uma tese? Interrogacées e ansiedades perfeitamente concebiveis es quais é preciso tentar responder. Mas respondo-Ihes dizendo logo, com firmesa esem demagogia, que nesse nivel sou suficientemente pow- co universitdrio para nao saber o que é ser universitdrio eo que éfazer um trabatho “universitério”; ou ainda, para defender os “‘bons” uni- versitdrios (pois hd bons e maus, como em todo lugar), que recuso essa espécie de assimilacao, que aqui se vishimbra, entre universitdria, pe- dantismo, exigéncias puramente formas, até mesmo “academicismo”’ Academicismo? No fim das contas, assim como existem universitérios ‘que sao pedantes e outros que procuram néo 0 ser, hd, sem dtivida, bons e maus académicos. Mas quando se fala de academicismo nao € tanto da Academia Francesa que se fala mas das “academias”; das escolas que ensinam desenko a partir do “modelo” nu, e que pretendiam ter alcancado essa espécie de formalismo a que se dd precisamente 0 no- ‘me de academicismo, Consultem o diciondrio de Robert e ai encontra rao esta frase exemplar, que resume todo o processo da Academia, até ‘mesmo da Universidade: “Acusou-se por vezes Ingres de academicis- ‘mo, sem compreender a sua profunda originalidade.”” 6 O INCONSCIENTE E 0 1D O que é uma tese de 3? ciclo? No fim das contas, esta é uma inter- rogacéo legitima; mais precisamente, o que é uma pesquisa consigna- a ern tese? E $6 encontro um terms para designar o que deve ser a nossa dermanda em relacdo a esses trabelhos: 0 termo “contribuigéo”. Para ‘mim, uma tese de 32 ciclo deve ser uma contribuicao, 0 que permite efini-la em relacdo a certos termos simultaneamente vizinhos e anti- ndmicos. Um dos principais seria, sem dhivida, “dissertacdo”: A di sertac&o é um género que ndo deixa de ter seus méritos. Nao joguemos fora a dissertacdo; talvez thes pecam uma dissertacdo, justamente no Final deste ano de ensino. E um exercicio onde podem brithar a inteli- géncia, otalento... mas é um género por definicao repetitive e niio con- tributivo. Em algum momento dos estudos, a todos vocés foi proposto dissertar sobre “o amor em Corneille” ou “‘o Cogito em Descartes ¢ em Kant": O “Cogito'em Descartes” pode-se repetir; foi certamente repetido centenas de mithares de vezes. E ndo ereiam que estd assim to ausente nos dias de hoje. Rimos do “Cogito em Descartes ¢ em Kant”, ‘mas rirdo, tanto, ou nio haverd entre vocés alguém que rird amarelo, seeu disser que também hd “osujeito em Freud e Lacan’? Isso equiva- Te ao “Cogito em Descartes e em Kant”! Ou ainda, nuim tridngulo com permutas bem divertidas: “corpo e linguagem”, “‘linguagem e institui- a0"; “instituicdo e corpo”. Podem ser feitas dezenas de milhares. A dis- sertagio pode, por vezes, desembocar numa contribuicao, Pensem que Rousseau comecou ase fazer conhecido por duas dissertagdes sobre “as sunto proposto”’ por “academias” — precisamente — e que o primeiro texto de Kant que rompe com seusescritos dogmdticos foia famosa “‘dis- sertacdo de 1770”. Mas, enfim, digamos que essas sao excecées, e é pre- ciso que conserve em mente essa inéia de que a contribuiedo ndo éuma dissertacdo e que ndo se trata de propor o tratamento retdrico de um te- ‘ma que paira no ar do nosso tempoe que poderia ser retomado por cen- tenas de estudantes sem que a questo se mexa um miliimetro sequer. Is- so ndo é wma tese de 3° ciclo, pelo menos tal como eu a entendo. Outro termo antindmico, que tenho mais dificuldade em definir, e que designarei como testemunha isto é, 0 depoimento sobre urn per- curso, uma experiéncia, uma conferéncia, etc. Tal como a dissertacéo, 9 testemunho ndo pode ser jogado fora. O simples testemunho ndo é desprezivel, o percurso é indispensdvel: como um psicanalista, um cli- nico, poderia negd-lo? E antes dos psicanalistas pode-se pensar em al- guéni como Hegel, para quem verdade e histéria do desvendamento de verdade so, essencialmente, uma s6 coisa. Apagar o percurso seria 0 ‘modo de negar o testemunha. Existem formas de abordagem, uma me- todologia da pesquisa, existem os preliminares, todo um trabalho pre- REFERENCIA AO INCONSCIENTE 7 paratério e depois, finalmente, retiram-se os andaimes e temos um be- Io edificio a apresentar, pronto e acabado. Nao me facam dizer que com- partitho dessa concepcdo: sei muito bem que entre belo edificio e fa- chada, entre fachada e elaboracdo secundéria, existem comunicagdes que Freud trouxe magistralmente para a luz, mostrando a relacdo en- tre a elaboracdo secundaria e o desaparecimento do processo de elabo- ragio primédria. O que eu quero dizer, portanto, ndo é quese deva apa- ‘gar o percurso e negar todo o testemunho; uma contribuicdo pode le- agitimamente e deve deixar ver 0 seu percurso; mas no pode ser apenas testemunho do seu percurso, Em ultima instncia, eu diria que se real- ‘mente ndo fosse mais do que isso, a tese no estaria destinada a comu- nicar fosse o que fosse; ela seria um documento clinico que teria de ser julgado como tal, em que o autor tornar-se-ia objeto de uma avalia- ‘edo clinica e néo interlocutor. Seria (e ds vezes &) uma produgdo pura- mente nareisica, ndo aberta para uma comunicacao. Ouve-se com fre- giiéncia — e com raziio — dizer que os estudantes freqilentam 0 3? ci- clo com a intengdo primordial de “ler Freud” Isso € inteiramente legé- timo, cada um deve fazer seu percurso em Freud, cada um deve, de acor- do.com sua capacidade, fazer 0 seu Freud. Maso “‘meu Freud”; amenos ‘que se seja, como Valéry, capaz de fazer 0 “meu Fausto”; ndo pode ser objeto de uma tese. Ou ainda, para ir ao outro extremo, ndo do lado da documentagao livresca mas da clinica: a “minha experiéncia da ins- tituigdo asilar’” nao pode ser, como tal, objeto de uma tese. ‘O que quero entéio dizer com “contribuicéo’? Quero evidentemen- te dizer com isso que, no nosso dominio, 0 da andlise ou da psicapat logia, ou das ciéncias humanas em geral, existe uma certa cumnulati dade; que ndo estamos num labirinto onde cada um, de maneira pura- mente individual e incomunicdvel, traca um caminho aseu modo e de- ois fim. Este tipo de pereurso é tinico, por definigéo ndo pode servir aninguém mais, a um outro rato que, posto no mesmo labirinto, tra- card um caminho muito diferente para chegar, talvez, ao mesmo resul- tado, Tampouco afirmo que néo estejamos num labirinto: no existe poucos no que fazemos e temos todos de fazer essa espécie de percurso absolutamente individual. Mas 0 postulado da contribuigdo e da cumu- latividade envolve, apesar de tudo, uma outra dimensdo: mesmo que haja, sobretudo, contetidos da ordem da repeti¢do, do individual, do ndo-capitalizdvel, néo hd apenas isso. Que uma tese seja uma contri- buiedo, o que é que isso significa? Quer dizer, concretamente, que esse texto queserd “‘defendido”, que serd objeto de uma “apreciagdo” e de um “atestado”’ (“doutor de 3° ciclo”), deve ser wn documento, ou se~ ja, uma referéncia posstvel para um outro investigador. Isso quer dizer 8 O INCONSCIENTE E 0 ID que, se alguém pretender daqui a cinco anos dedicar-se a um determi- nado ponto de psicopatologia clinica ou tedrica, ou de psicandlise apli- cada, ou ao estudo de tal ou qual autor, poder-se-d apresentar-the esta condigao prévia: entdo vd dar uma olhada nas teses destestltimos anos, af encontrard tal e qual pesquisa relativa ao seu assunto e serd de seu interesse levd-la em conta, Esse aspecto cumulativo da produedo inte- lectual — no entanto tao evidente e indispensdvel — é um tanto vexa- t6rio ter de sublinhd-lo, como se, nos nossos domtnios, cada um ima- ginasse poder e dever recriar tudo por obra e graca de seu prdprio cére- bro, Apoiar-se no trabalho e nos resultados de outros pesquisadores| ‘no entanto, win imperativo, vélido nao sé em relacéo as pesquisas pas- sadas, mas também para as pesquisas em curso. Que a sua tese, a sua pesquisa, possa tornar-se uma contribuicdo, uma referéncia possivel pa- ra outrem, é algo que jd implica ums porgao de coisas, em sua redagao, sua composicio, seu método; implica wim propdsito claramente defini- do e submissio as exigéncias mininas da comunicacdo. Tenko um outro modo de dizer isso, que serd mais cru, Uma tese tem, pelo menos, trés leitores: sdo leitores mercendrios, pagos pelo Es- tado para ler essa tese e emitir um julgamento, para discuti-la. Adiitamo-lo por um momento, ainda que existam motivos para recha- gar a idéia de que uma remuneragdo qualquer erie para mim a obriga- do de ler atentamente um escrito que néo estd precisamente destina- do a comunicar seja o que for, e que ndo me toma como interlocutor. Enfimn, admitamos até que possam existir leitores assalariados: os trés professores da banca examinadora. Pois hem, ao redigirem suas teses, Para que sejam contribuicdes dignas desse nome, vocés deverio ter em ‘mira o quarto leitor ou, 0 que vem adar no mesmo, entre os trés, aque- Je que se tiver interessado em ler esses trabathos, mesmo que néo fosse obrigado a fazé-lo por sua fungao na Universidade, em virtude de ser ‘seu funciondrio, Cada uma dessas contribuicdes pode ser mais ou me- nos importante; raramente genial, por vezes modesta: uma referéncia, um enfoque inédita, uma bibliografia, uma visio nova, evidentemen- te, a exumacao de alguns documentos interessantes, clinicas ou outros; ‘mas que haja nesse trabalho algum elemento digno de ser arquivado eque, uma vez arguivado, nao seja definitivamente recoberto pela poeira dos manuscritos jamais consultados! Visem, pois, por favor, esse quarto leitor, visem-rio