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ANAIS DE

EVENTO
ISBN online: 978-85-8359-051-4

1
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA “JÚLIO DE MESQUITA
FILHO”
FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS DE ARARAQUARA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

2017

2
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da
UNESP/FCLAr

Profª. Drª. Carla Gandini Giani Martelli

Coordenação Geral Docente da XVI Semana de Pós-Graduação em Ciências


Sociais da UNESP/FCLAr

Prof. Dr. Milton Lahuerta

Coordenadores dos Grupos de Trabalho

Ana Clara Citelli, Ana Paula Santos Horta, Alexandre Aparecido dos Santos,
Carlos Eduardo Tauil, Danusa de Oliveira Jeremin, Débora de Souza Simões,
Giovanna Ísis Castro Alves de Lima, Guilherme Bemerguy Chêne Neto, Larissa
Rizzatti Gomes, Luciane Alcântara, Luiz Ricardo de Souza Prado, Matheus
Henrique de Souza Santos, Meire Adriana da Silva, Natália Carvalho de Oliveira,
Richard Douglas Coelho Leão, Rosângela de Sousa Veras, Thiago Pereira
Mazucato, Vladimir Bertapeli

Revisão e Organização dos Anais da XVI Semana de Pós-Graduação em Ciências


Sociais da UNESP/FCLAr

Luiz Ricardo de Souza Prado e Richard Douglas Coelho Leão

Semana da Pós-Graduação em Ciências Sociais (16. : 2017 : Araraquara, SP)

Democracia : Anais da XVI Semana de Pós-Graduação em Ciências Sociais / XVI


Semana da Pós-Graduação em Ciências Sociais; Araraquara, 2017 (Brasil). – Documento
eletrônico. - Araraquara : FCL-UNESP, 2017. – Modo de acesso: <
http://fclar.unesp.br/#!/pos-graduacao/stricto-sensu/sociologia/eventos/semana-de-pos-
graduacao-em-ciencias-sociais/>.

ISBN online: 978-85-8359-051-4.

1. Pós-Graduação. 2. Ciências sociais. 3. Democracia. I. Título.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da FCLAr – UNESP.

3
GT 01 – QUESTÕES URBANAS: ETNOGRAFIA, POLÍTICA,
GEOGRAFIA E OS CONFLITOS URBANOS

“NÓS SOMOS AUTORIDADES! VOCÊS TEM QUE RESPEITAR!”: UMA


ANÁLISE SOBRE O MODELO DE INTERVENÇÃO DA GUARDA CIVIL
MUNICIPAL DE NITERÓI
Elisângela Oliveira dos SANTOS ---------------------------------------------------------------- 23

INSEGURANÇA SOCIAL E A BUSCA PELA COMUNIDADE


Ana Laura Cunha BARCI -------------------------------------------------------------------------- 43

VÍTIMAS E VÍTIMAS: A ELEIÇÃO E A EXCLUSÃO DO SER VÍTIMA A


PARTIR DA DIFERENCIAÇÃO DOS SUJEITOS
Josiane Silva BRITO e Francine RIBEIRO ----------------------------------------------- 58

O “EMPRESARIAMENTO DE SI” NAS PERIFERIAS URBANAS: O PAPEL


DOS DISPOSITIVOS DE CONTROLE E DE MERCADO NA PRODUÇÃO
DA FAVELA TURÍSTICA/RJ
Helton Luiz Gonçalves DAMAS ---------------------------------------------------------------- 71

FORÇAS ATIVAS E REATIVAS: A ESTÉTICA DA RESISTÊNCIA


RADICAL NAS RUAS E NAS LUTAS COTIDIANAS
Francine RIBEIRO ------------------------------------------------------------------------------------- 90

A ESMOLA NA ECONOMIA DA RUA


Natália MAXIMO E MELO ---------------------------------------------------------------------- 107

PROJETO NOVA LUZ E A REDE DE INDIGNAÇÃO NO CENTRO DA


CAPITAL PAULISTA
Ana Carolina Lirani MAZARINI --------------------------------------------------------------- 127

PERCEPÇÃO E USO DOS RECURSOS AMBIENTAIS NO BAIRRO


ZAVAGLIA EM SÃO CARLOS-SP
R. CRUZ, C. A. A. FRANCO, A. B. TOLEDO e J. C. GONÇALVES --- 147

AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE HABITAÇÃO POPULAR E O PROCESSO


DE SOCIALIZAÇÃO DE SUAS COMUNIDADES: “O CASO DO PAC RIO
ANIL”
Maysa Mayara Costa de OLIVEIRA ---------------------------------------------------------- 168

4
DOS GÓTICOS “PRODUTORES CULTURAIS” AOS CITADINOS
“GÓTICOS”: REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS SOBRE A
“CULTURA” ENTRE AGRUPAMENTOS DE “JOVENS” URBANOS
Douglas DELGADO ---------------------------------------------------------------------------------- 185

OS DE CIMA E OS DE BAIXO: PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO DOS


MORADORES DE UM BAIRRO DO PROGRAMA MINHA CASA MINHA
VIDA, SÃO CARLOS/SP
Thalles Vichiato BREDA --------------------------------------------------------------------------- 202

ESTADO E RESISTÊNCIAS COTIDIANAS: ZONAS DE SIGNIFICAÇÃO


MOVIMENTADAS POR BENEFICIÁRIAS DO PROGRAMA BOLSA
FAMÍLIA
Isabela Vianna PINHO ------------------------------------------------------------------------------ 220

O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E A QUESTÃO DO SILENCIAMENTO


DA MULHER NA PERIFERIA
Eduardo Sales de LIMA ----------------------------------------------------------------------------- 242

A GESTÃO LUIZA ERUNDINA (1989-1992): PARTICIPAÇÃO POPULAR


NAS POLÍTICAS DE TRANSPORTE
Milena de Lima e SILVA --------------------------------------------------------------------------- 257

GT 02 – CULTURA, IDENTIDADE E MEMÓRIA

CORPO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE: SOLIDEZ E VERTIGEM


Yasmim Nóbrega de ALENCAR ---------------------------------------------------------------- 282

ONDE ETNOGRAFIA E BIOGRAFIA SE ENCONTRAM: REFLEXÕES


SOBRE A AUTORIA DE PESQUISAS EM ARQUIVOS PESSOAIS
Marina Corrêa dos SANTOS ---------------------------------------------------------------------- 298

MULHERES NEGRAS EM MARCHA: CONTINUIDADES E


DESCONTINUIDADES NOS MOVIMENTOS DE MULHERES NEGRAS
NA CIDADE DE SÃO PAULO
Ayni Estevão de ARAUJO--------------------------------------------------------------------------- 313

“ANGOLEIROS DO SERTÃO”: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A


SALVAGUARDA DA CAPOEIRA PELO IPHAN
Natália Rizzatti FERREIRA ------------------------------------------------------------------------ 327

5
OS DISCURSOS SOBRE MODA E ESTILO E A ELABORAÇÃO DA
IDENTIDADE CONTEMPORÂNEA: HIPÓTESES, OBJETIVOS E
ESCOLHAS METODOLÓGICAS
Beatriz Sumaya Malavasi HADDAD --------------------------------------------------------- 343

EPISTEMOLOGIAS, ALTERIDADE E RELAÇÕES DE PODER:


CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS E ABORDAGENS DAS
DINÂMICAS SOCIAIS PARA ALÉM DO ETNOCENTRISMO E DO
PENSAMENTO COLONIZADO
Sérgio Luiz de SOUZA, Daniele Severo da SILVA, Taciso Pereira SILVA Jr e
Cássio Alves LUS ---------------------------------------------------------------------------------------- 356

TRAJETÓRIA, ARQUIVO E IMAGEM.A EXPERIÊNCIA NO E COM O


ARQUIVO MIYASAKA
Rafael Franklin Almeida BEZZON ------------------------------------------------------------ 372

RITOS E HIERARQUIAS: UMA FOTOETNOGRAFIA DO MOVIMENTO


ESCOTEIRO
Marianna Lahr FAUSTINO ---------------------------------------------------------------------- 387

NOTAS SOBRE ESCRAVIDÃO NO BOLSÃO SULMATROGROSSENSE


(1838-1888)
Alexandre de CASTRO e Douglas Willians dos SANTOS ----------------------- 398

IMPRENSA, HISTÓRIA E MEMÓRIA DA DITADURA NO BRASIL


Gabriel Papa Ribeiro ESTEVES ---------------------------------------------------------------- 411

O ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 1980: A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO


SUCESSO
Tiago Barros de Oliveira ROSA ----------------------------------------------------------------- 431

A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL NA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA:


ANÁLISE DO ÁLBUM “SAUDADE DO BRASIL” DE ELIS REGINA
Daniel da Silva PIRES e Sulivan Charles BARROS ----------------------------------- 446

OS SENTIMENTOS NO CAPITALISMO DA ERA GLOBAL: UMA


ANÁLISE SOBRE A PSICOLOGIA E A LITERATURA DE AUTOAJUDA
EMOTIVA
Maraisa GARDINALI -------------------------------------------------------------------------------- 457

MEMÓRIA E ORALIDADE: TRANSMISSÃO DE SABERES EM DUAS


MANIFESTAÇÕES POPULARES BRASILEIRAS
Natália Carvalho de OLIVEIRA e Ana Paula HORTA ---------------------------- 470

6
A CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA SOCIAL DOS CLUBES SOCIAIS DE
RIO CLARO NOS ANOS 1900-1980
Pedro de Castro PICELLI -------------------------------------------------------------------------- 485

ANTIGO REINO DO KÔNGO: ORIGENS DA MEMÓRIA HISTÓRICA


DO CONGADO
Tatiane Pereira de SOUZA e Dagoberto José FONSECA ------------------------ 503

A PRESENÇA NEGRA NO ESPAÇO TEATRAL: UMA ANÁLISE SOBRE


ESTEREÓTIPOS, VISIBILIDADE E INVISIBILIDADE NEGRA NO
TEATRO BRASILEIRO
Danusa de Oliveira JEREMIN ------------------------------------------------------------------- 523

DESENHANDO IDAS E VINDAS: MUDANÇAS NOS FLUXOS


MIGRATÓRIOS NORDESTINOS PARA O INTERIOR PAULISTA E
RESSIGNIFICAÇÕES DE “ORIGEM RURAL”
Iara Lalesca Calazans de ALMEIDA ---------------------------------------------------------- 543

GT 03 – POVOS INDÍGENAS, QUILOMBOLAS E


COMUNIDADES TRADICIONAIS: REFLEXÕES SOBRE O
TRABALHO DE CAMPO EM TEMPOS DE SUPRESSÃO DE
DIREITOS CONSTITUCIONAIS

ESPÍRITO SANTO DA FORTALEZA DE PORCINOS:


REAGRUPAMENTO E AUTOCONSTITUIÇÃO EM UM PROCESSO DE
TITULAÇÃO DE TERRA QUILOMBOLA
Sheiva SORENSEN e Cilea Santos LIMA -------------------------------------------------- 558

INTELECTUALIDADE INDÍGENA E A EMERGÊNCIA DE UMA


CIÊNCIA NATIVA
Priscila da Silva NASCIMENTO ---------------------------------------------------------------- 571

AS MULHERES CORAJOSAS DA ALDEIA TAUNAY- IPEGUE: XAMANISMO,


CRISTIANISMO E ATUALIZAÇÃO COSMOLÓGICA
Noêmia dos Santos Pereira MOURA, Rosalvo Ivarra ORTIZ e Ane Caroline dos
SANTOS ----------------------------------------------------------------------------------------------------- 584

POVOS INDÍGENAS – DINÂMICAS CULTURAIS E SISTEMAS DE


MUNDO
Meire Adriana da SILVA ---------------------------------------------------------------------------- 595

7
POLÍTICA INDÍGENA DA ÁGUA: A EXPERIÊNCIA DOS TUXÁ DE
RODELAS
Gustavo Moreira RAMOS --------------------------------------------------------------------------- 606

CONTEXTOS DE RETOMADA E AUTODEMARCAÇÃO DA TERRA


INDÍGENA TEKOÁ MIRIM: O NHANDEREKÓ E A COSMOPOLÍTICA
MBYÁ GUARANI ELABORADOS COMO POSSIBILIDADES DE LUTA
CONTRAHEGEMÔNICA AO ESBULHO DOS DIREITOS INDÍGENAS
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Fábio do Espírito Santo MARTINS ----------------------------------------------------------- 617

O POVO KAINGANG NA CIDADE DE MARINGÁ: FRONTEIRA ENTRE


COMÉRCIO E ARTE NO CONTEXTO URBANO
Tadeu dos SANTOS ----------------------------------------------------------------------------------- 634

NAS FRONTEIRAS DA TERRA SEM MAL: AÇÃO POLÍTICA


AMERÍNDIA E ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AOS ÍNDIOS
NO LITORAL PAULISTA (1923-1967)
Vladimir BERTAPELI -------------------------------------------------------------------------------- 653

GT 04 – PENSAMENTO POLÍTICO E SOCIAL, TEORIA


POLÍTICA, CULTURA E DEMOCRACIA

A QUESTÃO AGRÁRIA NA PERIFERIA: SOBRE A INTERPRETAÇÃO


DUALISTA DE IGNÁCIO RANGEL
Amanda Pavanello Alves dos SANTOS ----------------------------------------------------- 673

DUAS VERTENTES DO MARXISMO NA FORMAÇÃO NACIONAL


BRASILEIRA
Carlos Eduardo TAUIL e Rafael Marchesan TAUIL ------------------------------- 701

SÉRGIO MILLIET E A REVISÃO DO MODERNISMO: UM RUMO EM


DIREÇÃO ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS
Lucas Paolillo BARBOZA -------------------------------------------------------------------------- 719

O PENSAMENTO “SEXUAL” BRASILEIRO


Fernando José FILHO -------------------------------------------------------------------------------- 733

CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE HANNAH


ARENDT E O PENSAR DO NEGRO NO BRASIL
Oswaldo José da SILVA ------------------------------------------------------------------------------ 747

8
CENTRO E PERIFERIA COMO CATEGORIAS DE ANÁLISE:
POSSIBILIDADES DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO
Estêvão Barros CHAVES ---------------------------------------------------------------------------- 765

“JUNHO FASCISTA” E “JUNHO AUTONOMISTA”: INTERPRETAÇÕES


SOBRE O SALDO E O SENTIDO DAS MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE
2013
Mateus Hajime Fiori SAWAMURA ----------------------------------------------------------- 777

PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA: LIBERALISMO, INTEGRALISMO E


COMUNISMO, SEGUNDO A VISÃO DE UMA DAS VERTENTES DO
CONSERVADORISMO CATÓLICO NA ERA VARGAS (1930-1945)
Moacir Pereira ALENCAR JÚNIOR---------------------------------------------------------- 794

HIPERDEMOCRACIA: UM DEBATE CONCEITUAL EM TORNO DO


PENSAMENTO ORTEGUIANO
Antonio Charles Santiago ALMEIDA --------------------------------------------------------- 814

DO INTEGRALISMO AO DESENVOLVIMENTISMO REFORMISTA:


PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES À TRAJETÓRIA POLÍTICA E
INTELECTUAL DE SAN TIAGO DANTAS
Renato Ferreira RIBEIRO -------------------------------------------------------------------------- 834

GT 05 – PENSAMENTO POLÍTICO E SOCIAL, TEORIA


POLÍTICA, CULTURA E DEMOCRACIA

MALDADE DEMOCRÁTICA, A CORROSÃO JUDIA: POR UM ESTADO


FORTE, O BRASIL DOS ANOS 1930 PENSADO POR GUSTAVO
BARROSO
Cícero João da COSTA FILHO ----------------------------------------------------------------- 850

A MOVIMENTAÇÃO POLÍTICO-PARTIDÁRIA NA ELEIÇÃO PARA O


EXECUTIVO NACIONAL EM 1960
Thiago FIDELIS------------------------------------------------------------------------------------------ 868

ORGANIZAÇÃO PARTIDÁRIA NOS MUNICÍPIOS PAULISTAS (1999-


2015)
Jean Lucas Macedo FERNANDES ------------------------------------------------------------- 884

A PRÁTICA ESCAPA À REGRA: UM ESTUDO SOBRE MEDIAÇÕES,


TRAJETÓRIAS E POLÍTICAS NO COTIDIANO

9
Alexandre Aparecido dos SANTOS ---------------------------------------------------------- 910

RESULTADOS E EFEITOS DA ATUAÇÃO DA IMPRENSA BURGUESA


SOBRE OS PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL
Levy LISBOA NETO -------------------------------------------------------------------------------- 928

OS VOTOS INVÁLIDOS SEGUNDO AS CARACTERÍSTICAS


SOCIODEMOGRÁFICAS E ECONÔMICAS DOS MUNICÍPIOS
BRASILEIROS
Natália Seabra dos SANTOS, Carlos Augusto da Silva SOUZA e Acrísio Pereira
VICTORINO --------------------------------------------------------------------------------------------- 946

GT 06 – ESTADO, SOCIEDADE, POLÍTICAS PÚBLICAS E


INSTITUIÇÕES POLÍTICAS

O FIM DO CONSELHO CURADOR: UMA ANÁLISE SOBRE A


EXTINÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL E AS
MUDANÇAS NA ESTRUTURA DA EBC
Juliana Marques de Carvalho CAMARGO ------------------------------------------------ 962

AMPLIAÇÃO DO DEMOS NA PÓLIS: A AÇÃO DO ESTADO NOS


CONSELHOS MUNICIPAIS DE SAÚDE DE GOIÂNIA E DE APARECIDA
DE GOIÂNIA
Patrícia Gomes de MACEDO --------------------------------------------------------------------- 976

OS CONSELHOS GESTORES NO BRASIL ATUAL: CONSIDERAÇÕES


SOBRE O SEU FUNCIONAMENTO
Henrique Mendes dos SANTOS --------------------------------------------------------------- 997

AS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO ESPAÇOS


HÍBRIDOS DE REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO EM GOVERNOS
RESPONSIVOS
Everton Henrique FARIA --------------------------------------------------------------------------- 1012

A SOCIEDADE CIVIL NO CONSELHO MUNICIPAL DE SAÚDE DE


RIBEIRÃO PRETO/SP: LIMITES E POTENCIALIDADES
Natanael GOMIDE JUNIOR --------------------------------------------------------------------- 1033

PROGRAMA “MINHA CASA MINHA VIDA”: ESTUDO DE CASO NA


CIDADE DE SARANDI (PR)
Naiara Sandi de Almeida ALCANTARA e Gabriela Catarina CANAL ---- 1051

10
ENTRE A RACIONALIDADE PÚBLICA E PRIVADA: O CARÁTER
HIBRIDO DA GESTÃO SOCIAL NA ONG CÉU AZUL
Rafaela Sabatine VICTÓRIO e Thalles Vichiato BREDA ------------------------ 1066

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OSs) NA EDUCAÇÃO: TÁTICAS DE


AVANÇO DA ONDA NEOLIBERAL NO GOVERNO DO ESTADO DE
GOIÁS?
Rodrigo de Melo MACHADO ------------------------------------------------------------------ 1081

AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA JUVENTUDE: O CASO DO PROJOVEM


CAMPO SABERES DA TERRA
Elaine A. de Souza APOLONIO e Maria T. Miceli KERBAUY --------------- 1095

PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E REDISTRIBUIÇÃO:


RECONHECIMENTO E RECIPROCIDADE
Guilherme de Matos FLORIANO -------------------------------------------------------------- 1113

AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA PARA A


CONCRETIZAÇÃO DA DEMOCRACIA
Mariana Lima MENEGAZ e Alexandre Walmott BORGES --------------------- 1135

FORMAÇÃO DE AGENDA CONSERVADORA NO CONGRESSO


NACIONAL: O CASO DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL (PEC
171/1993)
Lillian Lages LINO -------------------------------------------------------------------------------------- 1150

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NA FRANÇA E


NOS ESTADOS UNIDOS: PECULIARIDADES HISTÓRICAS,
RESPOSTAS INSTITUCIONAIS
Daniel STULANO -------------------------------------------------------------------------------------- 1172

DE TRANSITÓRIO A PROVISÓRIO: A PERENIDADE DO ATO DAS


DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS
Eduardo Araujo COUTO --------------------------------------------------------------------------- 1190

REFORMA DA PREVIDÊNCIA NO BRASIL: O PAPEL DAS COALIZÕES


DISTRIBUTIVAS E A PERCEPÇÃO DO SETOR FINANCEIRO
Bruno Salgado SILVA e Arnaldo Provasi LANZARA ------------------------------- 1212

AS COMISSÕES ESTADUAIS DA VERDADE NO BRASIL


Bruna Ferrari PEREIRA ----------------------------------------------------------------------------- 1228

11
VIA JUDICIAL VERSUS BUROCRACIA INSTITUCIONAL: ANÁLISE DA
PERÍCIA MÉDICA DO INSS, NOS CASOS DE AUXÍLIO DOENÇA
Arnaldo J. AGUIAR JR ------------------------------------------------------------------------------ 1242

DESENVOLVIMENTO LOCAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: O MODELO


DOS MÚLTIPLOS FLUXOS
Tayla BARBOSA ---------------------------------------------------------------------------------------- 1252

ENTRE AS TÉCNICAS DE AVALIAÇÃO E O ORÇAMENTO PÚBLICO


DA SAÚDE MENTAL: ETNOGRAFIA DA POLÍTICA DE
FINANCIAMENTO EM CAMPINAS
Lecy SARTORI ------------------------------------------------------------------------------------------- 1269

ATUAÇÃO DO PODER EXECUTIVO PAULISTA NAS POLÍTICAS DE


SEGURANÇA PÚBLICA PARA CONTENÇÃO DA LETALIDADE
POLICIAL ENTRE 1996 – 2015
Fabiane Penedo de ANDRADE ----------------------------------------------------------------- 1284

PLANO PLURIANUAL PARTICIPATIVO: PLANEJAMENTO POLÍTICO


CIDADÃO?
Queli Cristina Jonas GARCIA--------------------------------------------------------------------- 1304

VIGILÂNCIA COMUNITÁRIA EM LONDRINA: UM ESTUDO SOBRE O


PROJETO VIZINHO SOLIDÁRIO E SEUS IMPACTOS NA
CRIMINALIDADE E SENSAÇÃO DE SEGURANÇA
Fabricio Silva LIMA ------------------------------------------------------------------------------------ 1318

GT 07 – DIREITOS HUMANOS: CIDADANIA E IDENTIDADES

DIREITOS HUMANOS SOB TENSÃO: COMPARAÇÃO DOS CASOS DE


PENA DE MORTE DA AMÉRICA LATINA E CARIBE E DOS ESTADOS
UNIDOS NO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS
Tuane Fonseca CUSTÓDIO e Marrielle Maia Alves FERREIRA------------- 1332

PODER, SUBJETIVIDADE E PRÁTICAS POLÍTICAS:


REPRESENTAÇÕES DE DOENÇA MENTAL NOS CENTROS DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL EM ARARAQUARA
Luiz Ricardo de Souza PRADO ------------------------------------------------------------------ 1347

A ATUAÇÃO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS


HUMANOS EM FACE DA VIOLAÇÃO DE DIREITOS NOS CÁRCERES
BRASILEIROS: O EXEMPLO DO PRESÍDIO URSO BRANCO

12
Stéfani Pupulin DESINDE e Danilo Garnica SIMINI ------------------------------- 1366

O DIREITO A MIGRAR: A PERCEPÇÃO DA MIGRAÇÃO HAITIANA


PARA O BRASIL ATRAVÉS DA ANÁLISE DE COMENTÁRIOS EM
REPORTAGENS ONLINE
Cinthia Xavier da SILVA ----------------------------------------------------------------------------- 1383

A CRISE DE REFUGIADOS NA EUROPA: PERCEPÇÕES DO


COSMOPOLITISMO E NACIONALISMO
Roberta CAVA e Suellen Manzato Della Coletta CARROLL ------------------- 1403

CIDADANIA LÍQUIDA E OS CORPOS DESOBEDIENTES: SOBRE


VIVÊNCIA TRANS NO BRASIL
Alex KREIBICH ----------------------------------------------------------------------------------------- 1423

A ATUAÇÃO DOS REGIMES INTERNACIONAIS DE DIREITOS


HUMANOS NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS LGBTI
Iago LOURENÇO e Danilo Garnica SIMINI -------------------------------------------- 1437

O PAPEL DO ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA CONSTRUÇÃO DE


POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE DA III CONFERÊNCIA DE
DIREITOS HUMANOS LGBT NO AMAPÁ
Luana Darby Nayrra da Silva BARBOSA e Valdinei Castro de ARAÚJO- 1457

NOTAS SOBRE O MECANISMO DE REVISÃO PERIÓDICA UNIVERSAL


DA ONU E OS INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO DO GOVERNO
FEDERAL SOB A LUZ DAS QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE
Thais Aparecida DIBBERN e Milena Pavan SERAFIM ---------------------------- 1475

OCUPANDO AS RUAS: MULHERES NEGRAS NO GRAFFITI


Bianca Dantas Gomes da SILVA --------------------------------------------------------------- 1491

O IMPACTO DAS PRÁTICAS RACISTAS NA CONSTRUÇÃO DA


IDENTIDADE DO DISCENTE
Maíza da Silva FRANCISCO, Mônica da Silva FRANCISCO, Bianca Cristina
TRINDADE e Luciano Marques da SILVA --------------------------------------------- 1505

A IMAGEM DA MULHER NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO: NOVA


PERSPECTIVA PARA UMA EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL NO LIVRO
DE HISTÓRIA
Mônica da Silva FRANCISCO, Maiza da Silva FRANCISCO, Bianca Cristina
TRINDADE e Luciano Marques da SILVA --------------------------------------------- 1519

13
INFÂNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DAS
CONCEPÇÕES SOCIOJURÍDICAS DE INFÂNCIA NO BRASIL
Monique Roecker LAZARIN --------------------------------------------------------------------- 1533

QUEM MORRE E QUEM MATA: PERFIL E REPRESENTAÇÃO DO


CRIMES DE FEMINICÍDIO
Ana Julieta Parente BALOG ---------------------------------------------------------------------- 1549

DIAGNÓSTICO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO MEIO RURAL:


TIPIFICAÇÃO E REGISTRO DE DENÚNCIAS
Beatriz de Paula AZEVEDO ----------------------------------------------------------------------- 1568

MULHERES, SUJEITO OU OBJETO DE DIREITO? ESTUDO DE CASO


DO MUNICÍPIO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO
Eliane Cristina de Carvalho Mendoza MEZA --------------------------------------------- 1581

FEMINICÍDIO: O GÊNERO DE QUEM MATA E DE QUEM MORRE


Gabriela Catarina CANAL e Naiara Sandi de Almeida ALCANTARA ----- 1594

OS CÁRCERES FEMININOS, DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL À


VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL DE GENÊRO
Jéssica Santiago CURY e Paulo César Corrêa BORGES ---------------------------- 1608

PRÁTICAS DE ESTADO E GESTÃO DO “TRÁFICO DE PESSOAS”


MEDIANTE OS DIREITOS HUMANOS E A PRODUÇÃO DE
SUBJETIVIDADE E IDENTIDADE DAS TRABALHADORAS DO SEXO
Maíra PRADELLI --------------------------------------------------------------------------------------- 1624

GT 08 – QUESTÃO AGRÁRIA, MEIO AMBIENTE E


DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

A MULHER AGRICULTORA FAMILIAR EM ARARAQUARA: AGENTE


DE REPRODUÇÃO SOCIOECONÔMICA
Camila BENJAMIM VIEIRA -------------------------------------------------------------------- 1643

VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DO CAMPO: UM LEVANTAMENTO


DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DA REDE DE ENFRENTAMENTO
Larissa Leal CRUZ ------------------------------------------------------------------------------------- 1655

14
DENTRE O RURAL E O URBANO: A DINÂMICA MIGRATÓRIA NAS
CIDADES DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO
Giovana Gonçalves PEREIRA e Kelly CAMARGO ---------------------------------- 1671

ENTRE FICAR E SAIR: AS DIMENSÕES DA LUTA PELA TERRA E DA


PERMANÊNCIA NA TERRA NO ASSENTAMENTO HORTO BUENO
DE ANDRADA – ARARAQUARA / SP
Fernando Henrique Ferreira de OLIVEIRA e Vera Lúcia Silveira Botta
FERRANTE ----------------------------------------------------------------------------------------------- 1693

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO MERCADO DA AGRICULTURA


FAMILIAR NO ASSENTAMENTO MARIO LAGO EM RIBEIRÃO
PRETO/SP: O PRONAF E O CASO DAS CESTAS DE ALIMENTOS
ORGÂNICOS AGROFLORESTAIS
Giovanni Barillari de FREITAS ----------------------------------------------------------------- 1709

O MEIO AMBIENTE E O PEQUENO PROPRIETÁRIO RURAL


PAULISTA ENTRE OS BENEFÍCIOS DO CÓDIGO FLORESTAL E AS
ÁREAS PRIORITÁRIAS DE RESTAURAÇÃO DA VEGETAÇÃO NATIVA
DO ESTADO DE SÃO PAULO
Jorge Brunetti SUZUKI e Luiz César RIBAS -------------------------------------------- 1726

PAPEL DO JUDICIÁRIO NA REDISTRIBUIÇÃO DE TERRAS E


REFORMA AGRÁRIA: POTENCIALIDADES E ENTRAVES
Bárbara EL KHALIL --------------------------------------------------------------------------------- 1740

A EXPORTAÇÃO E A INOVAÇÃO DE BENS AMBIENTAIS NO BRASIL


Bruna Lima ALFAMA e Lucas Siqueira de CARVALHO ----------------------- 1754

QUESTÃO AGRÁRIA E POPULAÇÕES TRADICIONAIS DA AMAZÔNIA:


OS SERINGUEIROS DO ACRE E O CONTROVERSO DISCURSO DO
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL
João Maciel de ARAÚJO --------------------------------------------------------------------------- 1770

OS IMPACTOS DA MINERAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE DAS


COMUNIDADES RURAIS ATINGIDAS PELO ROMPIMENTO DA
BARRAGEM DO FUNDÃO, MARIANA-MG
Manuela AQUINO ------------------------------------------------------------------------------------ 1789

GT 09 – O MUNDO DO TRABALHO NO CAPITALISMO


CONTEMPORÂNEO: INSTITUIÇÕES E DIREITOS

15
NEODESENVOLVIMENTISMO: TRÊS ABORDAGENS SOBRE O
CONCEITO E SEU IMPACTO SOBRE O MUNDO DO TRABALHO
Alessandro Rodrigues CHAVES ----------------------------------------------------------------- 1807

A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E OS IMPACTOS NO MUNDO DO


TRABALHO: UM OLHAR PARA OS PESPONTADORES DE FRANCA/SP
Fernanda Cristina Barros MARCONDES e Ana Beatriz Cruz NUNES ---- 1827

CATADORAS SOLIDÁRIAS EM SUPERAÇÃO: CONSTRUÇÃO DE UM


CONTEXTO
Conrado Marques da Silva DE CHECCHI e Luiz GONÇALVES JÚNIOR 1843

POR UM FIO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS CONDIÇÕES DE


TRABALHO EM UMA EMPRESA TERCEIRIZADA DO SETOR
ELÉTRICO NA CIDADE DE RIBEIRÃO PRETO-SP
Rhavier Henrique Mazieri PEREIRA -------------------------------------------------------- 1862

TRABALHO E PRODUÇÃO DE SABERES: UM OLHAR NA


PERSPECTIVA DOS CAMELÔS DE CUIABÁ
Christiany Regina FONSECA --------------------------------------------------------------------- 1879

OS CAMELÔS E AMBULANTES DA CIDADE DE MACAPÁ (AP):


CONTRIBUIÇÕES AOS ESTUDOS SOCIOLÓGICOS SOBRE O
MERCADO DE TRABALHO INFORMAL
Richard Douglas Coelho LEÃO ----------------------------------------------------------------- 1894

A LOGÍSTICA DO CAOS: O MOTOBOY COMO A ANTÍTESE DO


FLÂNEUR NA CIDADE EM REESTRUTURAÇÃO
Aender GUIMARÃES ------------------------------------------------------------------------------- 1915

GERÊNCIA OU AUTONOMIA? UM ESTUDO SOBRE A ORGANIZAÇÃO


DO TRABALHO NO CONTEXTO DAS TECNOLOGIAS DE
INFORMAÇÃO E COMUNICAÇÃO
Guilherme Henrique GUILHERME --------------------------------------------------------- 1930

A JORNADA DE TRABALHO NOS SETORES DE PESQUISA E


DESENVOLVIMENTO (P&D) E DE TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO
(TI)
Angelina Michelle de Lucena MORENO -------------------------------------------------- 1949

16
GT 10 – REGIONALISMO, INTEGRAÇÃO E ATORES
INTERNACIONAIS

NACIONALIZAÇÃO DE EMPRESAS, ESTADO E DESENVOLVIMENTO:


UMA ANÁLISE DO BRASIL RECENTE (2003-2014)
Daniela Cristina Comin ROCHA --------------------------------------------------------------- 1973

A PARTICIPAÇÃO DO CONGRESSO URUGUAIO NA POLÍTICA


EXTERNA DO PAÍS E A RELAÇÃO COM OS PROJETOS
INTEGRACIONISTAS (2000-2016)
Samuel DECRESCI ------------------------------------------------------------------------------------ 1994

O MEIO AMBIENTE, OS RECURSOS HÍDRICOS E A INTEGRAÇÃO


REGIONAL: O CASO DO AQUÍFERO GUARANI NO MERCOSUL
Maria Luísa Telarolli de Almeida LEITE -------------------------------------------------- 2015

GT 11 – OS DEBATES SOBRE A DEMOCRACIA NAS TEORIAS


SOCIAIS CONTEMPORÂNEAS

A CIÊNCIA POLÍTICA NO BRASIL A PARTIR DE SEUS PRATICANTES:


LIMITES, IMPASSES E DILEMAS
Fabiane Helene VALMORE ---------------------------------------------------------------------- 2037

A REPÚBLICA DE ANGOLA: O MPLA E O PROJETO DE


CONSTRUÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO (2002-2016)
Francisco Sandro da Silveira VIEIRA -------------------------------------------------------- 2053

DO WELFARE STATE AO WARFARE STATE. O QUE QUEREMOS COM


ISSO?
Renaldo MAZARO JR ------------------------------------------------------------------------------- 2072

O “NUEVO CONSTITUCIONALISMO LATINO AMERICANO” E O


ROMPIMENTO COM OS PROCESSOS DEMOCRATIZANTES
Reinaldo Henrique Gajardo MILEO e Paula Santana SANTOS -------------- 2092

DISCUSSÕES SOBRE O ESTADO-NAÇÃO NA SOCIEDADE


CONTEMPORÂNEA
Elenir Aparecida dos SANTOS e Luciane ALCÂNTARA ----------------------- 2112

17
O FUNDAMENTO DO PLANEJAMENTO URBANO APÓS O ESTATUTO
DA CIDADE: AS FACETAS DA DEMOCRACIA DELIBERATIVA
RADICAL
Rodrigo Alberto TOLEDO ------------------------------------------------------------------------ 2131

MODERNIDADE E POLÍTICA: O DEBATE ENTRE A DEMOCRACIA


DELIBERATIVA DE RAWLS E HABERMAS E A DEMOCRACIA
AGONÍSTICA DE CHANTAL MOUFFE
Arjunuyra Nascimento FURTADO e Richard Douglas Coelho LEÃO ---- 2162

A CRÍTICA DA RAZÃO INSTRUMENTAL E A (IN)VIABILIDADE DA


DEMOCRACIA EM THEODOR ADORNO E MAX HORKHEIMER
Augusto Moreira MAGALHÃES --------------------------------------------------------------- 2176

DISCURSO E DEMOCRACIA: SOBRE A COORIGINARIEDADE ENTRE


DIREITOS HUMANOS E SOBERANIA POPULAR NA TEORIA
DISCURSIVA DE HABERMAS
Antonio Ianni SEGATTO ------------------------------------------------------------------------- 2195

GT 12 – EDUCAÇÃO E DEMOCRACIA: ENTRE A


EMANCIPAÇÃO E A REPRODUÇÃO

NEGROS E UNIVERSITÁRIOS: UM ESTUDO SOBRE ORGANIZAÇÕES


POLÍTICAS DE ESTUDANTES DA UFSCAR - SÃO CARLOS
Danilo Rosa de LIMA -------------------------------------------------------------------------------- 2209

DEMOCRATIZAÇÃO DO ACESSO À JUSTIÇA: A EDUCAÇÃO POPULAR


E AS PROMOTORAS LEGAIS POPULARES
Adriana Ferreira Serafim de OLIVEIRA, Patrícia Sampaio CASTELO BRANCO
e Amanda Regina VIEGAS ------------------------------------------------------------------------ 2226

OS OBJETIVOS DO ENSINO DE SOCIOLOGIA NA PERSPECTIVA


HISTÓRICO-CRÍTICA: O REAL E O NECESSÁRIO
Luiz Matias dos SANTOS JÚNIOR e Lucas André TEIXEIRA -------------- 2246

CONHECER PARA ATUAR, ATUAR PARA CONHECER: PELOS


INDÍCIOS DE UMA CIÊNCIA SOCIAL POPULAR E MOBILIZADA
William Bueno REBOUÇAS --------------------------------------------------------------------- 2267

A LÍNGUA PORTUGUESA COMO A ÚNICA DO ENSINO NA GUINÉ-


BISSAU: PROBLEMA OU SOLUÇÃO?

18
Dabana NAMONE ------------------------------------------------------------------------------------ 2285

A DEMOCRATIZAÇÃO DOS SABERES NO DIÁLOGO ESCOLA


PÚBLICA E UNIVERSIDADE
Geovânia da Silva TOSCANO e Bruno Alexandre CHAVES ------------------ 2302

“DAS MANIFESTAÇÕES ÀS OCUPAÇÕES”: O PAPEL DA PRIMAVERA


SECUNDARISTA NA EXPOSIÇÃO DOS IMPASSES NA DEMOCRACIA
BRASILEIRA
Mariana Pinto ZOCCAL ---------------------------------------------------------------------------- 2318

SISTEMA DE ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO: O MODELO DE


UNIVERSIDADES PRIVADAS E PÚBLICAS E SUA RELAÇÃO COM O
DESENVOLVIMENTO
Jennifer C. OLIVEIRA, Jéssica S. SILVA, Vanessa D. de CAMPOS, Wellen L. F.
SANTOS e Vera Alves CEPÊDA -------------------------------------------------------------- 2334

REFORMA DO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM AS TESES E


DISSERTAÇÕES SOBRE ESTE ASSUNTO?
José Carlos CONSTANTIN JUNIOR ------------------------------------------------------ 2350

A REFORMA DO ENSINO MÉDIO: SEUS RISCOS À EDUCAÇÃO


PÚBLICA E À DEMOCRACIA
Carolina Modena da SILVA ----------------------------------------------------------------------- 2364

POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS: DISCUSSÃO ACERCA DA


ARGUMENTAÇÃO EM TORNO DO SISTEMA DE COTAS
Cristina Peres CAMPOS ---------------------------------------------------------------------------- 2378

O IMAGINÁRIO SOCIAL DAS AÇÕES AFIRMATIVAS NO ENSINO


MÉDIO
Nikolas PALLISSER ---------------------------------------------------------------------------------- 2393

O PAAES - PROGRAMA DE AÇÃO AFIRMATIVA DE INGRESSO NO


ENSINO SUPERIOR E A JUDICIALIZAÇÃO DECORRENTE DE SUA
IMPLEMENTAÇÃO
Isabel Bezerra de Lima FRANCA -------------------------------------------------------------- 2408

GT 13 – MOVIMENTOS SOCIAIS ECONÔMICOS NA


CONTEMPORANEIDADE

19
NA PERIFERIA DO MOVIMENTO: A LUTA DOS MOVIMENTOS
SOCIAIS NEGROS CONTRA O GENOCÍDIO DA POPULAÇÃO NEGRA:
UM ESTUDO NA CIDADE DE SÃO CARLOS
André S. S. CEDRO e Murilo ROLDÃO ------------------------------------------------- 2427

PROJETO EM CONSTRUÇÃO: REFLEXÕES ACERCA DAS


ESTRATÉGIAS DE MANUTENÇÃO DE UMA ELITE CONSTRUTORA
NACIONAL
Gabriela Lanza PORCIONATO --------------------------------------------------------------- 2443

DIREITOS HUMANOS E INCLUSÃO PRODUTIVA: UMA ANÁLISE DO


PLANO NACIONAL DE ECONOMIA SOLIDÁRIA
Evandro Coggo CRISTOFOLETTI e Thais Aparecida DIBBERN --------- 2462

MOVIMENTOS SOCIAIS E OS DIREITOS SOCIAIS NO CAPITALISMO:


CONTRIBUIÇÕES PARA O DEBATE
Renata Martins de FREITAS ---------------------------------------------------------------------- 2480

MERCADO DE ARMAS DE FOGO PEQUENAS E LEVES NO BRASIL: O


FUNCIONAMENTO DE UM MERCADO CONTESTADO
Mateus Tobias VIEIRA ------------------------------------------------------------------------------ 2496

ABORDAGEM EMPÍRICA/REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: PERCEPÇÃO


SOBRE O CORPO NO TRABALHO ENTRE MULHERES COOPERADAS
DA REDE CATAMATO
Aline Pereira DUTTON e Sandro Benedito SGUAREZI ------------------------ 2514

GT 14 – RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES: VIVÊNCIAS


RELIGIOSAS NA CONTEMPORANEIDADE

ALGUMAS RELAÇÕES ENTRE A TEORIA E AS PRÁTICAS NAS


COMUNIDADES TERAPÊUTICAS RELIGIOSAS: UM OLHAR A PARTIR
DA POLÍTICA BRASILEIRA SOBRE DROGAS
Ronaldo Martins GOMES -------------------------------------------------------------------------- 2529

DEVOÇÃO NAS FOLIAS DE REIS: O TÊTE-À-TÊTE ENTRE HOMENS E


DIVINDADES
Ana Paula Santos HORTA ------------------------------------------------------------------------- 2544

LIBERDADE E PLURALISMO RELIGIOSO NO CONTEXTO DO


SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS): A PARTICIPAÇÃO DE

20
BENZEDEIRAS NO PROCESSO SAÚDE-DOENÇA E O DIÁLOGO
ENTRE O SABER MÉDICO E O SABER RELIGIOSO
Luiza Maria de ASSUNÇÃO e Leiner Resende RODRIGUES --------------- 2562

A GRAMÁTICA MORAL DE HABERMAS NA DESCONTRUÇÃO


INTRARELIGIOSA SOBRE GÊNERO E SEXUALIDADE
Evanway Sellberg SOARES ------------------------------------------------------------------------ 2575

NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS E O MERCADO ESOTÉRICO:


ELOS DE PERTENÇA E PROCESSOS DE IDENTIFICAÇÃO EM
ARARAQUARA-SP
Tarsila Macedo de OLIVEIRA ------------------------------------------------------------------ 2592

“ABSTENDE-VOS DE SEMELHANTE AÇÃO”: DIREITO, CARMA E


LIVRE-ARBÍTRIO NAS CONSIDERAÇÕES ESPÍRITAS SOBRE O
ABORTO
Allan Wine Santos BARBOSA ------------------------------------------------------------------ 2604

POSSESSÃO DEMONÍACA E MEDICINA NO SÉCULO XIX E HOJE:


MEDICALIZAÇÃO, DESRESPEITO E TRANCAFIAMENTO DA CRENÇA
POPULAR
Otávio Barduzzi Rodrigues da COSTA ------------------------------------------------------ 2619

A PRODUÇÃO DE DISCURSOS ISLAMOFÓBICOS ONLINE NO BRASIL:


ESTUDO EXPLORATÓRIO DOS AGENTES CRISTÃOS
Felipe Freitas de SOUZA --------------------------------------------------------------------------- 2639

ELITE PASTORAL PENTECOSTAL: UM ESTUDO A PARTIR DA


ANÁLISE DO CARISMA E DA TEORIA POSICIONAL
James Washington Alves dos SANTOS ----------------------------------------------------- 2656

O CORPO NO CRISTIANISMO: CORPO COMO PROFANO OU


SAGRADO E SEXUALIDADE NA BOLA DE NEVE CHURCH DE
MARÍLIA, SP
Flávia Tortul CESARINO -------------------------------------------------------------------------- 2669

REFORMA 500 ANOS: O PROTESTANTISMO NO BRASIL ONTEM E


HOJE
Douglas Alessandro Souza SANTOS --------------------------------------------------------- 2684

CULTURAS JUVENIS: UM OLHAR SOBRE AS JUVENTUDES


RELIGIOSAS EM LONDRINA-PR
Kaique Matheus CARDOSO e Fabio LANZA ------------------------------------------ 2703

21
GT 01 – QUESTÕES URBANAS:
ETNOGRAFIA, POLÍTICA, GEOGRAFIA
E OS CONFLITOS URBANOS
“NÓS SOMOS AUTORIDADES! VOCÊS TEM QUE RESPEITAR!”:
UMA ANÁLISE SOBRE O MODELO DE INTERVENÇÃO DA
GUARDA CIVIL MUNICIPAL DE NITERÓI

Elisângela Oliveira dos SANTOS1

Resumo: Este trabalho descreve e analisa o modelo de intervenção da Guarda Civil Municipal nos
espaços públicos do município de Niterói. Diante da indefinição de suas reais atribuições e da
incorporação de elementos presentes nos modelos de organização e atuação de outras instituições
de segurança pública, surge uma “Nova Polícia” que tenta preencher as lacunas deixadas por
instituições como, a Polícia Militar, alternando entre um modelo de atuação orientado para a
prevenção de delitos e a administração de conflitos e a reprodução de um modelo policial baseado
em práticas repressivas de atuação. O trabalho de observação e a realização de entrevistas informais
permitiram identificar a existência de um modelo classificatório que divide a sociedade em dois
grupos sociais: “cidadãos” e “clientes”. Se por um lado, são considerados cidadãos os indivíduos
que cumprem a lei ou que reconhecem nos guardas civis municipais a “figura de autoridade”; por
outro lado, os clientes são os indivíduos que além de não atuarem em conformidade com a lei,
confrontam a ideia de ordem estabelecida pelos guardas. A partir dessa classificação, a atuação dos
guardas é orientada pelo uso do “bom senso”. A relação com os cidadãos é orientada pelo
compartilhamento das regras e pela prática da mediação de conflitos e com os clientes é marcada
por uma forma de atuação mais rigorosa e repressiva. As distintas formas de abordagem e de
condução das ocorrências aplicadas por esses agentes no ordenamento do espaço público
evidenciam o caráter excludente e hierarquizante que estão presentes em nossa sociedade. Ao
mesmo tempo, refletem na forma de legitimação do trabalho dos profissionais da área de segurança
pública em nível local.

Palavras-chave: Abordagem. Cidadãos. Clientes. Guarda municipal.

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como objetivo principal analisar o modelo de intervenção da


Guarda Civil Municipal nos espaços públicos do município de Niterói, localizado no estado
do Rio de Janeiro. Sua elaboração é resultado de diferentes experiências acadêmicas e
profissionais. Durante os anos de 2015 e 2016 acompanhei como monitora o Curso de
Formação Profissional (CFP) oferecido aos aprovados no concurso realizado em 2014,
atuei enquanto pesquisadora no projeto “Protocolo e Transparência: A produção de
registros de ocorrência pela Guarda Civil Municipal de Niterói” financiado pela Pró-
Reitoria de Pós-graduação, Pesquisa e Inovação (PROPPI) da Universidade Federal
Fluminense (UFF) e trabalhei como Assistente de Projetos no Estado-Maior Geral da
Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.

1
Bacharel em Segurança Pública; Universidade Federal Fluminense; Agência de Inovação;
elisangelasantos@id.uff.br.

23
O desenvolvimento dessas diferentes atividades foi essencial para compreender as
diferenças e semelhanças no processo de formação dos agentes nas duas instituições, assim
como seus modelos de organização e de atuação. Nesse sentido, procurei, através da
utilização de diferentes técnicas de pesquisa como a análise de documentos, a observação
direta e a realização de entrevistas informais, identificar e analisar as diferentes formas de
intervenção utilizadas pelos guardas municipais nos espaços públicos.
Apesar da existência de dispositivos legais, como os estatutos, a atuação dos agentes
tem sido orientada pela utilização de um modelo classificatório que divide a sociedade em
dois grupos sociais: cidadãos e clientes. A esses grupos são destinadas diferentes formas de
abordagem e de condução das ocorrências. Tal diferenciação demonstra a presença dos
“mesmos valores hierárquicos, autoritários e preconceituosos presentes na sociedade, e
que muitas das vezes compõem o que se entende como cultura policial” (CORREA, 2014,
p. 195). A adoção desse sistema classificatório ecoa na aplicação de diferentes mecanismos
de controles sociais. Enquanto a relação com os cidadãos é norteada pelo
compartilhamento das regras e pela prática da mediação de conflitos, a relação com
os clientes é marcada por uma atuação mais rigorosa e repressiva.
É diante desse cenário que buscarei ao longo deste ensaio apresentar além de uma
breve contextualização das políticas públicas de segurança municipal, a relação do processo
de formação e de organização da Guarda Civil Municipal de Niterói (GCMN) com a
utilização do sistema classificatório que orienta as intervenções dos agentes nos espaços
públicos.

A GUARDA MUNICIPAL A PARTIR DE UM CONTEXTO HISTÓRICO

A Guarda Municipal (GM) é considerada um marco no processo de retomada da


municipalização da segurança pública. A Constituição de 1988 define no Art. 144 que “os
municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens,
serviços e instalações, conforme dispuser a lei” (BRASIL, 1988, art. 144).
No caso específico de Niterói, a competência sobre a Guarda Municipal foi
atribuída ao município a partir do decreto nº 308 de 1937. Sendo que,

[...] depois de um período crítico de desestruturação, ela foi refundada


em 1969 pelo decreto n° 1.744-699 da ordem permanecia ainda sob a
responsabilidade do governo central. Largada à própria sorte, a
instituição estava em franco processo de desaparecimento, até que em
2001, o então prefeito, Jorge Roberto da Silveira, resolveu reativá-la

24
como desdobramento do processo desestruturação da Secretaria
Municipal de Segurança, criada pela Lei n. 1565 de 30 de dezembro de
1996, mas regulamentada somente pela Lei n. 1832 de 05 de junho de
2001 (MIRANDA; MOUZINHO; MELLO,2003, p. 43).

A reativação da GCMN ocorreu em meio ao processo de descentralização e


expansão da municipalização da segurança pública iniciado no Brasil na década de 90 em
decorrência do aumento significativo da criminalidade e da violência. No intuito de
compartilhar a responsabilidade sobre a garantia de segurança pública com os municípios,
o Governo Federal realizou uma série de iniciativas como a criação da Secretaria de
Segurança Pública (SENASP) em 1997, do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP)
em 2001 e dos Planos Nacionais de Segurança Pública a partir do ano 2000.
Aliás, o Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP) divulgado em 2002
apresentou novas perspectivas para a segurança pública no âmbito municipal. Além de
propor um modelo de atuação orientado pela política de proximidade; destacou a
importância da inserção dos municípios no Sistema Único de Segurança Pública, o que
possibilitou aos mesmos pleitearem recursos junto ao Fundo Nacional de Segurança
Pública para o desenvolvimento de projetos direcionados por exemplo, para a estruturação
e modernização das Guardas Municipais, incluindo a formação dos agentes.
A propósito, no intuito de orientar e nivelar o modelo de formação dos guardas
municipais, desde 2005 os municípios passaram a formatar seus cursos a partir da Matriz
Curricular Nacional para Guardas Municipais. O documento elaborado pela SENASP é
resultado da avaliação do Curso de Segurança Pública, Social e Municipal para Guardas
Municipais de Niterói, realizado no ano de 2003 e organizado pelo Núcleo Fluminense de
Estudos e Pesquisas (NUFEP) da Universidade Federal Fluminense. O documento visa

[...] enfatizar a atuação das Guardas Municipais na prevenção da


violência e criminalidade, destacando o papel dos Municípios no SUSP,
assim como estabelecer diretrizes e princípios que norteiem a atuação
das Guardas Municipais existentes nas diversas regiões do país,
respeitando e considerando as especificidades regionais (BRASIL, 2005,
p. 3).

Seguindo o processo de consolidação da municipalização da segurança pública, foi


instituído no ano de 2013, o Estatuto Geral das Guardas Municipais. Seu objetivo é
uniformizar o funcionamento e as competências das Guardas Municipais. Vale ressaltar,

25
que a publicação desse documento não aboliu a existência dos Estatutos das Guardas a
nível local. No caso de Niterói, o último estatuto foi publicado em 2011.
Apesar dos esforços empreendidos pelo Governo Federal para estimular a inserção
dos municípios nas políticas de segurança pública, efetivamente isso não produziu grandes
resultados no que diz respeito a definição do papel do município nessa seara, assim como
as reais atribuições da GM. Talvez por isso, ainda hoje podemos notar que enquanto alguns
municípios mantêm o modelo tradicional voltado à vigilância e a preservação dos bens
públicos, outros apostam na construção de uma “Nova Polícia”. Para isso, investem na
expansão dos efetivos e na ampliação das atribuições, recursos e poderes dos agentes.
Espera-se assim, dar conta das carências na área da segurança pública que se expressam
através do aumento dos indicadores de criminalidade e da sensação de insegurança. O
emprego dos guardas municipais na repressão de pequenos delitos seria uma tentativa do
poder público local de responder aos anseios da sociedade “que espera da Guarda atitudes
policiais, de mais um agente uniformizado de controle do espaço urbano” (BRETAS;
MORAIS, 2006, p. 15).
No município de Niterói, além da necessidade de atender as expectativas da
sociedade em relação a redução da violência, o poder público local vem desenvolvendo
estratégias com o intuito de desfazer a imagem negativa que a GCMN possui perante à
sociedade por conta de ter, ao longo de sua história, atuado basicamente na repressão aos
camelôs, com o recolhimento de suas mercadorias e a perseguição e prisão dos ambulantes
(MIRANDA; MOUZINHO; MELLO, 2003, p. 39).
Uma das estratégias adotadas, foi associar a imagem da Instituição a uma
Universidade através da realização do CFP dos novos guardas. Contudo, como poderemos
observar na próxima seção, apesar do projeto pedagógico elaborado pela Universidade
propor uma formação baseada na reflexão acerca da realidade social e das práticas
profissionais, prevaleceu “a velha concepção de segurança reativa e de controle social
existente nas experiências cotidianas das polícias, geralmente ainda intrínseca à hierarquia
e à disciplina militar” (ALMEIDA; BRASIL, 2011, p. 625).

O CURSO DE FORMAÇÃO PROFISSIONAL

A Prefeitura de Niterói realizou no ano de 2014 o concurso para a contratação de


novos guardas civis municipais. A formação desses agentes aconteceu através do CFP
oferecido pela Secretaria de Ordem Pública do Município, órgão a qual a GCMN está

26
subordinado, e pelo Núcleo de Ensino, Pesquisa e Extensão em Administração
Institucional de Conflitos (NEPEAC) vinculado à UFF.
O CFP foi ministrado no Auditório da Fundação Niemeyer localizado na região
central do município. Mesmo se tratando de um espaço amplo, o auditório não apresentava
as condições adequadas para a realização de um curso tão extenso e com um significativo
número de pessoas. Os aprovados no concurso foram divididos em quatro turmas de 75
alunos e os Curso duravam aproximadamente três meses.
Cadeiras sem apoio para a escrita, algumas sem encosto, banheiros interditados, a
utilização de um espaço improvisado que servia simultaneamente para a realização das
refeições e como vestiário masculino, problemas com o fornecimento de água e de luz e o
fato dos próprios alunos/guardas2 terem que realizar a limpeza do espaço, foram somente
algumas das dificuldades enfrentadas ao longo do Curso.
Apesar de a Universidade ter oferecido seu espaço para a realização do Curso, a
SEOP optou por realizá-lo no espaço cedido pela Prefeitura. Na época, o Secretário de
Ordem Pública utilizou como justificativa o fato dos alunos/guardas estarem em processo
de construção da identidade. Para ele, os guardas ainda não possuíam uma “moral”
constituída para circularem no espaço da Universidade. Espaço no qual, segundo ele,
teriam que conviver, por exemplo, com usuários de drogas consideradas ilícitas como, a
maconha.
Além do mais, o período de formação era considerado como um momento
fundamental para a incorporação da postura e do amor a GCMN. Em sua fala durante a
aula inaugural, algumas afirmações demonstraram a necessidade do comando da GCMN
em submeter os alunos/guardas aos mecanismos de controle e de punição de acordo com
a lógica da instituição. Dentre elas, destaco: “Aqui se chegar um superior os senhores terão
que se levantar, terão que chamar de senhor”. “Os senhores devem se apaixonar e vibrar
pela GCMN” e “O objetivo dos instrutores é mudar a mente de vocês, porque os senhores
serão exemplos para a sociedade”.
Os alunos/guardas foram proibidos de irem até a sede da GCMN ou manterem
contato com os guardas antigos que trabalhavam na região próxima ao Auditório. O único
contato autorizado era com os guardas selecionados pelo Comando para participarem das

2
Essa categoria é utilizada pelos próprios agentes em formação, pois, como explicam os guardas graduados,
eles são considerados alunos quando questionam alguma determinação e guardas, quando recebem alguma
punição.
27
instruções oferecidas pela SEOP. Esses guardas eram instruídos a não falarem sobre os
problemas e dificuldades enfrentados na instituição.
No que se refere a estrutura curricular, as disciplinas oferecidas pelo NEPEAC
tinham por objetivo propor além do aprendizado, uma reflexão acerca da realidade social
e sobre as formas de administração de conflitos no espaço público. Porém, na percepção
dos gestores da GCMN e de muitos alunos/guardas essa formação crítica e reflexiva não
atendia as necessidades de capacitação profissional. Enquanto os responsáveis pelo CFP
afirmavam que esperavam ansiosos o dia em que não precisariam mais da Universidade
para realizar o processo de formação; os alunos/guardas repetiam afirmações como: “Qual
a utilidade disso pra gente?”, “É uma besteira conhecer qualquer outra realidade” e “Vocês
antropólogos e sociólogos moram em coberturas, não sabem o que é a realidade das ruas”.
Para ambos, a reflexão proposta pela Universidade através da utilização de alguns métodos
como a apresentação de dados empíricos ou de vídeos relacionados a atuação da Guarda,
não retratavam a realidade dos novos agentes. O interessante é que os alunos/guardas
costumavam assistir atenciosamente aos mesmos vídeos, durante os intervalos das aulas.
Ao observarem uma cena na qual o guarda municipal utilizava da força para controlar
alguma situação, gritavam: “bom”. O mesmo termo também era utilizado para expressar a
alegria quando acreditavam que haviam vencido os professores da Universidade durante
as discussões em sala de aula.
Apesar de contestar o modelo de formação oferecido pela Universidade, a SEOP
não se preocupou com a dimensão do treinamento durante o processo de formação. Além
de cancelarem muitas das aulas que seriam ministradas pelos professores do NEPEAC, o
tempo destinado as instruções práticas como, Emprego de Técnicas e Tecnologias Não-
letais e Técnicas de Abordagem foi substituído pela disciplina de Ordem Unida. No total,
foram realizadas mais de 40h de instrução. Vale ressaltar, que de acordo com o Manual de
Campanha Ordem Unida (2002), essa é “uma atividade de instrução militar ligada,
indissoluvelmente, à prática da chefia e liderança e à criação de reflexos de disciplina”.
A inserção desse tipo de instrução associada a realização de algumas práticas
cotidianas fez com que o CFP em muito se assemelha ao modelo de formação adotado em
instituições militares como por exemplo, o da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
(PMERJ). Algo que era questionado pelos alunos/guardas que não possuíam experiência
no serviço militar. Eles não compreendiam o motivo pelo qual recebiam instruções
militares em uma instituição civil. Enquanto isso, aqueles que participaram desse tipo de

28
instrução em outras experiências profissionais entendiam que a prática da Ordem Unida
era a única forma de incorporarem a disciplina, a hierarquia e o respeito à Instituição.
Por outro lado, a justificativa utilizada pelo comando da GCMN para a extensa
carga horária destinada a Ordem Unida era a necessidade de preparar alunos/guardas para
as Cerimônias de Incorporação da Tropa, momento em que recebiam as fardas e
realizavam o juramento, e de Formatura. É preciso destacar, que nessas cerimônias estavam
presentes não somente os formandos, convidados e o corpo docente do Curso, mas havia
um número significativo de policiais militares, representantes das Forças Armadas e de
autoridades do município.
Nessas cerimônias, se manifestavam todos os valores cultuados pela GCMN ao
longo do CFP. Além da apresentação da Ordem Unida, o discurso de algumas autoridades
assim como, o juramento realizado pelos alunos/guardas diante da Bandeira Nacional “Ao
ingressar na Guarda Civil Municipal de Niterói, prometo regular minha conduta pelos
preceitos da moral, cumprir rigorosamente as ordens legais das autoridades a que estiver
subordinadas (a), dedicar-me ao serviço, à preservação da ordem pública, ao ordenamento
urbano e à segurança da comunidade, mesmo com o risco da própria vida” e o brado
entoado no início da Cerimônia de Formatura “Guarda Civil Municipal de Niterói
compromisso com a hierarquia, disciplina e dignidade” enalteciam o respeito a moral, a
hierarquia e a disciplina.
Como disse anteriormente, o culto a disciplina e a hierarquia se fizeram presentes
ao longo de todo o processo de formação. Logo no início do CFP, como ainda não haviam
recebido o fardamento, os alunos/guardas receberam a instrução de que deveriam
apresentar-se obrigatoriamente vestindo um uniforme composto de camisa branca, calça
jeans e tênis preto. Além da cobrança em relação as vestimentas, os homens tinham que se
apresentar com o cabelo e a barba devidamente aparados e as mulheres usando uma
maquiagem discreta e o cabelo preso com um coque. Ambos deveriam se apresentar aos
graduados3como “GCM (seguido do nome de guerra)”. Considera-se como nome de
guerra, o nome escolhido pela Instituição para identificar seus agentes desde o momento
do ingresso. Segundo SILVA (2011), nesse momento de incorporação existe por parte da
Instituição a pretensão de uniformizar as posturas, de modo a inserir os alunos no grupo a
partir da coesão e da uniformidade.

3
Na GCMN são considerados “graduados” os guardas que ocupam alguma posição de chefia como, o
Inspetor Geral, o Inspetor Adjunto, o Corregedor, os Inspetores e Coordenadores.

29
O início das aulas era precedido pelas instruções diárias dos coordenadores
juntamente com a lembrança de que a GCMN tem como princípios norteadores o respeito
à disciplina e a hierarquia. A entrada de autoridades do município, de graduados e de
professores da Universidade era marcada pela realização de um rito. Ao grito de “Atenção
CFP! Um, dois!” feito pelo coordenador ou pelo xerife do dia, os alunos/guardas se
levantam, permaneciam em posição de sentido com as mãos espalmadas juntas às coxas e
os braços ligeiramente curvos, respondiam “Três, quatro!” e aguardavam o comando para
descansar que significa, nesse caso, a permissão para se sentar. O xerife é uma categoria
utilizada pelos graduados para denominar o aluno/guarda responsável por auxiliar a
coordenação da GCMN na condução das atividades, como por exemplo, fazer a chamada
e anotar as faltas e atrasos.
Esse rito sempre causava estranhamento por parte dos professores da
Universidade. Observar os alunos em posição de sentido e por vezes, recebendo a
instrução de Ordem Unida, provocava um desconforto, já que uma das propostas do Curso
era discutir essa versão militar da disciplina, que é a obediência às ordens. Além disso,
aquelas cenas não faziam parte de um contexto civil e universitário. O desconforto se
traduzia na dúvida por parte dos professores em como se comportar. Alguns pediam para
os alunos se sentarem, outros aguardavam até que o xerife ou o coordenador desse alguma
instrução.
Durante o Curso, algo que também causou estranheza foram as estratégias de
vigilância e controle utilizadas pelos coordenadores da GCMN. Por todo o Auditório,
foram espalhados cartazes com diferentes instruções relacionadas a postura que deveria
prevalecer entre os alunos/guardas. Dentre elas, a forma de tratamento aos professores da
Universidade ou aos graduados. Todos deveriam ser tratados por senhor(a) e no caso dos
graduados pelo cargo que ocupam. Ao se apresentarem a um graduado deveriam
permanecer em posição de sentido até receberem a instrução para retornar à posição de
descansar.
Por fim, o CFP foi marcado pela discussão acerca do perfil de atuação a ser adotado
pela GCMN. Ao mesmo tempo que a Universidade apresentava a possibilidade da
Instituição assumir um perfil nos moldes do policiamento comunitário operando enquanto
uma agência de prevenção à criminalidade, a Instituição reforçava o desejo de atuar de
acordo com um modelo de policiamento municipal no qual se tornaria uma

30
[...] agência responsável por aplicar a lei, reprimindo prontamente todos
aqueles que realizam transgressões. Nesta categoria encaixar-se-iam as
GMs que realizam atividades de patrulhamento de vias públicas, bem
como patrulhamento ostensivo a pé, motorizado ou montado, além do
atendimento de ocorrências de crimes propriamente ditos (RIBEIRO;
DINIZ, 2014, p. 120).

Essa lógica vai ao encontro da possibilidade dos guardas municipais utilizarem


armas de fogo durante o exercício de suas atividades. De acordo com as declarações do
prefeito, o efetivo estaria armado até o final daquele ano. Para os alunos/guardas a
utilização da arma de fogo seria fundamental durante a realização das atividades de
patrulhamento. Suas justificativas alternavam entre a preocupação com a defesa pessoal “Se
o bandido está armado, os agentes de segurança pública também têm que estar” e “A
vagabundagem está cada vez mais armada, a vida do guarda está em jogo”, o sentimento de
impotência para atuar diante de situações de violência “Se a gente vê alguém sendo
assaltado, a gente não pode atuar” e o reconhecimento enquanto figuras de autoridade
“Ninguém mais terá a coragem de nos chamar de guardinhas”.
Diante desse cenário, podemos concluir que no processo de formação prevaleceu
o modelo tradicional de formação dos agentes de segurança pública no Brasil no qual
prioriza-se a padronização de procedimentos e técnicas, de forma a retirar a capacidade
reflexiva dos agentes diante de situações complexas. (KANT DE LIMA,2007). O CFP foi
destinado não somente para as orientações do exercício profissional, mas para a
incorporação dos significados e valores da instituição que estão assentados no culto a
disciplina e a hierarquia, nos simbolismos militares e nos mecanismos de controle social
presentes em outras instituições de segurança pública como, por exemplo, na Polícia
Militar. Algo que segundo PATRÍCIO (2008), não é incomum, visto que existe por parte
de algumas instituições o hábito de incorporarem e reproduzirem métodos e práticas do
universo militar em seu cotidiano.

OS ARRANJOS INSTITUCIONAIS E A ESTRUTURA DA GCMN

O município de Niterói não possui uma Secretaria de Segurança Pública. Por isso,
assim como acontece com outras Guardas no Brasil como por exemplo, a Guarda
Municipal do Rio de Janeiro (GM-Rio), a GCMN está subordinada à Secretaria de Ordem
Pública. O omando da Secretaria é definido a partir da indicação do prefeito e
normalmente é escolhido um coronel da ativa ou reformado da PMERJ. Os cargos de

31
chefia da Subsecretaria Administrativa e da Subsecretaria Operacional também são
ocupados por oficiais superiores da mesma Instituição. Na perspectiva dos guardas, esse
arranjo produz impactos negativos para a organização da GCMN. Exemplo disso, é a
existência do culto a disciplina e a hierarquia a partir da lógica militarista que orienta as
relações entre os policiais que ocupam os cargos de comando da SEOP e os graduados e
muita das vezes, entre os graduados e os guardas municipais. Mariano observa que a
presença desses servidores das polícias estaduais trouxe para os guardas civis a lógica, as
regras e os vícios estruturais de suas instituições de origem, o que, na prática contribui para
que as guardas civis não tivessem identidade própria como órgão municipal de segurança
pública. (MARIANO, 2004, p. 116)
No que se refere ao preenchimento das vagas dos cargos de chefia da GCMN,
apesar de serem ocupados por guardas, isso não significa que os mesmos tenham o poder
de tomada de decisão. O culto a hierarquia e a disciplina por vezes os impedem de
discordar de seus superiores, nesse caso, os gestores da SEOP. Ademais, não existe no
atual Estatuto da GCMN algo que assegure a permanência de um guarda na ocupação de
um cargo de chefia. Ou seja, um graduado pode retornar a ser somente um guarda a partir
da determinação do Secretário.
Durante o período em que realizei a pesquisa de campo, pude observar o caso de
uma Inspetora que foi rebaixada ao cargo de Coordenadora e do Inspetor Geral que
retornou ao cargo de Subinspetor de um grupamento. Para definir tais situações, os guardas
costumam dizer que na GCMN “o galão é colado com cuspe”. Lembrando que o galão é
um símbolo aplicado na farda do guarda para indicar sua graduação hierárquica.
Assim como os militares desenvolveram mecanismos de controle e punição, os
graduados criaram formas de reproduzir esses mecanismos. Em situações em que o guarda
não age de acordo com o entendimento de um graduado e não pode ser punido por isso
através das sanções previstas no Estatuto ou em que o guarda possui algum tipo de
problema pessoal com um graduado, a punição adotada é a mudança na escala, a
movimentação para um local distante da Sede ou para o grupamento do Controle Urbano
do Centro. Para os guardas, trabalhar no “cu do Centro” seria uma das maiores punições
que poderiam receber. Isso porque, além de atuarem na escala de 12h de trabalho por 36h
de descanso — ou “12 por 36”, como eles dizem — sofreriam com as péssimas condições
de trabalho. Durante todo o serviço permanecem em pé e não há lugar para armazenar
água ou alimento. O fato de atuarem no Centro também os expõe a possíveis novas
punições, pois além de se tratar de uma área de maior visibilidade (local com grande

32
circulação de pessoas e graduados), estariam suscetíveis aos confrontos com camelôs, visto
que esse local concentra o comércio de dvds piratas.
Tal como no CFP, nota-se que a imposição da autoridade e a punição são utilizados
como mecanismos para a manutenção dos arranjos institucionais. Logo, “em nome da
hierarquia socialmente instituída tão logo as coisas ameacem sair de seus devidos lugares”
(VERÍSSIMO, 2009, p. 32) aplica-se a pedagogia da punição, seja através da aplicação de
mecanismos formais ou de práticas informais.

A DISTRIBUIÇÃO DO EFETIVO

O efetivo da GCMN é dividido basicamente em três grupos que desenvolvem


diferentes atividades: o primeiro atua na proteção dos próprios públicos ou em cabines e
são conhecidos como “guardas de posto”, o segundo na realização das atividades
operacionais e o terceiro no desenvolvimento de atividades administrativas. Os guardas que
compõem esse último grupo são conhecidos como “morde fronha”. O fato de muitas das
vezes não terem atuado nas ruas faz com que recebam um tratamento diferenciado pelos
demais, sempre vinculado a um sentimento de inferioridade.
As atividades operacionais são realizadas por guardas que são distribuídos entre 5
grupamentos (Ambiental, Controle Urbano, Trânsito, Grupamento de Pronto-Emprego e
Patrulha Escolar). Cada grupamento desenvolve atividades específicas, alguns mais
direcionados para o conflito como, o Controle Urbano e Grupamento de Pronto-Emprego
(GPE) e outros para a realização de atividades sociais, como a Patrulha Escolar e o
Trânsito.
Ainda que exista essa distribuição, não existe um documento que regule os tipos de
ações a serem desenvolvidas por cada grupamento e nem um manual de procedimentos
operacionais padrão que oriente os guardas municipais durante o atendimento das
ocorrências. A associação desses fatores corrobora para a manutenção de uma tradição na
qual durante o serviço os guardas mais antigos repassam seu conhecimento aos guardas
que ingressaram na Instituição ou que foram movimentados entre os grupamentos.
Entende-se que o guarda antigo desenvolveu ao longo do tempo algumas características
como o discernimento, a frieza, a compaixão e a capacidade de adaptação. Seria ele
detentor de um saber híbrido que é resultado do conhecimento formal adquirido nos
cursos de formação e um saber prático que consiste na “instrumentalização desse mesmo
conhecimento” (MUNIZ, 1999).

33
Diante da ausência de um documento regulatório, buscarei a partir das experiências
de campo e dos relatos dos guardas municipais, descrever as atividades realizadas pelos
cinco grupamentos:
a) Grupamento Ambiental: basicamente atuam na preservação das áreas verdes do
município e no resgate de animais.
b) Controle Urbano: atuam em diferentes tipos de ocorrência. O fato de realizarem o
patrulhamento a pé ou permaneceram parados em pontos previamente determinados, os
aproximam da população. Apesar do foco da atuação ser a repressão ao comércio
ambulante irregular, é comum atuarem em casos de roubo de rua, organização do trânsito
em caso de acidentes, brigas, primeiros socorros e principalmente prestando o serviço de
informação à população.
c) GPE: a grande maioria dos guardas que pertencem a esse grupamento fez parte de
um grupo denominado “volante”. Os “volantes” ficaram conhecidos pelos inúmeros
confrontos com os camelôs no Centro da cidade. Talvez por isso, hoje eles se apresentem
com uma postura diferente. Se consideram e são considerados pelos outras guardas como
aqueles do “tiro, porrada e bomba”. A diferenciação dos demais guardas também se
evidencia através do fardamento. Após aprovação do Comando, passaram a vestir uma
farda caqui com padronagem camuflada, boina e colete preto. É impossível não associar a
imagem ao do fardamento utilizado pelos policiais do BPChq (Batalhão de Policiamento
de Choque) e do BOPE (Batalhão de Operação Especiais). Os guardas desse grupamento,
são os únicos que só podem sair para as operações portando os armamentos menos-letais:
a taser (armamento de choque) e a tonfa (bastão).
Diariamente atuam na operação “Acorda Niterói” que consiste em circular na
viatura, acordando os moradores de rua. Quando os mesmos se recusavam a levantar, os
guardas recolhem os pertences desses moradores. Como os pertences não são
identificados, os moradores de rua não conseguem reavê-los.
Após essa primeira operação, caso haja alguma ordem de serviço, saem para
cumpri-la. Essas ordens normalmente determinam a presença dos guardas em eventos
realizados na cidade, como shows, festas ou eventos esportivos. Não havendo ordens de
serviço, circulam pelas ruas da cidade ou “parqueiam” (estacionam) a viatura em algum
ponto do Centro da Cidade, aguardando até que sejam acionados pelo Comando ou
presenciem alguma ocorrência. Por vezes, também caminham pelas ruas buscando
apreender mercadorias irregulares. Por serem considerados pelo Comando da Guarda e

34
pelos demais guardas como um grupamento especializado costumam ser chamados em
casos em que o uso da força é considerado como a única forma de finalizar uma ocorrência.
Às sextas-feiras, cumprem uma ordem de serviço em uma rua repleta de bares,
localizada em um bairro próximo ao Centro. A intenção é multar os carros estacionados
em locais proibidos e orientar os comerciantes a retirarem as cadeiras colocadas nas
calçadas. Vale ressaltar, que essa rua está localizada em uma região marcada pelo confronto
armado entre bandidos e policiais militares. Talvez por isso, os guardas costumam discutir
durante a execução dessa atividade sobre a necessidade utilizarem a arma de fogo. Segundo
Bretas (2010), é comum entre os guardas que estão expostos a um risco maior defenderem
o emprego da arma de fogo. (BRETAS, 2010).
Ao questionar sobre a necessidade de realizarem esse tipo de operação, um dos
coordenadores respondeu que a determinação para atuarem naquela área partiu da
solicitação dos moradores que reclamavam do barulho e da desorganização naquele
espaço. Porém, os guardas contaram que a Operação só acontecia porque houve uma
solicitação de um coronel reformado da PMERJ que morava naquela área.
Nos outros dias da semana, era comum realizarem durante a noite o patrulhamento
ostensivo nas ruas do Centro e nos bairros nobres da cidade. Além de apreenderem
mercadorias comercializadas irregularmente, abordavam pessoas “suspeitas”, como os
usuários de drogas. Por vezes, eram chamados a intervir nas brigas que aconteciam nos
abrigos para moradores de rua ou adolescentes infratores.
d) Patrulha Escolar: visitam as escolas municipais nos dias úteis da semana. Cada
dupla é responsável por visitar as escolas de uma determinada área. Quando existe algum
confronto armado nessas áreas, os guardas não visitam as escolas e são empregados no
Controle Urbano.
Ao chegarem à escola, procuram a diretora ou a coordenadora pedagógica para que
uma delas assine o documento que comprova sua ida à Unidade. Costumam perguntar se
houve alguma alteração na rotina da escola. Isso porque, normalmente são chamados a
intervirem nos conflitos entre alunos, entre alunos e o corpo docente e em casos de
depredação da escola.
É comum, os professores, diante dos alunos, se referirem aos guardas como agentes
que podem castigá-los ou encaminhá-los ao Conselho Tutelar. Essa referência
normalmente é feita nas escolas localizadas nas regiões mais pobres e em áreas de violência.
O relacionamento com os alunos dessas áreas costuma ser marcado pelo distanciamento
ou por diálogos que reforçam o reconhecimento do guarda enquanto figura de autoridade.

35
Já nas escolas localizadas nas áreas mais tranquilas da cidade, foi possível observar uma
relação mais próxima entre os guardas e os alunos. É comum se reconhecerem pelo nome
e conversarem sobre assuntos diversos. Os guardas costumam aconselhar os alunos a
obedecerem aos professores e a valorizarem o estudo.
e) Trânsito: o trabalho desse grupamento consiste na identificação e autuação de
veículos estacionados em locais proibidos. Antes de autuarem um veículo, costumam apitar
três vezes para verificar se o condutor aparece no local. No caso do condutor aparecer,
dependendo da sua postura, o guarda autua/reboca o veículo ou não. Se o condutor chega
como uma postura pacífica e reconhece no guarda a figura de autoridade, os guardas
explicam qual foi a infração cometida e não autuam o condutor. Por outro lado, se o
motorista questiona sobre o motivo da autuação ou responde de maneira ríspida ao guarda,
o veículo é autuado e se houver um reboque disponível, o carro é levado para o Depósito
de Veículos. Quando o condutor não aparece, os guardas preenchem o talão e deixam
uma via no veículo. Porém, o aviso não é dado quando os guardas atuam em áreas violentas
da cidade. Nesses casos, preenchem rapidamente o talão e deixam no veículo. Ao agirem
dessa forma, dizem que estão pensando na sua própria segurança, já que não possuem uma
arma de fogo para utilizarem como instrumento de defesa pessoal.
A análise dos arranjos institucionais e da estrutura organizacional da GCMN
permite a identificação dos reflexos produzidos pela interferência do poder público
municipal e pela presença de agentes de outras instituições de segurança na Instituição. A
incorporação do modelo hierárquico e de algumas das práticas institucionais presentes por
exemplo, na Polícia Militar corroboram para a valorização do modelo repressivo de
atuação em detrimento da realização de atividades relacionadas à organização dos espaços
públicos, à prevenção de delitos ou acidentes e à administração de conflitos.

A ATUAÇÃO DA GCMN A PARTIR DA CRIAÇÃO DE UM SISTEMA


CLASSIFICATÓRIO

A GCMN adota diferentes formas de abordagem e de condução das ocorrências


nas quais evidenciam-se a utilização de um modelo classificatório que divide basicamente
a sociedade em dois grupos sociais: clientes e cidadãos. São considerados cidadãos os
indivíduos que respeitam as leis e que reconhecem nos guardas municipais a figura de
autoridade. Por outro lado, os clientes são os indivíduos que além de não atuarem em
conformidade com a lei, confrontam a ideia de ordem estabelecida pelos guardas.

36
As diferentes formas de abordagem destinadas a esses dois grupos normalmente
são orientadas e justificadas pelo uso do bom senso. Essa categoria pode ser compreendida
a partir de duas perspectivas: a primeira está relacionada às concepções individuais e
pessoais dos agentes na forma como percebem e devem se comportar no mundo. A
segunda refere-se ao conhecimento adquirido a partir da experiência profissional, seja pelo
trabalho na GCMN ou em experiências anteriores em outras instituições de segurança
pública. Segundo MIRANDA (2002), a utilização do bom senso é uma prática recorrente
na burocracia brasileira na qual os agentes utilizam do seu poder discricionário de avaliar,
decidir e agir a partir de contextos particulares e não a partir de regulamentos ou leis.
No intuito de exemplificar a utilização de categorias para definir os indivíduos,
apresentarei alguns exemplos que pude identificar durante a realização do trabalho de
campo. Para os guardas, um exemplo de cidadão, são os idosos que mesmo de forma
irregular comercializam em pequenas barracas ou em caixotes, produtos como pregadores
de roupa, pente, panos de prato, sombrinhas e doces. Os guardas se reportavam a esses
indivíduos como “senhor (a)” e o tratamento era sempre cordial, respeitoso e por vezes
informal.
Nesses casos, os guardas solicitavam que as mercadorias fossem vendidas longe dos
seus olhos, em ruas laterais. Desse modo, a atividade não era tão exposta. Assim, os
camelôs não perdiam suas mercadorias e os guardas não eram punidos pelos graduados.
A partir dessa primeira abordagem, os guardas continuavam o patrulhamento. Após algum
tempo, retornavam para verificar se as mercadorias estavam sendo comercializadas no local
por eles indicado. Mesmo se não estivesse, os guardas não recolhiam as mercadorias.
Tinham receio de serem julgados negativamente pelas pessoas que ali transitavam, o que
reforçaria a imagem negativa que possuem na cidade.
Além da preocupação com a própria imagem, os guardas não recolhiam as
mercadorias desse grupo por uma questão pessoal. Do seu ponto de vista, esse tipo de
camelô é considerado como um trabalhador que, diante da crise econômica, busca de
alguma forma garantir o sustento de sua família. Quando são obrigados pelos graduados a
recolherem essas mercadorias, dizem sentir-se envergonhados.
A mesma postura não era adotada com os indivíduos que compõem o grupo dos
clientes. Eram eles: os camelôs que comercializam dvds piratas, os flanelinhas (guardadores
de carro que não eram cadastrados na prefeitura para exercerem essa função) e os hippies
(grupo que produzia e comercializava bijuterias).

37
Por vezes, os guardas não abordavam os vendedores de dvds piratas. Utilizavam
como justificativa o fato de que estariam “enxugando gelo4”. No seu entendimento, a
apreensão das mercadorias não produziria grandes efeitos no que se refere a continuidade
da atividade. Os camelôs estariam acostumados com o “perde e ganha” diário. Num dia
conseguiam vender, no outro perdiam suas mercadorias para os guardas. Do ponto de vista
dos guardas, esse tipo de apreensão deveria ser realizada pelos fiscais de postura do
município ou pelos agentes da Polícia Civil.
Quando decidiam ou eram ordenados a apreender esse tipo de mercadoria, os
guardas atuavam da seguinte forma: escondiam-se nos espaços vazios existentes entre as
barracas que foram montadas pela Prefeitura nas ruas do Centro ou nas lojas de
eletrodomésticos onde os camelôs costumavam guardar os dvds. Os dvds recolhidos eram
encaminhados para o Depósito Público Municipal para serem destruídos.
A decisão de recolher as mercadorias normalmente estava relacionada com a
postura adotada pelos camelôs. Os guardas não admitiam que as mercadorias não fossem
recolhidas no período em estivessem circulando pelos locais onde elas costumavam ser
comercializadas. Para eles, a atitude do camelô era compreendida como uma falta de
respeito, como o não-reconhecimento dos guardas enquanto figura de autoridade.
Os dias posteriores as apreensões de mercadorias eram marcados pela
preocupação dos guardas. Era comum acontecerem confrontos após a apreensão de uma
grande quantidade de dvds piratas. O confronto iniciava com uma discussão e por vezes
terminava com agressões físicas. Os camelôs atiravam paus e pedras nos guardas e os
guardas utilizavam os armamentos menos-letais, como a tonfa, o aspargidor e o taser. Para
os guardas, o confronto só acontecia porque esse tipo de camelô possui ligação com o
crime organizado, seja por serem ex-presidiários ou por cometerem pequenos delitos nas
ruas.
Os flanelinhas também se enquadram nesse grupo. Como os flanelinhas só podiam
ser encaminhados a delegacia com a presença da vítima e na maioria das vezes elas não
estavam dispostas, por conta do medo ou da falta de tempo, os guardas já iniciavam a
abordagem com um tom de ironia: “Bom dia/Boa Noite, cidadão!”. Na tentativa de impor
sua autoridade, além de agir de forma mais truculenta, era comum utilizarem durante a
abordagem a expressão: “Nós somos autoridades! Vocês tem que respeitar!”. Esperavam

4
Trata-se de uma ação que não alcança o objetivo pretendido

38
assim, que os flanelinhas em algum momento revidassem com palavras ou agressões física,
o que possibilitaria encaminhá-los à delegacia.
Em relação aos hippies, no início as abordagens eram muito parecidas com a
realizada com os idosos. Os guardas explicavam que as mercadorias não poderiam ser
expostas nas lonas estendidas nas calçadas ou esticadas em bastidores, devendo ser
comercializadas em um local previamente determinado pela Prefeitura. Porém, com o
passar dos dias, com o aumento no número de integrantes do grupo e do volume de
mercadorias, as abordagens passaram a ser mais frequentes e de forma mais repressiva. Em
resposta, os hippies começaram a questionar a atitude dos guardas, afirmando que por
serem artesãos tinham o direito de expor e vender sua arte em qualquer local. Ao adotarem
essa postura, os guardas entenderam que os hippies estavam ficando abusados, assim como
os camelôs de dvds.
Visando acabar com esse conflito, durante o patrulhamento noturno do (GPE),
uma das guarnições decidiu dentro da viatura que era hora de dar o bote5. Ao se
aproximarem do local onde os hippies costumavam ficar, os guardas desembarcaram e
apreenderam as mercadorias, colocando-as em um saco transparente e lacrado. Uma parte
do lacre foi entregue a um hippie. Assim, após o pagamento de multa, ele poderia
recuperar as mercadorias levadas para o Depósito Público. Algo que na maioria das vezes
não acontecia, já que grande parte dos produtos comercializados não possuem nota fiscal
ou o valor da multa é superior ao valor das mercadorias.
Recordo-me que durante essa abordagem, o motorista permaneceu na viatura
enquanto os outros dois guardas da guarnição se aproximaram do guarda responsável por
recolher as mercadorias. O objetivo dessa distribuição era garantir a segurança da
guarnição. A condução dessa ocorrência foi marcada por uma intensa discussão. Os
guardas chegaram a cogitar a possibilidade de utilizarem o gás de pimenta ou de levarem
os hippies para a delegacia. Porém, depois de conversarem entre si, um dos guardas
convenceu a guarnição que se agissem dessa forma seriam reprovados pelos populares que
ali circulavam. Com isso, após algum tempo, o coordenador da guarnição ordenou que os
guardas retornassem para a viatura. Ao se retirarem do local, os guardas permaneceram
apreensivos, pois acreditavam que os hippies poderiam atirar pedaços de madeira ou pedra
na direção da viatura ou se vingarem posteriormente em alguma guarnição.

5
A expressão significa que é o momento de apreender as mercadorias. Esse procedimento é normalmente
realizado por um ou dois guardas. O restante da guarnição permanece observando a movimentação e dando
proteção aos guardas que estão realizando a ação.
39
Como podemos observar a partir dos exemplos expostos, os guardas utilizam de
diferentes formas de abordagem e de condução das ocorrências na tentativa de legitimar-
se enquanto figuras de autoridade. Essas práticas evidenciam além do caráter excludente e
hierarquizante que estão presentes em nossa sociedade, a forma como o conflito é
compreendido pelos agentes. Mesmo que sociologicamente, o conflito seja reconhecido
como um elemento positivo, ou seja, estruturador das relações nas sociedades modernas
(SIMMEL, 1999) nas sociedades não ocidentais (PRITCHARD, 1978), os grupos sociais
não o observam dessa mesma forma. Por isso, sempre que se deparavam com uma situação
conflituosa, os guardas buscavam resolvê-la, seja de forma pacífica ou através de um
modelo repressivo de intervenção.

CONCLUSÃO

Inserida no recente processo de municipalização da segurança pública, a GCMN


enfrenta um momento de ampliação de suas atividades e de dificuldade na construção de
uma identidade própria enquanto instituição de segurança pública. Dificuldades que se
revelam desde o processo de formação, no qual se contrastam as propostas de um modelo
que busca desenvolver a capacidade reflexiva e de um modelo tradicional que é
fundamentado no conhecimento de procedimentos e técnicas e na incorporação de
simbolismos e valores cultuados pelas Instituições até a utilização de um modelo
classificatório que divide a sociedade em dois grupos: clientes e cidadãos.
Diante desse contexto, foi possível identificar a partir da utilização de uma
metodologia qualitativa, que apesar de ser uma instituição civil, a GCMN desenvolve uma
consciência militarizada que reverbera em certas práticas institucionais. Ao ter sua história
permeada pelo modelo tradicional de polícia, reproduz os modelos de formação,
organização e atuação, incorporando alguns dos simbolismos militares e mecanismos de
controle social. Produzindo assim, um ethos indefinido – e flutuante - entre os paradigmas
militar e civil.
A construção dessa “Nova Polícia” tem como alicerce a indefinição sobre o perfil
de atuação e a ausência de um protocolo institucional para a condução das ocorrências.
Situações que induzem a reprodução de valores excludentes e hierarquizantes presentes
em nossa sociedade.
Nesse sentido, criou-se uma diferença na forma como os agentes conduzem as
ocorrências atendidas. Suas práticas ora são orientadas pelo compartilhamento das regras

40
e pela prática da mediação de conflitos e ora por uma atuação mais rigorosa e repressiva.
Essa alternância tem produzido situações de conflito e de arbitrariedade e que de certa
forma reforçam a imagem negativa construída pela sociedade em torno das ações realizadas
pela Guarda Civil Municipal de Niterói.

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41
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42
INSEGURANÇA SOCIAL E A BUSCA PELA COMUNIDADE

Ana Laura Cunha BARCI6

Resumo: As rupturas dos vínculos de existência e proteção, que começa com a perda significativa
do papel da família e da religião dando ascensão ao Estado Social, e prossegue com a diminuição
da política concomitante a vitória da economia de mercado, sobrecarregam no indivíduo o esforço
permanente em constituir a si mesmo. A nova economia põe ênfase na autonomia do individuo, e
cria uma atmosfera em que apenas pessoas fracas pensam em colaboração, fazendo com que a
organização de grupos se dê, principalmente, com base de identidades. Partindo desses princípios,
esta pesquisa propõe analisar os condomínios fechados horizontais, como indicativo de mudança
relacional contemporânea e da ascensão do domínio privado, que retira o papel político dos
indivíduos. Para tanto, é preciso buscar os sentidos antropológicos de comunidade e indivíduo,
questões fundamentais de tal ciência.

Palavras-chave: Condomínios fechados. Insegurança social. Urbanização.

INTRODUÇÃO

As mudanças que se iniciaram com a queda do antigo regime, passando pela


modernidade, chegam atualmente, na era global, com dimensões alastrantes. A última
década do século XX foi catalizadora das modificações no sentido da vida social, da lógica
econômica e do sistema político. Ulrich Beck (1997) irá chamar de primeira modernidade
o período entre o século XVIII e os finais do século XX, meados da década de 1980, e de
segunda modernidade, desse período até a contemporaneidade. O primeiro momento se
caracteriza pela existência de um centro que ordenava a vida social, ou seja, o Estado-nação
como ator soberano, produtor de identidade nacional e de uma comunidade de destino.
Essa característica não permanece na segunda modernidade, na qual existe um processo
de erosão da soberania do Estado-nação, dando lugar aos atores empresariais, às indústrias
transnacionais e managers. Um segundo elemento distingue as duas modernidades, o
território. Se na primeira era bem delimitado pelas fronteiras nacionais, na segunda, o
fenômeno dos fluxos econômicos, mercantis e migratórios, rompe com essa delimitação.
O terceiro ponto de divergência se evidencia através dos fundamentos culturais e sociais,
se antes existiam sólidos vínculos entre famílias, sindicatos, partidos, dentre outros;
posteriormente, tais fundamentos valorativos se dissolveram, o que nos leva ao quarto
ponto de distinção; a modernidade gerou processos de individualização institucionalizada,

6
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP FCLAr. Financiamento: CNPq.
Email: anacunha_28@hotmail.com

43
respeitando os limites impostos pela sociedade civil, que sofre erosão na segunda
modernidade. A quinta característica recai na capacidade que o Estado tinha em construir
barreiras protecionistas no âmbito econômico, politico e cultura, através de políticas
públicas. Mas agora, cada vez mais se necessita da abertura das fronteiras e de um novo
sentido de cosmopolitismo, que gera a interdependência econômica entre os países. Em
sexto lugar se encontra a linearidade das formas de vida que existiam até o século passado,
envolvendo o indivíduo e o cidadão em um sentimento nacional. Atualmente a diversidade
e a multiplicidade das formas de vida são bem maiores. O sétimo ponto será o melhor
abordado neste estudo, que é sobre o a função que tinha o Estado social de controlar as
incertezas e proteger a existência dos indivíduos, que na segunda modernidade se
transforma a partir da erosão dos direitos sociais e econômicos, e dos direitos
fundamentais. Por último, a oitava característica procura resumir e representar todas as
outras, a erosão do Estado social, construído na modernidade, traz como consequência, o
efêmero, o transitório, o contingente e, sobretudo, a sensação de risco.
Partindo desses princípios, este estudo propõe analisar um fenômeno urbano que
representa o momento atual de crise da vida pública e a vitória plena do sistema capitalista.
Tal ascensão do domínio privado tem nos condomínios fechados horizontais, o indicativo
de mudança relacional entre indivíduos e entre cidadãos e suas cidades, além de evidenciar
as questões de insegurança, mencionadas anteriormente, que desencadeia o debate acerca
da violência, do medo e da liberdade. Para delimitar melhor o universo da pesquisa,
adianto que este trabalho tenta entender um fenômeno urbano relativamente novo, os
condomínios fechados que fazem parte de um conceito mais amplo, os “enclaves
fortificados”, categorizados por Tereza Caldeira como:

Espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo,


lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento.
Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera
pública tradicional das ruas para os pobres, os “marginalizados” e os sem-
teto (CALDEIRA, 2000, p. 211).

Visto que o assunto já foi amplamente abordado em metrópoles, e no caso


brasileiro principalmente na cidade de São Paulo, procuro evidenciar como esse processo
representa um padrão de construção e organização internacionalmente reconhecido.
Abordo as cidades de porte médio no interior do estado de São Paulo para demonstrar a
expansão desse modelo de moradia e de vida, que não existe apenas em grandes centros

44
onde a violência e o crime atingem constantemente os habitantes da cidade, mas também
em lugares no qual apresentam baixos ou médios índices de perturbação. A hostilidade ao
outro, o potencial perigoso, surge à medida que seus direitos não são assegurados, ou seja,
quando se extingue a confiança no poder judiciário e na ação policial. Partindo da premissa
que a violência e o medo geram novas formas de segregação espacial, as classes mais altas
da sociedade usam a justificativa da proteção para legitimar novas tecnologias de exclusão
social e a privatização da segurança.

UM SONHO DE SEGURANÇA

A promessa que o progresso instaurou no século XX, principalmente na década de


1940 em diante, era otimista; mas resultou, como vimos nas décadas seguintes de 1980 e
1990, em crises e tensões. As aparições mais frequentes de câncer, depressão, ansiedade,
estresse e obesidade, são evidências de descarregamento e excessos do medo na sociedade.
Ironicamente, usa-se todas essas psicopatologias como fontes de lucros comerciais gerados
pelo medo, não só pela indústria farmacêutica, mas através dos investimentos em segurança
privada. O capital do medo promove e reforça nossas inseguranças, que segundo Bauman
(2009), já tem vida própria. A evidência escancarada deste temor se confirma na arquitetura
como forma de linguagem e de expressão da cultura, pois se até meados da década de 90
ainda se construíam casas com pequenas cercas, alpendres, janelas e portas dando
diretamente para rua, desde então, investem-se cada vez mais em estratégias de proteção,
tais como muros altos, cercas elétricas, câmeras de segurança, guaritas, etc.
Quando as instituições de ordem não conseguem cumprir com suas obrigações e
quando a polícia age fora da lei, cometendo abusos, a opinião popular tende a desacreditar
na ação pública e encontra nos serviços privados, a solução de seus problemas de proteção.
Nada mais compreensível, pensamos. No entanto, o crime é apenas um aspecto da
violência, pois a psicologia do descrédito instaurou a ideia de que todos precisam
desconfiar de tudo. Bauman (2009) propõe que a incapacidade do ser humano em
compreender por que os regulamentos estabelecidos pela própria sociedade não vigoram
ou porque não representam os benefícios que deveriam, é aquilo que gera a dúvida e o
receio. Ainda nas palavras de Bauman: “a aguda e crônica experiência da insegurança é um
efeito colateral da convicção de que, com as capacidades adequadas e os esforços
necessários, é possível obter uma segurança completa” (BAUMAN, 2009, p. 15). A

45
ineficiência das políticas de governo faz com que, tanto a classe baixa, quanto as classes
média e alta, sintam-se impotentes de alguma forma.
Constitui-se assim, um novo sentido de espaço e de cidade, que não se baseia tanto
pela formação de lugares públicos para integração entre os cidadãos, mas sim, por uma
lógica que permita o fluxo e o movimento constante, alimentando a economia atual. Na
pósmetrópole, como designa Cacciari, “a rapidez das transformações impede que no
âmbito de uma geração se conservem memórias do passado” (CACCIARI, 2010, p. 33).
As modificações relacionais ocasionadas entre sociedade e tempo, fazem da cidade atual,
uma inimiga, no sentido de que não permite mais a pausa, não permite mais que seus
habitantes descansem em suas casas e construam identidades, pois o território pós-
metropolitano é apenas “lugar de passagem”, e não de permanência.
Estas transformações urbanas acontecem em escalas globais, por isso originou a
questão de que a cidade, tal como se conhecia, tinha chagado ao fim, pois a globalização
da atividade econômica sugere que o lugar já não tem mais importância. Contrapondo
partes desta afirmação, Saskia Sassen (1998) propõe uma nova análise das cidades, uma
perspectiva transnacional, pois apesar da conexão global ser baseada, não por um sentido
de cooperação, mas por uma rede de extração e lucro, existe uma dimensão espacial da
globalização econômica, visto que a indústria da informação exige vasta infraestrutura física,
colocando as grandes cidades em papel estratégico no sistema econômico global. Não nega-
se que as cidades passam por tais reestruturações e reesignificações, mas retomando
Cacciari, é inegável também que a nova lógica de ordenação social é medida pelo tempo,
e não mais pelo espaço.

Nós moramos em territórios cuja métrica já não tem qualquer sentido


espacial, mas quando muito unicamente temporal. Fazemos todas as
nossas contas em base ao tempo, não ao espaço; já ninguém pergunta a
que distancia fica determinada cidade, mas quanto tempo demora pra
chegar lá. O espaço tornou-se apenas um obstáculo (...). A vingança do
espaço é a de o sentirmos como impedimento, como maldição
(CACCIARI, 2010, p. 56).

Na era da globalização econômica, para as grandes transnacionais, o espaço já não


é mais um problema, em decorrência do auxílio das novas tecnologias. Contudo, a
incidência de grandes corporações nas cidades, com megaprojetos, segundo Sassen,
introduz rigidez no tecido urbano, transformando o espaço e enfatizando seu sentido de
“maldição”. Tais tendências impedem uma das questões mais interessantes da cidade viva,

46
que é o contato entre muitas pessoas, de variadas culturas e procedências. Como vimos
anteriormente, esse aspecto cultural, do encontro da diversidade, ganha conotação negativa
na contemporaneidade, e por tal motivo, a construção de grandes condomínios fechados
são vistos como um bem maior, como soluções individuais aos problemas sociais
generalizados.
Atento às consequências da modernidade, Bauman (2009) assinala que em todos
os momentos da história, as cidades foram espaços de movimentação de estrangeiros,
gerando certo desconforto e hostilidade entre os habitantes. Nesse ponto, insere-se uma
contradição presente na maioria das cidades do mundo: se originalmente foram
construídas para dar segurança aos seus moradores, em contraposição aos perigos da
aldeia, dos saques e invasões, cada vez mais estão associadas ao perigo. Somando isso ao
descrédito das instituições de ordem, o medo do desconhecido se torna o principal fator
da escolha dos indivíduos por alheamento do público, ou do seu repúdio.
Atualmente, justifica-se a segregação motivada pelo sentimento de insegurança, e
embora as cidades há muito sejam representadas por tal sensação, ao longo dos tempos os
modos pelos quais se evidencia essa percepção transformaram-se consideravelmente,
principalmente através do uso de novas tecnologias. Marc Augé (2013) aponta que o medo
global é muito mais difuso e indistinto, devido ao papel das mídias de dissipar notícias
sobre terrorismo, roubos, desempregos, cataclismos, que juntas transformam o medo em
uma forma mais abstrata. Diante disso, o futuro se projeta mais como forma de ameaça do
que de esperança, e o “desaparecimento do amanhã”, como horizonte operável,
transfigura-se em ansiedades presentes.
Hannah Arendt (2008) aponta que, na Grécia Antiga, o conceito primordial de
“polis” se atribuía a “muros circundantes” e não diretamente ao conceito político de
Estado, como se imagina. Porém, aquilo que os muros guardavam era o espaço da ação,
do exercício da liberdade política. Analisando a tendência contemporânea de construções
dos condomínios fechados, percebemos um contraste com o exemplo dos muros das polis:
não promovem a vida pública, mas sim seu contrário: o privado e o individual são mais
estimados. Geram assim as “zonas fantasmas” que Bauman (2009) aponta, através desse
conceito de Schwarzer, como espaços urbanos privilegiados, onde habita ou circula uma
pequena parcela da elite populacional, evidenciando a polarização espacial e social.
É também o que Amendola (2000) chama de “cidades blindadas”, oposta a cidade
real, pois se assemelha mais ao sonho e ao desejo. Tal modelo urbano divide os cidadãos
entre expropriados, aqueles que não são capazes de criar e realizar sonhos, e os

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aponderadores, aqueles que têm os meios necessários para produzir sonhos. Secchi (2014)
também traz uma visão dicotômica presente na cidade, que se divide entre o rico e o pobre.
Os pobres são aqueles privados da oportunidade de usar alguns serviços essenciais para a
sobrevivência ou até mesmo aqueles que vivem em partes da cidade rotulada
negativamente. Portanto, a denominação de rico ou pobre não diz respeito somente à posse
material do indivíduo. Mais do que separação entre exploradores e explorados, que
caracteriza uma sociedade desigual, evidencia-se agora a dicotomia entre os incluídos e os
excluídos (AMENDOLA, 2000), marcando uma distância essencial entre os que estão
dentro e os que estão de fora. Secchi ainda nos adverte para a possibilidade ameaçadora
da incerteza de um “rico” vir a ser “pobre”, tamanha a facilidade de expulsão que a
sociedade apresenta atualmente, no entanto, o contrário disso, a integralização de um
pobre na comunidade rica, é uma realidade reduzida e quase impossível.
A insegurança, diante das crises econômicas, políticas e culturais, cria essa ameaça
constante à miséria, à pobreza, à indistinção, instaura o clima de incertezas, e disso deriva
a “cidade espetáculo”, que segundo Amendola, é não só a forma privada de atingir a
segurança, mas também está baseada na desigualdade social e em sua aceitação e
reconhecimento, pois através dela, é possível a criação da distinção e de uma ilusão de
promoção social. O sonho só será alcançado através do consumo de distinção e a
propagação deste ideal é o que alimenta o sistema capitalista, e no caso que mais interessa
a este estudo, a especulação imobiliária. Para aqueles que possuem poder aquisitivo, uma
casa valorizada e segura é um sonho possível, mas para os excluídos esse sonho se
transforma em pesadelo, e o sentimento de incapacidade e incompetência às vezes se
reverte em violência, fazendo com que os incluídos queiram se distanciar ainda mais em
suas bolhas homogêneas.

A cidade é objeto e desejo de repulsão, e pode ser simultaneamente


percebida como área segura ou de risco. A cidade, que deveria ser o
produto mais alto da racionalidade humana, se descobre vulnerável mais
do que nunca ao medo e ao surgimento de intensa emotividade. As tribos
urbanas se formam frequentemente também como reação emotiva ao
perigo (AMENDOLA, 2000 p. 313).

Muitas vezes, esses grupos que surgem diante das inseguranças se formam por
interesses individuais, podendo ser denominados de comunidade estética (BAUMAN,
2003), pois com a mesma facilidade com que se constroem, se dissolvem, assegurando
assim que seus membros, que enfrentam problemas pessoais, enfrente-os individualmente.

48
A mídia apresenta a ideia de que viver sozinho e encarar as dificuldades derivadas da
solidão, faz do indivíduo, um membro da comunidade de solitários. Geralmente, é elegido
um ídolo ou líder dentro dessa comunidade, para criar a ilusão de que “a vida pode ser
construída em areias movediças” (BAUMAN, 2003, p. 65). Entrementes, a comunidade
estética não promove a sedimentação de laços duradouros entre seus membros e o líder,
assim como também não tece entre eles uma rede de responsabilidade ou compromisso a
longo prazo.
Dessa forma, o isolamento é a resposta mais aceita nas estratégias de proteção, e a
comunidade, nesse caso a comunidade cercada dos condomínios fechados, é a prova de
intrusos e de alteridade. Mas, de fato, não acompanha as outras características que compõe
a comunidade tradicional, aquela que busca a integração de seus membros. Ela se apresenta
apenas como salvação individual de um problema que é compartilhado. O sonho de
segurança e liberdade consegue se vender porque a indústria da segurança usa crimes reais,
exemplos cotidianos de violência, para vender seus produtos, já que assim, cria uma
sensação de proximidade entre os indivíduos e todos os problemas que acontecem ao
redor do mundo. É ainda melhor para a indústria, como notou Amendola, quando o
delinquente real é flagrado e julgado com ajuda das imagens gravadas por câmeras de
segurança e outros produtos que servem como mecanismos de defesa e controle. Esquece-
se assim, diante de toda essa criação do medo, a função positiva que o terreno não familiar
dispõe, que é o de acostumar e treinar o ser humano a correr os riscos oriundos da cidade,
da vida pública, e no encontro com os estranhos.

Só poderiam assumir sua responsabilidade as pessoas que tivessem


dominado a difícil arte de agir sob condições de ambivalência e incerteza,
nascidas da diferença e variedade. As pessoas moralmente maduras são
aqueles seres humanos que cresceram a ponto “de precisar do
desconhecido, de se sentirem incompletos sem uma certa anarquia em
suas vidas”, que aprenderam a “amar a alteridade” (BAUMAN, 1999, p.
54).

Sennett (1988) declara a cidade como um modelo de diversidade e complexidade


de pessoas, possibilitando a experiência social. Porém o medo da impessoalidade acaba
por dissolver este molde. O sentimento de “retribalização”, que busca a absorção nas
relações intimistas, é evidenciado no retorno à comunidade, que utiliza a privatização da
segurança para promover um estilo de vida segregacionista e incompatível com o restante
da cidade. “Neste sentido, a absorção nas relações intimistas é a marca de uma sociedade

49
incivilizada” (SENNETT, 1988, p. 414). Sennett crê que a cidade é o lugar propício para
a vida social ativa, como foi há muito tempo, antes do “adormecimento” do ser humano
civilizado.

SEGREGAÇÃO E PRIVATIZAÇÃO DA SEGURANÇA

Visto que anteriormente realizei uma pesquisa sobre condomínios, para averiguar
a principal motivação de suas construções na cidade de Franca, diante dos níveis baixos de
violência, detenho-me agora, não nesta época que remete aos finais dos anos 1990, mas
nos dias atuais que representam um grande crescimento dos condomínios fechados
horizontais, tonando-se popular inclusive entre as classes mais baixas. Para tal
compreensão, investiga-se o início da construção dos condomínios fechados em grandes
cidades brasileiras, como São Paulo e Rio de Janeiro, quais as formas de sociabilidade que
encontramos dentro dos muros referidos, e como isso afeta uma cultura urbana que em
princípio se baseia no contato entre diversas pessoas diferentes, de variadas procedências.
Além disso, procuramos discorrer sobre o paradoxo que apresenta o condomínio
fechado: através do individualismo e do distanciamento da multidão da cidade, aqueles que
procuram os condomínios como forma de habitação alegam que além de segurança
buscam por um espaço onde possam ser mais livres, onde possam caminhar pelas ruas,
deixar os filhos brincando do lado de fora da casa, entre outros. Em suma, a contradição
se evidencia no que, de um lado, o espaço fechado aclama a necessidade de privacidade,
individualidade, e de outro, necessita de comunidade. Assim, este projeto não tem
pretensão de, ao final, elaborar uma proposta resolutiva para estas dificuldades, e nem
conferir à intervenção arquitetônica, caráter de salvação. Contudo é preciso problematiza-
las e buscar oferecer a visão de um universo significativo que contribua para novos projetos
urbanos e sociais.
Como objetivos específicos, coloca-se primeiramente, discutir o processo de
urbanização de São Paulo em comparação com os processos em cidades médias do interior
paulista, representadas por Franca, visto que a análise sobre a cidade não foi esgotada na
pesquisa anterior e necessita de mais estudas sobre seu caso. Ressaltando, sobretudo, o
surgimento dos condomínios fechados horizontais, pois representam um fenômeno
mundial no contexto de globalização. Em segundo lugar, examinar as formas de
experiência do espaço mais homogêneo, e tentar apreender as novas formas de relação que
surgem ao final do século XX e quais as consequências destas para a sociedade. Por último,

50
procuramos revelar que o espaço do condomínio fechado representa um desafio às formas
tradicionais de vida comunitária, devido as transformações de expansão e aceleração nas
cidades que cada vez mais não nos permite a pausa em nosso cotidiano, e não permite o
recolhimento em nossas habitações.
A recente forma de moradia, que se expressa nos condomínios fechados, tem
diversas prerrogativas, visto que nos Estados Unidos foram notadas como formas de fuga
da cidade com o objetivo de formar comunidades mais organizadas. Já em São Paulo,
Brasil, fica evidente que os primeiros condomínios não intencionavam sair do centro da
cidade, mas sim continuar habitando o lugar de maior prestígio social e ter, ao mesmo
tempo, a segurança que prometiam os subúrbios americanos. No entanto, algumas
qualidades em comum com a ideia americana, caracterizam a nova medida segregacionista
dos chamados enclaves fortificados, que nas palavras de Teresa Caldeira,

Incluem conjuntos de escritórios, shoppings centers, e cada vez mais


outros espaços que têm sido adaptados para se conformarem a esse
modelo, como escolas, hospitais, centros de lazer e parques temáticos.
Todos os tipos de enclaves fortificados partilham de características
básicas. São propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor
do que é privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é
público e aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por
muros, grades, espaços vazios e detalhes arquitetônicos (CALDEIRA,
2000, p. 258).

Preocupado com a taxonomia dos conceitos criados para classificar estes


fenômenos urbanos, Peter Marcuse (1997) nos mostra que diferente da noção de
guetificação clássica, os condomínios fechados devem ser analisados em suas
especificidades, visto que, enquanto o primeiro é resultado involuntário da segregação
espacial de um grupo, que permanece em uma política e relação social subordinada à
sociedade, os condomínios fechados – Marcuse utiliza-se do termo enclaves exclusivos –
são formados voluntariamente por um classe que se utiliza da exploração e da
discriminação para promover a segurança e uma economia de status. O autor ainda faz
distinção entre as formas recentes de formação dos guetos, denominados guetos de
exilados, pois em contraste com a forma clássica, estes são excluídos e apartados
completamente da sociedade, visto que não possuem um ligamento com a economia
convencional. Além disso, faz outra diferenciação ao colocar um quarto conceito, o de
citadel, que pode ser traduzido como cidadela ou fortaleza, já que diz respeito às

51
construções estabelecidas pelos grupos de maior renda e maior status, sendo a Trump
Tower o maior exemplo que caracteriza este conceito, ligado estritamente ao luxo.

MECANISMOS DE SEGURANÇA E LIBERDADE

A ordenação espacial é importante componente para a própria ordenação da


memória e do psíquico, quando o indivíduo passa a não se sentir parte de uma cidade ou
de uma região. As mudanças urbanas podem afetar essa sensação e por isso o retorno à
casa, ao grupo homogêneo, é tão valorizado atualmente. Em Franca, mesmo com as
dificuldades de se garantir a segurança nos condomínios fechados, é no lar que os
habitantes tentam investir para que atinjam certo nível de tranquilidade. É a caracterização
da ordenação individualizada do espaço, como observou DaMatta (1985), que além de
transparecer mais segurança, o espaço interno é ainda atributo da sociedade tradicional
brasileira, evidenciando diferenças na ética dentro e fora de casa, códigos que seguimos de
maneira distinta na rua e dentro do lar. Os discursos dos moradores de condomínios
giraram muito mais diante da casa, caracterizando um discurso pré-político, do que da rua
ou até em outras areas dentro do condomínio, que caracterizariam os mecanismos
impessoais e, portanto, mais perigosos.
O isolamento, a restrição e vigilância transformaram-se em símbolos de status. Em
uma cidade que cresceu rapidamente com a riqueza da indústria calçadista, morar em
algum desses condomínios significou fazer parte do progresso que assolou todo o estado
de São Paulo nas ultimas décadas do século XX. Os enclaves fortificados de que falou
Teresa Caldeira, e, portanto, os condomínios em questão, são ambientes heterogêneos,
que valorizam a vivência entre pessoas seletas, e têm por preferência a ruptura com o resto
da cidade, da qual derivam as interações indesejadas (entre mendigos e pessoas com posses,
por exemplo), a movimentação de estranhos entre si mesmos, o perigo e a
imprevisibilidade das ruas. “Eles estão transformando a natureza do espaço público e a
qualidade das interações públicas na cidade, que estão se tornando cada vez mais marcadas
por suspeita e restrição” (CALDEIRA, 2000, p. 259). Portanto, a escolha pelos
condomínios demonstra as fronteiras entre grupos sociais, hierarquias promovendo
diferenças e desigualdades.
A ideia que parece prevalecer é que as famílias querem oferecer aos filhos a
oportunidade de “brincar fora de casa”, como seus pais puderam fazer em décadas
anteriores, com a diferença que utilizavam a via pública para isso. Ironicamente, um

52
condomínio fechado parece oferecer maior liberdade na concepção de seus moradores do
que o resto da cidade. Além deste tipo mencionado de liberdade, o de ir e vir e preservação
da integridade, as classes média e alta então criando seu “sonho de independência e
liberdade” (CALDEIRA, 2000, p. 272) através do uso expansivo dos serviços domésticos,
que de acordo com Saskia Sassen cresceram devido aos segmentos de alta renda que
buscam por empregados de baixa remuneração. São necessárias pessoas para atuarem
como seguranças e guardas, outras para realizar tarefas de “office-boys” com entregas e
busca de produtos, resolução de problemas em bancos e afins, e enfim, outras que
trabalhem na limpeza e organização de suas casas. Estas, majoritariamente mulheres, são
as empregadas domésticas que representam a “versão atual de um antigo padrão” que existe
no Brasil desde o período pós-escravista, no qual muitos ex-escravizados ainda
continuaram a atuar no serviço doméstico, ganhando um salário paupérrimo e indigno.
Em São Paulo, os estudos de Tereza Caldeira revelaram que para manter a ordem
privada, os moradores de condomínios fechados buscaram o distanciamento com as outras
classes do domínio das relações informais, adquirindo apenas seus serviços. Para ela, “o
problema central dos condomínios e edifícios parece ser como funcionar como uma
sociedade com algum tipo de vida pública” (CALDEIRA, 2000, p. 275), já que viam a
liberdade como algo que possibilitasse as extravagâncias ou qualquer atitude ausente de
regras e responsabilidade em relação aos vizinhos. A crítica da autora aos condôminos recai
na inexistência de criação de uma vida pública regulada por princípios democráticos,
responsabilidade pública e civilidade. No entanto, se formos observar os moldes francanos
de condomínios, nem sempre esse individualismo está presente, justamente por ser uma
cidade média, e por que na década de 90 quando começaram a ser ocupados, a população
da cidade ainda era bastante “provinciana”. Era mais fácil conhecer seu vizinho e
estabelecer algum tipo de contato na medida em que “não dá pra se esconder de seu
médico”, ou de outras pessoas que fazem parte do seu círculo de relações.
Recentemente com as novas construções de outros condomínios que já serão
formados por pessoas de outras gerações talvez a tendência seja o distanciamento e
individualismo entre os condôminos, visto o crescimento de Franca nos últimos anos. Em
2014, o Jornal Comércio da Franca publicou uma matéria sobre os novos condomínios
que estavam surgindo e sobre a “Arquitetura do Medo”. Uma das entrevistadas disse
abertamente que escolheu o isolamento à insegurança e medo constante. Dentro de casa
mais equipamentos, como alarmes sensíveis ao movimento completam o esquema de
segurança, que aciona a proprietária pelo celular na ocorrência de algum problema. Ela

53
calcula ter gasto mais de R$ 25 mil nesses itens, somada à mão de obra e construção de
muro e portão.

Foi a única maneira que encontrei para não ficar neurótica, pensando no
pior. Nunca fui assaltada nem roubada, mas não quero passar pelo o que
amigos e parentes já passaram. É o preço que temos de pagar pela falta
de segurança”, disse. Quanto perguntada se acredita que todo o aparato
pode, de fato, mantê-la segura, a comerciante falou que sente isso de
forma relativa. “Em algum momento precisamos entrar ou sair de casa
(JORNAL COMÉRCIO DA FRANCA, 30 de Dezembro de 2014).

Além das características de segregação e de proteção, os condomínios também


incorporam a sua lógica um caráter antiurbano, e em todos os anúncios encontramos
apelos à ecologia, saúde, lazer e bem-estar. Podemos encontrar nesse padrão as influências
de Ebenezer Howard e sua Cidade Jardim, que buscou equacionar a relação entre a cidade
e o campo. O urbanista culturalista concebia, como explica Jean-Louis Harouel, um
projeto para 32 mil pessoas, com 400 hectares urbanos circundados com um cinturão verde
agrícola de dois mil hectares. No centro se encontraria o espaço comercial a administrativo,
depois ao redor, as habitações e por fim uma zona industrial periférica. Na prática essa
ideia não veio a cumprir o que idealizava, visto que as cidades jardins, na Inglaterra, não
possuíam autonomia econômica e se converteram em “cidades-dormitórios” (HAROUEL,
1990).

CONCLUSÕES

Sentimos falta de comunidade porque sentimos falta de segurança, no entanto, o


retorno à comunidade atualmente é inconcebível, no sentido político, pois se coloca contra
a cidade, buscando soluções às inseguranças globais através da salvação individual quando
na realidade, estas são compartilhadas e generalizadas. O “medo onipresente”, de que fala
Bauman (2009), é responsável pela segregação que representam as casas com mecanismo
de proteção extrema. Guaritas, cercas elétricas, guardas noturnos e câmeras são cada vez
mais presentes na fisionomia da arquitetura. Além, é claro, da construção de condomínios
fechados identificados como uma experiência de segregação capaz de desintegrar o cidadão
de sua cidade. Resulta assim, que estas formas de retorno à comunidade são verdadeiras
fontes contemporâneas de ansiedade, pois se opõem à integração social com a justificativa
no medo e, além disso, encara-se o sofrimento ansioso como resultado de falhas pessoais,

54
enquanto que são consequências de uma realidade fluida, desregulamentada e muito
flexível. Algumas alternativas se apresentam através do apoio em políticas governamentais
para eliminar a pobreza, administrar a competição étnica e integrar as pessoas em
instituições públicas comuns. No entanto, sabe-se que a política do medo cotidiano afasta
os cidadãos de suas vidas públicas.
É necessário levar em conta o modo de reação das pessoas, dos políticos, do
governo, diante da crise de segurança urbana e utilizar isso para elaborar interpretações
sociais deste fenômeno. Pensando nisso, Amendola reuniu algumas propostas para
combater a insegurança, comparando, para isso, as reações dos países da Europa
continental, em contraste com o comportamento mais conservador da Grã-Bretanha e
Estados Unidos. Enquanto os primeiros investem em políticas de reforço da polícia,
somada à revisão das leias de cidadania e imigração, os segundos mantem a garantia dos
direitos já existentes, e principalmente no caso dos EUA, investem em armamento privado
e individual; também foi lá que o número de condomínios fechados cresceu de forma
exuberante. “Os espaços residenciais das cidades norte-americanas foram rapidamente
transformados por uma projeção orientada ao controle e à defesa, e pelos comportamentos
dos habitantes tendenciados pela contínua vigilância do próprio espaço” (AMENDOLA,
2000, p. 328). Entretanto, essa reação cria um panorama fragmentado ao dispensar a
dimensão pública da cidade.
Outra proposta se apresenta nas palavras de Cacciari

Jamais poderemos sentir-nos habitantes em lugares segregados do


conjunto do território; em lugares “protegidos” acabaremos por sentir-
nos ainda mais alienados que numa carruagem do metropolitano. Não
buscamos lugares separados, fechados, protegidos, para nos sentirmos
em casa. E também não podemos morar num comboio, num automóvel,
numa estação, num aeroporto... (CACCIARI, 2010, p. 60).

E complementa,

Para o território pós-metropolitano precisamos daquela architeturae


scientia de que os antigos já falavam: capacidade de construir lugares
adequados à utilização, lugares correspondentes às exigências e aos
problemas do próprio território. Assim sendo, políticos e arquitetos
deveriam tentar ultrapassar a monofuncionalidade, pensar em edifícios
realmente polivalentes (CACCIARI, 2010, p. 65).

55
As propostas apontam, sobretudo, para a necessidade de espaços simbólicos,
multifuncionais, que respeitem um logos, a varietas e concinnitas, que dêem lugar às
experiências cívicas. É também o que propõe o arquiteto italiano Gregotti Vittorio (2011),
para a sobrevivência da arquitetura e urbanismo e do sentido da cidade, é preciso aprender
com as diferenças para reconstrução de uma realidade física e cultural que se baseie na
memória e na história, ao contrário da arquitetura imponente, dos projetos dos “arquistar”
que promovem as construções grandiosas, luxuosas e tecnológicas, desvinculada com a
tradição histórica. Entrementes, essa arquitetura pode ser interpretada como linguagem
(Amendola, 2013) que expressa poder, riqueza e desejo, sendo estes fatores os que mais
caracterizam o tempo histórico contemporâneo sob o domínio do poder privado.
Por último, é interessante notar que a globalização parece oferecer uma enorme
liberdade de escolhas e possibilidades para todos, os cidadãos do mundo cosmopolita. No
entanto, observações empíricas evidenciam que neste mundo de livre-escolha, os
indivíduos agem como se não tivessem escolha. Optar por uma moradia em condomínios
fechados, não é uma atitude movida por um sentimento comunitário, mas ao contrário,
representa um movimento de desintegração social, de atomização e de anomia, que é
resultado da sensação de insegurança difusa e global. Assim a liberdade privada, negativa,
constrói sua legitimidade sem o uso da política ou de princípios cívicos e apresenta que o
desafio é justamente reestabelecer nexos e contatos entre as diversas comunidades
multiculturais que ganharam direitos nas últimas décadas, mas junto a isso, desencadearam
ondas de intolerância e violência contra as novas formas de vida, de diversidade. A
segurança é a condição necessária do diálogo entre culturas, é o fator sine qua non para
que comunidades venham a estabelecer uma conversa que, como almejou Bauman,
estimule a humanidade de sua união. Resta saber, se assegurado o direto e a segurança
individual, as responsabilidades também serão exercidas.

REFERÊNCIAS

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contemporânea. Madrid: Celeste Ediciones. 2000.

__________. Il brusio dela città. Le architetture raccontano. Napoli: Liguori. 2013.

ARENDT, H. A condição humana. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.

AUGÉ, M. Les nouvelles peurs. Paris: Éditions Payot. 2013.

56
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57
VÍTIMAS E VÍTIMAS: A ELEIÇÃO E A EXCLUSÃO DO SER
VÍTIMA A PARTIR DA DIFERENCIAÇÃO DOS SUJEITOS

Josiane BRITO7

Francine RIBEIRO8

Resumo: Este trabalho visa problematizar a noção de vítima na pós-modernidade, operando a


diferenciação entre a vítima da qual trata Garland (2008), que ressurgiu após a queda do
previdenciarismo penal a partir das mudanças nas representações sociais acerca do crime e do
criminoso dela decorrentes, e que representa um dos suportes das políticas de endurecimento de
legislações penais, e a vítima “no-bodies”, vítimas, principalmente, da violência policial. Busca-se,
por meio de revisão de literatura, da análise de dados que mapeiem violência policial e prisional
no Brasil, discutir os processos históricos, econômicos, políticos, sociais e culturais que engendram
a existência dessas duas noções de vítima. Verifica-se que são frutos da convergência dos mesmos
processos históricos e expõem, em última instância, a vigência de valores que promovem a
criminalização da pobreza. Esse determinismo que difere as pessoas corresponde a uma vontade
das elites no contexto neoliberal, que acompanha as vidas ao longo de suas existências. A partir de
valores ligados ao poder de consumo e ao status social – aqui devem ser considerados a classe, a
etnia, a região geográfica que pertence e o nível escolar - estigmatizados são criados. Do nascimento
ao fim da existência, os sujeitos passam por classificações que condicionam o tratamento que o
Estado, o mercado e a sociedade irão lhe oferecer. Nesse sentido, da abordagem violenta em um
enquadro policial à prisão, subjetividades constituídas de castigo e punição são proliferadas em
meio a sociedade e revelam problemas que precisam ser enfrentados cotidianamente, de fascismos
a serem combatidos desde esforços micropolíticos, do trabalho celular de cada um, coletivamente
e por meio de redes conectadas via sociedade civil organizada.

Palavras-chave: Seletividade. Vítima. Exclusão. Criminalização. Micropolítica.

CONTEXTUALIZANDO O SER VÍTIMA E O SER DELINQUENTE

De acordo com Harvey (2011), quando a configuração do capitalismo em um


determinado momento histórico se esgota, gerando um cenário de crise econômica,
política e social, surge a necessidade de sua reconfiguração. Essa reconfiguração,
entretanto, não atinge apenas o universo produtivo. Segundo ele, surgem novas
representações, ideologias, valores que têm por objetivo fazer com que os comportamentos
de todos os indivíduos sejam coerentes com o novo regime de acumulação e o mantenha
funcionando. Esta ideia guiará a presente seção, na medida em que pretende analisar como
as mudanças pelas quais passou o sistema metabólico do capital a partir de fins da década
de 1960 desembocaram na emergência de um Estado bastante fortalecido em suas

7
Mestranda pela UFABC E-mail: Josiane.brito@ufabc.edu.br
8
Mestranda pela UFABCE-mail: Francine.ribeiro@ufabc.edu.br

58
estratégias penais e nas transformações pelas quais passou a maneira de enxergar o crime
e o criminoso, alicerces da emergência do primeiro tipo de vítima que iremos tratar.
Para tanto, será feito um recuo histórico para tratar das bases econômicas, políticas
e sociais que sustentaram a fase nas políticas de segurança pública que David Garland
(2008) denominou como previdenciarismo penal e que antecedeu a emergência do Estado
penal, que será discutido mais adiante. Para este autor, o previdenciarismo penal só foi
possível dentro dos marcos do Estado de bem-estar que vigorou nos países capitalistas
centrais entre o pós-guerra e o início da década de 1970. Essa configuração do Estado
gerou, a partir de políticas redistributivas, controles à livre mobilidade do capital, ampliação
dos gastos públicos, intervenções ativas na economia, além de algum grau de planejamento
do desenvolvimento, elevadas taxas de crescimento econômico nos países onde prevaleceu
durante os anos 1950 e 1960 (HARVEY, 2008).
Após a Segunda Guerra Mundial, foram implantadas, na Europa e nos Estados
Unidos, variadas formas de governo que aceitavam que o Estado deveria concentrar-se no
pleno emprego, no crescimento econômico e no bem-estar de seus cidadãos, e de que o
poder do Estado deveria ser livremente distribuído ao lado dos processos de mercado –
ou, se necessário, intervindo ou mesmo substituindo tais processos – para alcançar esses
fins (HARVEY, 2008).
Neste contexto, segundo Garland (2008) a criminalidade era vista como um
problema de indivíduos e de famílias desajustadas ou, ainda, como um sintoma da
necessidade, da injustiça social e do inevitável conflito de normas culturais numa sociedade
plural e ainda hierarquizada. Indivíduos se tornavam delinquentes, continua o autor,
porque eram privados de educação adequada, de socialização familiar, de oportunidades
de emprego ou de tratamento adequado para sua condição psicológica anormal. A solução
para o crime residia, neste sentido, no tratamento correcional individualizado, no apoio e
supervisão das famílias e na adoção de medidas de reforma social que aumentassem o bem-
estar, principalmente aquelas que expandiam o acesso à educação e ao trabalho.
No início da década de 1970, o Estado de bem-estar começou a mostrar sinais de
esgotamento. As economias capitalistas centrais apresentavam altas taxas de desemprego e
inflação, redução dos níveis de produtividade e de crescimento, elevação dos déficits
públicos, desencadeando uma fase global de estagflação que duraria por boa parte dos anos
1970 (HARVEY, 2008). Essa crise, segundo Netto (2007), é expressão da curva
decrescente da eficácia econômico-social da ordem do capital, evidenciando que a
dinâmica do capitalismo se alçou a um nível no interior do qual a sua reprodução tende a

59
requisitar, progressivamente, a eliminação das garantias sociais e dos controles mínimos a
que o capital foi obrigado no arranjo anterior.
O esgotamento do Estado de bem-estar teve como um de seus efeitos a crise do
previdenciarismo penal, visto que esse esgotamento significava que estavam minadas as
bases políticas, econômicas e sociais que sustentavam aquela forma de encarar os temas
relacionados à segurança pública. Tal cenário forneceu, ainda, as condições políticas para
que, ao final da década de 1970, fossem eleitos, nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa ocidental, governos conservadores (GARLAND, 2008).
Segundo Garland (2008), há uma subversão do padrão histórico que prevaleceu até
a década de 1970 e um conjunto de ideias criminológicas bem distintas daquelas que
sustentavam o previdenciarismo penal emerge e passa a influenciar as políticas
governamentais da área da segurança pública. As teorias que passaram a conduzir o
pensamento e a ação oficial são as teorias de controle, que concebem a delinquência não
como problema de privação, mas de controle inadequado. Enquanto o pensamento
criminológico dominante no pós-guerra via o crime como sinal de um processo de
socialização deficiente e prescrevia que o Estado deveria assistir àqueles que carecessem
com as provisões econômicas, sociais e psicológicas necessárias para a adequada integração
social, as criminologias do controle assumem que “os indivíduos são fortemente propensos
a assumir condutas egoístas, anti-sociais e criminosas a menos que sejam inibidos de fazê-
lo por controles robustos e eficazes”, insistindo numa intensificação do controle e no
reforço das disciplinas (GARLAND, 2008, p. 61). O objetivo do sistema de justiça criminal,
que era a reabilitação do indivíduo infrator, passa a ser a neutralização, a retribuição e o
controle de riscos.
Neste contexto, opta-se, segundo Christie (1993), por negligenciar os fatores sociais
no momento de decisão sobre a punição. Esta prática permite que fique mais clara a relação
entre o ato criminoso concreto e a pena, dado que a consideração desses fatores obscurece
a óbvia e supostamente merecida pena que resulta do ato delitivo. De acordo com o autor,
a decisão política de excluir os fatores sociais na hora do cômputo da pena, além de
possibilitar uma sentença desproporcional, exclui, em grande parte, o delinquente como
pessoa.
Este cenário propiciou o surgimento de um vigoroso Estado Penal, que tem seu
principal traço no desenvolvimento de uma política de segurança pública centrada no
encarceramento em massa. De acordo com Teixeira (2006), menos de um ano após a
promulgação da Constituição Federal de 1988, o aumento da violência já era tratado no

60
Congresso Nacional exclusivamente sob o prisma da derrogação dos direitos dos acusados
e presos e da intensificação do uso da prisão. A Lei nº 8072 de 1990, Lei dos crimes
Hediondos, e a Lei nº 11343 de 2006, Lei de Drogas, trabalham neste sentido.
Segundo Salla (2003), a política de segurança pública centrada no aprisionamento,
adotada no Brasil, resultou num aumento substancial das taxas de encarceramento na
década de 1990: em 1988, a taxa de encarceramento era de 65,2 por 100 mil habitantes,
em 1995, essa taxa era de 95,4 presos por 100 mil habitantes e já em 2002, essa taxa passou
para 146,5 para cada 100 mil habitantes. Esse processo levou a um incremento da
população carcerária na ordem de 380% entre 1992 e 2012 (CARTA CAPITAL, 2014).
No contexto de emergência do Estado penal, que, segundo Wacquant (2007), é
complementar ao Estado mínimo, dado que há a exigência de um Estado mínimo, a fim
de liberar espaço para a mão invisível do mercado e submeter os despossuídos aos
estímulos da competição, e erige-se, simultaneamente, um Estado máximo para assegurar
a “segurança” do cotidiano, se dá o que Garland (2008) define como o retorno da vítima.
Segundo ele, desde a década de 1980, percebe-se a centralidade da vítima nas políticas
criminais. Sob o previdenciarismo penal, as vítimas individuais não tinham figuração além
das manifestações que levavam à ação estatal, dado que seus interesses eram absorvidos
pelo interesse público e não se contrapunham aos interesses do ofensor. Com o
esgotamento dessa configuração e ascensão das criminologias do controle, os interesses e
os sentimentos das vítimas passam a ser rotineiramente invocados em apoio às medidas
ade segregação punitiva.
O autor pontua que “o novo imperativo político é no sentido de que as vítimas
devem ser protegidas, seus clamores devem ser ouvidos, sua memória deve ser honrada,
sua raiva deve ser exprimida, seus medos devem ser tratados” (GARLAND, 2008, p. 55).
Desta maneira, qualquer atenção aos direitos ou ao bem-estar do agressor é considerada
um desvio das medidas apropriadas de respeito às vítimas, já que se parte da ideia de que
qualquer ganho do agressor significa a perda da vítima e apoiar as vítimas significa ser duro
com os agressores ou possíveis agressores, que representam o segundo tipo de vítima a ser
tratado neste trabalho.
A figura simbólica da vítima ganhou vida própria e desempenha um importante
papel no debate político, que, segundo Garland, é frequentemente dissociado dos reclamos
dos movimentos organizados de vítimas ou da opinião agregada de vítimas consultadas. A
vítima deixa de ser um cidadão desafortunado, atingido pelo crime e cujos interesses se
subsumem ao “interesse público”, para ser um personagem bem mais representativo, cuja

61
experiência é projetada para o comum e o coletivo. Surge, aponta o autor, a ideia do
“poderia ter sido você”, evidenciando que o problema de segurança se tornou um
componente decisivo da cultura contemporânea, juntamente como o medo do crime.
Simultaneamente, fruto do mesmo estado das coisas, vigora a noção de que “antes
de mais nada, o público deve ser protegido”, justificando uma negligência crescente às
liberdades civis de suspeitos e aos direitos dos presos. Eis que alcançamos o segundo tipo
de vítima sobre o qual este trabalho se debruça: o ser matável, marcado pela delinquência
criada a partir da gerência das ilegalidades (FOUCAULT, 2007), delinquente mais por sua
vida, por suas características – como cor, classe social, local de moradia, etc. – do que por
seus atos. Segundo Foucault (2007), a biografia é importante na história da penalidade
porque possibilita a existência do criminoso antes do crime. A penalidade, segundo ele,
não reprimiria as ilegalidades; ela as diferenciaria e esta gestão diferenciada das ilegalidades
deve ser entendida como um mecanismo de dominação de classe. Assim, uma das
utilidades da delinquência especificada é o controle das ilegalidades populares, impedindo
que elas se generalizem e se ampliem, ao mesmo tempo em que permite as ilegalidades
dos grupos dominantes. Os delinquentes podem morrer ou passar grande parte de suas
vidas armazenados nas prisões da miséria em favor do bem comum, em favor do “cidadão
de bem”. Estes são vítimas principalmente da violência policial, cujas mortes são, por vezes,
comemoradas. A próxima seção é reservada para o aprofundamento de questões ligadas a
este tipo de vítima com foco nas manifestações da sociedade civil em prol do fim das
condutas violentas assumidas pela polícia.

SOBRE A LUTA QUE SOCIEDADE CIVIL ORGANIZADA TEM


DESENVOLVIDO EM RELAÇÃO AS PRÁTICAS VIOLENTAS DA POLÍCIA9

Angela Alonso (2009) pondera as mudanças tanto na teorização como na empiria


de movimentos sociais, superando o olhar marxista revolucionário como única forma de
transformação via pressão advinda da sociedade civil organizada. A autora reflete acerca
das intencionalidades de profissionalização de movimentos sociais, ou seja, de figuras
representativas dos movimentos que adentram ao cenário político e se tornam atores
governamentais – será esse o caminho para o fim da violência policial? Coloca-se um

9
Esse subcapítulo faz parte da reflexão promovida no seguinte trabalho: RIBEIRO, Francine. Resistências
ativas e Resistências Reativas: Um estudo sobre os coletivos que contestam as práticas violentas da Polícia no
Estado de São Paulo. Dissertação de mestrado em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, 2017.

62
desafio: Como os movimentos com a pauta de contestação à violência policial podem
influir na sociedade como um todo e gerar solidariedades? E em consequência,
mobilização e, portanto, mudanças?

Os novos movimentos sociais seriam, então, antes grupos ou minorias


que grandes coletivos. Suas demandas seriam simbólicas, girando em
torno do reconhecimento de identidades ou de estilos de vida.
Recorreriam à ação direta, pacífica, baseada numa organização fluída,
não hierárquica, descentralizada, desburocratizada. Não se dirigiriam
prioritariamente ao Estado, mas à sociedade civil, almejando mudanças
culturais no longo prazo. Esses analistas, portanto, entendem que a
ênfase cultural é uma característica distintiva das novas mobilizações,
razão pela qual usaram o advérbio "novo" para distingui-los dos "velhos".
A sobrevalorização da cultura na análise dever-se-ia, então, a um
imperativo do objeto, não a uma escolha do analista (ALONSO, 2009,
p. 67).

Os coletivos como forma de resistência, que aqui serão tratados, formam um


conjunto comum de oposição ao modelo policial. A mudança na sociedade, na concepção
das pessoas em relação à polícia, tem sido um grande esforço desses coletivos. Alonso
(2009), pensando sobre movimentos sociais, considera as formas clássicas de mobilização,
mas atribui esse ativismo do tipo soft power como mais pragmático no contexto atual, ou
seja, a mudança precisa ser iniciada na consciência coletiva para depois avançar nos canais
democráticos.
Importante notar que o movimento e os coletivos a serem tratados são de cunho
progressista e que constituem e procuram desenvolver o chamado empowerment de atores
sociais da sociedade civil organizada. As novas tecnologias facilitaram a percepção de
narrativas comuns e permitiu a expansão da atuação em rede (GOHN, 2013). Com a esfera
pública revivida e pulsante, cada indivíduo é agente, assim como pensou Habermas e
Foucault (GOHN, 1977). Dessa maneira, a formação dos seus discursos vai além do
embasamento institucional, sua potencialidade passou a ser redimensionada.
Para avançar na contribuição acerca dessas novas organizações que se inserem na
sociedade civil organizada, retomar alguns elementos da formação e atuação do movimento
negro é essencial. Pois, não apenas ele marcou a trajetória dos coletivos periféricos – tanto
no que diz respeito a própria construção de identidade como na conscientização política e
militante –, como também, atualmente, se faz presente em seus discursos e na sua atuação.

63
A questão do racismo institucional10 e, portanto, a bandeira da violência policial aparece
como uma de suas pautas mais importantes.
Silva (2014) discorreu sobre os no-bodies ou os não-corpos, que em síntese seriam
a relação entre a ausência de proteção da vida pela lei, o racismo e a violência como
atributos que circunscrevem o cotidiano das pessoas negras. Nesse sentido, a subjugação
racial se torna a lógica que orienta o Estado e seus agentes a fim de se auto preservar e,
assim, reiterando o racismo institucional11. A autora ainda chamou atenção sobre a não
mobilização revolucionária por parte da esquerda diante da ausência do estado de direito.
Seriam os no-bodies as maiores vítimas da violência estatal? Garland (2008)
classificou três tipos de vítimas: vítimas potenciais, vítimas verdadeiras e a família das
vítimas, ressaltando que a vítima da criminalidade e violência comum, resultado da falta de
segurança, seja considerada a verdadeira vítima e isso obedece ao interesse público e invoca
medidas de segregação punitiva, ou seja, os no-bodies não são parte dessa figura simbólica
de vítima. Tornar público e ressignificar tanto o conceito como quem são as vítimas, é parte
do que os coletivos têm se esforçado em difundir.
A exemplo disso e para uma possível genealogia dos coletivos que são parte desse
artigo, pensemos o Fórum Social em Defesa da Vida e Superação da Violência, ou
simplesmente, Fórum em Defesa da Vida, o coletivo mais antigo dentre os demais aqui
estudados e que embora tenha nascido da iniciativa de um padre que segue a doutrina da
teologia da libertação12, não se trata de um movimento religiosamente enviesado. O FDV,
cuja trajetória foi iniciada em 1996, é composto por diversas entidades, organizações e
coletivos, surgiu em um contexto adverso – de extrema violência –, se constituiu em
consequência de uma mobilização coletiva impressa na primeira Caminhada pela Vida e
pela Paz. No ano de sua formação, o Jardim Ângela, pertencente a Zona Sul da cidade de
São Paulo, foi eleito como a região mais violenta do mundo pela ONU. Portanto, sua

10
“Como o termo ‘instituição’ implica, o racismo institucional enfatiza que o racismo não é apenas um
fenômeno ideológico, mas também institucionalizado. Refere-se a um padrão de tratamento desigual nas
operações cotidianas, como sistemas educacionais, agendas educacionais, mercados de trabalho, justiça
criminal, serviços, etc. O racismo institucional opera de uma forma que coloca os indivíduos brancos em
clara vantagem para outros grupos racializados” (KILOMBA, 2010: 43, tradução da autora).
11
Para conhecer melhor o movimento negro no Brasil, recomendo a leitura da obra “Terms of inclusion:
Black Intellectuals in Twentieth-Century Brazil” de Paulina L. Alberto. Nesse livro, a autora faz um
levantamento histórico acerca da inserção do negro no país e traz um panorama que abarca desde as primeiras
formações do movimento e ativismo negro até os dias atuais. Ademais, observar especificamente o último
capítulo “Descolonization” a propósito de apreender64 a gênese do movimento negro atual. Recomendo ainda
a leitura de “A luta contra o racismo no Brasil” de Kabengele Munanga. São Paulo; Edições Fórum.
12
Para conhecer um pouco da intersecção entre mobilização social e a teologia da libertação, ler: “Se Deus
fosse um ativista dos Direitos Humanos” de Boaventura de Sousa Santos.
criação se deu em um momento crítico e necessário na forma de uma reação à violência,
constituindo desse modo a resistência.

É flagrante a concentração de população jovem em certos bolsões ou


regiões onde a taxa de crescimento permanece elevada a despeito da
tendência geral em contrário. Por exemplo, no Jardim Ângela – um dos
bairros do município que vem se constituindo verdadeiro laboratório
social dada suas características e composição de sua população –, o
crescimento demográfico anual, ao longo da década de 90, vem sendo
de 4,4%, enquanto a média de crescimento populacional do município
tem sido de 0,34%. Não por acaso, o Jardim Ângela é uma das áreas mais
carentes deste município, com as mais elevadas taxas de violência fatal.
Em 1995, o Mapa de Risco da Violência indicava que a taxa de
homicídio, para a faixa etária de 15-24 anos, era de 222,2 por 100 mil
habitantes (CEDEC, 1996) (ADORNO; et al., 1999, p. 70).

Ao comparar no mesmo período com as regiões nobres de São Paulo, a taxa de


homicídio é inversamente menor. Perdizes, por exemplo, teve uma taxa geral de
homicídios de 2,65 por 100 mil habitantes, segundo o mesmo Mapa de Risco da
Violência.13 Enquanto que os moradores dos distritos nobres desfrutam de melhores
condições socioeconômicas e de acesso a políticas públicas, os distritos periféricos –
especialmente no extremo sul da cidade – são compostos por cidadãos com liberdades
socioeconômicas limitadas e com acesso a políticas públicas reduzido.
Ainda na periferia da Zona Sul de São Paulo, que embora tenha surgido nessa
região – desde seu início formou-se como rede e se articulou com coletivos localizados em
periferias de toda a cidade e estado –, o Comitê contra o genocídio da juventude preta,
pobre e periférica teve em 2007 o início de suas atividades. Assim como o FDV, o Comitê
teve como pregresso uma ação excepcional, em seu caso foi uma campanha que somou
esforços de diversos coletivos, entidades de Direitos Humanos, do Movimento Negro,
sindicatos e familiares de vítimas da violência policial14.
Apesar da violência policial estar no cotidiano das periferias há décadas, a crise de
segurança de 2006 foi central para a origem do Comitê. Interessante notar também que a
crise de 201215 – ano em que os índices de homicídios se elevaram e em que grupos de

13
Cf. AKERMAN, Marco; BOUSQUAT, Aylene. “Mapas de Risco de Violência” In: A Violência
disseminada. Revista São Paulo em perspectiva, vol. 13, nº 4, p. 112-119, 1999. Disponível em:
<http://www.seade.gov.br/wp-content/uploads/2014/07/v13n4.pdf>. Acesso em: 8 jan. 2017.
14
Informações cedidas em entrevista com membro do Comitê contra o genocídio da juventude preta pobre
e periférica em maio de 2016.
15
DIAS, Camila et al. A prática de execuções na região metropolitana de São Paulo na crise de 2012: um
65 Pública, v. 2, n° 9, 2015.
estudo de caso. São Paulo; Revista Brasileira de Segurança
extermínio agiram irrestritamente – despertou a mobilização de mais de 120 atores da
sociedade civil organizada. Segundo membro do Comitê, 2012 foi o ano em que mais
pessoas estavam envolvidas com a causa, que reivindica a segurança pública como um todo
– não somente a problematização acerca da Polícia Militar, até porque, em suas palavras
afirmou: “o Genocídio é sustentado por variadas formas de racismo”.
Migrando para a região Sudeste, olhemos o Coletivo Perifatividade, o qual
diferentemente do FDV e do Comitê, não teve como motivação para sua criação em 2010
um episódio insólito. De acordo com um integrante do coletivo entrevistado, a violência é
endêmica e histórica nas periferias, portanto, se posicionar politicamente nesse contexto
compreende também contestar a violência de estado realizada pelos agentes de segurança16.
Importante abrir um parêntese, situando que o período que antecedeu a consolidação do
coletivo foi acompanhado pela queda brusca da taxa de homicídios, fenômeno que,
segundo Camila Dias (2011), dentre outros fatores está associado à emergência e
solidificação do PCC. De todo modo, essa tendência foi rompida com a crise de 2012 e os
números voltaram a crescer.
O ponto em comum entre as trajetórias do Coletivo Perifatividade, o Comitê e o
Coletivo Autônomo Herzer, é o fato de terem passado por mudanças que vão desde a
decomposição à reorganização de seus respectivos grupos. Nesse sentido, se coloca como
maior exemplo o Coletivo Autônomo Herzer, pois originou-se do agora extinto Rede 2 de
Outubro que, por sua vez, tinha como pauta principal o fim das prisões e dos massacres e
se articulava com Organizações Não Governamentais, Movimentos Sociais, Associações e
autônomos. O estopim para a criação dessa rede em 2011, foi o massacre do Carandiru
em 1992. Estudantes da USP, pesquisadores e pessoas que trabalham e trabalharam no
sistema carcerário e conheciam tal cotidiano, são os perfis majoritários dos membros do
coletivo que se desenvolve também como grupo de estudos, portanto, busca-se ser
heterogêneo no que diz respeito a trajetórias e na possibilidade de contribuição com a
causa. Embora boa parte dos membros viva nos bairros do centro, há pessoas de outras
regiões que são parte do coletivo. No entanto, a localização de cada membro não impede
que as ações políticas ocorram nas periferias.
Uma das grandes referências para todas essas organizações estudadas, é o
Movimento Independente Mães de Maio. O movimento é exemplo por sua persistência
ao longo dos anos. Não foi um movimento efêmero, o qual surgiu diante de uma injustiça

16
Dados obtidos a partir de entrevista em 02/2017.

66
e acabou. A chacina que aconteceu entre os dias 12 e 20 de maio de 2006 em algumas
regiões periféricas, metropolitanas e na baixada santista, foi a razão da criação do
movimento. Nesses oito dias, 439 pessoas foram assassinadas, dado o confronto entre a
PM e agentes do PCC, de acordo com Adorno e Salla (2007). Durante esses dias,
estabeleceu-se de forma mais evidente uma situação de estado de exceção, no qual vidas
nuas foram ceifadas. Em contrapartida, essa brutalidade, impunidade e não esclarecimento
da morte de um dos jovens assassinados pela PM, moveu a mãe de Edson Rogério Silva
dos Santos a unir forças a fim de clamar por justiça. Débora Maria Silva fundou o
conhecido Movimento e com outras mães de vítimas da violência policial, passaram a lutar
pela memória, verdade e justiça – de seus filhos e pela sociedade.
Ao observar os coletivos localizados no centro da cidade, nota-se a diferença de
perfis e de pautas, que embora tenham convergência no espectro político progressista e de
defesa dos direitos humanos, são mais diversificadas. Primeiramente, o coletivo ARRUA
teve sua concepção em 2012 e iniciou com a prática de ocupar o espaço público com arte
e agir politicamente através da promoção de debates em defesa da democracia e trazer uma
nova conscientização sobre o viver na cidade. Com o tempo e as novas sensibilidades, o
coletivo viu a necessidade de questionar a atuação da polícia e como extensão desse coletivo
surgiu a campanha “Por que o senhor atirou em mim?”. A campanha se solidificou diante
do assassinato de um adolescente na zona norte de São Paulo pela PM.
O coletivo se declara apartidário, mas conta com fundadores militantes do Partido
dos Trabalhadores, o que demonstra trajetória política própria que, de certa forma, acaba
impulsionando a crença do coletivo na mudança via instituição, através de reformas e
projetos de lei, visto que até meados de 2016, o Partido dos Trabalhadores estava no
governo federal. Além de que, entre seus integrantes há desde pessoas que trabalharam
para o governo federal, como o ex-secretário nacional da juventude, Gabriel Medina, entre
outras pessoas que integravam a prefeitura de São Paulo durante a gestão de Fernando
Haddad (PT). Diante disso, a postura que admite a via institucional como caminho para a
transformação é coerente com a própria trajetória e inserção política de seus membros.
Por fim, o coletivo Advogados Ativistas, mais enxuto e formado por advogados
comprometidos com a democracia, teve como mote para sua fundação as jornadas de
junho de 2013. A partir de então, os advogados se dispuseram aos movimentos sociais para
que recorressem ao coletivo para libertação de prisões, denunciar o abuso do uso de força
policial em manifestações, entre outras formas de apoio dada a violência policial
direcionada aos militantes e ativistas que foram às ruas protestar.

67
Entretanto, contextualizar o surgimento de cada grupo possibilita que entendamos
se esse se deu por conta de um fato singular – considerando os dados de violência em um
recorte de período comum –, ou se o rebelar-se foi motivado por uma consciência
histórica. Conclui-se que em sua maioria a organização se dá como reação. A partir do
conhecimento da trajetória de cada grupo e da fundamentação de suas bases, pode-se
avançar a compreensão acerca do modo como atuam. Essa contextualização inicial é
importante à análise para que similaridades e distanciamentos fiquem claros, tanto nos
aspectos mais particulares até os de dimensão macro, reconhecendo a singularidade de
cada um, seus pontos comuns, o que em termos de originalidade contribuem ao ativismo,
assim como os impactos de suas escolhas estratégicas. Nota-se certa uniformidade dos tipos
de ação desde a criação dos grupos até a atualidade, mesmo que a configuração dos
mesmos tenha sofrido mudanças ou se adaptado.

CONCLUSÕES

O presente trabalho buscou refletir a construção social do que para o sistema de


justiça e criminal – que influência e retroalimenta a percepção da sociedade-, sobre que são
considerados vítimas e os delinquentes. Concluindo que os dois tipos de vítimas aqui
estudados são melhor compreendidos à luz dos processos histórico, econômico, social,
cultural e político iniciados e aprofundados a partir das décadas de 1970 e 1980. Percebe-
se, além disso, que ambos os tipos de vítimas se relacionam e se influenciam intimamente.
As vítimas que importam, das quais trata Garland, são invocadas a fim de justificar o
endurecimento das legislações e as violências às vítimas matáveis, aos “no-bodies”.
Em contrapartida, nota-se que a sociedade civil organizada tem se movido para
combater essas violências que atingem diretamente os corpos de pessoas estigmatizadas,
assim como suas subjetividades ao serem enquadradas como no-bodies - pessoas indignas
de construírem suas identidades de forma livre e sem a imposição que os criminalizam.
Portanto, toda essa luta multifacetada e cotidiana que os grupos têm desenvolvido revela a
força da micropolítica e do trabalho de base. Por fim, embora exista todo o investimento
de forças reacionárias que buscam impedir a transformação desse quadro que degenera as
relações e o tecido social, existe também a resistência e sua potência criativa, libertadora e
que intenta humanizar as vidas.

68
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70
O “EMPRESARIAMENTO DE SI” NAS PERIFERIAS URBANAS: O
PAPEL DOS DISPOSITIVOS DE CONTROLE E DE MERCADO NA
PRODUÇÃO DA FAVELA TURÍSTICA/RJ

Helton Luiz Gonçalves DAMAS17

Resumo: O principal objetivo do estudo é compreender o regime contemporâneo de subjetividade


nas favelas cariocas a partir da análise dos processos que envolvem a “pacificação” – programa
constituído por uma destacada atuação policial e um conjunto de instituições governamentais e não-
governamentais – desses territórios e surgimento de novas formas de mercado, tendo como recorte
empírico, a “favela turística” e o “empreendedorismo criativo”. Assim, o estudo busca analisar
como as interseções de dispositivos que configuram a “pacificação” apresentam uma articulação
estratégica das formas de conduta dos outros com as formas de autogoverno. A hipótese inicial é
que a invenção de novas subjetividades, sobretudo, na figura do sujeito-empreendedor, não se
refere somente a fenômeno individual, mas sim, a uma questão histórica-política que vincula uma
série de ações governamentais e não-governamentais desenvolvidas de forma conjunta e que se
unem a um vértice comum, isto é, o “ projeto de pacificação”. O conjunto de discursos e práticas
que configuram o dispositivo da pacificação, ao mesmo tempo em que possui um ideal regulatório
de normatividade imposto pela ocupação armada dos “territórios da pobreza”, desempenham um
papel edificante na invenção de certos tipos de sujeitos. A metodologia utilizada para que os
objetivos pudessem ser cumpridos consistiram na elaboração de um estudo baseado na análise
qualitativa, obtendo dados por meio de pesquisa de campo etnográfica, observação participante e
entrevistas semiestruturadas. Assim, foi desenvolvido um estudo que teve como foco inicial a Favela
Santa Marta, mas que, posteriormente, expandiu-se às comunidades do Complexo do Alemão,
Pavão Pavão-Pavãozinho e Morro dos Cabritos/Ladeira dos Tabajaras. Como resultados parciais,
é possível destacar que a produção dessa nova subjetividade busca transformar cidadãos de direitos
em “empreendedores criativos” que deixem de serem “seres assistidos” pelo Estado e conquistem
o seu “lugar ao sol” com seu próprio esforço, sendo que para cumprirem seus objetivos, os
empreendedores turísticos acabam por mobilizar diversas narrativas com intuito de transformar
cenários de pobreza e violência em produtos de consumo turístico.

Palavras-Chave: Empreendedorismo. Favela Turística. Pacificação. Governamentalidade e


Subjetividade.

INTRODUÇÃO

O principal objetivo do estudo é compreender o regime contemporâneo de


subjetividade nas favelas cariocas a partir da análise dos processos que envolvem a
“pacificação” desses territórios e o surgimento de novas formas de mercado, tendo como
recorte empírico a “favela turística” e o “empreendedorismo”. A hipótese inicial é que a
invenção das novas subjetividades, sobretudo, na figura do sujeito-empreendedor, não se
refere somente a fenômeno individual, mas sim, a uma questão histórica-política que

17
Doutorando em Sociologia. Universidade Federal de São Carlos. Apoio: CAPES. E-mail:
helton006@yahoo.com.br.

71
vincula uma série de ações governamentais e não-governamentais desenvolvidas de forma
conjunta e que se unem a um vértice comum, isto é, o “projeto de pacificação”.
O conjunto de discursos e práticas que configuram o dispositivo18 da pacificação, ao
mesmo tempo em que possui um ideal regulatório de normatividade imposto pela
ocupação armada dos “territórios da pobreza”, desempenham um papel edificante na
invenção de certos tipos de sujeitos. Assim, o modo como os moradores de favela têm
sido regulados e regulam a si próprios, possui relação com a reorganização do poder
político e suas formas de governo, compreendido aqui, no sentido de Foucault (1979), ou
seja, como um conjunto de práticas e estratégias que tem como objetivo a “condução de
condutas” a um fim conveniente. Conforme Rose (2011), os numerosos programas,
políticas e propostas que surgem sob a insígnia governamental, “têm a conduta de
indivíduos – não somente controlar, subjulgar, disciplinar, normalizar ou reformá-los, mas
também, torná-los mais inteligente, sábios, felizes, virtuosos, saudáveis, produtivos, dóceis,
empreendedores, satisfeitos, cheios de autoestima” enfim, dotados de poder (Idem, p. 25).
A motivação inicial desse estudo reside no fato do pesquisador ter sido professor
substituto no Curso de Turismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro em 2012
e concomitante a esse trabalho, ter exercido a função de tutor a distância do Curso
Tecnológico de Turismo coordenado pelo consórcio CEDERJ e que tem como sede o
CEFET-Maracanã. Nesse local, o pesquisador encontrou uma figura relevante na escolha
do objeto de estudo. Carambola – nome fictício, negro, guia e morador da Favela Santa
Marta – foi à sede do curso a distância “oferecer” seus serviços de guiamento juntamente
com o seu então sócio, com objetivo de revelar aos alunos, uma nova perspectiva da cidade,
isto é, a “favela turística”.
Contudo, sua história de vida foi marcada por grandes sobressaltos. Carambola era
ex-assaltante, levou tiro à queima-roupa da polícia e ficou preso no sistema prisional de
Bangu. Após sair da cadeia, viu-se sem perspectivas de vida, até que então, participou de
programas de fomento ao turismo e se tornou um “empreendedor de sucesso”.
Desde então, muitos questionamentos foram formulados, como: Qual o papel do
dispositivo da “pacificação” na reorientação de condutas dos moradores das favelas
cariocas? Por que o empreendedorismo se configura na “grande aposta” para vencer-se na
vida?

18
Os dispositivos teriam sempre uma função estratégica. Para Foucault (1979) eles estão relacionados à rede
que se estabelece entre discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis,
medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais e filantrópicas.
72
Boltanski e Chiapello (2009) destacam que o empreendedorismo se refere a uma
ideologia do “novo espírito” do capitalismo, onde um conjunto de crenças dirige, justifica
e legitima o comprometimento dos indivíduos dentro do mercado. Neste estudo,
compreende-se o mercado não como “um dado natural, mas como uma realidade
construída que, como tal, requer a intervenção ativa do Estado”, assim como a instauração
de um regime normativo específico (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 377). Para realizar uma
apreciação sobre como funciona o mercado no capitalismo contemporâneo, torna-se
necessário analisar o fenômeno do neoliberalismo.
Para Dardot e Laval (2016), o neoliberalismo é um sistema de normas que hoje
estão inscritas nas práticas governamentais, nas políticas institucionais, nos estilos
gerenciais, assim, objetiva fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens
como o do governo de si. Considerado pelos autores como uma racionalidade
governamental, e não uma doutrina mais ou menos multifacetada, o neoliberalismo é
precisamente o desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa
generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade,

O que está em jogo [...] é a construção de uma nova subjetividade, o que


chamamos de “subjetivação contábil e financeira”, que nada mais é do
que a forma mais bem-acabada da subjetivação capitalista. Trata-se, na
verdade, de produzir uma relação do sujeito com ele mesmo como um
“capital humano” que deve crescer indefinidamente, isto é, um valor que
deve valorizar-se cada vez mais (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 31).

Essa nova subjetividade, busca transformar cidadãos de direitos em


“empreendedores criativos” que deixem de serem “seres assistidos” pelo Estado e
conquistem o seu “lugar ao sol” com seu próprio esforço. Para responder os
questionamentos da pesquisa foi desenvolvido um estudo empírico que teve como foco
inicial a Favela Santa Marta, mas que, posteriormente, expandiu-se às comunidades do
Complexo do Alemão, Pavão Pavão-Pavãozinho e Morro dos Cabritos/Ladeira dos
Tabajaras.

“TERRITÓRIOS PACIFICADOS”: OS CONTORNOS DA REORIENTAÇÃO NO


CONTROLE DO CRIME

O aumento da criminalidade violenta, sobretudo, nas áreas nobres da cidade e a


escolha do Rio de Janeiro como sede da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos, obrigou

73
o município a desenvolver novas políticas de segurança e a principal delas foi à implantação
das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) – projeto desenvolvido pela Secretaria
Estadual de Segurança do Rio de Janeiro a partir de 2011 – em favelas consideradas
estratégicas. O intuito da criação das UPPs, assim como outras intervenções militares
anteriores19 que já ocorreram na cidade, é diminuir o sentimento geral de insegurança. Ao
invés dos policiais fazerem incursões periódicas nas favelas, eles desenvolvem um trabalho
de vigilância permanente nos territórios contemplados pelo programa. Em uma primeira
análise, pode-se destacar que a UPP se torna uma política de proteção da população contra
a própria polícia e o expressivo grau de letalidade das incursões policiais (CANO, 2012;
BARREIRA, 2013; MISSE, 2014).
Assim, a estrutura administrativa da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
(PMERJ) é constituída em escala decrescente pelo: Comando de Policiamento de Área
(CPA), que orienta operacionalmente as atividades dos batalhões e Companhias
Independentes de Polícia Militar (CIPM); pelo Batalhão de Polícia Militar (BPM),
subdividido em companhias orgânicas ou destacadas; Companhia de Polícia Militar , que
pode ou não ser subdividida em pelotões; Pelotão de Polícia Militar; e Destacamento de
Policiamento Ostensivo /Companhia de Policiamento Comunitário (MISSE, 2014).
A experiência-piloto das UPPs foi desenvolvida na Favela Santa Marta, em 2008.
Nos anos seguintes houve uma significativa expansão dessa política de segurança: em 2009
– Cidade de Deus, Jardim Batan, Babilônia, Chapéu Mangueira, Pavão-Pavãozinho e
Cantago; 2010 – Ladeira dos Tabajaras/Cabritos, Providência, Borel, Formiga, Andaraí,
Salgueiro, Turano, Macacos; 2011 – São João, Quieto e Matriz, Coroa, Fallet e Fogueteiro,
Escondidinho e Prazeres, Complexo de São Carlos, Mangueira; 2012 –Vidigal, Fazendinha,
Nova Brasília, Adeus/Baiana, Alemão, Chatuba, Fé/Sereno, Parque Proletário, Vila Cruzeiro,
Rocinha; 2013 - Manguinhos, Jacarezinho, Caju, Barreira/Tuiuti, Cerro-Corá, Arará/Mandela,
Lins, Camarista Méier, e 2014 - Mangueirinha e Vila Kennedy. 20
Para José Mariano Beltrame (2013), o então Secretário de Segurança do Rio de
Janeiro, as UPPs fazem parte de um programa que coloca o “fim” no controle armado do
tráfico de drogas, instituindo dessa forma, a diminuição das “balas perdidas”, sendo motivo
de comemoração para moradores da favela, como também, do “asfalto”,

19
Algumas experiências policiais desenvolvidas pelo Estado serviram como uma espécie de “esboço” para as
UPPs, são elas: Grupamento de Aplicação Prático Escolar, Grupamento de Policiamento em Áreas especiais
e o Projeto Mutirão da Paz. Todas essas experiências se baseavam no policiamento comunitário.
20
Dados correspondentes à instalação das unidades até 2016. UPP Rio – Disponível em: <http://www.upprj.
com/index.php/o_que_e_upp>. Acesso em: 13/09/2016 às 19:40.
74
Ou é UPP ou é a velha lógica do fuzil na favela. Todos sabemos quais
são os efeitos das UPPs no curto prazo. O morador do morro fica
aliviado e o do “asfalto”, muito feliz com o fim dos tiros. Mas isso é
apenas uma anestesia para a cirurgia maior. A grande questão que ainda
está mal resolvida é o que o Rio quer fazer das UPPs no longo prazo.
Daqui a 20 anos o que será da favela? A reconquista do território é uma
janela de oportunidade para a transformação daquele espaço público
(BELTRAME, 2013, p. 01).

Se anteriormente as políticas de segurança estavam pautadas na metáfora da guerra


– representação de uma cidade em guerra, em que a “solução final” estaria contida na
eliminação do inimigo – percebe-se que o projeto de “pacificação” busca instituir um
processo civilizatório, isto é, fazer com que o “favelado” retire a favela de si (LEITE, 2012).
Apesar das controvérsias de tal processo, Zaluar (2014) destaca que o principal objetivo
desse programa foi cumprido, ou seja, salvar vidas de pessoas atingidas pela guerra que a
polícia promovia contra o tráfico de drogas.
Silvia Ramos (2015), Coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e
Cidadania (Cesec) da Universidade Cândido Mendes, avalia as UPPs de forma muito
positiva quando analisa as taxas de homicídio do Rio de Janeiro, já que a curva de
crescimento foi revertida, provocando assim, uma redução na letalidade violenta –
nomenclatura que reúne homicídios dolosos, lesão corporal seguida de morte, latrocínio e
mortes provocadas pela polícia – conforme dados do Instituto de Segurança Pública do
Rio (2015). O policiamento comunitário suspendera enfim, a lógica policial de “entrar
atirando”.
Entretanto, conforme Daniel Misse (2015), não é possível “jogar confetes” sobre o
panorama institucional das políticas de segurança. O autor acredita que se deve
problematizar a questão que envolve a queda da letalidade violenta nas favelas que possuem
UPP, pois alguns fatores podem mascarar tal decréscimo. O principal fator estaria atrelado
ao SIM – Sistema Integrado de Metas – que premia os agrupamentos que reduzem as taxas
de homicídios. Tal ação teria provocado uma subnotificação dos homicídios e um
expressivo aumento no número dos desaparecidos. Essa situação denota que em muitas
favelas, os policias das UPPs estariam utilizando a mesma técnica das milícias para sumir
com os inimigos, isto é, a desova de corpos em lugares ermos. O “caso Amarildo”21 – triste

21
A juíza da 35ª Vara Criminal da Capital, condenou 12 dos 25 policiais militares denunciados pelo
desaparecimento e morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, crime ocorrido em julho de 2013, na Favela
da Rocinha, Zona Sul do Rio. Os PMs foram condenados pelos crimes de tortura seguida de morte, ocultação de
cadáver e fraude processual. G1. Caso Amarildo. Juíza condena 12 dos 25 policiais militares. Disponível em:
<http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/02/caso-amarildo-juiza-condena-13-dos-25-policiais-militares-
acusados.html> Acesso em 13/09/2016 às 21:35. 75
fato referente ao sumiço de um pedreiro, que morava na favela da Rocinha, sendo que
posteriormente ficou comprovado que o mesmo foi assassinado por policiais da UPP – é
emblemático e retrata esse cenário com propriedade.
Segundo Michel Misse (2011), o desafio das UPPs não é, como se supõe, o de
“levar políticas públicas” para os territórios da pobreza, porém – por mais paradoxal que
possa parecer – desterritorializá-los, ou seja, incorporá-los como bairros normalizados à
cidade, desintegrando-os enquanto territórios, inclusive “territórios de UPPs”. O
prosseguimento de uma lógica de territórios sinalizaria a estabilização e fixidez dessas áreas,
enquanto “margens” do Estado, perpetuando assim, relações sociais de segregação e
estigma, de desigualdade e repressão. Assim, as UPPs terão obtido êxito quando não
buscarem a permanência ou uma nova territorialização, ainda que bem-intencionada.
Em analogia com o programa Bolsa Família, Misse (2011) avalia que o sucesso da
UPP depende de que o programa alcance seu término, ou seja, que tenha como meta
alcançável seu próprio fim. Caso a territorialização permaneça, com o tempo, ela pode
servir mais uma vez para que se reestruturem os dois principais mercados ilegais: o que
disponibiliza drogas a varejo e o que oferece mercadorias políticas.
Destarte a complexidade que envolve a análise dessa política de segurança que atua
na gestão da população e de territórios (FOUCAULT, 1977), tem-se a partir de agora uma
questão: que efeitos de subjetividade o policiamento permanente tem provocado nas
favelas cariocas?
Para tentar elucidar essa questão o pesquisador visitou algumas comunidades,
dentre elas, pode-se destacar a Favela Santa Marta, Morro dos Cabritos/Ladeira dos
Tabajaras, Complexo do Alemão e Pavão Pavãozinho. Nos últimos anos, essas favelas
passaram a receber a visita de inúmeros turistas e “curiosos”, mas o seu cotidiano não
deixou de ser constituído por inúmeros conflitos. Por algumas semanas, o pesquisador se
hospedou em hostels situados na comunidade do Pavão Pavãozinho e no Morro dos
Cabritos/Ladeira dos Tabajaras, como também, foram efetuadas visitas periódicas na
Favela Santa Marta e no Complexo do Alemão.
Assim, foi possível perceber que nos “territórios pacificados” os traficantes operam
em duas lógicas de ação, a primeira seria: a) o “campo minado”, nessa perspectiva os
traficantes passaram a mapear os trajetos feitos pelos policiais e passaram a calcular e
antecipar os riscos de um possível confronto, sendo que os moradores passaram a ter a
sensação de sempre estarem “pisando em ovos”, um passo mal dado pode ser fato. Com
isso, moradores não querem ter contato com os policiais da UPP, nem oferecem água, pois

76
têm medo de serem vistos como delatores pelos traficantes, como também, não conversam
com os traficantes com medo serem vistos como bandidos pelos policiais. Alias, a não
exibição de armas, carros de luxos e joias porte parte dos traficantes com objetivos de não
chamarem a atenção, têm fragilizado afirmação da masculinidade dos mesmos, sendo que
era justamente com esse instrumental que eles atraíam mulheres e jovens soldados; b) “fogo
cruzado”, nessa lógica a favela vira um campo de guerra em que tiros são disparados tanto
por traficantes quanto por policiais e a população fica exposta a uma situação
desesperadora (MENEZES, 2015, ZALUAR, 2014). Um dos interlocutores da pesquisa
no Alemão considera estar em um jogo de ping pong, em que participam os traficantes e a
polícia. Ele seria a rede.
Assim, outra questão que chama atenção se reporta ao fato da chegada das UPPs
instituírem uma espécie de “formalização do território”. O papel de controle policial nas
favelas transcende as ações que comumente são exercidas pelos mesmos no “asfalto”, um
exemplo claro disso se refere à rígida regulação do funk nas comunidades. Não basta os
organizadores terem autorizações da prefeitura e do corpo de bombeiros, torna-se preciso
anuência da UPP. Enquanto os shows que envolvem o ritmo do forró transcorrem sem
maiores problemas, os bailes funks apresentam restrições, pois na visão dos policiais eles
possuem ligações estreitas com criminosos, além de serem vistos como propagadores de
tumulto e desordem.
Na comunidade de Santa Marta, os bailes funks acontecem na quadra da escola de
samba. No início do processo de “pacificação”, os policiais adentravam nesse recinto e
“pararam tudo”. Porém, com o tempo, eles foram liberando aos poucos. Para Machado
da Silva (2010), a regulação sociocultural das favelas representa de fato uma ampliação dos
objetivos das UPPs, pois altera seu sentido, podendo configurar-se em enorme risco para
seu sucesso. “Seria um claro retrocesso na democratização das relações sociais no Rio de
Janeiro transformar unidades policiais em atores políticos de base” (Idem, 2010, p. 37).
A formalização não atinge apenas os bailes funk, como também, uma série de
serviços que eram disponibilizados nas favelas na forma de “gatos”. Nas comunidades
pacificadas a seguinte frase tem se tornado popular: “A Sky vem em cima do caminhão do
Bope”. A atuação da empresa só foi possível graças a um acordo realizado entre a Sky, a
Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos e a Secretaria de Segurança do
Governo do Estado que, por sua vez, resultou em um pacote promocional da Sky chamado
“Sky UPP”.

77
Enfim, considerando os dispositivos que operam na gestão da vida, na gestão da
população que habita as favelas do Rio de Janeiro, pode-se pensar nas dinâmicas que
envolvem a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) nas comunidades
cariocas. Tal processo pode ser analisado conforme a concepção foucaultiana, que vincula
as tecnologias de governo com o biopoder, uma maquinaria classificatória que identifica e
agrupa populações (FOUCAULT, 2005), compreendendo assim, “um dispositivo que
assume a função de gerir a vida, que atravessa e tem atravessado os modos de ser e estar
nas favelas e as relações de poder que elas atualizam”22.
É possível considerar que a experiência das UPPs se refere a uma maquinaria
política onde nela se constrói um controle detalhado dos corpos sociais e individuais a
partir da vigilância, operam-se intervenções pontuais com o esquadrinhamento e
normalização de pessoas e lugares, produzem-se discursos que fazem viver e deixam
morrer, articulam-se efeitos de subjetividade num jogo incessante entre assujeitamentos e
governo de si. Diante desta questão, torna-se importante afirmar que ao falar da experiência
das UPPs não se deve utilizar o Estado como sinônimo, pois a UPP vai muito além de uma
imposição estatal: suas práticas, discursos e efeitos são produzidos em uma rede de
relações23.
Embora esse tipo de polícia tenha trazido alguns benefícios em virtude de sua
proximidade com os moradores, verifica-se que nesses territórios a UPP tem uma missão
disciplinar que transpassa a defesa da favela do controle imposto pelos traficantes, pois as
suas ações provocam uma intervenção nos comportamentos e sociabilidades. Tais ações
têm o objetivo que produzir um “novo espaço social”, que tenha um tipo de ordenamento
considerado adequado pelos policiais, que por sua vez, partem do princípio de que as
favelas são reinos da “desordem e incivilidade”. O fato dos moradores serem vigiados de
forma permanente reforça estereótipos e percepções de que os “favelados” são contrários
a “ordem civilizada”, assim, tal visão justificaria e legitimaria a presença de um ente
moralizador que normalize as suas condutas.
Segundo Leite (2012), nas comunidades “pacificadas” os dispositivos vinculados à
segurança possuem o objetivo de retomar o controle desses “territórios da violência” e
“civilizar” seus moradores como condição para integração desses locais à cidade. E uma
das formas de integração da favela proposta pelos entes públicos seria via mercado, com a

22
MELICIO, Thiago; GERALDINI, Janaína; BICALHO, Pedro. Biopoder e UPPs: alteridade na
experiência do policiamento permanente em comunidades cariocas. Fractal, Rev. Psicol., v. 24 – n. 3, p. 599-
622, Set./Dez. 2012 .p. 602.
23
Idem. p. 617.
78
identificação de novas potencialidades econômicas desses territórios, sendo que tal
perspectiva poderá ser melhor evidenciada na próxima seção.