pelo contetido do que expéem mas respeitem-no tam- bém como leitor, eé al que chegamas as exigéncias pretensamente fo) mais. As negligéncias de estilo, de apresentacdo, 0 fato de que uma te- se as vezes pode ser, em tiltima andlise,ilegtvel pelos erros, pelas biblio- grafias mal escolhidas, pelas referéncias inexatas, eis alguns defeitos in- REFERENCIA AO INCONSCIENTE 9 tolerdveis; ndo em virtude de um formalismo obsessivo e obsoleto, mas em raziio do desprezo que revelam pelo leitor a quem pretendem co- municar alguma coisa. Se assistirem a uma defesa de tese, ouvirdo por vezes da boca dos membros da banca reflex6es deste género: na pdgina 50 hd tal erro, hd tal expressao, serd que néo quis empregar tal palavra em vez de tal outra? Tal niimero ndo remete a nota correspondente, etc. Essa atencao aos detalhes pode parecer um tanto divertida e assim se- ria, de fato, se 0 professor ndo tivesse eriticas a formular sobre o fun- do. Mas se as negligéncias se acumulam... Quanto a mim, nao me con- sidero um mercendrio e sinto-me no direito de fulminar com a minha célera um texto que ndo manifeste um minimo de respeito pelo inter- locutor, portanto, um minimo de atencdo pelas regras da comunicagao e do didlogo. Eis, pois, um comeco de introdugdo metodolégica para este DEA, apesar de tudo muito particular, que se intitula Psicopatologia clinica e psicandlise, e para estes cursos tedricos. Com o primeiro destes cur- sos, introduzi, de uma certa maneira, os trés?. Cada um dos irés do- centes concebe, aseu modo, o que faz, mas nenhum pretende, em todo caso, trazer-lhes 0 saber, nem mesmo a base ou os instrumentos neces- Sdrios ao seu trabalho. Compete a vocés delimitar uma base, forjar seus instrumentos no campo que escolherem. Estes ensinamentos tedricos 18m muito pouco a ver, em tiltima andlise, com a transmnissao de ele- mentos de base. Com efeito, devem ser concebidos mais como amos- tras de diversos pensamentos, amostras de uma pesquisa que um ou ou- tro esté realmente desenvolvendo (e que methor lugar haveria para comunicd-ta do que este nivel, precisamente, 0 3? ciclo?), wr winwos- tra que pode ser estimulante, instrutiva, seja pelo conteiido, seja tam- bém pelo testemunho de uma abordagem e de um método. Escolhi para este ano um tema que comen- ROMPER E. tei num titulo um pouco longo; nao o in- REATAR consciente mas a referéncia ao inconscien- te, sua comprovaedo na prdtica e na teoria. E, uma vez mais, quero interrogar-me com vocés: por que esse tema? Mas perguntemo-nos primeiro: como se escolhe um tema? Talvez.al- guns professores nao se fagam tal pergunta, mas, apesar de tudo, é um problema. Ponhamos de lado o assunto do “programa”; acabamos de ver que isto ndo est em questo, uma vez que nao existe programa do DEA, nao existe programa da psicanalise, a nao ser em certos institu- tos de psicandlise, em certos momentos de sua histéria, quando real- bito do DEA 1977-1978: J. Gage, Idéotogie ivénenrent, ¢este aqui publicado, "2 TBs cursos foram realizados n et théorie, M. Dayan, Le fantasme et 10 (0 INCONSCIENTE E 0 ID mente se tratava de abarcar a psicandlise esquadrinhando todo o cam- po do conhecimento possivel a seu respeito, Num extremo da gama de motivos de uma escolha pode-se, portanto, escolher um assunto por- que esta “‘no programa”, porque isto ajudard as pessoas, porque é fun- damental, sei lé. Na outra extremidade, frente ao programa, haveria, digamos, 0 “desejo”, as motivagdes mais secretas: por que nesse mo- mento de sua vida, de sua pratica, de sua andlise, de sua auto-andlise, por que escolher este assunto? Isso nunca é feito por acaso. Penso que, no entanto, émuito dificil chegar at8 esse ponto de desvelamento; ath ca coisa que se pode fazer é ndo o encobrir sistematicamente (e isso jd é muito). Entre esses dois extremos, 0 do trabalho sob encomenda ¢ 0 das motivacdes profundas, tentei por mais de uma vez definir uma es- pécie de camada intermédia, que interessante na medida em que po- de servir de guia para uma certa interpretacdo da obra, Na leitura de uma obra, em particular, digamos, a de Freud, poderiamos encontrar cesses trés nfveis: 0 nfvel da racionalidade; no outro extremo, o nivel, em iiltima instancia, da andlise de Freud tal como se possa tentar reconstitui-la (mais de um tenta ou tentou faz8-lo, e nao critico essa ini- ciativa; penso especialmente nos trabalhos de D. Anzieu); ¢, enfim, es- se nivel intermedirio* que designo como 0 da exigéncia. E ja que me refiro ao exemplo de Freud, tive oportunidade de ressaltar esse nivel da exigéncia a propésito do que se chama a “virada de 1920” e, mais pre- cisamente, das razées pelas quais Freud, nesse exato momento, come- cou a falar de pulsao de morte. Neste caso, pode-se delimitar facilmente 0s trés niveis, Pode-se ir diretamen‘e ao plano que pretende set o mais profundo, Nao se deixou de dizer a Freud — e ele nao deixou de negé- To do modo mais veemente: vocé fala da pulsdo de morte porque a sua filha querida acaba de morrer, porque houve o choque da guerra de 1914, etc. Tratar-se-ia nesse caso do “trauma” mais proximo do tempo; mas como sabernos que o trauma sé vale pelo fundo do **jé ali” sobre o qual se inscreve, ¢ possivel colocar em evidéncia, em sua especificidade, es- sa relagdo mais antiga de Freud com a morte (como 0 fez Max Schur em seu livro La mort dans la vie de Freud), que entraré em jogo na mutacao tedrica de 1920. Em contraste com essa tentativa de andlise do nivel mais profundo, sempre muito arriscada, temos as racionaliza- Oes de Freud. E se existe alguém que “destréi os andaimes”” é bem ele: €0 fez no sentido préprio, ao ponto de queimar tudo 0 que pudesse * Intermédivire shude simultaneamtente ao cardter de mediador e 20 Iago que une ‘0s fermos. No semtiniio de “A sublimagao" (Problemadtieas I11, Martins Fontes, 1989) este conceito € amplamente desenvoivido. iN. R.) 3, M. Schur, La mort dans fa vie de Freud, Paris, Gallimard, 1975, REFERENCIA AO INCONSCIENTE ul ser um documento que permitisse fazer a histéria de seu pensamento. Praticava gigantescos autos-de-fé de sua correspondéncia, de seus ma- nuscritos, de suas notas, como para cortar de antemao as pontes para o futuro analista. Portanto, se se pode falar a respeito de uma obra, de fachada, de racionalizacao e de destruicdo de testemunhos, o “mestre” €0 primeirissimo modelo desse género de “trabalho”. Em todo caso, permanecendo (como Freud o fez com freqiiéncia para relatar a histé- ria do seu pensamento) no nivel mais racional, pode-se mostrar que a pulséo de morte era um dos tempos necessérios da teoria, que era pre- ciso integrar novas constatagGes clinicas, correndo o risco de ter de res- ponder a esta objeco: mas entdo, por que, durante anos, voce recusou apulsdio de destruicdo ou de agresso que Adier Ihe propunha? Ele lhe oferecia esta ajuda hd varios anos e a sua resposta invariavel era “no”; e eis que agora retoma esta teoria, pretendendo que nao se trata da mes- ma coisa, que nao é a mesma pulsdo de agressao (¢, com efeito, n&o € ‘a mesma; mas é preciso demonstré-lo!). E depois ha, sempre a propésito dessa virada de 1920, o que cha- mo a propria exigéncia do pensamento; ndo é a racionalidade de um desenvolvimento cronologicamente identificavel, numa temporalida- de que seria simples progressio, acumulacdo sem fallas, sem regres- so, em suma, a temporalidade de um progresso do conhecimento. Tam-) pouco éa temporalidade intemporal do desejo, do inconsciente, que te-} mos de encontrar entre a a-temporalidade da repelicdo e essa tense | lidade muito particular que é a do trauma. Com o nosso termo exigén- ia poderiamos dizer que a temporalidade em questo , desta vez, de uma espécie muito mais estreitamente Vinculada a uma certa estrutura da experigncia e do pensamento. Uma temporalidade em que ¢ permi- tido introduzir algo como uma dialética, Assim, todo o sentido do que pude dizer para interpretar a “‘virada de 1920” foi o de mostrar como a pulsdo de morte era a renovagao de algo jé existente ¢ que tinha ne- cessidade de ser reafirmado de um outro modo porque o conjunto do equilfbrio do pensamento freudiano se deslocara e, em particular, por- que aparecera toda a dimensao do narcisismo e do eros nareisico e era indispensAvel liberar a sexualidade em relagdo ao eros narcisico. Portanto, uma exigéncia nao inclui a ruptura, se se trata de dialé- tica, e adoto 0 verbo “‘romper”” em todas as suas acepedes, incluindo aquela que se usa em esgrima [desfazer a posicdo para um novo assal- to]. Perguntaram-me: “por que rompeu coma sublimagao, o tema dos seus tiltimos cursos; ainda nfo estava concluido, estava to interessan- te, precisava continuar!”” Ora, eu rompo para reatar; espero explicar, em parte, por que e como, da préxima vez. Rompo, mas sem perder 0 12 OINCONSCIENTE E 0 ID fio da meada, tanto no que se refere ao antepeniiltimo desenvolvimen- to, que tratava de simbolizagao e castrag’o, quanto ao pemuiltimo, re- ferente a sublimacdo, Rompendo e reatando: é evidente que sou levado a reexaminar algo a que os remeto, aquilo que foi, para outras geracdes pelo menos, o *famoso” coléquio de Bonneval (1960), consignado num grosso volume editado por Desclée de Brouwer‘, que inclui, entre ou- tros textos, o relatério introdutério de Leclaire e meu: ““L'inconscient, une étude psychanalytique”’. Nao pretendo, evidentemente, repisar es- te ano o mesmo tema, mas dele farei uma espécie de quadro de refe- réncia que serei levado a testar, eventualmente