A GOVERNAMENTALIDADE E O REGIME DE SUBJETIVIDADE: UMA


ANÁLISE SOBRE O EMPREENDEDORISMO NAS FAVELAS “PACIFICADAS”

Nesta seção, procurou-se evidenciar que após a “pacificação” foi possível verificar
a atuação de um dispositivo formado por instituições governamentais e não governamentais
que buscam configurar os “territórios pacificados” em uma nova era. O regime discursivo
produzido por esse dispositivo assegura que os “tempos de paz” chegaram, sendo assim,
tem-se o momento ideal para o desenvolvimento de práticas vinculadas ao
“empresariamento de si”. Observa-se então, uma nova governamentalidade emergente,
que busca exercer uma apreensão da subjetividade dos moradores, para que
posteriormente, regule os territórios por meio da liberdade, “governos de si” e ampliação
das capacidades dos que lá habitam, embora a disciplina não seja esquecida. Assim, os
inúmeros programas de incentivo ao empreendedorismo acabaram por estruturar o campo
de ação dos sujeitos das favelas “pacificadas”, como é o caso de Carambola (nome fictício).
Ele é um microempresário da Favela Santa Marta, negro, 33 anos, trabalha como
guia de turismo e, além disso, possui uma agência de viagens e um hostel na comunidade.
Também investiu em uma empresa de entrega de saladas, sendo que, é cozinheiro quando
promove eventos de samba em que o prato principal é a feijoada. Sua vida deu uma grande
guinada após participar do programa Rio Top Tour e de um curso de capacitação oferecido
pelo Sebrae. “Nos capacitaram (o Sebrae) para sermos guias locais e depois estudei para
ser guia de turismo (em um colégio estadual da cidade)” (Carambola).
Entretanto, sua trajetória de vida foi marcada por inúmeros percalços, pois ele
literalmente vivia sob o “fogo cruzado”, na época em que a favela era dominada pelo
controle armado do tráfico de drogas. Perdeu o pai cedo e sua mãe era empregada
doméstica, não teve muitas oportunidades na vida. Quando adolescente, envolveu-se com
o “mundo do crime”. Carambola praticou furtos e assaltos até ser preso pela polícia militar
quando iria roubar uma loja de materiais de construção. A prisão se deu de forma violenta,
pois até chegou a levar tiro à “queima roupa”. Depois desse episódio, foi condenado a
cinco anos de prisão e acabou cumprindo dois anos na penitenciária de Bangu, após
garantir liberdade condicional. Quando quis recomeçar a sua vida, deparou-se com
imensas dificuldades, pois não conseguia arrumar emprego. Na visão dele, o fato de “ser
do morro” e ex-presidiário eram complicadores quase incontornáveis. Assim, tornar-se

79
empreendedor se configurou em uma brecha, uma forma de “driblar” os preconceitos do
mercado de trabalho.
Ele considera que faz parte de uma geração perdida, onde a maioria de seus amigos
foi morta pela polícia, em uma perspectiva onde sua trajetória com final exitoso se refere a
uma exceção,

Faço parte de uma geração que não teve oportunidade de trabalho,


oportunidade de fazer curso, oportunidade de nada, sempre foi
discriminada, se não for fazer como eu fiz, correr atrás, ir batalhar, buscar
seu lugar ao sol, vai ser só mais um para sociedade, mais que morreu,
mais ou que esta buscando trabalho, mais um que está desempregado.
Infelizmente, eu sou dessa geração e não vou deixar que a sociedade me
conte como mais um. Eu sou mais um sim, mais um que batalha, mais
um que corre atrás, que apesar de ter a infância e adolescência perdida...
por exemplo, dos 18 aos 20 anos eu estava preso. Eu saí e não consegui
arrumar trabalho. Era taxado como ex-presidiário. Não se consegue
trabalho. Não se consegue nada. E mesmo eu preso. E muitos amigos
meus, mesmo os que não foram presos, sofrem com a mesma
discriminação (Carambola, morador e empreendedor da Favela Santa
Marta. Pesquisa de campo, 2015).

Essa discriminação que Carambola diz sofrer, mesmo com a saída do “mundo do
crime” pode estar relacionada ao fato de que pessoas com sua trajetória de vida reforçam
a crença de que possuem uma subjetividade peculiar, algo como um “carisma de valor
negativo”, fazendo com que sempre sejam taxados como “bandidos”.
De acordo com Misse (2010, p. 24), a formação de tal subjetividade peculiar está
vinculada aos processos de sujeição criminal. A primeira dimensão desse conceito é a que
seleciona um agente a partir de sua trajetória criminável, diferenciando-o dos demais
agentes sociais, por meio de expectativas de que haverá, em algum momento, demanda de
sua incriminação. Já, a segunda dimensão é a que espera que esse agente tenha uma
“experiência social” específica, conseguida em suas relações com outros bandidos e/ou
com a experiência penitenciária.
Assim, trazer o sujeito criminal de volta à norma e à sociabilidade convencional
representaria, portanto, um processo da magnitude de uma “conversão” ou “reconversão”,
e não é raro que esse processo se realize estritamente sob a forma de uma “conversão
religiosa”. Uma série de conversões que reintegram esse indivíduo à ordem social legítima,
também o reintegram como um indivíduo especial, cuja vivência diferenciada é
representada como passível de ter-lhe permitido acessar registros ontológicos incomuns.
“O carisma negativo se metamorfoseia em carisma positivo. Não basta que haja conversão,

80
é necessário dar-lhe o testemunho público. Não são poucos os casos em que o ex-bandido
se transforme no seu tipo oposto, em pastor, sacerdote ou mesmo em santo” (MISSE,
2010, p. 30).

Quando a experiência da sujeição criminal não é tão radical assim, ou é


atenuada por uma subcultura que lhe confere intersubjetividade
suficiente para arrefecer essa individuação extrema, o indivíduo, que
geralmente também não se desfiliou tão completamente dos vínculos que
o integram à ordem legítima, poderá abandonar a sujeição criminal
utilizando-se de recursos sociais mais variados e menos extremados.
Ainda assim, sua experiência anterior lhe servirá para diferenciar-se do
homem comum (MISSE, 2010, p. 29).

A conversão pela qual Carambola passou é uma questão interessante. Alguns


pontos de sua trajetória se assemelham com as asserções teóricas de Misse (2010), pois
Carambola é uma figura pública dentro da Favela Santa Marta, uma pessoa conhecida por
todas pelo seu carisma, pelo seu trabalho como guia turístico, como também, por organizar
diversos eventos na favela. O fato de toda comunidade o avistar conduzindo grupos de
turistas poderia delinear uma espécie de “testemunho público”, o que evidenciaria que
Carambola deixou o “mundo do crime” e redirecionou a sua trajetória. Outra questão que
Misse (2010) coloca é que para integrar-se ao “mundo social da ordem legítima” o sujeito
pode lançar mão dos mais variados recursos sociais.
Nesse sentido, Carambola utiliza em seu trabalho como guia turístico todo seu
estoque de conhecimento referente à favela, contando aos turistas histórias que se reportam
a época em que a favela era dominada por traficantes, porém, sempre busca enfatizar que
a favela vive outro momento hoje e que ela também possui aspectos positivos,

Porque nos telejornais sai que tem troca de tiros, morte...não...Porque


na favela não tem só coisa ruim, tem pessoas do bem, tem pessoas que
trabalham, pessoas que criam seus filhos com amor e carinho. Viver
numa favela não é fácil, ser taxado pela sociedade não é fácil. É viver
matando um leão por dia e correndo de dois (Entrevista com Carambola.
Pesquisa de campo, 2015).

Percebe-se também que, hoje, Carambola busca um novo self, o de “empreendedor


de sucesso”, que passou por vários momentos turbulentos em sua vida, mas que conseguiu
obter êxito, reconduzindo assim, a sua trajetória que anteriormente estava ligada ao
“mundo do crime”. “Hoje em dia, sou empresário, e proprietário do meu próprio

81
estabelecimento [..] saí da linha da pobreza e hoje sou um empreendedor de sucesso, e
muito sucesso, por sinal. Meus sete filhos, comem do bom e do melhor ” (Carambola). Ele
pode ser considerado uma espécie de personalidade na favela, pois frequentemente é
destaque em diversos meios de comunicação, sendo que inclusive sua trajetória como
empreendedor é utilizada em projetos publicitários do Banco do Brasil.
A mudança na trajetória de Carambola se reporta ao fato do empreendedorismo
unir a retórica política e os programas regulatórios às capacidades de “autodireção” das
pessoas. Como parte da dimensão do poder político, “o empreendedorismo forja uma
ligação entre as formas pelas quais somos governados pelos outros e as formas pelas quais
deveríamos nos governar” (ROSE, 2011, p. 215). Nesse prisma, o empreendedorismo se
vincula a uma série de regras para a conduta da existência diária de uma pessoa: energia,
iniciativa, ambição, cálculo e responsabilidade pessoal. O self empreendedor seria então
um ser tanto ativo quanto calculador, um self que calcula sobre si próprio e que age sobre
si mesmo a fim de aprimorar-se. O empreendedorismo, em outras palavras, designa uma
forma de governo que é intrisecamente “ética”: o bom governo deve ser ancorado nos
modos pelos quais as pessoas governam a si próprias (ROSE, 2011).
De acordo com Rose (2011), a linguagem do empreendedorismo é somente uma
das maneiras de articulação de presunções éticas que são amplamente compartilhadas na
contemporaneidade e que passaram a formar um consenso para quase todas as
racionalidades, programas e técnicas de governo em sociedades democráticas liberais. O
governo nas sociedades ocidentais não é caracterizado pelo sonho utópico de uma
maquinaria regulatória que adentraria em todas as áreas do corpo social, administrando-os
para o bem comum. De forma distinta, desde o século XIX o pensamento político liberal
tem sido organizado pela oposição entre os limites constitucionais do governo de um lado
e, de outro, pelo desejo de planejar as coisas de modo que os processos sociais e
econômicos tenham o melhor resultado sem a necessidade de intervenção política direta.
Dessa maneira, as limitações formais sobre os poderes Estado têm produzido, como
consequência, a “propagação” de uma série de programas e mecanismos dispersos,
desvinculados das atividades diretas dos poderes públicos, os quais prometem, contudo,
moldar práticas no âmbito do trabalho, do mercado e da família para gerar valores
“públicos” tais como riqueza, eficiência, saúde e bem-estar.
A autonomia do self não pode ser classificada como a eterna antítese do poder
político, mas sim, um dos objetivos e instrumentos das mentalidades e estratégias modernas
de condução da conduta. A democracia liberal – se compreendida como uma arte de

82
governo e uma tecnologia de governar – há muito tempo tem estado vinculada a invenção
das técnicas para constituir os cidadãos de uma política democrática com as capacidades
“pessoais” e aspirações necessárias para suportar o peso político que repousa sobre eles. A
possibilidade de impor limites “liberais” sobre a extensão e a meta do governo “político”
tem sido sustentada pelo aumento de discursos, práticas, e técnicas por meio das quais as
capacidades de autogoverno podem ser instaladas em indivíduos livres a fim de fazer com
que suas próprias formas de condução e avaliação de si mesmos estejam alinhadas com
objetivos políticos,

Governar de acordo com a democracia liberal depende da


disponibilidade de tais técnicas que irão moldar, encaminhar, organizar
e direcionar as capacidades pessoais e os selfs dos indivíduos sob a édige
de uma pressuposta objetividade, neutralidade e eficácia técnica ao invés
de um a parcialidade política. Através das alianças indiretas estabelecidas
pelo aparato de expertises, os objetivos de um governo “liberal” podem
ser levados ao encontro dos selfs dos cidadãos “democráticos”. Ainda
mutações contemporâneas de governo tornaram-se não só imagináveis
como praticáveis pela multiplicidade de tecnologias que tem se unido
recentemente, ordenando e posicionando a liberdade regulada dos selfs
autônomos (ROSE, 2011, p. 216-217).

A ética do empreendedorismo – competição, força, vigor, ousadia, foco nos


aspectos externos e impulso para o sucesso – pode parecer oposta à ideia que está associada
com o hedonismo e o autocentramento. E de fato, a cultura contemporânea é tipicamente
pluralista: as diferenças que Max Weber examinou entre os “estilos de conduta” adequados
a diferentes “esferas de existênca” – espiritual, econômica, política, estética, erótica – não
foram abolidas. Mas apesar de tal pluralismo ético, esses diversos regimes operam dentro
de um a priori único: a “autonomização” e “responsabilização” do self, a instalação da
hermenêutica “reflexiva que proporcionará autoconhecimento e autodomínio, e a
operação de tudo isso sob a autoridade de especialistas que alegam que o self pode
conquistar uma vida melhor e mais feliz através da aplicação do conhecimento científico e
habilidade profissional” (ROSE, 2011, p. 219).
Segundo Rose (2011), o regime de subjetividade baseado no empreendedorismo
busca reforçar alguns mantras como: “torne-se inteiro, torne-se o que você quiser, torne-se
você mesmo”. Assim, o indivíduo deve tornar-se, por assim dizer, um empresário dele
mesmo, buscando maximizar seus próprios poderes, sua própria felicidade, sua própria
qualidade de vida e instrumentalizando suas escolhas autônomas a serviço do seu estilo de
vida.

83
Tal percepção fica evidente quando se observa que alguns dos empreendedores
das favelas “pacificadas” buscam enfatizar o sucesso que tiveram, destacando o esforço que
empregaram e o desejo de fazer as mudanças na sua vida por “conta própria”. Assim, o
self empreendedor deve delinear sua vida por meio de atos de escolha, e quando não
conseguir conduzir sua vida de acordo com essa norma de escolha, deve procurar ajuda
especializada (ROSE, 2011). Nas favelas pesquisadas é possível perceber que o Sebrae tem
um papel importante no direcionamento dos negócios dos moradores, tanto do papel de
identificar as potencialidades da favela, quanto no papel de induzir a um cálculo
responsável tanto do empreendimento, quanto da vida dos moradores, por meio de uma
série de “feiras e gincanas”, onde nessas ocasiões, eles ensinam como fazer o planejamento
adequado de determinado negócio.
Entretanto, Rose (2011) afirma que o sofrimento, a frustração, e a morte são
ameaças para o regime de self autônomo, pois atingem diretamente as imagens de
soberania, autodomínio, poderes onipotentes, satisfação secular e felicidade por meio do
estilo de vida como o qual se está vinculado. Perceber os limites da atuação do self
autônomo se refere a uma situação que os empreendedores do Complexo do Alemão
tiveram que lidar quando os tiroteios voltaram a se tornar frequentes na comunidade, após
uma breve pausa logo depois da instalação das UPPs. Muitos desses empreendedores
tiveram que interromper as atividades desenvolvidas no Alemão, para não colocar em risco
a vida dos turistas que adentravam a favela. “Como posso fazer contrato com operadora de
turismo sabendo que a qualquer momento o turista pode ficar preso no teleférico durante
o tiroteio?” disse Silvana (guia de turismo do Complexo do Alemão).
Já os empreendedores que conseguem desempenhar as suas atividades têm no
“empresariamento de si” uma forma de inserção no mercado de trabalho. Tomasi e
Velazeo (2013) salientam que se em décadas passadas a inclusão era concebida como
consequência da obtenção de um trabalho assalariado no Brasil, hoje é a figura do
empreendedor que se coloca como modelo e possibilidade de inclusão nas favelas.
Ao realizar um exame detalhado sobre a literatura de favela, Valladares (2005)
percebeu a existência de um consenso sobre umas poucas características da favela que com
o tempo se tornaram verdadeiros dogmas. Um desses dogmas se reporta ao fato de alguns
pesquisadores acreditarem que certas dinâmicas sociais são exclusivas das favelas. “Por sua
história particular e seu modo de crescimento diferente dos demais bairros, a favela tem
sido considerada, desde sempre, um espaço absolutamente específico e singular” (Idem,
p. 149). Assim, é preciso refutar esse dogma, pois quando se pensa nas políticas de

84
incentivo ao empreendedorismo nas favelas, torna-se relevante frisar que não se trata de
uma dinâmica especifica desses territórios, mas um modo de conceber o mundo que é
capilarizado por todos os grupos sociais.
Jessé Souza (2009) salienta que no Brasil se tem uma crença hegemônica ancorado
do economicismo. O ideal fundamental do economicismo se estrutura na percepção da
sociedade como sendo formada por um conjunto de homo economicus, isto é, agentes
racionais que calculam suas chances relativas na luta social por recursos escassos, com as
mesmas disposições de comportamento e as mesmas capacidades de disciplina,
autocontrole e autorresponsabilidade. Nesse olhar distorcido do mundo, o marginalizado
social é percebido como se fosse alguém com as mesmas capacidades e disposições de
comportamento do indivíduo da classe média, por exemplo. Por conta dessa visão, o
miserável e sua miséria são sempre classificados como contingentes e fortuitos, um mero
acaso do destino, “sendo a sua situação de absoluta privação facilmente reversível, bastando
para isso uma ajuda passageira e tópica do Estado para que ele possa andar com as próprias
pernas. Essa é a lógica, por exemplo, de todas as políticas assistenciais entre nós” (Idem,
p.16).
Para Foucault (2008), o self empreendedor ou homo economicus se refere ao
ponto abstrato, ideal e puramente econômico que povoa a realidade densa, plena e
complexa da sociedade civil. Nesse sentido, torna-se possível pensar que a sociedade civil
é o conjunto concreto no interior do qual “é preciso recolocar esses pontos ideais que são
os homens econômicos, para poder administrá-los convenientemente. Logo, homo
economicus e sociedade civil fazem parte do mesmo conjunto, o conjunto da tecnologia da
governamentalidade” (Idem, p. 403).
Dardot e Laval (2016) afirmam que a “governamentalidade empresarial” que
prevalece no plano de ação do Estado tem um modo de prolongar-se no governo de si do
“individuo-empresa” ou, mais exatamente, o Estado empreendedor deve como atores
privados da governança, conduzir indiretamente os indivíduos à conduzir-se como
“empresários de si”. Desse modo, o modo de governamentalidade própria do
neoliberalismo cobre o conjunto de “técnicas de governo que ultrapassam a estrita ação do
Estado e orquestram a forma como os sujeitos se conduzem por si mesmos. A empresa é
promovida a modelo de subjetivação: cada indivíduo é uma empresa que deve se gerir e
um capital que deve se fazer frutificar” (Idem, p. 378).
Essa subjetivação da forma empresa pelos favelados pôde ser observada durante a
pesquisa de campo, pois com a “pacificação”, teve-se a criação de um dispositivo formado

85
conjuntamente com instituições governamentais e não governamentais que configura a
favela como um campo de “oportunidades”, em que a intencionalidade individual é
presumida como preponderante para tornar-se um “empreendedor de sucesso”. O
dispositivo acaba apreendendo o indivíduo e o induz a pensar em termos de ganhos sobre
sua vida, é utilizado como recurso das novas formas de cálculos e estratégias administrativas
contemporâneas, sendo responsável pela produção de novas subjetividades. Essas
subjetividades são estruturadas de modo de surjam governos de si, cumprindo assim, as
metas do poder político. E um dos objetivos dos gestores públicos quando atuam em suas
margens é criar políticas de redução da violência, pois avaliam que, uma das causas da
mesma se reporta ao fato dos pobres não terem oportunidades, sendo assim, para o poder
público o empreendedorismo, em tese, supriria esse problema. A seguir, tem-se as
considerações finais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O dispositivo da pacificação apresenta como objetivo principal a normalização e


naturalização do policiamento permanente e do discurso do controle, que por sua vez, tem
como argumento inicial a melhoria na segurança, como também, a chegada e efetivação de
direitos sociais que na prática até o momento não passam de uma triste ilusão. Nesse
prisma, a instauração de tais políticas de segurança também representa uma simplificação
da questão da pobreza ao achar que a favela se restringe somente a uma questão de “gerir
a violência”, não buscando dirimir causas sociais que permitem a produção da
criminalidade, no caso brasileiro, a inclusão social indecente que é disponibilizada a essas
populações (SOUSA, 2009).
Assim, apesar dessa mobilidade de polícia ter trazido alguns benefícios em virtude
de sua proximidade com os moradores, foi constatado que nos territórios apreciados pelo
estudo, a polícia pacificadora tem uma missão disciplinar que transpassa a defesa da favela
do controle imposto pelos traficantes, pois as suas ações provocam uma intervenção nos
comportamentos, moralidades e sociabilidades, isto é, uma “purificação” da favela em
todos os sentidos, “Acompanhando o processo de pacificação repressiva e a pretensa
integração entre a favela e asfalto, realiza-se, sobretudo, o consumo de certos aspectos
simbólicos da vida cotidiana das comunidades” (BOTELHO, 2013, p. 210).
A percepção do autor se relaciona com o fato da favela ter sido transformada em
um “bem cultural”, destinado ao consumo de turistas e visitantes. O processo de
turistificação, porém, não compreende todas as favelas do Rio de Janeiro, mas sim, apenas

86
aquelas que possuem características singulares. As favelas da Zona Sul levam imensa
vantagem em relação às demais em virtude da localização estratégica que as mesmas
possuem dentro do circuito turístico da cidade. Além do “fator localização”, as
comunidades de Santa Marta, Morro dos Cabritos/Ladeira dos Tabajaras, Pavão-
Pavãozinho, também levam vantagem em seu delineamento enquanto atração turística, em
virtude dos conflitos armados – entre traficantes e polícia – não serem tão frequentes. Essa
vantagem fica evidente quando se compara tais localidades com o Complexo do Alemão,
que após um curto “efeito paralisante” propiciado pela instalação da UPP – que segundo
os moradores durou dois anos – configurou-se na percepção pública, como um local a “ser
evitado”, em virtude dos tiroteios rotineiros.
Mesmo enfrentando diversos desafios, os moradores de favela são estimulados para
“seguirem em frente”, para que assim, encontrem no mercado a “solução” para as suas
aflições. Por meio do incentivo de diversas políticas instituídas por entidades
governamentais e não governamentais, percebeu-se o surgimento de diversos
empreendedores, como: guias de turismo, vendedores de souvenires, proprietários de
pequenos restaurantes e lanchonetes, como também, pessoas que transformam as lajes de
suas casas em “espaços culturais” com o intuito de receber turistas. A lógica de ação desses
empreendedores compreende a luta pelo “seu lugar no mundo”, o ato simbólico de
“arregaçar as mangas”, tornar-se protagonista do seu destino, ao mesmo tempo, em que
deixa de esperar por “algum tipo de socorro estatal”.
O empreendedorismo dos pobres pela via do mercado legal se encontra em fase
ascendente no Brasil, sendo umas das principais políticas incentivadas pelas instituições
governamentais quando atua em suas margens. O que pode estar em jogo é uma nova
faceta da política e do capitalismo brasileiro, investir na circulação do dinheiro na favela
como forma de mediar o conflito e reatualizando assim, a atuação dos dispositivos de poder
nas periferias.
Assim, a gestão desses territórios compreende uma racionalidade governamental
cujas práticas fazem com que – a figura do “cidadão” amparado por uma responsabilidade
coletiva – desapareça pouco a pouco, para dar lugar ao “sujeito empreendedor”. Um sujeito
que não é apenas um “consumidor soberano” da retórica neoliberal, mas sim, um sujeito
ao qual a sociedade “não lhe deve nada”, aquele que “tem que esforçar-se para conseguir
as suas coisas” (somente para destacar um dos mantras desse modo de governo).
O ideário da ação pública quando pensa em um plano futuro para os moradores
de favela não é conformá-los como sujeitos de direitos, mas sim, como atores

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empreendedores que fazem os mais variados contratos privados com outros atores
empreendedores. Longe de ser “neutra”, a reforma gerencial da ação pública atenta
diretamente contra a lógica democrática da cidadania social, “reforçando as desigualdades
sociais na distribuição dos auxílios e no acesso aos recursos em matéria de emprego, saúde
e educação, ela reforça as lógicas sociais de exclusão que fabricam um número crescente
de subcidadãos e não cidadãos” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 381).
Enfim, as mentalidades de governo e tecnologias de regulação operam em termos
de uma ética do self, buscando assim, tornar a maximização da escolha e da autorrealização
como critérios de legitimação política. Enquanto isso, os bravos “empreendedores
criativos” que fizeram parte desse estudo possuem – a talvez nada simples – aspiração de
“ser gente”.
As discussões levantadas nesse trabalho se referem a uma apreciação inicial sobre
as questões que envolvem os sujeitos empreendedores da favela turística, sendo mais que
pertinente à complementação das explanações desse estudo.

REFERÊNCIAS

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88
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sobre a categoria “bandido”. Artigo, 2010. Lua Nova, São Paulo. Disponível em:
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SOUZA, Jessé. Ralé brasileira: quem é e como vive? Belo Horizonte: Editora UFMG,
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ZALUAR, Alba. Dilemas, desafios e problemas da UPP no Rio de Janeiro. Brasa.


Brazilian Studies Association. Ano: 2014.

89
FORÇAS ATIVAS E REATIVAS: A ESTÉTICA DA RESISTÊNCIA
RADICAL NAS RUAS E NAS LUTAS COTIDIANAS

Francine RIBEIRO24

Resumo: As recentes manifestações políticas nas ruas que contrariam a vontade da permanência
no status quo das forças reativas do Estado, do mercado e das elites, ou seja, das reações que evocam
a uma radicalidade a partir do próprio corpo, ao enfrentar com coragem os agentes de estado na
figura da polícia ou de seus representantes, carregam uma estética, uma mensagem. A partir do
trabalho fotográfico de Rodrigo Lopes Bessa, que tem acompanhando nos últimos anos as
manifestações de cunho progressista, buscarei analisar a luz do pensamento pós-estruturalista
proposto por Gilles Deleuze e Michel Foucault, a mensagem que esses sujeitos têm expressado, do
questionamento em relação a ocupação do espaço urbano, ao capitalismo, até a produção de novas
subjetividades. Sem máscara, de rosto coberto, ou vestido em negro como adeptos a tática black
bloc, os resistentes mais do que um objetivo final de transformação, revelam possibilidades de
passagens para outros modos de ser e de vida. Significados variados os levam a lutar, lutam por si,
lutam por liberdade, os indomáveis rejeitam a docilidade imposta, imbuídos de espirito crítico não
se limitam as vias institucionais, ao contrário, com o próprio corpo militam pelas margens e buscam
captar e gerar a solidariedade dos homens comuns. Além dessas experiências esporádicas, mas não
efêmeras, diversos grupos da nova sociedade civil organizada formado por coletivos, têm marcado
uma resistência cotidiana e de base. Os coletivos de periferias que no trabalho serão pensados,
convergem em narrativas, se completam, cambiam e combinam estratégias com os que se focam
suas energias em protestar, por fim, marcam a posição alternativa aos partidos e canais falsamente
cedidos pelo Estado a participação popular.

Palavras-chave: Resistência. Estética. Manifestações. Coletivos. Fotografia.

INTRODUÇÃO: IDENTIFICANDO A PRESENÇA DO ESTADO E SUA


POLÍCIA NOS PROTESTOS

Em meio ao controle contínuo, que a cada dia está mais aperfeiçoado em razão das
tecnologias de informação, o agenciamento, o devir revolucionário25 e a criação de espaços
de resistência e emancipação se tornam indispensáveis para reverter quadros de injustiça.
Importante notar que os efeitos dessas ações não objetivam necessariamente a participação
na política institucional.
Foucault (2015) observou que a tecnologia de poder não se restringe em aniquilar
os estigmatizados com perfil já consolidado como desviante: o negro, pobre e periférico; o
dispositivo polícia funciona também como repressor de possíveis ebulições diante de um
governo reacionário. A operacionalidade da segurança está acima das leis (CANDIOTTO,
2014).

24
Mestranda pela UFABC. E-mail: Francine.ribeiro@ufabc.edu.br.
Conceito filosófico ligado a transformação, ao tornar-se. Para conhecer melhor a ideia de devir, consultar:
25

DELEUZE, Gilles. Controle e Devir, In: Conversações. São Paulo; Editora: 34, 2013: 213-222.
90
Nesse sentido, a recente exposição de parte da população em mobilizações nos
espaços públicos com protestos, fez com que o debate sobre a atuação da polícia fosse
aprofundado na mídia alternativa. Segundo levantamento da ONG Article 19, o uso de
armas menos letais é um dos grandes problemas nos protestos brasileiros, pois dá margem
ao seu uso indiscriminado causando graves lesões. Somado a isso, tem-se os recentes
investimentos26 em armamento e treinamento por parte do Estado a fim de reprimir.
Raquel Rolnik (2016) analisou o Orçamento do Estado para 201627 e constatou que
apesar da crise e dos cortes de gastos públicos, o orçamento aumentou para a segurança
pública, sendo que, a maior parte desse montante foi direcionada ao policiamento. Maior
do que nas áreas de cultura, desenvolvimento social, habitação e saneamento básico, foi o
volume de recursos destinados ao sistema penitenciário. Tais prioridades de investimentos
revelam que as escolhas do governo do Estado apontam para o aumento da repressão e de
manutenção de uma perspectiva punitivista em detrimento de áreas voltadas ao
desenvolvimento e dignidade humana, incluindo aqui, a educação, a saúde e o transporte,
áreas que tiveram redução de investimento (GARLAND, 2008).
A repressão estatal não se dá apenas em espaços abertos – favelas, locais de protesto
e onde quer que estejam os não-privilegiados também sofrem seus efeitos. Olhando mais
a fundo a repressão e os excessos da polícia em manifestações, a ONG Artigo 19,
disponibilizou um relatório em que foi analisado os anos de 2014 e 2015. É sabido que as
conhecidas “Jornadas de Junho” foram manifestações de expressivo contingente numérico
e que naquele momento a abordagem policial ficou ainda mais conhecida pelo seu
tratamento abusivo a civis. Esse modus operandi que é anterior a 2013, permaneceu.
Intitulado “As ruas sob ataque”28 o relatório confirmou a pouca liberdade de
expressão dos brasileiros. A ONG monitorou as manifestações e suas conclusões podem
ser sintetizadas da seguinte forma: o levante popular estendeu-se, as pessoas se
reconheceram nas ruas; o direito de se organizar e fazer protestos é violado no Brasil todo,
vide a violência sofrida pelos professores do Paraná em abril de 2015; diferentemente dos
abusos cometidos em 2013, as forças policiais em 2014 foram mais estratégicas e
focalizadas, impedindo, inclusive, que um protesto se iniciasse; não houve repressão

26
Cf. <http://www.planejamento.sp.gov.br/noti_anexo/files/orcamento/Lei_16083_de_28_12_2015.pdf>;
Site: <http://www.planejamento.sp.gov.br/>. Acessos em: 22 jul. 2016.
27
Cf. Matéria completa em:
<http://www.planejamento.sp.gov.br/noti_anexo/files/orcamento/Lei_16083_de_28_12_2015.pdf>; Site:
<http://www.planejamento.sp.gov.br/>. Acessos em: 22 jul. 2016.
28
Cf. Relatório completo: “As ruas sob ataque”. Em: <http://artigo19.org/blog/2015/09/10/as-ruas-sob-ataque-
protestos-2014-e-2015/>; Site: <http://artigo19.org/>.91
Acessos em: 20 jun. 2016.
policial em protestos29 de cunho direitista e conservador; e por fim, agentes do Estado que
cometeram atos violentos em 2013 ainda não foram responsabilizados (ARTIGO 19,
2015).
Ainda de acordo com o relatório, a repressão passou por modulação, à medida que
se percebeu que seria mais eficiente outras formas de repressão. A criminalização e
penalização de manifestantes foram agravadas, pois aumentou-se o número de detidos em
protestos por serem enquadrados como vândalos, além dos aparatos para repressão terem
sido incrementados com investimentos. Os policiais em atividade nos protestos passaram
a ser identificados por números e não mais por seus nomes, com o intuito de dificultar
possíveis denúncias. Por que policiais teriam receio de serem identificados pelos civis? Isso
não é uma novidade, mas para fins de referência, em 1 de julho de 2014, policiais sem
identificação faziam monitoramento em uma reunião aberta cuja discussão englobava os
atos que ocorreram durante o período da Copa do Mundo e a violência e repressão policial
na forma de lidar com esses atos e protestos. Além de não ter qualquer respaldo legal,
ainda foram presos de maneira arbitrária dois advogados do coletivo Advogados Ativistas
por terem questionado a ausência de identificação de alguns deles (ARTIGO 19, 2015, p.
28-29).
A sofisticação de técnicas que mantêm o Estado policial se ampliou, tanto no que
diz respeito ao monitoramento de protestos nas redes sociais - que, hoje, podem ser
entendidas como um canal eficiente de organização -, como nas próprias estratégias de ação
dos policiais. Em 2014, por exemplo, adotou-se a formação de Kettling ou cordões
policiais. Permaneceu o uso indiscriminado de armas menos letais, como a bala de
borracha, o spray de pimenta e as bombas de gás lacrimogênio que, justamente pelo seu
uso indiscriminado, podem se tornar letais30.
Por fim, em "As ruas sob ataque", percebemos que a polícia militar brasileira se
exime dos padrões internacionais de exercício das atividades as quais está incumbida. Isso
pode ser notado por todos esses abusos que interrompem a livre manifestação, reunião e
organização a fim de externalizar reinvindicações. Portanto, é uma atuação contrária ao que
a Corte Interamericana de Direitos Humanos e a ONU estabelecem como liberdade de

29
“A democracia tutelada demonstrou toda sua capacidade de isolar e criminalizar protestos sociais”
(ZIBECHI, 2015: 117).
30
Cf. Relatório completo: “As ruas sob ataque”. <http://artigo19.org/blog/2015/09/10/as-ruas-sob-ataque-
protestos-2014-e-2015/>; Site: <http://artigo19.org/>. Acessos em: 20 jun. 2016. Observar também a notícia
“PMs vão testar câmeras acopladas à farda durante patrulhamento em SP” de 12/01/17 por Luís Adorno da
PONTE jornalismo, disponível em: <http://ponte.cartacapital.com.br/pms-vao-testar-cameras-acopladas-a-
farda-durante-patrulhamento-em-sp/>; Site: <http://ponte.cartacapital.com.br>.
92 Acessos em: 13 de mar.
2017.
expressão31. Ainda sobre protestos, a Anistia Internacional divulgou em 13 de janeiro do
presente ano uma constatação: “Polícia Militar de São Paulo continua reprimindo protestos
pacíficos com o uso excessivo e desnecessário da força e detenções arbitrárias”32. Neste
episódio, os policiais cercaram os manifestantes no protesto do dia anterior (12 de janeiro
de 2016) e impediram que continuassem o trajeto programado, sendo que batalhões da
tropa de choque agiram com truculência, utilizando bombas de dispersão. Cerca de 30
pessoas foram detidas.
Em novo relatório “Nas ruas, nas leis, nos tribunais”33, a Artigo 19 pontuou práticas
opostas ao Estado de Direito que se repetem e identificou novas técnicas utilizadas pela
PMESP para minar o direito à manifestação, sendo elas: envelopamento 34; expulsões;
isolamento; bloqueio de comunicação pelo celular; inquéritos policiais e constrangimentos
em delegacias; ausência de protocolos específicos de uso da força; e empregar sigilos a
pedidos de informação.
Já o relatório da Anistia Internacional lançado em 2014 “Eles usam a estratégia do
35
medo” retrata a necessidade de repensar a proteção ao direito a protestar no Brasil. Nesse
relatório, foi detalhado o que vem ocorrendo em protestos desde as jornadas de junho de
2013. Os policiais encurralam manifestantes, lançam gás lacrimogênio por onde passam e
spray de pimenta em seus olhos, agridem seus corpos com cassetetes e, em certos casos,
batem até que percam muito sangue e os dentes. E, além de prenderem arbitrariamente,
negam acesso à assistência legal aos manifestantes. Por fim, há uma falta de
responsabilização dessa violência. A impunidade, aqui também, se torna regra.

31
Cf. Declaração de princípios sobre liberdade de expressão da CIDH em:
<http://www.corteidh.or.cr/sitios/libros/todos/docs/libertad-expresion.pdf>;
Site:<http://www.corteidh.or.cr/>. Acessos em: 22 jul. 2016.
32
Cf. Matéria completa da Anistia em: <https://anistia.org.br/noticias/policia-militar-de-sao-paulo-continua-
reprimindo-protestos-pacificos-com-uso-excessivo-e-desnecessario-da-forca-e-detencoes-arbitrarias/>; Site:
<https://anistia.org.br>. Acessos em: 10 jun. 2016.
33
No lançamento do relatório foram ainda revelados alguns projetos de leis que estão tramitando, cuja
finalidade é criminalizar a livre manifestação pública. Camila Marques da Artigo 19, ainda, exemplificou a lei
que já está sendo executada em vários estados do Brasil, nº 12.850 Da Organização Criminosa, revelando a
errônea aplicabilidade da mesma quanto a democracia.
34
“O ‘envelopamento’ é uma técnica em que policiais 93 acompanham um protesto por todos os lados,
ocupando não apenas seu entorno, mas também ruas paralelas e locais para onde os protestos se destinam.
Esse tipo de postura dos agentes do Estado viola o direito a livre circulação” (Artigo 19, 2017: 25).
35
Cf. Relatório “Eles usam a estratégia do medo” completo em:
<https://www.amnesty.org/en/documents/amr19/005/2014/en/>; Site: <https://amnesty.org.>. Acessos em: 10
jun. 2016.
DAS NARRATIVAS CONTRA HEGEMÔNICAS

Apesar da análise que este artigo se propõe orbitar nas narrativas presentes nas
imagens captadas em protestos, os discursos de coletivos periféricos são fundamentais para
entender a luta em seu cotidiano. De vertente alternativa, tentam superar o status quo
violento e hegemônico, e nisso consolidam o lugar da parresía36, ou seja, por meio do
discurso superar a condição de impotência e vitimização assumindo uma posição de
enfrentamento, voltando-se contra quem promove a injustiça. Foucault (2013) expandiu a
discussão desse conceito e enfatizou a necessidade desse discurso-denúncia ser público,
diante de todos, na claridade do dia, pois isso ressalta o próprio direito e a negação de sua
aplicabilidade, e coloca em xeque a onipotência pretendida pela força contrária e
desafiadora do sujeito. Escapar das subserviências é essencial para que a chamada
Revolução vinda de baixo aconteça. Todavia, as resistências que pertencem à esquerda
desenvolvem um tipo de ação que não foge aos limites colocados pelo governo, aos graus
de liberdade são cedidos por ele que em contrapartida, tem o enfraquecimento de uma
resistência de caráter inegociável por parte desses primeiros.

O povo só poderá ser livre quando, organizando-se de baixo para cima,


por meio de associações autônomas, ele próprio criar sua vida. O
indivíduo não poderá ser livre se os outros não forem. Bakunin define a
liberdade como um resultado da associação humana. A liberdade é uma
criação sociohistórica, um valor positivo, a obra de todos e de cada um.
A grande diversidade das capacidades, das energias, das paixões, que os
seres humanos trazem, interagindo uns com os outros, é a riqueza da
sociedade. Graças a essa diversidade “a humanidade é um todo coletivo,
no qual cada um completa todos e necessita de todos; de sorte que essa
diversidade infinita dos indivíduos humanos é a própria causa, a base
principal de sua solidariedade, um argumento todo-poderoso em favor
da igualdade. Toda liberdade humana que não seja um privilégio, exige,
necessita da igualdade (COLOMBO, 2016, p. 118).

Com base no pensamento de Foucault (2006), a resistência ativa e libertadora é


exercida de múltiplas formas, iniciada por meio de práticas de si pode operar dentro da
lógica contra hegemônica; de contra conduta; de desconstrução, sem necessariamente estar
restrita a noção mecânica de ação versus reação, já que se compromete com a produção
de subjetivação, de práticas de liberdade, de atitudes críticas e insurrecionais e por fim,

36
“O discurso pelo qual o fraco, a despeito da sua fraqueza, assume o risco de criticar o forte pela injustiça
que ele cometeu, esse discurso se chama precisamente parresía”. FOUCAULT, Michel. O governo de si e
dos outros. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2013, p. 125.
94
promove uma outra estética da existência. O poder produzido pela resistência é contrário
ao poder repressivo e de imposição, ele orbita na defesa da liberdade e sua plenitude. A
inquietude diante da opressão transfigurada em lutas públicas e visíveis é parte essencial
para que a memória de um fato seja nutrida em meio a sociedade.
Priscila P. Vieira (2013), à luz do pensamento de Foucault, trabalhou a noção de
resistência ao poder e suas formas através da busca de novos modos de viver, ao recusar as
imposições totalizantes ligadas a estrutura de poder moderno que enaltece o governo da
individualidade. Não estar sujeito a algo ou alguém pelo controle e dependência e se negar
a uma identidade de indivíduo assujeitado, é o que os movimentos sociais progressistas
buscavam na época analisada, ou seja, reposicionar as relações de poder que entranhavam
nas subjetividades de forma destrutiva. Portanto, vivenciar uma subjetividade
desindividualizante torna possível uma outra relação de si consigo mesmo, e o ser sujeito
de si e deter a verdade a fim de propor ações, de liberar forças criativas. É um modo de se
chegar a uma vida não fascista37. Reagir a uma condição indigna, indesejada e tomar o seu
próprio destino para si não reconhecendo interferências de forças que se pretendem
soberanas38, é parte do processo de conscientização e transformação, ao recusar, ao resistir
e por fim, ao revoltar-se diante de imposições que corrompem a existência humana. É,
portanto, se posicionar em meio aos jogos de poder.
Na pesquisa de mestrado intitulada “Resistências ativas e Resistências Reativas: Um
estudo sobre os coletivos que contestam as práticas violentas da Polícia no Estado de São

37
Cf. Prefácio de Foucault para o Livro “Anti-Édipo” de Deleuze e Guattari, em Uma Introdução à vida não
fascista, o filosófo expõe alguns princípios essenciais para se afastar de olhares e práticas fascistas, sendo eles:
Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
 Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do
que por subdivisão e hierarquização piramidal;
 Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o
pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade.
Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis
aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;
 Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja
abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui
uma força revolucionária;
 Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política,
para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como
um intensificador do pensamento, e a análise como 95 um multiplicador das formas e dos domínios de
intervenção da ação política;
 Não exija da ação política que ela restabeleça os "direitos" do indivíduo, tal como a filosofia os
definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é "desindividualizar" pela multiplicação, o
deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos
hierarquizados, mas um constante gerador de "desindividualização";
 Não se apaixone pelo poder.
Paulo”39 foi observado cinco grupos da sociedade civil organizada que têm o combate a
violência policial como pauta principal, sendo eles: O Fórum Social em defesa da Vida e
Superação da Violência, o Comitê contra o genocídio da Juventude Preta, Pobre e
Periférica – organizações que em sua composição incluem vários coletivos -, o Coletivo
Perifatividade, o Coletivo Autônomo Herzer e o Movimento Independente Mães de Maio.
Embora esses grupos recorram as estratégias públicas para expor suas demandas, as
micropolíticas ganham protagonismo em suas ações - que estão mais focadas na formação
da resistência, na denúncia e no apoio às famílias e vítimas da violência policial. A
regularidade de encontros organizacionais e de atividades os diferenciam da pontualidade
que caracterizam os que tem no protesto sua única e máxima expressão de agir
politicamente.
Sem adentrar no âmbito das variadas formas de ações que todos esses grupos
utilizam, cabe aqui revelar o que tem se repetido em seus discursos: o questionamento
quanto a Democracia Brasileira e suas Instituições. Portanto, é compreensível que a
inexistência de resultados efetivos após décadas de ações que visavam mudanças via
instituições, passassem a ser repensadas dada a contínua conduta do Estado direcionada a
população mais vulnerável. Essa desconfiança quanto a existência plena da democracia é
o ponto comum entre esses grupos aqui mencionados e o que as imagens a serem
analisadas revelam.

A IMAGEM DE LUTA: BREVE ANÁLISE DOS PROTESTOS A PARTIR DAS


LENTES FOTOGRÁFICAS

No ano de 2016 eclodiram na capital paulista uma série de protestos de corrente


progressista, estando nas ruas pelo “Fora Temer”, ou por motivações que escapam a via
institucional ou ao seu reestabelecimento no que tange a democracia-, corajosos
enfrentaram o poder que se pretende hegemônico transfigurado em polícia, burguesia e ao
que é público – do Estado, com seus corpos. Através do trabalho fotográfico analógico de
Rodrigo Lopes Bessa, pode-se, em certa medida, apreender as sutilezas e os radicalismos
das insurgências nas ruas.
Antes de observar as imagens, é importante ressaltar que elas retratam formas de
Ação Direta.

39
RIBEIRO, Francine. Resistências ativas e Resistências Reativas: Um estudo sobre os coletivos que
contestam as práticas violentas da Polícia no Estado de São Paulo . Dissertação de mestrado em Ciências
Humanas e Sociais pela UFABC, 2017.
96
O termo “ação direta” vem dos anarquistas. Significava todo um conjunto
de ações imediatas praticadas com o fim de minimizar, pressionar ou
constranger determinadas situações desfavoráveis (...). Greves, boicotes,
insurreições, protestos pacíficos ou violentos, dependendo da situação,
entravam nesse conjunto de ativismo denominado “ação direta”. O traço
que os une é a negação da existência de sistemas de representação (como
os partidos) para que as lutas se travassem dentro de instituições
mediadoras e/ou reguladoras (OLIVEIRA, 2014, p. 98).

Ademais, é preciso notar que a sequência de fotos40 estão sujeitas a interpretações a


partir de olhares e do que é anterior ao que será aqui apresentado, diz respeito as
perspectivas e valores de cada um, que remetem e reverberam em subjetividades próprias.
Dito isto, a primeira foto a ser refletida revela a coragem, enquanto pessoas correm em
direção oposta, ou se negam ao enfrentamento direto, um sujeito luta e não se intimida
diante das forças reativas. Protegeu seu rosto e suas mãos por saber dos mecanismos que
o Estado utiliza para conter sua indignação em forma de protesto.

Fonte: BESSA, Rodrigo Lopes. Foto1 – Ano 2016.

Na segunda foto o embate fica ainda mais evidente, um jovem se coloca em frente
aos camburões policiais. Mesmo com todo aparato bélico e proteção do que pode ser
entendido como a força opositora tem, a fragilidade e vulnerabilidade que se encontra não

40
As fotos que nesse trabalho serão expostas pertencem a Rodrigo Lopes Bessa, e estão proibidas de serem
reproduzidas em outros lugares sem seu prévio consentimento.

97
impedem que sua resistência tome o campo de disputa e dê um outro significado para
aquele espaço.
“É o momento no qual um homem prefere o risco da morte à certeza de ter de
obedecer” (VIEIRA, 2013. p. 66). Essa citação faz alusão ao pensamento de Foucault em
“É inútil Revoltar-se”, e endossa a noção da necessidade de agir politicamente, ao contrário
do que aferiu Albert Camus (2017), que creditava a resistência como algo inicialmente
inerente à condição humana, a qual funciona como um mecanismo da própria existência.

Fonte: BESSA, Rodrigo Lopes. Foto 2 – Ano 2016.

Na foto seguinte a performatividade do oprimido evidencia a não sujeição ao que


está posto. O resistente reconduz a sua origem a bomba de gás que foi arremessada em sua
direção por policiais que formavam uma barreira. Algo interessante nessas três primeiras
imagens é a ausência de uma coletividade ou massa, significando que a urgência de se
revoltar supera o medo e a falta de preservação de si mais facilitada em multidões - mesmo
que de grupos menores.

Tem-se razão ou não de se revoltar? Deixemos a questão aberta.


Revoltar-se, é um fato; e é por isso que a subjetividade (não aquelas dos
grandes homens, mas de qualquer um) entra na história e lhe dá seu
sentido. Um delinquente coloca sua vida em risco contra os castigos
abusivos; um louco não pode mais ser encarcerado (...); um povo recusa
o regime que o oprime. Isso não torna o primeiro inocente, nem o
segundo derrotado, nem assegura ao terceiro o futuro prometido.
Ninguém, aliás, está apto a ser solidário a eles. Ninguém está apto a dizer

98
que essas vozes confusas cantam melhor que as outras e cantam a
profundidade do verdadeiro fim. Basta que elas existam e que elas
tenham contra elas tudo o que se obstina em lhes fazer calar, porque
existe um sentido em escutá-las e em entender o que elas querem dizer
(FOUCAULT, 2006, p. 793).

Fonte: BESSA, Rodrigo Lopes. Foto 3 – Ano 2016.

Foucault (2006) parece discordar da ideia de que seja inútil revoltar-se e de que
nada é capaz de mudar o estado de coisas, ao contrário, nos faz entender que insurgir-se é
um alento e é parte da história. Nesse sentido, da insatisfação nasce a revolta – impulso de
vida –, o qual pode assentar a revolução permanente. O sentido revolucionário já não tem
a ver com a reorganização institucional, ou algum tipo de negociação, mas sim, com uma
nova configuração de mundo. A força estratégica presente nas insurreições e sua
capacidade de destruir o estado de coisas de forma duradoura baseia-se no seu nível de
auto-organização não só no tocante de ações políticas, como também, da própria vida
comum (COMITÊ INVÍSIVEL, 2016).
Com outras composições, as fotos subsequentes mostram a afetividade e
solidariedade a partir da vontade comum de transformação. A potência está com a
multidão41 que não perde poder para o Estado, pois o poder emana dos sujeitos
(COSSUTA, 2016). Isso converge com a perspectiva anarquista que aborda o conceito de

41
A multidão aqui deve ser entendida a partir da reflexão de Antonio Negri em “A Multidão”, pois o autor
atribui identificações de causa, sentidos e finalidades que unem grupos de pessoas e as mobilizam, ou seja,
se afasta da noção que determina multidão como massa; povo ou de grupo composto por contingentes
expressivos. A multidão em Negri pode, inclusive, ser formada por grupos pequenos e heterogêneos,
contanto que, tenham uma razão política comum capaz de unir sujeitos.
99
insurreição contemporânea, pois para que a mesma ocorra, as potências devem eclodir no
sentido de destituir o poder vigente em sua gênese; seu fundamento; vencê-lo na rua;
desmantelar seus aparelhos e incendiar seus símbolos (COMITÊ INVÍSIVEL, 2016: 89).
É possível observar essa potência contestadora na quarta foto deste trabalho, em que
manifestantes em frente e sobre o Monumento às Bandeiras se apropriaram dele de forma
criativa a fim de dar visibilidade a sua reinvindicação, ao mesmo tempo em que
confrontavam o poder que o monumento representa.

Fonte: BESSA, Rodrigo Lopes. Foto 4 – Ano 2016.

Uma vez que o pacifismo assegura “contratos” entre subordinados e soberanos, por
vezes, formalizados juridicamente, o sentido da resistência passa a ser questionado pelo
fato de sua potência ser diluída diante das limitações e preferências impostas por quem
detém o poder. Ao não participar dos jogos de poder ofensivamente e, portanto, não alterar
seu ordenamento e dinâmica, resulta na permanência do status quo atual, que significa o
prolongamento das vontades de uma elite política e econômica incorporadas nas políticas
e decisões do Estado. “Décadas de pacificação das massas e de massificação dos medos
fizeram do pacifismo a consciência política espontânea do cidadão” (COMITÊ
INVÍSIVEL, 2016, p. 170).
A quinta foto dessa série de análise conceitua o que tanto para Foucault como para
Espinosa é central: o corpo como instrumento de ação. Gleizer (2005), a partir de
Espinosa, falou sobre as afecções e seus desdobramentos, elas se produzem nos corpos e
dão forma às potências – que podem ser aumentadas ou diminuídas e isso está diretamente

100
relacionado às ideias que podem ser favorecidas ou entravadas. Portanto, remete a um
esforço interdependente e constitutivo. O grande desafio para os coletivos e para os
manifestantes é reabilitar os afetos ativos – esse tipo é capaz de libertar as pessoas de
concepções individualizantes e movê-las para a causa, a fim de que a luta ganhe mais
adeptos insurgentes, dado que, a violência policial e as injustiças promovidas de diversas
formas assim como seus efeitos, desequilibram a sociedade e diante da inação dos corpos
e de suas potências, avançam e destroem o interesse de cada um pela autopreservação da
vida e sua dignidade.

Fonte: BESSA, Rodrigo Lopes. Foto 5 – Ano 2016.

Ainda nesta quinta foto é possível observar que jovens encobertam seus rostos, essa
similaridade de posicionamento político-estético lhes dá certa identidade compartilhada.
Por vezes, essa escolha é criticada em meio a sociedade. Contudo, retomando um pouco
a história, com referências ao movimento autonomista alemão dos anos 80 e
posteriormente, durante os movimentos antiglobalização em Seattle (1999) e em Gênova
(2001), onde a eclosão da tática Black Bloc se materializou (SOLANO; et. al, 2014), muito
embora no senso comum e na mídia tradicional tenha uma conotação negativa por serem
lidos como bardeneiros – com ausência de sentido político –, pesquisas recentes foram
feitas acerca da prática nos protestos em São Paulo e provam o contrário.
A tática Black Bloc exprime uma resistência multifacetada, há uma preocupação
quanto a comunicação, ou seja, deixar claro a mensagem e o propósito das ações tem sido

101
algo repensando por adeptos mais velhos, pois a grande mídia já desempenha um papel
criminalizador a fim de criar aversão por parte da opinião pública.
Ser conivente com a criminalização de táticas alternativas mesmo pelos adeptos da
visão pacifista e progressista de resistir, tem por repercussão o fortalecer da polícia e o
deslegitimar da luta desses corajosos. Por outro lado, Gelderloos, (2011) observa que as
táticas pacíficas não devem ser de todo ignoradas, assim como nem sempre a violência se
faz necessária – não se trata de uma apologia à violência, mas isolá-la poderá diminuir as
chances de ganhos e restringir as liberdades. Embora seja pertinente a crença do autor que,
ao adotar táticas violentas gere-se mais gastos públicos para contenção e, portanto,
desencoraja posturas mais enérgicas e abusivas do Estado, no caso paulistano não se aplica.
O governo Alckmin tem demonstrado que não limita custos para reprimir qualquer tipo
de manifestação, seja ela pacífica ou revolucionária – se existe o tom contrário, a orientação
é que se reprima e que seja aplicada penas mais rígidas para os desobedientes, ou seja,
políticas cada vez mais endurecidas.
Diante das adversidades que a sociedade civil organizada combativa enfrenta
cotidianamente, Gelderloos (2011) em sua perspectiva anarquista vai em defesa da luta
construída em solidariedade, advertindo tentativas externas que buscam demonizar amplas
táticas de ação direta, pois isso de certa forma faz com que uma ação de caráter libertário
seja deslegitimada e ainda, dá margem ao fortalecimento da polícia e sua repressão.
No sentido dessa problematização, a sexta e penúltima foto é emblemática, pois
exprime a repreensão de parte da sociedade quanto aos manifestantes e suas práticas. No
tempo em que uma mulher e uma criança estão no reduto de uma propriedade de classe
média alta com símbolos da maçonaria na porta - membros dessa instituição são
comumente relacionados a pessoas com poder econômico e social-, um manifestante se
posiciona ao lado de fora e direciona. Segundo o fotografo, estava acontecendo uma
discussão entre eles no momento em que a foto foi tirada, enquanto a mulher contestava a
ação do manifestante, ele contra argumentava sua fala de cunho reacionário.

102
Fonte: BESSA, Rodrigo Lopes. Foto 6 – Ano 2016.

Por último e diferente das anteriores, a sétima foto nos mostra outras possibilidades
de sociabilidade e afetos em um contexto de resistência, pois retrata um pai com sua filha
no colo. Longe de romantizar a cena, o intuito de trazer a referida foto é expor a pluralidade
de perfis que demandam mudanças e que a sua existência contribui para a construção de
heterotopias42.

Fonte: BESSA, Rodrigo Lopes. Foto 7 – Ano 2016.

42
“Da mesma maneira como Foucault esteve atento aos anarquistas, como monstros morais da nossa
sociedade, é possível vê-los também no interior desta realização heterotópica. O anarquismo como
heterotopia é expansão da vida. É invenção de lugares, de existências, demandando crítica à sociedade e
gestação da nova sociedade” (PASSETTI, 2002, p. 167).
103
CONCLUSÕES

O objetivo do presente trabalho foi apontar alguns caminhos interpretativos e


refletir acerca das fotos de atos progressistas ocorridos no ano de 2016. Notando a potência
estética e revolucionária, assim como, os significados que cada imagem carrega. O
descontentamento está presente em todas as fotos, o que leva a pensar que suas razões são
diversas e abrangem, inclusive, problemas estruturais. Ao mesmo tempo, afecções positivas
e solidariedade marcam as fotos com grupos de pessoas por conta da unidade e
identificação estética comum. Dos posicionamentos percebidos como menos aos mais
radicais, nota-se que a urgência por outro modo de vida é notória e isso está presente não
apenas no conteúdo das fotografias, mas também, nas narrativas de lutas cotidianas dos
coletivos e grupos da sociedade civil organizada brevemente expostos no tópico 1.
Apesar da existência dos grupos e dos manifestantes fazer entender um objetivo
fixado ou único, o processo e a mensagem de suas ações são fundamentais, porque são
elementos constituintes da passagem para outras formas de existência, de relações e
organização social. Visto que, podem resultar no questionamento e no repensar a
sociedade pelos cidadãos, logo, reverberar em ações coletivas.
Portanto, o grande desafio para os revolucionários é: “Fazer crescer potências vivas
das quais participam, de cuidar dos devires-revolucionários com o propósito de chegar
enfim a uma situação revolucionária” (COMITÊ INVÍSIVEL, 2016, p. 177). Mesmo com
a ciência de possíveis consequências irreversíveis de ser parte das lutas. Dessa maneira, sem
modelos e abordagens impositivas, mobilizar e afetar pessoas de modo que seja
insuportável a elas permanecerem como subservientes ao Estado, de suas imposições e
toda a rede de poder econômico e político que o sustenta, que prejudica a dignidade de
existência plena de cada um.

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106
A ESMOLA NA ECONOMIA DA RUA

Natália MAXIMO E MELO43

Resumo: Nas capitais brasileiras como nas cidades do interior, inúmeras prefeituras pelo Brasil
fazem campanhas periódicas utilizando slogans que dizem à população “Não dê esmola, dê
cidadania”, ou ainda, “Dê dignidade”, “Dê futuro” ou ainda, “Não dê dinheiro como esmola.
Encaminhe para nossos serviços”. Campanhas como essas nos indicam algumas das formas como
os governos municipais veem a população em situação de rua como problema urbano. Diante
disso, como pensar o significado da esmola dentre do contexto urbano, onde o dinheiro tanto é
fonte de sobrevivência quanto mediador dos conflitos sociais. Quero neste paper pensar a partir da
esmola qual é a circulação de dinheiro e de bens na rua. Chamo a isso a uma economia da rua. Por
esta expressão entendo um sistema de trocas segundo a teoria de K. Polanyi (1957), para quem o
“econômico” faz parte de todas as atividades humanas, desde a busca por suprir necessidades
básicas até a institucionalização do mercado. Como entender a esmola nesse sentido? Ela estaria
entre uma economia de reciprocidade e monetária?

Palavras-chave: Economia da rua. Esmola. Morador de rua.

INTRODUÇÃO

Tanto em capitais brasileiras quanto nas cidades do interior, inúmeras prefeituras


pelo Brasil fazem campanhas periódicas utilizando slogans que anunciam: “Não dê esmola,
dê cidadania”, ou ainda, “Não dê dinheiro como esmola...Dê dignidade”, “Dê futuro,
encaminhe para nossos serviços”. Por meio dessas campanhas, os governos municipais
visam inibir a prática da doação de dinheiro às pessoas que vivem nas ruas e promover a
divulgação das entidades assistenciais do município.
Na cidade de São Carlos-SP, por duas vezes, participei de reuniões na Secretaria
Municipal de Assistência Social – em gestões de governos municipais diferentes – nas quais
o objetivo era buscar “soluções para o problema da população de rua”. Na primeira das
reuniões em que estive presente, eu era funcionária da Assistência Social; na segunda delas
estive como pesquisadora de doutorado.
Resumidamente, uma campanha desse teor entende as pessoas que vivem na rua
como “problema” urbano, sobretudo no centro da cidade assim como “problema”
econômico pois “incomoda” o comércio e a circulação de mercadorias (legais). Por estes
motivos, tal campanha pretendia desestimular a prática da esmola. O argumento da
secretária municipal era o de que, quando se dá dinheiro, esse ato estimula o indivíduo a

43
Doutora em Sociologia; UFSCar. Bolsa FAPESP. Email: natmmelo@gmail.com

107
viver na rua e, portanto, se desinteressar por buscar maneiras de sair dessa situação por
meio das instituições assistenciais do município. Neste raciocínio, sem ter dinheiro, a
pessoa que vive na rua se verá em necessidade e, consequentemente, procurará os serviços
assistenciais.
Este mesmo raciocínio traça uma clivagem entre a “esmola” – ou seja, a doação de
dinheiro – de um lado, e, de outro, o atendimento em instituições públicas, as quais são
tidas – por campanhas como essa – como o lugar da “cidadania”, da “dignidade”, do
“futuro” para as pessoas que vivem nas ruas.
Podemos supor que uma campanha municipal como esta tem o objetivo de regular
a oferta de dinheiro e bens advindos da esmola na cidade, a fim de trazer para o controle
das tramas institucionais locais uma população que esteja fora dela.
A partir da esmola, quero pensar acerca da circulação de dinheiro e de bens na rua.
Chamo a isso a uma economia da rua, na qual o dinheiro tanto é fonte de sobrevivência
quanto mediador dos conflitos sociais (FELTRAN, 2014)44. Por economia entendo um
sistema de trocas segundo a teoria de K. Polanyi (1957)45, para quem o econômico faz parte
de todas as atividades humanas, desde a necessidade de suprir condições básicas até a
institucionalização do mercado. Uma economia de reciprocidade tem nos bens objetos de

44
A hipótese de Feltran é que em “periferias” onde formas de pobreza se explicitam a violência urbana
deslocou a questão social dos “trabalhadores” para os “marginais”, com isso, as políticas de proteção sociais
recebem também significados de prevenção à violência. Elas se fazem por recortes populacionais e por
monetarização das relações, onde todos podem se tornar então, consumidores.
“o dinheiro é objetivamente elevado ao estatuto de forma mediadora entre grupos populacionais
em conflito, suplantando em muito a legitimidade da lei e da moral, que invariavelmente os afastariam”(2014,
p. 497). (…) “como o dinheiro circula indiferenciadamente por mercados legais, ilegais ou ilícitos, a expansão
mercantil conecta esses sujeitos” (idem, p. 498). Cf. Feltran, G. S. O valor dos pobres: a aposta no dinheiro
como mediação para o conflito social contemporâneo. Salvador: Cadernos CRH, v. 27, n. 72, p. 495-512,
2014.
45
É necessário, constatar que quando se trata de atividades humanas, o termo “econômico” comporta dois
significados com distintas raízes que denominaremos sentido substantivo e sentido formal.
O sentido substantivo toma sua origem da dependência do homem com relação à natureza e a seus
semelhantes para assegurar sua sobrevivência. Remete a trocas entre homem e seu em torno natural e social.
Essas trocas provêem ao homem os meios de satisfazer suas necessidades materiais.
O sentido formal deriva do caráter lógico da relação entre fins e meios, como o indicam as
expressões “processo econômico” ou “processo que economiza meios”. Este sentido remete a uma situação
108
bem determinada de escolha, isto é, entre os usos alternativos de diferentes meios como consequência de
escassez dos mesmos. (Polanyi, 1957, p. 243) (...)
Deveríamos então estar em condições de descrever as economias empíricas – sejam elas primitivas
ou arcaicas -segundo a maneira em que o processo econômico é institucionalizado. (idem, p. 245)(...)
Do ponto de vista empírico constatamos que os principais modelos são a reciprocidade, a
redistribuição e a troca. A reciprocidade supõe movimentos entre pontes de correlação de grupos simétricos;
a redistribuição designa movimentos de apropriação em direção a um centro, e deste para o exterior. A troca
se refere aqui aos movimentos de “vai e vem” tais como as trocas de “mãos” em um sistema mercantil.
A reciprocidade toma como, segundo plano, grupos simetricamente ordenados. A redistribuição
repousa na presença, dentro do grupo, de uma certa forma de centro. Para que a troca produza uma
integração social, é necessário que exista um sistema de mercados criador de preços. É claro que estes
diferentes modelos de integração supõem suportes institucionais determinados (idem, p. 250, 251)
dádivas. Nestas está pressuposta a obrigação de retribuir. Uma economia de mercado é
regulada pelos valores monetários e por cálculos racionais para atribuir valor aos bens. Já
a economia da redistribuição, é aquela desenvolvida pelo Estado ao recolher bens ou
tributos e redistribui-los em serviços a uma população. Diante desse entendimento do quê
é o econômico, a questão aqui é: como entender a esmola enquanto uma economia da
rua?

TRANSFORMANDO PROBLEMA SOCIAL EM PROBLEMA DE PESQUISA

Quando se fala em “moradores de rua”, ou “pessoas em situação de rua”, há a


percepção de que existe aí um problema social, seja a pobreza, a falta de trabalho ou de
moradia. Consideo que a rua produz iniciativas diversas, por exemplo, produz ajudas
humanitárias de voluntários ou de instituições, produz políticas públicas de assistência social
e de saúde, tanto no plano local quanto nacional. Também nela se encontram conflitos e
violências. E, nela produz-se uma economia, isto é, uma forma de produção, circulação e
consumo de bens em um universo específico de trocas, tanto as mercantis quanto as
dadivosas.
Buscando por uma definição formal, identifico o conceito de população em situação
de rua instituído pelo Decreto Presidencial n 7.053, de 23 de dezembro de 2009, que
o

promulga a Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR):

[...] considera-se população em situação de rua o grupo populacional


heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos
familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia
convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos e as áreas
degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária
ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite
temporário ou como moradia provisória (BRASIL, 2009).

Então, estamos tratando aqui de pessoas que vivem nas ruas e que foram agrupadas
em uma definição que leva em conta sua pobreza extrema. Para esse universo populacional,
chamarei de pessoas que vivem nas ruas, e a essa condição nomearei a vida na rua. Um ponto
de partida importante para se compreender a vida na rua está na sociologia da pobreza de
Simmel (1998). Ele não se propôs a estudar os pobres ou a pobreza em si, mas sim a
relação daqueles que assim são nomeados. Simmel (1998) afirma que

109
O fato de alguém ser pobre não significa que ele pertence à categoria de
pobres. Ele pode ser um comerciante, um artista ou empregado pobre,
mas ele ocupa as categorias definidas por uma ocupação ou posição
específica […] não é senão a partir do momento em que eles são
assistidos – ou o poderiam ser desde que sua situação global tivesse
exigido assistência, mesmo que ainda ela não tenha se dado – que eles
se tornam membros de um grupo caracterizado pela pobreza (SIMMEL,
1998, p. 14-15, tradução livre, grifo do original)46.

As pesquisas acadêmicas também vêm buscando compreender, explicar e


estabelecer categorizações para a vida nas ruas. Nos anos 1970 e 1980 encontram-se
pesquisas acerca de “meninos de rua” e “mendigos” (STOFFELS, 1977; FERREIRA,
1979; NEVES, 1983). Os primeiros foram tomados como marginais, delinquentes, e os
últimos como trabalhadores ou ex-trabalhadores. O entendimento desses sujeitos se deu
dentro de uma perspectiva macrossocial, em que aparecem preocupações em perceber
como se chega a essa condição de vida nas ruas.
Marie-Ghislaine Stoffels (1977) foi quem primeiro escreveu uma tese sobre os
“mendigos”. Na falta de estudos anteriores no Brasil, a autora buscou tal genealogia na
literatura francesa. A mendicância é fenômeno tipicamente urbano, que teve, desde a Idade
Média, uma grande diversidade de formas. Interessante notar que, na Idade Média, houve
até mesmo instituições de mendicância, as gueuseries. Formavam-se organizações próprias
para tal atividade em que havia reuniões, documentos escritos, letras de músicas, uma
linguagem e cultura próprias dos mendigos de então. Com a evolução do capitalismo, há o
aumento da repressão a esta prática e a criação de leis, punições e instituições para tratar
dos mendigos tidos, a partir de então, como desviantes dentro da nova ordem social.
Stoffels (1977) entende, então, que a mendicância é objeto privilegiado de estudo
sociológico por estar no limiar de confluência entre a ordem econômica (do trabalho) e
moral (bom/mau).
Estudando o fenômeno na cidade de São Paulo na década de 1970, a autora
encontrou documentos dos órgãos governamentais datados de 1959 a 1970, de
“campanhas de repressão à falsa mendicância e de recuperação social”. A partir das

46
“[...] Le fait que quelqu'un soit pauvre ne veut pas dire qu'il appartienne à la categorie des pauvres. Il peut
être un commerçant, un artiste ou un employé pauvre, mais il demeure dans la catégorie (commerçant, artiste
ou employé), définie par une activité ou une position spécifique […] ce n'est qu'á partir d'un moment où ils
sont assistés – ou peut être dès que leur situation globale aurait dû exiger assistance, bien qu'elle n'ait pas
encore été encore – qu'ils deviennent membres d'un groupe caractérisé par la pauvreté” (SIMMEL, 1998, p.
14-15). 110
informações de Stoffels (1977) fica clara, então, a origem da mencionada campanha contra
a esmola, ainda existente em muitos municípios brasileiros.
Depois desta obra de Stoffels (1977), a mendicância não foi mais tomada como
categoria de análise, embora o termo “mendigo” tenha permanecido no vocabulário das
ciências sociais47. Neves (2010) argumenta que a análise sociológica de então entendia os
mendigos como lumpemproletariado, isto é, mendigo é aquele que “[...] não é absorvido
pelo mercado de trabalho”,48 e que apresenta perdas de atributos sociais, tais como família,
casa, emprego. Ela se propõe, então, a compreendê-los como parte da massa trabalhadora,
sendo a mendicância uma das estratégias de sobrevivência. A partir de histórias de vida
coletadas das ruas, a autora mostra que as pessoas que vivem nestas condições têm uma
trajetória de trabalho.
Uma perspectiva interessante presente no texto de Neves (2010) é a de considerar
o mendigo como resultado de todas as relações sociais em que está inserido – o que nos
conduz a uma perspectiva de que a “situação de rua” não é fato individual, e sim social -
assim como a pobreza está em relação ao contexto social, no pensamento de Simmel
(1998).
A década de 1990 por sua vez teve, na categoria exclusão social, o mote para os
estudos sobre pessoas vivendo nas ruas (ESCOREL, 1999; ROSA, 1999; VIEIRA et al.,
2004; GREGORI, 2000; BURZTYN, 2000). Cleisa Rosa (1999), por exemplo, buscou
compreender nas trajetórias individuais os motivos para ida às ruas tomando as categorias
trabalho, estudo e moradia. No seu estudo, feito em São Paulo na década de 1990, aparece
com importância a questão da migração para entender as rupturas com a moradia. A partir de
trajetórias individuais, a autora traçou relações com as transformações no mercado de trabalho
nacional desde a década de 1970 até 1990 – portanto, processos de urbanização,
industrialização e crescimento do setor de comércio e serviços aparecem como fatores de
mudanças que levaram pessoas a irem morar na rua.

47
A mendicância, delito previsto pelo Código de Contravenções Penais de 1942, só foi retirado da lei em 2009
– mesmo ano em que foi promulgado o Decreto 7.053, que instituiu a Política Nacional para a População
em Situação de Rua (PNPR).
48
Delma Pessanha Neves estuda, também na década de 1970, os “mendigos” no Rio de Janeiro. Em 1983, há
a publicação do artigo “Mendigo: o trabalhador que não deu certo”. Para Neves (1983, p. 103), mendigo é
aquele que necessita da caridade de outrem, e a mendicância pode ser estudada “[...] a partir de formas de
reprodução social da massa trabalhadora”. O termo “mendigo” nomeia “[...] as pessoas que supostamente
perderam certos atributos sociais (não tem família, nem casa), e por isso, sobrevivem na rua, apresentando-
se sujas e maltrapilhas, além de não trabalharem. Como ‘pedintes’, são classificados aqueles que, embora
111 dificuldades para sobreviver e, portanto, recorrem
disponham de atributos sociais reconhecidos, enfrentam
à ajuda de terceiros” (op. cit., p. 103). A perda do trabalho está no centro dessa trajetória de ida às ruas;
segundo a autora, também se observa a perda da posição de homem-chefe de família e, consequentemente,
os conflitos familiares e a bebida fazem parte desse processo.
Até este ponto, as perguntas de pesquisa giravam em torno do como as pessoas
chegam até a rua. Essas pesquisas se valeram, principalmente, de histórias de vida de
indivíduos vivendo nas ruas. A partir dessas histórias, traçam-se as trajetórias descendentes
até as ruas. E as respostas para a pergunta de pesquisa enfatizavam, então, as perdas, as
ausências, principalmente, de trabalho, família, moradia, estudo. Mas a década de 1990
amplia a visibilidade sobre o papel do Estado,49 ampliando então as respostas - até então
apenas econômicas - para o problema do ex-trabalhador.
A pesquisa feita em 1991 por Vieira et al. (2004) e publicada com o título
“População de rua: quem é, como vive, como é vista”, marca uma mudança na categoria
de mendigo-trabalhador para a de população, assim como demarca a presença de
preocupações com a formulação de leis e ações governamentais.
Como parte de uma pesquisa feita em São Paulo em 1991 - a partir da Secretaria
do Bem-Estar Social - o objetivo de Vieira et al. (2004) era conhecer as características, a
trajetória e as formas de sobrevivência da população de rua em São Paulo, assim como
fazer uma avaliação de algumas formas de atendimento assistencial, tanto públicas quanto
privadas.
Diante da crise do trabalho, o papel das políticas públicas produziu uma categoria
nova: a população de rua (VIEIRA et al., 2004). A pesquisa entendeu que a população de
rua é um segmento da classe trabalhadora. É uma população sem trabalho, sem casa, com
muita mobilidade e bastante heterogênea. Mas o que caracteriza esse segmento
populacional é “utilizar a rua como espaço de sobrevivência e moradia” (op. cit., p. 47).
Dentre tantos fatores de heterogeneidade dessa população – como, por exemplo,
faixa etária, origem, ocupação, motivos para viver nas ruas etc. – há ainda um outro fator
diferenciador dos modos de vida na rua: o tempo de permanência nela. Este tempo não
tem medida cronológica, pelo contrário, ele é medido pelo grau de sociabilidade das
pessoas na rua. À medida que se permanece na rua, há perdas de vínculos de sociabilidade
anteriores e aquisições de novas sociabilidades.
“Vidas ao Léu: trajetórias de exclusão social”, de Sarah Escorel (1999) é um livro
importante e que marcou os estudos sobre população de rua na perspectiva da exclusão
social. Aqui também se faz presente a seguinte pergunta: Como se chega à vida na rua?

49
A década de 1990 apresentou uma série de construções de políticas sociais, tais como o Sistema Único de
Saúde (1990), o Estatuto da Criança e Adolescente (1990), a Lei Orgânica da Assistência Social (1993) e a
Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (1996). Tanto Neves (2010) quanto Bursztyn (2000) já mostram
que há organizações de catadores de material reciclável na década de 1990, cujo Movimento Nacional veio a
surgir em 1999. Rosa (1999) já mostrava o envolvimento de moradores de rua com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). 112
Contudo, a categoria trabalho já aparece em uma outra formulação. A categoria de análise
de Escorel é exclusão social.50 A população de rua seria a expressão máxima desse processo
em que pessoas se tornam inúteis para o mundo.
Escorel (1999) se propõe a analisar histórias de vida com pessoas vivendo nas ruas
no Rio de Janeiro a fim de identificar processos de exclusão, observando a importância das
rupturas dos vínculos familiares e do trabalho. Essa perspectiva de exclusão social também
está presente nos trabalhos de pesquisa feitos em Brasília no fim dos anos 1990. Bursztyn
(2000), por exemplo, organizou um livro intitulado “No meio da rua: nômades, excluídos
e viradores”. Além de tomar como objeto de estudo a vida nas ruas e o trabalho de
catadores de papelão, esta e outras pesquisas demonstram a preocupação e
comprometimento com as proposições de políticas públicas. Questionar como se chega a
viver na rua fez pensar, também, como sair dela.
Nos anos 2000, observa-se um maior número de investigações acadêmicas sendo
realizadas, multiplicando, assim, os temas abordados e as perguntas de pesquisa. Além da
pergunta Como se chega a viver na rua?, aparece também a seguinte questão: Como se
mantém uma vida na rua? Como um fenômeno urbano, a vida na rua chama a investigação
para a busca da relação entre as pessoas e o espaço urbano, bem como seu movimento
nele.
Os modos de vida e as práticas cotidianas de quem vive nas ruas são enfatizadas,
principalmente pelas pesquisas dos anos 2000, nas áreas de antropologia e sociologia. Sem
mais priorizar análises das “ausências” de atributos sociais, as novas pesquisas se
preocupam em compreender o que está presente na vida de rua. Para dar alguns exemplos:
não mais se estuda o “pedir dinheiro” enquanto mendicância, mas sim enquanto práticas
de “mangueio” (MARTINEZ, 2011), ou ainda como a arte de contar uma “história triste”
(MELO, 2011) – termos estes originários da própria vida na rua e captados por etnografias.
O trabalho e a mendicância são algumas dentre outras tantas práticas de sobrevivência,

Exclusão social é um termo que veio a aparecer na França, ainda na década de 1970; porém, não era um
50

conceito ou categoria de análise, e vai ganhar importância e formulação teórica posteriormente. Com a “nova
questão social”, tendo Castel (2008) como um dos principais teóricos, o termo foi criticado por ser estático,
e em seu lugar o autor propõe entender o processo de desfiliação social a partir da crise do assalariamento.
De modo bastante sucinto, pode-se dizer que Castel (2008) buscou demonstrar que a integração social se faz
a partir do trabalho, em que o indivíduo é útil para o mundo. Para além do trabalho com garantias de proteção
social, a integração se fragiliza e abre-se para uma zona de vulnerabilidade. Nesta zona, o indivíduo não está
plenamente integrado, passa a recorrer a políticas de assistência e deixa de ser um “trabalhador” para ser um
“assistido”. A persistência nessa situação vulnerável sem retorno ao núcleo de integração pode fazer com que
o indivíduo se desvincule, também, das políticas de113 assistência, e passe a viver como um excluído. Como
forma de operacionalizar a categoria “exclusão social”, Escorel (1999) analisa o processo de desvinculação
com o núcleo familiar, bem como a desvinculação com o trabalho. “Exclusão” é, então, definida como uma
ruptura dos vínculos sociais (ESCOREL, 1999, p. 60).
assim como a “viração” (GREGORI, 2000), ou mesmo as atividades ilícitas (MELO, 2011;
RUI, 2012). A falta de família também não é mais o foco principal das pesquisas quando
se busca compreender as organizações dos grupos que vivem nas ruas e as relações entre
si, desde os conflitos até os afetos (FRANGELLA, 2004; RUI, 2012; OLIVEIRA, 2013;
MELO, 2011). Na falta de moradia, há várias tecnologias de abrigamento que se
desenvolvem na rua, tais como lonas, marquises, mocós, Albergues (KASPER, 2006). As
identidades de grupo não são sempre referências à vida de trabalhador, e outras tantas
identidades de grupos de rua são identificados (MENDES, 2007; SOUZA, 2012), por
exemplo, na distinção entre “trecheiro” e “pardal” (MARTINEZ, 2011), isto é, aqueles que
circulam e os que não circulam pelas cidades, respectivamente. A corporeidade da vida na
rua (FRANGELLA, 2004; RUI, 2012) também é importante para marcar os espaços
urbanos ao mesmo tempo em que resiste, é marcada por estes.
E, finalmente, as instituições, tanto as estatais quanto privadas, aparecem como
parte da vida nas ruas e são apreendidas pela etnografia a partir da fala daqueles que são
assistidos por elas (GREGORI, 2000; DE LUCCA, 2007; PEREZ, 2005).
Nos anos 2000, surge uma grande diversidade de perspectivas e temas relativos a
esta população. Nesse sentido, esses trabalhos visam expor o quanto a vida na rua é
produtiva. Há a produção de táticas de sobrevivência em si, mas também de identidades,
termos, conceitos, análises, discursos51, políticas e seus efeitos para além da vida na rua.

A ESMOLA NA RUA: DOAÇÕES E MANGUEIOS

Dinheiro na rua, pra muitos deles, não é uma dificuldade conseguir, eles
tem a prática de manguear, de pedir dinheiro e São Carlos é uma cidade
que de praxe as pessoas doam muito dinheiro, não é difícil conseguir
dinheiro na rua, as pessoas são bastante generosas. Eu vi vários casos na
minha frente, as pessoas dando 2, 5, 10 reais. É o uso do dinheiro que
eles fazem, essa é a grande questão. Fazem uso ou pra comprar coisas
pessoais ou pra comprar bebida, ou droga, então...(funcionário do
Centro POP de São Carlos).

51
Giorgetti (2007) analisou as representações dos moradores de rua nos jornais por entender que estes tem
um importante papel de dar visibilidade à questão dos moradores de rua, e chama tais representações de
contrapoder. Para ela, a produção acadêmica também é analisada como um contrapoder, com capacidade
de criar determinados tipos de representações sociais – por exemplo, os dos moradores de rua como
marginalizados, o lumpemproletariado, a classe trabalhadora ou os excluídos.
114
Em São Carlos-SP, onde foi realizada a pesquisa, há alguns espaços urbanos onde
se concentram pessoas que vivem nas ruas, sobretudo, praças públicas. Percorri duas delas,
uma no centro na cidade, onde há intensa atividade comercial e outra praça próxima ao
cemitério onde há pessoas que se reúnem durante o dia devida à proximidade com o
Albergue onde passam a noite, além de ser uma região onde há bares, supermercado, o
estacionamento do cemitério e o semáforo onde podem pedir dinheiro. Também fiz uma
longa pesquisa no Centro POP (Centro de Referência Especializado para pessoas em
situação de rua), instituição pública administrada pela Secretaria Municipal de Assistência
Social, que visa efetivar a Política Nacional para a População em Situação de rua. Durante
a pesquisa no Centro POP ouvi relatos tanto de funcionários quanto de pessoas que vivem
nas ruas.
Embora a preocupação do poder municipal com a esmola esteja voltada à obtenção
do dinheiro, outras tantas formas de conseguir bens são possíveis, dentre eles comidas e
roupas. Há doações voluntárias feitas por transeuntes, há doações em troca de algo, um
trabalho ou um favor. Estas doações tomam formas de dádivas em que há uma
reciprocidade. E há, por fim, o trabalho remunerado, seguindo uma lógica de mercado.

DOAÇÕES E TROCAS NÃO MONETÁRIAS

No que se refere à comida, há várias estratégias para consegui-la. Há restaurantes


que doam a comida que sobra no fim do expediente. No centro da cidade, há também
uma pizzaria que guarda pedaços de pizzas que sobram do rodízio e os entrega para pessoas
que vivem nas ruas. Lanchonetes e restaurantes também doam comida a quem lhes peça a
fim de que o pedido não seja feito aos clientes. Nesses casos, assim, a doação é uma forma
de evitar a permanência da pessoa que pede no estabelecimento, e assim, evitar conflitos
com a clientela.
Seja lá qual for a forma de conseguir comida, ela é frequentemente conseguida por
doação. Além dos pedidos por comida, há também doações voluntárias vindas de grupos
religiosos. Por exemplo, aos sábados há um grupo evangélico que vai até a praça do
cemitério doar roupas e comida. Aos domingos há um grupo de espíritas na praça central.
Na quarta-feira à noite há um outro grupo religioso que passa em alguns locais da cidade
distribuindo marmitas. E em vários locais da cidade há mesmo transeuntes que param e
oferecem um sandwich, meias ou um cobertor sem que seja preciso pedir.

115
Os exemplos mais frequentes de doações voluntárias estão entre pessoas que vivem
sozinhas nas ruas. Um senhor idoso que vive na avenida principal da cidade todo dia se
senta na frente da mesma padaria no mesmo horário. Sua presença no local já é familiar
no local. O empregado da padaria já se habituou a todo dia lhe oferecer um café com pão
e um cigarro. Clientes da padaria, por vezes, também lhe dão algum dinheiro, comida ou
cigarro. Na hora do almoço, este senhor se desloca para a porta de um restaurante e na
calçada se senta por horas. No fim do expediente, ele recebe do restaurante uma marmita,
sem que precise pedir a ninguém.
Em um bairro residencial distante do centro da cidade, também havia duas pessoas
que viviam nas ruas e já eram conhecidas da vizinhança. Eles recebiam doações e dinheiro
mesmo sem pedir. Transeuntes lhes davam algumas moedas. Uma senhora dona de um
brechó lhes dava roupas, na rotisserie do bairro eles conseguiam marmitas diariamente e
uma moradora do bairro todo dia levava ração para o cachorro.
As doações também envolvem trocas de bens e serviços e se aproximam de uma
noção de trabalho. Um funcionário do Centro POP diz que já presenciou na praça do
cemitério uma mulher que todo dia leva pinga e comida para o grupo de pessoas vivendo
na praça e em troca, este grupo cuida do carro dela no estacionamento do cemitério. Em
um local do centro da cidade, lojistas também dão almoço e lanche para o grupo que lá
vive para que eles fiquem de olho nas lojas à noite e não permitam que grupos de rua
furtem os clientes.
As instituições de assistência também realizam doações mediante trocas de serviços.
Um exemplo foi observado em um Albergue de São Paulo, o qual fazia doações de roupas
mediante a troca por latinhas de refrigerante. O objetivo alegado pela assistente social é
que assim “eles valorizam a doação” pois é comum que joguem as roupas sujas fora.
Roupas estas doadas pela instituição e descartadas quando sujas ou quando são um peso
para ser carregado por aqueles que precisam andar longos percursos na cidade.
Em São Carlos, o serviço público mais antigo prestado em relação a pessoas que
vivem nas ruas é a doação de passagens de viagem. Doar passagens aos itinerantes mediante
a contrapartida de serviço de limpeza urbano, ou de covas do cemitério já foi bastante
comum na década de 1990, fato ainda hoje lembrado pelos mais velhos.
Para quem doa, a contrapartida do trabalho pode ser vista como uma forma de
valorizar a doação, para quem recebe a doação não difere de um trabalho sem
remuneração. Também há obtenção de dinheiro a partir de um trabalho propriamente,
isto é, mediante uma remuneração.

116
A catação de latinhas é uma prática esporádica ou cotidiana mas que não chega a
ser um trabalho regular a partir do qual se consiga sobreviver. Por exemplo, quando há um
evento na cidade, como shows ou festas, comícios, momentos estes em que há grande
circulação de pessoas, há maior catação de latinhas. Onde há comércio regular de bebidas
e comida também é comum encontrar pessoas pegando latinhas do chão e do lixo. Há até
mesmo quem viaje para acompanhar eventos em outras cidades onde há grande circulação
de pessoas. Um exemplo era o rodeio de Barretos que anualmente atrai pessoas para lá
em busca de “virações” como essas.
Em tempo de Copa de mundo, um senhor atendido no Centro POP se dedicou a
vender bandeirinhas do Brasil e cornetas. Pegou os produtos com um camelô e entrou em
acordo com ele para vender em vários locais da cidade. Finda a Copa, findaram também
as vendas.
Estratégias similares também eram praticadas por aqueles que vendiam chicletes,
ou entregavam panfletos de propaganda para uma empresa de publicidade que os pagava
por dia de serviço. Outros fazem artesanato, por exemplo, esculturas com latinhas de
alumínio ou copos de vidro de garrafa. Outros ainda, trabalham como garçom nos fins de
semana, ou descarregam caminhão eventualmente.
Uma série de serviços informais e eventuais são prestados a partir de acordos
verbais entre a pessoa que vive na rua e um transeunte, um morador de uma residência,
um lojista, etc. Trabalhos estes que servem para conseguir algum dinheiro em um
determinado dia, período, mas não para a manutenção da vida. Dentre tais trabalhos estão:
varrer a calçada da frente da casa de alguém, fazer jardins, lavar carro ou até mesmo o
cachorro.
Todos esses tipos de trabalho são remunerados, seja por venda de um produto, um
serviço prestado ou uma jornada de trabalho remunerada. São atividades temporárias ou
eventuais, são o que se pode chamar de “viração” - que são realizadas tanto entre crianças
de rua, como já foi identificado por Filomena Gregório (2000) quanto entre adultos.
Feito esse panorama da economia da rua, que envolve doações, trocas de serviços
e trabalho remunerados, a seguir tratarei propriamente da obtenção de dinheiro - aspecto
da economia da rua que é objeto da campanha do governo municipal.