a contestat, a por & pro- va como assinala o men tftulo: a referéncia ao inconsciente, sua com- provagao na pritica e na teoria. — 15 de novembro de 1977 Remeto-os, portanto, a esse volume muito ESPIRAIS denso eimportante, no qual figuram mui- DESDE BONNEVAL tas outras contribuigdes além da de Laplan- che e Leclaire, ¢ também discusses desse texto em que intervieram Conrad Stein, Green, e um estudo comple- mentar de Leclaire onde ele aprofcnda mais a anilise do seu ‘‘sonho do unicérnio”. Ai encontrardo igualmente um texto de Lacan — digo “igualmente” porque esse estudo foi completamente escrito depois do coléquio, Hoje, quero tentar restabelecer a ligaco do tema do incons- ciente, que abordo com prudéncia, com o movimento que pude pensar e desenvolver aqui, no transcurso dos anos precedentes. Poderd pare- cer presuncoso interrogar-me assiri sobte 0 movimento do meu pré- prio pensamento, dar importancia aos meus préprios erros, repetigoes vacilagdes. Mas presumir que tal movimento Ihes interessa é presu- sir, em tiltima instancia, que este DEA possui um sentido, que uma pesquisa universitéria de um DEA de psicanalise pode situar-se justa- mente como uma “combinagaio” eatre o que chamei, da tiltima vez, contribuicdo (ou seja, 0 aspecto cumulativo de certos subsidios dos quais nem tudo cai por terra cada vez que so proferidos) ¢ o caréter singular, wnico, da abordagem individual; mostrar que uma certa tra- |jetoria pode ser de certa ajuda para os outros na tomada de conscién- icia de suas préprias abordagens. E, além do mais, existe um minimo “% Linconscient: collogue de Bonnevcl, Paris, Deselée de Brouwer, 1966. Esse es- tudo esta reproduzido no final do presente volume, com a paginacio de 1966 indicada nna margem. REFERENCIA AO INCONSCIENTE 1B de lucidez que consiste em perguntar-se 0 que é que nos leva efetiva- mente, num dado momento, sem necessidade exterior, sem programa, a falar ora de castragdo, ora de sublimacdo ou de simbolizacdo, agora do inconsciente, Entre racionalizacdo e auto-analise, tentei redefinir da iiltima vez aquilo que chamo o nivel da exigéncia. Esquematizo, por vvezes, essa exigéncia por meio de uma espiral. A espiral € uma curva plana que descreve revolucdes concéntricas a partir de um ponto cha- mado pélo, revolugdes essas cada vez mais ampliadas. Poder-se-ia fa- lar igualmente de hélice, pois aquilo a que se chama com freqiiéncia, de modo impréprio, espiral (uma escada “‘em espiral”) éuma curva no espaco ¢ ndo apenas em duas dimensdes, curva que se inscreve, por exemplo, num cilindro, (O que é que me interessa nessa espiral, ou nessa hélice? Néo étanto saber se 0 pensamento est em expansao ou é pura ¢ simplesmente re- petitivo; nao me compete julgar isso ¢, com freqiiéncia, iludimo-nos 20 imaginat que se evolui e que se amplia 0 campo quando, afinal, nada ais se faz do que descrever, em niveis diferentes, curvas que se sobre- pSem umas as outras. O que me importa, em ambas as curvas, éa idéia de que se tragarmos uma linha reta que corte a curva (‘*raio vetor”” da espiral, ou ‘‘geradora”” do cilindro), definiremos assim uma série de pon- tos que se projetam uns nos outros. O que quero imaginar desse modo € que, situando-me na vertical de certos pontos, sou levado a ter uma espécie de visio de cima para baixo de uma, duas ow 1 espirais prece- dentes. Significa isso que todo pensamento € repetitivo? Certamente; e, no melhor dos casos, esperamos que ele esteja relativamente em ex- pansdo ou se desenrole em planos que, apesar de tudo, mudam. Pois hem, o que é que me leva a repassar pela vertical do inconsciente? Per- sgunta que pode parecer supérflua, ja que falar de psicandlise é sempre 14 O INCONSCIENTE E 0 ID falar do inconsciente. Portanto, nao caberia dar mais explicagées. Eo nosso pao de cada dia, o nosso pressuposto, falamos do inconsciente sem geralmente formularmos as questdes iltimas do ser e do fundamen- to... e€ melhor assim. Essa “referencia ao inconsciente”, encontramo-la especialmente no tratamento, que prescinde perfeitamente de uma on- tologia ou uma epistemologia, em todo caso explicitas. Se, apesar de tudo, me pareceu necessério reinterrogar essa referencia universal da andlise, foi em relac4o ao movimento imposto pelas duas titimas vol- tas da minha espiral: a pentltima, consagrada & castracdo e as simbo- lizagdes (anos de 1973-1974 e 1974-1975), e a tiltima, sobre a sublima- ¢Ao (anos de 1975-1976 e 1976-1977), Ao primeiro curso a que me refi- To dei o titulo de “A castragdo, seus precursores e seu destino”, e € cO- modo situarmo-nos em referéncia ¢ esse titulo: a castracdo, em seu sen- tido préprio, em psicandlise, € um complexo, muito precisamente vinculado a um momento, 0 da fase falica, e a0 complexo de Edipo, que Ihe é contemporaneo; isso se nos referirmos as concepodes freudia- nas. Mas, por mais estreitamente que esteja delimitado no tempo, 0 compleso de castracio, esse complexo fali- ESPIRAIS DA €o, se assim podemos dizer, tem de situar- CASTRACAO se entre, por uma parte, uma genealogia e, por outra, um destino ulterior, neurdtico, cultural, ov ainda — por que ndo? — psicanalitico. Pode-se tentar en- carar a questdo termo @ Lermo ou, mais exatamente, de dois em dois. Na relacdo do complexo de castrago com os seus precursores, tentei mostrar uma dupla genealogia por um lado, a de uma representagéo, por outro, ade um afeto e, precisamente, do afeto a que se da o nome de angistia. Insisto sobre este ponta: a distinedo, no caso da castragiio, entre 0 registro do afeto e o da representagdo, no tem nada de um ar- tificio de apresentacdo. Ela se situa, pelo contrério, na linha de uma das descobertas primordiais e fundamentais da psicandlise: 0 jogo in- dependente, a dissociacdo sempre possivel, mum evento psiquico, entre seu contetido representativo e a vivencia emocional (quantitativa e qua- Iitativa) que o acompanha. Ao invés das constatagdes do senso comum e das descrigdes da fenomenologia, o “‘medo do lobo”, a “tristeza da perda’’, a “alegria de um éxito”, ro constituem totalidades indisso- cidveis, modos de consciéncia em eue noema e noese se correspondem necessariamente, O “de”, nessas descricSes, significa apenas um vin- culo fragil, mével — quanto & suz realidadeS; um vinculo discutivel, eventualmente enganoso, sempre fazendo jus @ uma anélise — quanto 5. Toda a andlise Freudian do Juto mostra que este ndo & o que acredita set, isto 6, uma “tristeza da perda” REFERENCIA AO INCONSCIENTE 15 a sua esséncia, A gencalogia da representacdo, no caso da castragio, consiste essencialmente nos avatares de uma fantasia que é a da sepa- ragao. E nesse sentido que se ¢ levado a falar de ‘‘castragées” pré- genitais: oral, por exemplo, com o momento repetitivo de retirada do seio ow o tempo, mais geral, do desmame; ou ainda a chamada castra- Go anal ou, em termos gerais, excrementicia; e, enfim, mais arcaica e também mais enigmatica, a separaco do nascimento: mais enigmati- ca porque se trata de uma “‘castracdo” que néo ¢ vivenciada como tal pelo sujeito e nao pode ser, no comego, tematizada pela crianga mas, pela mae. Essa sucessio poderia ser tomada num sentido muito gené- tico, muito linear, inclusive na perspectiva de estdgios de maturacio: haveria uma espécie de aprendizagem ¢ de dominio progressivo da se- paracdo, para se chegar a esse estégio terminal que seria o complexo de castragio, ou seja, a assuncdo do sexo como algo que pode ser sepa- rado e que funda a disting’io macho-fémea. A essa concepeio, que po- derfamos ainda chamar Construtivista, deve-se opor uma perspectiva que considero mais dialética e que, precisamente, faz intervir a hipdte- se do Ics. O que entendo por isso € que as ‘‘castragdes” primordiais, pré-genitais, nao sfio, para nos valermos de uma imagem, as pedras de ‘um edificio que, uma vez concluido o edificio, poderiam ser reconhe- cidas nele, Essas pedras so, no maximo, as fundagoes invisiveis desse edificio ou, melhor ainda, como aqueles blocos de cimento ou de pe- dra que se langam, por vezes, no mar, a fim de sobre eles se construir em seguida um mothe, Essas “casttacdes” esto, portanto, submersas, encontram-se numa relag&o de recalcado em face da configuracio ul- terior; recalcadas, particularmente, em relagRo ao complexo de caste gio falica. Sera que nao se trata mesmo (cis uma indagacao que tere- ‘mos de formular) do recalcado primordial, origindrio? A pergunta se- ria, portanto, a seguinte, partindo desses precursores da representacio ‘ou do complexo de castracdo: 0 destino dessas representagdes arcaicas, que prefaciam 0 complexo de castracao, poderd dar-nos unta idéia mals concreta do que constitui o fundo* do inconsciente? Uma sucesso de estigios ¢, portanto, uma sucessdo de recalcamentos, uma sucessao tam- bém de simbolizagées, ou seja, de retomadas, numa outra linguagem, do que foi dito numa linguagem anterior. E quando falo de “outra lin- ‘guagem’” nao estou falando, em especial, a “linguagem lacaniana”, es- tou falando, em primeiro lugar, a linguagem freudiana, porquanto é0 préprio Freud quem nos fala, justamente, da linguagem de determina- do estagio e, particularmente, no seu estudo sobre ‘a (de)negacao", da Laplanche emprega a expresso ‘le fondis) de inconscient" aludindo ao mesmo tempo ao que esta no fundo e a0 eapitl, 20s tecursos proprios do inconscient. (N. R.T) 0 INCONSCIENTE E 0 1D Jinguagem da pulsdo oral. Haveria, pois, uma espécie de retomada desse tema da separaedo, expresso