117
CIRCULAR DINHEIRO, BENS E SERVIÇOS…CIRCULAR VALORES

A mendicância já foi identificada como principal atividade de quem vive nas ruas,
atividade situada mesmo no limite da ordem econômica do trabalho e da ordem moral.
(STOFFELS, 1977).
Para conseguir dinheiro é preciso, muitas vezes, algum tipo de “viração”
(GREGORI, 2000) que constituem uma economia da rua, há os pedidos de dinheiro e
doações (atividade que identifica as pessoas que vivem nas ruas como “pedintes”) e ainda
outras atividades denominações como os “corres” e “correrias” (MARTINEZ, 2011), ou
ainda, o “achaque” ou “mangueio” (MELO, 2011).
Segundo Melo, o “achaque” carrega significado negativo de tirar proveito de
outrem, ou de enganar alguém. Já o “mangueio” pode ter sua origem em expressões que
significam “por na manga”, ou ainda, “manguear o gado” com sentido de guiar a fazer algo.
De toda forma, o “mangueio” é uma forma de obter bens ou dinheiro, prática comum
entre aqueles que vivem nas ruas. Assim explica Melo (2011) sobre o que é o mangueio a
partir de suas observações de pesquisa em Curitiba:

O mangueio aparece nas narrativas dos interlocutores acompanhado de


outras categorias. Exemplo disto são as histórias tristes com as quais
repetidas vezes tive contato. A característica mais contundente desta
modalidade narrativa diz respeito a sua utilização como forma de obter
ganhos econômicos – referido como mangueio. Seu mecanismo básico
seria o de conseguir estabelecer com os demais - não moradores
de rua - uma relação de confiança suficiente para que se consiga abordar,
obter atenção, contar a própria história e comover o interlocutor a ponto
de convencê-lo a dar algum tipo de auxílio de qualquer espécie, seja
dinheiro, alimentação, roupa ou algum outro bem de consumo que se
pretende obter no momento. A história triste não precisa
necessariamente estar vinculada ao pedido por doação, enquanto o
mangueio não é exclusivamente uma forma utilitária de obter ganhos
econômicos. Ambas as categorias servem para conseguir recursos de
diversos tipos, principalmente econômicos, mas não apenas isto
(MELO, 2011, p. 62).

O mangueio pode se valer da história triste mas, não necessariamente. Oliveira


(2012), também identificou o mangueio em pesquisa feita em São Carlos onde um de seus
interlocutores explica que “quem não tem dinheiro, conta história”. Nesse sentido, o
mangueio seria a venda de uma história, uma encenação, é uma arte da viração, segundo
Oliveira.

118
Martinez (2011), tendo feito pesquisa também em São Carlos, acrescenta ainda que,
além de mecanismo de obtenção de dinheiro, o mangueio é uma “tática de cuidado”,
devido à relação que se estabelece entre o doador e o destinatário da doação. Esta, mediada
então pela história triste, ou ainda, pela arte da viração. Essas técnicas de obtenção de
bens, dinheiro e cuidado estão combinadas na economia da rua.

A ARTE DO MANGUEIO, CONTAR A HISTÓRIA TRISTE

Décadas atrás, eram chamados de mendigos profissionais (STOFFELS, 1977)


aqueles que se utilizavam de sua aparência e história triste para pedir dinheiro
regularmente.
O mangueio pode se constituir em narrar uma história a um interlocutor. História
que mistura elementos reais e fictícios, fatos de sua própria história com os de outras
pessoas (MELO, 2011). A história contada muda dependendo do interlocutor a quem se
pede dinheiro, do local onde se conta e o motivo do pedido: é preciso dinheiro para a
comida, a passagem de ônibus, o remédio da criança, o botijão de gás, etc, são alguns
exemplos.
A aparência também conta na hora de mendigar, pedir dinheiro ou manguear
(STOFFELS, 1977, FRANGELLA, 2004, MELO, 2011). Roupas velhas e rasgadas, a
expressão facial de dor, mulheres com filho no colo, homens feridos, velhos doentes, tudo
isso faz parte do mangueio. A aparência deve então comprovar a história triste.
Uma vez em que fui até a região da cracolândia em São Paulo, conheci um rapaz
que explicou suas táticas de pedir dinheiro e eram tão eficientes que ele já tinha feito até
um policial chorar e lhe dar 50,00, conforme me contou. Conseguir determinadas quantias
em dinheiro de tais ou quais pessoas se torna mesmo uma vitória pessoal importante.
O mangueio pode se confundir com mentira pois nem sempre se recorre a uma
história triste, embora explicite-se um fato que não é verídico, embora seja factível.
O mangueio pode ser acusado de mentira também por aqueles que dele fazem uso.
Um rapaz me contava certa vez sua história como usuário de crack. Sobrevivente de uma
tentativa de homicídio, ele tinha uma bala alojada na cabeça e outra no pescoço. Ele me
contava como ficou depois desse atentado quando, um outro rapaz o interrompe para me
falar: “é tudo mentira, daqui a pouco você começa a chorar e ele vai conseguir tirar de você
50,00”.

119
Os dois rapazes não se conheciam até então, mas a história contada foi suficiente
para ser identificada como um possível mangueio. Ao fim, o rapaz que me contava a
história não me pediu dinheiro mas me perguntou como poderia se cadastrar na
Previdência e pedir um auxílio-saúde já que tinha 2 balas alojadas na região da cabeça.
Mangueio pode ser considerado mentira por quem quer desqualificar uma história
triste ou por quem não quer doar um dinheiro. A recusa ao mangueio por sua vez também
tem suas táticas. Um dia enquanto conversava com um senhor que vive na praça - Hilário,
um velho conhecido meu - um rapaz se aproxima e conta sua história para me conversar a
comprar-lhe carne no açougue. Eu terminei convencida e fui até o açougue com ele. Ele
recebeu a carne com gestos de extrema gratidão. Quando retornei para falar com Hilário,
ele ironiza: “Ah! Ele te convenceu direitinho!” Então, Hilário passa a me ensinar como
recusar mangueios e a contar como estes são feitos também entre as pessoas que vivem nas
ruas.
Hilário conta que uma vez uma de suas namoradas na rua pediu dinheiro dizendo
que ele, seu marido, não lhe dava dinheiro para nada, nem para água. Ela conseguiu 2,00
e foi comprar pinga. Hilário ficou envergonhado com o argumento usado pela namorada
para manguear e decidiu retribuir com outro argumento que a constrangesse assim como
ela fez a ele. Então, Hilário arranjou uma oportunidade de manguear dizendo que
precisava de dinheiro para comprar absorventes para sua mulher, coitada!. Ele conseguiu
5,00 com esse mangueio e ela ficou brava.
Este relato, contado por Hilário como uma piada, mostra a sabedoria de usar do
mangueio para reforçar ou disputar forças entre as relações da rua, incluindo as relações
de gênero entre casais.
Para recusar um mangueio também tem que se contar uma história, me ensina
Hilário. É preciso dizer que só possui dinheiro para o ônibus, ou ainda, dizer que já ajudou
uma outra pessoa da rua naquele dia.
Nessa mesma situação em que eu conversava com Hilário, uma senhora se
aproximou para pedir dinheiro e ele tirou a prova da lição que me ensinava sobre recusar
o mangueio. Eu respondi à senhora simplesmente que não tinha dinheiro e ela continuou
me olhando como quem espera a história triste. Nesse momento de silêncio, foi Hilário
quem respondeu por mim e disse que eu já havia dado dinheiro ao rapaz que vendia
jujubas. Ela ficou satisfeita com a resposta e começou a conversar animadamente conosco.

120
O mangueio tem uma estrutura: a história triste, a doação e a gratidão. A recusa ao
mangueio também é composta por uma sequência discursiva: outra história triste, uma
doação anterior seguida de pedido de desculpa.
Todas essas práticas são táticas de viração inseridas em uma economia na qual a
obtenção do dinheiro não é só individual, e seu uso também não o é. O Mangueio é mais
uma ação individual para obtenção de dinheiro, ou algum bem mas que tem sua
organização própria em um grupo de rua, também chamados de “bancas”52 (MARTINEZ,
2011).
O mangueio tem uma função coletiva, faz parte de uma divisão de tarefas em que
alguns são incumbidos de pedir dinheiro, outros olham carros em estacionamento, outros
ainda preparam a comida, ou, vão comprar alimentos, cachaça ou droga (OLIVEIRA,
2013). Nos grupos, a regra geral é dividir com a “banca” tudo o que se conseguir no
mangueio. Já os “corres” são práticas que visam obtenção de coisa apenas para o indivíduo
(OLIVEIRA, 2013).
Os “corres” ou “correrias”53 incluem pequenos delitos, como furtos, pegar a carteira
de alguém dormindo, ou coisas de valor que estejam em fácil alcance. Roubos e tráfico são
os “corres muito loucos”.
Segundo Martinez, não há obrigatoriedade de compartilhar aquilo que é
conseguido nas “correrias”, mas elas garantem o respeito do indivíduo dentro do grupo.

A correria possui relação com o respeito à medida em que quanto mais


se contribui mais respeito se ganha na banca. É diante desta dinâmica de
trocas, seja num trecho, ou em diversos deles, que os interlocutores
afirmam: “ninguém passa fome aqui, um olha pelo outro” (MARTINEZ,
2011, p. 65).

A partir da observação do mangueio é possível perceber, então, esse circuito de


trocas de bens, dinheiro, cuidado e respeito entre aqueles que vivem nas ruas conformam
uma economia da rua, que não é isenta de regras e códigos morais, como diria Oliveira,
ou ainda de códigos simbólicos e identitários, segundo Martinez.

52
Os espaços urbanos podem ser ocupados por vários sujeitos, daí ocorre a formação de bancas, ou então,
um território é ocupado por um único sujeito. A formação de bancas implica numa demarcação simbólica e
espacial do território, chamado também de trecho. Para a demarcação do espaço, as bancas deixam algumas
peças de roupas ou utensílios em bancos da praça, ou mesmo, pendurados em galhos de árvore para que
outras bancas não tomem o lugar. (…) As bancas são formadas tanto por sujeitos com trajetórias de rua mais
longas quanto por aqueles com trajetórias mais recentes. (MARTINEZ, 2011, p. 50-51)
53
Correria diz respeito aos mecanismos de aquisição 121
de dinheiro por meio de práticas tais como olhar carros,
praticar furtos eventuais e trabalhos informais (idem, p. 65).
A produção de dinheiro, tal como é concebido o mangueio, parece
operar como um mecanismo capaz de produzir valores que poderão
incluí-los na esfera do mercado e não da doação. [...] Mais do que uma
tática de sobrevivência, há no mangueio uma manipulação de códigos
simbólicos e identitários que permite ao pedinte adotar posicionamentos
diversos como táticas para a aquisição de recursos materiais, como
também, tal prática é concebida como uma tática de geração de valores,
necessários para inserção num circuito de troca mediado somente pelo
dinheiro e não pela dádiva caritativa (MARTINEZ, 2011, p. 93).

A economia da rua que não está isolada da economia formal dos bens e do mercado
de trabalho. Por isso mesmo, a importância de contar uma história que corresponda às
expectativas do interlocutor a quem se pede dinheiro. A história triste é uma tática de se
inserir nessa economia assim como é o “contar a verdade”.

SEM HISTÓRIA TRISTE, A VERDADE E A MENTIRA COMO TÁTICAS

Pode-se manguear sem contar a história triste. Pode-se ir a um bar ou a uma festa
universitária e pedir dinheiro dizendo que é para comprar cachaça e ter sucesso, como
comprovou Melo (2011). Falar a verdade também é um motivo para ser recompensado
com dinheiro.
Eu também já ouvi relatos similares de mangueios bem-sucedidos quando se fala a
verdade. Um homem na rua sem trabalho não consegue dinheiro quando se diz
necessitado. Maurício, um homem de mais de 50 anos é quem me contou da dificuldade
de conseguir dinheiro com mangueio. Ele diz que não adiantava dizer que estava
necessitado, as pessoas olham estranho pois acham que ele tem condição de trabalhar.
Quando ele fala: “é pra beber mesmo, eu sou alcoólatra”, então as pessoas acreditam e lhe
dão dinheiro.
Segundo ele, as assistentes sociais também não acreditam que ele esteja realmente
precisando de um auxílio assistencial, ou que ele viva totalmente sozinho, doente, sem
condição de trabalhar. Segundo ele, as assistentes sociais o olham e pensam: “o que esse
homão está fazendo aqui?” Então, é preciso avaliar quando e para quem contar uma
história triste e quando dizer a verdade. São duas táticas diferentes de obtenção de bens ou
cuidados.

122
Nas instituições assistenciais, dizer a verdade é valorizado e é um mecanismo de
tomada de decisões para os profissionais da instituição assistencial uma vez que são
responsáveis por alocar recursos institucionais limitados.
As instituições vão avaliar a história contada e classificá-la entre verdade e mentira.
Os pedidos de passagens para viagem nas instituições como Albergue e Centro POP
exigem uma história convincente que deve ser contada como tática para conseguir este
benefício. Para aquele que pede passagem é preciso corresponder às expectativas esperadas
da assistente social.
Obtive um exemplo disso quando dois funcionários do Centro POP me
perguntaram sobre o quê um dos seus atendidos havia conversado comigo. Ele havia
solicitado passagem para São Paulo pois dizia ter familiares lá. Os funcionários tinham
dúvida sobre a informação e queriam saber se o rapaz havia me contado a mesma história,
ou se havia alguma informação a mais que eu pudesse fornecer para que eles avaliassem
melhor a história contada. Saber se a história é verdade era importante para a decisão em
fornecer ou não a passagem.
A história contada não pode ser considerada uma mentira. E os atendidos sabem
disso. É comum então dizer que se pretende voltar para a casa de um parente ou que se
tem um emprego em vista numa outra cidade. É importante mostrar que se tem vínculos
com a cidade de destino ao dizer nomes de ruas e bairros para mostrar conhecimento da
cidade e de pessoas. Estas são táticas utilizadas para pedir as passagens.
Um rapaz me relatou certa vez que não conta tudo o que se passa com ele para os
funcionários do Centro POP e que em seu prontuário tem muita “mentira”. Ele também
não me contou qual seria a “verdade”, mas como eu não tenho o controle de seu prontuário
e não tomo decisões sobre sua vida, ele também não teve receio de me dizer que conta
histórias falsas aos funcionários a fim de conseguir algum serviço ou cuidado.
A distinção entre verdade e mentira faz parte de uma razão estatal para alocação de
bens em instituições assistenciais. Já do ponto de vista das pessoas que vivem nas ruas, as
“histórias tristes” do mangueio são homólogas às “mentiras” ditas às instituições. Ambas
são táticas de obtenção de bens e serviços.
Também assim pode ser interpretada a história do rapaz com projéteis alojados no
corpo. Ele, ao me confundir com uma funcionária do Centro POP, conta sua história a fim
de conseguir algum benefício da Assistência Social.
As histórias contadas no mangueio e as contadas nas instituições podem mesmo ser
as mesmas, mas se são tristes ou se são mentiras, isso depende de quem as ouve -

123
transeuntes ou agentes do Estado - e qual o recurso ou bem a ser oferecido a partir desta
informação - doações ou recursos públicos.

CONCLUSÕES

A esmola se faz por doações e mangueios. Aquelas praticadas por voluntários e


instituições filantrópicas. Por elas se obtém diversos bens. Pelos mangueios (também
chamados de mendicância ou pedidos) se obtém tanto bens quanto dinheiro utilizando
para isso uma narrativa construída como história triste ou como verdade. Essas duas linhas
narrativas são empregadas tanto nos mangueios de rua quanto nas histórias de vida
contatadas às instituições. Nelas, a narrativa passa pelo crivo da classificação entre verdade
e mentira para se conceder ou não o que é demandado. O que vai ser anotado nos
prontuários da instituição vai se tornar a verdade sobre o indivíduo, mesmo que sejam
construções narrativas que nada dizem sobre a realidade dos fatos. Assim, os saberes da
rua e suas narrativas se entrecruzam com os saberes produzidos pela instituição a respeito
da população atendida. A mentira não é outra coisa além do encontro conflituoso entre o
saber da rua e a racionalidade estatal.
Quando, na rua, o mangueio encontra seu limite, não surte efeito, então outras
táticas são empregadas além da história triste. Aparecem na economia da rua, os furtos,
roubos e agressões. A economia da rua está imbrincada a suas formas de sociabilidade
violenta54 (SILVA, 2004). Há regras rígidas nos grupos de rua para a aplicação de punições
violentas aos seus integrantes. Ser agressor e vítimas são situações vivenciadas na rua e que
vão ser traduzidas para a narrativa da mídia como representações de risco e perigo.
O que se deve compreender é que controlar as doações é uma forma de regular –
ao menos em parte, a circulação de bens da economia da rua. É importante evitar que estes
bens oferecidos como doação sejam vendidos. Portanto, é igualmente importante garantir
os limites entre a economia das doações (como redistribuição feita pelo Estado) da

Partindo de um debate do conceito de violência urbana, Machado da Silva se contrapõe a perspectivas de


54

análise que tomam a ordem social como medida para o estuda de fenômenos considerados violentos. Com
a noção de sociabilidade violenta, o autor busca traçar novas hipóteses de pesquisa que levem em contam as
práticas de quem vive essa sociabilidade, a qual não se opõe à ordem estatal-legal mas que está articulada com
ela. Segundo o autor:
“Na medida em que o princípio que estrutura as relações sociais é a força, não há espaço para a
distinção entre as esferas da política, da economia e da moral. (...) O que “une” estas condutas em um
124
complexo de práticas organizadas é justamente o reconhecimento (estritamente instrumental) da resistência
física representada pela força de que podem dispor os demais agentes (SILVA, 2004, p.74- 75).
economia das trocas mercantis. Em outras palavras, doação não deve se transformar em
dinheiro.

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125
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126
PROJETO NOVA LUZ E A REDE DE INDIGNAÇÃO NO CENTRO
DA CAPITAL PAULISTA

Ana Carolina Lirani MAZARINI55

Resumo: O planejamento urbano contemporâneo trouxe para a pauta uma nova morfologia de
cidade: a chamada cidade global, que, por meio de operações urbanas e projetos de requalificação,
redefine os espaços públicos urbanos visando um mercado consumidor que tem como interesse
chave a consolidação dos fluxos econômicos e de comunicação necessários aos mercados
financeiros. A cidade de São Paulo, ao adentrar nessa mesma lógica, trouxe para a cidade e, no
caso aqui estudado, para o centro da cidade, operações e projetos como o projeto Nova Luz, que
surgiu com o intuito de proporcionar, por meio da especulação imobiliária, a retomada do centro
para as classes mais altas paulistanas e para o capital estrangeiro –deixando sua atual população, a
maioria moradores de baixa renda, fora dos planos da prefeitura para a região. Como uma força
externa e ameaçadora, o projeto fez surgir no centro de São Paulo novas sociabilidades entre os
diversos atores coletivos presentes na região, que apresentam como características as novas
tendências de mobilização contemporâneas, mobilizações essas que se formam a partir da
solidariedade de múltiplos, porém, carregando consigo uma fragilidade temporal característica dos
movimentos oriundo dessa nossa modernidade líquida. Assim, por meio de uma descrição de parte
dessas mobilizações e da análise das conjunturas sociopolíticas, este trabalho pretende analisar as
novas sociabilidades que surgiram dentro do bairro, com o intuito de conseguir captar a natureza
dessas novas redes de associativismo civil e seus impactos em termos de alterações políticas e
sociais, tendo como base teórica a corrente francesa dos estudos de movimentos sociais.

Palavras-chave: Ação coletiva. Associativismo civil. Movimentos sociais urbanos. Planejamento


urbano. Redes de indignação.

INTRODUÇÃO

Perceptível hoje, dentro dos estudos voltados a análise das metrópoles


contemporâneas, a categoria de cidade global, desenvolvida por Saskia Sassen é colocado
por esse trabalho como ponte de partida para as análises. Esse conceito dentro do
planejamento urbano aparece como tentativa de uma democratização do convívio social a
partir de uma reestruturação dos espaços da cidade, com a intenção de se superar a
segregação urbana.
O problema reside no fato de que essa corrente, assume novamente a condição de
cidade-mercadoria e acredita que através de políticas implementadas dentro desse viés, seja
possível romper com os problemas ligados a segregação urbana. Porém Arantes (2013)
apontou que os efeitos dessa nova corrente do planejamento estratégico podem revelar

55
Titulação: Mestre em Ciências Sociais, Instituição: Universidade Estadual Paulista - campus Marília, ,
Agência financiadora da pesquisa: CNPQ, E-mail: ac.mazarini@yahoo.com.br

127
outras coisas, apontando como esses projetos levam as cidades contemporâneas a
processos de gentrificação

Daí a má consciência que costuma acompanhar o emprego


envergonhado da palavra, por isso mesmo escamoteada pelo recurso
constante ao eufemismo: revitalização, reabilitação, revalorização,
reciclagem, promoção, requalificação (...) mal encobrindo, pelo
contrário, o sentido original de invasão e reconquista, inerente ao retorno
das camadas afluentes ao coração as cidades (ARANTES, 2000, p. 31).

Trabalhando esse conceito na perspectiva de questionar seus objetivos a partir da


análise de sua forma empírica empregada na metrópole paulista, evidencia-se uma
associação entre o poder público e o poder privado na construção da cidade liberal, dito
de outra maneira, a consolidação de obras públicas no sentido de desenvolver os fluxos
econômicos da cidade sem qualquer interesse na democratização de seus espaços. Tais
políticas, aplicadas nas regiões da cidade auxiliam na valorização imobiliária dessas regiões,
tornando-as palco de cenários de migração da população mais pobre para regiões da cidade
que lhe são acessíveis economicamente, mas que quase sempre se apresentam como áreas
desprovidas de qualquer serviço público que lhe garanta um mínimo condição de vida
urbana.
A segregação urbana, portanto, não aparece como superada pelo planejamento
estratégico contemporâneo. Ao contrário, suas ações estão conduzindo a “requalificações”
dos espaços da cidade tornando-os segregativos, e que tem como alicerce de suas políticas
a expulsão dos que não estão estabelecidos como seu público alvo. Assim, a questão que
se coloca nesse sentido é de se saber se esse “consenso público” entre setor público e
privado protagonizado pela lógica da cidade global, não estaria exatamente legitimando
uma prática que tem se revelado a maior responsável pelas desigualdades sociais na
metrópole São Paulo hoje, ao contrário, do ideário que essa corrente propaga de que
através de suas ações haveria condições de superá-las em favor de um convívio social mais
democrático.

O PROJETO NOVA LUZ

O projeto Nova Luz aparece dentro desse cenário de colocar São Paulo dentro do
circuito das cidades globais. Sobre a necessidade de combater a degradação da região

128
central da cidade, seja para proteger seus valores patrimoniais e históricos advindos de seus
prédios e monumentos ou para sanar “a desordem e o caos urbano presentes na região”.
Ao se estudar o projeto mais a fundo, o que identificamos é a idealização de um
desenho urbano pensado e planejado a partir da organização das atividades lucrativas,
otimizando seus usos, sendo projetada a partir das relações de custos-benefícios, deixando
de lado o sentido mais humano das cidades, em que os espaços de realização da vida
cotidiana são transformados em espaço de circulação e mercadoria.
Na região da Luz, esse fenômeno se consolida por intermédio da aliança entre
Estado e setores econômicos privados, pelo instrumento da Concessão Urbanística. Assim,
surge, em 2005, durante a gestão do prefeito José Serra, o projeto de renovação do centro
de São Paulo, intitulado Nova Luz. A primeira versão do projeto tinha como perímetro
delimitado uma área entre as avenidas Rio Branco e Cásper Libero. Onze quadras seriam
totalmente desapropriadas e outras duas seriam parcialmente para a constituição de um
grande espaço para a construção de equipamentos urbanos – uma proposta que visava a
qualificação dos espaços públicos ao longo das principais vias. Em Resumo, a primeira
versão do projeto Nova Luz tinha na iniciativa privada um fundamental agente de
transformação da região central de São Paulo.
Em agosto de 2011, foi apresentada uma nova versão do projeto, mais consolidada
e mais detalhada do que a primeira. A justificativa, apresentada na introdução do projeto
Nova Luz, apresenta dados que nos mostram um periférico crescimento descontrolado
que os levou a repensar as formas de se intervir na cidade. Mais uma vez, acentua-se que o
projeto vem como ações do poder público para requalificar o centro paulistano,
incentivando seus usos residenciais e comerciais.
Com o corpo do projeto finalizado, os objetivos do projeto foram assim definidos,
O Projeto Nova Luz busca assim, requalificar este trecho da região central da cidade de
São Paulo elevando a qualidade do ambiente urbano, com o objetivo de ampliar o uso
residencial oferecendo mecanismos que possibilitem a permanência dos atuais residentes
e atraindo novos moradores, consolidar as atividades comerciais existentes, em especial os
eixos de comércio especializado e atrair novos negócios e atividades econômicas.
Tal iniciativa apresenta três diretrizes principais: viabilização de espaços públicos,
atrair novos moradores e empregos à área central e implantar programas desejados para o
perímetro. Fica explícita a necessidade de se demolir edificações para a construção de
novas, voltadas aos objetivos acima citados. Um projeto de renovação urbana que promete
tornar a região da Luz em um bolsão de luxo, bem no meio de São Paulo. A área

129
demarcada por essa última versão do projeto encontra-se, em sua maioria, dentro de uma
demarcação de ZEIS, Zona de Interesse Social, voltada para a aplicação de Habitações de
Interesse Social e Habitação de Mercado Popular, com 11 quadras e 221 imóveis. Segundo
pesquisas realizadas pelo consórcio Nova Luz, na área que abrange o projeto residem cerca
12 mil pessoas, uma densidade demográfica de 220,6 pessoas por hectare, número elevado
para os padrões da região central. Estimou-se a existência de 7,1 mil habitações ou
domicílios na região, sendo que quase 40% estariam inabitáveis.
Com relação aos moradores, estimou-se que 70% moram no bairro há mais de dois
anos, sendo que, dessa proporção, 45% são residentes há mais de 10 anos, demonstrando
o acentuado vínculo desses moradores com a região. Já nos dados voltados para as
características econômicas da região, observou-se a predominância do setor terciário, com
atividades voltadas para o comércio e prestação de serviços. Com destaques para as ruas
da região da Santa Ifigênia, em que o comércio se volta ao setor de tecnologia e serviços de
manutenção de aparelhos e veículos, trazem para a região uma grande circulação
populacional e de mercado.
Apesar dos dados acima demonstrarem a importância econômica e a alta densidade
populacional, o projeto Nova Luz foi desde o início de seu planejamento justificado pela
necessidade de se eliminar um espaço intitulado como Cracolândia – nome que se refere
a uma região delimitada, mas que afeta toda a população que circula pelo centro da cidade.
Durante os avanços das discussões em torno do projeto Nova Luz, as ações
repressivas por parte do Estado se intensificaram na região. Polícias Civil e Militar lançavam
a todo o momento “Operações Limpezas”, visando erradicar o tráfico de drogas na região
da Cracolândia. Concomitantemente, o então prefeito Gilberto Kassab, em sabatinada
realizada pelo jornal Folha de S. Paulo, declarou que “a Cracolândia não existe mais. Agora
é Nova Luz. Ela é realidade”. Outro aspecto de extrema importância na análise do projeto
é que o Nova Luz é fruto de uma lei urbanística, chamada Lei da Concessão Urbana56,
aprovada em 2009 pela Câmara Municipal. Em Resumo, uma lei que dá ao poder privado,
em parceria com o poder público, o poder de desapropriar qualquer região com o intuito
de renová-la.
O consórcio encarregado pela elaboração do projeto foi formado pelas empresas
AECOM, Concremat, Cia. City e pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

56
Lei 14.918, de 7 de Maio de 2009, Lei de Concessão Urbanística.

130
A proposta desse projeto de renovação procura atrair outro tipo de população e
investimento para o bairro, criando estratégias espaciais para afastar seus atuais usuários e
as camadas de menor poder aquisitivo que ali residem. Por se tratar de uma área com uma
população de mais de 20 mil habitantes, o processo de elaboração e implementação do
projeto sofreu muita resistência por parte dos moradores do bairro. Eles queriam diálogos
e participações na elaboração do projeto.
Utilizando os meios jurídicos, a pressão social conquistou uma vitória importante.
Na segunda quinzena de janeiro de 2013, o Poder Judiciário suspendeu o projeto Nova
Luz e determinou a reelaboração de várias de suas etapas, sob pena de multa diária. Na
decisão emitida pela justiça, questionou-se a participação da sociedade civil no
planejamento do projeto. As principais teses acolhidas pelo Poder Judiciário versavam
sobre o atraso da formação dos conselhos gestores populares, conquistado através da
pressão popular, como também a falta de propostas dentro do projeto que asseguravam a
permanência da população já residente do bairro.
Diante da decisão determinada pela justiça, o então novo prefeito eleito, Fernando
Haddad, decidiu abandonar essa última versão do projeto, que foi desenvolvida pelo
Consórcio Nova Luz a pedido da administração anterior. Alegando que o projeto até então
não se apresentava como adequado para o perfil socioeconômico da região, decidiu
repensar o projeto de requalificação da área, porém, sem descartar a colaboração da
iniciativa privada. Assim, para a região seria adotado o modelo de Parceria Público-Privada
(PPP), no qual ficaria para a iniciativa privada a função de apresentar propostas que
contemplassem o uso misto das edificações, com usos comerciais nos andares baixos e
térreos e os demais para o uso de moradias populares.

ASSOCIAÇÃO AMOALUZ

Ao adentrar a área central da cidade de São Paulo, nos deparamos com uma grande
gama de moradores, ruas de grande comércio e de grande relevância política nas questões
voltadas às demandas urbanas com várias associações de moradores, de moradores em
situação de rua, moradores de ocupações e comerciantes. Assim, o bairro vivencia as
tensões de um projeto de requalificação urbana que pretende criar um “novo bairro”, sem
priorizar a diversificação de moradores, trabalhadores e comerciantes da região, que, já nas
primeiras entrevistas, se colocam como exemplos dessa diversidade de atores sociais.

131
Aqui, na região da Luz, reside uma gama de moradores muito grande,
existe uma diversidade de moradia. Segundo a prefeitura, nós somos
11,6 mil moradores, mas eu acredito que tenha mais, porque as
ocupações e os cortiços não foram contados e não estão na lista. A
diversidade de moradia precisa ser contada, olhada e respeitada. A gente
tem também uma diversidade cultural muito grande. Sou filha de
imigrantes, meu pai é argentino, e esse é outro perfil de morador da
região (P.R., moradora do bairro da Luz, 2012) 57.

Em minhas primeiras inserções ao bairro, foi possível dialogar com moradores,


porteiros e comerciantes que estavam nas ruas. Todos relataram que jamais tiveram
qualquer contato da prefeitura para esclarecimento e diálogo sobre o projeto Nova Luz. As
informações vinham pelos jornais e televisão, ao mesmo tempo em que quarteirões inteiros
eram demolidos. Essa falta de diálogo da prefeitura com os moradores e comerciantes fez
com que um pequeno grupo de moradores passasse a se mobilizar, construindo dentro do
bairro pequenas ações de intervenções nas ruas dos bairros, para alertar a toda região os
reais objetivos do projeto Nova Luz e suas consequências para os moradores e
comerciantes locais. Com um megafone e distribuindo panfletos, iam às ruas do bairro
convocando os moradores para a criação de reuniões abertas no intuito de se criar diálogo
e mobilização entre a comunidade da região central da cidade.
Em um primeiro momento, essas mobilizações foram organizadas e realizadas por
duas jornalistas, moradoras do bairro. A tática do microfone trouxe um efeito: um pequeno
número de moradores começou a se reunir em um salão situado em cima de uma padaria
da região, padaria Auroria, que se intercalava com outros espaços dentro do bairro,
dependendo do número de participantes. O objetivo dessas primeiras reuniões era o de
debater o projeto Nova Luz, como também se preparar politicamente para as audiências
públicas que começaram a ocorrer no bairro, como parte do processo de implementação
do Nova Luz.
Com o decorrer do aumento no número de pessoas interessadas nas reuniões e,
principalmente, com a participação nas audiências públicas, o pequeno grupo viu a
necessidade política e jurídica de se fundar a Associação Amoaluz – Associação de
Moradores e Amigos da Santa Ifigênia e da Luz, composta por um pequeno grupo de
pessoas de moradores, comerciantes e representantes de movimentos sociais e associação.
Nesse mesmo período, o projeto começou a entrar em pauta nos jornais locais e em
discussões de cunho acadêmico, visto que as primeiras intervenções da prefeitura

57
Entrevista concedida em 5/02/2012 no bairro da Luz.

132
começavam a acontecer, com derrubada de prédios e ações por parte da Polícia Militar em
relação aos usuários de drogas da região.
Entrando nessa onda, a associação cria um canal na internet, o blog Apropriação
da Luz, como ferramenta de divulgação e promoção da associação, objetivando aumentar
a força política de suas ações e denunciar as irregularidades do projeto Nova Luz. A página
virtual realmente aumentou sua visibilidade, levando a Associação Amoaluz a falar em
jornais, eventos acadêmicos e produções audiovisuais independentes. Interessante
observar que os meios de comunicação, desde o início da mobilização, foram – e ainda são
– um grande instrumento para a associação.
Por meio do blog e de canais alternativos da web, detalhados mais adiante neste
trabalho, a associação posta vídeos de mobilizações e audiências públicas, e organiza
discussões com estudiosos e profissionais da área, a fim de informar sobre aspectos das
renovações urbanas e direitos da sociedade civil – criando uma resistência política e cultural
através da comunicação. Com o andamento das mobilizações, as aparições em programas
e as polêmicas cada vez mais latentes em volta do projeto, as reuniões do movimento
começaram a receber cada vez mais pessoas, fazendo com que a associação tomasse uma
decisão importante para o desenrolar de suas atividades: modificar o local das reuniões,
que passaram a ocorrer dentro da ocupação Mauá.
A ocupação Mauá se trata de um prédio, ocioso até 2007, que serve de base de luta
do movimento social em torno das questões de habitação social no centro de São Paulo, o
MSTS58. É interessante observar que essa ação da associação marca o início do rompimento
das barreiras sociais, já que moradores e comerciantes que jamais haviam visitado uma
ocupação passam a enfrentar esse preconceito. Esse cenário aumenta o diálogo entre os
moradores das ocupações e o restante da população do centro. A ida para a ocupação
Mauá trouxe alguns aspectos importantes a serem destacados. No começo das
mobilizações, quando as reuniões ocorriam em menor número de pessoas, elas aconteciam
de forma mais horizontalizada, com cadeiras em círculos e maior tempo de abertura para
as falas.
Com o aumento de adeptos nos encontros, as reuniões passaram a ocorrer de
maneira mais representativa. Representantes dos movimentos sociais e das associações
detinham o maior tempo de fala e conduziam as reuniões. A própria Associação Amoaluz
passou a possuir uma presidente, com a função de conduzir as reuniões e representar a

58
MSTS: Movimento Sem Teto de São Paulo

133
associação em todos os eventos e entrevistas. Nesse momento, é impossível compreender
quantas pessoas fazem parte da Associação Amoaluz, visto que muitas que passaram a
frequentar as reuniões eram militantes do MSTS, sem qualquer vínculo com a associação
e que estavam ali para debater a questão da moradia dentro do projeto de requalificação,
assim como os comerciantes que vinham representando sua associação, com o intuito de
trazer para a discussão as questões em torno das áreas comerciais do bairro.
Importante ressaltar que esse interesse por parte dos membros do MSTS e por
parte da associação de comerciantes em fazer parte das reuniões da Associação Amoaluz
aconteceu porque a associação conseguiu reuniões com a prefeitura, graças à exposição
que teve nos meios midiáticos e nos meios acadêmicos. As reuniões com a prefeitura se
deram com o objetivo de se conquistar uma maior participação da comunidade local no
processo de elaboração e execução do projeto Nova Luz.
Em um primeiro momento, essas reuniões consentidas pela prefeitura foram vistas
como um grande passo na tentativa de se reelaborar o Nova Luz. Porém, com o avanço
dessas reuniões, a associação, e o grupo que se formou em volta dela, percebeu que tais
encontros em nada ajudavam no processo de transformar o processo de requalificação do
centro em um processo participativo. Assim, com ajuda de outros movimentos sociais da
região e com a assessoria da comunidade acadêmica, a associação apresentou uma carta à
Secretaria Municipal de Habitação, com o objetivo de se criar um conselho gestor dentro
da área demarcada pelo Nova Luz.
A partir dessa carta, e com uma pressão social realizada por parte da associação e
dos movimentos envolvidos no processo de elaboração da proposta de formação do
conselho gestor, um conselho gestor de ZEIS 3, do projeto Nova Luz, foi fundado em
junho de 2011. Esse foi o primeiro conselho fundado no país para debater moradias já
urbanizadas. O conselho foi elaborado com base na legislação correspondente à formação
dos conselhos e no conselho gestor já existente, o Conselho Municipal de Habitação de
São Paulo, bem como, de acordo com o Plano Diretor (Lei 13.430 de 13 de setembro de
2002) e Decreto nº 45.127, que dispõe sobre as ZEIS e seus Planos de Urbanização.
Esse conselho municipal é constituído por um conselho tripartite, formado por
representantes do poder público, representantes de entidades comunitárias e de
organização popular, e representantes da sociedade civil, formado por moradores da região
do projeto Nova Luz. O conselho buscou dialogar e trazer temas ao projeto no que tange
a questões ligadas à qualidade de vida, equilíbrio, otimização dos espaços públicos e
sustentabilidade. Trata-se de um mecanismo democrático que, desde sua formação, vem

134
encontrando resistências dos órgãos públicos, causadas pela falta de inclusão e
transparência em todo o projeto de construção e execução do projeto Nova Luz.
Um fato interessante observado, no que diz respeito aos interesses dentro da
associação, é que, antes da criação dos conselhos, seus membros eram divergentes.
Comerciantes, moradores e representantes de movimentos de habitação não eram
unificados, e cada categoria defendia propostas e ideias próprias. Por esse motivo, notava-
se até mesmo um distanciamento dos grupos dentro das próprias reuniões da associação.
Com a criação do conselho, houve uma aproximação dessas classes, criando um elo entre
todos os envolvidos. Outro ponto interessante é a crescente importância que a associação
afirmou de se utilizar da comunicação para fortalecer vitórias e continuar os diálogos e
discussões sobre o centro de São Paulo.
A associação criou um novo canal de comunicação na internet. Agora, além do blog
Apropriação da Luz, a Associação Amoaluz criou uma TV Web Apropriação Da Luz, em
parceria com o coletivo Casa Fora do Eixo, e com o grupo de teatro Cia Pessoal do
Faroeste. A TV Web tem programas que visam interagir com as ações propositivas que já
acontecem no bairro e dar espaço aos protagonistas dessas ações em prol da região central.
Além disso, discute saídas para a requalificação do espaço do centro. Os programas são
transmitidos ao vivo por sites, blogs e redes sociais na internet e contam com a participação
de pessoas ao vivo, com convite aberto no blog da associação e também com perguntas e
colocações de internautas através das redes sociais. Isso mostra que parte da força da
associação se deu pelos mecanismos que a novas tecnologias vêm oferecendo para
movimentos sociais contemporâneos.
Com o decorrer do conselho e a mudança de gestão da Prefeitura de São Paulo, a
associação conquistou vitórias importantes. A primeira e mais importante foi a decisão da
justiça que ordenava a Prefeitura de São Paulo a refazer o projeto Nova Luz. Tal ordem
levou o então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, eleito em outubro de 2012, a
engavetar o projeto, e elaborar um projeto de escala e impactos menores para o bairro.
Outras vitórias vieram na posição que a associação ganhou por meio de seus porta-vozes
em discussões dentro dos órgãos públicos de São Paulo, como, por exemplo, a discussão
da revisão do plano diretor.
A nova gestão da Prefeitura de São Paulo organizou reuniões com diversos
movimentos de moradia da cidade, inclusive com o movimento Amoaluz. A primeira
reunião, no dia 05 de fevereiro de 2013, contou com a presença de 23 representantes de
diversos movimentos organizados para debater moradia na cidade de SP nas mais diversas

135
regiões, como zona sul, zona leste, centro, zona oeste, entre outros. As entidades foram
ouvidas e as questões levantadas foram discutidas. A Amoaluz, representada por atores
ativos da associação, apresentou alguns pontos para debater e ser incluído como pauta na
revisão: as operações urbanas, os projetos urbanísticos na cidade, a lei da concessão
urbanística (onde se enquadra o Nova Luz), as PPP (Parcerias Público-Privadas) e mais
transparência no momento de execução dos projetos.
Com o lançamento da proposta da Parceria Público-Privada, formulada por
empresas privadas para a agência Casa Paulista, do governo do Estado, que recentemente
contou com a adesão da prefeitura para a produção de 20 mil unidades habitacionais na
área central do município de São Paulo, a Associação Amoaluz, juntamente com outros
movimentos populares, setores da administração pública e centros de estudos ligados a
universidades, elaborou uma carta aberta, alegando preocupação quanto à elaboração do
plano e a falta de participações democráticas no processo de elaboração e execução do
plano.
Atualmente, as reuniões da associação não estão ocorrendo. Percebe-se um
distanciamento de alguns atores sociais que se envolveram na rede criada pela associação
em decorrência do engavetamento do projeto. Em reuniões entre a pesquisadora e
representantes do movimento, percebeu-se que a associação ganhou força e adesão com o
avanço das atividades da Prefeitura de São Paulo, no que se referia à implantação do
projeto Nova Luz. Com a interrupção das atividades por parte do atual prefeito, Fernando
Haddad, a associação começou a perder força, com reuniões cada vez mais esvaziadas. No
início do engavetamento do Nova Luz, as reuniões ainda apresentavam um número
considerável de participantes, entre 200 a 300 pessoas, e ainda se discutia questões ligadas
à revitalização do centro e os projetos agora propostos pela prefeitura como a PPP, já citada
acima.
Porém, com o avanço do tempo, percebe-se que as reuniões que acontecem dentro
da ocupação Mauá voltaram a ter características tradicionais, com pautas dos Movimentos
Sem-Teto e praticamente sem a participação dos atores de fora da ocupação. Até mesmos
os canais de comunicação da associação perderam força: o blog passou a receber
publicações raramente, teve sua última publicação no ano retrassado, mesma época em
que ocorreu a última TV Web, projeto que o Amoaluz realizou juntamente com o coletivo
Fora do Eixo. Fica nítido que, com o engavetamento do projeto, a associação perdeu força
política, ocorrendo um esvaziamento de ações e de atores.

136
OS ATORES DA AMOALUZ

A Associação Amoaluz se intitula Associação de Moradores e Amigos da Santa


Ifigênia e da Luz, e, apesar de receber e interagir com militantes de várias bandeiras do
centro da cidade, é formada por um pequeno grupo de pessoas. A Amoaluz é formada por
moradores do bairro, sejam moradores com suas casas próprias ou moradores de
ocupações e comerciantes. Uma parte desses moradores, que acabou por se envolver com
a associação, não possuía qualquer envolvimento com os movimentos de moradias e
ONGs presentes no centro, como o caso da moradora G. C., proprietária de um imóvel
de classe baixa, localizado em um dos prédios tombados do centro de São Paulo. Além
dessa moradora, é notável a participação de mais outros dois proprietários de imóveis em
prédios de classe baixa da região.
Ao serem indagados do motivo de se envolverem politicamente com a Associação
Amoaluz os moradores apresentaram as mesmas preocupações em torno do projeto Nova
Luz. “Estou me sentindo como se eu tivesse uma faca em minha garganta. Estamos nos
sentindo como se fossemos marginalizados” (G.C., proprietária e moradora do bairro da
Luz, 2012)59. A fala reflete a forma como a falta de comunicação da prefeitura da cidade e
do governo estadual com os moradores da região central da cidade trouxe para esses
moradores e comerciantes medos e preocupações que concerne ao futuro de suas casas e
comércios na região.

Pela lei, se você for ler a lei, eu não tenho garantias de permanecer dentro
do apartamento mesmo ele tombado, porque é uma área de
revitalização. Revitalizar é: eles vão mudar a estrutura do quarteirão, a
função do quarteirão, o comércio do quarteirão, as moradias dos
quarteirões, e eu não sei onde vou ficar, como eu vou ficar (G.C.,
proprietária e moradora do bairro da Luz, 2012)60.

Essa situação de incerteza estimulou os moradores a trabalharem em prol dos seus


direitos. Assim, surge a Amoaluz. Nascida no interior do bairro, a associação se caracteriza
por ser uma rede de atores sociais interligados em um objetivo comum: barrar o projeto
Nova Luz e conquistar uma renovação urbana para a região que não seja elaborada para
fins da especulação imobiliária. As idas ao bairro, as reuniões da associação e as
observações de seu cotidiano foram realizadas também no sentido de identificar quem

59
Entrevista concedida em 8/2/2012, no bairro da Luz.
60
Entrevista concedida em 8/2/2012, no bairro da Luz.

137
eram essas pessoas que, para atingirem seus objetivos, se propuseram a criar diálogos e
convivências com outros indivíduos que, até então, não faziam parte de seu convívio
político e social dentro do bairro.
As idas ao bairro mostraram um esforço por parte de um pequeno grupo de
moradores e comerciantes de fortalecer a associação politicamente, para, assim, “ganharem
voz” dentro do processo de planejamento e implementação do projeto Nova Luz. Dentro
desse processo, vimos emergir, em alguns participantes da associação, um senso crítico e
uma consciência política, como colocado pela presidente da associação:

Eu sempre falo que eu saí do armário social e comecei a exercer minha


cidadania. Não estava nem aí para o meu bairro, mas chega uma hora
que você é tão massacrado moralmente, que você mora no meio do
tráfico, que você mora perto da bandidagem, nossa eu era motivo de
chacota na escola, por causa do lugar onde eu morava. Para mim, esse
movimento todo é quase uma libertação pessoal (P.R., moradora do
bairro da Luz e presidente da Amoaluz, 2012)61.

Esse movimento de consciência política acabou por alargar os diálogos entre a


variada gama de moradores e proprietários da região central e, por conta disso, vemos a
adesão por parte dos militantes do Movimento Sem-Teto e a ideia de realizar as reuniões
da Amoaluz dentro da ocupação Mauá. Assim, se observou que a gama de atores sociais
que aderiram à Amoaluz foi se diversificando. Nas reuniões, o que víamos nesse momento
era moradores, comerciantes, militantes, professores, arquitetos, estudantes. Conforme a
associação ia alcançando espaços de discussão nas mídias, mais pessoas iam se
aproximando da associação. Sempre levantando a mesma questão, via-se que a associação
delimitou suas ações a um único objetivo comum. “Não é que não queremos melhorias
para o bairro, sim, queremos. Mas agora que o bairro vai melhorar, porque eu tenho que
sair daqui?” (P.R., moradora do bairro da Luz e presidente da Associação Amoaluz)62.
A fala dessa moradora se perpetuava nas falas dos demais entrevistados no bairro.
As incertezas decorrentes da total falta de comunicação da Prefeitura de São Paulo fizeram
com que esses moradores, que até então não possuíam qualquer relação com os
movimentos sociais do centro, se tornassem atores dentro da associação aqui estudada. A
consolidação da pauta sobre moradia e sobre permanência se consolidou como bandeira
de luta da associação, com aproximação dos atores da associação com atores presentes no

61
Entrevista concedida em 10/6/2012, no bairro da Luz.
62
Entrevista concedida em 10/6/2012, no bairro da Luz.

138
Movimento Sem-Teto. Ao participarem das reuniões promovidas pela associação, os
coordenadores do MST acrescentaram sua agenda de luta já tradicional aos debates e
construções de demandas da associação, como dito por uma das atoras da associação:
“Mauá continua sendo moradia de baixa renda sim!” (P.R., moradora e membro da
Associação Amoaluz, 2012)63.
Isso pelo fato de que, no projeto Nova Luz, a ocupação Mauá seria demolida para
a construção de um centro de entretenimento. Assim, desde seus primeiros contatos com
o projeto, o MST já criou uma agenda em que colocava como objetivo central a inclusão
de habitações sociais dentro do projeto de revitalização Nova Luz, que acabou por
fortalecer as propostas da associação. “Estamos encravados no meio do bairro da Luz,
como a prefeitura não enxerga a Mauá, não só a Mauá como muitas ocupações que existem
nesse bairro, queremos ser incluídos sim!” (I. A., moradora da ocupação Mauá e
participante do MST, 2012) 64.
Outro aspecto da associação é a contribuição de arquitetos e acadêmicos presentes
nas universidades paulistas que entraram como apoio à associação, pois, ao observarem e
estudarem o projeto Nova Luz, observaram inúmeras irregularidades tanto no que diz
respeito ao desenho urbano quanto à sua implantação. Assim, a preocupação desses
profissionais era que, se o projeto Nova Luz fosse executado como foi proposto, poderia
causar danos urbanos e sociais em todas as regiões da cidade. “Tanto o projeto quanto a
lei que lhe dá suporte são problemáticos e, se passarem na Nova Luz, vão passar na cidade
inteira” (S.G., arquiteta e urbanista, apoiadora da Associação Amoaluz, 2012)65.
Os comerciantes locais apresentaram posturas diferenciadas quanto ao ingresso e
adesão à Amoaluz. Apesar de receosos com o desenvolvimento do Nova Luz, como a fala
descrita abaixo, se colocaram em colaboração com a associação, porém sem aderirem a
sua pauta de reivindicações como um todo.

Nunca tivemos nada, eu, meus pais, minhas primas, nada. Nunca
ninguém chegou e falou ‘o que você está precisando?’ ou ‘como você vê
esse projeto?’. E, de repente, do nada, a gente ouve que vai cair. A
paranoia é essa: vai cair, senhor Kassab está com um projeto que vai cair
a Santa Ifigênia. Como assim vai cair? Baseado em que vai cair? A gente
fica sabendo que ele aprovou uma lei que a gente é obrigada a vender
nosso imóvel, nosso patrimônio conseguido durante um século para uma

63
Entrevista concedida em 10/6/2012, no bairro da Luz.
64
Entrevista concedida em 10/6/2012, no bairro da Luz.
65
Entrevista concedida ao coletivo Fora do Eixo.
139
empresa privada (E. O., comerciante da Santa Ifigênia, possui com o pai
uma loja de eletrônicos, 2012)66.

Estamos com nossos advogados na justiça para barrar esse projeto, do


nada ouvimos que tudo ia cair, queremos o fim desse projeto e
elaboração de um novo (P. G., membro da Associação de comerciantes
da Santa Ifigênia, 2012)67.

Como já mencionado acima, apesar de colaborarem com a Amoaluz, os


comerciantes agiram por conta própria, visto que possuem uma tradicional e forte
associação de comerciantes locais, como também pelo fato de possuírem posturas quanto
às formas de mobilização distintas de outros segmentos ligados ao Amoaluz – por exemplo,
os Movimentos Sem-Teto e seus métodos de pressão política. Com o início das
intervenções em razão do projeto, eles iniciaram lutas judiciais para a suspensão do Nova
Luz, e passaram a ser modelo de postura jurídica a ser adotada por outras associações e
movimentos que, com eles, mantinham contato graças ao intercâmbio produzido pela
Amoaluz.
Por possuir uma variedade de atores, a associação que se formou possui uma
diversidade de agendas e demandas. Os comerciantes pediam o fim desse projeto como
apresentado e a elaboração de um novo. Os moradores possuíam uma posição de se
minimizar os impactos sociais e os movimentos sociais – principalmente os ligados às
questões de habitação era o de ganhar habitações dentro do projeto. Enfim, havia várias
demandas decorrentes de vários atores que se articularam, gerando a associação e, assim,
formando uma frente de ação política no processo de planejamento do centro da cidade.
Porém, trazendo a ressalva em que se questiona o caráter de solidariedade tão acentuado
pelos representantes da Amoaluz, mas que se colocou em cheque, visto que cada grupo se
colocou como colaborador, mas estava ali para defender seus interesses próprios.

AS IDEIAS E O MOVIMENTO DA AMOALUZ

A Amoaluz, Associação de Moradores e Amigos da Santa Ifigênia e da Luz, tem


por objetivo dar voz aos moradores e comerciantes afetadas pelo projeto Nova Luz. Foi
formada por um grupo de atores que se uniu para propor demandas a serem acrescentadas
no projeto Nova Luz e, assim, discutir e propor um novo centro de São Paulo. Por ter

66
Entrevista concedida em 10/6/2012, no bairro da Luz.
67
Entrevista concedida em 10/6/2012, no bairro da Luz.

140
como base de ação a comunicação, a associação mantém redes de comunicação tanto nos
meios virtuais – como blogs e redes sociais – quanto em ações nos espaços públicos do
centro, a fim de se criar um canal de discussão entre os variados movimentos e associações
ali presentes.
Exatamente por ter na comunicação sua principal filosofia, a associação conseguiu
se fundar graças ao associativismo que surgiu entre vários moradores e representantes de
associações e movimentos sociais já tradicionais no centro da cidade de São Paulo. A
associação nasceu a partir do movimento de duas moradoras do bairro que, ao saírem às
ruas com megafones e explicações sobre o projeto Nova Luz e suas implicações sociais,
foram conquistando espaços nas discussões políticas que ocorriam, principalmente na
região central da cidade. Consequentemente, o número de participante nas reuniões foi
aumentando, e, assim, houve a necessidade política e jurídica de uma associação.
A Associação Amoaluz nasce em reunião ocorrida no mês de fevereiro de 2010.
Com demandas e propostas variadas, a associação foi recebendo ideias e construindo
propostas para a construção de um projeto de revitalização. Com o avanço das discussões,
a associação promovia um elo entre atores historicamente afastados. Moradores,
representantes de movimentos e de associações se dispuseram a dialogar e a conhecer
posições contrárias, um movimento que ocorreu de forma natural dentro do objetivo maior
que era o de barrar o projeto Nova Luz.
Com o decorrer das intervenções que a associação realizava e as aparições em
espaços de discussões sobre o tema, tanto nas universidades quanto nos espaços da mídia,
a associação conquistou uma primeira reunião com a prefeitura para tratar sobre o projeto
Nova Luz no dia 24 de março de 2011. Nessa reunião, a associação apresentou suas
insatisfações quanto ao processo participativo no projeto Nova Luz adotado pela prefeitura,
como também apresentou propostas para tal. Com essa primeira reunião, a associação
ganhou um estímulo a mais, e novas reuniões e debates foram realizados. Como resultado,
veio a proposta de criação de um conselho gestor para a região, que foi feita e encaminhada
para a prefeitura.
A partir de pressões políticas como as realizadas acima, a associação, juntamente
com outras entidades da cidade de São Paulo, conquistou a fundação do conselho gestor
do projeto Nova Luz, contando com oito cadeiras da sociedade civil e oito do poder
público. Esse conselho foi criado para debater moradia de áreas já urbanizadas que
constavam dentro projeto. Com a criação do conselho, as reuniões da associação dentro
da ocupação Mauá começaram a ocorrer de maneira mais intensificada. A cada data

141
agendada para ocorrer uma reunião do conselho gestor, uma série de reuniões da
associação ocorria, com o intuito de se atualizarem sobre a situação do projeto Nova Luz,
organizarem suas demandas e reivindicações.
Era nítido que a comunicação, a solidariedade e a alteridade entre os diferentes
atores ali presente iam se intensificando. A consciência de que, para conseguir barrar o
projeto que afetaria a todos, era necessário um intercâmbio de todos, ficava cada vez mais
evidente. O medo e as incertezas ao longo de todo o processo foram essenciais na
manutenção da comunicação. O que se via eram moradores, comerciantes, inquilinos e
proprietários tomando cada vez mais consciência de seus direitos como tais e como
cidadãos, tornando-os assim atores participantes dessa nova associação de moradores.
Foram dois anos de intervenções, ações políticas em espaços públicos e virtuais,
embates e discussões em reuniões da prefeitura e do conselho gestor. Todo esse processo
de pressão e ação política, juntamente com a entrada do atual prefeito Fernando Haddad
à frente da administração na Prefeitura de São Paulo, traz uma importante vitória à
associação: o projeto Nova Luz é engavetado e um novo projeto começa a ser pensado
para o centro da cidade.
Esse episódio acarreta um interessante movimento dentro da associação. Com seu
principal objetivo alcançado, a associação começa a perder expressão política dentro dos
movimentos e associações tradicionais da região central. Nota-se uma diminuição contínua
de intervenções físicas e virtuais comandadas pela Amoaluz, e a peculiar rede de diversos
atores começa a se enfraquecer. Começa a ocorrer um refluxo desses atores para suas
associações e movimentos de origem, diálogos até então estreitados começam a sofrer um
novo distanciamento.
O que deixa em evidência que a rede de atores que se formou nesse contexto
estudado tinha um objetivo único: barrar o projeto Nova Luz. Assim, com tal objetivo
alcançado, a associação perdeu significado, praticamente desaparecendo no que tange a
uma força política dentro do centro de São Paulo. Se existe algum legado deixado por essa
movimentação política, talvez seja a consciência do poder político que os atores passaram
a ter. Vemos que, mesmo não apresentando alianças consolidadas, é nítido um forte
sentimento de alteridade e respeito entre a gama de atores presentes do centro da cidade.
Porém, o fato é que a associação hoje apenas existe no papel, o que coloca em discussão
os efeitos de longo prazo que essas ações possam trazer a essa comunidade.

142
CONCLUSÕES

Ao analisar a origem da associação que se deu graças à tentativa de implementação


do projeto Nova Luz, vimos que o movimento de resistência política vai ao encontro das
teorias que o sociólogo Alain Touraine já destacava dentro das teorias dos movimentos
sociais. Para o autor, o ator social se constitui a partir da consciência e resistência que o
sujeito estabelece a partir de uma determinada situação que fere seus direitos constituídos
por meio das leis que rege o país. Ainda para o autor, essa consciência sobre seus direitos
e consolidação de suas posturas políticas é realizada através de uma experiência coletiva,
em que os atores, por meio de interações e trocas de informações, desencadeiam ações
emancipatórias capazes de transformar as realidades existentes.
Porém, a fragilidade política apresentada pela associação, visto que, com o
engavetamento do projeto os diferentes atores que contribuíam com a Amoaluz voltaram
a atuar apenas nas associações e movimentos sociais de origem, fez as reuniões cessarem.
Toda a construção de canais de diálogos entre os atores deixou de existir, demonstrando
que a cidade poderia ser sim esse espaço de consolidação de novos modelos de
movimentos políticos. Porém, é nela que vemos emergir uma nova morfologia social que,
nomeada pelo sociólogo Zygmunt Bauman (2001) como líquida, vai interferir na
consolidação desse novo modelo de movimento social.
Para o autor, a sociedade contemporânea vem passando por uma série de
transformações que atingem todas as suas esferas, trazendo modificações para toda a
morfologia social. Tais alterações, segundo o autor, fazem com que as esferas sociais
percam sua solidez e se tornem fluidas, líquidas. Assim, vivemos um novo tempo de
desapegos, de processos sociais e políticos provisórios e de individualização extrema. Nesse
contexto, os relacionamentos com os outros se tornam frágeis, pois o que se valoriza são
os aspectos das vidas particulares. Dentro desse raciocínio, o autor revela que é nos espaços
da cidade que se reflete o fim da era do engajamento mútuo.
Vemos o enfraquecimento dos espaços públicos e uma valorização dos espaços
privados que acaba por propulsar uma vitória da fragmentação dos sujeitos versus
movimentos cooperativos de mobilização social. A fragmentação dos atores presentes na
sociedade contemporânea, resultado das transformações das cidades em espaços fechados
e murados – que torna o espaço público não mais um espaço do ideal moderno de
universalidade, mas que, ao contrário promove a separação, a exclusão, reforçando a ideia
de que grupos sociais devem viver em enclaves homogêneos, acentuando uma nova esfera

143
pública – expõe esses atores a uma fragilidade, na medida em que não consegue mais
estabelecer um pensamento coletivo e cooperativo de longa duração entre os grupos
políticos presentes na sociedade atual.
Dentro dessa mesma lógica, a fluidez e o imediatismo da vida cotidiana,
características básicas no modelo de sociedade líquida, trazem reflexos diretos aos novos
meios digitais, muito utilizados não somente pela associação estudada por este trabalho,
mas difundida como um meio de mobilização política atual, juntamente com uma nova
forma de organização da vida social nas metrópoles contemporâneas marcada por fluxos
de pessoas, mercadorias e comunicações cada vez mais rápidos – fazendo com que as
identidades sejam construídas tendo como forte alicerce a mobilidade. Isso leva a uma
desestruturação das vivências sociais, características de sociedades líquidas, visto que essa
ausência das experiências compartilhadas acaba por transformar os espaços da cidade em
um “não-lugar”68, onde os indivíduos estabelecem comunicações intermediadas pelas
tecnologias da informação.
Essa fragmentação das experiências e o desenvolvimento desses sujeitos de
identidades construídas a partir de interações digitais em sua maior parte trazem uma
temporalidade curta, que acaba por reforçar essa fragilidade presente nas associações
contemporâneas, refletindo o caráter não emancipatório não apenas nos novos
associativismos do centro de São Paulo, mas também em todo o mundo. Para o autor, as
redes sociais permitem a articulação de enormes concentrações de pessoas em
pouquíssimo tempo, se tornando um alvoroço de emoções coletivas que acabam em si
mesma, sem trazer consequências às normativas postas.
Bauman qualifica esses novos movimentos como “movimentos emocionais”. É nas
emoções provenientes das políticas de alteridades que trazem para os atores políticos
emoções que os estimulam a se engajar politicamente, criando bandeiras de luta pelas
políticas que rechaçam, porém, sem construir pautas que consolidem suas demandas. Essa
característica é que torna os movimentos sociais contemporâneos, manifestações episódicas
e propensas à hibernação, pois a emoção, reflexo da morfologia social a qual está inserida,
é “líquida” tornando-se inapropriada para configurar algo coerente e duradouro. O reflexo
disso são as inúmeras manifestações, presentes nos cenários políticos atuais, que

68
Proposto pelo antropólogo Marc Augé (1994), o conceito de não-lugar é usado para designar um espaço
de passagem incapaz de dar forma a qualquer identidade, ou seja, são espaços destinados unicamente ao
trânsito de pessoas sem que aja qualquer tipo de relação.
144
apresentam questionamentos e soluções dentro do status quo existente com grande
contingente de pessoas, porém com uma vida extremamente momentânea.
Assim, o que fica é o alerta, visto que as políticas voltadas para a consolidação de
um mercado consumidor marcado pela valorização dos aspectos privados cada dia ganham
mais força. Por outro lado, o que vemos nas novas tendências de mobilizações política é
uma fragilidade construída a partir de um processo que levou a sociedade contemporânea
a aspectos de uma fluidez, que incapacita os novos movimentos sociais de construírem
movimentos de profundas transformações políticas.

REFERÊNCIAS

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___________. A sociedade individualizada: vidas contadas e histórias vividas. Rio de


Janeiro: Zahar, 2008.

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MARQUES, Eduardo. (Org.). A metrópole de São Paulo no século XXI. São Paulo:
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145
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ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de


São Paulo. São Paulo: Fapesp/Nobel, 1997.

SASSEN, Saskia. La ville Globale. Paris: Descartes & Cie., 1996.

SÃO PAULO (MUNICÍPIO). Secretaria de Finanças. Lei nº 12.350, de 6 de junho de


1997. Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20101020-04.pdf>.
Acesso em: 10 jan. 2013.

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VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel: FAPESP:
Lincoln Institute, 2001.

146
PERCEPÇÃO E USO DOS RECURSOS AMBIENTAIS NO BAIRRO
ZAVAGLIA EM SÃO CARLOS-SP

Cynthia FRANCO¹

Renata CRUZ²

Ana Beatriz TOLEDO³

Juliano Costa GONÇALVES4

Resumo: Os problemas de planejamento urbano e a gestão da ocupação do território associada a


exclusão social traz diversos problemas socioambientais para as cidades brasileiras. Historicamente,
a inexistência da interlocução popular produziu planos e leis urbanísticas, cujos padrões e
parâmetros refletem apenas a maneira como as elites se instalam na cidade, determinando o quanto
é ampla a desigualdade afetando vários setores da sociedade (Rolnik et al., 2005). Nesse contexto,
as pesquisas sobre percepção ambiental têm, de forma geral, o intuito de entender como o homem
vê, compreende e se adapta ao meio em que vive, especialmente no que diz respeito a locais
instáveis ou vulneráveis socioambientalmente (Okamoto, 1996). Este artigo analisou a percepção e
uso dos recursos ambientais no bairro Zavaglia em São Carlos-SP através da aplicação de um
questionário semiestruturado com os moradores do bairro. Os questionários indicaram que as
preocupações ambientais estão em último plano devido à situação social e financeira da maior parte
das famílias e principalmente devido aos problemas de infraestrutura básica e serviços do bairro,
como por exemplo, falta de posto de saúde, escolas, creches e segurança. Desta forma, fica evidente
que os problemas estruturais de modo geral devem ser solucionados a fim de proporcionar maior
receptividade às questões ambientais por parte dos moradores.

Palavras-chave: Percepção Ambiental. Planejamento Urbano. Problemas Socioambientais.


Recursos Ambientais.

INTRODUÇÃO

APRESENTAÇÃO DO TEMA

A ocupação desordenada do solo urbano degradou as cidades dificultando a vida


de seus moradores pela redução dos espaços habitáveis, insuficiência dos serviços urbanos
(redes de água, esgoto, luz e telefones), pela deficiência dos transportes coletivos, pela
dificuldade de circulação viária, pela insuficiência dos equipamentos comunitários,
insuficiência e deficiências na educação, dos serviços sociais e de assistência sanitária, pela
redução de áreas verdes e de lazer, entre outros (ARFELLI, 2004).
Historicamente, a inexistência da interlocução popular produziu planos e leis
urbanísticas, cujos padrões e parâmetros refletem apenas a maneira como as elites se
instalam na cidade, determinando o quanto é ampla a desigualdade afetando vários setores

147
da sociedade (ROLNIK et al., 2005). Ocorre também uma ineficácia e inadequação dos
instrumentos de planejamento e gestão urbana que podem contribuir para o
estabelecimento de padrões irregulares e informais de ocupação e urbanização, em especial
dos segmentos mais pobres da população, introduzindo também a hipervalorização
imobiliária em áreas consideradas regulares com boa qualidade de vida e infraestrutura
adequada.
A exclusão social é um dos principais marcos do processo de urbanização das
cidades. Devido à sua visão econômica capitalista, estas acabam empurrando os mais
pobres para áreas menos valorizadas do ponto de vista imobiliário, como as denominadas
áreas de risco, sem serviços ou infraestrutura adequada (FERREIRA et al., 2005).
A iniciativa pública habitacional brasileira voltou seus esforços para a construção
de uma grande quantidade de conjuntos habitacionais, com intuito de explorar esses feitos
politicamente, sem ater-se a qualidade e eficiência destes empreendimentos (VERAS,
2013). Desta forma, as habitações de interesse social costumam apresentar um
desempenho ambiental muito baixo, o que afeta diretamente a qualidade de vida dos
moradores. De acordo com Assis (2007), as principais causas do baixo desempenho
ambiental nas moradias de interesse social são o emprego de materiais não compatíveis
com um desempenho térmico satisfatório e sistemas de ventilação e iluminação
inadequados.
Nesse contexto, as pesquisas sobre percepção ambiental têm, de forma geral, o
intuito de entender como o homem vê, compreende e se adapta ao meio em que vive,
especialmente no que diz respeito a locais instáveis ou vulneráveis socioambientalmente.
(OKAMOTO, 1996). A percepção ambiental trata-se da tomada de consciência do
homem em relação ao ambiente, isto é, a forma como o ele entende o meio em que se
insere. Esta interfere em como o indivíduo percebe, reage e responde ao ambiente, sendo
essencial ao entendimento dessas inter-relações. (FERNANDES et al., 2011). Além disso,
a imagem que o indivíduo tem do ambiente resulta de seus conhecimentos, experiências,
crenças, emoções, cultura e ações.
Já Carvalho, Silva e Carvalho (2012) referem-se à percepção ambiental como as
“formas com que os indivíduos veem, compreendem e se comunicam com o ambiente,
considerando-se as influências ideológicas de cada sociedade”. Essa diferença de
percepções, variando com o tipo de cultura ou grupo socioeconômico, pode ser um desafio
para a proteção dos ambientes naturais, além de gerar uma série de problemas

148
(FERNANDES et al., 2011). No presente artigo, trataremos das questões relacionadas a
infraestrutura urbana, energia, terra e áreas verdes.
Segundo Fedrigo (2009), com o objetivo de reduzir o impacto do consumo de
energia dos chuveiros elétricos, os programas de habitações de interesse social passaram a
instalar nas residências sistemas de aquecedor solar, capazes de reduzir significamente o
valor das contas de eletricidade. Entretanto, há indícios de que a instalação de
equipamentos de baixo custo pode comprometer o uso e bom funcionamento destes
aquecedores nas residências.
A uniformidade desses conjuntos, associada à ausência de espaços verdes e às longas
distâncias dos locais de trabalho da população dificultam a apropriação do lugar por parte
dos moradores estabelecendo uma relação pouco proveitosa com a terra e como
consequência direta, podem ser citados a depredação do espaço coletivo e o
estabelecimento de uma situação de desarmonia constante naquela comunidade (VILLA
et al., 2013).
O Município como executor da política de desenvolvimento urbano e na sua
função de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e de garantir o
bem-estar de seus habitantes, deve buscar sobretudo na atividade urbanística voltada ao
parcelamento do solo urbano, dar efetividade a garantia da cidade sustentável no que se
refere ao direito ao lazer para as presentes e futuras gerações (art. 2º, I da Lei
nº10.257/2001- Estatuto da Cidade) (ARFELLI, 2004).

CONTEXTUALIZAÇÃO

O Residencial Deputado José Zavaglia está localizado no bairro Jardim Zavaglia,


em uma área fora do perímetro urbano do município de São Carlos. Ele pode ser
caracterizado como um loteamento popular de baixa renda, idealizado pelo programa
“Minha Casa, Minha Vida” e construído pela Construtora RPS Engenharia de São Carlos.
O projeto urbanístico apresenta o loteamento composto por 31 quarteirões, 7 ruas,
a estrada municipal, 11 avenidas e possui, segundo levantamento por imagens de satélite,
aproximadamente 1013 residências, como é possível observar na Figura 1.

149
Figura 1: Delimitação em amarelo da área do Residencial Deputado José Zavaglia em São
Carlos, SP.
Fonte: Google Earth.

O abastecimento de água do bairro Zavaglia é feito pela companhia SAAE –


Serviço Autônomo de Água e Esgoto de São Carlos. A água disponibilizada para população
do bairro é proveniente de poço artesiano, a qual é tratada e armazenada em caixa d’água
central localizada no bairro Antenor Garcia e distribuída para os dois bairros. Não há
relatos que fazem referência à falta constante de água no bairro, no entanto existem relatos
de vazamento de água potável em uma das ruas do bairro Zavaglia. Não existem
informações disponíveis sobre tratamento de esgoto do bairro.
O bairro do Zavaglia possui infraestrutura no que diz respeito a ruas asfaltadas, água
encanada, tubulação de esgoto, energia, calçadas e sarjetas. A área central do bairro foi
idealizada para abrigar equipamentos públicos como escolas, creches e posto de saúde,
entretanto, a escola que havia sido construída foi demolida, restando apenas um posto de
saúde que se encontra fora de funcionamento, uma ONG que recebe crianças do bairro
para execução de atividades e uma academia ao ar livre que se encontra em condições
ruins.
A companhia de distribuição elétrica que abastece o bairro Zavaglia é a Companhia
Paulista de Força e Luz. O bairro e as residências deste foi entregue com toda a
infraestrutura elétrica pronta. Assim como a maioria das novas construções do projeto
Minha Casa Minha Vida, o conjunto habitacional possui aquecedor solar na maioria das
residências para diminuir os gastos com energia.

150
Em relação à posse e uso da terra, no Zavaglia ela se dá, como descrito, através dos lotes.
Sabe-se que são ocupados por famílias, podendo também os lotes serem ocupados por
outras conformações de moradores, com número varíavel de pessoas. As famílias
moradoras foram selecionadas de acordo com as orientações definidas pela Portaria nº 140
de 17 de março de 2010 do Ministério das Cidades. Os requisitos para seleção foram: 1)
Renda familiar mensal bruta de até R$ 1.395,00; 2) Famílias residentes ou que tenham sido
desabrigadas de áreas de risco ou insalubres; e famílias com mulheres responsáveis pela
unidade familiar”. O lote possui 200m² e a casa 42m² e a prefeitura produziu plantas baixas
pré-aprovadas para o caso de os moradores desejarem ampliar sua residência. Os lotes não
possuem muros de divisão dos terrenos, ficando sua construção por conta dos moradores.
Uma das dificuldades para a proteção dos ambientes naturais em geral e das áreas
verdes públicas em si está na existência de diferenças nas percepções dos valores entre os
indivíduos de culturas diferentes ou grupos sociais econômicos distintos em ambientes
distintos (FERNANDES, et. al., 2004 apud PANQUESTOR, 2007).
Nesse sentido, cabe um estudo voltado ao diagnóstico da relação existente entre o
uso das áreas verdes públicas e o real significado que essas desempenham no entendimento
do usuário. E além disso, é preciso conhecer a percepção ambiental dos recursos
ambientais presentes no bairro. O valor simbólico do espaço público induz à sua
preservação ou sua destruição em função do descaso em relação à sua conservação, a partir
do momento que o indivíduo não se sente parte integrante desse ambiente (FERNANDES,
et al, 2004).

OBJETIVO GERAL

Descrever e analisar a relação dos moradores com os recursos ambientais do bairro


em especial à infra-estrutura urbana, energia, terra e áreas verdes.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS

Infraestrutura
a) Verificar a percepção ambiental do moradores do bairro sobre o serviço de água
e o saneamento; b) Levantar se os residentes tem algum conhecimento sobre saneamento
básico; c) Verificar se os moradores do bairro sabem para onde vai o esgoto e o lixo gerado
que sai de suas casas; d) Verificar se existe coleta adequada dos efluentes e dos resíduos

151
sólidos; d) Verificar se a demanda de abastecimento de água é suficiente; e) Verificar a
relação da população do bairro com os recursos hídricos e com o lixo gerado; f) Verificar
se serviços de coleta de lixo atendem o bairro; g) Verificar se existe(m) área(s) de
proliferação de doenças por vinculação hídrica ou por falta de coleta de lixo.
Energia
a) Verificar como os moradores lidam com o consumo de energia; b) Verificar se
o sistema elétrico e de aquecimento solar funciona adequadamente; c) Levantar as
demandas relativas a energia residencial.
Terra
a) Levantar a percepção dos moradores quanto a sua relação com sua moradia e o
quanto o espaço da casa interefere na sua qualidade de vida; b) Verificar o quanto a posse
da terra empodera aquele grupo de moradores em relação à função que a casa
desempenha: de abrigo e bem-estar.
Áreas verdes
a) Identificar as áreas verdes do bairro e qual a relação dos moradores com elas; b)
Verificar o grau de significância dessas áreas para os moradores; c) Analisar a relação da
percepção ambiental dos moradores com suas atitudes para com as áreas verdes.

JUSTIFICATIVA

Considerando os modestos, mas importantes, avanços dos últimos anos no quesito


produção de Habitação de Interesse Social (HIS) este trabalho se faz importante por tratar
de temas ainda mais negligenciados pela esfera pública ao tentar resolver essa questão. É
fundamental que o acesso à moradia se dê de forma rápida, porém sem esquecer, entre
outros aspectos, da qualidade ambiental em que essas moradias e seus moradores estarão
inseridos. Governos e iniciativa privada ao decidirem por programas gigantescos como o
Minha Casa Minha Vida não podem se esquecer da escala micro: o contexto local dos
novos bairros e as relações que os moradores estabelecerão entre eles, com suas casas e
com os recursos ambientais ao redor como a água, matas, energias e resíduos.
Portanto o presente estudo se faz fundamental na medida em que dá voz a esses
moradores em relação à essas questões: como eles veem as relações citadas e quais são suas
observações e reclamações sobre esses temas. Ninguém melhor que os próprios moradores
para apontar as direções a seguir.

152
APRESENTAÇÃO DAS SEÇÕES

A seguir o projeto apresenta a descrição da metodologia utilizada, e inicia


apresentação dos resultados obtidos com a pesquisa de campo. Primeiro são apresentados
os resultados obtidos em relação aos resíduos sólidos, seguidos dos resultados das temáticas
água, esgoto e proliferação de doenças, compondo o tópico de infraestrutura. Em seguida
apresenta-se os dados referentes ao tópico da Energia, que alcança o modo de uso desse
recurso, aquecimento solar e sua manutenção. Depois temos o tópico Terra trazendo a
relação e a satisfação dos moradores com a casa que receberam. E por último temos o
tópico Áreas verdes que investigou a leitura dos moradores do bairro sobre essas áreas no
Zavaglia.

METODOLOGIA

A metodologia do artigo foi pautada em revisão bibliográfica dos temas chave,


pesquisa documental e pesquisa de campo. A fim de analisar o perfil de percepção
ambiental dos moradores do bairro foi elaborado um questionário semiestruturado para
aplicar na população residente no bairro Zavaglia. O questionário totalizou 39 perguntas
que foram separadas em blocos que buscaram identificar diferentes aspectos da percepção.
O primeiro bloco de perguntas visava identificar os moradores da residência, como quantos
moradores residiam e se todos eram da mesma família. O segundo abordava questões
sobre a infraestrutura do local, como saneamento básico, água, resíduos sólidos e serviços
públicos básicos. O segundo bloco buscou identificar aspectos relacionados ao consumo
de energia, como o uso do sistema de aquecimento solar e economia de energia. O terceiro
bloco se referia as dimensões da residência, a maneira que ela interfere na qualidade de
vida e a relação do morador com a própria casa. O quarto e último bloco abordou sobre
as áreas verdes do bairro, e buscou analisar a percepção sobre essas áreas e a relação dos
moradores com elas.
Os questionários foram aplicados até alcançar o ponto de saturação, ou seja, o
ponto em que os novos entrevistados passaram a repetir os conteúdos já obtidos em
entrevistas anteriores. Desta forma, foram aplicados 51 questionários em uma amostra de
51 residências aleatórias do bairro em ruas igualmente aleatórias. Depois de desenvolvida
a aplicação dos questionários, os dados foram tabulados e tratados, as respostas abertas

153
foram padronizadas por categoria de acordo com a sua semelhança a fim de proporcionar
uma melhor visualização dos resultados. Por fim, os dados foram analisados e discutidos.

DESENVOLVIMENTO

Infraestrutura
Ao serem questionados em relação aos resíduos sólidos, apenas 12% dos residentes
reconheceram descartá-los inadequadamente em locais públicos. Eles justificam que não
existem lixeiras suficientes nas ruas. Além do mais, 53% reutilizam materiais como potes,
garrafas PET e sacolas plásticas no cotidiano. De acordo com a pesquisa, 33% dos
entrevistados afirmam que existe coleta seletiva do bairro, contra 25% que dizem não
possuir e 10% que não souberam responder. Conforme relatos, essa coleta é feita por
catadores de materiais recicláveis residentes no prórpio bairro. Dessa forma, percebe-se
que a maior parte dos residentes tem conhecimento do destino dado aos resíduos sólidos.
Além disso, 78% separam os resíduos recicláveis dos não-recicláveis e 63% indicaram locais
no bairro em que existe a possibilidade de proliferação de doenças por acúmulo de
resíduos. Os lugares mais citados foram terrenos vazios, fragmentos de vegetação no
entorno do bairro e a residência de catadores.
A maior parte dos moradores (71%) toma água da torneira, mostrando que há
confiança no serviço de tratamento desta. Os que não tem esse hábito, afirmam que a água
tem muito cloro ou algum gosto diferente, por isso não a consomem diretamente.
Entretanto, quando questionados sobre a origem do recurso, a maior parte não soube
responder, como demonstrado no Gráfico 1.

154
GRÁFICO 1: CONHECIMENTO QUANTO À FONTE DE ÁGUA DAS
RESIDÊNCIAS PELOS MORADORES

Fonte: Pesquisa de campo dos autores.

Além disso, aproximadamente metade dos entrevistados afirmaram que houve


corte no abastecimento de suas residências no último ano. Contudo, ressaltaram que este
foi um evento esporádico resultante de uma obra que o SAAE realizou no bairro. Isso
demonstra que a demanda tem sido atendida e os devidos serviços de manutenção têm
sido feitos. 88% declararam economizar água através de ações como reutilizar a água da
máquina de lavar para limpar o quintal, consertar vazamentos, lavar roupas menos vezes
na semana, não lavar a calçada e reutilizar a água do chuveiro para descarga.
Quanto ao esgoto, alguns moradores (31%) acreditam que este vai para uma estação
de tratamento após o uso residencial, porém a maioria dos entrevistados (53%) não souber
responder, conforme o Gráfico 2. Não foi possível verificar o destino dado aos efluentes
devido à falta de informação disponível.

155
GRÁFICO 2: CONHECIMENTO QUANTO AO DESTINO DA ÁGUA DAS
RESIDÊNCIAS PELOS MORADORES

Fonte: Pesquisa de campo dos autores.

A iluminação pública do bairro foi caracterizada, majoritariamente, como


insatisfatória. O principal fator que levou a esta classificação foi devido a falta de iluminação
nas ruas transversais, como mostra a imagem, o que as deixa escuras e perigosas.

Figura 2: Ruas transversais que não possuem iluminação destacadas em vermelho.


Fonte: Google Earth.

Outros fatores também considerados foram a ineficiência das lâmpadas, pois são
muito fracas, e a queda de energia após chuvas intensas.

156
Energia
A fim de avaliar se os moradores buscavam economizar energia, estes foram
questionados quanto a deixarem aparelhos elétricos ligados quando não estão utilizando.
Foi perceptível, pelo diálogo com os entrevistados, que estes economizam energia apenas
pelo valor da conta e não por preocupação ambiental. O gráfico a seguir mostra a
porcentagem de moradores que desligam os aparelhos elétricos quando não estão
utilizando.

GRÁFICO 3: PORCENTAGEM DE PESSOAS QUE DESLIGAM APARELHOS


ELÉTRICOS QUANDO NÃO ESTÃO UTILIZANDO

Fonte: Pesquisa de campo dos autores.

Foi levantada a porcentagem de entrevistados que fazem parte do programa Tarifa


Social. Dos entrevistados, apenas 31,4% afirmaram participar do programa, sendo que
outros 31,4 não sabiam do que se tratava. A maioria dos entrevistados afirmou não
participar (35,3%), sendo que boa parcela destes acreditavam que era necessário participar
do programa Bolsa Família para receber o benefício. Podemos perceber que se o benefício
fosse melhor divulgado e os moradores buscassem mais informações, um número bem
maior de famílias poderia estar sendo beneficiado.
Quando questionados se o valor da conta de energia se alterou significativamente
nos últimos meses apenas 25,5% relatou que ela não sofreu alteração, a maioria (72,5%)
dos entrevistados afirmou que o valor aumentou, e destes, 84,6% afirmaram que esta
alteração estimulou mudanças no consumo de energia. Entre essas mudanças foram citadas
a diminuição do uso da máquina de lavar, troca das lâmpadas, desligar a geladeira à noite,
tomar banhos mais rápidos, não passar roupas, apagar a luz, usar o aquecedor solar, entre

157
outros. Esta porcentagem confirma, de certa forma, que os moradores economizam apenas
pelo viés econômico e não ambiental.
Quanto ao aquecedor solar, 5 entrevistados afirmaram não possuir aquecedor.
Entre os motivos relatados estão o desejo do morador de que sua residência não possuísse
aquecedor e informações de que os aquecedores eram apenas para experimentos e por
este motivo não seriam todas as casas que o possuiriam. Dentre os moradores que
possuíam aquecedor, 88% afirmaram que ele funciona como o esperado, ou seja, funciona
adequadamente, não apresenta problemas e ajuda a diminuir significativamente o valor da
conta de energia. Entretanto, 12% relataram ter tido problemas com o aquecedor. Alguns
dos problemas relatados em relação aos aquecedores são a demora em aquecer a água, o
que culmina em um desperdício significativo de água, o aquecimento excessivo da água e
os defeitos que os sistemas de aquecimento apresentaram. Alguns moradores destacaram
que os sistemas devem utilizar materiais de pouca qualidade, o que acarreta em defeitos.
Os moradores relataram um incêndio em uma residência em virtude de um curto circuito
no sistema de aquecimento solar, fato que deixou os moradores receosos quanto ao uso
do aquecedor, porém não diminuiu seu uso. Ainda em relação a estes moradores, 89,5%
afirmaram que usam o aquecedor solar todos os dias (Figura 7), o que significa que a
maioria dos moradores está satisfeito com seu aquecedor.
Foi levantado a porcentagem de entrevistados que fazem parte do programa Tarifa
Social. Dos entrevistados, apenas 31,4 porcento afirmaram participar do programa, sendo
que outros 31,4 não sabiam do que se tratava. A maioria dos entrevistados afirmou não
participar (35,3%), sendo que boa parcela destes acreditavam que era necessário participar
do programa Bolsa Família para receber o benefício. Podemos perceber que se o benefício
fosse melhor divulgado e os moradores buscassem mais informações, um número bem
maior de famílias poderia estar sendo beneficiado.
Quando questionados se o valor da conta de energia se alterou significativamente
nos últimos meses apenas 25,5% relatou que ela não sofreu alteração, a maioria (72,5%)
dos entrevistados afirmou que o valor aumentou, e destes, 84,6% afirmaram que esta
alteração estimulou mudanças no consumo de energia. Entre essas mudanças foram citadas
a diminuição do uso da máquina de lavar, troca das lâmpadas, desligar a geladeira à noite,
tomar banhos mais rápidos, não passar roupas, apagar a luz, usar o aquecedor solar, entre
outros. Esta porcentagem confirma, de certa forma, que os moradores economizam apenas
pelo viés econômico e não ambiental.

158
Quanto ao aquecedor solar, 5 entrevistados afirmaram não possuir aquecedor.
Entre os motivos relatados estão o desejo do morador de que sua residência não possuísse
aquecedor e informações de que os aquecedores eram apenas para experimentos e por
este motivo não seriam todas as casas que o possuiriam. Dentre os moradores que
possuíam aquecedor, segue abaixo os gráficos de suas respostas a cerca desde.

GRÁFICO 4: FREQUÊNCIA DE USO DO AQUECEDOR SOLAR NAS


RESIDÊNCIAS DO BAIRRO ZAVAGLIA

Fonte: Pesquisa de campo dos autores.

Um número muito pequeno de moradores afirmou terem recebido assistência


quanto ao uso dos sistemas por representantes da construtora, sendo tal assistência pontual
e pouco informativa. Dentre os moradores que citaram que o aquecedor solar veio com
instruções de uso (54,3%), a maioria se referiu a uma placa que foi colada no box dos
banheiros com instruções mínimas de uso, e que não configura uma instrução significativa
do modo de uso do aquecedor.
Quanto a manutenção do aquecedor, boa parte dos entrevistados afirmaram não saber se
possuem algum direito (38,1%). É importante destacar que parte dos entrevistados que
responderam não possuir direito de manutenção (47,6%) deram essa resposta por não
possuírem as informações relacionadas a isso e, portanto, consideraram a manutenção
como inexistente. Uma moradora afirmou que um técnico da construtora realizou uma
reparação do sistema de aquecimento solar por conta própria, sem vínculo com a
construtora. Estes dados demonstram a falta de comunicação dos idealizadores e da
construtora quanto aos diretos dos moradores, bem como a falta de interesse de

159
proporcionar suporte mínimo aos residentes do bairro, que por sua vez dificilmente
buscam se informar sobre essa questão.
Terra
Em relação ao aspecto “terra” e a relação que os moradores estabelecem com seu
lote e casa podemos perceber aspectos interessantes.
Quando questionados em relação à satisfação com a casa que receberam 90% (42
moradores) disseram que estavam satisfeitos, 7,8% disseram que estavam mais ou menos
satisfeitos e apenas 1 morador disse não estar satisfeito. Os 90% comentaram que assim se
sentiam por não ter mais que pagar aluguel, morar de favor, por não possuírem casa antes
e porque a casa é boa, considerando o valor que pagaram. Quem está mais ou menos
satisfeito pontuou que a casa possui rachaduras, pintura descascada e pela casa não possuir
muros nem calçada. E o morador que disse não estar satisfeito comentou que a casa é
quente, que o vento levanta o forro e que há tomadas que não funcionam.
Em relação à quantidade de quartos que há na casa, para 65,4% dos entrevistados,
ela é boa para a quantidade de moradores (em média casas com 2 ou 3 moradores
responderam dessa forma) e porque como eles pagavam aluguel antes de se mudarem para
este bairro, essa era uma questão que ficava em segundo plano. Já os 43,6% moradores que
não estavam satisfeitos com a quantidade de quartos argumentaram que é ruim pois é muita
gente em casa, dificulta o momento de receber e acomodar visitas e que desejavam ao
menos mais um quarto.
Quanto ao tamanho dos cômodos os moradores se dividem: metade acha
adequado e a outra metade não. Argumentaram que são pequenos, os móveis que possuem
não cabem e a cozinha, em especial, é pequena.
Quando perguntados se o tamanho da casa interfere na qualidade de vida e na
relação com os outros moradores da casa 58,8% (30 moradores) disseram que não e 39%
(20 moradores) disseram que interfere. Estes argumentam que sentem dificultados os
momentos de lazer, que outros parentes durmam na casa depois de comemorações, os
móveis não cabem, como a cozinha é muito pequena não permite que a família faça
refeições em conjunto, e que é dificil limpar os cômodos. Podemos observar aqui respostas
bem parecidas com as da questão anterior.
Por fim, foi questionado sobre a ampliação da casa: 79% dos moradores (38 deles)
tem vontade de ampliá-la, 14,6(%) (7 moradores) já realizaram obras com essa intenção e
6% (3 moradores) não desejam ampliar). Quem não deseja ampliar geralmente é porque
mora em poucas pessoas (2 ou 3). Quem já ampliou em geral ampliou a cozinha, faz

160
melhorias na garagem e constrói uma edícula. Quem tem vontade de ampliar deseja fazer
pois os cômodos são muito pequenos, para tornar a casa mais confortável, e permitir mais
momentos de lazer. Desejam aumentar a cozinha, a sala, construir edicula e garagem.
Áreas Verdes
Para identificar as áreas verdes do bairro, foram utilizadas imagens de satélite do
Google Earth, como mostra a Figura 3. Foram identificadas 4 áreas verdes com vegetação
florestada em todo entorno do bairro, mostrando a forte presença destes locais no dia a dia
dos moradores.

Figura 3: Imagem identificando as áreas verdes do bairro.


Fonte: Google Earth.

Durante a aplicação dos questionários foram feitas perguntas sobre o entendimento


dos moradores sobre as Áreas Verdes e onde estariam localizadas, e a partir daí foi possível
perceber que 65% dos entrevistados associaram o termo Áreas Verdes com árvores, plantas
e mato (Gráfico 5) e depois conseguiram localizar as áreas dizendo estarem “em volta do
bairro”. A parcela de entrevistados que disse não saber do que se tratava o termo Áreas
Verdes continuou sem saber responder à questão de onde estavam localizadas as áreas.

161
GRÁFICO 5: GRÁFICO DA PERCEPÇÃO SOBRE ÁREAS VERDES

Fonte: Pesquisa de campo dos autores.

Quando questionados acerca da importância dessas áreas, 90% dos entrevistados


responderam afirmativamente, argumentando que o significado se deve a “beleza”,
“melhora o ar”, “sombra”, “lazer”, “segura água da chuva”, “é melhor para a saúde”,
“protege o meio ambiente”, “diminui a poluição”, e “dá mais vida para o bairro”. Dos
entrevistados que responderam negando a importância das Áreas Verdes se justificaram
usando argumentos como “é perigoso”, “atrai bichos”, “tem fogo na mata”, “tem lixo”, “não
é cuidado”, “dá medo dessas árvores”. Durante a execução do questionário, depois da
pergunta: “O que você entende por Áreas Verdes? ”, o entrevistador passou a dar uma
breve explicação do que poderia ser entendido como Áreas Verdes de fato, e só então
prosseguia para a seguinte pergunta: “Você acha importante a existência dessas áreas? ”.
Essa estratégia fez com que os entrevistados que responderam como “Não sei” na primeira
passassem a se questionar e argumentassem de maneira diferente sobre a importância das
áreas na segunda questão, o que representa em dados que cerca de 90% dos entrevistados
reconhece que a existência das Áreas Verdes do entorno do bairro contribui de alguma
maneira, direta ou indiretamente, para sua qualidade de vida.
Pôde-se perceber que a relação dos moradores do bairro com as Áreas Verdes do
entorno depende muito do perfil da família. Os entrevistados que tinham o costume de
passear pelo bairro, sentar na calçada para conversar e que tinham vida social mais ativa
com os vizinhos conseguiram dar respostas mais completas sobre as atividades exercidas
pelos moradores nas Áreas Verdes do entorno. De acordo com as respostas dos
entrevistados para a pergunta sobre a utilização das Áreas Verdes pelos moradores, estas

162
são utilizadas para “tráfico”, “consumo de drogas”, “jogar lixo e entulho”, “por fogo”, “criar
galinhas” e “plantios”, entretanto, a Área Verde 3, localizada na parte central da Figura 4,
foi bastante citada por ser utilizada por crianças para brincar, para jogos de futebol em um
campo de terra improvisado e carrinho de espeto durante a noite.
Essas respostas podem ser comparadas com a questão da segurança das ruas
próximas às Áreas Verdes, a qual apontou 63% dos entrevistados afirmando que se sentem
inseguros nas proximidades dessas áreas utilizando argumentos sobre o tráfico e consumo
de drogas com bastante frequência juntamente com: “bandidos se escondem” nessas áreas,
“muito escuro”, “casos de estupro nas proximidades”, “bichos e insetos” que por vezes
picam e chegam a matar animais de estimação, “velocidade dos carros” nas ruas perto das
Áreas Verdes e consequentes casos de “atropelamentos” especialmente de crianças. O
gráfico segue abaixo:
Além dos dados indicarem fortes exemplos da falta de segurança, 62% dos
entrevistados reclamaram bastante do excesso de resíduos sólidos descartados em todas as
quatro Áreas Verdes do entorno do bairro. Porém quando questionados sobre como
gostariam de utilizar as áreas que os cercam, as respostam foram em sua maioria, para
realização de atividades positivas e que trabalhem a vivência coletiva (Gráfico 6).

GRÁFICO 6: SUGESTÕES PARA A UTILIZAÇÃO DAS ÁREAS VERDES

Fonte: Pesquisa de campo dos autores.

Foram levantadas as demandas dos moradores em relação a melhoria do bairro,


entre elas as mais citadas foram a necessidade de um posto de saúde, escola, creche,
árvores, limpeza do bairro, iluminação mais eficiente e transporte.

163
GRÁFICO 7: DEMANDAS LEVANTADAS PELOS MORADORES POR VEZES
CITADAS

Fonte: Pesquisa de campo dos autores.

CONCLUSÃO

Foi possível concluir que a percepção ambiental dos moradores sobre o serviço de
saneamento e água é de média a baixa no quesito procedência da água para consumo e
destinação de seu esgoto domiciliar. Isso porque os resultados do questionário
demonstram que mais da metade dos entrevistados não souberam responder sobre a
origem correta da água, apesar de consumi-la com total confiança. Além disso,
desconheciam a real destinação do esgoto de suas casas o que pode afetar negativamente a
consciência dos moradores sobre os possíveis impactos que esses serviços, quando não
executados corretamente, podem causar ao meio ambiente. Ainda sobre os efluentes, não
conseguimos acesso a informações do órgão de saneamento que pudessem confirmar que
o esgoto do bairro é tratado na Estação de Tratamento de Esgoto da cidade. Logo
concluímos que as informações sobre este ponto estão desencontradas. A relação entre a
disponibilidade de água no bairro e a necessidade da demanda dos moradores se
apresentou satisfatória. Os moradores apresentaram uma boa percepção sobre o
desperdício de água, a grande maioria utiliza a água da máquina para lavar quintal e água
do chuveiro para outras atividades como dar descarga no banheiro. Além disso, alternam
os dias de lavar roupa para fazer a economia do recurso hídrico.
Os resultados apresentados sobre a percepção e coleta de resíduos sólidos mostrou
que os moradores são ambientalmente mais atentos a estas questões, possuindo uma

164
percepção maior do que a problemática da água e esgoto, visto que a maioria tinha
informações sobre serviço de coleta de lixo do bairro, bem como sobre a coleta de resíduos
recicláveis. Além do mais, em sua grande maioria os moradores separam tais resíduos para
coleta. Não observamos áreas com possíveis focos de proliferação de doenças por
vinculação hídrica. Porém os moradores fizeram menção a alguns vazamentos de esgoto
na rua de principal acesso do bairro, e os mesmos consideram o local como de potencial
proliferação de doenças por vinculação hídrica. No que diz respeito há doenças vinculadas
a resíduos sólidos, a área apontada como potencialmente ligada a esta questão é a área
verde que circula o bairro. Foi observado que alguns dos moradores utilizam o espaço
como área de despejo de resíduos. Outros moradores do bairro relacionaram como
potencial área de vinculação de doenças alguns quintais malcuidados e o quintal dos
moradores que são catadores de recicláveis que acumulam seu material de trabalho de
forma não organizada.
Através das respostas obtidas sobre a questão energia, concluiu-se que os
moradores do bairro Zavaglia possuem uma preocupação com o consumo de energia,
porém esta questão não se liga ao meio ambiente e sim a questão econômica. Quanto ao
sistema de aquecimento solar que as casas possuem, estas apresentaram um bom
funcionamento segundo a grande maioria dos entrevistados. O sistema de aquecimento
veio somente com uma instrução de como ligar e desligar o aquecedor na hora do banho
segundo apresentado no presente artigo. Boa parte desses moradores informou que o
sistema não possui manutenção, outra parcela menor disse que esta manutenção ocorre e
outra não soube responder, o que trouxe a conclusão que as informações sobre esta
questão estão desencontradas. Apesar de a grande maioria estar satisfeita com o aquecedor,
é possível observar que algumas casas não o possuem, umas porque não foram implantados
e outras porque os próprios moradores desativaram o equipamento, alegando problemas
técnicos não resolvidos. Apesar de o aquecedor ter uma função ecológica e sustentável, ele
apresenta falhas nestas áreas visto que o mesmo desperdiça muita água até que esta seja
aquecida. Assim fica claro que, a empresa que implantou os aquecedores não buscou
nenhuma comunicação com os moradores, visto que a maioria não foi instruída e não sabe
de seus direitos em relação a manutenção do sistema (que nunca ocorreu), o que pode
indicar que a implantação desses sistemas foi meramente promocional, sem nenhum
interesse na continuidade do benefício.
A partir dos dados coletados em relação à posse e uso da terra e da casa podemos
perceber que parte dos moradores do bairro já se sentem bastante aliviados e minimamente

165
felizes com a casa que possuem (90,2% afirmam estar satisfeitos com suas residências). Já
se sentem assim pois, muitas vezes, pagavam aluguel ou moravam de favor, fazendo com
que ter a sua casa própria algo extremamente urgente. Isso faz com que outras reflexões
sobre, por exemplo, conforto e espaço individual para cada morador, fiquem em segundo
plano ou nem cheguem a ser consideradas. Por outro lado, é bastante alta a porcentagem
de moradores que desejam ampliar suas casas (79,2%). Isso demonstra um paradoxo na
visão destes moradores quanto à qualidade e satisfação com essas casas.
Contudo, não é porque essas questões não são consideradas pela maioria dos
moradores que elas não têm importância, que não impactam suas vidas e que não devam
ser consideradas pelo poder público e iniciativa privada (no caso as construtoras e
fornecedoras de aquecedores solar). Muito pelo contrário. São esses grupos que possuem
conhecimentos específicos, não acessíveis à essa população e que possuem também poder
de decisão. Logo, os responsáveis por fazer as escolhas adequadas, porém, como vimos,
não é o que aconteceu nesse bairro.
Os moradores entrevistados não apresentaram um conhecimento preciso sobre o
que realmente são as áreas verdes, apenas associaram a expressão com elementos da
natureza, e um número considerável de moradores não soube responder o que era
demonstrando uma percepção ambiental extremamente limitada. Os fatores que podem
contribuir para isso são o distanciamento dos moradores para com as áreas verdes devido
a falta de segurança e a falta de infraestrutura adequada para o lazer, como as áreas de
convívio que estimulem essa ligação do ser humano com a natureza.
Dentre as demandas levantadas, todas elas refletem a situação de descaso dos
órgãos públicos pelo bairro, que é demasiadamente afastado da cidade e com
disponibilidade de serviços totalmente limitada. Nesse contexto, esta unidade de habitação
social, cuja função seria inserir a população economicamente desfavorecida na sociedade,
acaba não oferecendo para os moradores condições mínimas de qualidade de vida. Além
disto, o bairro é extremamente afastado da área central da cidade, o que pode ser
interpretado como a tentativa de esconder as classes desfavorecidas do resto da cidade,
evitando assim o maior contato entre as classes sociais. Todos estes fatores fazem com que
a preocupação ambiental dos moradores do bairro seja insuficiente, já que a população do
local possui demandas mais urgentes que, enquanto não forem atendidas, não
possibilitarão que a percepção ambiental e os questionamentos ambientais sejam
incorporados no modo de vida dos moradores.

166
REFERÊNCIAS

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definição na atividade urbanística de parcelamento do solo. Revista de Direito Ambiental.
São Paulo: RT 33, 2004.

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Social e Eficiência Energética: Um protótipo para o clima de Belo Horizonte. II Congresso
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<http://goo.gl/pncZSs>. Acesso em 4 de novembro de 2015.

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ROLNIK, R. Estatuto da cidade guia para implementação pelos municípios e cidadãos.


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<http://www.observatorium.ig.ufu.br/pdfs/5edicao/n14/07.pdf>. Acesso em:
Outubro/2015.

167
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE HABITAÇÃO POPULAR E O
PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO DE SUAS COMUNIDADES: “O
CASO DO PAC RIO ANIL”

Maysa Mayara Costa de OLIVEIRA69

Resumo: Este trabalho tem como objetivo fazer uma reflexão a respeito das políticas habitacionais
no Brasil nos últimos anos. Com a retomada dos investimentos do governo federal em políticas
habitacionais, temos a partir da metade dos anos 2000 uma mudança na realidade urbana brasileira,
principalmente com a inserção do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no ano de 2007
e o Programa Minha Casa Minha Vida em 2009. Estes programas trouxeram grandes investimentos
em infraestrutura urbana, urbanização de favelas e um grande número de construções em
habitações populares como também um alto investimento no setor imobiliário. Deste modo, o
trabalho busca fazer uma discussão de como as políticas habitacionais e os investimentos nesse
setor foram importantes e ao mesmo tempo contraditórios. Para demonstrar os aspectos
contraditórios destas políticas utilizaremos o exemplo de como tais investimentos ocorreram na
realidade urbana ludovicense, a partir do estudo de caso realizado com os moradores do
Residencial Rio Anil Camboa, do programa “PAC Rio Anil”, na cidade de São Luís-MA.
Verificando que um dos pontos centrais do programa se destina a investir na infraestrutura das
cidades melhorando vários de seus aspectos, como as habitações das camadas mais populares, o
estudo tem o intuito de pesquisar como ocorreu a mudança destes antigos moradores de palafitas
para os apartamentos construídos pelo programa, bem como as relações sociais entre eles foram
redefinidas pelo reordenamento espacial ao qual foram submetidos. Ao mesmo tempo, algo que
servirá de fundamento para esse estudo, buscar-se-á compreender os fenômenos da urbanização e
da metropolização da cidade, estes expressos nas mudanças do panorama da cidade, destacando
seus impactos no cotidiano das pessoas.

Palavras-chave: Habitação. PAC. Políticas. Urbanização. São Luís.

INTRODUÇÃO

A política habitacional no país pode ser destacada por dois momentos, estes
marcados por grandes investimentos no que diz respeito a habitação. O primeiro, no
período do regime militar onde a criação e forte atuação do Banco Nacional de Habitação
- BNH e nos últimos anos na década de 2000 com a retomada de investimentos por parte
do governo federal na construção de habitações, com o Programa de Aceleração do
Crescimento - PAC e o Programa Minha Casa Minha Vida - MCMV. Apesar de programas
diferentes, e por se constituírem em momentos distintos na história do país, essas duas
políticas possuem suas semelhanças.
Partimos da perspectiva de que essas semelhanças estão atreladas a uma política
habitacional baseada na promoção da casa própria, e no grande papel econômico e político

69
Doutoranda em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. E-mail:
oliveiracmaysa@gmail.com

168
em que nesses dois períodos atuaram essas políticas. Essas semelhanças também são
analisadas por uma visão crítica de autores que destacam que o programa Minha Casa
Minha Vida por exemplo, não conseguiu romper com antigos problemas, como a
segregação espacial, o surgimento de grandes cidades dormitórios, ou até mesmo a própria
ideologia da casa própria. Pelo contrário, continuaram e foram acentuadas nesse segundo
momento. Estas questões não foram sanadas pelos governos do PT que esteve, antes de
assumirem o posto da presidência, presente70 nas discussões e nas formulações de
propostas de políticas urbanas nas últimas décadas. O que podemos observar é que apesar
de econômica, politicamente e socialmente importantes os investimentos em urbanização
e construção de moradias, mesmo assim, essas políticas apresentam suas contrariedades.
Essas contrariedades serão apresentadas nas discussões sobre o panorama das
políticas habitacionais no Brasil, apresentando o que mudou nos últimos anos, destacando
a importância como também as falhas dessas políticas. Por fim, apresentaremos um
panorama da constituição do espaço urbano ludovicense como exemplo de como as
políticas tanto do Banco Nacional de Habitação (BNH) quanto no Minha Casa Minha
Vida e do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) atuaram no contexto urbano da
cidade, pontuando também como exemplo as suas contrariedades.

AS POLÍTICAS HABITACIONAIS NOS ÚLTIMOS ANOS: SUA IMPORTÂNCIA


E SUAS CONTRARIEDADES

Para analisar a inserção das políticas públicas de habitação na realidade brasileira,


antes é necessário compreender como a habitação passou a ser considerada como um
problema social. Nessa perspectiva, uma gama de autores vem, desde a década de 1970,
tratando das intervenções do Estado no que diz respeito a questão da moradia.
Sobre o tema de como a habitação começa a ser tratada pelo Estado, Bonduki
(1994) relaciona a reprodução das condições de trabalho da classe operária e seu modo de
vida com a formação da periferia.

70
Muitas políticas habitacionais e urbanas inovadoras, originárias da agenda pela reforma urbana, foram
desenvolvidas por essas coalizões democrático-populares locais em algumas cidades: participação direta no
processo decisório por meio de eleição de conselhos e câmaras populares, orçamento participativo, mutirões,
programas de regularização de assentamentos informais e uso de zoneamento como instrumento para
reconhecer ocupações e prover segurança da posse para assentamentos informais. No entanto, as
possibilidades de mudanças substantivas nas condições de urbanização trazidas por essas experiências
permaneceram muito limitadas, em razão da frágil base fiscal dos governos locais e dos cortes drásticos nos
repasses do governo federal. Mesmo assim, elas tiveram papel importante, na medida em que congregaram
169 que foi essencial para a vitória da coalizão liderada
forças dissidentes e consolidaram uma nova base política
pelo PT em 2002. Também foram fundamentais para lançar as bases de uma agenda e de um programa
político alternativo (ROLNIK, 2015, p. 269-270)
O autor defende a habitação como um direito legítimo, pois assim como a
alimentação, a educação, saúde e lazer, a moradia também deve estar na pauta das
prioridades sociais. (BONDUKI; VÉRAS, 1986). Ele também analisa o processo de
urbanização do Brasil e destaca a importância do período Vargas (1930-1954) para discutir
como a questão habitacional serviu para a legitimação do governo nas massas populares
urbanas.
A primeira grande política habitacional no país surgiu após o golpe militar de 1964
com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). A política habitacional baseada na
casa própria foi um instrumento de combate as ideias comunistas e progressistas no país,
em tempos de guerra fria. No entanto, essa política habitacional teve um grande papel
econômico, dinamizando a economia do país através da geração de emprego e
fortalecimento do setor da construção civil (BONDUKI, 2008).
Para relacionar a inserção do Estado na questão habitacional, Bonduki lança a
hipótese de que a lei do inquilinato foi muito importante, pois essa medida suspendia o
direito absoluto da propriedade, o que, independentemente da intenção de seus
idealizadores, reforçava a visão social da habitação no Brasil (BONDUKI, 1994). Apesar
desse fator, ele lança críticas à ideologia da casa própria promovida pelo Banco Nacional
de Habitação (BNH), a qual estimulava a construção civil. Nesse sentido, a motivação para
construção das moradias populares nada mais era do que econômica, chamando atenção
para uma política habitacional que teve durante vinte anos um caráter economicista e
bancário, com intenções políticas e conservadoras. (BONDUKI; VÉRAS, 1986). Assim,
Bonduki atribui a hipótese de que a intervenção do Estado na questão habitacional teve
duplo sentido: o de ampliar a legitimidade do governo militar e viabilizar maior acumulação
de capital no setor urbano (BONDUKI, 1994).
Bonduki aponta a ideologia da casa própria promovida pelo Banco Nacional de
Habitação que estimulava a construção civil. Nesse aspecto, temos também o mesmo
modelo se repetindo com o programa Minha Casa Minha Vida com a promoção da casa
própria através do financiamento. A diferença é que o acesso a esse financiamento
estendeu-se para faixa de rendas menores, ainda assim, a ideologia da casa própria
continuou difundindo-se em maior escala. Romper com tal ideologia poderia ser o
primeiro passo para pensarmos o espaço e as soluções para os problemas habitacionais.
Contudo, por paradoxal que pareça, o autor reconhece a importância do BNH,
sendo no período entre 1964-1973 o único que o país teve de fato uma política habitacional
antes do Minha Casa Minha Vida. (BONDUKI, 2008). É no governo Vargas que a

170
habitação foi reconhecida, pela primeira vez, como um problema e que o mercado não
teria condições de resolver, tendo o Estado de assumir a responsabilidade.
Assim como Bonduki, Maricato considera que neste período houve uma grande
campanha ideológica por parte do governo em relação a política habitacional, que ela
destaca como “muita publicidade para uma resposta modesta dos programas públicos de
habitação”. (MARICATO, 1997, p. 36). Ou seja, mesmo com a promoção de uma política
social de habitação, tendo os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs) que
financiavam a construção de moradias, como também os Parques Proletários que visavam
a transferência de famílias que moravam em favelas, não foi suficiente para amenizar os
problemas em relação a moradia.
Mesmo a criação da Fundação Casa Popular, em 1946, com dezoito anos de
existência e financiando apenas 19.964 moradias, não foi suficiente para suprir as
demandas, pois nem o mercado privado de moradias alugadas bastava, já que sua oferta
declinava com a política da casa própria. (MARICATO, 1997). Com isso, com a oferta de
lotes baratos, Maricato destaca um aumento das periferias que foi possível graças ao
estabelecimento do ônibus como transporte público, o que facilitaria a ocupação destas
áreas (MARICATO, 1997).
Nesse sentido, as análises de Bonduki e Maricato ressaltam que, além de
propaganda política e motor de estimulo à economia, a promoção da casa própria também
proporcionou a diminuição do aluguel como alternativa de moradia e aumentou o
crescimento das periferias, já que nos locais mais distantes havia ofertas de lotes baratos,
sendo a autoconstrução o padrão de moradia das massas urbanas.
A respeito da diminuição da moradia de aluguel, com a “ideologia da casa própria”,
Pasternak e Bógus (2014) destacam que, até a década de 1970, o aluguel era o meio
predominante para se poder morar. Essa política de promoção da casa própria, para as
autoras, fomentou-se desde a Fundação da Casa Popular, passando pelo Sistema
Financeiro de Habitação, fortalecendo-se com a Constituição de 1988, até estar presente
atualmente com o programa Minha Casa Minha Vida. (PASTERNAK; BÓGUS, 2014)
Além disso, para Pasternak e Bógus (2014), o aluguel era importante na medida
em que estabelecia uma alternativa na redução do déficit habitacional para as camadas de
renda baixa, já que a moradia se constitui em um direito constitucional e nem todos têm
subsídios para adquirir a propriedade da casa.
Em outro aspecto, no que se refere a política de investimento em estrutura urbana,
D’Ottaviano e Pasternak (2015) consideram que não houve no Brasil, desde o fechamento

171
do BNH, em 1986, qualquer forma de intervenção neste quesito. Quando eram realizadas
nas favelas, não contavam com as verbas federais e dependiam, na maioria das vezes, dos
aportes municipais. É por isso que as autoras consideram a criação do Estatuto da Cidade,
em 2001, e o Ministério da Cidade, em 2003, dois marcos importantes para a gestão urbana
brasileira, pois as questões como as moradias das populações em favelas passaram a ser
regulamentadas. (D’OTTAVIANO; PASTERNAK, 2015).
Outro marco importante apontado por elas foi a implantação do PAC, em 2007,
que, de um lado, com sua implantação representou um programa com grande volume de
investimentos e, de outro, também monopolizou todo o investimento federal,
incorporando outros programas e linhas de financiamento. (D’OTTAVIANO;
PASTERNAK, 2015).
Apesar do PAC ser considerado o maior investimento na história do país em
termos de urbanização, infraestrutura, entre outros, D’Ottaviano e Pasternak (2015)
consideram que não só nas grandes metrópoles há a concentração de aglomerados
subnormais e a necessidade de intervenções urbanas, pois demonstram através dos dados
censitários de 2010 uma concentração populacional vivendo fora das grandes metrópoles,
o que expõe a necessidade de pequenas e médias cidades serem incluídas nas políticas de
infraestrutura urbana.
Por outro lado, Rolnik (2008) aponta também que a extensão de programas do
Minha Casa Minha Vida para municípios como menos de 50 mil habitantes, denominado
“Minha Casa Minha Vida - Sub 50” partiu de pressões políticas do Congresso ao governo,
para que os municípios menores fossem incluídos no programa. A autora destaca que mais
da metade dos deputados do Congresso tinham suas bases eleitorais os municípios com
menos de 100 mil habitantes, o que indica a importância do programa para manter o apoio
político com os movimentos de base nas pequenas cidades.
Apontada algumas das contrariedades das políticas habitacionais no Brasil,
principalmente no período do regime militar com o Banco Nacional de Habitação e
recentemente com o programa Minha Casa Minha Vida observa-se a continuação da
promoção da casa própria e o forte cunho político e econômico que estas políticas tiveram
para o país. Como modo de exemplificar como tais políticas agiram, destaco o contexto de
inserção destas políticas na realidade urbana de São Luís, capital do Maranhão.
São Luís possui uma especificidade por ser uma das capitais do Nordeste com
maior déficit habitacional. Ao logo do seu processo de urbanização, a capital dependeu
exclusivamente dos aportes do governo federal para a sua expansão, principalmente no que

172
diz respeito à construção de moradias populares e sua suburbanização. Nessa breve
contextualização indicaremos como os investimentos em habitações e conjuntos populares
ocorram na cidade em dois momentos: nas décadas de 1960 a 1980, período que o
programa durou, e mais de vinte anos depois com os investimentos do Minha Casa Minha
Vida e do Programa de Aceleração do Crescimento.

AS POLÍTICAS DE HABITAÇÃO EM SÃO LUÍS

Destacando a realidade de São Luís sobre as políticas públicas de habitação, em


especial os programas de moradia popular, Burnett (2012) chama atenção para o número
de habitações da capital maranhense: metade de sua população encontra-se em áreas
irregulares. Essa realidade se destaca entre as décadas de 1970 e 1980 com um déficit
habitacional de pelo menos 8000 unidades, e que nem o Banco Nacional de Habitação
(BNH) e nem a Companhias de Habitação Popular (COHAB) ofereceram linhas de
crédito para faixa de renda baixa. Esta explicação reforça o que Bonduki e Maricato
mostram sobre as moradias populares financiadas pelo BNH não serem suficientes, já que
a política não atendeu a população mais pobre, entre as faixas de 0 a 3 salários.
Frente a esse histórico, tanto o PAC como Minha Casa, Minha Vida tornaram-se
programas expressivos pois foram os únicos, apesar das críticas, que ainda alcançaram as
parcelas da população de menor renda, além de promover reurbanização e regularização
de áreas ilegais. Os programas ganham importância na realidade maranhense, pois é nesse
estado que se encontram os piores números em termos de Índice de Desenvolvimento
Humano- IDH, salário e números relativos de habitações precárias.
A construção dos primeiros conjuntos habitacionais voltados para trabalhadores
assalariados, foram através dos Institutos de Aposentadoria e Pensões – IAPS, dando
origem a alguns bairros. Por esse ângulo, analisa-se que desde sua fundação, o espaço
urbano de São Luís se estruturou através do capital particular e por intermédio do Estado
(FERREIRA, 2014):

[...] No Maranhão, isso se concretizou por intermédio do IAPC


(Comerciário), que somente dezesseis anos após o início do processo no
país, construiu na capital (em 1953), um conjunto (Filipinho) com 320
unidades, à margem direita da principal via de acesso entre o Centro e o
Anil, isto é, na Avenida João Pessoa. Daí, pode-se inferir que de 1612
até a 1952, o espaço do município de São Luís foi produzido
essencialmente pelo capital particular, embora intermediado pelo

173
Estado, através do Senado da Câmara, que procedia a doação das cartas-
de-data (FERREIRA, 2014, p. 48-49).

Depois, entre os anos de 1962 e 1965, Ferreira (2014) coloca que a ação do Estado,
enquanto produtor do espaço, foi ampliada na medida em que o IAPC71 (comerciários),
somando-se ao IAPB (Bancários) e ao IPASE (servidores do estado), implanta “752
unidades residenciais em sete municípios, das quais 624 ou 82,98%, concentram-se na
capital, principalmente no Centro (Conjunto dos Bancários- 48 apartamentos) e no IPASE
(536 casas)” (Idem, 2014, p. 50)
A construção destes residenciais para uma estrita parcela da sociedade ludovicense
evidencia o grande problema em relação à moradia, pois, enquanto que estes primeiros
conjuntos habitacionais surgiam, nas áreas consideradas “subúrbios”: Diamante, Baixinha,
Céo, Codosinho, Alto do Bode e Vila Operária; predominava a ausência de infraestrutura
e, mesmo assim, essas áreas foram ocupadas, onde as habitações improvidas de pau-a-
pique e cobertas com palhas de babaçu caracterizavam a segregação socioespacial da cidade
(Idem, 2014)
As áreas alagadas próximas aos manguezais sempre serviram de locais de moradias
improvisadas pelas populações mais pobres. Isso pode ser notado desde a ocupação das
áreas próximas às fábricas, em que os terrenos eram mais baratos, até a área da Fábrica de
Tecidos Camboa, no antigo bairro Camboa do Mato, hoje Camboa, e a área do antigo
Matadouro, que deu origem ao bairro da Liberdade. Estas áreas são exemplos, até hoje,
de como se constituíram como locais de ocupados por àqueles que necessitam ter acesso
à habitação, através de moradias improvisadas, como as palafitas.
As más condições de habitação e infraestrutura urbanas das áreas mais carentes
fizeram com que essas populações começassem se organizar e reivindicar, por meios de
consumo coletivo, água, luz elétrica e posto médico, ocasionando na fundação da União
dos Moradores do Lira, que foi o primeiro tipo de organização desse sentido. Esse fato
incentivou o surgimento de outras organizações, a partir da década de 1960, uniões e
associações de moradores de bairros como: Madre Deus, Floresta, Coréia, Nossa Senhora
da Vitória, São Vicente e São Francisco. (FERREIRA, 2014).
É apenas em meados de 1966, com a institucionalização da Companhia de
Habitação Popular do Maranhão- COHAB-MA, que o Estado passa a conceder crédito
para subsidiar moradias populares, voltadas para faixa de renda de um a três salários

71
Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Comerciários.

174
mínimos. Assim, de acordo com Ferreira (2014), a COHAB-MA construiu, entre os
períodos de 1967 e 1970, três conjuntos habitacionais: Anil I, Anil II e Anil III.
Afora a construção de conjuntos habitacionais, entre as décadas de 1960 e 1970,
São Luís no final desta última década recebe o investimento de grandes capitais industriais,
com a instalação da Companhia Vale do Rio Doce, a construção do Porto do Itaqui,
ALUMAR (Alumínio do Maranhão S/A). A instalação destes capitais atraiu empregos
trazendo um grande contingente populacional para a capital, tendo sua população
duplicado entre 1970 e 1980. Esse aumento ocasionou maiores problemas em relação à
habitação, saúde e segurança, favorecendo o aumento das ocupações de áreas irregulares e
moradias como as palafitas (DINIZ, 2007).
Com os problemas relacionados à habitação, e o crescimento cada vez mais de
ocupações de áreas irregulares, é nesse período também que há na capital um forte
movimento dos moradores palafitados, movimento este organizado desde meados da
década de 1960 e que ganhou força na década de 1970 e 1980 com a presença de membros
da igreja, professores universitários, advogados, etc., contra os programas de despalafitação,
em especial o PROMORAR72 em convênio com o BNH (PEREIRA, 2010).
No mesmo período, outros investimentos em habitação também se realizaram para
as classes médias e as classes mais populares. Enquanto para as classes médias foram
produzidos dez conjuntos residenciais através de Cooperativas, para as classes mais
populares foram construídos oito conjuntos através da COHAB, tendo o Estado o papel
central de promotor imobiliário (FERREIRA, 2014).
Os investimentos na construção de conjuntos habitacionais neste período, além de
conduzir ao processo de suburbanização da cidade de São Luís, também foi o principal
meio propulsor da economia nesta época, através da construção civil, visto que, desde a
extinção das fábricas têxteis, o estado, bem como a capital, perdera sua autonomia
econômica. Assim, de acordo com Ferreira (2014), até o final da década de 1980, a
construção de habitações se deu através da COHAB, seguido das Cooperativas e do IPEM,
este último efetivando exclusivamente no período de dez anos, entre 1981 a 1991, a
construção de 4.177 unidades habitacionais.

72
O Promorar (Programa de Erradicação de Sub-Habitações) consistia em um programa de erradicação das
favelas e regularização da posse da terra. Esse programa foi criado pelo governo federal em junho de 1979.
Em São Luís ele atuou no bairro da Liberdade no final da década de 1979 até o final da década de 1980 e
tinha como finalidade erradicar as sub-habitações e palafitas que ali se encontravam. O programa não
conseguiu atingir sua meta e poucas casas foram construídas
175
Após esse período de intenso investimento em conjuntos habitacionais, a década
de 1990 e 2000 é marcada por investimento exclusivamente de setores privados e a inserção
de empresas incorporadoras que irão investir em condomínios fechados destinados às
camadas média e alta da sociedade ludovicense. Além disso, no que se refere à composição
do espaço urbano da capital nesse período, além de uma desaceleração na economia na
década de 1990, também há um forte crescimento populacional ocasionado pela migração
devido aos conflitos no campo, resultando em forte processo de valorização de terras e,
mais uma vez, contribuindo para o déficit habitacional da capital.
Estão presentes neste período também os investimentos em shopping centers,
centros comerciais, condomínios fechados, investimentos que têm um caráter de atender
a demanda de segmentos específicos da cidade, contribuindo para os aspectos segregadores
da capital. Além de que, de acordo com Ferreira (2014), nesse período a Lei Orgânica
Municipal de 1990, sofreu uma alteração para que fosse instituída a construção de edifícios
comerciais e de apartamentos na orla marítima de São Luís, considerada área nobre, o que
significou um forte processo de verticalização dessa região. Isso caracteriza que as ações do
Estado, no que se refere aos aspectos de organização do espaço urbano ludovicense,
sempre ocorreram de forma parcial e atendendo a interesses de pequenos grupos.
Dessa maneira, podemos destacar que, nesse período, São Luís sofreu uma
ocupação e uma urbanização voltada para o mercado imobiliário, onde grandes
construtoras passaram a atuar e influenciar na composição dos espaços da cidade com um
mercado voltado para habitações de moradores de alta renda.
No que corresponde aos tipos de habitações para as camadas de menor poder
econômico, após os investimentos do BNH na década de 1970 e 1980, com a construção
de grandes conjuntos habitacionais, é apenas em 2007 e 2009 que este tipo de investimento
volta a se fazer presente na realidade ludovicense. Especificamente, os investimentos do
governo federal, por meio da Caixa Econômica, do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) e do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV), que vão possibilitar
o acesso de boa parte das classes populares maranhenses, em especial ludovicense, à
moradia.
A respeito dos investimentos em urbanização e habitação, o PAC se faz presente
na capital, por exemplo, com o objetivo de urbanizar as ocupações nas áreas de mangue
do lado esquerdo do Rio Anil e retirar a população residente em palafitas transferindo-as
para habitações consideradas adequadas. Já o Minha Casa Minha Vida visa financiar
imóveis de acordo com as faixas salariais que vão de zero até dez salários mínimos. Nesse

176
sentido, estes programas mudaram o cenário urbano da capital, em especial as habitações
construídas pelo programa Minha Casa Minha Vida, pois esses em sua maioria se
concentra nos municípios limítrofes a capital, Paço do Lumiar e São José de Ribamar, o
que vem demandando a oferta de serviços públicos e assim gerando problemas de
mobilidade, causando grandes problemas em relação à apropriação do espaço da ilha
como um todo.
Atualmente, com mais de um milhão de habitantes, cada vez mais tem-se tornando
um desafio para a capital sobreviver às suas crescentes problemáticas, como os intensos
casos de contaminação de águas superficiais, a redução de recursos pesqueiros, os
congestionamentos nas principais vias de acesso, assim como o abandono e a insegurança
nos espaços públicos (FERREIRA, 2014). Deste modo, podemos destacar que a
constituição do espaço urbano ludovicense sempre foi segregador, com a oferta de serviços
públicos destinados a pequenos grupos da cidade o que demonstra duas realidades distintas
e que a cidade não se constitui como um espaço democrático, o que de fato não se difere
da realidade brasileira.
Essa realidade não é uma exceção, pelo contrário, a constituição do espaço urbano
ludovicense e seus investimentos (parte pelos investimentos privados e parte pelo Estado,
sendo que a construção de moradias destinadas as camadas populares), de fato foi mais
expressiva com o Programa Minha Casa Minha Vida. A diferença da realidade urbana
ludovicense é que enquanto em outros estados ainda se tinham aportes municipais para a
construção de moradias entre outros programas habitacionais, a capital assim como o
estado, dependeu exclusivamente de investimentos federais.
Já no âmbito da habitação do PAC, o programa PAC Rio Anil, atuou em São Luís
com a finalidade de urbanização de áreas consideradas inadequadas para habitação, com
o objetivo de remover estas habitações, em sua maioria palafitas e transferir seus moradores
para apartamentos construídos pelo programa. No estudo de caso realizado em um dos
habitacionais construídos pelo programa, nos mostra a dimensão da política do PAC Rio
Anil, que não conseguiu atender a demanda no número de habitações e no modelo de
habitação pensando como ideal para seguimentos sociais tão específicos.

PAC RIO ANIL

Inaugurado no ano de 2007, na cidade de São Luís, o projeto PAC Rio Anil tem
como objetivo a urbanização, revitalização, legalização e construção de moradias em áreas

177
consideradas inadequadas para habitação. O projeto faz parte de um dos eixos do PAC
nacional, que é o de investimentos em infraestrutura urbana, saneamento básico e
habitações populares. Os bairros contemplados estão situados às margens esquerda do rio
Anil, onde encontravam-se em ocupação de áreas alagas (mangue), com grande quantidade
de moradias precárias e, principalmente, em formas de palafitas. Sendo os bairros
escolhidos: Camboa, Liberdade, Fé em Deus, Irmãos Coragem e Alemanha.
Porém, de acordo com os resultados do “9º balanço de Minha Casa, Minha Vida
e urbanização de assentamentos precários 2011-2013”, era previsto a urbanização dos
bairros da margem do Rio Anil: Camboa, Liberdade, Fé em Deus, Irmãos Coragem,
Apeadouro, Alemanha, Caratatiua, Vila Palmeira, Barreto, Radional, Santa Cruz e Vila
Sésamo; com remanejamento de habitações precárias e melhorias habitacionais.
Entretanto, o autor destaca que apenas os bairros Camboa, Fé em Deus, Liberdade e
Alemanha foram contemplados no projeto (BURNETT, 2014).
A implementação do programa nestas áreas é importante na medida em que foram
raros ou inexistentes ao longo dos anos os projetos de construção de moradias populares
e, principalmente, de reurbanização e regularização fundiária.
De acordo com o Relatório do Projeto PAC Rio Anil73 as iniciativas do projeto estão
situadas em dez metas, que são: produção de habitação; recuperação e melhorias
habitacionais; sistema viário; equipamentos comunitários; recuperação ambiental;
regularização fundiária; indenização de benfeitorias; trabalho social; equipamento cultural;
alojamento provisório e despesas como aluguel. Todas estas metas estavam incluídas no
Plano de Reassentamento do PAC Rio Anil (2008) que teve como principal objetivo duas
modalidades de atendimento, que são a urbanização de favelas e a erradicação de
ocupações de áreas de risco.
Para a urbanização de favelas, foram realizados melhoramentos infra estruturais nas
habitações em “área seca”, construção de uma avenida do lado esquerdo do rio Anil com
3.8 km de extensão. Na erradicação de favelas, foram realizadas as transferências das
famílias nas áreas consideradas de risco, mais especificamente no que denominam de “área
molhada”, para os apartamentos construídos pelo programa. A construção da avenida às
margens do rio Anil, ocorreu também no intuito de conter novas ocupações de palafitas.
De acordo com os dados da SECID74, a descrição do projeto previa a construção
de 2.720 apartamentos de 42 m². No entanto, até agora, foram entregues apenas 512

73
Relatório da Secretaria de Estado das Cidades do Estado do Maranhão, de 16 de Julho de 2013.
74
Informações disponíveis no site da Secretaria, em: http://<<www.secid.ma.gov.br/pac-2/ >>

178
apartamentos. No Plano de Reassentamento do PAC Rio Anil (2008), aponta a construção
de 11 conjuntos habitacionais, nos bairros da Liberdade, Camboa, Fé em Deus, Alemanha,
Retiro Natal e Diamante. Porém, passando-se nove anos, desde a implementação do PAC
Rio Anil, apenas três residenciais foram construídos: Residencial Jackson Lago, localizado
no bairro Fé em Deus; Residencial Rio Anil Camboa, no bairro da Camboa; e Residencial
Monte Castelo, no Monte Castelo. Como as palafitas foram removidas, muitos moradores
que ainda não receberam seus apartamentos estão morando em locais alugados e
recebendo o benefício do aluguel social, o que tem gerado uma pequena especulação
quanto ao valor das moradias alugadas, fazendo com que novamente muitos moradores
improvisem outras formas de habitação.
O principal objetivo do plano de reassentamento do PAC Rio Anil deve ser antes
de tudo:

[...] reconhecer que nos territórios a serem trabalhados, estão


emolduradas as condições de vida das famílias nele representadas e neste
sentido, será necessário garantir a oferta de moradia que contemple a
diversidade cultural, que dê respostas habitacionais adequadas a
população e que induza à ampliação e diversificação da oferta de
programas e de planos habitacionais (GOVERNO DO ESTADO DO
MARANHÃO, 2008, p. 04).

Fica evidente que a principal preocupação do programa como um todo diz respeito
a questão habitacional, que tinha como pretensão respeitar a diversidade cultural e oferecer
uma “resposta habitacional adequada” a estas populações. Esta “resposta habitacional
adequada” converteu-se na construção de edificações verticais de apartamentos, com
quatro pavimentos e cada pavimento com quatro apartamentos, 16 apartamentos por
bloco. Ainda mais, o plano estabelece nenhum impacto no modo de vida das populações,
uma vez que as famílias foram transferidas para os próprios bairros de origem.
Essa concepção demonstra que os setores técnicos atentaram apenas para a
remoção das moradias precárias, sem se sensibilizar para o tipo de moradia que são os
apartamentos, que provoca uma mudança significativa na vida destas populações, em
maiores proporções do que a questão da proximidade com os bairros de origem, que
também possui suma importância. Sobre isso, Burnett e Silva (2014, p. 08) criticam:

A debilidade das questões sociais dentro do Programa se expressa bem


no processo de transferência dos moradores de palafitas para habitações
convencionais, quando todos pareceram ignorar o papel estratégico

179
daquela unidade habitacional precária, mas altamente funcional para a
sobrevivência de seus ocupantes. Sem custos com água, energia elétrica
e fora de qualquer controle de uso e ocupação do solo, as palafitas são
locais de comércio variado, oficinas das mais diversas, depósito de ferro
velho, galpão de pescadores, criadouro de porcos, alojamento de animais
de tração e até boca de fumo. Toda esta situação foi agravada quando a
proposta urbanística da empresa B&M Consult, contradizendo o vídeo
de divulgação do Programa e ignorando modos de vida dos palafitados,
adotou um partido arquitetônico em quatro pavimentos e planta H para
abrigar as 2.720 famílias de palafitados, retirando literalmente o chão sob
os pés dos beneficiários e incluindo gastos condominiais em suas
despesas mensais.

Além da urbanização e erradicação das favelas, e a construção dos apartamentos, o


projeto estabeleceria a construção de boxes para as diversas atividades que eram realizadas
nas antigas moradias, como comércios tipo armarinhos, mercadinhos, entre outros, como
também um ancoradouro para os barcos e uma fábrica de gelo, o que permitiria a venda e
conservação do pescado na região. Estas medidas foram estabelecidas no Plano de
Reassentamento do PAC Rio Anil como pode ser observado:

Para os mercados, está prevista uma área de mais de 12.000m² de


terreno, sendo estes dispostos em dois grandes grupos. O primeiro
bloco, Bloco 01, foi idealizado para a comercialização de produtos
hortifrutigranjeiros com 14 (catorze) boxes; cereais com 08 (oito) boxes;
armarinhos com 04 (quatro) boxes. Além disso, contará ainda com área
para exposição livre, como bancas. Também serão equipados com
banheiros, masculino e feminino, devidamente preparados para receber
pessoas portadoras de necessidade especiais. Já o segundo bloco, Bloco
02, será responsável pela comercialização de frutos do mar, peixes,
carnes suínas e bovinas e frangos. Conterá ao todo 22 (vinte e dois)
boxes. [...] Nas proximidades da cabeceira da ponte Bandeira Tribuzi,
será construído um Ancoradouro, que invade a calha do rio e permite
acesso direto aos mercados. Será composto por passarela articulada
descoberta com estrutura metálica flutuantes e piso em deck de madeira
numa área de 360,0m², servindo a 30 (trinta) barcos de pequeno porte.
[...] Visando dar suporte aos mercados e ao ancoradouro, será construída
uma fábrica de gelo localizada nas proximidades de ambas as
construções. Também com este intuito, está prevista a construção de um
entreposto de pesca, que será responsável pela comercialização e repasse
do material proveniente dos barcos que se utilizam dos ancoradouros
(GOVERNO DO ESTADO DO MARANHÃO, 2008, p. 21).

A construção destes instrumentos se tornou necessária diante do processo de


urbanização das habitações e remoções das atividades de comércio que, na maioria das
vezes, eram realizadas em casa. Com a construção de conjuntos de apartamentos como
padrão de moradia, estas atividades tiveram que ser abandonadas no ambiente da casa, já

180
que o estilo de moradia não permite a atividade do mesmo. A construção dos boxes para
armazenamento da pesca e para as atividades de comércio não foram construídas de
acordo com o projeto75, o que fez com que muitos moradores tivessem que se adaptar nas
novas moradias, ocasionando na existência de pequenos comércios e prestações de serviços
dentro dos apartamentos.
Em relação ao que é concebido, Lefebvre (2001) faz uma crítica aos arquitetos e
urbanistas, pois, o habitante, o fato de habitar, significa a recepção, adoção e transmissão
de um determinado sistema. O que não compreendido, quando os moradores dos
apartamentos, ressignificam suas práticas nestes locais, como venda de lanches, comércios
informais, venda e locação dos apartamentos. A crítica que Lefebvre destaca, é que
arquitetos não podem estabelecer as práticas e significações das ações dos indivíduos. Ele
coloca:

Os arquitetos percebem ter estabelecido e dogmatizado um conjunto de


significações, mal explicitado como tal e que aparece através de diversos
vocábulos: “função”, “forma”, “estrutura”, ou antes funcionalismo,
formalismo, estruturalismo. Elaboram-no não a partir do fato de habitar,
por eles interpretado. Esse conjunto é verbal e discursivo, tendendo para
a metalinguagem. É grafismo e visualização. Pelo fato de que esses
arquitetos constituem um corpo social, que eles se ligam a instituições,
seu sistema tende a se fechar sobre si mesmo, a se impor, a eludir
qualquer crítica. Haveria razões para se formular esse sistema,
frequentemente erigido em urbanismo por extrapolação, sem nenhum
outro procedimento, nem preocupação (LEFEBVRE, 2001, p. 111).

Para habitar nos apartamentos, novas formas de conduta e regras foram


estabelecidas, por isso, os moradores passaram por oficinas para formação de síndicos,
condomínios, etc., tendo aulas de como conviver no ambiente do condomínio, sobre o uso
racional de água e energia, educação ambiental, entre outros. Esse processo de
institucionalização dos moradores à um novo estilo de moradia reforça a tese de que existe
um modelo de habitação idealizado como o melhor, nas palavras de Maricato (2003) a
“cidade legal” versos a “cidade ilegal”, ou nas palavras do próprio programa, “Cidade dos
Excluídos” para “Cidade dos Cidadãos”, demonstrando que de fato as palafitas, as favelas,
essas formas de moradias e seus moradores estão de fato fora dos padrões considerados
legais, implicando que, nem cidadãos possam ser considerados.

75
No dia 02 de Setembro de 2017, foi inaugurado pelo atual governo do estado as obras de revitalização na
área Bandeira Tribuzzi obra que tem impacto nos bairros da Camboa e Liberdade, com a construção de
praças, quiosques e quadras poliesportivas.
181
O programa PAC Rio Anil, como pode ser observado apresenta, diversas falhas de
concepção e execução. Desde sua implantação em 2007 até hoje, muitas metas dos projetos
não foram realizadas, como a construção de todos os residenciais, dos equipamentos
urbanos, entre outros. Entretanto, para as famílias que estão morando nos residenciais do
programa, a nova moradia permitiu a possiblidade de melhores condições sanitárias, o
acesso a água e melhores estruturas habitacionais. Apesar destes fatores, existem outros
aspectos que também mudaram na vida destas populações.
Inaugurado em 2009, o primeiro residencial construído pelo projeto, denominado
Residencial Rio Anil Camboa, abriga as famílias pertencentes a várias favelas de palafitas
dos bairros da Camboa e da Liberdade. Essa mudança de estilo de vida e moradia tem
alterado as relações sociais destes moradores uma vez que estes têm de lidar com novas
regras e modos de conduta no “espaço racionalizado” que são os apartamentos, um estilo
de moradia totalmente diferente da realidade dos hábitos e costumes destas populações.

CONSIDERAÇÕES

A inserção desses programas é contraditória, pois na medida em que no Brasil se


ampliou o debate e a criação do ministério da cidade e do estatuto da cidade que foram
marcos para a gestão urbana assim como para os direitos em relação a moradia, a inserção
do Minha Casa Minha Vida foi acompanhada de um esvaziamento do Conselho da Cidade
e dos movimentos sociais de luta pela moradia, como destaca Rolnik (2008, p. 301-302):

Entre o fim de 2008 e o início de 2009, enfraquecidos com o desmonte


do Ministério das Cidades e com o esvaziamento do Conselho das
Cidades e preocupados com os rumores sobre o lançamento do pacote
habitacional elaborado sem sua participação, os movimentos de moradia
e o Fórum Nacional de Reforma Urbana realizaram diversas atividades
de mobilização. As ocupações e manifestações organizadas em diversos
estados resultaram em audiências com o presidente Lula e com a então
ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff. Essas audiências aconteceram no
início de 2009, quando foram apresentadas pelos movimentos propostas
a serem incluídas no “pacote” habitacional. Na pauta estavam a
destinação de uma parcela de “1 milhão de casas” para construção por
autogestão, além de propostas de melhorias nas formas de
financiamento, viabilização de terrenos, entre outras. [...]

Tendo em vista estas demandas exigidas pelos movimentos de moradia, o Minha


Casa Minha Vida Entidades e o PNH-Rural (destinado a construção de casas para
cooperativas e pequenos produtores da agricultura famílias) representavam juntos apenas

182
1% dos recursos do MCMV. Isso mostra que o ínfimo percentual destinado aos programas
que propunham uma autogestão na implementação do programa, mostram que o real
objetivo é de atender os interesses econômicos das construtoras.
A implementação dos programas foram mais uma saída diante da crise hipotecária
e financeira que começou nos Estados Unidos e tornou-se internacional, e estrategicamente
fortaleceram as construtoras brasileiras que estavam perdendo suas ações permitindo
também a continuidade da estratégica econômica do governo (ROLNIK, 2008)
Além dos poucos recursos destinados aos projetos que tinham como objetivo a
autogestão, outro problema apontado é a padronização nos tipos de habitações, o que
facilita para as construtoras executarem grandes números de projetos em diferentes
cidades. Não só no MCMV como também nas obras de reurbanização de favelas do PAC.
Em São Luís, por exemplo, no projeto do PAC denominado “PAC Rio Anil”,
foram construídos residenciais para moradores de áreas alagadas em padrão de
apartamentos. Os residenciais possuíam a mesma planta e não levou em conta as
especificidades dos moradores locais onde muitos trabalham com a pesca, com atividades
informais, lavando roupas e tem pequenos comércios. Além disso a palafita podia ser
estendida, ao contrário do apartamento que não permite essa flexibilização do espaço. Essa
informalização do espaço também fora observada na pesquisa onde seus moradores
improvisavam pequenos comércios nos apartamentos, estendiam roupas em varais
improvisadores na parte externa e faziam pequenos puxadinhos nos apartamentos térreos.
Outra questão apontada na análise de Rolnik (2008), é a formação de bolsões de
moradia popular- como a autora chama para designar os locais onde são construídos
grandes números de moradias populares, pois para as construtoras para se ter lucratividade
é viável para os empreendimentos de faixa 1 serem construídos com mais de 600 unidades.
O que podemos destacar é que apesar da sua importância no que corresponde ao
acesso a moradia, e como um dos maiores investimentos em habitação no país desde a
extinção do BNH, além de sua importância econômica e política, essa política habitacional
acabou reproduzindo o padrão de segregação socioespacial, uma vez que os conjuntos
habitacionais ficaram restritos as áreas mais afastadas e onde o preço da terra é mais barata.

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direito à habitação. In: A cidadania que não temos. Maria de Lourdes Manzini Covre.
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183
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entre as décadas de 1970 e1980. Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão. UFMA. São Luís, 2010.
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MARANHÃO, de 16 de Julho de 2013.

ROLNIK, Raquel. Guerra dos Lugares: a colonização da terra e da moradia na era das
finanças. São Paulo: Boitempo, 2015.

184
DOS GÓTICOS “PRODUTORES CULTURAIS” AOS CITADINOS
“GÓTICOS”: REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS SOBRE A
“CULTURA” ENTRE AGRUPAMENTOS DE “JOVENS” URBANOS

Douglas DELGADO76

Resumo: O presente trabalho se destina a uma reflexão teórico-metodológica sobre pesquisas


etnográficas com agrupamentos de “jovens” urbanos a partir da trajetória do desenvolvimento de
minha dissertação de mestrado. O projeto inicial se destinou a investigar as dimensões temporais
compartilhadas entre os góticos em São Paulo a partir da noção êmica de “cena”. Além de
representar as dinâmicas do “grupo” na cidade, a categoria cena também indica uma historicidade
da “subcultura gótica”, demonstrada por meio das referências históricas utilizadas por
interlocutores ao enunciarem sobre as produções culturais na capital paulista. Então, estes atores
relacionam a cena com uma memória de suas práticas culturais. Entretanto, durante os trabalhos
de campo e no debate com outros pesquisadores, evidenciei um problema na prática etnográfica
que constituiu em compreender que minha visão estava orientada pelo discurso “oficial” de
produtores culturais da cena gótica. A partir de um processo de revisão teórico-metodológica
(Geertz, Velho, Agier, Frúgoli Jr.) passei observar os atores como citadinos, compreendendo que
suas relações de sociabilidade podem ser mediadas por diversas fronteiras (classe, gênero, raça,
território, etc.) e não apenas pela identificação com a “cultura gótica”; assim como as diversas
formas de identificação com o “gótico” verificadas durante as experiências em campo foram
consideradas na pesquisa. Durante as situações etnográficas nos pontos de encontro dos “góticos”,
observei como que as noções analíticas de cultura e subcultura levam a compreender um sistema
com fronteiras delimitadas, reificando seus traços em termos culturais. Considerando a diversidade
dos “góticos”, passei a compreender a cultura como processo de criação na interação dos atores.
Analisar a cultura na vida citadina é, como afirma Michel Agier, perceber que a cidade é um
dispositivo cultural e que os significados são negociados na interação cotidiana dos atores. Partindo
desta revisão teórico-metodológica, reformulei os objetivos de pesquisa, compreendendo
empiricamente disputas pelos sentidos da “identidade gótica” por meio de uma “fronteira
geracional”. Portanto, atualmente analiso a produção e a atualização de fronteiras identitárias no
contexto de processos culturais de citadinos “jovens”.

Palavras-chave: Teoria e metodologia. Etnografia urbana. Criação cultural. Jovens urbanos. Góticos
em São Paulo.

INTRODUÇÃO: ELABORANDO PROBLEMAS, DESENVOLVENDO UM


PROJETO

O objetivo deste trabalho é contribuir com reflexões teórico-metodológicas sobre


investigações etnográficas com agrupamentos de “jovens”77 urbanos a partir do

76
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP/Araraquara; bolsista CNPq;
e-mail: delgado.soc@gmail.com
77
Trabalho com a categoria de juventude entre aspas por compreender que os “góticos” formam um
agrupamento que agrega atores sociais que estão fora dos limites do que convencionalmente se entende como
categoria etária de juventude e que, por condições sociais e financeiras, desfrutam de “determinados símbolos
considerados como representativos da juventude na atualidade” (PEREIRA, 2017, p. 15). A questão é a que
grau estes “góticos” “não jovens” compreendem no185 contexto atual estes símbolos como representativos da
juventude? Com a questão em aberto, utilizo a categoria entre aspas.
desenvolvimento de minha dissertação de mestrado. Por meio do projeto inicialmente
intitulado “A construção da cena gótica paulistana: práticas e discursos no contexto de uma
cultura jovem”, articulei os resultados de meu trabalho de conclusão de curso com debates
realizados no “XII Graduação em Campo”, evento organizado pelo Laboratório do Núcleo
de Antropologia Urbana da USP (Lab-NAU) em 2014. Durante a pesquisa de campo me
orientei por uma perspectiva de perto e de dentro (MAGNANI, 2002) em que privilegiei
observar os usos do espaço urbano a partir dos góticos, compreendendo suas práticas
culturais regulares. Neste percurso identifiquei um circuito78 de festas góticas, em que
visualizei a organização de relações de sociabilidade, além do uso da noção de cena, a qual
está ligada com as produções culturais. As práticas de produção de festas são geradoras de
valores de prestígio e reconhecimento, estabelecendo uma hierarquia (DUMONT, 1997)
entre os participantes. Portanto, tratei de perceber como que processos culturais
contemporâneos envolvendo “culturas juvenis” podem estar marcados por valores e
formas de sociabilidade em torno de práticas de lazer e produções culturais, como no caso
empírico das festas góticas.
A categoria etnográfica de circuito (MAGNANI, 2002) privilegia as dinâmicas
observadas na etnografia, pois permite compreender as práticas de sociabilidade no âmbito
das festas, as quais estão espalhadas nas diversas regiões da cidade, e das quais verifiquei o
locus destas relações. Neste sentido, minha pesquisa caminhou na direção de outras
etnografias com jovens metropolitanos (MAGNANI; SOUZA, 2007), mas foi a noção
êmica de cena que chamou mais a atenção para os desdobramentos: a esta categoria é
atribuída um sentido organizacional da sociabilidade dos góticos paulistanos (como se
formassem uma “micro-sociedade”). Deduzi que “cena gótica paulistana” é representada
com um eixo nas produções culturais (festas, bandas, fanzines), mas que também pode
dizer respeito a uma série de fatores: práticas, valores, alteridade, participação etc. A
categoria “cena” também é manipulada por outros agrupamentos de “jovens” urbanos, por
músicos e desportistas etc.; o que me sugeriu seu grande potencial para a prática etnográfica
na cidade, assim como a noção de pedaço (MAGNANI, 1998).
Em diálogo com os resultados de trabalhos orientados por José Guilherme Cantor
Magnani (2014), nos quais as categorias etnográficas desenvolvidas pelo Lab-NAU para
estudar dinâmicas metropolitanas, a saber – manchas, circuitos, trajetos e pórticos

78
A respeito de circuito, “Trata-se de uma categoria que descreve o exercício de uma prática ou a oferta de
determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm entre si uma
relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais [...]”
(MAGNANI, 2002),
186
(MAGNANI, 2002) – foram testadas em cidades médias e em cidades amazônicas,
concluiu-se que a noção de circuito se caracteriza por uma variavel “tempo”, além da
dimensão espacial priveligeada na sua construção inicial. Portanto, trata-se de observar
circuitos que são produzidos pelos trajetos de atores sociais, por meio da realização de suas
práticas em um determinado período (MAGNANI, 2014), Isto me chamou a atenção, pois
verifiquei que a noção de cena operada pelos góticos está apoiada em características
temporais também, mas de maneira diferente das observadas nos circuitos (MAGNANI,
2014). Tratei de perceber a noção de “cena” gótica paulistana como uma categoria
histórica.
Durante os trabalhos etnográficos era comum os interlocutores se referenciarem à
longa data de participação de pessoas na cena e suas produções, assim como às festas e aos
demais lugares frequentados pelos góticos no passado e no presente. As alusões mais
marcantes foram a casa Treibhaus79, como “primeiro reduto assumidamente gótico de São
Paulo” e como o “primeiro lugar” em que atores que se identificavam como “darks”
passaram a se identificar como “góticos”, depois do contato com a mídia internacional e a
circulação de informações entre os frequentadores; o Enter The Shadows, como o
primeiro fanzine a “consolidar o gótico paulistano” (FERREIRA, 2017), compreendido a
partir dos interlocutores como um importante demarcador de fronteiras entre os góticos e
outras expressões culturais urbanas, assim como uma espécie de institucionalizador de uma
prática muito valorizada na cena: a de pesquisar por projetos e grupos musicais e os divulgar
por meios midiáticos e na discotecagem em eventos. Observei também que no decorrer
do surgimento e desaparecimento destas produções culturais, novos elementos eram
assimiliados na cena gótica paulistana, como novos gêneros músicais, novos lugares, novas
formas de identificação, novos “empreendedores morais” (BECKER, 2005), novas formas
de comunicação e acesso à informação, o que produziu novas dinâmicas entre os
participantes. Para a investigação destes fenômenos aproximei a noção de “cena gótica
paulistana” da perspectiva culturalista de Marshall Sahlins (2006), em que a cultura é
compreendida como ordenada históricamente, assim como a história é ordenada
culturalmente. É a partir da ação dos atores sociais, entendidos como “sujeitos históricos”
(SAHLINS, 2006), que a ordem cultural pode ser alterada, ao risco de uma “mudança
sistêmica”. Tendo em vista a diferença do contexto de minha pesquisa, realizada com um
agrupamento de “jovens” urbanos no Brasil do século XXI, e o que Sahlins (1990) está

79
Casa localizada na região dos Jardins, em São Paulo, ativa no período entre 1989 e 1991.

187
analisando, numa etnografia histórica dos povos do Havaí no período da chegada dos
britânicos no arquipélago no século XVIII, nao pretendi um estudo de “transformação
estrutural” da cena gótica paulistana, mas em analisar como certos produtores culturais
alteravam a ordem desta cena com o passar do tempo. Então, desenvolvi a primeira versão
de meu projeto tendo como objetivo a investigação da noção êmica de “cena” entre os
góticos, tendo como hipótese se tratar de uma categoria temporal e não apenas espacial.
No decorrer das atividades realizadas no mestrado o meu projeto foi debatido por
especialistas em algumas ocasiões, como por meio de pareceres de solicitação de bolsa para
a FAPESP e nos congressos I Jornada de Antropologia da USP e 30ª Reunião Brasileira
de Antropologia. Dos questionamentos feitos ao meu trabalho o que foi apontado como
mais problemático a pergunta: “quem são estes ‘góticos’ que você está pequisando?”.
Indicaram-me que observava os “góticos” como um grupo muito sólido e sobre uma noção
(sub)culturalista problemática para o contexto de meu trabalho. Seguindo o mesmo
questionamento me perguntaram se eles apenas se sociabilizam mediados pela
identificação com a “cultura gótica” e se questões de classe, gênero, raça, território etc. não
interferem em suas relações. Este apontamento faz muito sentido, sobretudo quando
observei que disputas entre produtores culturais não estava relacionada necessariamente
com temas relacionados ao universo gótico, mas com temas diversos, como: repúdio a
maus tratos a animais, denúncia de tráfico de drogas e até casos “fofocas” sobre
relacionamentos. Então, reuni as diversas considerações feitas sobre meu projeto junto com
minhas ideias iniciais, para me preparar para o trabalho de campo. Considerei que antes
de qualquer revisão teórico-metodológica de minha pesquisa eu deveria realizar
observações etnográficas de situações concretas, procurando também uma reflexão
empírica. Então, fui para um terreno já bem conhecido por mim: visitei a Madame.

REPENSANDO O TRABALHO ETNOGRÁFICO: UMA VISITA À MADAME

Depois de aproximadamente dois anos sem realizar registros etnográficos fui visitar
a famosa Madame. Entretanto, não se trata de um encontro com uma dama e sim de uma
casa consagrada pelas experiências vanguardistas e socialmente diversificadas na vida
noturna da década de 198080 e pelas festas góticas que preponderaram durante os anos
1990 e 2000. Localizada no bairro Bela Vista, na cidade de São Paulo, a casa passou por

80
Sobre a casa no período da década de 1980, ver Moraes (2006).

188
um histórico de proprietários e ficou um tempo fechada81; assim como chegou a ter outros
nomes82. Reinaugurada pelo DJ Gé Rodrigues e pelo empresário Igor Calmona no ano de
2012, a casa tem se destacado no circuito underground83 da noite paulistana, sendo alvo de
reportagens em grandes veículos de comunicação e atraindo um público diverso. A
Madame participa do que denominei como circuito de festas góticas (DELGADO, 2017),
portanto, uma sondagem etnográfica poderia contribuir para a reelaboração de meu
projeto.
Hospedei-me na cidade de Mariporã – SP, localizada na Região Metropolitana de
São Paulo, onde mora meu amigo Dudu Nobre84, o qual me acompanhou nesta atividade.
Tomamos o ônibus até a Estação Portuguesa - Tietê e trafegamos de metrô até a Estação
São Joaquim. Andando desta última estação até a Madame observei muitos transeuntes
com roupas pretas fazendo o mesmo percurso, o que me sugeriu se tratar de um trajeto85
(MAGNANI, 2002) comum aos frequentadores. Neste contexto havia algumas pessoas
fantasiadas, vestidas a caráter para uma festa de halloween, que era do que se tratava o tema
do evento.
Chegando à esquina onde se localiza a Madame, na Rua Conselheiro Ramalho,
verifiquei botecos, lanchonetes e veículos vendendo bebidas e alimentos, num cenário com
música gótica, muitas pessoas e uma fila se formando na entrada da casa. Ficamos
observando um tempo e nos direcionamos para a bilheteria. A primeira coisa que fiz ao
entrar foi pegar uma bebida no lounge e circular pelos outros espaços. Então observei a
pista de dança localizada no porão, a área externa, os banheiros, as escadas e os corredores,
chegando à área de pagamento das comandas. Eu tive a pretensão de entender como eram
ocupados os espaços e verifiquei que o lounge era o lugar onde ocorriam performances e,
junto com a área externa, eram locais em que as pessoas se concentravam para conversar.
O lounge era iluminado por uma penumbra vermelha, decorado com diversos artefatos
que remetiam à estética gótica, oferecia serviço de bar e era ambientado com uma música
num volume que possibilitava tanto dançar quanto uma conversa tranquila. Além disso,

81
A casa ficou inativa entre 2009 e fevereiro de 2012.
82
Na década de 1990 a casa chegou a se chamar Morcegóvia e The The.
83
Underground (subterrâneo, em inglês) é um termo utilizado para se referir às expressões culturais que
fogem dos padrões comerciais.
84
Trata-se do apelido de Leonardo Vinícius Buenos dos Santos.
85
Segundo Magnani (2002) “O termo trajeto [...] aplica-se a fluxos recorrentes no espaço mais abrangente da
cidade e no interior das manchas urbanas. É a extensão e, principalmente, a diversidade do espaço urbano
para além do bairro que colocam a necessidade de deslocamentos
189 por regiões distantes e não contíguas: esta
é uma primeira aplicação da categoria: na paisagem mais ampla e diversificada da cidade, trajetos ligam
equipamentos, pontos, manchas, complementares ou alternativos”.
contava com estofados confortáveis por todos os lados86. Foi na volta ao lounge que eu
encontrei Rodrigo Cyber, organizador de eventos na Madame e DJ, o qual eu já conhecia
de experiências etnográficas anteriores. Comentei com ele sobre meus trabalhos e
perguntei sobre as reformas da casa. Ele me respondeu de maneira muito educada, mas
sem detalhes. Então, nossa conversa logo se encerrou. Percebi que ele estava ocupado com
a produção e achei melhor guardar o contato para outra oportunidade. Neste momento a
Madame já estava bastante ocupada e eu passei a observar as características do público.
Alternei com o meu amigo entre o lounge e a área externa, observando as pessoas
e interagindo com elas emprestando isqueiro, trocando cigarros e dançando. Trocamos
algumas palavras com o público durante as performances, mas não desenvolvemos uma
longa conversa com ninguém. Então, tratei de mapear os atores sociais pelas suas
indumentárias e os categorizar como góticos ou não-góticos, sem a mediação de
interlocutores naquela situação. Aos meus olhos havia alguns góticos, outros headbangers87,
hards88, pessoas que se identificavam com outros estilos que os entendi como underground,
sem encaixar em uma categoria específica e pessoas que eu não identificava a partir do
underground. Estes que eu considerava como “não-góticos” seriam outsiders, ou seja,
pessoas presentes na festa mas que não se identificavam com a cena gótica: estariam lá por
diversão ou para conhecer algo novo. As minhas referências para pensar nestas categorias
dizem respeito à minha identificação como gótico e com as atividades etnográficas que
realizei anteriormente com góticos “produtores culturais”.
Depois destas observações fui analisar com mais cuidado as interações na pista de
dança. O ambiente era de uma profunda escuridão, onde se enxergava apenas algumas
luzes coloridas e os flashes do strobo. O gelo seco era abundante, permitindo ver apenas
vultos dançando em meio aos feixes de luz. Foi-me muito dificultoso perceber a
espacialidade do local e ver o semblante das pessoas. A música alta dificultava também a
abordagem e a conversa dos frequentadores, que estavam inteiramente imersos na dança.
Depois de um longo tempo na pista de dança fui à área externa, onde estava Dudu Nobre.
Encontrei meu amigo conversando com uma moça e me direcionei até eles. Iniciei
uma conversa com os dois; Dudu havia comentado de meu trabalho com ela. Esta moça

86
Um espaço confortável, serviços de bar e um ambiente propício para a interação social, somados com
lounge music num volume que permita as pessoas conversarem, são as características tradicionais de um
lounge bar.
87
Headbanger é noção utilizada como forma de identificação entre os fãs de Heavy Metal e de seus gêneros
variados.
88
Hards é a categoria utilizada por fãs do gênero Hard
190Rock para se referirem aos seus agrupamentos.
se chama Marisa89 e se mostrou amigável aos meus questionamentos. Situei a cena gótica
como interesse de minha investigação e perguntei se ela sempre frequentava a Madame e
quais eram suas motivações. “Vou ao Madame pelo Madame, e não por ser ‘gótica’”, ela
respondeu. Comentou sobre sua trajetória (VELHO, 2004) como frequentadora da casa,
sobre suas experiências na vida noturna, justificando-as como suas motivações e as
afirmando frente a qualquer identificação com o “gótico”. Trocamos mais algumas palavras
e observei um homem próximo à gente, que aparentemente estaria a acompanhando.
Cumprimentei-o e iniciamos uma conversa.
Seu nome é Ricardo, um desenhista de 46 anos, morador da zona norte. Ele disse
conhecer Marisa, mas afirmou não estar acompanhando ela. Comentou sobre a
experiência de seus casamentos, sobre o seu trabalho e os projetos que já participou, assim
como sua insatisfação com o cenário político brasileiro. Disse a ele a respeito de minha
pesquisa e perguntei se ele poderia contribuir. Foi extremamente receptivo, deixando bem
claro primeiramente: eu não sou gótico. Ele me informou que se identifica com o rock e
com a música pop dos anos 80, dizendo também ter frequentado a casa desde o projeto
inicial. Para ele as festas da Madame não eram mais a mesmas como antigamente, mas
eram as que mais contemplavam seus interesses. Perguntei a ele sobre como compreendia
o público da Madame, ao passo que me respondeu ser formado por “cabeludos, pessoas
alternativas e pessoas mais velhas”. Enfatizou:

Os novos donos do Madame dedicavam as quintas-feiras para o público


gótico, mas atualmente não rola mais estes eventos neste dia da semana.
Se você está procurando góticos, o Madame não é o lugar certo; não rola
mais música gótica, não é mais um reduto gótico. É melhor procurar em
outro lugar (Depoimento de Ricardo).

Este conjunto de referências é fundamental para a reflexão teórico-metodológica


de meu projeto. Como descrevi acima, a Madame era encarada por mim como uma casa
de festas do circuito gótico, onde os frequentadores que não se identificam como góticos
seriam considerados outsiders, pessoas que estariam frequentando uma festa que não era
referente às suas identificações. Em frente às minhas proposições apriorísticas, Talita e
Ricardo relataram sobre a relação entre suas motivações sobre ir à Madame que não são
por identificação com o gótico, mas pelas experiências que tiveram com a casa em suas

89
Marisa e, logo em seguida, Ricardo, são nomes fictícios utilizados para preservar a identidade dos
interlocutores, conforme solicitado pelos mesmos.

191
trajetórias (VELHO, 2004), o que demanda refletir sobre aquilo que foi este lugar na
década de 1980; sobre a diversidade de público que interagia neste espaço; sobre a maneira
como se identificam com as músicas que tocam na casa. Entender a Madame como uma
casa do circuito de festas góticas (DELGADO, 2017) seria uma parte do diverso campo de
possibilidades (VELHO, 1994) de experiências individuais que cruzariam este lugar. Se
David Bowie pode ser entendido como um cantor consagrado para os góticos, sobretudo
por influenciar bandas tradicionais do gothic rock, como a Bauhaus; para Ricardo seu
interesse nestes músicos não está mediado por alguma identificação com o gótico, mas
como ele afirmou, está relacionado ao seu gosto por rock e pop oitentista.
O background que eu possuía sobre meu campo e as construções que realizei de
termos como “gótico”, “cultura gótica”, “festa gótica”, “cena gótica”, pareciam estar
descolados destas observações. Os interlocutores não compreendiam o evento e a Madame
como “góticas”, o que destituía o sentido de pensar esta festa por meio da noção de circuito
trabalhada por mim, univocamente. Talvez, em termos de relações de poder
(BOURDIEU, 1989, FOUCAULT, 1979) pudesse justificar a situação empírica, pois
poderiam Talita e Ricardo, enquadrados na noção a priori de “não-góticos”, estar
reivindicando a legitimação da Madame como um espaço de suas práticas identitárias,
posicionando-se como insiders da casa? Acredito que esta pode ser uma hipótese valiosa,
no entanto, trato aqui de um trabalho etnográfico que, por sua qualidade, não é uma
adequação de observações empíricas às noções apriorísticas, mas da observação situacional
de interações sociais em processo, pensando nos termos de Michel Agier (2011). Tendo
em vista estas considerações, seria necessário observar como os góticos compreendem a
Madame e seus frequentadores para então analisar estas dinâmicas. Isto retorna para o
questionamento crucial feito ao meu trabalho: quem são os “góticos” que estou
observando? Portanto, partindo da experiência etnográfica desta visita e das críticas e
sugestões a respeito de meu projeto inicial, realizei uma revisão teórico-metodológica para
afinar minha investigação.

DOS GÓTICOS AO “GÓTICOS”: OBSERVANDO O FAMILIAR,


OBSERVANDO CITADINOS

A revisão do projeto se iniciou com o questionamento: quem são os góticos que


observei no trabalho de conclusão de curso e que pretendo observar no trabalho de
mestrado? Estes góticos são aqueles que estão envolvidos com as produções culturais –
sobretudo com o circuito de festas – os quais estão em meio a relações de aliança e disputa,

192
mas representam um segmento nesta cena, compreendido como hierarquicamente
distinto. A questão chave foi perceber que, sendo as atividades de produção cultural
geradoras de valores de prestígio e reconhecimento, estas podem ser entendidas como um
capital simbólico (BOURDIEU, 1989, 2013) entre os góticos, tornando-se formas de
legitimação dos discursos sobre a cultura e a identidade para os produtores. Ao investigar
os processos culturais e as relações de sociabilidade no contexto deste agrupamento de
“jovens”, orientando minha observação etnográfica para os produtores culturais sem as
devidas problematizações, assumiria um discurso “oficial” para analisar um universo social
altamente heterogêneo e contribuiria na sua legitimação. Então compreendi a importância
de pensar a partir dos múltiplos pontos de vista sobre a cena gótica para além dos
“produtores culturais”: passei a considerar as diferentes formas de identificações com a
“cultura gótica”, entendendo o “gótico” como uma noção em negociação e em disputa
entre estes atores sociais, que demonstram a partir de suas diferentes trajetórias (VELHO,
2004) perspectivas diversas em relação a visões que podem se pretender como legitimas.
Então, busquei refinar minha visão etnográfica trabalhando a observação do
familiar (VELHO, 2004), (re)problematizando o lugar que ocupo no campo, considerando
minha identificação com o gótico e que o trabalho antropológico deve ser desenvolvido a
partir do ponto de vista dos interlocutores, do ponto de vista dos nativos (GEERTZ, 2001)
e não das considerações apriorísticas do etnógrafo, por mais envolvido que este esteja com
o objeto empírico. Então, classificações realizadas por mim, como a de “góticos” e “não-
góticos”, como descrevi na minha visita à Madame devem ser suspensas, ao passo que o
deve orientar a etnografia são as visões dos interlocutores, como observado nos relatos e
Ricardo e Talita.
A partir destas considerações, elaborei uma nova estratégia etnográfica, que
consistiu em aproveitar o contato com “góticos” que já conhecia e que estariam dispostos
a serem interlocutores, então passei para uma perspectiva situacional (AGIER, 2011),
visitando os lugares acompanhado por interlocutores, observando as formas de interação,
as práticas e os discursos, no contexto determinado. Quando fosse ao campo sozinho
buscaria novos interlocutores no local para a realização do trabalho. Estes lugares
selecionados para a pesquisa são os autodenominados ou representados pelos nativos
como “góticos” (ou compreendidos como “góticos” em situações específicas) ou lugares
que não são necessariamente significados desta maneira, mas que são considerados como
“ponto de encontro”.

193
A importância de analisar as relações de sociabilidade entre os “góticos” não apenas
mediadas pela identificação com o estilo teve como suporte a consideração dos
interlocutores enquanto citadinos (JOSEPH, 2005; FRÚGOLI JR., 2006; AGIER, 2011),
ou seja, abranger a importância de observá-los a partir da figura daquele que “ocupa
espaços urbanos, desloca-se por seus diversos territórios e estabelece relações de
proximidade e distância com outros citadinos, em contextos específicos e situados”
(FRÚGOLI JR., 2006, p. 7). Estes citadinos “góticos” devem ser observados também como
moradores de diferentes bairros, do ABC ou da região central de São Paulo; enquanto
estudantes e/ou trabalhadores, de diferentes categorias sociais, vinculados a diferentes
classes sociais, com diferentes trajetórias (VELHO, 2004) e com diferentes identidades de
gênero e “raça”, para, enfim, refletir sobre os sentidos que atribuem aos seus
pertencimentos e às alteridades que estes sentidos estabelecem. A partir desta perspectiva
se tornou possível considerar fronteiras que não pertencem necessariamente ao universo
gótico, mas que em hipótese dinamizam suas relações de sociabilidade, já que além de
“góticos”, trata-se de citadinos (JOSEPH, 2005; AGIER, 2011; FRÚGOLI JR., 2006). Isto
resultou num novo problema epistemológico, o qual consiste em compreender os sentidos
do urbano na vida destes atores sociais, já que estamos os entendendo como citadinos.

A CIDADE É UM SISTEMA CULTURAL: DA NOÇÃO DE SUBCULTURA À


CRIAÇÃO CULTURAL CITADINA

Realizar uma etnografia sobre a sociabilidade de atores sociais compreendidos


como citadinos torna problemático o olhar para a cidade apenas como um contexto
etnográfico, pois se coloca como princípio seus modos de vida urbanos. Então, a cidade é
encarada enquanto um processo vivo (AGIER, 2011), da qual são atribuídas diferentes
significações ao espaço e às relações a partir dos citadinos. Neste sentido, investigar as
relações de sociabilidade dos “góticos” por meio da antropologia da cidade (AGIER, 2011)
implica duas operações de ordem epistemológica: primeiramente é necessário ter o foco
de observação sobre os citadinos, ou invés da cidade; “em segundo lugar, deslocar a própria
problemática do objeto para o sujeito, da questão sobre o que é a cidade – uma essência
inatingível, normativa – para a pergunta sobre o que faz a cidade” (AGIER, 2011, p. 38). A
antropologia tem necessidade de se emancipar de noções apriorísticas e, nesta perspectiva,
adquire lugar próprio nas formas de conhecimento urbano, analisando estas “cidades”
produzidas pelos sujeitos. Portanto, trata-se de entender como o rápido processo de
urbanização do mundo desde a década de 1950 impactou sobre os modos de vida,

194
aproximando de forma intensa citadinos com referenciais simbólicos distintos,
estimulando-os à hibridação. A vida urbana desestabiliza identidades culturais rígidas por
meio do contato com uma ampla heterogeneidade de identificações, o que leva os atores
sociais a uma constante reinvenção dos sentidos.
Por meio destas considerações podemos entender a cidade como um dispositivo
cultural (AGIER, 2011 [2009]) que condiciona a interação entre citadinos em diferentes
situações da vida urbana, influenciando na produção e negociação de significados,
compondo uma cultura da cidade. A cidade enquanto sistema cultural é constituída em
dois domínios da criação, a saber, às formas de representação da identidade e da alteridade
a partir das relações e às maneiras como o espaço material urbano ganha sentido a partir
da agência simbólica dos citadinos (AGIER, 2011 [2009]). Entretanto, as concepções
culturalista tenderam a ofuscar o momento da criação cultura, que para Agier (2011 [2009])
é o instante que:

[...] nos mostra a cultura a fazer-se (in progress). É esse processo criativo
que constitui, na minha opinião, o objeto dos antropólogos,
independente dos campos em que se encontrem, uma vez que não está
provado que a antropologia precisa de uma definição de cultura em si,
fora de sua prática. Para capturar o momento da criação cultural, a
atenção deve dirigir-se às situações reais de interação entre os indivíduos
e entre os significados que os atores criam nas relações cotidianas
(situações normais), nos acontecimentos (situações extraordinárias,
ocasionais), em situações rituais e em espaços/tempo intermediários
(situações de passagem) (AGIER, 2011 [2009], p. 147, grifos do autor).

Esta maneira de compreender a cultura da cidade se contrapõe com a noção de


subcultura desenvolvida inicialmente a partir dos estudos de jovens desviantes nos Estados
Unidos (THRASHER, 1927; WHYTE, 2005; COHEN, 1997), posteriormente com
jovens britânicos da classe trabalhadora no pós-guerra (CLARKE, HALL, JEFFERSON,
ROBERTS, 2006) pelo Center for Contemporary Culture Studies (CCCS) da
Universidade de Birmingham e reelaborada por outros pesquisadores (HEBDIGE, 1979;
MCROBBIE, 1994; SHANK, 1994; THORNTON, 1995; MUGGLETON, 2000;
HODKINSON, 2002).
Segundo Paul Hodkinson (2002), em sua pesquisa sobre a cena gótica no Reino
Unido no final da década de 1990, trata-se de analisar os góticos por meio da categoria de
subcultura, compreendendo que estes carregam mais características de substancialidade ao
invés de fluidez, configurando-os enquanto um grupo. Uma variedade de categorias foi

195
desenvolvida conforme a noção de subcultura de Birmingham não correspondia às
expressões culturais jovens que emergiram – a saber, neo-tribos, estilos de vida, cenas
musicais, pós-subculturas e etc. –, entretanto, como afirma Hodkinson (2002), estas noções
privilegiam arranjos coletivos efêmeros, deturpando e excluindo agrupamentos diferentes,
como a cena gótica, que se caracteriza por relativa estabilidade e delimitações de fronteiras.
Hodkinson (2002) argumenta que muitas das categorias alternativas à subcultura são
atualizadas e interessantes para pensar as dinâmicas contemporâneas de coletividades,
entretanto, muitas vezes são imprecisas as explicações do motivo de suas criações,
tornando-se termos elaborados sem uma crítica adequada, chegando a casos de serem
intercambiáveis por estudiosos, sem diferenciações ou explanações. Nestas condições, a
noção de neo-tribo (MAFFESOLI, 1987) é compreendida por Hodkinson (2002) como a
que melhor privilegia coletividades marcadas pela fluidez, ao passo que subcultura seria o
termo mais apropriado para analisar agrupamentos marcados por “grandes níveis de
comprometimento, continuidade, distinção, ou colocando em termos gerais, substância”
(HODKINSON, 2002, p.23, tradução minha)90.
A tese defendida por Hodkinson (2002) é a de que além da substancialidade, estas
subculturas são caracterizadas pela translocalidade, o que implica compreender o impacto
dos “meios de comunicação” e do “comércio” para além de uma homogeneização cultural
ou de identidades instáveis e fragmentadas, como nas teorias da “cultura de massas” ou da
“pós-modernidade”, respectivamente. Para Hodkinson (2002) este embate levou
etnógrafos (COHEN, 1991; FINNEGAN, 1989; SHANK 1994) a compreenderem
práticas culturais em limites urbanos como critério para a substancialidade de coletivos. O
comprometimento dos participantes com os estilos autônomos, nesta perspectiva, está
relacionado com a proximidade física possibilitada pela vida citadina. Entretanto, esta
perspectiva despreza a dimensão global da indústria de música popular, a qual não está
restrita a uma localidade específica e circula por meio da mídia e do comércio. Apoiado
nestas considerações e com o foco na observação empírica, Hodkinson (2002) demonstra
que os meios de comunicação e o comércio permitem a identificação com a “subcultura
gótica” em ordem translocal, o que não resulta formarem um coletivo fluído.
Os compartilhamentos de sentimentos de identidade e de semelhança –
independentemente da localização geográfica; o senso consistente de distinção em relação
a outros grupos; os altos níveis de comprometimento dos participantes; assim como o

90
“greater levels of commitment, continuity, distinctiveness or, to put it in3f general terms, substance”.