numa “linguagem"” (num “dialeto”, co- ‘mo diz Freud, em outras ocasides), num complexo de ‘representagdes"™ (para empregarmos um termo menos mareado pela lingiifstica) diferente de cada vez. Vocés podem tomar, como ilustragao dessa idéia de ins- crigdes que se retomam umas as outras, a famosa carta 52, de dezem- bro de 1896 (uma das mais importantes da coletanea de cartas a Fliess) gue serve de ponte entre 0 Projeto para uma psicologia cientifica, de 1895, ea metapsicologia que seré a da A interpretacdo dos sonhos, no capitulo VII, Bis algumas passagens muito significativas : “Voce sabe que, nos meus trabalhos, parto da hipétese de que 0 nosso mecanismo psiquico estabeleceu-se mediante um processo de es- tratificagdo [termo que poderia invocar 0 modelo de um construtivis- ‘mo, com um primeiro andar, um segundo, etc.]: 0s materiais presentes sob a forma de tragos mnémicos véem-se, de tempos em tempos, rema- nejados de acordo com as novas citcunstancias [abandonamos a cons- truco e a sedimentacao de camadas inertes: hé remanejamentos]. O que ha de essencialmente novo na minha teoria é a idéia de que a me- moria esta presente no uma s6 mas varias vezes, e que se compoe de dliversas especies de ‘sinais’. Ignoro o miimero desses registros. So pe- Jo menos trés e provavelmente mais."7 Vocés esto vendo como tudo isso ¢ importante. Freud sublinha © que éespecifico e inovador na sus teoria: a meméria estd presente ndo uma, mas vérias vezes, 0 que encontraré eco nessa questo que Teapa- recerd com insisténcia: saber se exisiem varias inscriedes da mesma coisa em lugares diferentes, e, portanto, se € preciso ter uma concepedo ce dadeiramente realista, tépica, do inconsciente. Essas “diversas especie de sinais” fazem pensar, sem divvida, em sistemas de expresso orga~ nizados de modo diferente e é isso, com efeito, que nos € dito em segui- da, sem quea palavra “‘linguagem” seja pronunciada: cada um desses registros est ordenado segundo um certo tipo de associacao diferente de um a outro. E depois, aparece uma visdo mais genética que realmente prefigura a nocao dos estagios: __“‘Insisto em assinalar que os registros sucessivos representam a pro- duco psiquiea de épocas sucessives da vida. E no limite de duas épo- cas que deve efetuar-se a tradusao dos materiais psiquicos [poderfamos ee. ss. uma “integra” que foi truncada pelos “ed ores”, que devem ter consierado devine. sti pases qe aaa re, Le nance del ppchals, Pais, PU, 1873, 183466. Bae colchetes: comentarios de J. L. ” ee | cel) REPERENCIA AO INCONSCtinvs "7 pensar que nessa nogfio de traducdo kstaria um bom modelo de recal- camento, em que o que éTraduzido subsiste, em suma, como o recalea- do da nova tradugo, Pois bem, no é nada disso que é dito, o que in- troduz um novo enigma]. Explico as particularidades das psiconeuro- ses mediante a suposi¢ao de que a traduco de certos materiais nao se realizou — o que deve acarretar certas conseqiléncias... [E mais adian- te:] Ea auséncia de traducdo que chamamos, na clinica, recaleamento. ‘O seu motivo é sempre a producdo de desprazer que resultaria de uma tradugao. Tudo se passa como se esse desprazer perturbasse 0 pensa- mento, entravando 0 processo da traducdo. Durante uma mesma fase psiquica e ao mesmo tempo que se realizam os registros de uma s6 € mesma espécie, vemos erguer-se, por vezes, uma defesa normal contra o desprazer produzido. A defesa patoldgica sé ¢ dirigida contra os tra- gos mnémicos ainda nao traduzidos e pertencentes a uma fase ante- Bs rior? ‘Como se vé, temos ai uma espécie de modelo da passagem de uma fase para outra, modelo que poderiamos chamar 0 da “ ‘simbolizagao”’, ‘ou mesmo da “‘metaforizagdo”, para retomar os termos que utilizei no relatério de 1960. Mas com a idéia bem particular de que uma simboli zagdo perfeita nao deixaria residuo; haveria uma perfeita tradugao pos- sivel, o que, de certa maneira, também nos recorda algo que éextensa- mente assinalado no relatério de Bonneval, a saber, a hipétese de Po- litzer segundo a qual a linguagem do sonho no é uma expressdo ina- dequada mas, simplesmente, uma expressao ndo-convencional do de- sejo. De sorte que, entre a expresso convencional — a qual correspon- deria A nossa linguagem cotidiana — ¢ essa expressdo ndo-convencional, puramente individual — esse idioleto que € 0 das imagens do sonho —, entre essas duas versdes nao haveria resto. Uma linguagem seria licita- mente traduzivel para outra, ou melhor, como diz Politzer (insistimos ‘esse ‘‘ou melhor’’), nao se trata sequer de uma traducao de uma_ guagem a outra, é uma mesma “‘intenciio significante’’ que se traduz ora para uma linguagem ora, por certas razOes, para outra. Em Freud, as coisas passam-se de outro modo. O recalcamento significa um certo fracasso da simbolizacdo... 0 que deixa, entretanto, aberta a possibili- dade de uma simbolizacao sem fracasso. O que nos defrontaria, por con~ seeuinte,« conmuaro, com essa especie de deal (provavelmente impos-| ¥ ° sivel de atingir) que se encontra na problematica da sublimagdo ou mes mo na do tratamento, se ele deve visar a uma espécie de recuperacao| “sem resto” dos desejos inconscientes, Seja como for, essa genealogia, 1. Tbid., pp. 155-156, Entre colchetes: comentarios de J. L. : wines Teapy ee a Coen 18 O INCONSCIENTE E 0 1D de esquemas figurados sucessivos, desias fantasias em que se concreti- zaa auséncia, a separacdo, levar-nos-a a reexaminar, talvez a exempli- ficar melhor, a diversificar, esse esquema da “‘metafora”” que Leclaire © eu tinhamos tentado descrever, através de um certo formalismo de as- pecto matematico. A outra linha genealégica do complexo de castracao é a genealo- gia da anguistica. Ela ainda nos leva a insistir de novo no problema ca- pital do afeto e da representacao. Sua distingao em Freud apresenta-se como um ponto de partida do seu pensamento, pois ¢ em torno da ex- periéncia de uma certa independéncia do afeto em relagao & represen- tacdio que gravitam todos os Estudos sobre a histeria ou mesmo os pri- meiros desenvolvimentos acerca da neurose obsessiva. A primeira idéia do tratamento analitico fundamenta-se, verdaceiramente, na constata- 40 de que um afeto pode estar mal calocado (‘‘ialsamente ligado””) em relacdo & representac&o que seria, logicamente, o seu correlativo in- tencional. No lacanismo, lamentavelmente, essa dissociagao redunda na rejei¢do de um dos dois termos enuma priotidade absoluta conferi- da & representagio, na primazia do “significante” para retomar o ter- ‘mo utilizado por Lacan. Nao ¢ preciso ler muitos textos lacanianos pa- ra nos persuadirmos de que a distingdo freudiana entre afeto e repre- sentago converteu-se, no lacanismo, numa verdadeira rejei¢do, even- tualmente depreciativa, do afetivo e do vivenciado, que, ali, geralmen- te esto afetados por sinais de ironia ou por aspas. Se voltarmos a Freud, percebe-se gue o acento est colocado exatamente do lado oposto. O essencial para o individuo, em sua vida e em seu tratamento, é 0 dest no do afeto. Mas a problematica ainda se complica, a questo reacende- se: dizer que o destino do afeto é essencial nao implica dizer que o afe- to possa ser manipulado. E toda a pastagem do chamado método ca- tartico — método que consiste justamente em “fazer sair” 0 afeto — para o método analitico parte dessa corstatacdo de que, em tiltima ins- tancia, ndo é tentando agir sobre o afeto que se agiré melhor sobre 0 seu destino. Eis uma constatagao que continua sendo valida atval, nu- ma época em que voltam a florescer as chamadas terapias neocatart cas. O freudismo nada tem a ver com o desprezo do afeto dos nossos lacanianos, Basta reportarmo-nos a wn texto como O interesse pela psicandlise? para ver citada como uma das principais descobertas da psicandlise a importancia do afeto na vida psiquica. Mas 0 ponto que serviu de passagem, o que levou efetivamente o lacanismo ainteressar- se prioritariamente pelo “significante”, est em que as representagdes, 9.8, Freud, “Das Inteesse an der Psychoanalyse”, GW, VIII, pp. 390-420, REFERENCIA AO INCONSCIENTE 19 as fantasias, constituem o ponto de impacto para modificar a econo- mia afetiva. Com o problema da castracZo, estamos em presenga de um afeto muito particular e, ao mesmo tempo, absolutamente primordial, o afeto de todos os afetos, aquele a que se pode chamar 0 minimo denomina- dor comum dos outros; 0 minimo no sentido de que ¢ mais cego € © menos especificado: refiro-me anguistia. Assim, a genealogia das fantasias de que falei hd pouco, a propésito das “‘castragées’” pré- genitais, é escandida, em contraponto, por uma genealogia das anguis- tas. Neste sentido, a angistia apresenta-se freqlientemente como an- miistia de alguma coisa, “intencional”’, portanto, préxima, em tiltima anélise, do medo™®, Com essa idéia de que a angustia seria angiistia- de-alguma-coisa, reencontramos, portanto, 0 interlocutor fenomend- logo, como eu batizei Politzer, no sentido de que, embora Politzer nfo fosse um defensor da escola fenomenoldgica, sua inspiragio estava, no entanto, bem perto dela. Ora, apercebemo-nos de que essa intenciona- lidade do afeto ¢ enganadora, uma vez que por tras de tal objeto sem- pre se apresenta outro, Para além dessa relativa independéncia do afe- to e da representago, percebemos inclusive que 0 afeto, enquanto an- wistia, pode aparecer inteiramente livre, sem representagéo, e que nis- to reside precisamente seu carater singular em relago aos demais afe- tos. A angiistia talvez esteja apenas ‘‘soldada’” (€ 0 termo de Freud) artificialmente a tal ou qual representaco angustiante, por exemplo, nas representagées fobicas... a aranha, a trovoada, etc. Segundo Freud, essa soldadura nao é originaria mas ulterior e mais ou menos contin- gente: primeiro existe angustia ¢, em seguida, angustia-de. Por vezes, ‘a angistia passa, portanto, de um simbolo a outro, outras vezes apare- ce pura, "livre", por crises, num tempo que poderia chamar-se ento tempo de dessimbolizacao. ; ois bem, se aproximarmos essas duas linhas, genealogia das fan- tasias e sucesstio das angiistias, desde as mais primitivas angistias de separa, de fragmentaglo, até a angistia de castragao e mesmo as an- plistias descritas como posteriores, angiistia social, anguistia em face do superego, etc., o problema da simbolizacio, que me introduz diretamen- tena questo do inconsciente, apresenta-se de modo duplo: a simboli- zacdo é certamente simbolizacdo de representagdes, pois que se trata 10. A panto de que, em slemio, cumpzelembrar, Angst significa a mesmo tempo redo e angtistias ela ora & Angst, tomada de modo absoluto, ora & Angst vor, ou sei, ""angiistia de". CF. omeu curso sobre "Angoisse, douleur, déplaisir, reapresentado em Problématiques/, 1* parte s0b titulo de “LAngstdansia névrose" (Ed. bras. Proble- Imatieas I, A ancglistia, 1 parte, “A Angst na neurose” (M. Fontes, 1987).] 20 O INCONSCIENTE E 0 ID de substituir uma representago por outra, tornando-se a segunda o sim- bolo da primeira; mas, num sentido muito mais primordial, talvez, a simbolizacdo apresenta-se como algo que envolve diretamente o afeto, isto é, que ndo seria, na origem, substituig&o de representacdes mas, em primeiro lugar, ligacdo, soldadura da anguistia, de modo a controla- a. Dai o perigo do que Freud chama, precisamente, a desligacdo, ou seja, 0 desencadeamento (no vocabulario freudiano é a mesma coisa) de um afeto: afeto de angtistia ou afeto de desejo ou afeto de dor, o que é, em iiltima insténcia, de uma certa maneira, um s6 e mesmo afeto. Neste ponto, encontramos ainda um problema que é primordial em re~ ago ao inconsciente, a ponto de ser 0 titulo de um dos capitulos da ‘obra de Freud que tem esse nome, quer dizer, a situagio do afeto em relago ao inconsciente. E creio que essa questo do afeto em relacdo ao inconsciente deve ser formulada de duas maneiras diferentes: temos, ‘em primeiro lugar, uma formulagdo que eu chamaria classica, no sen- tido de que é a de Freud: existe afetos inconscientes? Ora, a argumen- tagdo de Freud é muito curiosa quanto aisso. Sabemos que, nas nume- osas discussdes que ele travou para defender a nogdo de inconsciente, despreza regularmente a objes20 filos6fica habitual — a objecdo cha- mada ‘‘consciencialista”” — segundo a qual haveria uma contradi¢éo nos termos entre “‘psiquismo”’e ““inconsciente”. A posicao de Freud tem, neste caso, nao o propésito de responder aos fildsofos mas de desqualificd-los, na medida em que opdem palavras a fatos: talvez ha- ja contradig&o nos termos, disse ele, mas pouco importa, pois isso no impede o inconsciente de existir existe realmente algo que tem as ca- racteristicas do psiquico e que, ao mesmo tempo, é inconsciente. Bo filésofo quem deve acomodar sua teoria — e, em primeiro lugar, suas palavras — as coisas. Ora, esse objectio que ele considera de uma or- dem puramente formal, verbal, quando se trata de defender o psiquis- ‘mo inconsciente, eis que a reenzontra no que concerne ao afeto... mas desta vez para tratd-lo com outro respeito. Quando Freud fala particu- larmente de sentimento inconsciente de culpa, ci-lo que se interroga: ‘um sentimento € algo que se sente, necessariamente vinculado, como que pela esséncia, & consciéncia. O sentimento de culpa consciéncia de culpa, a tal ponto que o alemio utiliza de forma equivalente os dois termos: Schuldgefiihl e Schuldsewusstsein. Portanto, que significado pode ter falar-se de ‘‘sentimento inconsciente de culpa’? até mesmo de “consciéncia inconsciente de culpa’”? Assim, vemos aqui Freud bizar- ramente sensfvel, quando se trata do afeto, a essa contradictio in ter- ‘minis, quando nao o €, em absoluto, no que se refere as fantasias ou As representagdes inconscientes. Teremos certamente de retomar essa REFERENCIA AO INCONSCIENTE a problematica — ¢ isso centrando-nos no afeto dos afetos, a angistia, para mostrar que ela exige a introducdo da segunda tépica, ou seja, a instdncia de ego como aquilo que é “afetado”” no afeto; ver-se-d que a questo adota neste caso uma nova forma: haverd uma parte do ego que inconsciente, e 0 que é que isso poderé querer dizer? Dizia eu que existia um segundo sentido possivel para essa ques- to do afeto, um modo de formulé-la para além do problema classico de sua posicao tépica: consciente, pré-consciente ou inconsciente. Em poucas palavras, direi que, nessa nova perspectiva, é a prdpria presen- a do afeto, seu surgimento, que constituird o principal argumento, 0 testemunho essencial em favor de uma realidade inconsciente, essa rea- lidade que precisamente me afeta. No afeto, existe um “‘afetado”, que 0 ego, que sou eu', e um “afetante”, que é essa realidade inconscien- te ov aquilo que podemos tentar perceber dela através do fendmeno do afeto. Essa realidade inconsciente é desencarnada, apesar de tudo, quan- do se fala pura e simplesmente, com Freud, de “representacdes””, Apren- demos, particularmente com Melanie Klein, que as representacdes in- conscientes siio objefos internos, introjetados. E quando dizemos “com Melanie Klein”, podemos dizer ‘*jé com Freud”; basta reportarmo-nos Aquele texto que se poderia designar (de um modo um pouco provo- cante em relacdo aqueles que desprezam o afeto) como um ensaio de “psicologia afetiva”” e que se intitula Luto e melancolia. Verificamos ai que o afeto da melancolia estd inteiramente ligado, néo a uma repre- sentagdo, mas & presenga atuante de um objeto introjetado; objeto que fui levado a denominar objeto-fonte, pela razdo de que vejo nele, 20 ‘mesmo tempo, a fonte da pulsdo. Evidentemente, teremos de examinar a estreita relacdo desse objeto-fonte com o inconsciente. Depois dos precursores, falemos rapidamente do préprio complexo de castracdo. Retomo-o apenas para esquematizar a importante ques- ‘to que ele abre do ponto de visia do inconsciente. O complexo de eas- trago, como insisti em afirmar, e é assim que ele aparece na obra de Freud, éem primeiro lugar e acima de tudo uma teoria, no sentido lite- ral do termo, uma “teoria sexual infantil”. E uma simbolizagdo ao mes- ‘mo tempo estreita, rigida e eminentemente inclusiva, uma vez que se estende ao conjunto do mundo ou, em todo o caso, do mundo huma- ‘no; uma teoria aparentemente néo-ambivalente que é aquela que Freud atribui a crianca numa etapa importante de sua evoluedo. Essa fase, cha- mada “félica”, consiste em “ter ou nfo ter”, ter 0 falo ou ndo. Nao * [un “affecté”, quiest (le) moi... Laplanche joga com moi, pronome pessoal da 1? pessoa (eu) € mol, instdncia psiquica (ego). (N. R.) 22 O INCONSCIENTE EO 1D insisto no que pude desenvolver a esse respeito, por exemplo, sobre 0 problema que constantemente se apresenta de saber o que, a partir de uma percepedo (ou de uma pretensa percepedo), a da diferenca das ana- tomias do menino e da menina, adicionada a uma ameaca (proferida ou nao, mais ou menos distante), acaba se cristalizando, subitamente, numa teoria; o problema resume-se em saber se é necessério um elemen- to catalisador suplementar ou se, simplesmente, percepeaio + ameaca teoria, Seja como for, eis-nos, com essa teoria, no ambito do que chamei a “légica falica’”, para que se entenda bem o seu carater deci- didamente racionalizador; uma légica da contradigao absoluta, em que “menos por menos da mais”, em que nenhum terceiro termo, nenhu- ma superac&o, nenhum compromisso ¢ possivel: se nao se ¢ falico é-se castrado, ¢ se nao se é castrado ¢é-se félico. B ai que se implanta ese ali- menta 0 famoso ‘“falocentrismo” de Freud; ¢ € certo que nfo foi por ele resolvido o problema da passagem (hipotética, sempre remetida para ‘ais longe) dessa oposicao “filico-castrado”, na qual apenas um dos dois termos esta “‘marcado”, para a bipolaridade “‘masculino-femini- no”. Acrescentemos que essa dificuldade, nao resolvida por Freud, se ‘acentuow mais ainda com os lacanianos, pelo menos na medida em que eles fazem da assungio da castracdo o horizonte e, em ultima iristan- cia, a finalidade da psicandlise. “Assumir a castragio”, encontramos freqtientemente esta forma nos escritos de numerosos lacanianos * (encontré-la-iamos em Lacan’). Evidentemente, ha ai um parentesco que poderfamos considerar filosofico, até religioso; entre castracio finitude, a passagem é perfeitamente apreendida: aceitar a nossa “‘cas- traci” € assumir 0 inacabamento ou ainda, como dizem alguns, a hign- cia [béance], nao se deixar engodar pela ilusdo narcisica da onipotén- cia, Seja como for, e mesmo que Freud tropece num possivel para além. da posigao “falica””, nao podemos fazer outra coisa senao confrontar essa légica filica, essa ldgica do sim e do nao, com o que Freud nao se cansa de afirmar sobre as caracteristicas préprias do inconsciente: que ele nao compreende nem negaco, nem graus na afirmacao, nem diivida; que nele coexistem os movimentos pulsionais mais contradi- t6rios ¢, portanto, necessariamente, o falico € 0 castrado, sem gue um venha excluir 0 outro. Como néo confrontar também essa lgica