196
relativamente alto nível de autonomia das produções e organizações, são consideradas
como indicadores de “consistência subcultural”, na análise de Hodkinson (2002).
Enquanto indicadores, sua ideia não é torna-los planos definitivos de conceituação, mas
encará-los como formas contributivas de adequação de termo em uma perspectiva
cumulativa, relacionando com a especificidade do caso. Além disso, observando dinâmicas
contemporâneas de coletividades, “fluidez” e “substância” são noções que não devem ser
encaradas como oposições, mas observadas em graus de consistência (HODKINSON,
2002).
Entretanto, se demonstra problemático investigar os “góticos” partindo da
afirmação de que estes formam uma unidade sociológica, articulada por um sistema
(sub)cultural, mesmo entendendo que eles estão relacionados com a vida social mais
ampla, que se caracterizam por dimensões heterogêneas, translocais e que suas fronteiras
são, como escreve Hodkinson (2002), “mais ou menos estáveis”. Arranjos coletivos que
compartilham de interesses em comum, como grupos musicais, formas de se vestir, artes e
literatura, e que frequentam lugares em comum, não necessariamente representam um
sistema cultural. Entende-se por cultura um “sistema de significados mais abrangentes de
um determinado universo social” (VELHO, 2004, p. 84), o que torna uma “subcultura”
um sistema de significados que está envolvido por um maior.
Neste sentido, a observação da variedade de discursos identitários “góticos” não equaciona
um sistema do qual possamos entender uma teia de significados (GEERTZ, 1989). No
decorrer de minha pesquisa durante os últimos anos testemunhei “góticos” afirmando que
o “E.B.M. é uma cena diferente da gótica”, assim como “o E.B.M. é parte da cena gótica”;
interlocutores descrevendo que ser gótico é se “identificar com a subcultura”, mas outros
definindo como “uma busca pelo entendimento do ser”; observei praticantes que
consideram “a ampla variedade de estilos góticos” e os que não consideram, presenciando
o seguinte comentário em uma situação: “os cybergoths são ridículos, não representam o
gótico; são uns esquisitões”. Existem góticos que fundamentam a origem de sua “cultura”
a partir de grupos musicais do final da década de 1970 e aqueles que partem de produções
literárias. Trata-se de um “grupo”, representado por um sistema “subcultural”?
Compreendo que a grande variedade de ideias, interesses, valores e estilos de vida dos
“góticos” na cidade de São Paulo tornam a noção analítica de “subcultura” questionável
para investigar processos concretos envolvendo estas formas de identificação. Conforme
Gilberto Velho (2004, p. 84), esta forma de tratamento leva a uma reificação de traços

197
característicos de arranjos coletivos, “mas que não expressam necessariamente um sistema
cultural propriamente dito”.
As formas de identificação com o “gótico” em São Paulo são parte do processo de
mundialização da cultura (ORTIZ, 1999, 2000), que tornou as referências simbólicas
desterritorializadas, informando-se por uma memória internacional-popular (ORTIZ,
1999, 2000). A cultura é compreendida como um processo formado por fluxos culturais
globais (HANNERZ, 1997), ou seja, há uma circulação de significados, atores e redes numa
dimensão transnacional. Os fluxos culturais possuem direções, distribuem-se
assimetricamente pelo espaço e são manipulados pelos seus receptores. Nestes termos, os
processos identitários dos “góticos” são de ordem translocal, resultantes do deslocamento
transnacional de significados (HANNERZ, 1997), mas que são tensionados nos contextos
situacionais da vida urbana (AGIER, 2011 [2009]). É neste contexto que os significados são
negociados e reinventados, é o momento da criação cultural (AGIER 2011 [2009]).
A partir desta revisão teórico-metodológica os objetivos iniciais do projeto foram
reformulados, conforme os “góticos” citadinos trouxeram problemas durante as situações
etnográficas que podem contribuir para as teorias sobre a sociabilidade urbana. Noções
como “diminuição de público” e “diminuição de festas” levaram até a concepção de que
as “novas gerações” não correspondem mais com o que os interlocutores deste trabalho
compreendem como “identidade gótica”. Disputas por meio de uma “fronteira geracional”
foram evidenciadas como forma de atribuição de sentido para estas identidades, que
relatam que a “geração” atual é menos envolvida com a literatura e menos interessada nas
questões intelectuais e existencialistas. Há um “choque de comportamentos” dos “góticos”
da “geração anterior” com as “novas gerações”, que se identificam e se expressam de
maneira diferente. Por outro lado, muitos destes que podem ser representados como
“góticos mais velhos” são convenientes com as diferenças identitárias e buscam entender
as mudanças como formas de renovação a serem apoiadas pelos participantes da cena.
Portanto, as “fronteiras geracionais” são um meio de compreender o estabelecimento de
“relações de proximidade e distância” entre “góticos” citadinos, “em contextos específicos
e situados” (FRÚGOLI JR., 2006, p. 7), observadas por mim em situações sociais (AGIER,
2011).

198
ABRINDO IDEIAS: REFLETINDO SOBRE A “CULTURA” ENTRE
AGRUPAMENTOS DE “JOVENS” URBANOS

Refletindo sobre a “cultura” entre agrupamentos de “jovens” urbanos, a partir dos


desdobramentos de minha pesquisa sobre a sociabilidade gótica em São Paulo, demonstrei
primeiramente os problemas em partir de uma noção etnográfica dos góticos que privilegia
um conjunto restrito de discursos identitários em detrimento de outros. Então,
compreendê-los enquanto “góticos”, que se identificam a partir de distintos referenciais
simbólicos e trajetórias (VELHO, 2004) tornou o embasamento teórico-metodológico
mais seguro, tendo em vista que se trata de uma pesquisa com atores sociais localizados no
contexto urbano e de que eu compartilho de suas formas de identificação, problematizando
enquanto uma etnografia com o familiar (VELHO, 2004).
Encarar estes “góticos” enquanto citadinos (JOSEPH, 2005; FRÚGOLI JR., 2006;
AGIER, 2011) trouxe o aprimoramento na compreensão do estabelecimento de suas
“relações de proximidade e distância”, as quais não se realizam apenas mediante às
identificações culturais, mas também com a complexidade do modo de vida urbano,
abrindo as possibilidades de observar como que cortes de “classe”, “gênero”, “raça”,
“território” e, no caso relatado, “geração”, podem se tornar relevantes para a compreensão
de “contextos específicos e situados” de interação. Nestes termos, as festas que de antemão
eram compreendidas como “góticas”, assim como outros lugares representados desta
maneira, tornaram-se observados situacionalmente (AGIER, 2011), percebendo como que
os sentidos são atribuídos a elas por citadinos, entendidos em suas diversidades, em termos
processuais, ou seja, que os significados são produzidos na interação e são contextuais,
podendo ganhar novos sentidos durante o processo de negociação e criação. São nestes
termos que Michel Agier (2011) compreende a criação cultural como forma de
representação das identidades e alteridades e como forma de atribuição de sentido ao
espaço material da cidade.
Demonstrei os problemas em entender estes modos de vida urbanos, diversos, que
compartilham de elementos culturais em dimensões transnacionais (HANNERZ, 1997) a
partir de um sistema (sub)cultural, com tendência a reificar traços de coletividades urbanas,
forçando a compreensão de um sistema de significados, não correspondente, como no caso
observado, aos processos concretos. Portanto, analisando por meio da “antropologia da
cidade” (AGIER, 2011), a cidade é encarada como um sistema cultural, um processo vivo
em que os significados são produzidos nas relações entre os citadinos, compondo uma
cultura da cidade. Refletindo a partir destes termos, a noção de criação cultural (AGIER,

199
2011) demonstra ampliar as investigações sobre as dinâmicas com agrupamentos de
“jovens” urbanos, além de apontar criticamente os problemas em tratar estas coletividades
por meio de noções que os compreendam em “sistemas de significados”, como cultura ou
subcultura. “A cultura a fazer-se” (AGIER, 2011, p. 147), portanto, mostra-se como uma
ideia aberta, produtiva, para a investigação de “jovens” urbanos”.

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201
OS DE CIMA E OS DE BAIXO: PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO
DOS MORADORES DE UM BAIRRO DO PROGRAMA MINHA
CASA MINHA VIDA, SÃO CARLOS/SP

Thalles Vichiato BREDA91

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar os resultados de incursões etnográficas e entrevistas


semiestruturadas realizadas no bairro Jardim Zaváglia, São Carlos, no período entre novembro de
2016 a maio de 2017, mobilizando uma literatura a respeito do processo de estigmatização. O
bairro Jardim Zaváglia, inaugurado em 2011, é fruto do Programa Minha Casa Minha Vida Faixa
1. Este bairro é caracterizado pela segregação socioespacial, precariedade de equipamentos
públicos e de consumo, residido por uma população de baixa renda e predominantemente negra.
De modo geral, é caracterizado pela vulnerabilidade social. Durante as entrevistas, observou o uso
constante da expressão, “eles lá de cima”, referindo-se aos moradores da cidade consolidada.
Também foi observado, durante as entrevistas, relatos de discriminação devido à condição de
moradora do Zaváglia, periferia. Portanto, a proposta deste artigo é mobilizar os resultados em
campo junto à obra de Elias, Os estabelecidos e outsiders. O objetivo é mobilizar uma literatura
que trate da questão do estigma e a relação entre “nós” e “eles”, buscando analisar tais resultados
pelo viés do processo sócio-histórico da estigmatização. No processo de estigmatização descrito por
Elias, é comum o grupo opressor buscar recursos nas próprias características do oprimido e tentar
torná-las um estigma, como por exemplo, sua pobreza, sua raça, suas vestimentas, seu local de
moradia. Comumente são associadas aos outsiders as características de quase inumanos, sujos,
desorganizados. Ao analisar os resultados da etnografia com a literatura de estigma, surgem alguns
resultados. No caso dos moradores do Jardim Zaváglia, observa-se que o processo de estigmatização
ocorre em algumas instâncias e vão se somando. A primeira delas é a questão da raça,
predominantemente negra; há o processo de discriminação racial. A segunda, a condição
econômica; a discriminação de classe: o indivíduo pobre que não se esforça – lógica meritocrática.
A terceira, a localização da moradia, na periferia. Há uma associação da localização da moradia ao
caráter individual de maneira negativa. Por último, há a questão de o bairro ser fruto de uma Política
Pública habitacional de interesse social. Há um processo que associa o indivíduo beneficiário de
programas sociais como o preguiçoso aproveitador, o vagabundo. Portanto, são esferas que vão se
somando para construir no imaginário social a imagem “deles”, o negro, pobre, vagabundo, no
limite, o bandido que mora em um ambiente cercado de violência e drogas.

Palavras-chave: Etnografia. Estigmatização. Periferia. Jardim Zaváglia. Minha Casa Minha Vida.

INTRODUÇÃO

O presente artigo pretende discutir parte dos resultados de incursões etnográficas e


entrevistas semiestruturadas realizadas no bairro Jardim Zaváglia92, São Carlos, no período
entre novembro de 2016 a maio de 2017, mobilizando uma literatura a respeito do
processo de estigmatização. Os resultados aqui apresentados são parte de uma pesquisa de

91
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia; UFSCar/ São Carlos, e-mail:
thallesvbreda@gmail.com.
92
O bairro Jardim Zaváglia, inaugurado em 2011, é fruto do Programa Minha Casa Minha Vida Faixa 1.
202
mestrado onde se pretende discutir as dinâmicas da produção da cidade por intermédio
de uma política públicas - o Programa Minha Casa Minha Vida93 -, o papel do Estado
(município) e os agentes locais (os moradores). Busca-se discutir nesta pesquisa as formas
de produção e apropriação da cidade, lançando luz no debate de segregação socioespacial
e direito à cidade94. Parte do processo de pesquisa utilizou-se de incursões etnográficas
realizados nos bairros estudados, sendo um deles o Jardim Zaváglia. Neste momento da
pesquisa, busca-se compreender de que modo os moradores se apropriam das
circunstancias presentes e de que maneira o cotidiano deles se intercruzam com a cidade,
e vice-e-versa.
Como estratégia de entrada em campo, voluntarie-me em uma ONG95 localizada
no bairro citado. Observei que aquele espaço poderia ajudar a compreender as dinâmicas
socioespaciais e urbanos ali presentes, uma vez que A ONG tem uma centralidade no
bairro, tanto geográfica quanto social, pois é um dos únicos escassos equipamentos
localizados naquele bairro, com exceção de uma escola de nível fundamental e médio,
recém-inaugurada, escasso comércio e dois playgrounds públicos com academia ao ar livre
(carentes de manutenção).
Aquele ponto de entrada em campo possibilitou ter um cruzamento de
informações, tanto dos moradores, dos alunos da ONG e dos funcionários96 da ONG, além
das anotações na condição de observador naquele espaço. Os pontos que destacarei neste
artigo são dois: a) a visão de uma pessoa externa ao bairro, mas que o frequenta e, b) a
visão de um morador; ambos em relação à produção das relações desiguais de poder e do
processo de estigmatização.
Como recurso metodológico, foi construída uma tipologia representada na figura
de Genésio para discutir este olhar externo. Portanto, esta figura não é propriamente uma
pessoa, mas sim uma construção de uma figura feita por intermédio de várias outras pessoas
(tanto professores quanto pessoas externas ao bairro que o frequentavam) que tinham um
discurso semelhante ou convergente. Portanto, Genésio é uma construção da soma de
vários outros interlocutores. Por outro lado, para discutir o processo de estigmatização
sentido pelos moradores, elenquei uma entrevista97 realizada com um morador – José. Esta

93
Sobre o Programa Minha Casa Minha Vida ver AMORE, C. S.; SHIMBO, L. Z.; RUFINO, M. B. C.
(Orgs.), 2015.
94
Para Harvey (2008), o direito à cidade é o direito coletivo que vai além do acesso aos recursos urbanos. É
um direito de mudar a si mesmo e mudar a cidade. O direito democrático de consumir a cidade e remodelar
os processos de urbanização.
95
Optou-se por não mencionar o nome da instituição para preservação de sua imagem.
96
Nenhum funcionário da ONG reside no bairro em203 que ela está instalada.
97
Realizada em caráter formal e semiestruturada.
entrevista foi escolhida uma vez que traz vários elementos que se repetem em outras
entrevistas, também realizadas no mesmo bairro. Ela se apresenta como uma entrevista
representante, uma vez que contempla em grande parte as outras entrevistas. Para tanto, o
nome utilizado é fictício no intuito de preservar a identidade e imagem do interlocutor.
Para prosseguir no artigo abordarei a discussão realizada por Norbert Elias a
respeito dos processos de estigmatização e dominação; em seguida, contextualizarei o
bairro estudado e, por fim, discutir o processo de estigmatização no bairro Jardim Zaváglia
utilizando duas tipologias: Genésio e José e também por intermédio dos elementos
teóricos.

A SOCIOLOGIA FIGURACIONAL DE ELIAS: PODER E DOMINAÇÃO NAS


RELAÇÕES INTERDEPENDENTES

Compreendemos a obra de Elias (1994, 2000) por meio do que se intitula uma
abordagem relacional de sua sociologia configuracional, onde o autor demostra que os
indivíduos só existem em uma (ou mais) rede de interdependência, ou seja, pela interação
ou relação, portanto, uma sociologia interacionista. Nota-se que o autor situa os indivíduos
em uma rede, um drama, um campo, uma relação, para explicar seus atos: o indivíduo
sempre está atento à reação de outro indivíduo e isso interfere em sua conduta. No nível
coletivo, a sociologia relacional se expressa no seu par estabelecidos/outsiders; onde as
categorias só podem existir uma em relação à outra. A abordagem relacional, de modo
geral, lança dúvidas, portanto, em teorias que buscam as origens dos atos individuais na
psicologia individual para explicar as atividades coletivas (ELIAS, 1997; 2000).
Além de ter uma abordagem relacional, a sociologia de Elias apresenta um caráter
processual, preocupando-se em compreender a construção histórica e as consequências
das estruturas sociais e os processos figuracionais, como podem ser observados em seu
livro Os alemães (1997). O lugar do indivíduo em sua relação com os outros em uma
figuração, inseridos em processos de incorporação do ethos sociocultural, atualiza também
o debate de estrutura e agente. Em Elias (1994; 2000), o agente só existe em relação ao
outro, dentro de um processo figuracional. Este processo implica em uma rede de relações
interdependentes entre dois ou mais grupos. Revela-se, numa dinâmica, uma relação
elástica, onde o agente pode atualizar o grupo, mas também é coagido pelas próprias regras
do grupo.

204
Posto que a sociologia figuracioanal de Elias é relacional e processual, elenco um
conceito central para desenvolver o argumento de poder e dominação em sua obra, a
concepção do autor a respeito de organização e coesão social de um grupo:

Ao mesmo tempo, ali [em Winston Parva] se podiam ver as limitações


de qualquer teoria que explique os diferenciais de poder tão somente em
termo de posse monopolista de objetos não humanos, tais como armas
ou meios de produção; e que desconsidere os aspectos figuracionais dos
diferenciais de poder que se devem puramente a diferenças no grau de
organização dos seres humanos implicados (ELIAS, 2000, p. 21.
Comentário meu).

Por meio desta citação, compreendemos a importância do aspecto da coesão do


grupo para Elias. Além da coesão, controle comunitário, organização do grupo, o aspecto
sócio histórico é fundamental para a análise do autor. A disputa pela monopolização de
forças entre os grupos também é algo que aparece com força - o poder é relacional.
Elias (1997; 2000) afirma que um índice de coesão e integridade mais alto em
relação ao outro grupo ou outros grupos, contribui substancialmente para seu excedente
de poder. Por meio deste excedente, reservam-se para os membros internos do grupo as
melhores posições sociais dentro da comunidade, portanto, com maior poder. Por
consequência, exclui-se destas posições membros de outros grupos. Esta figuração é
própria do que Elias estabelece como relação interdependente estabelecidos-outsiders. Tal
relação se expressa pelo processo de estigmatização e exclusão imputada pelos
estabelecidos aos outsiders (ou melhor, que virão a se tornar outsiders).
O mecanismo de estigmatização funciona como “armas poderosas para que este
último [estabelecidos] preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo
os outros firmes em seu lugar” (ELIAS, 2000, p. 22. Comentário meu). É importante
ressaltar que essa exclusão é sempre parcial, nunca definitiva, uma vez que os grupos vivem
em relação de interdependência. Ela pode vir a tender a zero quando a distribuição de
poder se apresenta muito desigual ou enfrentar um processo de contra-estigma, visando
descolar de si tal concepção.
Os estabelecidos, ou establishment, são um grupo que se auto reconhece e que é
reconhecido como uma “boa sociedade”, mais poderosa e melhor, com uma identidade
que foi construída historicamente por meio de uma combinação entre tradição, autoridade
e influência. É considerada como um modelo moral a ser seguido. A distinção dos
estabelecidos está no acúmulo de seu poder, no caso de Winston Parva, devido a um

205
princípio de antiguidade – os moradores estavam estabelecidos há três gerações,
representando os valores e tradições, constituindo normas e regras, contendo o monopólio
das posições sociais com maior poder. Elias aponta que alguns diferenciais de poder
podem se manifestar por meio da classe social, nacionalidade, ascendência étnica racial,
credo religioso ou nível de instrução (ELIAS, 1997; 2000).
Quando há um grupo dotado de carisma capaz de uma virtude específica e de se
auto intitular como indivíduos “superiores”, como consequência, podem fazer com que os
próprios indivíduos ditos inferiores se sintam, eles mesmos, carentes de virtude ou
julgando-se sem valor humano. Temos, portanto, neste processo de estigma, a formação
dos outsiders (Ibidem).
Os Outsiders – termo oposto –, são considerados os de fora da “boa sociedade”.
Apresentam-se como um conjunto de pessoas heterogêneas e difusas, unidas por laços
sociais menos intensos do que o grupo dominante. Não chegam a ser considerado um
grupo social, portanto, não coesos ou organizados, o que diminui seu potencial de
acumular poder. Atributos como anomia, delinquência, a violência e a desintegração, são
associados a eles no processo de estigmatização. Quando a distribuição de poder se torna
muito desigual, torna-se comum o outsider resignar-se de sua condição e aceitar o estigma
imposto, muitas vezes agindo da maneira que o rotularam. É importante ressaltar que os
estabelecidos e outsiders estão separados e unidos por um laço intenso e desigual de
interdependência (ELIAS, 2000).
Elias (2000) se pergunta, então, por que ocorre esse processo de estigmatização de
um grupo pelo outro (o processo de estigma não é uma condição individual e sim grupal).
Como já dito, a componente central dessa figuração (estabelecidos e outsiders) é o
equilíbrio instável de poder e suas tensões. Qualquer processo de estigmatização só ocorre
de um grupo para o outro e quando os grupos estabelecidos contêm o monopólio de poder
e exclui o grupo outsider. O processo de estigma costuma ocorrer numa tentativa do grupo
dominante preservar o que julgam ter alto valor, sua honra, suas normas, suas regras, sua
coesão, sua identidade grupal e sua hierarquia. Neste processo em que tudo isso pode vir
a ser ameaçado por pessoas estranhas, há um encerramento de suas fileiras contra os
recém-chegados ou aqueles que podem ameaçá-los. Tende-se a excluir todos os membros
do grupo que virá a tornar-se outsider do contato com o grupo estabelecido, criam-se ou
reforçam-se tabus em torno deste contato e, como diz Elias (2000), um dos principais meios
de controle social é a fofoca elogiosa – para com os membros inside – e a fofoca
depreciativa contra os outsiders.

206
Dito de outra maneira, a identidade grupal que se defende tem um aspecto
temporal decisivo na constituição de um grupo coeso, no desenvolvimento de sua estrutura
e suas características, que o faz se reconhecer enquanto “nós”, e respectivamente, “eles”.
O compartilhamento de um passado comum, o processo grupal que atravessou um
passado olhando para o futuro, através do presente, lhe dá um estoque de lembranças, de
apegos e aversões em comum (Ibidem).
Como resultado dessa figuração específica, há um indício de uma barreira
emocional erguida que vai se tornando rígida ao longo das gerações, alongando o potencial
do estigma ao longo do tempo, mesmo que o poder seja redistribuído. O sentimento de
virtude superior e sentimento de valor humano não necessariamente acompanham os
ajustes políticos, culturais, jurídicos da sociedade (Ibidem).
É preciso existir um contexto de relação específica para a estigmatização surtir
efeito. Há uma relação de consciência de quem fere e de quem é ferido. Dependendo do
equilíbrio do poder, o ferido pode não aceitar o estigma e lutar pela sua honra ou por outro
lado, quando o desiquilíbrio é muito grande, avalia-se pela métrica de seus opressores,
tornando-se um submisso inelutável, vivenciando a inferioridade: “Dê-se a um grupo uma
reputação ruim e é provável que ele corresponda a essa expectativa” (ELIAS, 2000, p. 30).
O opressor busca nas próprias características do oprimido e tenta torná-las um estigma,
como por exemplo, sua pobreza, sua cor, suas vestimentas, a casa. Comumente, nos mostra
Elias, é associado aos outsiders às características de quase inumanos, sujos, desorganizados,
pobres (ELIAS, 1997; 2000).
A dominação na abordagem de Elias tem pelo menos duas características: a
primeira, a dominação dos outsiders pelos estabelecidos – e, a segunda, é o que o autor
chama de autocontrole, ou seja, parte do processo de interiorização subjetiva das normas
do grupo, como um processo de dominação entre o grupo e o indivíduo.

A participação na superioridade de um grupo e em seu carisma grupal


singular é, por assim dizer, a recompensa pela submissão às normas
específicas do grupo. Esse preço tem que ser individualmente pago por
cada um de seus membros, através de sujeição de sua conduta a padrões
específicos de controle de afeto. (...) A satisfação que cada um extraí da
participação do carisma do grupo compensa o sacrifício da satisfação
pessoal decorrente da submissão às normas grupais (ELIAS, 2000, p.
26).

A opinião interna em qualquer grupo de alta coesão tem uma profunda influência
em seus membros, como força reguladora de sua conduta e seus sentimentos. O indivíduo

207
tende a manter a conduta de acordo com as premissas do grupo, uma vez que este reserva
monopolisticamente para seus membros o acesso recompensador aos instrumentos de
poder. O membro de um grupo pode perder espaço ou diminuir-se quando seu
comportamento e seus sentimentos começam a contrariar a opinião geral do grupo. Neste
momento, além de perder prestígio, o indivíduo pode ser considerado como um outsider.
A função e o caráter de consciência da própria pessoa são formados num processo grupal,
assim como ele também constitui o pensamento geral do grupo. É uma via de mão dupla,
o indivíduo nunca deve ser compreendido de forma isolada. A autoimagem e a autoestima
do indivíduo estão ligadas ao que os outros membros pensam dele. O rompimento desta
ligação, diz Elias, só acontece se o indivíduo vir a perder a sanidade, caso contrário, a sua
conduta, sua autorregulação, estará ligado à opinião normativa interna do “nós”.
Certamente, há uma grande variação nessa relação elástica, isto se traduz em um jogo de
forças entre o indivíduo e o grupo, de modo que não existe, em sã consciência, um
indivíduo totalmente independente de um grupo, como também não há uma coletividade
completa que apague a autonomia do indivíduo (ELIAS, 1994; 1997; 2000).
Essa imagem que o indivíduo faz de si mesmo – suas estruturas de personalidade,
e a imagem que o grupo faz de si mesmo – também variam entre o real e o fantasioso.
Quando a imagem é exagerada demais, hipertrofiada, há um sintoma de doença coletiva
(ELIAS, 1997; 2000).
Dentro da chave de desenvolvimento civilizatório dos Estados-nações, com o
monopólio legítimo da violência na mão dos Estados, há um processo de coação interna
pela pacificação, que se torna também um processo de auto-coação. Portanto, dentre as
formas de dominação, o Estado com certeza está presente na vida do indivíduo,
fomentando o processo de civilização (autocontrole dos impulsos). Por outro lado, na
chave figuracioanal de estabelecidos-outsiders, o Estado-nação se apresenta, externamente,
com potencial de guerra, fomentando a violência. Apenas uma análise geopolítica mundial
para conseguir estabelecer o panorama desta figuração. Por outro lado, internamente, Elias
propõe uma biografia do Estado, para compreender o desenvolvimento de seu habitus,
seus processos de estigma, o desenvolvimento das classes e grupos e do próprio
nacionalismo. Em seu livro Os Alemães (1997), visa aplicar essa sociologia processual para
fim de entender todo o processo que culminou na Alemanha Nazista. Parte fundamental
dessa análise repousa no que ele chama de conflito geracional, ou seja, a dinâmica social e
institucional de grupos separados por certo tempo disputando o mesmo espaço. É
importante salientar que o processo de desenvolvimento interno não pode ser observado

208
sem o processo de desenvolvimento externo do Estado em questão; assim como o
desenvolvimento individual não pode ser compreendido sem compreender o
desenvolvimento de um grupo maior, no caso, o habitus nacional se mostra fundamental
na análise de Elias (1997).
O esforço da sociologia processual de Elias é em torno de fortalecer um campo de
estudos que leve em questão os processos sócio-históricos e como isso se reflete nos
indivíduos e grupos da atualidade. Uma vez que o processo de poder e dominação são
dinâmicos, ainda há muito que explorar no complexo movimento de ascensão e declínio
dos grupos ao longo do tempo. Como os grupos estabelecidos desaparecem e como os
grupos outsiders podem vir a tornar-se estabelecidos, como ocorrem os processos da
criação da imagem do “nós” e “eles” e “eu”, e os processos de fantasia e hiperinflação da
imagem individual e coletiva. Dito de outra maneira, a sociologia processual de Elias é o
esforço de reconstituir o caráter dos grupos e suas relações como processos na sequência
temporal para conseguirmos entender as fronteiras que as pessoas traçam ao estabelecer
uma distinção entre grupos, a que se referem como “nós”, e grupos a que se referem como
“eles”.
Por fim, podemos destacar que a abordagem de Elias em relação a discussão de
poder e dominação é o entendimento que a dominação parte de um grupo que tenta fazer
com que seus valores particulares, de classe ou grupo, sejam vistos enquanto universais.
Essa busca pela hegemonia dentro de um campo ou configuração se dá por diversas
maneiras, principalmente por meio de acumulação de poder através dos capitais
simbólicos. Essa é uma ideia básica que perpassa o autor: hegemonia e acumulação de
capital simbólico dentro de determinada estrutura sócio histórica.
Outro ponto interessante que perpassa a sociologia de Elias é a ideia de distinção,
apresentada sempre como um ato político. O ato de diferenciar-se e se estabelecer
enquanto padrão moral e virtuoso aparece na forma de disputa pelo processo de criação,
de manutenção das representações e regras tanto intra-grupo contra extra grupo. Dito de
outra maneira, a produção simbólica de valores e signos. Há uma concepção da balança
“nós”/“eu” e o papel da autocoerção como forma de dominação intragrupo, tais aspectos
aparecem na obra. O estigma aparece enquanto arma poderosa de dominação na disputa
pelo poder entre os grupos.
De todo modo, a análise sócio histórico e relacional/disposicional é marcante. A
análise do todo localizado em um espaço tempo, desconsiderando os atos individuais
enquanto biológicos ou patológicos, é fundamental para avançar no debate estrutura e ação

209
de forma mais dinâmica. O autor aposta em uma teoria em que existe uma via de mão
dupla entre as estruturas objetivas e subjetivas, dentro de um processo sócio histórico,
marcado pelo conflito, os grupos sociais influenciam o indivíduo e o indivíduo influencia
os grupos sociais, em um processo elástico. De modo geral, Elias aposta em uma sociologia
figuracioanal e nos graus de organização e coesão que, segundo o autor, ira implicar na
acumulação de poder e consequentemente, na dominação, sendo o estigma uma
ferramenta do grupo dominante para manter os dominados sobre controle.

CONSTRUINDO BAIRROS E FRONTEIRAS: JARDIM ZAVÁGLIA E O


PROCESSO DE ESTIGMATIZAÇÃO

O Bairro Jardim Zaváglia foi inaugurado, em 2011, conta com cerca de mil
unidades habitacionais fomentadas pelo Programa Minha Casa Minha Vida Faixa 198
(PMCMV1). O bairro se localiza na periferia sudoeste da cidade de São Carlos em uma
região historicamente caracterizada pela vulnerabilidade social e índices elevados de
pobreza. Situa-se entre os bairros Eduardo Abdelnur (à oeste), Antenor Garcia, Cidade
Aracy e Planalto Verde (todos à leste, respectivamente). Conjunto de bairros que nomeei
como Cinturão Periférico Sudoeste. Toda essa região foi fomentada por políticas de
habitação de interesse social, em diversas modalidades, como reforma e benfeitoria ao
imóvel, regularização fundiária ou mesmo construção de habitação, como no caso do
PMCMV1 (BREDA, 2014).
O bairro é separado da cidade consolidada por um acidente geográfico (uma grande
cratera) e pela linha férrea, que possibilitam poucos acessos ao centro “tradicional”, assim
como toda a região do Cinturão. O bairro mais novo do PMCMV1, Eduardo Abdelnur,
não conta com nenhuma estrutura além das casas, dificultando a vida daqueles que ali
moram. O bairro Jd. Zavaglia, inaugurado em 2011, é um pouco mais equipado por ser o
mais antigo, oferecendo escassos serviços públicos a essa região toda. Ambos se apresentam
como um grande bloco homogêneo de casas, separados da malha urbana e cercados por
uma vegetação mista de cerrado e mata mais espessa.
Em uma primeira análise, constata-se que nos bairros do PMCMV1 há ausência de
equipamentos urbanos e públicos. As distâncias geográficas e sociais dificultam o acesso
aos bairros centrais mais consolidados, fazendo os moradores dependerem dos bairros

98
Em São Carlos, houve a construção de cerca de três mil unidade do Programa Minha Casa Minha Vida
Faixa 1. Os bairros são Jardim Zaváglia (2010), Eduardo Abdelnur (2015) e Planalto Verde (2015). Todos
localizados na orla periférica Sudoeste.
210
periféricos mais antigos, que se consolidaram precariamente de alguma maneira, como
Cidade Aracy e Botafogo (bairro conectado à malha urbana).
A sociabilidade destes moradores tem sido alterada devido ao planejamento urbano
“ineficiente”, ou como diria Kowarick (1979), planejamentos que obedecem a uma “lógica
da desordem”. Observamos a construção de uma periferia fomentada pelo PMCMV1,
com pouca infraestrutura, transporte deficitário, resultando em uma segregação
socioespacial. A localização residencial pode vir a determinar a inclusão ou exclusão do
acesso aos direitos urbanísticos, das relações sociais e, sobretudo, o direito à cidade e à
cidadania, pois a segregação residencial contribui para a definição das práticas sociais, de
consumo, de lazer, acesso a emprego, serviços públicos e à infraestrutura urbana,
segmentando outras esferas da vida urbana. Portanto, o acesso e as possibilidades de
deslocamento pela cidade, de cada indivíduo ou família, estão fortemente relacionados à
localização da casa, que por fim também colabora para uma construção da identidade social
dos moradores de tal região. (KOWARICK, 2009).
Há, portanto, a questão do estigma social negativo imposto sobre aqueles que têm
residência “mal localizada”. Cria-se no imaginário social a ideia de que as pessoas que
moram “más” localizadas – nas periferias, cortiços, barracos ou favelas – ou mesmo os mais
desfavorecidos economicamente, que “ganham” a casa do governo, são vagabundos,
imorais, criminosos, drogados, promíscuos, preguiçosos (ROSA, 2014; KOWARICK,
2009).
A casa, por fim, estabelece uma relação muito estreita entre seus moradores e a
cidade influenciando diretamente o mundo social, a construção social da identidade e das
identidades imaginarias e das sociabilidades urbanas. Pensar o acesso à moradia e
equipamentos públicos, é também pensar o acesso à terra e às proximidades físicas e sociais
a serviços básicos. A cidade como um todo. Compreender a habitação é compreender sua
localização e seus acessos na e pela cidade. Falar de habitação de uma maneira ampliada
que não se restrinja apenas ao local stricto sensu, mas sim seu entorno e sua relação com a
cidade e região, em seus diversos sentidos (CARDOSO, 2009; ROSA, 2014;
KOWARICK, 2009).

211
DISPUTANDO SIGNIFICADOS: OS DE CIMA E OS DE BAIXO

Como dito de início me utilizarei de duas tipologias para lançar luz no processo de
estigmatização que ocorre no Jardim Zaváglia, o Genésio e o José, o morador “lá de cima”
e o morador “lá de baixo”.
Genésio
Genésio era uma das pessoas que costumavam a trabalhar na ONG. Assim com
todo funcionário de lá, Genésio também não morava no bairro e em nem uma periferia,
Genésio morava “bem” localizado, “lá em cima”, ao lado do centro. Ele era formado,
professor, branco, meia idade. De início, conversava muito com ele sobre diversas coisas,
desde a ONG, de política, da minha pesquisa, sobre esportes, etc. Com o tempo e o
desenvolvimento de certa intimidade, Genésio começou a passar de um discurso que
entendia a condição da pobreza como sendo parte de um arranjo sócio histórico para um
discurso de meritocracia, expondo muitas vezes opiniões extremamente preconceituosas a
respeito dos moradores da região.

Na hora do intervalo entre um turno e outro, conversei muito com


Genésio, fomos entregar duas cestas básicas no bairro. Percorri as ruas
com ele. Ele gosta muito de usar o termo “miserê”. Hora para se referir
à sorte e à miséria daquelas pessoas e, hora para se referir à preguiça e
vagabundagem, falta de esforço de algumas pessoas do bairro que “nem
o muro construíram” (C.C99, 24/11/2016).

Genésio sempre demonstrou esse caráter ambíguo, de compreender a situação de


vulnerabilidade, por um lado, e de culpabilizar os indivíduos/moradores pela sua situação,
por outro. Às vezes dizia que algumas pessoas daquele bairro eram boas, trabalhadoras.
Outras vezes sugeria que a solução seria “tacar veneno na caixa d’agua do bairro e
exterminar todo mundo”.
Por detrás deste discurso discriminatório, podia reconhecer traços de um discurso
racista e classista. Em suas falas, sempre associava as condições precárias do bairro à
pobreza ou o estado de “pobre” dos moradores – a “miserê”, responsabilizando os
indivíduos pelas suas condições socioeconômicas. De modo geral, lembro-me de ouvir um
comentário ou outro de algum professor que associava as condições socioeconômicas à
essência do indivíduo, como por exemplo, o famoso bordão “Esse aqui é Zaváglia,
mesmo!”. Buscando associar que aquela pessoa não tem jeito, nasceu naquela região e

99
Caderno de Campo.

212
incorporou “o modo de ser” de quem é pobre, negro e da periferia – o vagabundo, o
folgado, o ligeiro. Os discursos de Genésio insistiam sempre na mesma temática,
ocorrendo na maioria das vezes de forma discreta junto à mim ou publicamente em tom
de “brincadeira”, junto com os alunos ou outros funcionários. Como Norbert Elias coloca,
é comum o grupo estabelecido/opressor buscar nas próprias características do oprimido e
tenta torná-las um estigma, como por exemplo, sua pobreza, sua cor, suas vestimentas, a
casa. É associado aos outsiders às características de quase inumanos, sujos, desorganizados,
pobres, passiveis de extermínio.
Genésio sempre reclamou muito de seus alunos da ONG, justificando o “mau”
desempenho deles à pobreza, a vagabundagem, a ignorância, aos pais como maus
cuidadores. Muitas vezes chegou a sugerir que a ignorância era natural, uma vez que todos
eles eram uma “mistura de raças”, algo que não poderia dar certo, “não havia uma raça
pura, igual à gente. Você consegue traçar os seus descendentes, eles não!”. Mostrou-se
comum associar o discurso do “mau” desempenho das crianças ao fato exclusivo dos pais
serem pobres ou “sem raça definida”, como uma condição de “espírito” da pobreza (a
“miserê”) e não às vulnerabilidades socioeconômicas. Genésio evoca a tradição, a boa
sociedade, os laços de pureza da raça branca em oposição aos negros e mestiços,
heterogêneos, difusos, quase anêmicos. Mecanismos utilizados no processo de
estigmatização, como demonstrado por Elias.
Outro discurso muito presente é a associação da pobreza à “carência”
emocional/afetiva das crianças. É comum ouvir que as crianças pobres são mais carentes,
por isso elas ficam mais em cima, pedindo colo, dando às mãos. Mais uma vez, associando
à pobreza com a incapacidade dos pais de suprirem as necessidades afetivas dos filhos.
Quando uma criança de uma classe social abastada demonstra maior afetividade, diz-se
que a criança é carinhosa e amorosa; quando uma criança de classe social inferior
demonstra carinho, associa-se à carência afetiva, ausência ou incapacidade dos pais de
suprirem tais necessidades, etc. Essa passagem é interessante para notar as formas de
discurso da construção da pobreza, esta colagem naturalizada do comportamento de
carência afetiva das crianças à pobreza, como se fosse algo exclusivo de uma classe social,
econômica ou racial, ignorando outros fatores.
Se apropriando da ideia da superioridade branca, Genésio evoca o tempo todo o
“nós” e os “outros”, produzindo discursos com conteúdo racista, desvalorizando qualquer
identidade não-branca, ou como se referia, “uma mistura de raças que não poderia dar
certo”. Recorrendo às crenças de superioridade moral, intelectual e estética construídas

213
pelo racismo científico do final do século XIX (SCHUCMAN, 2012). Genésio constrói
em seu esquema mental os estabelecidos e os outsiders e busca recrimina-los e rebaixá-los
a todo o momento, buscando demostrar que seu julgamento tem valor moral maior.
Toda esta discriminação que Genésio proferia traz características típicas do
preconceito racial e de classe pelo qual a periferia pobre está submetida constantemente,
o rótulo e o estigma. De alguma maneira, Genésio via em mim100 alguém que ele pudesse
falar com certa facilidade, seja pela minha formação, minha raça ou classe social.
Possivelmente enxergava um “nós”, como pertencentes ao mesmo grupo. Parecia que ele
via em mim alguém que o compreenderia e até daria um suporte a ele. Por algumas vezes
recorreu até a minha formação acadêmica para se justificar, “Não é verdade, Thalles?!
Você que estuda essas coisas, é tudo raça misturada, não tem como ter algo bom daí”.
Por fim, Genésio pode ser entendido como uma, dentre várias perspectivas, que
alguém poderia olhar para o bairro. Como alguém que mora em uma região central, que
experimentou os privilégios simbólicos e materiais de ser branco, de ter estudado e, que
olha para uma região pobre por meio das lentes de um discurso biológico e cultural
hierárquico do branco. Alguém que se sentia legitimado pelo grupo social pertencente e
poderia classificar outro grupo social, buscando em sua origem, em sua classe, sua raça,
condição social, o próprio bairro (“este daqui é Zaváglia mesmo”), elementos para
inferiorizar tal população. Genésio representa aqui o grupo estabelecido que tenta a todo
momento tencionar e se apropriar do poder da rotulação, buscando se posicionar como
superior. A seguir, descrevo o grupo que considero outsider.

José
José, 35 anos, negro, casado, uma filha, pobre, nasceu na Região Metropolitana de
São Paulo e veio tentar a vida no interior paulista (São Carlos), em 2010. Reside no Jardim
Zaváglia desde 2011. Ficou alguns anos empregado em São Carlos, mesmo trocando de
emprego, até quando foi demitido do último e não arrumou mais nada, apenas alguns
bicos. Há seis meses está desempregado. Trabalhou de cobrador de ônibus, pedreiro,
servente, gesseiro, pintor, jardineiro, apanhador de café e laranja. Relata algumas
experiências que revelam o estigma colocado sobre os moradores do Zaváglia ou mesmo
da periferia sudoeste de São Carlos. Peço licença para expor um trecho da entrevista:

100
O pesquisador se reconhece com branco, de classe média, graduado, morador próximo à região central,
em São Carlos/SP.

214
José: E outra, às vezes você fala assim, “Eu vou chamar a polícia”. O
correto é chamar a, mas a polícia te desanima mais ainda, por que eles
não fazem nada. A polícia para a gente na cidade. Pergunta aonde que a
gente mora. A gente fala que mora aqui ou na Cidade Aracy, os caras
parece que tem nojo da gente. É impressionante, cara. O cara discrimina!
Discrimina a gente. Preconceito, né?!/ Thalles: Você sente diferença no
tratamento?/ José: Sente, muito!/ Thalles: Já aconteceu alguma...?/ José:
Já, diversas vezes. Não foi uma, não foram duas. Se você falar que você
mora ali no Santa Monica [bairro de classe média/alta de São Carlos], ali
pra aqueles lado, o tratamento é diferente. Agora se você falar que mora
no Zaváglia, você já não presta... No Dahma 1, no Dahma 2
[condomínios fechados de alto padrão localizado ao norte da cidade]. Já
trabalhei em todos ali. Todos os condôminos fechados que tem ai eu já
trabalhei como servente de pedreiro. Todos, sem exceção nenhuma.
Saia de lá, as vezes eu... uma vez eu estava trabalhando lá dentro. Sai
num dia de sexta feira. A moto estava com um documento vencido fazia
dois dias. Acabei de encostar na marginal, a polícia me parou, pediu
meus documentos, viu que eu estava trabalhando. Falei assim, “eu só
recebo... o patrão ficou de me pagar hoje, mas não deu pra eu acertar
ainda.” Minto, acho que eu tinha pagado e não tinha dado tempo de eu
ir ao Poupatempo fazer os documentos. Ai ele falou assim, “mas você
está vindo de onde?.” Falei “estou vindo do Dahma”. “O legal! Do
Dahma! Então...”. Lá do Dahma 3 eu estava vindo. Ele pegou, falou pra
mim, como se fosse me liberar, “ e mora aonde?”. Falei, “ eu moro no
Zaváglia.” Ele falou, “Vish!”. Ai pegou e falou assim, “mora lá no
Zaváglia!”, comentou com o outro policial. O polícia falou assim, “ e qual
que é a situação, ai?”. E ele falou, “está com o documento atrasada”.
Falou assim, “aprende o documento”. No meu entender, se eu falo que
moro em outro lugar, fala assim, “moro na Santa Paula. Moro na Santa
Marta, um exemplo.” Poderia até liberar, mas como mora em bairro de
periferia, eles consideram aqui como favela. Eles mesmo já falaram que
não é só o Gonzaga que é favela, eles considera aqui em baixo tudo como
favela também. Poderia até ser que liberava.

José descreve sua experiência com a polícia, que em sua visão discrimina os
moradores dos bairros mais pobres. Ele se refere à região do Aracy e do Zaváglia, região
que chamei de Constelação Sudoeste. Esta visão de uma autoridade pública reforça a
produção de um estigma sócio histórico, de uma região caracterizada pela pobreza e
vulnerabilidade social. Portanto, qualquer bairro naquela proximidade e seus moradores
ascendem um “alerta” no policial, como que as condições materiais e originárias
produziriam um sujeito transgressor da lei. Neste trecho, observamos como funciona o
mecanismo da criminalização da pobreza. Por outro lado, caso José fosse morador de um
condomínio de alto padrão, as chances de o policial deixa-lo prosseguir se apresentaram
maior.
É interessante notar que o movimento que o policial faz para colocar todos os
bairros na classificação de favela, criando uma hierarquia, incomoda José. Favela tem uma
conotação pejorativa para José, mas ele não hesita em usá-la implicitamente - Gonzaga é

215
favela, aqui não. No esquema de José, ele também hierarquiza os bairros “(...) eles
consideram aqui como favela. Eles mesmo já falaram que não é só o Gonzaga que é favela,
eles consideram aqui em baixo tudo como favela também”. Eles consideram aqui como
favela, mas implicitamente, para José não é, apenas o Gonzaga. Historicamente, Gonzaga
foi o bairro considerado mais pobre e vulnerável de São Carlos, sofrendo diversas
investidas do poder público para sua revitalização, entretanto, ainda guarda o estigma de
bairro de pobres e reduto de venda e uso de drogas. Estigma este praticado não somente
pelos de cima, mas também pelos de baixo.
Por fim, observamos uma fronteira que se ergue entre os moradores da cidade
legítima e os moradores da periferia, os de cima e os de baixo, como ilustro no próximo
trecho:

Thalles: Quando você fala aqui em baixo é esse bairro ou você...?/ José:
Aqui embaixo eu me refiro ao Zaváglia. Começa no Abdelnur, Zaváglia,
Antenor Garcia, Aracy 2, Aracy 1, Planalto Verde./ Thalles: Você sente
essa diferença? E já teve mais caso?/ José: Teve diversos casos. Aonde
você vai, se você vai arrumar um serviço mesmo e fala que você mora
aqui pra baixo, eles já.../ Thalles: Você sente que a pessoa muda depois
que vocês falam que moram aqui?/ José: Ah, um pouco. Eu já senti isso.
Tanto da parte na hora de uma entrevista, tanto na... No entanto, eu falo
que isso é verídico, por quê? Que na hora que nos estávamos começando
a planejar as linhas de ônibus aqui de baixo, para a Suzantur [empresa
de transporte público de São Carlos], eles falam assim, “coloca fulano
que mora em tal bairro, coloca fulano que mora em tal bairro”, por que
conhece. Falo assim, “coloca o José lá em baixo, lá, por que o José
conhece o pessoal de lá. Põem esse fulano que ele conhece o pessoal de
lá da 2. Ou põem esse... Ou, põem esse fulano na linha tal, que passa
dentro do Gonzaga, que ele mora lá no Gonzaga.” Então, tem uma
diferença. Querendo ou não. Um exemplo, que se tivesse uma linha do
Shopping no Dahma, um exemplo, não vão colocar um cara que nem
eu pra trabalha aqui, que tenho mais convívio com a população da classe
baixa. Então, tem essas diferenças. Os outros... Claramente não vão falar
isso, mas existe.

O estigma de morar em um bairro periférico acarreta problemas para José até na


hora de arrumar um emprego. Como ele descreve, na empresa de ônibus que trabalhou
como cobrador, era comum selecionar pessoas para trabalhar em linhas específicas. A
seletividade deixa transparecer que a empresa acreditava de a região de moradia poderia
significar diferentes habilidades para trabalhar com diferentes públicos, em outras palavras,
pobre pode trabalhar em região pobre, e os trabalhadores com melhores condições
financeiras podem trabalhar em regiões mais ricas da cidade, “por que conhece”.

216
Estes trechos mostram como ocorre o processo de estigma, a constituição de pelo
menos dois grupos, os de cima e os de baixo, e a produção e manutenção de características
atribuídas aos moradores de regiões periféricas. Por outro lado, podemos observar como
este estigma de que morador de favela é vagabundo, preguiçoso ou traficante também
aparece dentro do próprio bairro, como relata José ao falar um pouco da sua vizinhança:

José: se você comprar um carro novo aqui, você já é traficante. Se você


trabalhar dez anos da sua vida e colocar um carro ou então você faz sua
casa do nada, você recebeu um dinheiro e faz um sobrado, “não, você
está traficando. Você está roubando”. Nunca a pessoa vai falar assim,
“nossa, aqueles lá é batalhador. Eles trabalharam...”, a pessoa não vai
pensar assim, mesmo que você trabalhou que você conquistou com o
seu suor. A pessoa vai falar pelas suas costas que você traficou, que você
roubou, que você fez isso, que você fez aquilo. E não é assim a vida da
gente.

Embora José comente este processo de diferenciação entre a própria população e


o reconhecimento que vive entre outsiders, José também se reconhece como um grande
grupo “aqui de baixo somos, como diz o ditado popular, tudo farinha do mesmo saco”,
respondendo a minha pergunta se havia conflito ou discriminação entre os moradores de
baixo. Portanto, fica claro que há um reconhecimento na fala de José, somos um grupo e
somos iguais, mas principalmente somos um grupo em referencia aos de cima. Aqui em
baixo somos iguais, os de cima também, são um grupo que recriminam eles em diversas
situações.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Iniciei este artigo com a proposta de analisar alguns resultados das incursões
etnográficas realizadas no bairro Jardim Zaváglia, em São Carlos, por meio do processo de
estigma. Processo que é permeado pela raça, classe social, local de habitação, etc. A relação
mais visível se demonstrou na fala simbólica dos moradores, que se denominavam “os de
baixo” em relação aos moradores da cidade consolidada, “os de cima”.
Segui a explanação a respeito do processo de estigma e dominação por intermédio
da obra de Norbert Elias. Para o autor, o processo de estigma é uma forma de poder e
dominação que se estabelece entre dois ou mais grupos, os estabelecidos e os outsiders.
Estas características já revelam uma sociologia relacional da obra de Elias, ou seja, os
indivíduos estão sempre em relação uns com os outros em um processo de disputa de

217
poder. O poder é relacional. Outra característica do autor é compreender o processo de
estigma por intermédio do tempo, portanto é uma sociologia processual. O processo de
estigmatização se revela na tentativa de rotular, desumanizar e excluir membro e grupos de
uma sociedade estabelecida, dita como a boa sociedade, a melhor, mais virtuosa. Do outro
lado, repousariam os outsiders, ditos como desorganizados, violentos, delinquentes,
anêmicos, sem a boa moral. O processo de estigmatização se realiza na medida em que um
grupo social detém uma quantidade maior de poder, que segundo Elias é estabelecida
historicamente, principalmente por intermédio de organização e coesão intra grupo.
Estabelecida essa relação, cabe o grupo dominante mantê-la por intermédio da depreciação
do grupo dominado. Uma vez que o grupo dominante assume tal posição, seu discurso
ganha um prestígio moral e simbólico. Em muitos casos, o outsider aceita seu rótulo e pode
começar a agir como tal. Então, o grupo dominante busca se distinguir a todo custo do
grupo dominado, em um ato político.
A relação de estigma começa a se desenhar na periferia sudoeste, em São Carlos,
especialmente o bairro Jardim Zaváglia em relação à cidade consolidada. Em primeiro
lugar pela localização excludente e por ser uma região histórica de índices de pobreza e
vulnerabilidade social. As relações de classes sociais e pobreza são fator fundamental na
análise de estigmatização. O lugar do pobre e sua associação com vandalismo, violência,
roubos, depredação e vagabundagem. Num segundo momento também se observa a
concentração de negros (pretos e pardos) que habitam a periferia sudoeste. Portanto, as
relações de raça e discriminação começam a se desenhar por intermédio de Genésio. É
preciso ressaltar que as relações entre raça e classe social são históricas no Brasil. Também
aparece a dimensão do subsidio de uma politica habitacional, que traz um estigma de
vagabundo e preguiçoso à aqueles que usufruíram por direito de tal política. Portanto, a
localização da casa em si já os traz inúmeros significados em um processo histórico de
atribuição de características pejorativas a aqueles que habitam determinados locais.
Para discutir mais especificamente as relações estabelecidas, criei duas tipologias
personalizadas, Genésio e José. Genésio representou o estabelecido. Branco, formado,
morava em uma região privilegiada. Sentia-se no direito de atacar e rotular de forma
pejorativa os moradores daquele bairro, associando sempre as características pejorativas à
pobreza e ao local. Genésio sempre exaltava sua origem branca e tradicional frente ao
processo de mestiçagem. Tencionava seu discurso como alguém mais virtuoso, melhor, e
desejava o fim daquela população. Comportava-se como um verdadeiro estabelecido,
buscando colocar-se no topo da hierarquia social.

218
Por outro lado, temos José, morador do bairro, negro, pobre, desempregado. Por
intermédio de sua experiência podemos observar como o estigma opera. Por intermédio
da classificação das pessoas entre humanos e não humanos, pessoas que podem ser
empregáveis e outras não, em consequência ao seu lugar de moradia. O rótulo que carrega
impossibilita de realizar diversas coisas. A segregação física se soma à segregação social. A
barreira erguida pelo estigma de ser morador de um bairro periférico afeta diretamente sua
vida. São “os lá de cima” que ditam as regras. Por fim, José reconhece que há um grupo
de baixo e um de cima, como é comum na fala de muitos moradores.

REFERÊNCIAS

AMORE, C. S.; SHIMBO, L. Z.; RUFINO, M. B. C. (Orgs.). Minha casa... e a cidade?


Avaliação do programa Minha Casa Minha Vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro:
Letra Capital, 2015.

BREDA, T. V. Dinâmica socioespacial: novas tendências nas bordas periféricas da cidade


de São Carlos. Iniciação Científica. Universidade Federal de São Carlos, 2014.

ELIAS, N. Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1994.

__________. Os alemães. A luta pelo poder e a evolução do habitus nos séculos XIX e
XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

__________; SCOTSON, J.L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de


poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2000.

HARVEY, D. The right to the city. New Left Review, n. 53, set/out, 2008.

KOWARICK, L. A Espoliação Urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

___________. Escritos Urbanos. 2ª edição. São Paulo: Editora 34, 2009.

ROSA, T. T. Cidades outras: pobreza, moradia e mediações em trajetórias urbanas


liminares. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Instituto de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo, 2014.

SCHUCMAN, L. V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia


e poder na construção da branquitute paulistana. Tese (Doutorado em Psicologia) Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2012.

219
ESTADO E RESISTÊNCIAS COTIDIANAS:
ZONAS DE SIGNIFICAÇÃO ARTICULADAS POR BENEFICIÁRIAS
DO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA

Isabela Vianna PINHO101

Resumo: Este artigo se propõe a apresentar alguns relatos e possíveis análises alcançadas na minha
pesquisa de conclusão de curso intitulada como “Estado e Resistências Cotidianas: zonas de
significação movimentadas por beneficiárias do Programa Bolsa Família”. Ela foi realizada no ano
de 2016, quando conclui o bacharelado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São
Carlos. A centralidade da monografia estava, basicamente, na condicionalidade da educação deste
programa social. Como objetivo, buscou-se explorar, de forma relacional, os entrecruzamentos
possíveis entre zonas de significação, nomeadas aqui de “Estado” e “Resistências Cotidianas”. De
forma mais específica, através das relações entre agentes estatais e mulheres/mães/beneficiárias, a
pesquisa buscou analisar as palavras-ações, as possibilidades e os recursos articulados por estas,
principalmente aquelas beneficiárias que vivenciam situações de “descumprimento” de tal
condicionalidade. Elas se movem, negociam e interagem cotidianamente com agentes e instituições
(não) estatais. A partir de uma abordagem qualitativa de pesquisa social, especialmente de caráter
etnográfico, utilizou-se como universo empírico de análise o cadastro único em São Carlos - onde
fiz estágio superior como cadastradora por dois anos -, além da pesquisa de campo fora deste
território estatal. Longe de separar dois “pólos” opostos como lógicas que não se ligam e são
contrárias, a proposta é mostrar a dinâmica, o movimento entre “Estado” e “Resistências
Cotidianas”, entre “Estado” e “margem”. Buscou-se, com este estudo, portanto, contribuir com a
possibilidade de outras narrativas do Estado, quebrando a solidez geralmente atribuída a ele, bem
como a fixidez das polaridades que são normalmente produzidas entre este e as margens.

Palavras-chave: Bolsa Família. Condicionalidade da Educação. Estado. Resistências cotidianas.


Mulheres Beneficiárias.

INTRODUÇÃO

O percurso da minha pesquisa se inicia quando, entre os anos de 2014 e 2016, fiz
estágio de nível superior na sede da Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social.
Durante este período, atuei como entrevistadora do Cadastro Único para Programas
Sociais do Governo Federal102. Entre tantas outras possibilidades, o estágio me permitiu
conhecer parcialmente a rede de serviços e programas sociais no município, bem como
alguns agentes envolvidos nesta rede; além de colocar algumas questões e inquietações que

101
Mestranda em Sociologia; PPGS/UFSCar; CAPES; isaviannapinho@hotmail.com.
102
Quando faço referência ao Cadastro Único, existem duas diferenças: o espaço físico de atendimento dentro
da SMCAS, o qual será nomeado neste texto com letra minúscula ou o Cadastro Único para Programas
Sociais do Governo Federal que, segundo o site do MDSA, “é um instrumento que identifica e caracteriza
as famílias de baixa renda, permitindo que o governo conheça melhor a realidade socioeconômica dessa
população”. Ele pode ser considerado a porta de entrada para as famílias acessarem diversas políticas
públicas. 220
se transformaram em problemas de pesquisa, estes que venho analisando desde os últimos
anos de graduação, na minha monografia e, mais recentemente, no mestrado.
A centralidade das minhas inquietações estava, basicamente, nas condicionalidades
do programa Bolsa Família (PBF)103, mais especificamente a relacionada à educação104.
Chamava-me atenção a altíssima frequência de casos de mães105 encaminhadas ao cadastro
por estarem em situação de “descumprimento” de tal condionalidade; bem como as falas
de gestores, estagiários e assistentes sociais que pareciam soar como punitivas e repressivas
em relação às mesmas e, ademais, a quantidade de espaços que estas mães atravessavam e
pessoas que mobilizavam na busca de solucionar estes problemas, muitas vezes em vão.
Segundo o MDSA, as condicionalidades consistem em alguns compromissos das
famílias beneficiárias, bem como do poder público em garantir a oferta e qualidade de
serviços na saúde, educação e assistência social. Na proposta do programa, através do
monitoramento e gestão destas (feito pelos três níveis de governo federal, estadual e
municipal)106, pode-se identificar quadros de vulnerabilidades entre as famílias que estão
com dificuldades para acessar esses serviços públicos, encaminhá-las para a rede de
assistência social, com o propósito de que estas possam superar tal situação de
vulnerabilidade e voltar a cumprir seus compromissos, além de contribuir para o
desenvolvimento saudável das crianças e para que os estudantes integrantes de famílias
beneficiárias concluam a educação básica, tendo, dessa forma, melhores condições de
vencer o clico de pobreza (MDSA, 2016).

103
Na prática, os responsáveis familiares devem matricular todas as crianças e adolescentes de 6 a 17 anos na
escola e a frequência escolar deve ser de, no mínimo, 85% para quem possui de 6 a 15 anos e de 75% para
jovens de 16 a 17 anos. Já na área da saúde, as crianças menores de 7 anos devem ser vacinadas, fazer
pesagem, medir e fazer o acompanhamento do crescimento e do desenvolvimento. As mulheres gestantes
devem fazer o pré-natal e ir às consultas médicas.
104
Isto se justifica por existirem mais famílias em situação de“descumprimento” de tal condicionalidade
quando comparadas às da saúde, as da educação causam menos efeitos (advertências, bloqueios, suspensões
ou cancelamentos) que as últimas, conforme observado na rotina do cadastro único.
105
As mulheres (quase sempre mães) “usuárias”, “sujeitos receptores”, “públicos-alvo” ou “beneficiárias” são
alvo e cumprem papel chave na implementação dos programas sociais brasileiros. Perceber seus enunciados,
trajetórias, valores, subjetividades, como vivenciam a ausência ou presença do acesso aos serviços sociais
básicos era preocupação fundamental na pesquisa. O Programa Bolsa Família dá preferência à mulher como
responsável familiar do cadastro, conforme o Decreto Nº 6.135, de 26 de junho de 2007, artigo 6º, “o
cadastramento de cada família será vinculado a seu domicílio e a um responsável pela unidade familiar, maior
de dezesseis anos, preferencialmente mulher”. 221
106
São aplicados efeitos gradativos nas famílias que se encontram “em descumprimento” das
condicionalidades. Primeiro a pessoa recebe uma advertência em seu extrato bancário ou por
correspondência, o que não afeta seu benefício. Se, no período de até seis meses, o descumprimento se
repete, há o bloqueio do benefício (a família fica sem receber por um mês e este pode ser sacado no próximo).
Se depois de bloqueado, ocorrer novo descumprimento no período de seis meses, o benefício é suspenso
por dois meses sem possibilidade de reaver as parcelas. O último e mais grave efeito é o cancelamento que
só deve ocorrer após a família ter passado por acompanhamento da assistência social.
No início, minha hipótese de pesquisa era de que havia uma falta de sincronia,
descontinuidades ou conflito entre a lógica estatal presente na concepção das
condicionalidades do PBF (como o maior acesso aos direitos sociais básicos e a quebra do
ciclo intergeracional da pobreza) e a lógica cotidiana vivenciada pelas mulheres
beneficiárias e agentes do cadastro único. Como objetivo geral, buscava relacionar as duas
lógicas descritas acima, na tentativa de pensar continuidades e descontinuidades entre o
que é planejado pela política social e o que é vivido cotidianamente na rotina do cadastro
e das beneficiárias.
Analisando os materiais obtidos na pesquisa, me deparei com outra inquietação.
Tais lógicas (estatal e de beneficiárias), longe de serem rigidamente antagônicas; opostas ou
contrárias como dois “pólos” que não se ligam, elas possuem, de outro modo, movimento
e dinâmica, são reformuladas e reconstruídas a todo o momento nas interações e
negociações da vida social. Na interação face a face, no cotidiano, há negociação a todo
tempo.
Escolhi, portanto, nomear as lógicas como zonas de significação - zonas semânticas
e de ação, movimentadas pelos atores como palavras-atos -, são “dobraduras em meio às
quais possibilidades de ação são constituídas”, tais dobraduras estão em movimento, em
trânsito, dentro de um processo dinâmico (VIANNA, 2014). De forma fundamentalmente
organizativa, nomeei de “Estado” e “Resistências cotidianas”, as zonas de significação nas
quais as beneficiárias do PBF se movem, elas que negociam, articulam e interagem
cotidianamente com agentes e instituições (não) estatais.
O objetivo passou a ser outro. Com o propósito de olhar para o sentido carregado
de positividade em suas “resistências cotidianas”, busquei explorar, então, os
entrecruzamentos possíveis recorrentes nas falas das beneficiárias. Elas articulavam
palavras-atos que podiam funcionar como diversos instrumentos ou recursos, ora de
compreensão, ora de resistência, ora de sofrimento, entre outras possibilidades. O objetivo
da monografia, longe de separar dois “pólos” opostos como lógicas que não se ligam e são
contrárias, era mostrar a dinâmica, o movimento entre “Estado” e “Resistências
Cotidianas”, “Estado” e “margem”, “Estado” e “beneficiárias” ou “Cadastradora” e
“beneficiária”. Este artigo busca apresentar alguns relatos, possíveis análises e conclusões
obtidas durante tal pesquisa de conclusão de curso.

222
ESTADO, RESISTÊNCIAS COTIDIANAS E ZONAS DE SIGNIFICAÇÃO

Desde logo, convém apresentar os pressupostos teóricos, bem como as categorias


de interesse a este texto. Partindo da perspectiva de análise das autoras Das e Poole (2008),
buscou-se pensar o Estado – através de etnografia que privilegia a experiência -, pelas
práticas, lugares e linguagens que são considerados as margens territoriais, conceituais,
espaciais e/ou sociais do estado-nação. Interessava observar, portanto, o Estado a partir de
suas margens, estas últimas que são tomadas aqui como pressupostos necessários à
existência do primeiro e não como um espaço fora deste, mas como rios que fluem no
interior e através do seu corpo.
A pesquisa visou fugir tanto da imagem consolidada de Estado como forma
administrativa de organização política racionalizada, como da ideia de esvaziamento,
menor articulação e enfraquecimento das formas de regulação e pertencimento que o
constituem e que se crê não estar nas margens. Elas são vistas geralmente como espaços de
desordem, onde ainda não se tem Estado ou que este não conseguiu instaurar a ordem.
Em contrapartida, a perspectiva aqui adotada é enxergar as margens como espaços em que
o Estado é formado continuamente na vida diária, ou seja, como as práticas políticas de
vida nesses espaços moldam as práticas de regulação e disciplina do que denominamos
como aparelho estatal. Nos processos da vida diária, percebe-se como ele é reconfigurado
a todo o momento nas margens. Elas determinam, assim como as fronteiras, o que está
dentro e fora. Dessa forma, o ponto de vista aqui adotado é o de que o Estado não tem
uma forma definida, ele é reformulado e reconstruído a todo o momento, nas interações
e negociações da vida social.
James Scott (2011), analisando os camponeses da Malásia, desenvolve o conceito
de “resistência cotidiana” como expressão da luta diária entre sujeitos das classes
dominadas e aqueles que lhe extraem trabalho, comida, impostos, rendas e juros. Estas
lutas, na maioria das vezes, não necessariamente consistem no caráter de confrontação
coletiva e, da mesma forma, não são sempre dirigidas à fonte imediata de apropriação, elas
não tem objetivos simbólicos de confrontação com a autoridade ou as normas da elite, de
contestar as hierarquias e o poder. Estão mais preocupadas, de outro modo, com ganhos
imediatos de satisfação e de necessidades básicas. Isto não significa dizer, na visão do autor,
que os dominados se submetem passivamente a ordem estabelecida, nem que exista uma
“hegemonia” ideológica. Pelo contrário, nota-se em sua argumentação a existência de

223
agencia nos processos da vida diária, nos atos de resistência. A quietude ou paz agrária
poderia ser explicada, segundo o autor, pelas relações de força no campo, deveria ser vista
como a paz da repressão (recordada e/ou prevista), mais do que a do consentimento ou
cumplicidade107.
Como Scott (2011) demonstra em seu artigo, as diversas ações do campesinato
transformaram ou estreitaram as opções de política disponíveis para o Estado. Da mesma
maneira, Das e Poole (2008) trazem vários exemplos de como as margens estendem e
refazem os seus limites. Pensar pelas perspectivas desses autores permite, portanto, que se
quebre e que se abra a solidez geralmente atribuída ao Estado e as margens. Dessa forma,
será utilizado neste texto o termo “resistências cotidianas” para pensar as lutas diárias de
mulheres beneficiárias que vivenciam problemas relacionados à condicionalidade da
educação no PBF.
Baseei-me também no texto de Vianna (2014) que explora entrecruzamentos entre
zonas de significação nas quais familiares e militantes de pessoas mortas em contextos de
violência institucional se movem. A autora utiliza-se das expressões “Estado”, “violência” e
“gênero” na tentativa de ordenar tais zonas de significação. Aqui neste texto, da mesma
maneira e de forma fundamentalmente organizativa, nomeio de “Estado” e “Resistências
cotidianas”, as zonas de significação nas quais as beneficiárias do PBF se movem. Tais
zonas não significam antagonismos lógicos, são zonas semânticas e de ação.

A PESQUISA DE CAMPO

Era muito frequente a presença na divisão do cadastro único de mães em situação


de descumprimento das condicionalidades por falta de seus filhos à escola.108 Na grande
maioria dos casos cabia a elas a tarefa de explicar o porquê de seus filhos faltarem às aulas,
justificando com atestados médicos, laudos, etc. Os casos mais comuns narrados eram
problemas de saúde e falta de vagas nas escolas próximas de suas residências. Outros

107
Esta referência foi fundamental para pensar nas lutas diárias de mulheres beneficiárias do PBF, estas que
circulam pelos labirintos (não) estatais e que são mobilizadas e também mobilizam diversos agentes (não)
institucionais. Scott (2011) coloca em evidência a agência e a resistência nos sujeitos ditos “dominados” em
situações como, por exemplo, o silenciamento ou quietude. Estes últimos que geralmente são vistos como
formas de submissão, consentimento ou cumplicidade. Por este motivo, optei por utilizar “resistências
cotidianas” para pensar o universo privado, suas trajetórias, percepções e subjetividades. Devo reconhecer
alguns problemas, sobretudo o risco deste termo soar com certa unilateralidade, como se estas mulheres
estivessem sempre em confronto e resistindo ao Estado, o que não necessariamente acontece, além do risco
224
de preservar as divisões estanques, clivagens ou bipolaridades que busco fugir e que estou sempre em alerta.
108
Trato mais propriamente das entrevistas realizadas no balcão do cadastro único no relato de pesquisa
disponível em: http://www.revistaaskesis.ufscar.br/index.php/askesis/article/view/161
empecilhos como transporte, greves, gravidez, drogas, falta de interesse, bullying,
problemas psicológicos, morte de familiares também eram citados.
Nesses casos, a única coisa que podia ser feita no cadastro era olhar a situação da
família nos sistemas, podíamos ver o nome do filho que havia faltado e qual sua freqüência
escolar. Dávamos orientações que as crianças não deviam faltar e, se estivessem doentes,
que levassem atestado ao responsável na escola. Caso as mães fizessem isso e mesmo assim
tivessem o benefício bloqueado ou caso tenham tido outro problema mais grave, deviam
procurar a Secretaria da Educação e falar com a Flávia109.
Como os bloqueios e suspensões são feitos em certos períodos do ano, havia épocas
que quase nenhuma mãe ia ao cadastro por esse motivo. Por outro lado, quando chegava
o período de punições110 - principalmente no final do mês quando ocorriam os pagamentos
-, muitas chegavam acompanhadas de cartinhas ou extratos bancários que notificavam a
elas advertência, bloqueio, suspensão ou cancelamento do benefício. Após algum tempo
pensando sobre este tema, resolvi tentar contato com estas mulheres fora do cadastro
único, algumas me passaram seus endereços ou telefones e outras conheci indo sozinha
aos bairros. Entrevistas fora deste espaço serão relatadas a seguir111.

MARIA ANGÉLICA

Em abril de 2016, atendi Maria Angélica no cadastro. Ela pretendia atualizar suas
informações e, segundo suas palavras, “Queria tirar minha filha do Bolsa Família [de 15
anos], porque ela não está indo à escola. Mora com o namorado [de 21 anos] e está grávida
de um mês”. Entrei nos sistemas, verifiquei que Maria Angélica recebia o benefício desde
2003, apesar de alguns descumprimentos durante esse período. Atualizei suas informações
sem mexer no Cadastro de sua filha, pois considerei chamar minha chefe para resolver o
que deveria ser feito. Ela se dirigiu a nós e ouviu sua situação, de inúmeras tentativas de
conversas com a filha que nada adiantavam. Então a aconselhou que a filha viesse com o
namorado fazer um novo Cadastro para os dois, já que ele era maior de idade e os dois
residiam juntos. Somente dessa forma poderíamos retirá-la.
Continuamos a conversa sobre sua filha e, neste momento, disse a ela sobre meu

109
Flávia é assistente social responsável por questões referentes às faltas dos alunos cujas famílias são
beneficiárias do PBF.
110
As palavras em itálico fazem referência aos termos utilizados tanto por funcionários do cadastro único,
como pelas beneficiárias.
111
Nomeei cada caso com nomes fictícios, com a finalidade de garantir o anonimato aos sujeitos envolvidos.
225
tema de pesquisa. Acabei conseguindo seu contato para nos encontrarmos fora dali. Ela se
mostrou solícita a me ajudar e, ainda no mesmo mês, numa sexta-feira nublada e fria, liguei
pela manhã e marcamos um encontro naquela tarde, perto de nossas casas (morávamos
cerca de quatro quadras de distância).
Após meu expediente no estágio, peguei o mesmo ônibus de todos os dias, desci
alguns pontos mais a frente do que geralmente desço e fui encontrar Maria Angélica na
padaria próxima a nossas casas. Em direção ao ponto de encontro, caminhei pela rua que
sabia ser a dela imaginando qual deveria ser sua casa, sem ter conhecimento do número.
Sua rua possuía diferentes tipos de habitações. As casas variavam, algumas se encontravam
pouco acabadas, com construção externa sem revestimento e muros improvisados. Outras
estavam bem pintadas e com portões elétricos. Como seu bairro é próximo a UFSCar,
conjuntos de quitinetes e repúblicas também podiam ser notados.
Cheguei à padaria cerca de dez minutos antes do combinado. O tempo foi passando
e Maria Angélica não apareceu. Resolvi ligar. Depois de muito chamar, ela atendeu, disse
que estava cochilando e já iria ao meu encontro. Senti-me mal por aquela situação, de lhe
ter acordado e por estar, possivelmente, incomodando. Continuei ali, sentada em um
degrau na parte exterior da padaria enquanto a esperava ansiosamente. Aquela foi minha
primeira entrevista fora do balcão do cadastro, inaugurando a primeira experiência de
pesquisa além da chamada “etnografia de balcão”. Talvez por esse motivo estivesse tão
nervosa, chegando a suar mesmo com o tempo frio.
Notei Maria Angélica caminhando em minha direção, com suas tranças no cabelo
preso, uma calça legging cor de rosa, blusa de moletom de frio preta, meias e chinelo.
Cumprimentamo-nos e fomos caminhando até a porta de seu prédio que passei alguns
minutos mais cedo sem adivinhar ser este o dela. Em nossas primeiras palavras, Maria
Angélica diz ter dormido sem querer e eu me desculpei por ter lhe acordado. Comentou
também que seus dois filhos menores estavam em casa, já que suas escolas não dariam aula
naquela tarde.
Maria Angélica reside em um prédio de três andares. Este possui aparência de
recém-construído, pelas suas paredes não pintadas, chão apenas no contra piso,
apartamentos aparentemente vazios e cartaz de imobiliária em seu alto portão preto. Notei
que a parte interna de seu apartamento possuía um banheiro, um cômodo muito pequeno
logo na entrada que liga a cozinha e o quarto. Neste cômodo, ficava duas geladeiras, uma
delas aparentemente não utilizada, duas cadeiras de plástico, dentre muitos outros objetos.
Durante toda a entrevista permanecemos ali.

226
Quando entramos no apartamento, Maria Angélica me apresentou seus dois filhos
pequenos. Ana Maria tem oito anos, de cor preta, cabelos volumosos presos num rabo de
cavalo alto. Ela parecia ser bem alta pra sua idade, pois era quase do tamanho do seu irmão
Henrique que tem treze anos. A menina vestia um pijama azul claro de mangas e calças
compridas, este que estava curto nos seus braços e pernas, pois, segundo sua mãe, a menina
perdia muitas roupas porque crescia rápido. Henrique é de cor preta, tem cabelos curtos
e vestia bermuda e camiseta. Os dois encontravam-se no quarto que possui um beliche e
um colchão de casal no chão onde estavam deitados e agasalhados pelo mesmo cobertor.
Ele jogava videogame e ela estava no tablet. Deram-me um sorriso e um “oi” de longe.
Maria Angélica pegou uma cadeira de plástico para mim e outra para ela e as
colocou uma de frente para a outra no pequeno cômodo na entrada, de modo que ela
conseguia ver os filhos e de vez em quando falava com eles enquanto conversava comigo.
Desculpou-se por não ter um sofá. Logo que sentamos, ela ficou em silêncio, parecia
aguardar uma iniciativa minha. O único barulho presente era o do videogame. Aquela
situação me pareceu um pouco constrangedora, eu não me sentia muito a vontade e ela
também aparentava não estar completamente tranquila, parecia fazer-me favor naquela
tarde fria e nublada, com seu sono evidente, já que bocejava constantemente. Seus olhos
pareciam desviar toda vez que eu os olhava.
Iniciei aquela conversa dizendo o porquê de estar ali, expliquei sobre minha
pesquisa, tentei deixar claro que estava ali como pesquisadora e não como cadastradora.
Fiz algumas perguntas que, de início, foram respondidas bem rapidamente. Após esse
início embaraçoso, consegui levá-la para uma conversa mais longa que me contou, então,
algumas histórias e se sentiu mais livre para falar de sua trajetória de vida. Assim seguimos
e conversamos por cerca de uma hora.
Apesar da tentativa de distinguir, tanto para mim como para ela, os papéis como
cadastradora e pesquisadora, isto se tornava incabível. Essas oposições na prática não
parecem funcionar. Impossível anular minha subjetividade, valores e percepções de
mundo. O meu andar pela sua rua, tentando imaginar o que seria uma casa de beneficiária,
meu olhar observando sua casa e seus objetos pareciam não se distanciar da lógica de
cadastradora, mesmo que eu tentasse fugir disso. Claro que existem diferenças significantes
entre estar no balcão do cadastro e estar ali, mas, no fundo eu parecia fazer as mesmas
coisas: perguntas e questionários sobre sua vida.
Depois de algum tempo em sua casa, a conversa pareceu seguir mais naturalmente
e de forma mais fluída, não mais como um jogo de perguntas e respostas. Da mesma forma

227
que eu parecia não conseguir separar as lógicas de pesquisadora e cadastradora - ou, como
prefiro aqui neste texto, as zonas de significação -, tanto Maria Angélica como outras
beneficiárias dificilmente me enxergavam apenas como estudante pesquisadora. Não
distanciavam minha imagem de quem trabalhava no Bolsa Família ou na assistência.
Frequentemente me confundiam com assistente social ou psicóloga. Era recorrente,
durante as entrevistas em suas casas, tirarem dúvidas sobre o PBF ou sobre cesta básica,
por exemplo. Ademais, me justificavam os carros e motos na garagem, o tablet, o aluguel,
etc.
Maria Angélica é de cor preta e tem 38 anos de idade. Possui cinco filhos e dois
netos. O mais velho, Rafael, tem 21 e é pai de um menino de 4; Gabriela tem 19 e é mãe
de outro menino de 2; Mariana tem 15; Henrique 13 e a caçula, Ana Maria, 8. Nasceu em
Porto Ferreira, mas mudou-se há cinco anos para São Carlos, pois sua cidade natal “é muito
ruim de emprego”. Sua família era composta por ela e mais seis irmãos, entre eles três
mulheres e três homens. Seu sobrinho também foi criado desde pequeno com eles, pois
sua irmã o teve com treze anos de idade.
Rafael, Gabriela, Mariana e Henrique são filhos do mesmo pai e somente Ana
Maria é filha do último companheiro de sua mãe. Maria Angélica diz não ter sido casada
no papel, mas os dois ficaram juntos por doze anos e, somente há três, estão separados.
Atualmente eles moram próximos e se encontram quase todos os dias, porque faz visitas
freqüentes a sua filha. Ele trabalha em uma imobiliária e ajuda nas despesas da casa (“ele
paga o aluguel, por enquanto, né”), além de dar presentes a Ana Maria, como o tablet e
uma bicicleta. Já sobre seu primeiro companheiro, pai dos seus primeiros filhos, Maria
Angélica disse não ter contato e não ajudar, somente pagava pensão quando eram
pequenos, além de estar “envolvido com drogas”.
Maria Angélica estudou até a oitava série, fazia EJA até se mudar para o novo bairro
há um mês, onde as escolas próximas não tinham este curso. Ela reconhece a importância
do estudo e demonstra preocupação quanto a isso. “Depois de quase trinta anos voltei a
estudar[...] queria terminar, porque um estudo é melhor, até pra um emprego, né? Já tá
difícil, imagina pra quem não tem.”Costumava trabalhar como cozinheira escolar, porém,
no momento, encontrava-se desempregada. Neste mesmo dia pela manhã fez uma
entrevista e aguardava resposta. Tinha sido demitida há pouco tempo, mas não ganharia
seguro desemprego. Pelo que entendi, trabalhava em uma empresa terceirizada que não
tinha dado baixa na sua carteira. Já havia procurado sindicato e nada havia sido resolvido

228
até então. “O sindicato você liga e não da satisfação[...] eles deveriam dar condição pra
gente, né?!”
Sobre sua filha Gabriela que também morava em São Carlos no bairro Cidade
Aracy II, se queixa mais de uma vez durante a entrevista por já ter dado problemas
referentes à escola, além de brigar frequentemente com o companheiro e, por isso, voltava
à casa da mãe. “Dava um trabalho também, ainda bem que arrumou um moço, arrumou
barriga. Morou um tempo comigo, não tinha pra onde ir. Tem um menino de dois anos.
Aí sossegou. Pelo amor de Deus. Ela não trabalha, só ele.”
No que diz respeito à rotina da família, frequentam a Congregação Cristã do Brasil,
localizada em uma avenida perto da casa. Nos dias de semana, seus filhos vão à escola e
ficam muito dentro do apartamento. Aos finais de semana, pelo contrário, Maria Angélica
disse sempre sair com eles. Ela leva e busca todos os dias Ana Maria de bicicleta na escola,
tendo em vista que estuda distante de sua casa. Já seu filho, Henrique, estuda em uma
escola próxima e vai todos os dias a pé sozinho. Se preocupa quando levar Ana Maria não
for mais possível, pois logo precisará trabalhar. “Quando eu começar a trabalhar to até
vendo, tem uma colega minha aqui na frente, ela falou que se precisasse ela buscava e
levava.” Antes, quando trabalhava e estudava, sua rotina era:

Saía do serviço três e meia, chegava quatro horas em casa. Cinco horas
buscava ela (Ana Maria). Voltava umas cinco e meia, quinze pras seis.
Fazia comida rapidinho, tomava banho e já ia pra escola. Voltava era dez
e meia. Tinha dia que mandava ela pra casa da minha menina (Gabriela),
tinha dia que ela não queria olhar, deixava lá em casa com a outra
(Mariana), tinha dia que deixava na vizinha [Entrevista, Maria Angélica].

Trabalhando ou não, quem sempre apareceu em suas falas como encarregada de


levar e buscar os filhos na escola, bem como de resolver questões no Conselho Tutelar e
cadastro único foi ela. Seu ex-companheiro ajuda nas despesas (pelo menos por enquanto,
nas palavras de Maria Angélica) e, em nenhum momento apareceu encarregado dessas
funções.
Por um longo período na entrevista, sua filha Mariana foi o foco da conversa. Esta
reside há um ou dois meses com seu novo companheiro de 21 anos, que se encontrava
desempregado e que também recebeu críticas, assim como Mariana. As duas pareciam
discutir muito, principalmente por conta do não comparecimento à escola e de seu atual
relacionamento. É interessante observar nas falas, a presença maciça do Conselho Tutelar,

229
até como forma de amedrontar a filha. A questão das condicionalidades do programa
parece causar maiores conflitos na família.

Diz ela que na segunda-feira vai voltar pra escola. Tem a mulher do
Conselho Tutelar que tem lá sabe, ela fala “Manda ela vir, porque de vez
em quando ela vem, pega atestado médico, pra pelo menos passar esse
ano”. Ou vou ter que buscar transferência, não sei. Guardar a
transferência e levar pro Conselho Tutelar. Ah, mas Conselho Tutelar,
to tão cheia desse Conselho Tutelar... Eu já fui tanto atrás dessa menina
pra ela ficar em casa. Ela dá trabalho de um, dois anos pra cá... [pausa]
Conhece esse namorado não faz um ano, nem conhece direito. Ela
começou a namorar, desandou. Ela começou a namorar um outro
mocinho, eu peguei, peguei no pé até que largou. Aí ele foi pra Bahia.
Ela bateu o pé que ia atrás, que ia, que ia, que ia. Aí eu falei: “Pera aí que
eu vou no Conselho Tutelar agora, pego a sua guarda e dou pra mãe
dele. Se quer ir pra lá, vai lá com a guarda.” Hum, ele quis? [...] Menina
de quinze anos essa palhaçada. Eu com quinze anos, nossa, nem pensava
em namorar [Entrevista, Maria Angélica].

Interessante pontuar que Maria Angélica é beneficiária do programa há mais de dez


anos. Suas falas evidenciam, assim como de tantas outras mulheres, a construção de
conhecimento acerca do modo de funcionamento da assistência social de São Carlos, quais
tipos de discurso e postura se mostram mais eficazes quando deseja determinada demanda,
quais dispositivos podem ser acionados quando, por exemplo, sua filha menor de idade
deseja mudar de cidade com o namorado. Quando perguntei a ela se alguma outra vez teve
seu benefício bloqueado por falta dos filhos na escola, ela respondeu que sim, com os dois
mais velhos.

Com os dois mais velhos era sem vergonhice. Eles iam pra escola todo
dia, só que não entravam. A diretora no começo me ligava pra falar, eu
ia atrás onde tava, pegava e fazia ir pra escola, mesmo na segunda aula
fazia entrar. Depois não ligaram mais, achei que eles tivessem indo pra
escola, fazia tempo que não iam. Aí eu fui lá e tirei os dois. Falei: “Pode
cancelar, não vai vir mais não. Se é pra ficar na rua, melhor ficar em
casa.” E falaram: “Você vai tirar?” Não tá indo pra escola, não sei onde
tá indo, se tá aprontado. Pelo menos dentro de casa tá lá. [Pergunta: E
você tirou do Cadastro?] Não, eu tinha perdido já. [...] [Pergunta:
Alguma vez assistente social veio até aqui?] Aqui não. Lá em Porto
Ferreira sim. Falaram pra eles irem pra escola, conversaram com eles.
Mas imagina. Foram uns dias só. Fui no Conselho Tutelar, falei que eles
não estão indo, e elas falaram que não podiam obrigar eles a ir, pegar e
levar eles. Antigamente tinha, uma perua que rodeava, pegavam e
punham pra escola. Daí eles foram uns tempos. Fui lá no Conselho e
falei que ia tirar de vez, eles não estavam entrando na escola. Falaram
que eu não posso, falei que posso sim. Aqui dentro de casa tá com a
minha mãe, não na rua. Daí, pegaram, pegaram, pegaram no meu pé.

230
Depois... [pausa] Queriam que minha mãe fosse levar e fazer entrar e
voltar. Acha, minha mãe com sessenta anos vai ficar pegando marmanjo?
[Entrevista, Maria Angélica].

Maria Angélica é um exemplo de muitas mães que percorrem os labirintos das


instituições e mobiliza diferentes atores na busca de solucionar o problema da falta de seus
filhos. Da mesma forma, instituições e atores estatais também a mobilizam. A fala acima
demonstra que, apesar de até o Conselho Tutelar intervir, nada adiantava, pois seus filhos
continuavam a faltar, ficavam na rua e não na escola. A solução encontrada por ela foi
deixá-los em casa com a avó enquanto trabalhava. Mesmo que não recebesse mais o
benefício do Bolsa Família, ela preferia isso a vê-los na rua, sem saber o que faziam. Este
é um exemplo de que o Estado, apesar de tentar, não dá conta de todas as situações
cotidianas. Ele retira a autonomia de Maria Angélica para arbitrar sobre seus próprios filhos
e o resultado parece ser a intensificação dos problemas e conflitos dos quais ele mesmo se
propõem a resolver, o que demonstra que algumas técnicas para diminuir conflitos sociais
ou vulnerabilidades mostram contradições inerentes. Também é um exemplo de
resistência e negação - por parte da beneficiária -, contra a presença do Estado como forma
de gerir sua vida ou de controlar seus conflitos.
Ao mesmo tempo em que ela é alvo de moralização e transformação social, deve
seguir orientações dadas pelos programas e serviços para o fortalecimento de vínculos
familiares e o cumprimento do dever parental de garantir a educação e a saúde das crianças,
sempre na condição de mãe (GEORGES E SANTOS, 2013).

O Bolsa Família me ajuda bastante. O mês que falaram que ia cortar por
causa da Mariana, eu já fui atrás por causa disso. Não é muito, mas ajuda,
R$246,00, né? [perguntou pro filho menor que confirmou]. Já ajuda
bastante, sim. Sem serviço, sem esse benefício, nossa... [Pergunta: Você
frequenta o CRAS?] Ah, já frequentei, viu? Esses dias tava pensando em
ir lá pedir uma cesta básica. Mas minha cara queima menina, de
vergonha [Maria Angélica].