fali- ca que leva a uma légica da aegacdo com o texto de Freud sobre a “(denegacdio” (Die Verneinung), em que o simbolo da negagao se apre- senta precisamente como caracteristica do nivel consciente? Como pois, que a castracdo est presente no inconsciente? E sera que est mes- mo presente? O inconsciente ndo se apossara da castracao para fazer do seu “ou isto, ou aquilo” um “e...e": € falico, ¢ castrado? REFERENCIA AO INCONSCIENTE 23 Oterceiro ponto, enfim, aquele que considerei sob o termo de “de: tino” (da castracao) foi por mim abordado quando tratei das “‘simbo- lizagdes””. Haverd um ‘depois’? da castracdio? Deveria existir 0 ‘“‘de- pois”, enigmatico, do casal: masculinidade-feminilidade. Em todo ca- 50, hd o destino neurético, destino, por exemplo, da fobia, que nos apre- senta uma simbolizacdo relativamente univoca, que nao se afasta real- mente da ldgica félica. Pode-se dizer que a fobia domestica a angiistia, mas para deixd-la ressurgir em um outro ponto, o que nao faz pensar numa simbolizacdo que se possa dizer verdadeiramente bem-sucedida, superando a légica castrativa. Em contrapartida, tentamos efetuar uma pesquisa relativa aos rituais de passagem ou de iniciacdo, para identi ficar ai simbolizacdes talvez mais abrangentes, mais ambiguas, ambi- valentes, bissexuais, talvez com um menor residuo neurético do que no sintoma fobico. A oposicao entre o sintoma, sintoma fébico, ¢ o ritual, ritual de iniciacdo, circuncisdo é, alids, apenas esquematica, porquan- to existem fobias que podem aparecer, numa retrospectiva, como mo- ‘mentos estruturantes, e ha rituais mais neurotizantes do que outros, co- mo foi muito bem demonstrado por varios autores a propésito da cir- cuncisao judaica. O problema, em todo 0 caso, seria o seguinte: 0 que pode se passar para além do complexo de castragao? Ou, mais exata- mente, o que pode passar do inconsciente? O que seria uma simboliza- so bem-sucedida? Problema importante para o tratamento, mesmo que ‘0 seu éxito se apresente como uma espécie de ideal talvez impossivel de alcangar; problema que, em todo 0 caso, expus de forma diferente nes- tes dois tltimos anos, a propésito da sublimagao, nessas duas explora- ses: “Para situar a sublimasfio” ¢ “Tazer derivar a sublimasao”. — 29 de novembro de 1977 “Para situar a sublimacdo” retomava a pro- A SUBLIMACAO E blemética da relaeao entre o sexual e o ndo- © ORIGINARIO sexual, porque € precisamente um processo descrito como reinvestimento do nao-sexual por uma energia sexual o que definiria esse conceito enigmatico de su- blimacdo. Isso me levou, ha dois anos, a redefinir o problema do cha- mado apoio e a reabrir, portanto, nesse meio tempo, uma questdo: a da relacdo desse periodo a que se pode chamar originario, mesmo que seja em parte mitico, com um periodo no menos fundamental que Freud designou como recalcamento origindrio. O recaleamento origi- nario € postulado como a constituig&o de um primeizo inconsciente, ne- cessirio para explicar o fato de que existe sempre, em todo recalcamento 24 O INCONSCIENTE E 0 1D “secundario”, uma atragio exerzida por algo que ja se encontraria la (como se vé, situamo-nos deliberadamente em plena metéfora realista e espacial). Ora, 0 apoio ¢ a seduedo, por seu lado, tentam igualmente explicar a constituic&o das primeiras fantasias e, particularmente, o que me parece ser essencial nelas, aquilo que chamo o objeto-fonte da pul- ‘io, o objeto-fonte interno. Esse tempo do apoio seré um recalcamen- to? Serd um tempo anterior ao recaleamento? Nessa regio obscura das origens e da génese no haverd lugar para uma espécie de constituicao de uma primeira fantasia que ndo estaria ainda exatamente recaleada, ainda ndo exatamente inconsciente, e que, num segundo tempo, esta~ ria destinada ao recalcamento? Também se pode indagar como situar essa constituigdo de uma primeira fantasia em relagdo a0 esquema — ‘que teremos de retomar — do processo de simbolizagao. Sem divida, apoio e seducao fazem-se acompanhar de uma simbolizacdo de fend- menos de autoconservaciio; mas é 20 mesmo tempo uma ruptura, a constituicdo de um novo dominio, de modo que fica dificil dizer, sem nada acrescentar, que o objeto sexual simboliza pura e simplemente onao-sexual... Chego assim ao ano passado, quando, depois de ter si- tuado a emergéncia e a ruptura que faz 0 sexual enxertar-se n0 ndo- sexual, tivemos de considerar uma relagao, desta vez inversa, a passa- gem do sexual para o ndo-sexual e a existéncia possivel desse proceso de sublimacio, processo muito dificil de apreender caso se queira manter ‘sua especificidade em relaco ao sintoma neurético e & repress. Pols, se Freud reafirma constantemente a possibilidadede tal destino pulsio- nal, cada elaboragao faz aparecer a dificuldade em separar sublimagao erecalcamento, tanto no estudo sobre Leonardo quanta, por exemplo, no artigo sobre A conquista do fogo, onde Prometeu, her6i da subli- ‘magio, é igualmente apresentado como um campedo da repress. Foi esse género de impasse que me levou, desde logo, a perguntar-me se nao conviria “fazer derivar a sublimagdio”: 0 que significava que talvez.con- viesse mexer nesse conceito e incagar se a psicandlise, por sua presenca no tratamento e por sua presenga cultural, nao cria a perspectiva, quan- do nao a possibilidade concreta, de uma melhor comunicagao entre in- consciente e consciente, o ideal de uma elaboracéo gue se encontraria ‘mais perto do inconsciente do que o que Freud chama, por outro lado, sublimagdio, uma comunicacao que, em todo 0 caso, nao esqueceria suas fontes sexuais, mesmo nas chamadas atividades nao-sexuais. E vislum- bro aj um elo evidente com o problema formulado por Freud em seu estudo de 1915 sobre O inconsciente, no capitulo final intitulado “die Agnoszierung des Unbewussten’”, traduzido correntemente como ‘“O reconhecimento do inconsciente”, Mas Agnoszieren € uma palavra mu to rara, de origem latina (agnoscere) € nao germanica, ¢ 0 dicionario co lugar, e é simultaneamente que as primeiras representacées so re- calcadas e se cria, por conseguinte, o lugar onde elas vao inscrever-se, sobretudo aquelas que irdo constituir o mticleo primordial de um id. ,- recalcamento a posteriori (aprés-coup): (© RECALCAMENTO qual € 0 seu estatuto em relacdo a este pro- A POSTERIOR blema: inconsciente funcional ou incons- ciente tépico? O recalcamento a posteriori 0 que Freud chama ainda de “‘recalcamento propriamente dito” (ei- gentliche Verdriingune)..A posteriari por qué? Porque pressupde a exi téncia do inconsciente e do momento fundador do recalcamento origi nario, o que significa que, clinicamente, esté bem mais préximo da ex- perincia, da clinica psicanalitica, e no apenas do que podemos recons- truir, a partir dessa clinica, dos primeiros momentos da vida humana, E 0 recaleamento, digamos, da vida cotidiana, normal ou neurética, sendo esse recalcamento descrito muito cedo e de acordo com um mo- delo que continua impondo-Ihe sua marca: a psicopatologia da histe- ria, mais do que a da neurose obsessiva. Encontrarao miltiplos exem- plos nos Estudos sobre @ histeria: por exemplo, o do esquecimento da cena traumatica, no caso “Katarina”, exemplo muito limitado e impres- sionante, em que 0 que € recalcado é a cena de seducdo (supostamente pelo tio, na verdade pelo pai); um recalcado cuja extragiio Freud opera numa espécie de psicandlise acelerada, extemporanea, Ou entdo éo re- calcamento de todo um complexo afetivo; penso no exemplo do caso “Blisabeth”, onde ¢ todo o contexto do amor pelo cunhado que deve ser exumado; e encontrarfamos ai, particularmente, a ilustracdo preci- @ 68 OINCONSCIENTE E 0 1D sa do fato de que esse complexo, “'recalcado a posteriori’, s6 é recal- cado na medida em que é atraido para o inconsciente por um amor mais fundamental, evidentemente o amor pelo pai. E depois, na auto-andlise, © paradigma, poderiamos dizer, do recalcamento, ¢ 0 sintoma que con- siste no esquecimento do nome”: c do pintor italiano Signorelli. Trata- se de um elemento discreto, fragmentario, um pedaco de discurso, uma “‘representacdo-palavra’’ que cai por terra, cortada de uma s6 vez, tal como se pode descrever uma falha geoldgica que se produza num ter- reno sedimentar. Vejamos agora como Freud, em O inconsciente, teoriza 0 recal- camento a posteriori: “Se considerarmos 0 caso do recalcamento propriamente dito (re- calcamento a posteriori) e a maneica como ele age sobre as representa- Ses pré-conscientes ou mesmo ja conscientes, ento 0 recaleamento 56 pode consistir no seguinte: da representacao [portanto, a represen- tagao pré-consciente] é retirado o investimento pré-consciente, que per- tence ao sistema Pes. A representacio permanece em seguida desinves- tida ou entdo recebe um investimento do Jes, ou conserva mesmo 0 in- vestimento Jes que ja tinha, [A partir do nosso esquema geoldgico, pode-se facilmente figurar os fatores que o recalcamento coloca, assim, em jogo. Para que haja afundamento localizado, é necessario que as ligacGes que existiam entre as camadas se rompam: portanto, desinves- timento, desprendimento. E, segunda razo, houve também algo que atrafa: uma espécie de vazio, de caverna subjacente, correspondente A atragdo do inconsciente, Enfim, o terceiro elemento: é necessario um contra-investimento, ou seja, algo que mantenha o que teria a tendén- 39. S, Freud, Psychoparhotogie de ta vie quotidienne, Paris, Payot, 1971, pp. Sl TESB — A psicopasiogia da vida conidiana; vol. VL.) REFERENCIA AO INCONSCIENTE 69 cia incessante de subir de novo".] Portanto: retirada do investimento pré-consciente, conservacdo do investimento inconsciente ou substitui- G40 do investimento pré-consciente por um investimento inconsciente. Assinalemos, alias [e€ af que est o ponto importante para o nosso pro- blemaj, que fundamentamos essas consideracdes, sem que o fizéssemos, por assim dizer, deliberadamente, na hipétese de que a passagem do sis- tema Jes para um sistema vizinho ndo se efetua mediante uma nova ins- crigfio mas por uma mudanca de estado, uma modificacdo no investi- mento. A hipétese funcional tomou aqui, sem dificuldade, o lugar da hipétese t6pica.”*! Bu estaria plenamente de acordo, exceto sobre um ponto: nao se trata exatamente da “‘passagem do sistema inconsciente para um siste- ‘ma vizinho”” mas, ao invés, da passagem do sistema pré-consciente para © sistema inconsciente. De modo que, nesse traballio, ha uma espécie de sub-repeaio na argumentacdo, pois a tinica coisa que Freud mostra, esobre o que insisto, € que a hipétese funcional é, com efeito, eminen- temente valida quando se trata de descrever a passagem para o incons- ciente, mas talvez ndo o seja para o processo inverso. No recalcamen- to, portanto, hé uma s6 representacio sobre a qual se exercem os pro- cessos econdmicos de desinvestimento, investimento inconsciente € contra-investimento, mas a representacao ¢ a mesma, nao cabe pensar que existam duas representacdes sucessivas, no ocorre um processo de traduedo mas simplesmente um transporte. — 16 de janeiro de 1978 Que interpretagio pode ser dada, eventualmente, a esses proces- 0s econémicos que Freud denomina, no recalcamento a posteriori: de- sinvestimento, pois o que é recalcado vé-se desinvestido pelo sistema onde se encontrava antes, ou seja, pelo sistema pré-consciente- consciente; investimento inconsciente, isto é, 0 fato de que esse elemento se encontra absorvido pelo inconsciente; e, enfim, contra-investimento, “40. A par dos modelos biolipicas, Freud nao deixou de utilizar metaforas geolbat- «xs ou geolégico-arqueologicas; sobre esse Lema, encontrar-se-d num recente mimero de _Enudes philosophiques un artigo de Monique Schneider que comera.adestindar a. questo. Cf. M. Schneider, “Métaphores géologiques et figurations du psychisme”, em Etudes hilosophiques, 1977, n? 1, Sabe-se que encontramos em Freud outros esquentas geol6- Bicos como o das correntes de lavas sucessivas que se recobrem umas is outras. 41. 8. Freud, “Linconscient, op eit, Entre colehetes: comentiios de JL, 70 INCONSCIENTE E 0 1D espécie de cobertura que vem, por sua vez, impedir, como uma laje, 0 retorno do fantasma, do cadaver, co recalcado. Pois bem, desinvesti- ‘mento e contra-investimento sao, como se vé, dois processos do siste- ma pré-consciente-consciente, e foi especial- CONTRAJNVESTIMENTO mente para eles que utilizei a referéncia ou PREGNANCIA ‘modelo do desenho-enigma*: um desenho DE UMA FORMA conta uma historia, digamos, um piqueni- que, ¢ um elemento que € parte integrante dessa histéria, se o olharmos destacando-o do seu contexto, sob um cer- to Angulo, e sobretudo com uma atenco “desinteressada”, “flutuan- te”, percebemos de stibito que, na realidade, encontra-se ai desenhado, dizia eu, ochapéu de Napoledo. Fexdmeno que os gestaltistas estuda- ram, em especial a propésito das imagens ambiguas, e para o qual uti- lizam o termo “pregnancia”. E um termo que se presta facilmente & in- terpretacdo de algo da ordem do econémico, visto que uma pregnan- cia consiste numa certa forca que seexerce em fungao de um certo con- texto, de uma certa relagéo entre “figura” e ‘“fundo"” — uma forga cu- jas variagdes sao identificaveis, mensurdveis, funcdo de diferentes pardimetros que so, eles mesmos, suscetiveis de serem situados com pre- iso. Algo que, no fim das contas, nao se presta to mal a interpreta- G40 de um certo aspecto, pelo menos, da linguagem econémica de Freud. Bis 0 que eu dizia em 1960: “A explicacdo mais satisfatoria que ele dé da independéncia e da coesdo dos dois sistemas é a hipdtes: econdmica. Mas a tinica interpre- tacdo coerente que poderfamos apresentar deveria distinguir totalmente as ‘energias de investimento’ em questo ea energia libidinal, Pademos dar provisoriamente, para esse jogo energético (para a energia de in- ‘yestimento do sistema], um modelo gestaltista. A energia de investimen- to deum sistema dado seria comparivel & pregndncia de uma boa for- ma. Mas, importante assinalar em que nivel se opera a passagem de um sistema para o outro; nao se pode tratar da passagem global de uma ‘mesma estrutura de um modo de crganizagdo para um outro, passa- gem compardvel & oscilagdo que se registra na percepedo de uma ima- gem equivoca. O que passa de uma Gestalt para uma outra é sempre um elemento isolado, equivoco, suscetivel de ser captado pela ‘pregnan- cia’ da Gestalt inconsciente ou pré-consciente: 0 recalcamento, como sublinha Freud, ‘trabalha de modo inteiramente individual, cada pro- duto isolado do recalcado pode te: seu destino particular'?#2 ‘© autor refere-se aqui a um modelo utlizado no texto de 1960. Ver p. 232 deste volume. (N.R.) 42, 1, LaplancheeS, Leclaire, “L'inconscient, une étude psychanalytique”, 9p. cl Entre colchetes: comentarios de J. L. REFERENCIA AO INCONSCIENTE 1 Foi nesse ponto que retomei, pois, esse modelo do desenho-enigma. ‘O que eu gostaria de dizer é que esse modelo talvez nao seja tio ruim para explicar, pelo menos — e ai eu tomaria uma certa distancia em re- ago & minha antiga sugestéo —, o que pode ocorrer, precisamente, a0 nivel do ego ou, se se preferir, do sistema pré-consciente-consciente, Esobretudo o fenémeno do contra-investimento que pode ser descrito como essa capacidade de reconstituir um certo tecido coeso, mascarando 0 vazio deixado por aquilo que foi recalcado. Eis o que Freud nos diz em O inconsciente: ‘Temos, pois, necessidade, neste caso, de um outro processo que, ‘no primeiro caso [ou seja, 0 do recalcamento a posteriori], mantém o recalcamento ¢, no segundo [o do recalcamento originério}, tem por mis- sao constitui-lo e fazé-lo durar; s6 poderemos encontra-lo se admitir- mos a existéncia de um contra-investimento, mediante o qual o siste- ma Pes se protege contra a pressao da representag&o inconsciente. Ve- Temos, em exemplos clinicos, como se manifesta um tal contra-investi- mento que tem lugar no sistema Pes. [E mais adiante, eis uma hipotese complementar, que confirma, do ponto de vista econémico, o paren- tesco entre as energias utilizadas no contra-investimento e no desinves- timento, dois processos que pertencem ambos ao sistema pré-conscien- te. Pois se o contra-investimento faz aparecer, no sistema pré-consciente, formagées reativas, coerentes, bem estruturadas —~ falei hd pouco de uma espécie de laje, de uma chapa de concreto, que tapa o caminho de Tetorno da representacdo recalcada — convira perguntar de onde pro- vém a energia assim utilizada:] E muito possivel que seja o investimen- to retirado da representacio [portanto, a energia economizada pelo de- sinvestimento] que é utilizado para o contra-investimento."® Os exemplos clinicos, anunciados ha instantes, serio desenvolvi- dos em O inconsciente e retomados num outro estudo da Metapsicolo- gia, intitulado ‘*O recalcamento”. Sao descricdes da fobia ou histeria de anguistia, da histeria de conversao e, igualmente, da neurose obses- siva. Posso apenas remeté-los a esses textos, em toda a sua compl dade, particularmente Aqueles sobre a histeria de anguistia, que retomam ‘caso do pequeno Hans, teorizando-o, Na fobia de animais — sim- plesmente para situar o contra-investimento — lembremos que existe um primeiro recalcado que é uma mogao pulsionaide amor, edipiana, com, evidentemente, as representag6es a ela ligadas. E, por outro la- do, quando se analisa suficientemente a fundo essa histeria do peque- 43.5. Freud, “Linconstient”, op cit, pp:88-89, Entre colehetes: comentiros de J. L. 44. Cf, Problématiques 1. 1* parte. (Ed. bras. Problemdticas J; op. elt) 72 0 INCONSCIENTE E 0 1D no Hans, percebe-se que o essencial dessa mocao de amor é a que tem por objeto o pai, ou seja, a morao homossexual. Digamos: ‘no essen- cial”, pois a caracteristica do sintoma consiste em poder condensar va~ rias mogdes que ele substitui, Para simplificar, digamos com Freud que ‘uma mog&o se encontra recalcada com os seus representantes e, em seu lugar — é nesse ponto que insisto —, apés um primeiro tempo de an- giistia pure ¢ simples (no qual Freud concentra seus esclarecimentos, ligados A sua teoria da anguistia, segundo a qual esta corresponde & bido liberada das representagdes conexas, uma espécie de libido em es- tado puro, por isso mesmo destrutiva), correlativo de um primeiro re- calcamento, aparece rapidamente, 30 invés de uma angiistia ndo-sim- bolizada, um animal angustiante (para o pequeno Hans, 0 cavalo an- gustiante), Pois bem, esse cavalo angustiante permite duas coisas: por um lado, uma racionalizacao das condiedes de aparecimento da angtis- tia, isto é, que a anguistia que surgin sem causa, digamos, aparentemente sem causa, aparece aqui numa espécie de série causal mais ou menos racional, um ‘“porque’” — é porque vejo ou temo encontrar esse cava- Jo que estou angustiado — o que é, evidentemente, uma ‘‘falsa cone- xaio”, mas permite, nao obstante, gar a angistia, impedi-la de se re- produzir de maneira absolutamente andrquica. B, por outro lado, uma estruturacdo