Por outro lado, Maria Angélica reconhece a importância do programa que a ajuda
muito financeiramente, principalmente na situação atual de desemprego. Porém, ir ao
CRAS ou ao cadastro parecem causar constrangimento. Isso parece deixar à mostra que o
acesso a direitos é compreendido como acesso a um “favor”.
Na visão de Santos (2014a; 2014b), as intervenções do Estado por meio dos novos
programas de proteção social voltados para as famílias – estas vistas como solução

231
humanizada para a resolução dos problemas de acesso à saúde, renda e proteção social da
população considerada como socialmente vulnerável - têm se constituído nos países da
América Latina em geral como método dominante de combate à pobreza e de proteção
social. Eles possuem, na sua visão, um duplo sentido para a população, entre o cuidado e
o controle. De um lado, um Estado mais presente. De outro, trata-se de atingir a população
em nível capilar e detectar quem se enquadra ou não nos critérios de receptividade dos
benefícios. Segundo a autora, estes também se apóiam na divisão sexual do trabalho e na
disposição feminina para o ato de cuidar.
No dia seguinte que foi atendida por mim quando nos conhecemos, retornou com
sua filha e seu genro para cadastrá-los em outra família. No fim do mês de junho, cerca de
dois meses após essa entrevista, Maria Angélica voltou novamente ao cadastro e foi
atendida por outro estagiário, ela queria saber por que o valor de seu benefício tinha
diminuído. Depois do atendimento, perguntei a ela sobre sua filha e, sorrindo, respondeu:
“no fim ela não estava grávida, acredita?”. Sua outra filha mais velha se separou e foi morar
com a avó no município de Porto Ferreira. Interessante observar que a existência da
condicionalidade da educação, neste caso muito latente, acabou intensificando os
problemas e conflitos na família.
Enquanto caminhava pela sua rua, sem perceber diferenciava uma casa de família
beneficiária e não beneficiária. Entre sua casa e a de um estudante. A zona de significação
de cadastradora do PBF, que julga muitas vezes quem deve ou não receber o benefício,
parecia permanecer em mim. Chegando a seu prédio, noto que um estudante sai de um
dos apartamentos. Por mais distante que eu imaginava estar de Maria Angélica, diversos
pontos nos entrecruzavam. Seu filho jogava futebol aos finais de semana na UFSCar, eu
passava de ônibus todos os dias pela escola que ele estudava e morávamos muito próximas.
Em certo plano, eu distinguia um bairro de estudante para de uma família beneficiária.
Mais uma vez, no plano das interações cotidianas essas bipolaridades não parecem existir
de forma rígida.

A PRIMEIRA EXPERIÊNCIA NO ABDELNUR, MAIO DE 2016

Durante o mês de maio de 2016, muitas pessoas contempladas pelo programa


federal "Minha Casa Minha Vida” e agora novas moradoras do residencial Eduardo

232
Abdelnur112, encaminharam-se ao cadastro para questionar sobre as faltas de seus filhos às
escolas. Pelo que me informavam, as escolas próximas não tinham mais vagas disponíveis
e as que tinham eram muito distantes. O acesso ao transporte público era ainda precário
ou inexistente e as mães não tinham condições de levar as crianças, pois trabalhavam e, em
muitos casos, não tinham dinheiro para o passe.
Nesse mesmo mês conversei com a minha chefe sobre este problema. Ela me
informou que algumas medidas estavam sendo tomadas, como reuniões no bairro com a
presença do Conselho Tutelar e Secretaria da Educação. Nós do cadastro, todavia, não
sabíamos ao certo o que seria feito. Apenas mandávamos as pessoas à Secretaria da
Educação falar com a Flávia. Eu a conheço muito pouco, porém, um dia ela foi a secretaria
e conversamos rapidamente sobre o assunto. Perguntei a ela como estava a questão da
dificuldade daquele bairro de acessar as escolas. Ela se mostrou preocupada, disse que não
sabia ainda como tudo seria resolvido. Disse-me também que algumas mães poderiam
perder o benefício e me perguntou: “é justo?”. No tempo que permaneceu lá, me mostrou
o Sistema Presença, onde digitaliza as frequências dos alunos. Fiquei assustada com a
quantidade de trabalho e responsabilidade em suas mãos.
Decidi ir até o Abdelnur no fim deste mesmo mês, em um sábado à tarde. Já
planejava a visita há uma ou duas semanas, mas sabia dos problemas de transporte e me
sentia um pouco insegura dada às dificuldades. Até que um amigo se ofereceu para me
acompanhar ao bairro com seu carro. Tentei buscar o endereço nos aplicativos de
navegação e nada encontrei. Procurei em alguns sites e pensei ter achado a localização
correta em um deles. Por ela seguimos por cerca de quinze minutos até chegar ao local
indicado que não era, na verdade, o bairro das casinhas113que buscávamos. Paramos o carro
e pedimos informação duas vezes até finalmente chegarmos.
Andávamos com o carro sem saber por onde começar. As pessoas haviam mudado
há apenas três semanas e, em vista disso, as casas pareciam muito novas, recém-habitadas.
Eu observava a paisagem, não havia nenhuma árvore entre as casas tão parecidas. Em sua
maioria, o que as diferenciavam eram as cortinas, cangas ou lençóis que estavam nas janelas,
tampando a visão do lado de dentro, buscando privacidade. Os vasos, flores e jardins
também serviam como identidade às casas. Pude observar, nas paredes externas, placas de
pequenos negócios como, por exemplo, “manicure e pedicure”, “vendo assados aos

112
No dia 26 de abril de 2016, as chaves deste novo residencial foram entregues às 986 famílias contempladas.
Nome utilizado no cadastro único, Prohab e entre moradores. “Casinhas” não diz respeito somente às
113

casas do Residencial Eduardo Abdelnur, como também as de outros bairros construídos pelo programa
federal Minha Casa Minha Vida, como o Jardim Zavaglia, por exemplo.
233
domingos”, etc. Areias, tijolos e materiais para construção também compunham o
ambiente. Alguns muros começavam a ser levantados.
Fazia um pouco de frio e o céu estava nublado. Pelas calçadas e ruas, crianças
brincavam, jogavam bola e as pipas preenchiam o céu. Em um amplo espaço no fim do
residencial estava o esgoto a céu aberto. Ali, muitas crianças brincavam, rolando pelos altos
montes de terra que pareciam ter sido tirados daquele grande buraco para construção do
esgoto. A presença dos cachorros marcava as ruas, o que nos obrigava a dirigir bem devagar
e com atenção. Músicas em alto volume tocavam nas casas. Era uma vizinhança que parecia
não se conhecer ainda. Tudo parecia novo para aqueles moradores.
Percebia que, por onde passávamos, as pessoas observavam, provavelmente
conscientes de que éramos de fora. Dado o estranhamento, eu não sabia por onde
começar. Até que, no quintal de uma das casas, vejo uma mulher de rosto conhecido.
Imaginei que a conhecia do cadastro. Nossos olhares se entrecruzaram e, sem coragem,
não consegui parar. Demos uma volta no quarteirão até tomar coragem para voltar.
Paramos o carro, desci sozinha e fui em sua direção. Apresentei-me, perguntei se, por
acaso, já havíamos nos visto pela secretaria e ela disse que sim, também se recordava de
mim. A entrada com uma interlocutora foi muito mais fácil do que eu imaginava.
Aquela foi a primeira vez que fui ao Abdelnur. Percebi que naquele ambiente -
onde muitos são beneficiários do PBF -, poderia ser um espaço promissor à minha
pesquisa futura de mestrado. Em apenas duas horas, conversei com quatro mulheres,
sendo três beneficiárias. Todas enfrentavam problemas de acesso às escolas114. Naquele
bairro, mães caminhavam por horas para levar seus filhos, outras pagam vans ou, ainda,
deixaram o trabalho. Algumas crianças do bairro continuam sem estudar. Se nada fosse
feito, muitas mães poderiam ter seus benefícios bloqueados ou suspensos por falhas que,
com certeza, não eram delas.

MARIA BETHÂNIA

Era começo do mês de maio, uma segunda-feira, dia comum na rotina do cadastro
único. Por volta das oito horas da manhã, chamei a primeira pessoa do dia e se dirigiu a
mim Maria Bethânia. Com seus 43 anos, de cor parda e cabelos alisados no ombro. Pela
sua fala lenta e tom de voz baixo, me inclinei na cadeira de modo que pudesse me

114
Tais entrevistas não serão apresentadas neste texto dada a limitação de espaço.

234
aproximar um pouco mais para lhe escutar. Suas costas eram um pouco curvadas e era
perceptível em seu rosto algumas manchas, além de me parecer um pouco abatido (não
sabia se de tristeza ou cansaço).
Maria Bethânia reside atualmente com seus quatro filhos - os quais três são homens
com idades de 5, 21 e 23 e uma menina de 14 - no Abdelnur. Os dois primeiros filhos
possuem o mesmo pai que não possuem contato. A menina é filha de outro pai que a ajuda
e o menor é filho de seu último companheiro. Ela queria atualizar seu endereço no
Cadastro para pegar as declarações de descontos de luz, água e IPTU, porém não pude
fazer já que não tinha, ainda, comprovante de residência. As casas ainda não possuíam
comprovantes de residência e não conseguíamos fazer as declarações.
O outro motivo pelo qual foi até o cadastro era para tirar dúvidas sobre sua filha
Duda que estava faltando à escola, o que fez com seu benefício fosse bloqueado. Segundo
ela, a adolescente não queria ir às aulas por um acidente há dois anos, além da mudança
pra nova casa que era muito distante e por não ter ônibus que a leve, sendo obrigada a
andar por longa distância. Naquelas semanas, várias pessoas já haviam reclamado sobre o
mesmo problema.
A beneficiária chegou a me perguntar se poderia tirar Duda do Cadastro115, já que
ficava alguns dias na casa do pai. Quando lhe disse que isso só seria possível caso o pai
tivesse a guarda da filha, ela foi explicando melhor o que se referiu anteriormente de
“acidente”. Contou-me que Duda foi vítima de assédio sexual pelo ex-padrasto, o qual
esteve casada por aproximadamente doze anos e que era pai de seu filho menor. Pelo que
pude entender, os assédios já ocorriam desde quando a adolescente tinha oito anos de
idade, mas há apenas dois anos começou a apresentar alguns comportamentos “estranhos”
e finalmente lhe contou. Segundo Maria Bethânia, sua filha “às vezes se corta [nos pulsos],
fica mal, acha que está sendo perseguida, tem medo” e não tem frequentado as aulas,
motivo pelo qual o benefício foi bloqueado. Maria Bethânia se separou após isso, o
denunciou e também buscou ajuda com assistentes sociais e psicólogas.
Orientei a beneficiária que deixasse Duda no Cadastro, para não interferir no
possível acompanhamento das assistentes sociais. Ela concordou e disse que não queria

115
Era muito comum no cadastro aparecerem mães querendo excluir seus filhos. Isso ocorre por motivos
diversos como, por exemplo, casamento, prisão, trabalho que aumenta a renda familiar, falta nas escolas,
mudança para casa de outros familiares, etc. Quando são menores de idade, somos orientados a pedir uma
cópia da guarda da criança que esteja com algum maior responsável ou um registro escolar caso a criança
esteja estudando em outra cidade. Para não perderem seus benefícios, muitas querem retirá-los quando estão
tendo problemas de faltas ou até mesmo quando estão com carteira registrada, o que faz com que a renda
fique superior ao permitido pelo programa. 235
tirar exatamente por esse motivo. Informei onde era a Secretaria da Educação - lugar que
poderia falar com a Flavia para resolver as questões escolares -, também perguntei se já
havia procurado algum tipo de ajuda. A jovem, segundo ela, estava em filas de espera para
atendimentos psicológicos na UFSCar e na prefeitura. Depois desta nossa conversa, Maria
Bethânia foi embora.
Com o decorrer do tempo no estágio, a rotina e a repetição de cenas semelhantes
faz perceber alguns elementos que são ocultos nos momentos inicias. Exemplo disso são
algumas situações que se tornam familiares e previsíveis na atuação de algumas
beneficiárias. Percebia algumas manobras, por já terem conhecimento da lógica do
programa, que elas se utilizam para determinada necessidade. Neste caso, como Maria
Bethânia sabia que poderia perder seu benefício já que sua filha faltava, quis retirá-la
dizendo morar com seu pai, porém, na verdade, a filha residia com ela. Quando lhe disse
que talvez fosse importante deixá-la, através de negociação e da interação produzida ali, ela
voltou atrás na sua escolha.
Naquele mesmo mês, Maria Bethânia voltou com o comprovante de residência e,
por coincidência, foi atendida por mim. Logo a reconheci e perguntei como estavam as
coisas. Disse-me que Duda voltou a frequentar a escola e que passou a se relacionar com
meninas. Quanto a isso, disse não ter nada contra, mas demonstrou certo desconforto.
Também falou que Flávia havia mandado um ofício a Wiviane - Secretária Municipal da
SMCAS na época - e, então, seu benefício foi liberado. Não sei ao certo como Wiviane
conseguiu liberar o benefício, mas, percebe-se que em alguns casos, o mais alto escalão da
assistência é acionado para resolver a situação rapidamente, o que talvez demorasse ou
nem sequer fosse resolvido apenas por Flávia.
Perguntei a Maria Bethânia se sua filha estava fazendo algum tratamento e ela
respondeu que ainda aguardava nas filas. Conversei sobre minha pesquisa, disse que
pretendia ir novamente ao seu bairro e, se não fosse contra sua vontade, gostaria de
encontrá-la por lá. Passou-me seu endereço e mostrou-se muito solícita.

A SEGUNDA EXPERIÊNCIA NO ABDELNUR, JUNHO DE 2016

Estava me programando para voltar ao Abdelnur no mês de junho. Fiquei muitos


dias pensando se deveria ir até a casa de Maria Bethânia. Senti-me bem confusa. Ainda em
casa, digitei o nome “Eduardo Abdelnur” no aplicativo de navegação e, diferente da
primeira vez que fui ao bairro, ele localizou o endereço. Seguimos de carro, eu e um amigo,

236
pelo caminho indicado até o Residencial que se encontrava a quase dez quilômetros de
distância da minha casa. Pensando na cidade de São Carlos, esta distancia é considerada
grande. Desta vez a ida foi muito mais tranquila, o dia estava bem ensolarado e
conseguimos chegar em aproximadamente vinte minutos.
Em um mês pude notar algumas diferenças no bairro. Mais muros, portões altos e
tijolos pelas ruas. A circulação de pessoas era maior, muitos conversavam fora de suas
casas, mais pipas compunham aquele território e mais crianças brincavam. O ambiente de
um mês atrás se alterou dando mais vida ao bairro, ao mesmo tempo em que as casas
começavam a se tornar mais individualizadas.
Chegando lá, paramos o carro, desci sozinha e toquei a campainha. Um homem
gritou e apareceu na janela perguntando quem eu era e então respondi que procurava por
Maria Bethânia. Logo me deu um frio na barriga, imaginando que aquela voz poderia ser
do seu ex-marido. Ele, então, informou que ninguém com esse nome morava ali. Quando
olhei na placa que informava o número da rua na esquina, percebi que estava no local
errado. As ruas estavam numeradas e ainda não possuíam nomes, isso dificultava para
encontrar o endereço. Finalmente encontramos sua casa e logo avistei Maria Bethânia
comprando um picolé para seu filho menor, junto com Duda. Enquanto estava no carro,
nossos olhares se cruzaram. Desci e fui a sua direção. Ela me reconheceu e perguntou se
eu ainda estava no cadastro, disse que sim e perguntei se poderíamos conversar.
Comprei um sorvete, menos por vontade de tomá-lo, mais como tentativa de
informalizar aquela situação. Seu filho menor insistia para brincar na rua contra a vontade
da mãe que o trouxe para dentro de casa, porém, logo depois, foi para a rua de novo. Maria
Bethânia me convidou para entrar e apresentou seus filhos maiores que estavam na sala,
um deles mexia no computador, o outro estava deitado em um dos sofás. Um primo deles
também me foi apresentado, este que mexia no celular em outro sofá.
Maria Bethania pegou um banco para mim, sentou ao meu lado no chão e ficamos
no quintal conversando por cerca de quarenta minutos. Peguei meu celular e gravei nossa
conversa com sua permissão. No início, sua filha Duda mexia no celular em pé ao nosso
lado, também saía da casa para olhar o irmão na rua. Em alguns momentos, intervinha e
perguntava algo à mãe, como quando perguntou sobre seus chinelos que não encontrava,
pediu os da mãe sem sucesso e quis saber onde ficava a rua doze, pois queria encontrar
sua amiga. Saiu descalça, voltou após alguns minutos e calçou uma sapatilha. A mãe pediu
que trocasse de shorts, pois o considerava aquele muito curto deixando-a “pelada na rua”.
Duda respondeu “deixa meu shorts” e saiu sem se despedir.

237
O portão alto e muro recém-construído me chamaram atenção, bem como uma
moto bonita e grande. Reparei que era uma “Kawasaki” branca. Também pude observar
uma moto “velotrol” pequena de criança ao lado. Maria Bethânia falou sobre aquela moto
algumas vezes durante a conversa, parecendo se justificar, dizendo ser do seu filho maior
que ainda pagava por ela.
Os dois filhos mais velhos de Maria Bethânia estavam sem trabalhar e estudar, um
deles terminou o ensino médio e deseja fazer faculdade em São Paulo, o outro estudou até
a sexta série e não pensa em voltar à escola. Sua mãe já o matriculou algumas vezes e ele
desistiu. Dessa forma, nenhum deles ajuda financeiramente em casa, nem o pai dos dois
maiores, nem o do filho menor. Já o de Duda a ajuda com duzentos reais por mês. A renda
da casa é, portanto, do “bico” que faz em uma pizzaria.

To com muita dívida. Mas eu to bem, tirando as dívidas. Fico pagando


uma coisa e deixo outra. A única coisa que não to deixando atrasar é a
casa. [Qual o valor da parcela?] É 25, pouquinho. Graças a Deus que
ganhei, a assistente me ajuda com cesta. Ela sabe o meu caso, ela me
acompanhou muito tempo. Ela me acompanha faz anos, sabe que meu
filho tem moto, mas me ajuda. Ele comprou numa fase muito ruim. Não
tinha necessidade de comprar agora, tinha que ajudar eu primeiro.
Quem vê pensa que tem, mas estamos numa dificuldade. Mas graças a
Deus to conseguindo levar. As assistentes sempre vinham, aqui só vieram
duas vezes, mas lá [na sua antiga casa] sempre iam [Entrevista, Maria
Betânia].

Como já mencionado aqui, Maria Bethânia é mais um caso frequentemente


acompanhado pelas assistentes sociais, parece receber cesta básica de forma regular, como
relata acima. Em vários momentos da entrevista, ela afirmou que a situação de sua filha
estava melhor nas últimas semanas, mas não deixou de demonstrar preocupação com ela,
citou em alguns momentos as tentativas de conversas em vão. “Ela está mais encabeçada,
as amigas ajudam ela. Faz uns quinze dias que parou de se cortar, de escrever cartinhas que
ia se matar. Ela escrevia e jogava embaixo da cama”. Ainda assim, Duda continua faltando
à escola, como relata a seguir.

Antes tinha muito problema, gritava. Eu não sabia o que era, brigava com
ela pra ir à escola e então ela decidiu contar. [...] Ela falta ainda sim,
chega dia de semana ela falta dois, três dias, na semana. Mas não era que
nem antes. Primeiro faltava de quinze dias. Cheguei a perder a Bolsa
mesmo, por um ano, porque não tinha jeito, não podia correr atrás, ela
não ia pra escola [...] Tem bastante criança nessa situação, no CREAS
mesmo quando ela passava, eram umas coisas muito fortes, de avô, de

238
pai, então tem meninas que... a Duda está se reerguendo, mas tem
meninas que ficam doentes, não conseguem sair na rua, que estão com
problemas sérios mesmo, sabe? Então passam essas daí primeiro, com
razão, né? [Pergunta: E o seu ex marido?] Denunciei, tá lá na delegacia
da mulher. Não aconteceu nada até agora. [Pergunta: E você não tem
contato?] Tenho, agora tenho porque ele é pai do meu filho menor, né?
Vira e mexe ele vem ver. [E seus outros filhos falam com ele?] Sim, se
dão bem, conversam normal, visitam a casa dele. Até a Duda voltou a
conversar normal. Eu separei, foi uma luta pra mim, dois anos na luta e
hoje nem parece. Ela anda até de carro com ele, conversa normal, como
se não tivesse acontecido nada. Então por isso eu parei de correr um
pouquinho atrás, porque acho que tem criança que precisa mais.
Conversei com ela, não sei, pode ser um problema também, ela leva tudo
normal, fala que não aconteceu nada. Foi uma luta, uma guerra. Nem
parece que passei por tudo isso [Entrevista, Maria Bethânia].

Maria Bethânia parece fazer uma hierarquia de sofrimentos, comparando sua filha
com outros casos de meninas que também sofreram abuso e, segundo ela, possuem
problemas mais sérios por não saírem de casa, não seguirem a vida. Colocando-a em um
nível hierárquico “menos pior”, justifica e compreende o não atendimento. Também diz
ter pessoas em situações piores que a sua, comparando àquelas que pagam aluguel.
Em dado momento da nossa conversa, Maria Bethânia pediu licença para temperar
o feijão para os filhos que ainda não haviam almoçado. Ela tinha um pouco de pressa, pois
logo teria que sair para trabalhar no bico da pizzaria. Pensei que talvez estivesse
atrapalhando, conversei mais alguns minutos com ela e me despedi. Como já havia feito na
outra ida ao Abdelnur, pretendia conversar com mais mulheres, mas após a entrevista com
Maria Bethânia, só queria ir embora. Demorei alguns dias para conseguir ouvir as
gravações e escrever.

CONCLUSÕES

Nas falas acima, há um estoque de palavras-atos, uma variedade semântica e de


ações mobilizadas pelas beneficiárias. Nomeei aqui de forma organizativa como “Estado”
e “Resistências cotidianas” que indicam zonas de significação nas quais elas se movem.
Essas zonas de significação são como se fossem dobraduras em movimento, em trânsito,
dentro de um processo dinâmico que possibilita ações. “Estado” compreende palavras
como “escola”, “creche”, “assistente social”, “menor aprendiz”, “escola para jovens e
adultos”, “Conselho Tutelar”, “psiquiatra”, “psicólogo”, “médico”, “greve”, “atestado”,
“delegacia da mulher”, “centro de especialidade”, “CRAS”, “UFSCar”, entre outras que

239
são pronunciadas. Cotidianamente, estas mulheres circulam por esses espaços estatais e
interagem com agentes estatais, são mobilizadas e os mobilizam, refazendo seus limites.
Ações como “já ralei muito”, “consegui realizar esse sonho”, “cuidar do bebe”, “levei
no hospital”, “peguei atestado”, “levar/buscar na escola/creche”, “atualizar o bolsa família”,
“me formei”, “fazia comida”, “ia pro serviço”, “voltava do serviço”, “fui fazer a inscrição”,
“pegar transferência”, “levar pro Conselho Tutelar”, “eu ia atrás”, “foi uma luta”, “faço
bico”, “juntar a mulherada” compõem o que denominei de “resistências cotidianas”.
Analisando o material obtido na monografia, percebe-se pelas falas das mães que
as faltas de seus filhos à escola se referem, muitas vezes, às insuficiências de outras políticas
sociais como trabalhistas, de saúde, transporte, educação e assistência social. Exemplos
como falta de transporte, de vagas nas creches e escolas próximas, problemas psicológicos
e de saúde, gravidez, bullyng, greves, entre outros, justificam a situação de
“descumprimento” da condicionalidade da educação. Muitas falas fazem referência a
problemas sociais mais estruturais, porém, em alguns casos a culpabilização aparece no
plano individual, como se o indivíduo fosse culpado pelos problemas que enfrentam. Isto
aparece em falas de beneficiárias e de técnicos. Outras falas de mães, por sua vez,
questionam o Estado, a falta de transporte, de vagas, de emprego e não se culpabilizam ou
não responsabilizam seus filhos por tais faltas.
O que se percebe é que as mulheres aparecem na maioria das situações como as
responsáveis e encarregadas de resolver tais problemas relacionados à educação, saúde e
assistência. A responsabilização recai sobre elas, não tanto sobre a execução das políticas.
A monitorização em si mesma parece aplicada às famílias, não tanto às políticas e ao poder
público como concebido. Pode-se afirmar que é a mulher - na condição de mãe, dentro da
lógica conservadora da divisão do trabalho e da disposição feminina para o cuidado - quem
recebe as orientações dadas pelo governo para cumprir o dever parental de garantir a
educação e a saúde dos filhos. É indiscutível que o benefício do programa ajude às
mulheres beneficiárias no que se refere ao emponderamento financeiro, porém, parece
não causar efeito direto sobre o empoderamento de gênero.
Como alguns casos demonstram, é preciso atentar-se que identificar quadros de
vulnerabilidades significa, muitas vezes, um processo de construção do público alvo que se
baseia em um conjunto de valores morais que constroem aquele que é capaz de sofrer
intervenção estatal, aquele que não tem capacidade de gerir sua própria vida. Ademais,
outras situações demonstram que mesmo com a intervenção estatal na busca de “apaziguar”
conflitos, as soluções encontradas acabaram por intensificá-los, o que traz à tona que

240
algumas técnicas para diminuir conflitos sociais ou vulnerabilidades mostram contradições
inerentes.
O cadastro único em São Carlos, lidando com recursos limitados na assistência,
deixa a mostra alguns resquícios de uma cultura que prega que os serviços públicos devem
ser direcionados, exclusivamente, aos pobres. O que se observa é uma objetivação da
intervenção através da construção de públicos alvos e, dessa forma, a tentativa de falar em
universalização dos direitos não dialoga com as práticas cotidianas vividas neste universo.
Ademais, o que se nota na rotina do cadastro parecem ser resquícios de padrões de
relações sociais não mediadas pelo direito, o acesso a eles é compreendido por muitos dos
beneficiários e técnicos como um acesso a um favor.
Meus lugares de fala como estudante pesquisadora e, simultaneamente,
cadastradora, na prática não conseguem se dissociar, mesmo quando fui aos bairros
sozinha. Estas duas zonas de significação podem trazer vantagens à pesquisa, como um
contato prévio ao campo e o conhecimento do funcionamento de parte da rede de
assistência social de São Carlos, porém, acaba por interferir tanto no olhar de minhas
interlocutoras sobre mim, como o meu sobre delas. São diferentes lugares de fala, zonas
de significação nas quais me movimento e que, por vezes, se entrecruzam.
Tomando como pressuposto os direitos sociais nos termos de Vera Telles (1998),
percebe-se que as beneficiárias estão na constante busca, defesa de/por direitos, apesar de
não utilizarem tais termos em suas falas. A exposição dos sofrimentos e dificuldades da
vida também pode ser considerada mecanismos de denúncia e forma de situar-se no
mundo. Os labirintos que percorrem, instituições e agentes que mobilizam, recursos e
instrumentos que se valem evidenciam suas “resistências cotidianas”. Por outro lado, o
acesso a tais serviços sociais básicos como saúde, educação e assistência social, longe de
serem universais, são restritos e focalizados. Para acessá-los elas são obrigadas, por vezes,
a perder sua própria autonomia como mulheres e sua capacidade de gerir a própria vida e
de seus filhos. Este processo perverso acaba por ofuscar a escassez de medidas reais como
o acesso à qualificação, trabalho e creches.
Segundo Sorj (2014), há um paradoxo nestas políticas focalizadas nas mulheres: ao
mesmo tempo em que promovem uma reforma da subjetividade ancorada no
desenvolvimento de self ativo e individualizado das mulheres, estas se chocam com as
normas tradicionais de gênero que colocam as mulheres como “cuidadoras dos outros”.
Esta pesquisa mostrou, ainda, a não solidez que geralmente é atribuída ao Estado,
bem como a fixidez das polaridades que são normalmente produzidas entre este e as

241
margens. Acaba por destacar a própria confusão intrínseca ao processo de fabricação
contínua do aparelho estatal, é mais um exemplo de como as margens estendem e refazem
os seus limites, de como ele é formado cotidianamente na vida diária.

SIGLAS E ABREVIAÇÕES

CRAS – Centro de Referência de Assistência Social


CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social
EJA – Educação de Jovens e Adultos
MDSA – Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário
PBF – Programa Bolsa Família
PMCMV – Programa Minha Casa Minha Vida
PROHAB - Progresso e Habitação de São Carlos
SIBEC - Sistema de Benefícios ao Cidadão
SICON – Sistema de Condicionalidades
SMCAS – Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social

REFERÊNCIAS

DAS, Veena; POOLE, Deborah. El estado y sus márgenes. Etnografías comparadas.


Cuadernos de Antropología Social, n. 27, pp. 19-52, 2008.

GEORGES, Isabel; SANTOS, Yumi Garcia dos. A produção da demanda: viés


institucional e implicações políticas da terceirização do trabalho social na periferia de São
Paulo. In: CUNHA, N.; FELTRAN, G. (Orgs.) Sobre Periferias. Novos conflitos no Brasil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Lamparina, 2013. pp. 159-177.

SANTOS, Yumi. Garcia dos. As mulheres como pilar da construção dos programas
sociais. CRH [online], Salvador, v. 27, n. 72, p. 479-494. Set./Dez. 2014a.

SCOTT, James C. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira de Ciência


Política, n. 5. Brasília, pp. 217-243, Jan./Jul. 2011.

SORJ, Bila. O care na nova Família, trabalho e religião das mulheres assistidas em São
Paulo agenda de combate à pobreza no Brasil. Document de Travail du Mage. v. 18, p.
359-365, 2014.

TELLES, Vera. Direitos sociais: afinal do que se trata? Revista USP. São Paulo, v. 37, pp.
34-45, 1998.

VIANNA, Adriana. Violência, Estado e Gênero: Entre corpos e corpus entrecruzados. In:
LIMA, Antonio Carlos de Souza; GARCIA-ACOSTA, Virgia. (Org.). Margens da
Violência: Subsídios ao estudo do problema da violência nos contextos mexicano e
brasileiro. Brasília: ABA, 2014, v. 1, p. 209-237.

242
O PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E A QUESTÃO DO
SILENCIAMENTO DA MULHER NA PERIFERIA

Eduardo Sales de LIMA116

Resumo: Políticas públicas (de âmbito local ou nacional) que propõem favorecer a participação
política esbarram em circunstâncias constituídas em diversos patamares. Dentre elas, está o abuso
de poder institucional contra a mulher pobre. Somado a isso, o estigma de ser beneficiária do
programa Bolsa Família carrega consequências diretas quanto ao silenciamento de determinada
parte deste grupo social. Neste cenário, este trabalho, de caráter qualitativo, destaca discursividades
de mulheres que verbalizam sujeitos negligenciados. Por ocasionar um maior contato das famílias
com equipamentos públicos (como escola, posto de saúde e CRAS) o programa federal Bolsa
Família gera consequências em diversos níveis na vida dessas mulheres. Ao passo que aprendem
noções mínimas de cidadania, testemunham também a falta de transparência (no caso de bloqueios
do BF quase sempre mal explicados) e, segundo relatam, a “má vontade” de funcionários,
provocando sentimentos de humilhação e indignação. Ao escutar bolsistas do bairro de São Miguel
Paulista, zona leste do município de São Paulo, atentamos em como a violência institucional,
especificamente junto a este grupo social, ligada à histórica dominação masculina, limita os sentidos
e as posições do sujeito, às quais ele é impedido de ocupar. Entretanto, a depender de como é
implementado em determinado território, o programa Bolsa Família pode oferecer instrumentos
às mulheres para que se emancipem e ocupem o espaço público, favorecendo a construção de
autonomia, autoestima e novas práticas familiares. Portanto, a forma de implementação do cartão
sob a responsabilidade da mulher pode apontar para diferentes sentidos: pode tanto auxiliar o
enfrentamento de algumas formas de violência institucional quanto aprofundar o controle social e
o silenciamento político sobre a titular.

Palavras-chave: Bolsa Família. Mulheres. Periferia. Violência institucional.

INTRODUÇÃO

O domínio do poder patriarcal e do Estado sobre o corpo da mulher afeta todo o


seu modo de vida e, por consequência, sua relação com o espaço público. O tema se
complexifica ao passo que abordamos nesta relação a mulher pobre e que vive um bairro
periférico da cidade de São Paulo. Território com seus códigos de conduta e tramas de
poder específicos que carregam, entre outras características, a legitimação da violência
institucional.
Esta pesquisa de caráter qualitativo117 destaca cenários e escuta de discursividades
com o intuito de desvelar processos ideológicos de silenciamento político de mulheres a

116 Doutorando em Humanidades, Direitos e outras Legitimidades; USP, campus de São Paulo (SP).
Correio eletrônico: edusadeli@gmail.com
117 Pesquisa baseada na dissertação de mestrado “As interfaces entre o Bolsa Família e a identidade
periférica à luz do fortalecimento comunitário”, em que foram realizadas no bairro 27 entrevistas no bairro
de São Miguel Paulista, situado na zona leste do município
243 de São Paulo. O início do trabalho de campo
partir do âmbito institucional, familiar e territorial, enquadrando-as a funções determinadas
na sociedade. Em específico, este estudo tem como objeto interdições familiares,
constrangimentos e violências institucionais na periferia paulistana junto a mulheres
titulares do programa do Bolsa Família, que, por mais heterogêneos que sejam seus efeitos,
aproxima o Estado da população mais pobre, cobrando contrapartidas que beneficiam a
família bolsista.
A aprovação da Constituição de 1988 significou avanços sociais. Como afirma
Bichir (2011, p.64), a Carta Magna apresenta amplo programa de políticas públicas
inclusivas e distributivas, por meio de suas “cláusulas transformadoras”. “A 'cláusula
transformadora', como o artigo 3º da Constituição de 1988, explicita o contraste entre a
realidade social injusta e a necessidade de eliminá-la” (idem). “Seu sentido foi o de dar
força e substrato jurídico para a mudança social” (REGO; PINZANI, 2014, p.170).
Por sinal, a participação social no programa federal Bolsa Família está garantida
desde 2004 (Lei nº. 10.836/04), com a criação das Instâncias de Controle Social (ICS),
compromisso colocado aos municípios em 2005 (Portaria nº. 246/05). Contudo, ao
apontar os altos custos da participação nessas instâncias, especialmente para a população
mais vulnerável (Hevia, 2007; Tapajós e Quiroga, 2010; in Bichir, 2011, p. 88) o governo
federal demonstra que a pauta “participação social” não é prioritária no programa. Neste
sentido, a disputa orçamentária também é política.
Dada a capilaridade do programa e a noção de que os efeitos de políticas públicas
não são homogêneos, as mudanças propostas em sua gênese nem sempre se realizam. Em
alguns casos, o sentido de participação já fora capitalizado por outros grupos que não a
comunidade beneficiada, como organizações sociais, vereadores e subprefeituras.
Embora existam diversas questões a ser solucionadas, concordamos que o BF
favorece a criação e a ampliação de espaços pessoais de liberdade dos sujeitos (REGO e
PINZANI, 2013), trazendo-lhes, consequentemente, mais possibilidades de autonomia
para a vida em amplos aspectos, e favorecendo o desenvolvimento de capacidades de
programação mínima da vida. É como se o beneficiário da política pública, seja na periferia,

datou de outubro de 2014, concluído em dezembro do mesmo ano, durante as disputas eleitorais à
presidência da república. A maior parte das (os) entrevistadas (os) da pesquisa recebiam até então R$ 77.
Três subgrupos entrecruzavam-se: mulheres acima de 30 anos de idade, negras e nordestinas. No bairro de
São Miguel Paulista localizam-se os 21.750 titulares beneficiados pelo programa Bolsa Família. Situações de
diversidade na formação familiar formam outra constância entre os entrevistados. Cerca de metade das
mulheres com quem conversamos ou já estavam divorciadas ou em processo de separação de seus maridos,
244 assim como a responsabilização familiar.
dado que reforça a importância da titularidade feminina
no sertão ou na floresta, adquirisse mais um recurso para a “agir no mundo em sentido
amplo” (ARENDT, 2004 apud REGO; PINZANI, 2014, p. 84).
Dentre os functionings118 motivados pela renda do programa federal, Rego e Pinzani
(2014) apontam para a capacidade de a bolsista assumir responsabilidade pelas próprias
ações sem obedecer a mecanismos inexoráveis de comportamento impostos pelas
carências materiais e pelo ambiente social mais imediato (em particular pelo marido e pela
família).
Entretanto, a partir de nosso lugar de escuta, notamos a privação da voz das bolsistas
não somente por parte de agentes de instituições, mas também pelos papéis que são
obrigadas a exercer no âmbito privado familiar. Nesta perspectiva, concordamos que a falta
de reconhecimento do indivíduo como sujeito por parte daqueles que o silenciam expõe
também que “não querem ouvi-lo ou até não querem vê-lo, como se além do silêncio lhe
fosse imposta a invisibilidade (REGO; PINZANI, 2014, p. 235). Este “olhar” tende a forçar
a mulher pobre a internalizar “a imagem negativa construída pelo resto da sociedade e se
culpam pela sua situação, tornando-se vítimas do discurso de autolegitimação formulado
pelos grupos dominantes” (idem).

ABANDONO E VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL

Alguns autores, como Bichir (2011), defendem a Constituição de 1988 como um


marco importante por finalmente reconhecer a assistência social como política pública no
âmbito do tripé da seguridade social (saúde, previdência e assistência social), além de
estabelecer os princípios da descentralização, da participação social e da integralidade da
assistência.
A implementação de um sistema para a área da assistência social, o SUAS119,
progrediu, entretanto, somente a partir da PNAS120, em 2004, significando um aporte
organizacional fundamental para a realização do programa Bolsa Família121. Reconhecido

118 Termo elaborado por Amartya Sen (2011). Andar de bicicleta, por exemplo, significa estar engajado em
uma atividade (nesse caso por meio de um instrumento, a saber, a bicicleta), portanto é um functioning. Para
Sen a questão a saber é a razão que leva o ciclista a andar de bicicleta. Um rico executivo com consciência de
ecologista que vai de bicicleta até seu escritório e um trabalhador pobre que vai de bicicleta até a fábrica onde
trabalha estão compartilhando o mesmo functioning, mas por razões e contextos profundamente diferentes
(SEN, 2011 apud REGO; PINZANI, 2014).
119 Sistema Único de Assistência.
120 Política Nacional de Assistência Social. 245
121 Originado no bojo institucional desse processo, o Programa Bolsa Família foi instituído por medida
provisória em outubro de 2003 e transformado em lei em janeiro de 2004.
pela burocracia federal da área da assistência, o SUS foi o modelo seguido pelo SUAS em
seu processo de desenvolvimento e nesse novo modelo a proteção social passou a contar
com equipamentos públicos responsáveis por prestar serviços diretamente à população,
bem como pela articulação da rede de serviços sócio-assistenciais, com ênfase aos CRAS122,
porta de entrada para a proteção básica, e os CREAS123, destinados à proteção especial.
O CRAS recebeu maiores atribuições quando “a proteção social passou a contar
com equipamentos públicos responsáveis por prestar serviços diretamente à população,
bem como pela articulação da rede de serviços sócio-assistenciais” (BICHIR, 2011, p. 72-
73). Assumiu assim o “rosto institucional” do Estado junto às bolsistas quando passou a
cadastrá-las no Programa federal do Bolsa Família.
Em contato frequente com este órgão está Patrícia, de 32 anos de idade.
Responsável financeiramente por sua família, ela está entre as muitas mulheres que
frequentam com assiduidade equipamentos públicos como o CRAS de São Miguel
Paulista124, hospitais públicos e postos de saúde do bairro, e que enfrentam (ou já
enfrentaram) algum tipo de violência institucional.
Patrícia descreve: “Eu fui lá com a minha mãe. Por ela ser de idade a gente saiu
daqui 4h30 da manhã pra ser atendido às 10h da tarde, da manhã. A gente chegou lá, fica
na fila, espera a boa vontade deles chegarem, pra dar uma senha. E não tem preferencial,
quem chegou pega senha pra depois você ser atendido. E não é... O tanto que você fica lá
em pé esperando a boa vontade deles, quando vai te atender não te atende bem […] a gente
chegou lá 4h30 pra ser atendido 10h40. Acho que umas 4 horas em pé lá, em pé, que não
tem nenhum lugar pra sentar. […] É em pé... Aí que eles vão atender, vão bater lá no
computador e não dá a informação que a gente precisa”.
Importante notar que as famílias bolsistas do BF devem cumprir condicionalidades,
como manter crianças e adolescentes em idade escolar frequentando a escola e cumprir os
cuidados básicos em saúde, seguindo o calendário de vacinação para as crianças entre 0 e
6 anos, e a agenda pré e pós-natal para as gestantes e mães em amamentação (BICHIR,
2011). O descumprimento dessas condicionalidades pode levar ao cancelamento dos
benefícios.

122 Centro de Referência de Assistência Social.


123 Centro de Referência Especializado de Assistência Social.
124 O CRAS de São Miguel Paulista está entre os 17 presentes na Zona Leste, região que conta com a maior
rede socioassistencial da cidade de São Paulo. São 321 serviços de Proteção Social Básica e 179 de Proteção
Social Especial (de média e alta complexidade) e 08 CREAS (SMADS, 2014).
246
Abre-se caminho para a quebra do círculo vicioso do trabalho infantil, do abandono
escolar, da perpetuação do analfabetismo e, por consequência, a impossibilidade de sair
da miséria por meio da educação; “além do fato de famílias pobres poderem imaginar que
outra vida é possível, que um dia poderão sair do próprio ambiente ou modificá-lo
profundamente” (REGO; PINZANI, 2014, p.187).
Entretanto, o mau atendimento no CRAS, especificamente junto às mulheres,
reforça que “os mecanismos de discriminação estão naturalizados nas políticas públicas,
que não consideram central combater o racismo institucional e as estruturas sexistas das
cidades” (GARCIA, 2013, p. 131). “Em pé esperando”, “por quatro horas”, “não dá a
informação que a gente precisa”, são expressões construídas a partir da memória de
Patrícia. A violência institucional tende a emudecer quando sua voz quando suas dores não
são ao menos ouvidas. Neste caso, o direito de voz é totalmente inexistente (REGO;
PINZANI, 2014). A violência institucional, especificamente junto às mulheres pobres e
negras, supõe instituições sociais e culturais que apoiam e reproduzem a histórica
dominação masculina, “e que operam fundamentalmente sobre suas emoções e
sentimentos, não apenas por meio de ações de opressão imediata” (idem, p. 58).
Para além da conturbada relação com o CRAS do bairro, bolsistas relataram-nos
um cenário onde as leis locais do “mundo do crime” entremeiam-se com as regras impostas
pelos agentes estatais de segurança pública. A bolsista Fiama, de 22 anos, vive com sua
família em um terreno ocupado há duas décadas. Ao conviver próxima às “biqueiras” 125 e
à presença onipresente da morte, a dona de casa e cuidadora dos avós doentes sente-se
abandonada pela polícia militar e coagida pela criminalidade. “Polícia ali não faz nada.
Porque é uma área de risco ali, então polícia não vai. Você pode chamar, mas eles não vão.
A não ser assim, que for morte, ai eles vão né?”, descreve Fiama.
A ideia clássica de cidadania de Marshall (1967) não cabe na área de risco onde
Fiama e sua família vivem, no bairro de São Miguel Paulista. O dever de respeitar a ordem
local se sobrepõe a qualquer outro. O controle e a ameaça exercidos pelo “Comando”
somados à indiferença institucionalizada do Estado motivam Fiama a desejar sair do local
onde vive. Deste modo, por um instinto de sobrevivência, seu íntimo processo de
identificação e pertencimento local é desbastado diariamente, ferindo tanto possíveis ideais
de fortalecimento comunitário quanto de participação local.

125 Pontos de venda de droga.

247
Patrícia, citada no início do texto, ratifica o que disse Fiama. A moradora do Jardim
Pantanal já foi “enquadrada” diversas vezes pelos policiais próximos a sua casa, mas
confirma que ele só adentram na comunidade “quando morre alguém” ou quando “tem
dinheiro pra pagar”. Ou, como afirma a bolsista Dayane, 19 anos, moradora do Jardim
Noêmia e mãe de uma criança de oito meses, “Eles já chega já querendo é forjar, colocar
droga, pra pessoa ir presa, isso sim!”.
A família de Rosana e a comunidade do Jardim Lapenna testemunharam o
assassinato de um amigo menor de idade por integrantes da polícia militar. Trata-se de
mais uma narrativa na qual agentes de segurança pública do Estado são considerados
inimigos da população. “Tudo ignorante, não trata a gente como ser humano; trata a gente
como bicho. E muitos quer autoridade e não respeita, né... Acha que a gente não é nada”,
narra Rosana.
Ao considerar teoricamente o sujeito incompleto e que requer movimento, a
situação de censura traduz-se nesta asfixia, em que interdita a circulação do sujeito, pela
decisão de um poder de palavra fortemente regulado (ORLANDI, 1992). No discurso, o
sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo e “ao se proceder desse modo se proíbe
ao sujeito ocupar certos 'lugares', ou melhor, proíbem-se certas 'posições' do sujeito”
(ORLANDI, 1994, p. 76).
Não é um fato circunscrito à consciência daquele que fala, mas um fato discursivo
que se produz nos limites das diferentes formações discursivas que estão em relação. Assim
concebida, a censura pode ser compreendida como a interdição da inscrição do sujeito em
formações discursivas determinadas. O autoritarismo tenta manter o pobre em seu devido
lugar histórico de marginal, procurando “impor (pelo poder, pela força) um sentido só para
toda a sociedade” (ORLANDI, 1992, p.80).
A enunciação descrita, regida por sentimentos de medo, impotência e indignação
diante de atrocidades que se repetem com frequência junto à população pobre e favelada,
desvela, dentre outras realidades, a consolidação de formações discursivas na sociedade
que dão suporte às arbitrariedades e crimes cometidos por agentes de segurança pública.
Não à toa, páginas da ROTA126 e da polícia militar reúnem milhares de seguidores
em redes sociais na web. Oliveira (2000), salienta que o esvaziamento dos conceitos de
cidadania, disseminado socialmente, fez com que a própria população, até mesmo entre
os pobres e que vivem nas periferias, defenda a forma que a polícia age atualmente,

126 Rondas Ostensivas Tobias Aguiar, da polícia militar do Estado de São Paulo.

248
“considerando ser necessário existir um poder repressor e despótico para manter a ordem”
(idem, p. 68).
Considerando a sociedade capitalista de forma ampla, foi preciso constituir o povo
como um sujeito moral, separando-o da delinquência e do grupo de delinquentes,
mostrando-os como perigosos são não apenas para os ricos, mas também para os pobres
(FOUCAULT, 2012). “O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela
população se não o medo do delinquente?” (FOUCAULT, 2012, p. 49).
Entretanto, quando uma instituição pública torna-se “sinônimo de morte”,
expressão essa utilizada por uma bolsista para denominar a PM, o projeto político que
lança mão do crescente autoritarismo perde legitimidade e, mesmo que tente proibir certas
posições do sujeito, este, para que não morra asfixiado, recorre a diversas formas de se
manter íntegro: quando não “escuta” as ordens; não repete as litanias; fala quando se exige
silêncio; muda, desvia, altera o sentido das palavras e das frases (PÊCHEUX, 2011).

FAMÍLIA E VIDA PÚBLICA

A bolsista pobre na periferia do município de São Paulo (quase sempre negra e


nordestina127) é, digamos, levada a uma discursividade de impotência, não somente pela
presença da criminalidade ou pela violência institucional, mas também, e principalmente,
pelo constructo funcional que protagoniza no âmbito da família, o que se complexifica com
a circunstância de ser titular de uma bolsa.
Ao longo de séculos, as mulheres não têm sido apenas treinadas para servirem aos
homens (maridos, pais, irmãos, sogros, cunhados); mas também para “desejarem servi-los”
(MILL, 2002). Neste sentido, Saornil (2015) questiona: “Quando alguém se importou em
despertar sua consciência? Quando alguém lhe disse que nela residia um indivíduo com
direitos, mas, também com deveres? Nascer, sofrer, morrer, este foi todo seu destino e
todo seu direito” (idem, p.38-39).
Maria do Socorro, 47 anos, vive a maior parte de seu tempo dentro de casa, no
Jardim Noêmia. Sai à rua somente para buscar os filhos na escola (um de 7 e outro de 9
anos de idade) e frequentar cultos religiosos. Há dois anos saiu de Vitória do Santo Antão
(PE) e está tentando se adaptar à cidade e ao bairro que, embora seja constituído por
nordestinos e descendentes, não está fora do alcance de todo o preconceito paulistano.

127 Patrícia é de Itabuna (BA) e veio ainda criança morar no Jardim Pantanal (extremo leste do bairro de
São Miguel Paulista), por meio de uma ocupação nos anos de 1980.

249
Solteira, a moça prefere o trabalho informal a emprego fixo para ter maior
flexibilidade de tempo para cuidar de seus filhos pequenos. Ressalta que “se tranca em
casa”; “só sai pra compromisso”. Exemplo de um sujeito responsabilizado no âmbito da
vida privada e no cuidado de outras pessoas.
Maria do Socorro e outras mulheres que se “trancam” em casa reproduzem as
restrições ao direito de voz na sociedade que “limitam significativamente sua constituição
como sujeitos capacitados politicamente a formular e ampliar demandas cívicas” (REGO;
PINZANI, 2014, p. 61). Nessa circunstância, “a vida pública é para as mulheres menos
distinta da pessoal e doméstica que para os homens; sua experiência em cada uma afeta
radicalmente suas possibilidades na outra” (idem, p, 62), afirmando-se para as mulheres
uma espécie de perpetuação de um círculo vicioso de não direitos, de não cidadania e de
não participação igualitária na vida pública (REGO; PINZANI, 2014).
Na visão de Okin (1987), uma das causas dessa situação reside no ocultamento de
que a família é também uma instituição política. Ao passo que “a instituição familiar possui
o poder de atribuir papéis e funções aos seus componentes, fazendo-o de modo invasivo e
totalitário, legitimado pela tradição e pelos costumes” (OKIN, 1987, p. 110), parece-nos
que o programa federal Bolsa Família não tem como vetor a interferência nessa situação.
No caso das avós ocorre o assujeitamento à função social de cuidadoras do marido,
dos filhos e dos netos. Ao se responsabilizarem unicamente pela vida privada e pela família,
a relação entre essas mulheres e o espaço público torna-se mínima. Dos relatos que
ouvimos, algumas “não têm tempo” ou a participação política acarreta mais “dor de
cabeça”, como no caso de Sirlene, de 46 anos, que vive com o neto.
Com pressão alta, depressão e outras doenças, conta-nos que já foi tratada como
“bêbada” na rua. Utiliza a bolsa-família de cerca de R$ 70 principalmente para comprar
remédios. Afirma que, para evitar o estresse, questões relacionadas à participação no bairro
não fazem parte de seu horizonte. Mais que isso. O olhar do outro sobre Sirlene expõe
“certos mecanismos de relacionamento social que redobram o sofrimento psíquico e cívico
dos seus membros” (REGO; PINZANI, 2014, p. 61).
Ao sentir-se depreciada como “doida”, Sirlene é pressionada a interditar-se. No “fio
narrativo”, por conta de uma saúde debilitada, seu corpo deve ser escondido, trancado
dentro de casa, “pra evitar briga” e o “estresse”, segundo pontua. Sua experiência revela
como a humilhação, como uma prática política e social, “se inscreve no corpo do sujeito e
no corpo do sentido como corte e apagamento” (BARBAI, 2008, p. 159). Sentir-se
humilhado é viver como um sujeito degradado para si mesmo e para o mundo (idem).

250
Dessa forma, cuidar de seu neto de oito anos em meio à paz e o silêncio de uma “porta
fechada” é para ela a garantia de um distanciamento da experiência dolorosa de se arriscar
à exposição de seu corpo.
Ao compreendermos que “a estrada da cidadania para as mulheres sempre foi feita
de muitas outras veredas, exatamente porque são várias as modalidades de sua exclusão da
vida pública” (REGO; PINZANI, 2014, p. 61), antes de (e além de) ser doente, Sirlene
precisa vencer inúmeros obstáculos no imaginário social para exercer o simples direito de
se expor publicamente. O fato de ser mulher, negra, avó e bolsista tem significados que, na
sociedade atual, ainda se distanciam com a ocupação do espaço público.
Se é difícil para Sirlene se “expor” na rua, o que não será participar ativa e
coletivamente na comunidade? Enfraquecida, Sirlene encaixa o verbo “enfrentar” no que
se refere à participação na comunidade. Em algumas de suas passagens enunciativas, o
impessoal se inscreve e o sujeito se toma por um outro indefinido “a gente” sem nenhuma
particularidade individual. Desse modo, a bolsista se defende de uma imagem desfavorável
que a vizinhança lhe confere, além de tentar “enganar” o próprio sentimento de
humilhação, como o dito no enunciado: “É porque o pessoal olha pra gente, assim... Acho
que é porque acha que a gente tem problema, acha que a gente é doido”
Em Sirlene,

[…] a partir dos efeitos do mecanismo de ‘mise en scène’ da enunciação,


ao inscrever pelo impessoal (uma marca que designa a generalização e a
constituição de um conjunto) o sentimento de humilhação irrompe,
como um lugar de subjetivação. Viver despessoalizado é ser habitado por
ninguém, por um indefinido, pelo nenhum. A forma sujeito [existência
histórica] produz na evidência do sujeito e do sentido, o lugar em que a
ideologia e o inconsciente jogam com o sujeito da enunciação e o sujeito
do enunciado, provocando a crise da dêixis, materializando no fio do
discurso, cacos de enunciação que são o resultado do eco de uma voz
acústica em um corpo fraturado (BARBAI, 2008, p. 153).

À semelhança do cenário no qual Sirlene vive, mas diante de uma autoimagem


depreciativa e da exaltação do fracasso pessoal, está a bolsista mineira Angelina, de 60 anos.
Avó e negra, convive na mesma casa com filhos e netos, circunstância comum nos bairros
populares e até mesmo entre a classe média brasileira. Seus objetivos na vida dialogam com
a melhoria do bem-estar de sua família porque, no limite, traduz-se no seu bem-estar.
Somado ao “bico” de costureira, o auxílio de renda (R$ 38) é considerado por ela como
sua aposentadoria.

251
Após esperar mais de quatro horas para ser atendida no CRAS de São Miguel
Paulista, a senhora se dispôs a conversar com o pesquisador. Triste com os recorrentes
bloqueios de seu cartão, Angelina nos falou sobre a dificuldade de viver com problemas
de saúde como pressão alta, artrite e dores na coluna, segundo ela causados pelo trabalho
pesado na roça até os seus 30 anos de idade.
Apesar de todas as dificuldades na cidade grande, admite que tem sido muito
melhor viver na periferia paulistana do que no campo, no município de Turmalina (MG),
onde trabalhava de forma desumana, segundo ela. E entre a narrativa sobre as dificuldades
atuais de seus filhos e netos que vivem com ela, Angelina recorda-se de seu pai: “O pai
escravizava a gente mais, falava que a gente tinha que morrer ali. É por isso que eu vim
embora pra São Paulo e tentar a minha vida aqui, porque lá além de sofrer muito ele ainda
não dava nada pra gente, nem uma roupa, nem um sapato, nada, a não ser a comidinha,
só […] tem uns córrego nos fundo e a gente vinha com aqueles pote na cabeça. Até hoje
você acredita que eu sonho que eu tô deixando esses pote cair?”.
À conclusão de sua fala, Angelina efetua uma relação entre um passado de
sofrimento com um presente distópico: “Mas deve ser isso! A gente pegava muito peso […]
Nossa, era muito peso. A gente fez uma casa lá, sabe, aqueles caibros, coisa tudo de
madeira, aquelas madeira pesada. O que sustentava de um lado nós tinha que sustentar do
outro pra ir assim, moço, sabe. Tinha até criança ainda, de uns 13 anos, e era um peso
terrível, é por isso que hoje eu não sou ninguém”.
Em uma relação de causa e efeito construída no dizer (e na materialização da
memória), os dois sujeitos (a jovem e a atual Angelina) encontram-se no enunciado.
Pêcheux (1969) afirma que a memória discursiva, “face a um texto que surge como um
acontecimento a ler, restabelece um conjunto de elementos (os pré-construídos, os
discursos transversos, os elementos citados e relatados) produzindo uma condição do
legível em relação ao próprio legível” (p. 51). Tal processo atinge um dos fundamentos da
identificação imaginária: “o sujeito se toma como objeto de sua própria leitura,
transformando-se na imagem, na presença que esta suscita” (idem).
No caso de Angelina, a expectativa de uma valorização enquanto sujeito histórico
em “(...) vim embora pra São Paulo e tentar a minha vida aqui” materializou-se em seu
próprio apagamento “(...) hoje eu não sou ninguém”. Em um gesto de autoculpabilização,
relaciona o passado difícil a sua infelicidade presente. Parece-nos que o processo de
tentativa de silenciamento de Angelina que tem início em sua infância atrelada à imagem
autoritária do pai e à organização extremamente verticalizada da família contribui para o

252
aparecimento de um sentimento de inferioridade social não apenas material, mas subjetivo;
além de reforçar formas sociais que influenciariam o seu agir no mundo para além de uma
infância escravizada.
Dessa forma, pensar no autoritarismo familiar também compreende abordar a
interface deste com o poder patriarcal dissolvido nas instituições ditas públicas, inclusive
no processo implementação de políticas públicas que não apontam para novas dimensões
emancipatórias da mulher.

CONCLUSÕES

O que propomos neste texto é lançar luz sobre uma perspectiva das relações sociais
no território periférico. Nele, existem ações coletivas concretas lideradas por mulheres em
condições de vulnerabilidade e a consequente ocupação do espaço público pelas mesmas.
Existem diversas formas de silêncio, que não se reduz à ausência de palavras
(ORLANDI, 1994). As palavras são carregadas de silêncio; não se pode excluí-lo delas
assim como não se pode, por outro lado, recuperar o sentido do silêncio só pela
verbalização (idem). O questionamento em voga chama a atenção para como a
implementação de uma política pública (de âmbito local e nacional) que propõe motivar a
população feminina mais vulnerável socialmente à participação política esbarra em
circunstâncias alicerçadas em constituições históricas de relações de dominação.
O BF favorece uma diversidade de sentidos em relação à participação. Um deles
pode ser a institucionalização dessa ação, prejudicando a autonomia e introduzindo novas
formas de aprofundamento do discurso clientelista do Estado brasileiro na periferia.
Parece-nos que uma ação coletiva obediente à institucionalidade burguesa e patriarcal
favorece o impedimento da mudança social. Neste viés, o BF pode se conformar como um
embuste de fortalecimento comunitário caso não esteja atrelado a ações comunitárias
autônomas e críticas, em que a solidariedade e a resistência entre as mulheres e as famílias
fomentem a independência da organização.
Sabe-se que a depender de como é implementado em determinado território, o BF
pode oferecer instrumentos às mulheres para que se emancipem para além do núcleo
familiar e ocupe o espaço público, favorecendo além da constituição da autoestima e da
autonomia do sujeito e da família, a consolidação de um sujeito de viés coletivo. Portanto,
a titularidade do cartão sob a responsabilidade da mulher pode apontar para diferentes

253
sentidos: pode tanto auxiliar no enfrentamento de algumas formas de violência
institucional, como aprofundar o controle social e o silenciamento político sobre a titular.
O mecanismo do silenciamento “é um processo de contenção de sentidos e de
asfixia porque é um modo de não permitir que o sujeito circule pelas diferentes formações
discursivas, pelo seu jogo” (ORLANDI, 2008, p. 60). Assim, “ao apagar sentidos há
posições do sujeito nas quais ele não pode ocupar e lhe são interditadas” (Idem).
Uma forma prática de enfrentar tal questão poderia ser o compartilhamento de
ideias e percepções (que envolvem a titularidade do programa federal Bolsa Família em
meio a um território repleto de códigos) em um espaço cedido pelo órgão assistencial ou
não. Se estivermos corretos, a simples verbalização dos problemas interrompe processos
de isolamento e abre possibilidades de participação política no espaço (REGO; PINZANI,
2014), considerando que “as pessoas que hospedam em silêncio sua opinião que é
manifestada em voz alta por outros ganham autoconfiança quando descobrem que não são
os únicos que pensam de tal modo e, portanto, se tornam mais inclinadas a expressar sua
opinião” (idem).

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256
A GESTÃO LUIZA ERUNDINA (1989-1992): PARTICIPAÇÃO
POPULAR NAS POLÍTICAS DE TRANSPORTE

Milena de LIMA E SILVA128

Resumo: A pesquisa se cerca de teses sobre o direito urbano, para tratar do objeto principal desta
dissertação: as inovadoras políticas urbanas de transporte elaboradas pela administração Luiza
Erundina (1989-1992), como a Tarifa Zero e a Municipalização dos transportes coletivos por
ônibus, na cidade de São Paulo. O caminho das políticas públicas de transporte foi tortuoso no
entremeio à democracia (1978-1988), em parte foi inicialmente abordado por uma construção
coletiva de movimentos sociais (como o Movimento Nacional pela Reforma Urbana-MNRU) e de
grupos de trabalho com a temática dos transportes criados por partidos do campo democrático-
popular. Em outra parte, configura-se um marco que tem as figuras do secretário de transportes
Lúcio Gregori, e da prefeita Luiza Erundina como centrais para o desenvolvimento e articulação
dos projetos políticos, esses que hoje (na contemporaneidade) alcançaram o devido debate público
no país. As conclusões da pesquisa apontam para uma realidade de esforços administrativos,
conjunta à falta de engajamento populacional na participação das políticas de transporte. Expõem
também os limites metodológicos das diferentes propostas participativas conduzidas pela
administração quando comparadas às ações de diferentes secretarias, sendo essas ações: conselhos
ou fóruns de negociação. Contudo apresenta que a não efetivação das políticas urbanas elaboradas
pela administração Luiza Erundina não é um resultado direto da simples existência ou não de
movimento social prévio à gestão. Trata-se sim (no presente) do efetivo poder popular de modificar
o “estado do urbano”, desde a sua forma prática à sua forma sensível, desde sua forma econômica,
à forma de partilhar o poder entre todo o conjunto social.

Palavras-chave: Participação. Políticas públicas. Transporte. Direito à cidade. Movimentos sociais.

INTRODUÇÃO

Este artigo parte de uma estrutura temporal subdividida em três intervalos de


tempo, que por vezes se intercalam e borram os limites propostos: Tempos de exceção
(1964 – 1985), todo o período da Ditadura Militar brasileira; Entremeio à democracia
(1978 – 1988), período que compreende as primeiras grandes greves civis, ainda no regime
ditatorial, até a promulgação da Constituição de 1988; Democracia e o desmanche (1988–
1992), período que se inicia depois da assinatura da Carta Magna, com ênfase na eleição
para presidente de Fernando Collor de Melo.
Abarcada nesta divisão encontra-se a década de 1980, período que particularmente
mais me debrucei na descrição e análise por apresentar um conjunto de elementos políticos
centrais para a implementação da gestão Luiza Erundina em São Paulo (1989-1992), e que
será apresentada em um subtópico. Este Entremeio à Democracia foram por anos

128 Doutoranda em Sociologia; Universidade Federal de São Carlos; milenalima.e.silva@gmail.com

257
caracterizados como a “década perdida” para o Brasil e para os países latino-americanos
quando analisados a partir de uma inicial leitura economicista. Tanto as questões
econômicas, como suas derivadas diretas, as questões trabalhistas e sociais, sofreram
grandes choques com o repentino declínio do crescimento econômico vivenciado por estes
países capitalistas periféricos – ditos “subdesenvolvidos”. A era nacional-
desenvolvimentista no Brasil, encerrava-se nesses anos 1980. No entanto, com o fim do
longo regime militar, é também este decênio que recoloca a democracia no horizonte da
política brasileira, impulsionada pela maior mobilização social vivida até então no país.
Neste sentido, a dita “década perdida” apresentava uma forte contradição. Em uma leitura
mais atualizada deste período, os anos 1980 poderiam ser descritos como “tempos de
utopia e esperança”, e aqui cito Bonduki:

O período esteve longe de ser ‘perdido’; ao contrário, foi fértil, rico, de


grande vitalidade social e política. Embora repleto de conflitos e
contradições, gerou um modelo de gestão em que a participação e o
controle social interferiram positivamente na formulação de políticas
públicas inovadoras (BONDUKI, 2014, p. 79).

Numa perspectiva panorâmica, o entremeio à democracia apresentou uma


avalanche de expectativas político-sociais no Brasil advindas do processo de abertura
democrática pós-governo militar. No entanto, tais expectativas levaram a um anticlímax a
partir dos anos 1990, resultando numa democracia de talhe liberal, que, em certa medida,
assentia com uma transformação do capitalismo mundial em um grande projeto de
financeirização do capital – a então Democracia e o Desmanche. Este embate entre as
expectativas político sociais e a instauração de uma democracia liberal pode ser percebido
pela produção intelectual selecionada, cuja orientação teórica abrange as áreas de
sociologia, economia e arquitetura. O que faço aqui é mobilizar essa literatura, além de
autores clássicos da academia, para apresentar o deslocamento de uma década à outra – de
um clima otimista para outro de grande preocupação.
O caminho das políticas públicas de transporte foi tortuoso no entremeio à
democracia, em parte foi inicialmente abordado por uma construção coletiva de
movimentos sociais (como o Movimento Nacional pela Reforma Urbana-MNRU) e de
grupos de trabalho com a temática dos transportes criados por partidos de esquerda. Em
outra parte, configura-se um marco que tem as figuras do secretário de transportes Lúcio
Gregori, e da prefeita Luiza Erundina como centrais para o desenvolvimento e articulação

258
dos projetos políticos, esses que hoje (na contemporaneidade) alcançaram o devido debate
público no país.
Sob a perspectiva do transporte como direito deve-se ressaltar que uma vez
discutido o subsídio total do transporte, com o projeto de Tarifa Zero, ou ainda a forma
de ganho das empresas pública e privadas pelo serviço de transporte, projeto de
Municipalização, coloca-se o cálculo da tarifa como uma categoria primordial de análise.
O cálculo tarifário é uma política intrinsecamente ligada ao que os gestores estipulam e
determinam como prioridades administrativas, visto que o valor individual cobrado dos
usuários infringe um limite à livre circulação dos corpos no território. Ou seja, a tarifa que
cada gestão pratica trata-se ela mesma de um indicador social, e as políticas que elas
implementam devem sim ser devidamente esmiuçadas.

MOVIMENTO NACIONAL PELA REFORMA URBANA

O tema da Reforma Urbana chegou a ser debatido no início dos anos 1960, pelo
então presidente João Goulart, quando formulou as propostas das “Reformas de Base” e
a necessidade da revisão da questão fundiária brasileira. Como foi exatamente contra as
propostas sociais avançadas como esta que o golpe militar irrompeu em 1964, essas pautas
foram desde então abafadas.
A retomada do tema na sociedade brasileira se deu a partir de uma série de
organizações da sociedade civil, movimentos, entidades de profissionais, sociedades amigos
de bairro, comunidades eclesiais de base, organizações não-governamentais de assessoria a
movimentos sociais, e sindicatos que, já nas décadas de 1970 e 1980, chegaram a lidar com
a problemática das cidades, do grande aumento demográfico urbano, e da “periferização”.
Primeiramente constituído como Movimento Popular pela Reforma Urbana, em
1985, e depois como Movimento Nacional pela Reforma Urbana, o movimento foi um
grupo heterogêneo que, durante o processo da Constituinte, promoveu a articulação do
cenário de participação popular por todo o Brasil em torno das pautas de política urbana.
Parte dos militantes do movimento também auxiliaram na criação dos novos partidos,
assim que foi sancionada a Lei Orgânica de (1979) de reorganização partidária. Friso a
importância que teve a intersecção de militantes entre o MNRU e o PT, pois será uma
linha raciocínio no desenvolvimento do artigo.
As entidades, profissionais e líderes comunitários começaram seus trabalhos um
ano antes da abertura da Assembleia Nacional Constituinte, preparando assim um conjunto

259
de informações, debates e propostas para subsidiar os trabalhos da Subcomissão da
Questão Urbana e Transportes.

Assumiram, também, a tarefa de redigir a Emenda Popular sobre


Reforma Urbana sob o estímulo do Plenário Pró-Participação Popular
na Constituinte, da cidade do Rio de Janeiro. A Emenda obteve cerca de
150 mil assinaturas em todo o país e foi defendida na Comissão de
Sistematização da Constituinte pela arquiteta Ermínia Maricato, no dia
27 de agosto de 1987, representando as entidades que apoiavam a
Emenda (SILVA, 1991, p. 06).

No período da Assembleia Nacional Constituinte - ANC, um conjunto de reformas


foi apresentado como necessário para alterar o quadro de ampla desigualdade da sociedade
brasileira. Pode ser compreendido que, em última instância, o que se buscava com o
Movimento Nacional pela Reforma Urbana era um projeto de democratização da
sociedade brasileira. A partir desta ideia, são três os pontos principais que eu gostaria de
destacar: a) a formação acadêmica dos especialistas do Movimento facilitou a introdução
do conceito de direito à cidade a todos os militantes; b) as grandes mobilizações sociais,
organizadas pelo Movimento, foram resultados de um projeto de formação técnica e
política “da/com” a população em que é possível perceber a disposição de construção
democrática do Movimento; e c) essa formação resultou nas várias disputas que ocorreram
dentro do ambiente legislativo da Constituinte, onde o Movimento, ainda assim, chegou a
influenciar a redação final da Constituição de 1988 através dos mecanismos de participação
combinados.129
Do que o MNRU enviou à ANC, dou destaque aos dois artigos que tratam “do
transporte e serviços públicos”. O Art. 16º apresenta o serviço público como monopólio
do Estado, sua prestação deverá ser realizada através de administração direta e indireta.
Especificou-se mais abaixo, no parágrafo único do mesmo artigo, que a proposta vedaria
“qualquer uso de recursos públicos para subsidiar serviços operados pela iniciativa
privada”. No Art. 17º existe uma proposta de valor tarifário de até 6% do salário mínimo
mensal, e os dois parágrafos subsequentes dispõem sobre a criação de um fundo de
transportes administrado pelos municípios e pelos estados para compor a diferença entre
o custo do serviço e a tarifa paga pelo usuário. Dispõem ainda que, para uma possível
indicação de reajuste de tarifa, salvaguarda-se o direito à ampla divulgação dos elementos

129
O mecanismo de participação direta das Emendas Populares e o mecanismo de direito de defesa das
propostas de emendas nas audiências públicas da plenária (nestas últimas, representantes dos movimentos
poderiam apresentar aos congressistas as emendas que defendiam).
260
que compõem o cálculo tarifário. Da seção da proposta popular que trata “da gestão
democrática da cidade” fica exposto em seis artigos um claro tom reivindicativo de garantia
da participação popular na esfera pública.

TRAJETÓRIA DE LUIZA ERUNDINA NA CHEGADA À GESTÃO MUNICIPAL


E GOVERNABILIDADE

A ascensão do Partido dos Trabalhadores–PT à gestão municipal da maior cidade


do país com 9.646.185 milhões de habitantes130 – ponto central de análise desta dissertação
– é uma representação histórica e recombinada do processo de transição político-
democrático brasileiro, que para fins didáticos, denominei: Entremeio à democracia. Para
autores como Kowarick e Singer (1993) tratou-se de uma evidente ruptura ideológica no
quadro do poder executivo no município de São Paulo. Esta ruptura só pode ser
compreendida se tivermos em vista dois grandes eventos históricos: 1) as greves operárias
na Região Metropolitana de São Paulo a partir de 1978131 – que promoveram um novo
modelo de formação política do proletariado fabril, e que, ao mesmo tempo, também
apresentaram os limites das lutas sindicais na conquista de direitos do movimento operário
–; e 2) a reforma partidária de 1979 – que propiciou o fim do sistema bipartidário vigente
desde o regime militar132, e reconduziu o pluripartidarismo no país.
A criação do PT, dentro do marco de formação política das categorias de base sócio
econômica do país, se consolidou nessa dinâmica estrutural antagônica. Contudo, tanto as
mobilizações grevistas, quanto a difusa estrutura partidária por correntes tiveram grande
influência para a chegada de Luiza Erundina ao poder em São Paulo nos anos de 1989 a
1992, ou ainda nas características que a gestão da prefeitura, por ela empreendida, assumiu
frente às deliberações do PT nacional.
Por outro lado, a própria trajetória de Luiza Erundina de ascensão ao poder
corresponde a um retrato único na história deste início do partido, e tornou-se tão ou mais
importante para a análise da gestão formada na capital paulista. Mulher, solteira, migrante
nordestina e militante radical (KOWARICK; SINGER; 1993), Luiza Erundina de Souza

130
Censo 1991. Fonte Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo. Disponível em:
<http://smdu.prefeitura.sp.gov.br/historico_demografico/tabelas/pop_dist.php>, acesso 04/05/2016.
131
As greves que obtiveram maior destaque foram as do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo, no ABC
paulista, sob a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva, que chegaram a reunir 160 mil metalúrgicos da indústria
automobilística. Em 1979, aconteceram cerca de 400 greves de funcionários públicos em todo o país. Jornal
Folha de S.Paulo, 19/10/1979.
132
Dois foram os principais decretos do governo militar instaurado em 1964 que procuravam enfraquecer a
261 de 1965) e o AI nº4 (20 de novembro de 1965),
oposição ao regime, o Ato Institucional nº2 (27 de outubro
que combinados instauraram o bipartidarismo no Brasil.
tinha “cara de povo” (SINGER, 1996, p. 20). Nascida no interior da Paraíba, concluiu sua
graduação em 1966 no curso de serviço social da Universidade Federal da Paraíba, e em
1971, passou a morar em São Paulo e começou sua carreira de assistente social concursada
na capital – o que possibilitou sua aproximação com os movimentos sociais populares
atuantes na cidade (idem, ibidem). Singer, seu secretário de planejamento durante a gestão
municipal, aponta que na história desta personagem “[ela] destacou-se pela atividade junto
aos movimentos populares e como sindicalista, tendo ocupado a presidência da
organização dos funcionários públicos municipais e participado da grande onda de greves
que varreu o país entre 1978 e 80” (1996, p. 19). Ou seja, trata-se de uma personagem ativa
dos marcos do período de Entremeio à democracia.
Na mesma eleição que Luiza Erundina foi vitoriosa – sendo a primeira mulher
prefeita da mais populosa cidade do país – o Partido dos Trabalhadores consolidou sua
força como legenda partidária em outros municípios brasileiros, com a eleição de 25
administrações de cidades. No entanto, este quadro de ganhos petistas deve ser
contextualizado por um ponto mencionado acima por Rolnik (2015): as eleições
municipais de 1988, inclusive os pleitos realizados nas grandes cidades, como São Paulo,
não tiveram segundo turno. Ainda assim, esta vitória do partido no município de São Paulo
foi coroada com o alcance da maior bancada na Câmara Municipal de São Paulo – em
1988, também chegaram ao poder legislativo municipal 16 vereadores do PT, somando
30,19% do percentual de cadeiras.
A coligação formada pelo PT na eleição continha outros dois partidos, os
comunistas do PCB e PCdoB, que, por sua vez, elegeram mais um vereador cada. Couto
ainda esclarece que se somou à coligação do PT um vereador do PDT, que nos últimos
momentos da campanha apoiou Erundina como candidata a prefeita. Tendo isso em vista,
o autor calcula que a bancada situacionista apresentava 19 vereadores, alcançando 35,85%
do total de vereadores eleitos.
Sem a maioria dos votos na Câmara, essas contas eram realizadas a cada pauta,
projeto, lei e ação política que o poder executivo indicava para aprovação no ambiente
legislativo municipal – já que desde o começo do mandato Luiza Erundina descartou as
possibilidades de outras alianças partidárias que ideologicamente fossem contraditórias ao
programa partidário do PT. Ela contava com a “colaboração” – termo que usou em

262
entrevista133 – de outras forças políticas para que o mandato se viabilizasse, mas sem
firmação acordos que significassem integração ao governo eleito. Soma-se ainda a esse
quadro o afastamento dos vereadores do PSDB, que no início do mandato foram
diagnosticados como próximos ideologicamente do PT e que, aos poucos, foram aderindo
à oposição. “Foram aliás, tendo (o vereador Walter) Feldman à frente, a oposição mais
veemente ao Executivo na capital paulista” (COUTO, 1996, p. 202). Já a partir do segundo
ano de mandato (fins de 1990), os vereadores do PSDB se consolidaram como oposição,
quando o tucano Arnaldo Madeira venceu a disputa pela presidência da mesa da Câmara
Municipal.

Este fato mais a derrota da proposta de tarifa-zero, o elemento mais


importante do projeto orçamentário para 1991, levou a prefeita a tentar
ampliar a coligação governamental, inclusive integrando elementos dos
partidos aliados à administração (SINGER, 1996, p. 96).

Singer indica que “tardiamente” Luiza Erundina mudou sua posição sobre ampliar
a coligação, mas também analisa que a mudança teria sido reflexo do próprio
desenvolvimento do partido, que havia acabado de passar pela experiência de ter tido Lula
no segundo turno da Eleição presidencial de 1989. Segundo o autor, a decisão da prefeita
de atrair novos apoios ao governo só foi tomada sob a influência e com o apoio do PT.
Mas essa decisão só veio no início do ano de 1991, e então o interesse do PSDB em se
comprometer com a administração já era muito baixo. A bancada tucana discordava do
aumento de IPTU, que oneraria proprietários de imóveis caros, e parte dos vereadores já
passavam a apoiar Paulo Maluf como candidato a prefeito da cidade de São Paulo nas
eleições seguintes, em 1992.
À adversidade encontrada no ambiente legislativo municipal soma-se o quadro
político dos governos nas escalas Estadual e Federal, importantes para o diagnóstico da
falta de apoio político e financeiro encontradas pela gestão da capital paulista.

133
“Estamos interessados em contar com a colaboração, a participação de todos aqueles profissionais, de
todas aquelas pessoas que queiram nos ajudar a viabilizar essa proposta de governo”. Luiza Erundina em 16
de novembro de 1988 (apud COUTO, 1996, p. 201).
263
POLÍTICAS DE TRANSPORTES DA GESTÃO

As ações da secretaria de Transporte que mais repercutiram positivamente na


opinião pública durante a gestão da Luiza Erundina, e que ainda hoje são as mais
conhecidas propostas em política pública da área, foram as ações que ocorreram sob o
comando de Lúcio Gregori como Secretário Municipal de Transportes.
O projeto Tarifa Zero, por exemplo consistia em desvincular o valor da tarifa do
custo do sistema, por meio de subsídio total ou parcial do serviço. Para tanto seria
elaborado um fundo específico, o Fundo Municipal de Transportes–FUMTRAN, que,
com dotação própria de verba, assumiria todo o custeio do sistema de transportes e
garantiria também recursos para melhorar o serviço. Assim, todo o custeio do sistema e,
por conseguinte, todo o recurso do FUMTRAN, viria de um acréscimo na arrecadação do
Imposto Predial e Territorial Urbano–IPTU134 (um dos poucos impostos diretos existentes
no Brasil, que apresenta a característica de ser vinculado diretamente à riqueza do cidadão
– neste caso, seu patrimônio imobiliário). E, por fim, ocorreria a alteração da forma de
remuneração das empresas operadoras de transporte, vinculando todas à municipalização
do sistema.
O desfecho do projeto se deu no debate da proposta orçamentária para o ano de
1991 que contemplava o aumento da tributação do IPTU em 570%. No entanto, a
formação do fundo para os transportes e a aplicação desse fundo no projeto Tarifa Zero,
se justapôs ao movimento de perda da maioria parlamentar na Câmara de vereadores do
município (apresentado na introdução deste segundo capítulo). Foi, portanto, sob a
presidência do vereador Arnaldo Madeira–PSDB135 - e diante da consolidação de uma
oposição composta por “janistas, malufistas, peemedebistas e tucanos” que o projeto foi
rejeitado e engavetado pela Câmara.

134 O cálculo do IPTU foi, e ainda é, por lei, realizado a partir da Planta Genérica de Valores Imobiliários–
PGVI, que cadastra o preço médio do metro quadrado em cada via da cidade, e o traduz em um valor venal
para cada imóvel no município. A proposta da gestão foi reformular o cálculo da defasada PGVI, e exigir um
pagamento maior de imposto das classes mais ricas para custear o serviço de transporte público da cidade –
partindo da ideia “tributação com sacrifício equitativo” (Pintos-Payeras; Hoffmann, 2009), a ação garantiria
uma certa redistribuição de renda.
135
Na base de dados da Biblioteca da Câmara Municipal de São Paulo consta as seguintes informações sobre
o vereador e sua atuação parlamentar no período analisado: “Nome parlamentar: Arnaldo de Abreu Madeira;
Mesa diretora: Presidente de 01/01/1991 a 31/12/1991;264Vereança: De 01/02/1983 a 00/00/1988 ver. PMDB;
De 00/00/1988 a 31/12/1988 ver. PSDB”, para mais detalhes acessar:
<http://www.camara.sp.gov.br/biblioteca/arquivo-vereadores/>
Tão logo a oposição se viu em maioria, deixou claro que em hipótese
alguma aprovaria a tarifa zero. O que significava sua rejeição sem que
tivesse havido qualquer tentativa de negociação e sem que a maioria em
plenário se desse ao trabalho e ao desgaste de votar contra. O projeto de
lei instituindo a tarifa zero foi engavetado e a proposta de orçamento-
programa para 1991 teve as verbas destinadas ao subsídio do transporte
coletivo fortemente reduzidas (SINGER, 1996, p. 147).

Diferentemente do projeto de tarifa zero, o projeto de municipalização conta com


outras pesquisas acadêmicas realizadas sobre o tema. Uma hipótese para tanto é de que o
projeto faz parte de uma política pública formatada dentro do PT, e que foi implantada,
com certa diversidade, em um representativo número de municípios. Sobretudo trata-se
de casos que não foram rejeitados pelo poder legislativo, e sim aprovados e
implementados.136
A proposta de municipalização alteraria o quadro de desvantagem da CMTC – que
era aquela que, dentre todas as operadoras, tinha o custo mais elevado do serviço por
passageiro. Sobretudo, a proposta alteraria a lógica empresarial privada, que em busca de
transportar o maior número de passageiros ao menor custo possível buscava, em última
instância, apenas as linhas centrais da cidade, desfavorecendo uma vez mais os bairros
periféricos. A transição para outro modelo de remuneração era composta pela seguinte
série de medidas: o valor da tarifa seria dissociado do custo do serviço; a remuneração das
empresas passaria a ser medida através de um cálculo combinado entre quilometragem
rodada e número de passageiros transportados; se apenas a distância percorrida fosse
cumprida a empresa receberia 80% do valor combinado pelo frete; os 20% restantes
deveriam ser pagos mediante a comprovação que a empresa atendeu o número de
passageiros esperados pela linha (número estimado através da demanda histórica de cada
linha e dos estudos que a própria CPTM); com a tarifa desvinculada do custo do serviço
seria possível implantar um financiamento municipal para subsidiar o serviço, subsidiando
também parte do valor pago pelo usuário como tarifa.
A municipalização dos transportes coletivos de São Paulo, como um novo
instrumento de gestão do sistema de transportes, foi consolidada através da Lei Municipal
nº 11.037, de 25 de julho de 1991. Com esta legislação foi dado à prefeitura o direito de
contratar lotes de veículos para operacionalizar o serviço de transporte coletivo.

136
Sobre as pesquisas que especificamente se atentaram ao estudo da implantação da municipalização na
cidade de São Paulo, cito aqui a dissertação de Adolfo Mendonça (1997) “Gestão pública, regulamentação e
flexibilidade de planejamento: a experiência da ‘municipalização’ do transporte coletivo em São Paulo (1989-
1992)”, e o artigo “A política das linhas de ônibus” de Marcos Campos (2014).
265
PARTICIPAÇÃO POPULAR NA POLÍTICA DE TRANSPORTES

O histórico das mobilizações populares de transporte na região metropolitana de


São Paulo é grande, principalmente na década de 70 e no início dos anos 80. É possível
apontar casos reais de grande relevância a partir principalmente de duas dissertações
defendidas na USP São Paulo: “O trem da opressão” de Ana Amélia da Silva (1982), e
“Chega de enrolação, queremos condução” de Nazareno Stanislau Affonso (1985). Há,
ainda, o importante artigo “O movimento do ônibus, a articulação de um movimento
reivindicatório de periferia” de Vera da Silva Telles e Silvio Caccia Bava (1981). Os estudos
apontaram uma relação destas mobilizações diretamente com o contexto de crise
econômica e política do regime ditatorial militar, e a retomada de amplos movimentos de
massa, já descrito no Capítulo 1 desta dissertação.
Telles e Caccia Bava (1981) esmiúçam o movimento de transportes dos anos 70
em São Paulo, e apontam sua formação no interior das associações de bairro, que por sua
vez eram amparadas pelas comunidades eclesiais de base, e apresentam o caso da
metrópole paulistana em que as ações deste movimento se deram antes mesmo dos
movimentos operários de massa passarem a existir.

Pelo menos no caso de São Paulo (cidade), as lutas e movimentos


populares antecederam as lutas operárias. Quando surgem os primeiros
movimentos reivindicatórios de massa, como este que iremos descrever,
o movimento operário ainda estava muito longe daquilo que vamos
representar nos últimos dois anos (da ditadura). Eram greves isoladas em
uma fábrica ou outra, e a luta sindical nos períodos de dissídio ainda
mobilizava parcela muita reduzida de operários (TELLES; CACCIA
BAVA, 1981, p. 78).

Com isso os autores reforçam o caráter insurgente dos atores civis. Ao estudar as
manifestações das classes populares, Telles e Caccia Bava (1981) encontraram nela uma
intensa vida política, com formação de propostas coletivas de suas necessidades e de
enfrentamento ao poder e políticas ineficientes do Estado: “Estes movimentos, marcados
pela espontaneidade, demonstram que a mobilização e organização dos setores populares
se dá apesar do intensivo controle e vigilância exercidos pelo Estado” (1981, p. 80).
Por outro lado, estes mesmos autores apresentaram o seguinte sentido nas
mobilizações: “Mais exemplos poderiam ser citados137 e todos apontam num único sentido:

137
Os exemplos referem-se ao seguinte parágrafo: “Em 1975 também foram noticiadas concentrações do
mesmo gênero. Uma Assembleia do Povo, com mais de 1000 moradores da periferia, em que se exigia das

266
a mobilização das classes populares em defesa de suas condições de vida” (TELLES;
CACCIA BAVA, 1981, p. 79). A partir da leitura das outras pesquisas indicadas me parece
que esta afirmação necessita do acréscimo da chave “urbana” de análise. Portanto, os
movimentos de transportes, com grande frequência, se correlacionavam aos movimentos
populares urbanos, pois ambos reivindicavam uma melhora na condição da vida urbana.
Como descreve Affonso (1985) sobre o movimento popular de transportes da Região
Metropolitana de São Paulo, entre os anos de 1979 a 1983:

Os Movimentos Reivindicativos de Transportes Coletivos (MRTC) são,


inicialmente, a resposta popular ao abandono do transporte ferroviário e
por ônibus promovido por uma política de transporte voltada quase que
unicamente à reprodução e ampliação do capital em detrimento da
reprodução da força do trabalho. Mas no seu confronto com o governo
munindo-se da experiência das lutas políticas dos trabalhadores, os
MRTC vão exigindo também a participação direta nas decisões e, com
isso, vão questionando a legitimidade das estruturas de poder do Estado
(AFFONSO, 1985).

Ainda sobre os modelos reivindicativos estudados por estes autores, podemos


perceber que existe uma chave de leitura que tanto o Estado como os meios de
comunicação – e eventualmente a própria população – reproduzem: a escolha do termo
“quebra-quebra” para explicar as ações e manifestações da população revoltosa. A palavra
“manifestação”, de cunho democratizante (pois assegurada na forma de lei138), não é um
termo que o poder público ou os jornais de então conseguiam associar às ações
reivindicativas da população de baixa renda, trabalhadores ou estudantes – que nas
periferias da cidade não são abastecidos por um frequente e pontual139 meio de transporte
coletivo. A pesquisa de Silva (1982), no entanto, abrange esta minha análise inicial e através
de entrevistas com inúmeros atores das manifestações, apresenta o fato de que muitas vezes
houve disputas de interpretação em relação ao “quebra-quebra”, entendidos não só como

autoridades a melhoria dos transportes coletivos da região. Uma concentração de mães da periferia na
Assembleia Legislativa; mães que exigiam escolas e creches para seus filhos”, p. 79.
138
Em regimes democráticos, no caso brasileiro foi retomada como na Constituição de 88: “Art. 5º Todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros
residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes: IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato; XVI - todos
podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de
autorização, desde que não frustrem outra reunião267 anteriormente convocada para o mesmo local, sendo
apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;
139
Referente à pontualidade do horário firmado em contrato entre Prefeitura e empresa de transporte coletivo.
ações espontâneas de revolta, mas também articuladas com um modo específico de pensar
a ação política.