do espaco, pois 0 cavalo ndo é encontrado em qualquer lugar, mas na rua, em certos locais especificos da cidade de Viena; 0 espaco encontra-se orientado, polacizado, estruturado, em fungi das possibilidades de encontro com 0 cavalo angustiante. Como se vé, ra- cionalizacdo e, sobretudo, estruturacdo do espaco evocam, sem dit da, o estabelecimento de uma configuracio, de uma Gestalt, visando evitar toda e qualquer surpresa; uma figura que, alids, iré complicar- se & medida que essa Gestalt — a sua laje de concreto, afinal, ndo €t30 s6lida quanto parecia — a cada instante, em certos pontos, s¢ vé amea- cada de desmoronamento, de infiltracdo pela mogao inicial e por seu produto de degradacdo, a angiistia. O que leva o pequeno Hans a esta- belecer postos avancados cada vez mais distantes, a fim de se proteger cada vez mais extensamente contra aameaca, mesmo longingua, de apa- recimento do animal. Falando em termos de contra-investimento, exis- tem nele dois aspectos: no comeso, diz-nos Freud, ¢ o substituto sim- bélico — ou seja, 0 cavalo angustiante que é contra-investido contra © aparecimento da representacdo arigindria; & medida que o préprio substituto deixa filtrar em demasia mocao originaria, é 0 préprio am- biente que acaba contra-investido, a fim de impedir o encontro com 0 animal. Vejam que esses fendmenos, enquanto caracteristicos do siste- ma (epito, sistema) pré-consciente, ou ainda do ego, que esses meca- INSCIENTE 3 nismos egdicos, defensivos, podem com razio beneficiar-se de uma in- terpretagdio em termos de carga, de distribui¢do de carga, de pregndn- cia. Isto no esté em contradic com 0 que sabemos do ego, com o que é, desde 0 comeco, o pensamento de Freud sobre o assunto, e que encontra sua confirmagao, cada vez mais, na experiéncia analitica, desde 0 Entwurf [0 Projeto}, passando pelo estudo sobre o narcisismo, até 05 tiltimos trabalhos: 0 préprio ego concebido como uma espécie de Gestalt, dotado de um certo nivel de investimento; um nivel de investi- ‘mento que tende, por um lado, a manter-se — a homeostase —e que, por outro, ¢ uma homeostase que se pode qualificar de expansiva: ou seja, que essa Gestalt é suscetivel de envolver tudo 0 que aparece nas proximidades e tazé-lo entrar em sua prépria configuracdo. problema do investimento inconsciente é uma outra questo, € direi que a assimilagao auum fendmeno de Gestalt me parece muito mais sujeita & interrogagao-e a discussao. Os dados dessa questo, tal como 0s explicitei em 1960, esquematizam-se assim: em iltima andlise, Fala se da forga do inconsciente, de seu investimento, de sua energia, em dois sentidos que se apresentam como opostos: por um Jado, nesse exem- plo da fobia, vemos que o inconsciente e as representagdes inconscien- tes tendem incessantemente a irromper, a querer reaparecer, a produ- zir no pré-consciente novas “‘pressdes”, numerosos “rebentos”” E, por autro lado, diz-nos Freud, é também algo que avrai: toda e qualquer | >xperiéncia que entre, de certa forma, em ressondncia, em analogia, em mnexio, seja qual for essa conexdo, com um antigo esquema, ele pré- ario recalcado — por exemplo, com uma cena primordial — tudo oque, | na experiéncia cotidiana, vem “cutucar” uma cena primitiva, é por sua vez, aspirado pelo torvelinho do recalcamento secundario. Pois bem, essa oposicdo entre um inconsciente que empurra ¢ um inconsciente que puxa, um inconsciente que resiste, ao mesmo tempo que atrai, para 2 / tomada de consciéncia, mas também que tende, incessantemente, a pro- vocar fendmeno no sistema pré-consciente, essa oposicao, dizia eu, deixo-a de lado, de momento. Talvez ela nao seja tao irredutivel quan-| to possa parecer, apesar da oposigaio “‘Iégica”* que nela se evidencia? | ‘Talvez, sobretudo, nfo seja inteiramente estranha & oposi¢ao fundamen- | tal entre pulsio de vida e pulsao de morte? } Retomo o fio de minhas consideragdes: 0 que significa a oposi¢ao hipétese tépica/hipétese funcional? E creio, com Freud, discernir o se- guinte: na descri¢ao do recalcamento, assim como no meu modelo do desenho-enigma ou da imagem equivoca, é un sé € mesmo elemento que ora é esclarecido pelo contexto pré-consciente do roteiro, da Ges- talt, ora deixa de sé-lo e cai, nesse momento, nas “‘profundezas”” doin 14 O INCONSCIENTE E 0 ID consciente. O recalcamento, esse processo de cima para baixo, nao im- plica, portanto, uma nova inscrieao: € uma expulsdo de uma represen- taco para fora de seu contexte sua incor RECONHECIMENTO poracdo a um outro contexto. Mas inteira- DOICSE A mente diferente & agora o processo no ou- HIPOTESE tro sentido, na direeao da “tomada de cons- TOPICA ciéncia” E percebe-se, no estudo sobre O in- consciente, ser nesse momento preciso que a hipétese “t6pica’’, a da dupla inszrigdo, se apresentara como t&o se- dutore “«A hipétese tépica estd ligada a hipétese de uma separactio topi- ca entre os sistemas Jes e Cs assim como a possibilidade, para uma re~ presentacao, de estar presente ao mesmo tempo em dois lugares do apa~ relho psiquico ¢, inchusive, regularmente, quando nao esté inibida pela censura, de avancar de um local a outro, eventualmente sem perder sua primeira locatizac&o, sua primeira inscrigdo. Isso pode parecer estra- nho, mas se apéia em impressOes provenientes da pratica psicanaliti- ca. [Com eftito, ¢ estranho, ilgico, contrario & defini¢o ‘nominalis- ta’ do in-consciente, que este possa avancar até a consciéncia sem por isso abandonar seu lugar e suas caracteristicas fundamentais, e sem tam- pouco coincidir com a inscric&o pré-consciente que Ihe corresponde. Aqui, a hipétese t6pica liberta-se definitivamente do pressuposto se- gundo o qual a diferenca dos dois sistemas esta essencialmente ligada a uma questao de consciéncia (na acepcao consciencialista do termo).. E Freud apéia-se essencialmente nz experiéncia da pratica psicanalit ca:] Quando comunicamos a um paciente uma representacao que ele, num dado momento, recalcou, e que nés adivinhamos, essa revelagao no principio no modifica em nadao seu estado psiquico [eu acrescen- tarei: mesmo que ele proprio a tenha encontrado — endo apenas se Ihe foi comunicada — s¢ ele a encontrou no plano de uma certa constru- cdo — veremos daqui a pouco coma esse termo de construco se ajus- taaqui—se ele proprio recriou, nosistema consciente, através da an lise, uma certa representacdo, pois bem, isso ‘ndlo modifica em nada 0 seu estado psiquico’]. E, sobretude, ndo € porque a representacdo an- tes inconsciente se tornow agora consciente que 0 recalcamento esté sus penso e seus efeitos suprimidos, como, talvez, se poderia esperar. Pelo contrario, de inicio apenas obteremos uma nova recusa da representa- Gao recalcada. Mas, agora, o paciente tem efetivamente a mesma repre- sentacdo sob uma dupla forma em locais diferentes de seu aparelho psiquico; primeito, dispde da lembranga consciente do traco actistico da representagio que lhe foi comusicada e, em segundo lugar, temos ‘REFERENCIA AO INCONSCIENTE 6 acerteza de que traz consigo, ao lado dessa lembranga, mas sob a anti- ga forma, a lembranca inconsciente do que foi vivido, Na verdade, @ supressdo do recalcamento nao intervém antes que a representaclo cons- ciente, uma vez superadas as resistencias, tenha entrado em ligagho com 08 tragos mnémicos inconscientes."45 E, evidentemente, Freud formula de imediato a pergunta: 0 que éque nos prova, ento, que se trata, de fato, da mesma representacto, inscrita duas vezes? Nao sera isso apenas, de nossa parte, um assimi- Jago superficial? Nao obstante, o que nos permite pensar que essas duas representacOes es*¥o, apesar de tudo, préximas uma da outra, € seem elas suscetiveis, através do trabalho analitico, de entrar em conexto, de ser, como diz Freud, levadas a coabitar. Temos essa representacio in- consciente e essa representago consciente, adquiridas através ¢8 ané- lise; resta o problema de saber, pois, como vamos leva-las a se tecerem ‘uma a outra, tnico processo pelo qual é possivel que o inconsciente se- ja realmente reencontrado, reconhecido e mesmo integrado. E, em 0P0- sigdo a essa perlaboracio, isso de que temos alguma idéia, diz 0 come- 60 deste texto, uma eventualidade que mun ca deixa de estar presente, é que uma lem- branca inconsciente possa, de certo modo, irromper na consciéncia, ‘‘avangar até @ consciéncia’’ — pensemos na alucinagdo, no préprio sonho— sem que esteja, pelo contrétio, integrada no sistema pré-consciente. ara essa interrogaeo — certamente fundamental — sob7® 8 Pos sibilidade am impossthilidade de fazer reentrar, retornar, mediante 0 Pro cesso analitico, o inconsciente ao sistema pré-consciente, encontrare- ‘mos mil respostas, mil referéncias, na indagacao de Freud. Indicarel ape- nas trés textos: em primeiro lugar, o final de O inconseiente, onde € for- mulada uma espécie de solucdo para a nossa oposigao entze hipotese t6pica e hipdtese funcional, ¢ isso gracas & distingao sem divida capl- tal, para os nossos propésitos, entre “‘representacao de palavra” ¢ "Te presentacdo de coisa”. Representacdo de palavra é Wortvorstellung © representacio de coisa, Sachvorstellung. Mas, embora tenhamos adaui- rido 0 habito de falar de representacdo de coisa e de representasao de palavra, cumpre lembrar que esse de ndo significa necessariamente objeto do verbo, ou seja, 0 que é representado, sendo igualmente um de indicativo da matéria, da qualidade, do texto da representacio. O “

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