O mais importante é que a eficácia política da ação direta que coloca em


xeque o aparato de Estado e o próprio Estado (governo, na voz dos
entrevistados) não escapa aos usuários em sua comparação com o ato
público. “É uma forma de ato público. Eu acho que mobiliza chamar
reportagem, explicar essas coisas direito... Mas, não vai ‘mexer’ com esse
‘povo’ da FEPASA, com o governo que é o dono dos transportes, porque
eles não ligam para isso, né? O quebra é um problema político que a
gente coloca aí e vai começar a ‘mexer’ com eles, o que é péssimo para
eles, né? [entrevistado] (SILVA, 1982, p. 169).

Existe um reconhecimento da população de que os “quebras”, que envolvem a ação


direta de depredação (de estações ou veículos de transportes coletivos do serviço público),
são autogeridos e independem de partidos, sindicatos e outras organizações formais e
institucionalizadas para ocorrer. A esta característica soma-se a fala de um entrevistado de
Silva (1982) – participante das ações: para o entrevistado o objetivo político do “quebra” é
atingir o Estado, atingir a falsa imagem produzida pelo Estado de que bons serviços de
transporte são oferecidos à população, enquanto os usuários desses serviços têm clareza
que não são. O objetivo final é, assim, atingir a figura política dos governantes e seu
potencial de ser eleito em futuros pleitos.
É preciso apontar o fato de que os “quebras” ocorreram em linhas e locais
periféricos em relação ao centro da cidade de São Paulo – seja em linhas férreas ou linhas
de ônibus metropolitano (intermunicipal), ou ainda linhas de ônibus municipais da
periferia da própria capital.140 Reflexo de uma segregação social que se explicita por meio
da forma de ocupação do espaço metropolitano e da capital paulista, e regida pela divisão
social do trabalho (VASCONCELLOS, 2001, p. 36). As manifestações que mais se
destacaram no tema dos transportes – e que foram mapeadas neste estudo – ocorreram em
cidades-dormitório ou bairros-dormitório, cuja população tinha cotidianamente as áreas
centrais da cidade de São Paulo como destino. São lugares em que o movimento pendular
de deslocamento casa-trabalho é grande, e onde foram detectados os maiores problemas
no serviço de transporte público. Silva (1982), por exemplo, nomeia o fenômeno como
“transporte de subúrbios” – cuja origem é o vocabulário usado pelo próprio Estado no

140
Utilizo aqui os casos estudados pelas duas dissertações e pelo artigo citados no início deste subitem.

268
Plano de Remodelação dos Subúrbios, elaborado e implementado pela empresa estatal
Ferrovias Paulistas S.A.–FEPASA:

[...] com o objetivo de melhoria da oferta de seu serviço público,


especialmente na região Oeste da Grande São Paulo que engloba os
municípios de Osasco, Carapicuíba, Barueri, Jandira e Itapevi. Esta
região abriga grandes contingentes de trabalhadores com baixos níveis de
rendimentos mensais, onde o acesso ao trem de subúrbios passa a ser
elemento vital no cotidiano da sua reprodução enquanto força de
trabalho (SILVA, 1982, p. 02).

O trabalho de Affonso (1985) analisa os movimentos reivindicativos de transportes


coletivos de Taboão da Serra e Embu, confirmando que os casos documentados da
mobilização popular por transportes de maior visibilidade se deram em locais onde os
grandes percursos pendulares de transporte estão potencializados, entre periferia (moradia)
e centro (trabalho).
Essa característica comum a ambas as pesquisas remete-as ao campo de análise
marxista (ou materialista histórico). Os autores descrevem as condições dos passageiros
revoltosos: cidadãos de baixa renda; que moram em locais periféricos, afastados das
oportunidades de emprego, de educação, de atendimento à saúde e de provimento de
equipamentos de lazer; que fazem longos trajetos diários de transporte público para chegar
ao destino final e são atendidos com serviços públicos de baixíssima qualidade.
A esta somatória de retiradas de direito, e consequente anulação civilizatória e da
cidadania, o sociólogo Lúcio Kowarick chamou “espoliação urbana”. Uma das explicações
para este acúmulo de problemas é o grande déficit habitacional para os cidadãos de baixa
renda em locais mais centrais das cidades, além da falta de investimentos em melhoria na
qualidade dos serviços públicos. Kowarick aponta em especial o serviço de transporte
público, pois pode elevar em muitas vezes a jornada de trabalho deste passageiro – visto
que o tempo de deslocamento casa-trabalho, casa-escola, etc. influi na qualidade da atenção
e disposição deste ser humano. O transporte seria, portanto, um serviço prestado apenas
para a “reprodução do capital”, que atende apenas à demanda de mão de obra para os,
então, donos do capital.
Já o artigo de Telles e Caccia Bava (1981), O movimento do ônibus, a articulação
de um movimento reivindicatório de periferia, estuda especificamente os bairros da zona
sul de São Paulo – localizações periféricas em relação a uma das cidades mais populosas
do mundo, denominados “bairros-dormitórios” (p. 89). A pesquisa destaca que a formação

269
reivindicatória da população se deu através de duas esferas participativas, com lógicas e
organizações diversas entre si: as Sociedades Amigos de Bairro da Região Sul (SAB’s) e as
Pastorais da Igreja Católica.
Até 1973, as Sociedades Amigos de Bairro da Região Sul (SAB’s) se organizaram
principalmente através do Plenário de Santo Amaro, identificado com forte caráter
clientelista. O órgão reuniu as SAB’s da região e serviu de elo entre estas associações de
bairro e os deputados e vereadores do MDB e ARENA. “Valem-se do prestígio conferido
pela intimidade que gozam com os ‘políticos’ para serem respeitados pelos moradores”
(TELLES; CACCIA BAVA, 1981, p. 82). Já as Pastorais da Igreja Católica, arregimentadas
por setores católicos progressistas, organizavam trabalho de promoção humana. “A fé e as
questões evangélicas combinam-se com os problemas concretos da população e a
necessidade de organização em torno dos interesses imediatos que esta população
expressa” (idem, ibidem, p. 84). Ligada à moral religiosa, mas de atuação reivindicativa
para a população de baixa renda, a Igreja representou durante os anos de maior repressão
da ditadura militar a única alternativa de participação da população. De acordo com os
autores, este formato participativo se fortaleceu e passou também a influenciar e alterar a
organização das SAB’s, principalmente a partir de 1974141.
Embora tenham havido outras atividades articuladas pelos moradores de bairros da
região sul, de acordo com as informações contidas no artigo, apenas esta ação especificava
as associações de bairros que assinaram a proposta. A atuação dos moradores da região sul
da cidade de São Paulo é singular, pois poucos são os casos estudados de mobilização da
população por reivindicações de transporte na Região Metropolitana, e menos ainda são
os casos que retrataram especificamente a capital no recorte histórico de estudo da
dissertação.
Alguns dos pontos levantados pela literatura acadêmica apresentada acima possuem
semelhança com o tipo de mobilização popular que, esteve atuante durante os anos de
1989 a 1992 (período da gestão da prefeita Luiza Erundina em São Paulo), segundo os
dados obtidos no correr da presente pesquisa. A coletânea de dados desta dissertação
consistiu na recuperação de ações populares que envolvessem o tema de transporte coletivo
no período citado – parte desta compilação da pesquisa foi desenvolvida nos acervos dos

141
“É curioso observar que, à medida que se desenvolvia o trabalho pastoral da igreja, este atraía para si as
direções das SAB’s, que assim se distanciavam do Plenário de Santo Amaro” (TELLES; CACCIA BAVA,
1981, p. 90).
270
dois maiores veículos de jornalismo impresso da cidade, O Estado de S. Paulo, e a Folha
de S. Paulo.
Para fazer esta busca por ações e manifestação da população, tive de recorrer ao
termo “quebra-quebra”, trabalhado inclusive por pesquisadores da área acadêmica citados
nesta dissertação, como Affonso (1985) e Silva (1982). Um universo de 9223 registros foi
encontrado a partir da combinação das palavras-chave “quebra-quebra” e “transporte”, no
acervo do jornal O Estado de S. Paulo, na década de 1990. Deste conjunto, apenas 11
registros jornalísticos – ou como chamaremos aqui, “casos” – foram possíveis de selecionar,
pois eram os únicos que descreviam as ações populares que havíamos previsto para a
pesquisa. A checagem das informações se deu posteriormente com a busca pelos casos no
Jornal Folha de S.Paulo.142 Os casos compilados pelos dois grandes jornais apresentam as
seguintes informações:
Caso 1 – Nos dias 12, 13, 14, 15 e 16 de fevereiro de 1990, grandes manifestações
populares ocorreram na cidade de São Paulo, o jornal O Estado de S. Paulo passa a relatar
o fato a partir do dia 14/02/1990. A apuração dos motivos para a manifestação: a falta de
regularidade da linha de ônibus Jardim Jacira destino Estação Santa Cruz. O relato da
população ao jornalista é de que para os horários de ônibus previstos às 4h30 e às 5h00,
nenhum veículo apareceu para fazer o percurso. Como se tratava do trajeto dos primeiros
coletivos do dia, nenhuma alternativa existia para a população que não fosse esperar o
próximo veículo. Apenas às 5h40 apareceu o primeiro, quando já esperavam mais de 300
pessoas. O levante popular se generalizou quando a maior parte dos passageiros não
conseguiu entrar no ônibus. O sentimento de perda de tempo e o atraso em seus
compromissos de trabalho foi o que alimentou o movimento. Um tiro foi desferido pelo
motorista da Viação Jurema – empresa municipalizada –, que disse que estava com medo
de ameaça de linchamento. No decorrer dos dias, seguiu-se a contenda. Dia 16/02/1990 o
jornal O Estado de S. Paulo lançou mais uma matéria que apresentava o calendário das
revoltas populares: aquele seria o “quinto dia consecutivo de quebra-quebra”. O número
total de ônibus depredados chegou a 20. Os bairros mais afetados foram o Campo Limpo,
Jardim Sampaio, Jardim Jacira – divisa com Itapecerica da Serra, Zona Sul – e Capão
Redondo. Novamente a população reclamou do atraso na partida dos veículos, que
ultrapassava 40 minutos. Por outro lado, na mesma matéria, foram reportadas reclamações

142
É importante pontuar que para ter acesso ao Acervo Histórico dos jornais é preciso ser assinante. No caso
do jornal O Estado de S. Paulo, eu assinei durante 4 meses o serviço, e do jornal Folha de S.Paulo, que
garantia a leitura de um número limitado de matérias de graça, o uso que fiz foi a de checagem das
informações exatamente por conseguir poucas matérias sem ter de assinar um contrato pago.
271
das empresas de ônibus sobre o projeto de municipalização do transporte coletivo a ser
implantado, em que o ganho do serviço seria realizado por quilômetro rodado e não por
número de passageiros.
Caso 2 – No dia 19 de abril de 1991, o jornal O Estado de S. Paulo descreveu uma
revolta de mais de 4 mil pessoas contra o atraso no transporte coletivo, na região de Santo
Amaro - Largo 13 - na Zona Sul de São Paulo. O secretário de transportes, Lúcio Gregori
e o presidente da CMTC, Paulo Sandroni, foram ao local. O secretário, ao discutir os
motivos das oito horas de manifestação, disse que foram “fruto da crise [econômica] e do
desemprego”. No entanto, admitiu que a situação dos transportes na Zona Sul era “crítica”.
Como resultado da grande manifestação, o jornal relatou que 5 pessoas foram presas
saqueando lojas, 69 ônibus foram depredados, e 200 policiais da tropa de choque foram
mobilizados. A matéria também faz uma possível referência ao evento descrito no Caso 1
(aproximação realizada por mim, mas que não pude confirmar). A notícia descreve eventos
ocorridos entre fevereiro e março de 1990, onde vários passageiros revoltados depredaram
mais de cem ônibus pela falta de transporte coletivo “a diretoria da CMTC reconheceu
que o déficit de 1200 ônibus era a causa das depredações” (Jornal O Estado de S. Paulo,
19/04/1990).
Ainda sobre os registros dos jornais, foi possível mapear outras duas ações
específicas que tratam do serviço público de transportes: a greve dos perueiros ou
“clandestinos” e, em 1990, a grande greve de funcionários da CMTC (como meu foco
analítico são as ações e manifestações de caráter mais espontâneo de participação popular,
estes eventos não serão pormenorizados).143
Sobre os casos de manifestação popular na zona sul, Gregori, então Secretário de
Transportes da gestão, relembra:

Então na primeira semana que sou secretário, interino ainda, entra o


chefe de gabinete da Erundina, e diz que está tendo um quebra pau no
largo em Santo Amaro: Você é o Secretário de Transportes então dá um
pulo lá pra ver o que é. Eu chego no largo, estava em pé de guerra,
colocando fogo em ônibus, um negócio horroroso. Pensei: o que estou
fazendo aqui? Aí vem o coronel Ubiratam, naquela época ele era
comandante do policiamento metropolitano, aí pergunto pra um e pra
outro, e parecia briga de prostitutas, não há inocentes, o cara que estava
jogando bomba era o cara que tinha interesse no transporte clandestino

143
Outro motivo para estes atos ficarem de fora na análise é porque procurei buscar os dados relativos à
recepção da população cotidianamente usuária do transporte público, e não relativos aos servidores do
sistema. Ainda que eles também possam ser usuários do serviço, durante suas greves o foco está na sua
categoria de trabalhador, e não na de usuário.
272
na região, o cara do sindicato que está aproveitando porque ele é contra
a corrente que está não sei aonde, o usuário que está “p” da vida, este
talvez seja o mais puro na história toda, mas é uma coisa assim... Ao
mesmo tempo [Lúcio percebe que] é uma revolta popular complicada,
porque o estado do transporte estava mesmo uma porcaria (GREGORI,
23/04/2015).

Para um tratamento do problema de forma materialista histórica, as notícias sobre


os “quebras” durante a gestão Luiza Erundina devem ser analisadas sob o prisma das
manifestações apontadas anteriormente. Importante: tanto a técnica de ação direta nas
mobilizações, os “quebras”, quanto a região de maior mobilização no município de São
Paulo (estudada pelos pesquisadores apontados) estabelecem um padrão de análise que
pormenorizarei.
Em um primeiro momento, o próprio Secretário de Transportes, Lúcio Gregori
(figura pública e representante do poder executivo na cidade), descreve a ação popular
como sendo articulada por atores sociais organizados em interesse próprio – sejam eles
organizados pelo interesse em explorar o serviço de transporte com veículos não
licenciados pela Prefeitura (o transporte clandestino ou “perueiros”), sejam eles
organizados por sindicalistas (do próprio partido, mas de corrente política diversa da
maioria que compôs a administração petista na cidade) possivelmente insatisfeitos com a
atuação administrativa. Isso não retira o caráter político das ações, e não nega que
personagens também estivessem legitimamente envolvidos nas ações espontâneas, mas,
como o próprio Lúcio reviu, existiam fatores reais para a explosão das manifestações
populares: “o estado do transporte estava mesmo uma porcaria”, os usuários estavam
mesmo revoltosos com o serviço.
É importante destacar que, durante a gestão Luiza Erundina, o primeiro caso, onde
as manifestações tomaram forma do “quebra quebra” espontâneo que duraria cinco dias,
ocorreram antes das primeiras implantações do serviço de municipalização do transporte
por contrato de emergência (primeiro semestre de 1990) pelo segundo secretário da pasta
Adhemar Gianini, fato que é citado na matéria do dia 16/02/1990 (O Estado de S. Paulo),
e antes ainda da criação do projeto Tarifa Zero (por volta de setembro de 1990). Além
disso, ocorreu em um período posterior significativamente relevante do reajuste do valor
da tarifa (no primeiro semestre de 1989, no início da gestão municipal), a que Singer,
secretário de Planejamento da gestão, chamou de “a crise da tarifa de ônibus” (1996, p.
55). A medida de reajuste fora bastante contestada dentro e fora do PT:

273
O confronto se explicava pela mútua frustração de expectativas: os
companheiros do PT estavam frustrados porque depois de vários meses
da “tomada do poder municipal”, aparentemente nada tinha mudado –
no caso do transporte coletivo, a tarifa continuava sendo aumentada e a
superlotação dos ônibus tinha ainda piorado mais. Os membros do
governo por sua vez estavam frustrados não só porque suas próprias
expectativas não se haviam realizado mas também porque o
conhecimento precioso que estavam adquirindo sobre o lado de dentro
da máquina governamental não despertava o interesse dos companheiros
do partido, muito mais motivados a cobrar resultados do que considerar
as condições objetivas em que o PT estava governando São Paulo
(SINGER, 1996, p. 84).

Todavia, é importante apontar que a data de adoção da impopular medida (20 de


maio de 1989, conforme comunicado da CMTC no jornal Folha de S.Paulo) de reajuste
não coincide com as datas das manifestações mapeadas (dias 12, 13, 14, 15 e 16 de fevereiro
de 1990; e dia 19 de abril de 1991). Assim, não é possível dizer que o aumento da tarifa
naquele momento específico tenha sido um ponto de inflexão que opôs sociedade versus
administração municipal.
Já o segundo caso de manifestação, em 19 de abril de 1991, é curioso pois ocorreu
depois da elaboração, divulgação e tentativas de implantação das políticas de transportes
descritas aqui – a Tarifa Zero e a Municipalização. Para esta data já haviam sido instaurados
os contratos de municipalização de emergência, para apenas algumas linhas iniciais, mas a
Lei Municipal nº 11.037, de 25 de julho de 1991, que estabelecia a política de
Municipalização dos transportes por toda a cidade ainda estava por vir. Ambos os casos de
manifestações, descritos aqui, ocorreram diante de um contexto de constante má qualidade
no serviço de transporte, ou seja, a uma questão estrutural que, junto às preocupações já
levantadas no programa de governo, dotou o tema dos transportes, ao longo da gestão, de
uma importância central.
E foi também no ínterim entre os registros de quebras mapeados pela pesquisa, que
ocorreram no período da administração Luiza Erundina, que se deram as audiências
públicas de “Orçamento de 1991 e tarifa zero” para a divulgação das propostas combinadas
do executivo. Na região de Santo Amaro, o único registro descoberto de um líder
autodeclarado do movimento de transporte acabou por contribuir para uma conclusão
sobre certa fragilidade de elaboração das ações do movimento na cidade. A fala completa:

A gente fez uma avaliação, se a gente não pensar a nível de transporte


daqui a dez anos, não adianta nada ficar brigando linha por linha que

274
não vai levar a lugar nenhum. Então em cima disso a gente tem duas
propostas: uma, que é a criação do Terminal Interlagos, urgentemente,
para entrar no projeto do ano que vem. Com a avaliação que com a
criação deste terminal, que pegaria a Av. Washington Luis, Interlagos,
Rubem Berta, 23 de maio e Centro a gente estaria atendendo uma
população que partindo de Interlagos à Imbu-guaçú daria 40 a 50 Km,
já seria um passo grande pra atender uma população enorme nessa
região, e em parte o problema de transporte na zona sul. E a outra que
seria a criação de uma garagem da CMTC na região, porque as duas que
atendem hoje as várias linhas da região, que é a Jabaquara e Santo
Amaro, hoje já está superlotada e não suporta nem os ônibus que elas
têm de atender na área. Então, estes são os dois um “problema
primordial” pra zona sul (Companheiro Sebastião do Movimento de
Transporte Guacuri-Cupecê, CEDEM UNESP, 1990c).

As propostas em si não apresentam falhas de elaboração técnica para os problemas


diários da região, que abrange a Vila Guacuri e Av. Cupecê na zona sul, contudo é possível
apontar uma fragilidade de organização política do movimento, pois aquele foi o espaço
de discussão de uma das mais inovadoras propostas de política pública na área dos
transportes. Era, esperado deste movimento maior posicionamento a respeito do projeto
de tarifa zero, sendo ele uma crítica ou apoio, mas não foi isso que ocorreu.
Ainda assim, Singer apontou, que a questão dos transportes foi a política de maior
destaque tocada por eles: “Agora, quatro anos depois, continuo achando que estávamos
certos e que a campanha pela tarifa zero representou o auge de nossa administração” (p.
114). Realmente a política de planejamento dos transportes é destaque até hoje, no entanto,
não foi acompanhada de planejamento para a participação popular. Não houve, por
exemplo, tentativa de incorporar os manifestantes que questionaram a qualidade do serviço
por conselhos participativos de gestão da política de transportes. Devo relembrar que os
dois conselhos propostos pela gestão para o assunto dos transportes foi o Conselho
Municipal de Transportes, composto apenas por gestores da administração municipal, e o
Conselho Municipal de Tarifas, composto pelos gestores da prefeitura e a “sociedade civil
organizada” que significava representantes técnicos de entidades renomadas de
planejamento. Ambos conselhos não foram elaborados para ter como representante a
própria população, ou moradores da cidade que viviam o problema dos transportes
diariamente, como membros.

275
CONCLUSÃO

Os temas centrais abordados na dissertação, transporte como direito e participação


popular, fizeram seu trajeto no conjunto dos capítulos do trabalho – desde a descrição na
Proposta Popular de Emenda sobre a Reforma Urbana (1988) do MRNU ao projeto da
Constituição de 1988 como direitos urbanos, à elaboração das políticas de transporte e
serviços públicos na “gestão democrática da cidade” pela administração petista de Luiza
Erundina em São Paulo.
Como uma das conclusões aponto que, do ponto de vista da ampliação dos direitos
sociais e do desenvolvimento do (utópico) direito à cidade, as políticas urbanas em
transporte tiveram poucos avanços na sua implementação sob a forma de leis, dentro do
regime econômico de desmanche. É preciso ressaltar, todavia, as tentativas, principalmente
aquelas desenvolvidas pelo MNRU e pelo Grupo de Trabalho de Transportes do PT –
que muitas vezes possuíram técnicos e militantes que transitaram em ambas coletividades,
e em outras vezes tiveram a experiência de fazer parte da máquina pública e de aplicar
parte das pautas defendidas pelos movimentos sociais.
Mas uma pergunta, para as notas finais, se coloca: foi o bastante o conjunto de
instrumentos colocados à disposição da sociedade, pela administração Luiza Erundina,
para regular o serviço de transporte e exigi-lo como direito?
Os dados coletados expõem esforços administrativos, bem como os limites tanto
da falta do engajamento populacional na participação de disputa das políticas da área de
transporte. Expõem também os limites metodológicos das diferentes propostas
participativas conduzidas pela administração (momentos esse, em que foi possível intervir
dentro do próprio sistema político, planejando e executando políticas públicas).
Não é preciso reafirmar que um processo mais democrático traz incrementos à
eficiência do planejamento da política urbana, nem que essa ampliação de democracia
torna ajuda na defesa social dos projetos. Contudo, vale apontar que o discurso da gestão
Luiza Erundina, herdeira de vários técnicos e ativistas do Movimento pela Reforma
Urbana, era exatamente o da defesa da participação popular – e que, portanto, quando o
projeto democrático não se efetiva por completo, um ruído se instala.
A dissertação também conta com uma análise sobre o processo de formação dos
mecanismos e projetos elaborados para a área urbana, e o curioso é que seu
desenvolvimento se encontra na, característica já descrita aqui, interlocução entre o meio
acadêmico (universidades e centros de pesquisa), movimentos sociais (alguns dos quais

276
articuladores históricos da formação do MNRU) e os técnicos indicados para preencher os
cargos comissionados da administração municipal entre 1989 e 1992 (também militantes e
acadêmicos que foram o exemplo concreto do trânsito entre as três esferas: universidade,
movimentos sociais, e Estado).
A administração inovou nas experiências, em larga escala, de criação de instâncias
institucionais de participação da população nas decisões de políticas públicas,144 desde o
número dos espaços de interlocução, quanto do número de pessoas (civis, militantes,
independentes partidários) que participaram deles. Ainda sobre os mecanismos, mesmo
os modelos participativos, que dei destaque, merecem um debate.
Os conselhos e fóruns de negociação, são mecanismos utilizados para garantir uma
prática político-democrática, contudo não podem ser desvinculados de um direito de
decidir sobre a cidade. Portanto, minha crítica incide sobre o fato de que fora as
experiências executadas na Secretaria de Habitação, as decisões dos projetos urbanos não
foram (e não são ainda) determinadas pelo conjunto da sociedade, mesmo em governos
de notável ampliação e discussão democrática – como foi o caso do objeto de estudo.
Especificamente, afirmo que isso não se deu em grande medida por causa dos mecanismos
colocados pelo governo à disposição do conjunto social.145
Como também é preciso estabelecer uma prática de escuta e organização dos
trabalhos administrativos a partir de demandas da população, se faz necessário nesta
dissertação apontar quais foram as principais reflexões que a população elaborou neste
mesmo período, e que transpuseram as instâncias institucionais garantidas pela
administração, e ainda o repertório de ações (que também englobam as ações diretas de
depredação - os quebra-quebras - como ações políticas) que a população se utilizou
apresentar as demandas: 1) Revoltas populares de 1990: falta de regularidade da linha de
ônibus, superlotação, perda de tempo e atraso para o trabalho, e déficit de veículos,
verificados principalmente na zona sul; 2) Plenária do Orçamento de 1991 e Tarifa Zero:
criação do Terminal Interlagos de ônibus, criação de mais uma garagem da CMTC na zona
sul, na região da Vila Guacuri e Av. Cupecê.

144 De então, mesmo se for contabilizado as diversas administrações petistas que ocorreram no mesmo
período.
169 Não quero com isso apresentar os conselhos como únicos mecanismos de participação direta, até porque
severas críticas foram ao longo dos anos realizadas sobre a atuação de seus representantes civis, no entanto
não era este o debate então, no início da prática participativa. Pandolfi e Espírito Santo (2014) refletem sobre
os rumos tomados pelos conselhos. O peso que o conselho assumiu na atualidade pode indicar chegada dos
interesses especulativos do “transportar a cidade” (jogo de palavras com o termo produção da cidade) mesmo
277 que historicamente foi plantado pelos governos de
nas cadeiras da população usuária, e deixa de ter o brilho
esquerda.
Apesar dos poucos registros que consegui obter da sociedade civil tomando sua
voz, estes são muito significativos pois podem hoje ser interpretados que mesmo as pautas
pontuais têm seu lugar, bem como a especificidade regional na grande escala da capital
paulistana.
Partindo dessas vozes dissonantes aos interesses do capital, explicita-se que os
conflitos urbanos são agravados com o mal planejamento das cidades (até porque o
planejamento das cidades ocorre, comumente, seguindo a lógica e os ditames do próprio
capital), e a péssima qualidade no serviço de transporte reflete e acentua a desigualdade
social desta população. Isto é, ao procurar andar na contramão das tradicionais políticas de
transporte implantadas no país e mundo, a gestão construiu novos conceitos, executou
práticas que se consolidaram experiências (utópicas) com vistas à promoção da reforma
urbana, conforme também apontado pelas experiências empreendidas nas outras
secretarias, e pela própria trajetória de trabalho destes militantes, e acadêmicos que
assumiram cargos na gestão.
Por fim, para o autor que inspirou a abordagem dessa dissertação, Henri Lefebvre,
o direito urbano, o direito à cidade, se realiza quando todos têm voz, todos que compõem
a sociedade, principalmente os mais excluídos dela, e podem decidir o planejamento da
cidade e o sentido das ações político administrativas. São, portanto, dimensões utópicas
que se reafirmam pela não aceitação do mundo como ele é.
A não efetivação das políticas urbanas elaboradas pela administração Luiza
Erundina não é um resultado direto da simples existência ou não de movimento social
prévio à gestão. Trata-se sim (no presente) do efetivo poder popular de modificar o estado
do urbano, desde a sua forma prática à sua forma sensível, desde sua forma econômica, à
forma de partilhar o poder entre todo o conjunto social.

Na prática a ideologia da participação permite obter pelo menor preço a


aquiescência das pessoas interessadas e que estão em questão. Após um
simulacro mais ou menos desenvolvido de informação e de atividade
social, elas voltam para sua passiva tranquilidade, para o seu retiro. É
evidente que a participação real e ativa já tem um nome. Chama-se
autogestão. O que podem trazer outros problemas (LEFEBVRE, 2011,
p. 104).

278
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280
GT 02 – CULTURA, IDENTIDADE E
MEMÓRIA

281
CORPO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE: SOLIDEZ E
VERTIGEM

Yasmim Nóbrega de ALENCAR146

Resumo: O objetivo geral desse trabalho é pensar e ponderar teoricamente sobre o corpo como
construção social e cultural, levando em consideração suas memórias vivas. A metodologia utilizada
é levantamento, leitura e análise de referências bibliográficas sobre o tema, em consonância com
observações de trabalho de campo, em entrevistas com história de vida em curso. Para este
trabalho, realizamos reflexões analítico-reflexivas baseadas nos conceitos de Corpo, simbolismos e
corpo-rascunho apresentados por David Le Breton, além das ideias de conatus e corpo-mente
espinosanas e o olhar de autoras que pensaram a dança contemporânea, como Christine Greiner,
Tereza Rocha e Laurence Louppe. A solidez e a vertigem habitando os mesmos corpos compõe
esse trabalho, entendidas sob a perspectiva pós-colonial que traz à tona e não impede de se
expressar cada subalternidade potente nos corpos-mentes de ex-integrantes de dois grupos de dança
contemporânea de periferias brasileiras (CEM, do Ceará, e Pélagos, de São Paulo). Nossa reflexão
repousa nos conceitos de corpo, a fim de pensar que relações de afetos e sentimentos acontecem
no entremeio das construções corporais simbólicas que impregnam experiências humanas
atravessadas da, na e com a corporeidade, em especial, pensando as trajetórias de vida e as
memórias de ex-integrantes desses dois grupos. As experiências vivenciadas pelos sujeitos no
contexto dos grupos CEM e Pélagos, são encaradas como realidades simbólicas e concretas,
memórias da pele e produtoras de sentidos. E as relações sociais que representam e expressam,
são valorizadas como vivências culturais do passado e do presente de cada ex-integrante que nos
conta hoje sua história de vida, com narrativas pessoais e coletivas colhidas para a pesquisa de
mestrado “Corpo e mente: experiências de dança em periferias brasileiras”.

Palavras-chave: Corpo. Mente. Dança. Memória. Periferias brasileiras.

INTRODUÇÃO

Todo o movimento modifica o espaço.


(Jacqueline Robinson)

Propõe-se, aqui, o desenvolvimento breve de reflexões sobre o corpo como


categoria de análise sociológica e antropológica, nas relações que estabelece a partir de suas
construções sociais, culturais e histórico-políticas.
O presente trabalho realiza observações analítico-reflexivas baseadas nas leituras
dos conceitos de Corpo, Simbolismos e Corpo-rascunho apresentados por David Le
Breton147, em algumas de suas obras. Também nos baseamos no resgate histórico-crítico de

146
Mestranda em Estudos Culturais; Universidade de São Paulo (USP); Capes; yasmimalencar@usp.br
147
David Le Breton, sociólogo e antropólogo francês, professor da Universidade Marc Bloch de Estrasburgo,
especialista na área de estudos do corpo.
282
Teorias do corpo e da dança das autoras Christine Greiner148, Laurence Louppe149 e
Thereza Rocha150, além do olhar do filósofo português Benedictus Espinosa151, com o
conceito de Conatus, para compreendermos melhor a trajetória complexa do conceito
Corpo como categoria de pensamento. No decorrer do texto, destrinçamos a conceituação
a fim de pensar que relações de afetos e sentimentos acontecem no entremeio das
construções corporais simbólicas que impregnam nossas experiências humanas
atravessadas da, na e com a corporeidade.
Objetivo geral é pensar/ponderar a conceituação acerca da temática. A estas
ponderações, a posteriori, agregaremos elementos de informações que estão sendo
colhidas no Trabalho de campo com ex-integrantes dos grupos de dança contemporânea
CEM e Pélagos152; atuais objetos de pesquisa, enquanto realidades simbólicas, no contexto
das relações sociais em experiências culturais vivenciadas por estes, como sujeitos
identitários, no contexto da pesquisa de mestrado, em andamento, Corpo e mente:
experiências de dança em periferias brasileiras. Isto para que esse trabalho contribua para
a pesquisa e reflexões que ela venha a empreender.
Dentre as múltiplas definições e a ausências dela, a dança contemporânea se
esquiva. Podemos até dizer que ela é “a dança de cada um”, como afirma a historiadora
francesa Laurence Louppe. Mas fixá-la em uma determinada identidade não seria possível
se considerarmos que existem muitas danças e corporeidades que as criam na efemeridade
e que dão vida e também finitude às ações por meio da dança.
Nos grupos CEM e Pélagos, a dança acontecia quando os sujeitos tinham espaço
para expressar seus movimentos livremente e compartilhar movimentações em exercícios

148
Christine Greiner, jornalista, pesquisadora e Profª. Drª. Da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Coordena o curso de graduação em Comunicação e Artes do Corpo, que ajudou a criar.
Desenvolve sua pesquisa na área de comunicação, com enfoque em estudos interdisciplinares do corpo. É
parceira de trabalho de Helena Katz, com quem desenvolve o conceito de Teoria Corpomídia. É especialista
em estudos do corpo no Oriente e teve dois de seus pós-doutorados realizados no Japão.
149
Crítica de dança, especializada em estética.
150
Thereza Rocha é pesquisadora de dança, dramaturgista/diretora e professora da área de Estudos Teórico-
filosóficos em dança em cursos de graduação em dança da Universidade Federal do Ceará.
151
Espinosa foi um filósofo racionalista português da Filosofia Moderna, um dos primeiros a questionar a
dicotomia entre mente e corpo e propor sua filosofia sobre afetos, afecções e temas contundentes em obras
como Ética e Tratado político.
152
Estamos realizando Trabalho de campo para colher informações sobre as trajetórias de vida e efeitos das
experiências que ex-integrantes destes dois grupos 283 vivenciaram/vivenciam. O CEM – Centro de
Experimentações em Movimento, foi criado pela atriz, bailarina e coreógrafa Silvia Moura. Começou com
mais de 100 participantes em aulas livres da dança em espaço público cedido e existiu na cidade de
Fortaleza/CE. Desenvolveu trabalhos artísticos e de formação com jovens que, em parte, eram de periferias
da cidade. Extinguiu-se há cerca de 2 ou mais anos atrás. O Núcleo de Dança Pélagos foi um grupo atuante
na cena da dança contemporânea de São Paulo capital até 2015; estando atualmente em “manutenção”,
segundo ex-coreógrafo. Nasceu na Região do Campo Limpo, com a iniciativa do bailarino e coreógrafo
Rubens Oliveira, da periferia da Zona Sul paulistana.
coreográficos, repetições de gestos ou mesmo busca por uma movimentação nova que
surgisse da evocação de algum tema, como por exemplos o amor ou a desigualdade social.
Durante as aulas do CEM, eram trabalhadas técnicas de dança e teatro que
envolviam a experimentação do espaço, os pontos de vista e a relação dos corpos a partir
destes no ambiente onde aconteciam os encontros. O contato-improvisação153 era muito
praticado pelo grupo e estimulava a criação de movimentos coletivamente, de forma
aleatória e espontânea. Outra característica dos processos criativos e formativos em dança
contemporânea, neste grupo, é o uso da palavra em cena, misturada aos gestos, mas
também se confundindo e contrastando com eles, na medida em que não havia o momento
de falar separado do momento de agir, nas apresentações. A proposta trazida pela
coreógrafa Silvia Moura, circundava outras experiências e saberes em dança-teatro
experimentados no mundo, como o método utilizado por Pina Bausch, com o qual eram
criados processos criativos a partir de motes154, trabalho com criação de movimentos e
repetição, contato-improvisação, dentre outros.
Thereza Rocha aponta para a importância de se pensar a dança contemporânea
para além de definições que buscam fixá-la em lugares estáticos. No texto O que é dança
contemporânea? A narrativa de uma possibilidade. , a autora aponta que

A dança contemporânea ainda e sempre não decidiu o que a dança e é,


assim, o que ela deve ser. Ela deambula na direção da véspera de sua
origem para abrir a fechadura que lhe põe o conceito. Sair do jogo dos
pressupostos que diz: Sabemos o que é dança. Dancemos a partir daí,
para dizer: A dança não se sabe. A dança não se sabe nunca. Voltemos
sempre aí. Esta é a única condição de dançar imediatamente agora.
Seguindo Gilles Deleuze, o que se encontra na origem? Não o ser, a
essência imutável das coisas, mas a diferença, as coisas em (sua)
diferença. O que fazer quando a multiplicidade, a variabilidade,
encontram-se na origem? (ROCHA, 2011, p. 127).

A dança contemporânea foi o espaço-tempo de criação, experimentação e vivência


do próprio corpo onde acontecem as experiências das pessoas de cada grupo. Durante as

153
É uma técnica utilizada na dança contemporânea para realizar exercícios a partir do toque, no qual os corpos
se permitem tocar e criar movimentações a partir disto. A respeito disso, a teórica da dança diz que: “A pele
é um meio de percepção que relaciona o corpo com todos os pontos do espaço. Ela não se fecha, à
semelhança de uma embalagem orgânica, mas, pelo contrário, abre-se e gera volumes. A prática do contact
improvisation ensina-nos que a pele contém, por meio da sua exposição e das suas faculdades tácteis, os
impulsos da tridimensionalidade. De facto, esta volumetria, essencial na dança contemporânea, é responsável
pela abertura do corpo ao mundo, ao interior do seu próprio movimento” (LOUPPE, 2012, p. 76).
154 284
Motes são temas provocativos que estimulam o pensamento e a criação em dança, teatro e performance.
Geralmente, funciona como disparador em processos criativos para dar sentido àquilo que se quer dançar.
aulas, em momentos de construção coreográfica, de improvisação e outras vivências
corpóreas, os (as) participantes conhecem técnicas, experimentam sensações, realizam
rupturas e permanências produzindo movimento, pausa, ritmo e aceleração nos seus
corpos; movimentando-os em meio às relações sociais que os limitam, os cerceiam e os
condicionam a manifestar ou não aquilo que sentem e pensam. Assim, as aulas
proporcionam alguma liberdade para esse corpo que pensa e sonha.
Damásio (2004), na obra Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos
sentimentos, relaciona o corpo e a mente a esferas da vida humana que convergem e
entram em conflito, mas nenhuma delas estando fixada em uma ordem hierárquica, ou
seja, podendo uma influenciar mais a outra e vice-versa. O autor pondera:

Se os sentimentos são percepções, são comparáveis a outras percepções,


e também operam através de sinais sensoriais mapeados no cérebro. A
diferença é que o objeto que dá origem a essas sensações está dentro do
corpo e não fora dele, faz parte do organismo vivo que sente
(DAMÁSIO, 2004, p. 91).

Corpo-mente é o corpo em sua totalidade. Neste, não há separação ou


hierarquização das partes que o integram; entre sentimento e pensamento. Razão e emoção
se confundem, na medida em que uma é porção da outra. Mas é evidente que a relação
entre estas existe e se altera conforme mais ou menos ativamos nossa “consciência
corporal”, ou conforme aponta Le Breton (2009), de acordo de acordo com as
circunstâncias e nossa avaliação sobre as mesmas. Para Espinosa, isto não se dá no campo
somente racional. Sobre isso, Espinosa (2007) afirmava que:

(...) a mente e o corpo são uma só e mesma coisa a qual é concebida ora
sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão (...) que a ordem
das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, em natureza, à
ordem das ações e das paixões da mente (ESPINOSA, 2007, p. 167).

A produção social dos corpos resulta, portanto, da construção dos sujeitos no


âmbito sociocultural e político onde estão inseridos. No caso desta pesquisa, o local
consiste no estudo de dois grupos de dança localizados nas periferias de capitais. Segundo
Bertherat (2010, p. 3):

Nosso corpo somos nós. É nossa única realidade perceptível. Não se


opõe à nossa inteligência, sentimentos, alma. Ele os inclui e dá-lhes

285
abrigo. Por isso tomar consciência do próprio corpo é ter acesso ao ser
inteiro... pois corpo e espírito, psíquico e físico, e até força e fraqueza,
representam não a dualidade do ser, mas sua unidade.

A dança contemporânea surge nesta pesquisa em expressões artísticas, espetáculos,


processos criativos e diversas formas de apresentação dos grupos CEM e Pélagos. Ela está
atravessada por existências, subjetividades e corpos-mentes ali produzidos, em meio às
opressões e resistências vividas nas periferias.
Adiante, seguimos com a discussão teórica motivada pelo desejo de tentar encontrar
respostas ou mais perguntas às questões que envolvem o corpo e seus simbolismos.

DESENVOLVIMENTO: CORPO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE

Não sabemos o que pode o corpo.


(SPINOSA, Baruch, Ética)

O corpo é, sobretudo, a categoria de análise e a noção mais importante para nossa


abordagem teórica nesta pesquisa. Corpo pensado como construção social e cultural155;
contemporaneamente, um “corpo-rascunho” (LE BRETON, 2011); e resultado de
processos simultâneos de subjetivação para os quais também acessaremos a ideia de
conatus156 e corpo-mente, em Espinosa.
Nesta pesquisa, o corpo tem centralidade porque é ele que possibilita a existência
da dança, de seu fazer-criar, nos sujeitos que ousam dançar. Mas não se trata de qualquer
corpo: nosso olhar está direcionado para corpos-mentes. Espinosa (2007) utiliza esse termo
para problematizar o corpo fora da lógica dicotômica mente versus corpos. Atrelada a essa
ideia, também defendida por Le Breton (2011), que faz a crítica da separação cartesiana
corpo e alma, e sua radicalização na modernidade, trabalharemos com o conceito de
conatus, a ideia de que somos conatus (conceito de Espinosa ) para pensar os corpos
157

dançantes do Ceará e de São Paulo.

155
“O corpo é uma falsa evidência, não é um dado inequívoco, mas o efeito de uma elaboração social e
cultural”. Ele “é similar a um campo de força em ressonância com os processos de vida que o cercam”
(BRETON, 2012, p. 26).
156
“O conatus é a potência interna de autopreservação na existência que toda essência singular ou todo ser
singular possui porque é expressão da potência infinita da substância. Os humanos, como os demais seres
singulares são conatus, com a peculiaridade de que somente os humanos são conscientes de ser uma potência
ou um esforço de preservação na existência” (CHAUÍ, 2011, p. 84).
157
Espinosa questiona a dicotomia entre corpo e mente e pensa a relação simbólica de ambos, a partir da sua
autor afirma que “O afeto, que se diz pathema [paixão]
filosofia dos afetos. A definição geral dos afetos do 286
do ânimo, é uma ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de existir, maior ou menor do que antes, de
seu corpo ou de uma parte dele, ideia pela qual, se presente, a própria mente é determinada a pensar uma
coisa ao invés de outra” (ESPINOSA, 2007, p. 257).
Estas duas noções importantes são utilizadas com frequência nesta pesquisa e no
decorrer do presente texto: corpo (LE BRETON, 2009; 2011) e corpo-mente
(ESPINOSA, 2007). Para os dois autores, corpo e mente não se separam; estão articulados.
Passemos agora à compreensão dessas noções.
O corpo-mente158 também se molda, como o faz o corpo-rascunho. De uma
perspectiva diferente, também pode ser pensado como “rascunho”, na medida em que o
consideramos em seu estado de “vir a ser”, fluido, impregnado das potências de agir que
desejam mudar, mas que residem nos limites da sociabilidade e da moldura na qual os
seres expressam sentimentos. Rascunhá-lo seria admitir que há finitude no conatus que
somos, de diminui-lo, controlá-lo ou mesmo enfraquecê-lo em meio às relações sociais.
Assim, é possível falarmos nas vertigens que os movimentos da dança promovem
objetiva e subjetivamente nos sujeitos. Nesse sentido, a suposta solidez com que se
constroem os corpos educados pela sociedade está boa parte do tempo de seus
relacionamentos com o mundo, no qual acontecem as interações sociais, submetida às
transformações promovidas pelos sujeitos, imersos nas vertigens, nos medos, nas situações
inusitadas, em trocas de afeto que expressam o quanto não temos o controle sobre a vida,
as emoções que outros possam vir a compartilhar em situações imprevisíveis como, por
exemplo, uma apresentação de um espetáculo de dança em uma praça pública do Centro
de Fortaleza, em meio aos transeuntes que passam curiosos.
O rascunho é a metáfora da busca incessante por mudança que venha trazer uma
situação sempre melhor para o corpo e para si mesmo (esse si, pensado já separado da
pessoa), mas que acaba por se tornar ilusória, uma vez que, segundo Le Breton (2011),
essa tarefa é inalcançável em nossa sociedade moderna. Ele significa possibilidades de
modificação estética e simbólica do próprio corpo, num caráter de refazimento do
“desenho” que criamos de nós, a cada movimento que promovemos, a cada pausa que

Trata-se de conceito que emerge das leituras de Benedictus Espinosa sobre a sua concepção de natureza
158

da mente que estaria em relação e consubstancializada com o corpo, ou seja, compondo este corpo. O hífen
representa essa união conceitual dos termos corpo e mente, reconhecendo que coexistem. O filósofo
português defendeu a liberdade de pensamento contra o dogmatismo e a intolerância religiosa e foi expulso
da comunidade judaica devido a isso. Na sua obra Ética, ele afirma que “(...) a mente e o corpo são uma só
e mesma coisa a qual é concebida ora sob o atributo do pensamento, ora sob o da extensão(...) que a ordem
das ações e das paixões do nosso corpo é simultânea, em natureza, à ordem das ações e das paixões da
mente” (2007, p. 167).

287
experimentamos, em nossa inércia cotidiana. Nesse sentido, LE BRETON (2003, p. 32)
aponta que:

O corpo tornou-se um empreendimento a ser administrado da melhor


maneira possível no interesse do sujeito e de seu sentimento de estética.
O selo do domínio é o paradigma da relação com o próprio corpo no
contexto contemporâneo. Todo corpo contém a virtualidade de
inúmeros outros corpos que o indivíduo pode revelar tornando-se o
arranjador de sua aparência e de seus afetos.

O termo corpo-mente vincula-se à perspectiva do filósofo português Benedictus


Espinosa159 (1632-1677) que compreendia os afetos e as afecções do corpo a partir da
relação intrínseca deste com a mente. Afirmava que “a mente e o corpo são uma só e
mesma coisa” e que “a ordem das ações e das paixões de nosso corpo é simultânea, em
natureza, à ordem das ações e paixões da mente” (2007, p. 167).
Espinosa, no século XVII, já tinha uma visão crítica sobre a relação entre corpo e
mente; sobre os limites que a razão impunha ao pensamento ocidental moderno,
extremamente influenciado pelo Racionalismo iluminista da época.
A partir de Espinosa, é possível entender que se o corpo está irremediavelmente
conectado à mente, então, os afetos tristes e alegres que essa conexão intrínseca cria e
comunica acontecem a partir de afecções.
Podemos entender as afecções como sendo as transformações e/ou alterações do
conatus (a força potência para agir, viver, sentir, pensar que cada ser humano tem) de cada
sujeito, promovidas pelo contato com os afetos de outrem. Ou seja, as relações entre
corpos-mentes diferentes alteram esse conatus, em termos de potência, resistência,
fraqueza etc. São transformações próprias de um corpo-mente160 produzido e a se produzir
no contexto social e, simultaneamente, subjetivo.
Na obra “Ética”, Espinosa utiliza o conceito de conatus de forma dinâmica e atribui
a ele definições e sentidos diferentes mas que contribuem para formulações da noção do

159
A escrita do seu nome varia em publicações ao redor do mundo. Adotaremos essa forma de escrevê-lo
que é a mesma adotada na obra de António Damásio e Marilena Chauí que utilizamos nesta pesquisa.
Espinosa era um filósofo português que foi um dos grandes pensadores da Filosofia Moderna. Questionava
a dicotomia entre corpo e mente e transgredia, no contexto do século XVII, todo um pensamento
antropocêntrico e racionalista que tomava força na época com o racionalismo iluminista de René Descartes,
dentre outros.
160
Ao longo do texto, quando nos referirmos à noção de conatus cunhada por Espinosa e seus
desdobramentos, estabeleceremos implicações com288 o conceito de corpo-mente também desenvolvido pelo
mesmo autor, no que diz respeito ao seu entendimento do corpo que sofre afecções em relações como
mediadas por afetos.
termo que opera como preservação na existência e afirmação do desejo, na composição da
sua teoria dos afetos que podemos entender como sentimentos.
O conatus pode ser compreendido como a “potência de autoperseverança na
existência” e se expressa por meio do desejo, principalmente. A importância deste conceito
para esta pesquisa reside na busca por compreender como corpos-mentes e suas
subjetividades são socialmente construídos por meio da dança, no âmbito da experiência
de ex-integrantes dos grupos de dança contemporânea CEM e Pélagos. A afirmação do
corpo e das emoções, em Le Breton, como construções sociais, ampliam nossa
compreensão sobre os corpos dançantes que estão sendo investigados. Bem como, a
conceituação de conatus adotada por Espinosa e reiterada por Chauí elucidam a forma
como podemos perceber e refletir sobre a questão dos afetos nas experiências de dança
dos sujeitos a serem entrevistados (as).
No referente ao primeiro conceito, o corpo-mente é um corpo entendido como
dotado da capacidade de vivenciar a experiência afetiva e sentimental sem desvincular-se
da racionalidade; ou, simultaneamente, estar se organizando entre emoções e imposições
racionais que se sobrepõem e se alternam às determinações de impulsos, desejos, vontades,
sentimentos e afetos, sempre envolvidos pelo local da cultura onde existe e se constitui, e
que também é motivada por ações, comportamentos, expressões e ideias humanas nos
diversos contextos em que se situam.
O corpo-mente e o conatus que o alimenta são constructos sociais, econômico,
políticos e culturais. O conatus, bem como os afetos e as afecções a ele relacionadas,
existem dentro de esquemas simbólicos específicos.
A abordagem do sociólogo e antropólogo francês David Le Breton sobre o corpo
está, aqui, articulada à noção de conatus e de corpo-mente na compreensão do corpo que
simboliza e é simbolizado, quando expressa seu desejo de estar vivo e, sobretudo,
dançando.
Nossa discussão acerca do papel e sentidos da dança contemporânea na vida de ex-
integrantes de dois grupos específicos de dança está apoiada na ideia de que “intérpretes-
criadores(as)”161 produzem seus “corpos-mentes” e são imersos nessa produção, que é
social. Diferentes dimensões do social (políticas, econômicas, culturais) são

161
Chamaremos de “intérpretes-criadores” as pessoas que participaram dos grupos CEM e Pélagos. Este é
um termo usado pela pesquisadora em dança Thereza Rocha em textos de sua autoria. A autora é docente
no curso de licenciatura e bacharelado em dança da Universidade Federal do Ceará.

289
pontencializadoras ou enfraquecedoras (e destruidoras) do conatus de cada sujeito que
experienciou situações mediadas pela dança contemporânea, em sua trajetória de vida.
A reflexão consiste, então, de refletir e pensar quais os sentidos das experiências de
ex-integrantes dos grupos CEM e Pélagos, a partir das noções de corpo e corpo-rascunho,
em Le Breton, e de corpo-mente e conatus em Espinosa, considerando seus
desdobramentos nos corpos que adjetivamos como “dançantes” e nos afetos e afecções que
possam ter sido transformados.
A conexão político-filosófica moderna e socioantropológica das nossas observações
neste presente trabalho será dada, principalmente, no contexto da aproximação entre estes
dois autores - Le Breton e Espinosa - , bem como nas fissuras e deslocamentos que estes
dois pensadores promoveram nas minúcias dos estudos do corpo, (cada qual em seu
tempo-espaço e ambos para além de seu tempo, transcendendo as fronteiras dos séculos)
no entendimento e abordagem do corpo como consubstancializado e interligado à mente,
corpo-mente pensado como eixo de relação e percepção do mundo .
O corpo, em Le Breton (2012; p. 7), é entendido como

(...) vetor semântico pelo qual a evidência da relação com o mundo é


construída: atividades perceptivas, mas também expressão de
sentimentos, cerimoniais dos ritos de interação, conjunto de gestos e
mímicas, produção da aparência, jogos sutis da sedução, técnicas do
corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o sofrimento, etc. Antes
de qualquer coisa, a existência é corporal.

Em sua obra A Sociologia do Corpo, o autor apresenta a abordagem do referente


Corpo constituindo a Sociologia do corpo como um campo de estudos dedicado “à
compreensão da corporeidade humana como fenômeno social e cultural, motivo
simbólico, objeto de representações e imaginários” (LE BRETON, 2012, p. 7).
É possível então pensar na existência de diferentes esquemas simbólicos
envolvendo as experiências que, inevitavelmente, são vivenciadas com e por meio do
corpo. Le Breton (2009; 2011) apresenta a realidade social como mediada pelas relações
simbólicas. Estas relações são estabelecidas entre as pessoas, por meio de suas
corporeidades, e apresentam diferentes sentidos, dependendo do contexto sociocultural
em que se encontram e que informam o modo de ver, sentir, ouvir, tocar. As diferentes
técnicas corporais162 (MAUSS, 2003, p. 401) aprendidas em culturas e evidenciam também

No texto As técnicas do corpo, da obra Sociologia e Antropologia, o antropólogo Marcel Mauss (2003, p.
162

401), aborda a noção de técnica do corpo: entendo “por essa expressão as maneiras como os homens, de

290
modos diferentes de dar sentido a sentimentos e afetos que envolvem o outro. Não são,
portanto, naturais, mas construídas no tempo e no espaço.
Como afirma MAUSS (2003, p. 417), “é preciso saber que a dança enlaçada é um
produto da civilização moderna da Europa. O que demonstra que coisas completamente
naturais para nós são históricas”.
Segundo essa compreensão, na qual nos apoiamos, as expressões corporais na
dança contemporânea estão submetidas às modulações sociais, informando as vivências
particulares de cada um, uma vez que estão relacionadas ao repertório cultural e com ele,
a um conjunto de signos e significados reproduzidos nos grupos sociais aos quais os
indivíduos fazem parte. Ou seja, gestos e sensações não são nunca naturais, ao contrário,
são construtos socioculturais (LE BRETON, 2007). Neste tocante, o autor aponta para
uma reflexão quanto à ordem simbólica que ensejam as expressões gestuais do corpo,
afirmando que:

Todo o sistema simbólico associa no indivíduo uma capacidade de


decodificação a uma capacidade de ação sobre o mundo. Os
simbolismos de uma sociedade confundem-se, conferindo sentido e
valor às iniciativas humanas e aos eventos diários ocorridos em certo
ambiente. (...) A simbólica corporal traduz a especificidade da relação
com o mundo de certo grupo num vínculo singular e impalpável, mas
eminentemente cogente, o qual apresenta inumeráveis nuanças de
acordo com as filiações sociais, culturais ou regionais, ou segundo as
gerações, etc. O indivíduo habita seu corpo em consonância com as
orientações sociais e culturais que se impõem, mas ele as remaneja de
acordo com seu temperamento e história pessoais (LE BRETON, 2009,
p. 41).

Como menciona o autor, “O corpo não é uma natureza. Ele nem sequer existe.
Nunca se viu um corpo: o que se vê são homens e mulheres” (LE BRETON, 2012, p. 24).
Assim como o corpo, as emoções são pensadas por Le Breton (2009) como sendo sociais.
A respeito disso, Le Breton afirma que

As emoções não são expressões selvagens que vêm quebrar as condutas


razoáveis, elas obedecem a lógicas pessoais e sociais, elas têm também
sua razão, da mesma forma que a razão não se concebe uma inteligência
pétrea ou maquinal. Um homem que pensa é sempre um homem

sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo. Em todo caso, convém
proceder do concreto ao abstrato, não inversamente”. O autor trata aqui dos usos possíveis do corpo que
podemos fazer na medida em que lançamos mão de técnicas aprendidas socialmente, tais como a técnica da
Dança, enumerada por Mauss.
291
afetado, alguém que reúne o fio de sua memória impregnada de certo
olhar sobre o mundo e os outros (LE BRETON, 2009, p. 116-117).

O universo das emoções, afirma o autor, não é absolutamente referenciado na


irracionalidade e impulsividade, mas, sobretudo, inter-relacionado ao universo social. O
autor fala de sentimentos e emoções como sujeitas às transposições “de um indivíduo ou
grupo a outro” (LE BRETON, 2009, p. 09). Por isso, podemos entender que há uma
“cultura afetiva” (nos termos do autor) e que esta é composta de fenômenos múltiplos
(fisiológicos, psicológicos, sociais).
Essa “cultura” se realiza nas interações que envolvem muito mais que sujeição ao
meio social, já que a corporeidade é capaz de promover adaptações e tensionamento,
relacionados ao que cada ser humano tem de seu, a forma como vê e é visto, em sociedade:
“O olhar é, inicialmente, um comprometimento com o mundo” (LE BRETON, 2009, p.
12).
Ao mesmo tempo, o corpo não é algo imutável, estando mergulhado em culturas
que o moldam, de acordo com condições que vão orientar formas ser e de existir no
mundo. Nessa perspectiva, de Le Breton, podemos inferir que as relações entre os corpos
os transformam assim como transformam os ambientes, sendo também por eles
transformados, em relações marcadas pela presença de afetos, de diversos tipos.
No caso do presente estudo – dos (as) intérpretes-criadores(as) dos grupos CEM e
Pélagos – essas transformações estão referidas aos contextos sociais nos quais os indivíduos
vivem, dança, pensam, sentem, (re)criam e mutuamente se “contaminam”.
A respeito disso, em sua tese de doutorado intitulada Corpos se (mo)vendo com
imagens e afetos: dança e pedagogias culturais, Berté destaca:

Concebendo o corpo como resultado de negociações com outros


corpos, contextos, informações e cotidianos, Greiner e Katz (2001)
destacam a ação criativa de um corpo no mundo ao (re)produzir
determinados procedimentos que o engendram. Elas afirmam que “no
corpo humano estão as evidências da inevitabilidade de ser contaminado
e contaminador” (p. 72). Para as autoras, a cultura é “um sistema aberto,
apto a contaminar o corpo e ser por ele contaminado” (p. 73). Quando
aprendemos um movimento, por exemplo, aprendemos o que vem antes
e o que vem depois dele, e o corpo se habitua a conectá-los, de modo
que cada aprendizado proporciona redes peculiares de conexões
(BERTÉ, 2014, p. 90).

292
A constituição social do corpo pode ser considerada fluida, na medida em que tem
plasticidade suficiente para permitir ao indivíduo se (re)adaptar socioculturalmente dentro
de determinada ordem simbólica e, simultaneamente, resistir a ela, preservando sua
“história pessoal” (LE BRETON, 2009, p. 29), emergindo do “entre”(espaço de
ambivalências e ambiguidades). As resistências se dão nas formas como os corpos se
apropriam de si mesmos e transcendem as normativas, ainda que estando submetidos a
elas.
Sociedades distintas também fazem usos distintos de seus corpos Mauss (2003), em
seu artigo “Técnicas do Corpo”, faz referência aos modos diferentes de usos dos corpos
empreendidos por pessoas de sociedades distintas.
A instabilidade163 do corpo é apontada por Greiner (2005, p. 17), que faz a crítica
aos vários nomes atribuídos ao corpo com a perceptível “[...] necessidade de estabilizar
algo em torno de um objeto para que este represente o que resiste ao que poderia ser
desfeito – a solidez como espécie de solidariedade entre seus componentes, a coerência, a
coesão e a figurabilidade ou a face própria para cada entendimento de corpo”. A crítica da
autora nos faz pensar quão equívoca é a ideia de que o corpo é mais facilmente apreendido
se o consideramos estável. Isso se comprova nas próprias descontinuidades e
impermanências dos corpos em relação às identidades que performatizam e às experiências
afetivas no seio de culturas cada vez mais descontínuas, locais e temporais.
No livro O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si, Thérèse
Bertherat e Carol Bernstein afirmam que

Nosso corpo somos nós. Somos o que parecemos ser. Nosso modo de
parecer é nosso modo de ser. Mas não queremos admiti-lo. Não temos
coragem de nos olhar. Aliás não sabemos como fazer. Confundimos o
visível com o superficial. Só nos interessamos pelo que não podemos
ver. Chegamos a desprezar o corpo e aqueles que se interessam por seus
corpos. Sem nos determos sobre nossa forma – nosso corpo –
apressamo-nos a interpretar nosso conteúdo, estruturas psicológicas,
sociológicas, históricas. Passamos a vida fazendo malabarismos com
palavras, para que elas nos revelem as razões de nosso comportamento.
E que tal se, através de nossas sensações, procurássemos as razões do
próprio corpo? (2010, p. 3).

163
Neste artigo, essa palavra também é sinônimo de vertigem. A dança promove instabilidade e estabilidade
nos corpos ao movimentá-los, ou melhor, na medida em que dançam e se movimentam, o que antes era
estático se transforma em um conjunto de gestos, expressões, movimentos e sentimentos que os movem,
pondo os corpos em situações vertiginosas, de movimentação oscilante, risco, adrenalina, peso, suavidade,
insegurança, impulso, apoio, contato e improvisação; bem como, sensações múltiplas de prazer, orgasmo.
Um misto de efeitos no corpo que dança que podemos reconhecer como resultados de ações sólidas e,
simultaneamente, vertiginosas. 293
Esse olhar sobre o corpo que considera a importância de processos subjetivos e
individuação, consiste de um imaginário social ocidental. Ao falar do corpo ocidental
moderno, Breton (2012) destaca:

O isolamento do corpo nas sociedades ocidentais (eco longínquo das


primeiras dissecações e do desenvolvimento da filosofia mecanicista)
comprova a existência de uma trama social na qual o homem é separado
do cosmo, separado dos outros, separado de si mesmo. Em outras
palavras, o corpo da modernidade, aquele no qual são aplicados os
métodos da sociologia, é o resultado do recuo das tradições populares e
o advento do individualismo ocidental e traduz o aprisionamento do
homem em si mesmo (LE BRETON, 2012, p. 31).

Esse corpo ocidental moderno, e o que o autor denomina de corpo-rascunho, está


submetido a diversas intervenções; ao mesmo tempo, configura-se, contraditoriamente,
como acomodação e resistência; ele é a própria fonte de ambiguidades na imagem do
corpo humano construído e construtor.
É possível identificar reflexão semelhante a esta nas leituras filosóficas da obra Ética,
do filósofo português Baruch Spinoza. Márcia Patrizio dos Santos, no livro Corpo: um
modo de ser divino. Uma introdução à metafísica de Espinosa, explicita a crítica do filósofo
ao pensamento dicotômico (Corpo Versus Mente). Ela afirma que

Espinosa se posiciona piamente contra a superioridade do mundo


espiritual sobre o material e explica, com rigor e precisão pouco
inigualáveis na História da Filosofia Ocidental, o quanto nos enganamos
em relação ao mundo físico. Utilizando-se de vocabulário medieval,
escolástico e cartesiano, Espinosa dá-lhes todo um novo sentido,
operando assim uma relação conceitual e abrindo as portas para uma
nova ciência através do estudo do corpo: “é preciso saber o que pode o
corpo”. (EIII.2, esc.). Espinosa não apenas valoriza o estudo do corpo,
mas inverte a ordem estabelecida por Descartes para a nova Ciência que
ele se propôs inaugurar. “Ninguém poderá compreender a Mente
humana de maneira adequada; ou seja, distinta, se não conhecer
primeiramente de maneira adequada a natureza de nosso Corpo”
(EIII.13:sc) (SANTOS, 2009, p. 29).

Tal aproximação pode ser também verificada na Introdução da obra Adeus ao


corpo: antropologia e sociedade, de Le Breton (2003). Lins (2003) aponta para a
aproximação do autor, em certo sentido, às ideias espinosanas, e afirma que

294
David Le Breton, a sua maneira, recusa a dicotomia Alma/Corpo
aproximando-se de Espinosa: “Penso que o dualismo contemporâneo
não opõe o corpo ao espírito ou à alma, mas o homem a seu corpo”.
Para Espinosa, a “Alma e o Corpo estão, pois, simultaneamente
presentes, e – é necessário supor – simultaneamente ausentes. Se a Alma
é a ideia do Corpo, não há mais ideia quando não há mais corpo” (LE
BRETON, 2003, p. 12).

Corpo e alma interligados também na dança. Para a presente pesquisa, interessa


investigar os sentidos e afetos experimentados e expressos pelos indivíduos em dois grupos
específicos de dança: CEM e Pélagos. Suas memórias e narrativas são caminhos, com certa
imprevisibilidade, trazendo trajetórias de vida sólidas e vertiginosas a partir da lente da
dança contemporânea com a qual nos propomos acessá-las, à medida que nossa pesquisa
avança.

CONCLUSÕES

O corpo funciona como se fosse uma fronteira viva para delimitar, em


relação aos outros, a soberania da pessoa.
(LE BRETON, 2012, p. 30)

Movido pela emoção e a razão, o corpo aprende a estar dentro de determinada


ordem simbólica, conforme é educado pela sociedade e as relações que ela implica. Essa
educação ultrapassa limites institucionais e envolve as culturas locais como um todo,
estando diretamente relacionadas aos usos sociais do corpo, seus limites e transgressões
para cada indivíduo. Os efeitos simbólicos disto aparecem nas maneiras como habitamos
nossos corpos: Como você anda? Como move braços e mãos? Quais palavras usa? E como
faz esse uso? São usos iguais quando se trata de alguém desconhecido? Que emoções te
são permitidas? Até onde vai a sua liberdade de expressão no ambiente de trabalho, por
exemplo? Qual limite estabelecerá a fronteira entre gesto louco e gesto são? Trata-se de
perguntas que podem nos impelir a perceber o quanto estamos apreendidas (os) por um
sistema simbólico. Sobre simbolismo social, o autor afirma que

A educação dá forma ao corpo, modela os movimentos e o rosto, ensina


as maneiras físicas de enunciar um idioma, ela faz das atuações do
homem o equivalente de um criação de sentido perante os demais. Ela
suscita a obviedade daquilo que é, no entanto, socialmente construído
(LE BRETON, 2009, p. 40).

295
Todavia, há a certeza de que o corpo não é um objeto passivo e que produz
(efeitos), produz-se e é produzido o tempo todo, ao se relacionar com o outro, o lugar, a
história, a memória. Ele muda à medida que percebe o mundo, que sente, que é sentido e
essa mudança pode escapar ao esquema simbólico. Como acontece, então, esse
remanejamento dos corpos-mentes que são sujeitos, em si, seria realmente possível fora da
ordem simbólica?
Digamos que a produção social dos corpos seja a produção de sujeitos e que isto
aconteça segundo eles próprios, a partir de si mesmos e de formas imersas em relações de
poder. Como seria ainda pertinente dizer que o corpo é tão-somente formado e não
formador de sentidos, opiniões, ideias e expressões, em si mesmo?
Portanto, o corpo é uma matéria ativa conectada com sua mente: um corpo-mente
em movimento e repouso, alternados, de acordo com a vida que se leva. Ele, por isso,
estaria a inscrever-se no mundo com seus próprios mecanismos de resistência, dando
continuidade à vida em sociedade, na medida em que subverte determinadas ordens e
inventa seus modos de sentir, pensar e agir, ainda que dentro de uma ordem simbólica
estabelecida. Isso quer dizer que o corpo não é uma substância fixa. Onde estariam, então,
as fronteiras entre resistências e sujeições dos corpos? Simplesmente, no acaso, nas regras
sociais e seus agentes coercitivos de plantão? O corpo resume-se a um lugar de coisificação
e ausência somente aos olhos infames de quem não nota sua potência de sentir, pensar e
agir.
Neste sentido, como se dá a constituição de corpos com identidades culturais no
imaginário social? De que forma ele estaria, então, delineando ou não trajetórias afetivas
dos sujeitos que desenvolveram (e/ou desenvolvem) relações com seus corpos-mentes?
Como o corpo-mente simboliza afetos no contexto das experiências em trajetórias
individuais daqueles e, simultaneamente, realiza deslocamentos e resistências às normativas
sociais (legislações, sistemas simbólicos, regras de convívio e comportamento em grupo,
individualmente etc)?
Falamos, então, do corpo e seus simbolismos como elementos vivos que não só
compõem o imaginário social, mas o são (produzem-se com ele), de fato. Entendemos que
o corpo simboliza constantemente e isso se dá em meio às potenciais subjetividades de
cada indivíduo, movido por seus desejos e o tensionamento com a realidade de relações
sociais simbolizadas.
Concluímos, pois, que “o corpo é também uma construção simbólica” e, ao mesmo
tempo, escapa a essa construção, a promove, a subverte e interage de maneiras diversas,

296
em si mesmo, quando lhe convém e lhe é possível. Corpo é solidez e vertigem, ao mesmo
tempo, resistindo e se acomodando, excitando-se e submetendo-se, por vezes, sem
conseguirmos enxergar suas potências a olho nu.
O Corpo não se reduz a um objeto de estudo, porque até mesmo quem estuda o
corpo o faz com sua corporeidade inerente. O contrassenso está posto: o corpo é potência
e é morte, é dor e prazer, numa mesma pessoa, criando e dando espaço para que se
manifestem diferentes afetos, compartilhando-os e podendo deformá-los em relações com
o Outro.

REFERÊNCIAS

BERTÉ, O. S. Corpos se (mo)vendo com imagens e afetos: dança e pedagogias culturais.


2014. 338 p. Tese (Doutorado em Arte e Cultura Visual). Universidade Federal de Goiás,
Goiânia, 2014.

_________. Filosofazendo dança com Pina Bausch: bricolagem entre experiências,


imagens e conceitos em processos criativos e pedagógicos. 2011. 171 f. Dissertação
(Mestrado em Dança). Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

BERTHERAT, Thérèse. O corpo tem suas razões: antiginástica e consciência de si. São
Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

CHAUÍ, M. Desejo, paixão e ação na ética de Espinosa. São Paulo: Companhia das Letras,
2011.

DAMÁSIO, A. Em busca de Espinosa: prazer e dor na ciência dos sentimentos. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.

LE BRETON, David. A sociologia do corpo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

________. Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas: Papirus, 2003.

________. As paixões ordinárias: antropologia das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.

LOUPPE, L. Poética da dança contemporânea. Lisboa: Orfeu Negro, 2012.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.

ROCHA, T. O que é dança contemporânea? A narrativa de uma possibilidade. Revista


eletrônica Ensaio Geral, Vol.3, Nº5, Universidade Federal do Pará, 2011.

SANTOS, Márcia Patrízio dos. Corpo: um modo de ser divino. In: Introdução à metafísica
de Espinosa. São Paulo: Annablume, 2009.

SPINOZA, Benedictus. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

297
ONDE ETNOGRAFIA E BIOGRAFIA SE ENCONTRAM:
REFLEXÕES SOBRE A AUTORIA DE PESQUISAS EM ARQUIVOS
PESSOAIS
Marina Corrêa dos SANTOS164

Resumo: Partindo de uma experiência concreta e particular de pesquisa no arquivo privado do


intelectual e artista Mário de Andrade – localizado e mantido pelo Instituto de Estudos Brasileiros
(IEB) da Universidade de São Paulo (USP) -, o presente artigo procurará refletir sobre as possíveis
correlações entre o fazer etnográfico e o trabalho de reconstrução biográfica. Contará, para tanto,
com a contribuição do estudo de Olívia Maria Gomes da Cunha (2004) no que tange os seus
esforços de reflexão acerca da necessidade de elaboração de etnografias de arquivo; em outras
palavras, sobre a orientação da antropóloga para que compreendamos os arquivos não somente
como suportes (meios) de pesquisa, mas também (na medida em que revelam, pela natureza
mesma de sua constituição, relações de alteridade e poder) como objetos de investigação. Torna-
se preciso, dessa forma, considerar que as relações que o pesquisador estabelece com o arquivo
(ou seja, sua escolha pelo desvelamento ou obscurecimento desse conjunto de vozes circunscritas
e em disputa) ecoam, inevitavelmente, no produto final de suas análises, que são, por sua vez,
sempre textos (quer sejam etnográficos, quer sejam biográficos). Por fim, e no esteio das discussões
propostas por antropólogos e historiadores contemporâneos, serão levantadas questões relativas à
autoria e à autoridade intelectual desse tipo de produção orientada para a reconstrução de
realidades passadas; produções que possuem, muitas vezes, as fontes documentais (primárias)
contidas em arquivos como uma via única de acesso a essas realidades e vivências. Para o
enfrentamento desses complexos dilemas entre representação e experiência, verdade e ficção,
objetividade e subjetividade, aponta-se, como um caminho (uma solução) mais democrático e
possível, para a construção de textos dialógicos e plurivocais.

Palavras-chave: Arquivo pessoal. Etnografia. Biografia. Autoria. Mário de Andrade.

INTRODUÇÃO

Não dôo nada por vaidade e toda doação será feita ser alarde. Dôo
apenas porque nunca colecionei para mim, mas imaginando me
constituir apenas salvaguarda de obras, valores e livros que pertencem ao
público, ao meu país, ao pouco que gastei e me gastou (Mário de
Andrade para Carlos Augusto Andrade, 22/março/1944)165.

Após receber as primeiras instruções quanto à consulta dos documentos alocados


no arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP),
e mesmo após os meses de preparação metodológica, surgiu-me a dúvida (que me pareceu,
naquele momento, determinante para a construção da pesquisa): por onde começar?

164
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras –
UNESP/Campus Araraquara. Agência Financiadora: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq). E-mail: ma.mcsantos@gmail.com.
165
Arquivo IEB, Fundo Mário de Andrade, Código do Documento MA-C-CA111. Disponível para consulta.
298
Como já era de meu conhecimento, devido à extensão do arquivo pessoal de Mário
de Andrade, e, sobretudo, no tocante às correspondências (meu principal ponto de
interesse), não haveria tempo hábil de examiná-lo integralmente, se tornando necessário,
para tanto, uma seleção e uma ordem de prioridade para as consultas que faria. Através de
um exame superficial do catálogo eletrônico disponível para os pesquisadores (para
visualização de arquivos digitalizados ou solicitação de documentos não digitalizados),
percebi que as correspondências do intelectual estavam armazenadas não somente em seu
arquivo (coleção ou fundo), mas que também se encontravam distribuídas em outras
coleções (como a de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral etc.) mantidas pelo Instituto. As
coleções consultadas dividiam a sua seção “correspondência” entre ativas e passivas, e
algumas continham uma subseção denominada “de terceiros” (quando estas
correspondências se encontravam sob custódia do “dono do arquivo” em questão); o
arquivo de Mário de Andrade ainda continha uma particularidade nestas divisões, a de
haverem correspondências (ativas, passivas ou de terceiros) catalogadas como lacradas166.
Pesquisando, ainda através do catálogo eletrônico, encontro uma carta cuja
descrição constava como sendo uma “Carta-Testamento”, escrita de Mário de Andrade
para seu sobrinho Carlos Augusto Andrade em 1944, no qual dispõe sobre a destinação
de seu acervo e arquivo. Julguei imprescindível começar por ali. Ainda que aquele não
tenha sido o testamento derradeiro – Mário de Andrade faleceu no ano seguinte, em 1945
-, naquela carta constavam os desejos de um homem não somente quanto aos destinos de
seu acervo patrimonial, mas também de seu arquivo pessoal, composto por documentos
de cunho mais íntimo e autobiográfico; ou seja, os desejos de um homem quanto ao seu
destino (e imagem) póstumo. Além disso, aquela carta me revelaria como se deu o início
do trajeto percorrido por aquele arquivo até que ele chegasse ali, em minhas mãos.
Em suma, a carta foi escrita por ocasião de uma operação a que Mário de Andrade
se submeteria e, devido à fragilidade de sua saúde nos últimos anos, preocupou-se com a
destinação de seus pertences. Refere-se nesta carta às obras inéditas acabadas, às obras
inéditas com redação não definitiva, às conferências literárias que deveriam ser destinadas
para fins científicos, aos seus estudos e fichários, à coleção de gravuras, à coleção de
quadros a óleo, aos documentos históricos relacionados à Revolução Paulista de 1932, à
coleção de santos e documentos religiosos, aos objetos de valor etnográfico/folclórico, aos

166
No ano de 2016 completara-se 70 anos do falecimento de Mário de Andrade, devido a este fato, todas as
obras intelectuais e documentações pessoais (incluindo correspondências) passaram a constar como de
domínio público (Lei nº 9.610/98).
299
livros com dedicatória, “obras de luxo” e duplicatas, e às esculturas de “arte livre”; por
último, e mais importante para os propósitos deste artigo, Mário de Andrade se refere às
correspondências, dizendo que estas deveriam ser destinadas à Academia Paulista de
Letras, bem como, deveriam ser fechadas e lacradas pela família e só abertas após 50 anos
de seu falecimento167.
Com exceção de suas correspondências, todos os outros itens descritos coadunam
com a imagem expressa pelo intelectual no trecho transcrito introdutoriamente neste artigo:
a de colecionador e pesquisador da cultura brasileira. Com a doação de seu rico acervo,
Mário de Andrade crê contribuir para estudos (e estudiosos) futuros do Brasil e de sua
cultura; sugere com isso a intenção de que permaneça somente o seu contributo ao país
como homem público, ou seja, que fique na memória de todos apenas os serviços que
prestou à nação (o que considera a sua “missão” enquanto artista e pensador). Entretanto,
como dito acima, a permanência consciente de seus escritos pessoais, de suas trocas íntimas
e particulares, parece sugerir um sentimento de que deveria ficar para a posteridade
também a memória do homem que foi em sua dimensão privada.
A imagem aparentemente contraditória se desfaz na medida em que as leituras de
suas cartas vão se avolumando, essas duas esferas (pública e privada) de Mário de Andrade
se misturam e se diluem de uma maneira que impressiona os pesquisadores de sua vida e
obra; e esta fusão soa como fortemente intencional e consciente por parte do intelectual.
Pelo próprio: “Ora hoje eu quero gritar de tal forma que meu grito seja o de toda gente.
Quero dizer, tornar o menos pessoal possível minhas coisas para que se tornem gerais”
(ANDRADE, 1988, p. 98). Como literato competente, Mário de Andrade consegue
transformar mesmo os seus dilemas mais interiores e subjetivos em questões pertencentes
a todos os homens, em outras palavras, consegue transfigurar o particular (sua biografia)
em geral. Ao passo que suas trajetórias pessoal e profissional se confundem, sua biografia
designa-se como um “projeto para si”, ou seja, sua biografia pode ser também encarada
como uma autobiografia.
Partindo, portanto, desta experiência de pesquisa em um arquivo pessoal, este
artigo visará responder a duas questões suscitadas por ela. Primeiramente, se debruçará
sobre o trabalho de reconstrução biográfica e os desafios que impõe ao pesquisador. Ainda
com o enfoque neste tipo de trabalho, será levantado o questionamento acerca das possíveis
correlações entre este e o fazer etnográfico. Para tanto, será trazida a contribuição de Olívia

167
O Arquivo foi doado pela família de Mário de Andrade ao IEB em 1968.

300
Maria Gomes da Cunha (2004) que alerta para a necessidade de elaboração de etnografias
de arquivo, em outras palavras, sobre a necessidade de encarar os arquivos não somente
enquanto instrumentos (meios), mas também como objetos (dotados de características e
trajetória próprias). A importância deste tipo de estudo que Cunha propõe está em sua
capacidade de revelar as relações de alteridade e poder que subjazem empoeiradas nos
arquivos – e que obrigatoriamente interferem nos usos e nos resultados provindos destes
mesmos.
Um segundo tópico a ser levantado diz respeito à autoria de textos etnográficos e
biográficos quando suas principais fontes são constituídas pelos documentos e escritos
autobiográficos contidos em arquivos. Será questionado: quem é o autor (quem detém a
autoridade intelectual) de produções desta espécie? Este tipo de questão tem sido trazido
à tona através das discussões propostas por antropólogos contemporâneos e também por
historiadores dedicados aos estudos (auto)biográficos; ambos apontando, como um
caminho possível, para a produção de obras mais dialógicas e plurivocais.

RECONSTRUÇÃO BIOGRÁFICA

Reparem: tudo isto é sincerissimo, humano e respeitável. Saiu dum jato


na carta sincera. Depois, analisando friamente é que a gente percebe que
a sinceridade, apesar de sincerissima, é insincera, em resultado:
sinceridade e insinceridade são palavras vãs. Não correspondem a
nenhuma verdade inamovível (ANDRADE, 1930).

O gênero textual denominado biográfico corresponde à escrita da história de uma


vida cujos pontos julgados mais significativos são destacados e sequenciados de modo a
produzir uma narrativa. Este gênero, situado no entrecruzamento entre a ciência (humanas
e sociais – sobretudo a história) e a arte (literatura), frequentemente é colocado em
discussão devido à sua “existência controversa”. Giovanni Levi (1996-7), refletindo sobre
esta ambiguidade (mas também potencialidade) da biografia, analisa que:

La biografia constituye, em efecto, el paso privilegiado por el cual los


cuestionamientos y las técnicas propias de la literatura se plantean a la
historiografia. Mucho se ha debatido sobre este tema que concierne
sobre todo a las técnicas argumentativas a las que recurren los
historiadores. Liberada de las trabas documentales, la literatura se
acomoda a uma infinidade de modelos y de esquemas biográficos que
han influído muy ampliamente em los historiadores (LEVI, 1996-7, p.
15).

301
Através das ponderações de Levi, pode-se considerar que as técnicas utilizadas pela
biografia estão especialmente próximas das técnicas ficcionais, na medida em que ambas
(biografia e ficção) utilizam-se de um discurso narrativo.
Os cientistas (pesquisadores) que se ocupam com trabalhos de reconstrução (ou
reconstituição) biográfica – não se restringindo apenas aos historiadores -, encontram, na
maioria das vezes, nas fontes documentais uma via única de acesso a esta realidade passada.
Entretanto, os documentos, enquanto resquícios do passado, não estão, de forma alguma,
dispostos (assim como os próprios fatos da história) de maneira linear, contínua e
sequenciada; ao contrário, eles se apresentam de forma dispersa, descontínua e lacunar.
Produzir a narrativa de uma vida utilizando-se de documentos do passado implica,
necessariamente, preencher mais vazios do que se pode supor. Ainda que muitos desses
vazios possam ser preenchidos mediante estudos histórico-sociais mais gerais (da existência
comum entre os homens, da dimensão pública dos fatos), é notável e inquestionável que
parte deles contém uma boa dose de imaginação literária do pesquisador.
Além desta, outra característica fundamental da biografia é o próprio fato de lidar
com uma vida, ou seja, com a construção de uma identidade individual. Esta construção,
cujo melhor termo deve ser produção, diz respeito tanto ao biógrafo (a quem reescreve
uma vida outra) quanto ao autobiógrafo (aquele que escreve a própria vida). Em artigo
publicado em 1986, o sociólogo francês Pierre Bourdieu, provocou um frisson intelectual
ao declarar que toda biografia, na medida em que trata a vida como uma história (ou como
um relato coerente), é uma “ilusão retórica”; seu foco principal é o da questão da
construção – mediante a biografia – de uma identidade (e, por conseguinte, um indivíduo)
total, unificada e coesa.

O mundo social, que tende a identificar a normalidade com a identidade


entendida como constância em si mesmo de um ser responsável, isto é,
previsível ou, no mínimo, inteligível, à maneira de uma história bem
construída (por oposição à história contada por um idiota), dispõe de
todo tipo de instituições de totalização e de unificação do eu
(BOURDIEU, 1998, p. 186).

Segundo Bourdieu, este tipo arbitrário de representação da existência provém de


um discurso tradicional “romanesco”, ou, nos termos de Levi, de um modelo de
racionalidade anacrônico e limitado. O desejo de objetivação e a crença “(...) en la
capacidade de la biografia para describir lo que es significativo en una vida” (LEVI, 1996-

302
7, p.17) ignoram por completo todo o processo de subjetivação do indivíduo, processo este
composto majoritariamente por dúvidas, contradições e incertezas; ou seja, ignoram o “(...)
carácter fragmentario y dinámico de la identidade y de los momentos contradictorios de su
construcción” (LEVI, 1996-7, p. 15). Uma trajetória pessoal não corresponde a um
sequenciamento racional, ou a ações individuais calculadas, previsíveis e premeditadas; o
curso de uma vida (bem como, as identidades individuais), ao contrário do que é
representado neste tipo de biografia positivista que privilegia as ações enquanto
continuidades lógicas (ou enquanto causas e efeitos diretos), duvidosamente é construído
em linha reta.
Mas não somente os pesquisadores efetuam este tipo de seleção e sequenciamento
arbitrário da realidade para a construção de identidades coerentes; a constituição dos
arquivos pessoais são exemplos máximos dos esforços do próprio sujeito para aquilo que
pode ser compreendido como uma “apresentação de si, ou melhor, (...) produção de si”
(BOURDIEU, 1998, p. 189).
Phillipe Artières (1998) lê na prática de arquivamento da própria vida - ou
“arquivamento do eu” – uma notável intenção autobiográfica do sujeito, em qual este, na
medida em que escolhe o que guarda (e o que ficará para a posteridade) desenha tanto
uma imagem de si para o outro, como também para si mesmo.

(...) esses papeis são a tua identidade; enfim, redigirás a tua autobiografia,
passarás a tua vida a limpo, dirás a verdade. Mas não arquivamos nossas
vidas, não pomos nossas vidas em conserva de qualquer maneira; não
guardamos todas as maçãs de nossa cesta pessoal; fazemos um acordo
com a realidade, manipulamos a existência: omitimos, rasuramos,
riscamos, sublinhamos, damos destaque a certas passagens (ARTIÈRES,
1998, p. 11).

O que o historiador procura destacar nesta passagem é que mesmo os arquivos


pessoais não guardam a integralidade íntima de uma vida, o próprio processo de
constituição destes arquivos, ao passo que representam um filtro pessoal da realidade, é
também um modo de escrita de nós mesmos, ou seja, de uma escrita autobiográfica.
Verdade e ficção, quando referidas a atividades de “escrita de si”, acabam por se tornar
noções muito vagas, imprecisas e até inadequadas; pois estas são as oportunidades do
sujeito “contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio”, representando, assim,
“práticas de construção de si mesmo e de resistência” (ARTIÈRES, 1998, p.11).

303
Na medida em que atuam em serviço da construção de identidade do próprio
sujeito, configuram-se como processos autoreflexivos, colaborando, não somente para a
elaboração de uma imagem futura, mas também para que o sujeito enxergue a si mesmo
no passado, tirando-lhe proveito em virtude do presente, ou seja, auxiliando-lhe no existir
cotidiano.
Em suma, o exercício de “arquivamento do eu”, assim como qualquer tipo de
prática autobiográfica, possui tanto uma função privada, particular – reflexiva, de produção
de si para si -, como também uma função pública – representativa, de produção de si para
o outro. Assim sendo, torna-se necessário considerar os processos futuros (provavelmente
póstumos) pelos quais passarão estes arquivos, ou seja, pensar também na destinação e nos
usos que dele se farão.

ETNOGRAFIA DE ARQUIVOS

(...) porém, não há dúvida que na própria propaganda de si mesmo vai


um sentimento moral muito grande para quem queira representar um
papel na vida coletiva (ANDRADE, 1939).

Conforme se procurou refletir na seção anterior, a trajetória de um arquivo pessoal


começa em sua própria constituição, na qual o sujeito, na medida em que o produz,
também o reveste de intenções autobiográficas, ou seja, através de suas ações e
interferências constantes - seleções, releituras, descartes, adições, anotações, ordenamentos
etc. - o sujeito constrói uma imagem de si, para si e para outros (futuros leitores).
Entretanto, esta é somente a primeira fase de filtragem da realidade pela qual passa um
arquivo. Quando este, provindo de doação ou de compra, se torna um arquivo de consulta
pública (um arquivo público), será objeto de uma nova triagem (apurações, preparações,
classificações etc.) por parte de historiadores e arquivistas especializados. E não acabará
por ai, outra etapa de filtragem ocorrerá quando este arquivo estiver disponível para
consultas, os pesquisadores que dele se utilizarem, também influirão nos discursos futuros
deste arquivo.
Olívia da Cunha (2004), observando estes discursos potenciais do arquivo, que vem
à tona a partir dos usos que dele são feitos pelos pesquisadores (da memória, do passado),
alega que estes devem ser encarados seriamente, e como produtores de conhecimento. A
produção de conhecimento equivale, como se sabe, à produção tanto de regimes de
verdade, como de hierarquias; que, por sua vez, revelam implícitas as disputas de (e por)

304
poder. Jacques Le Goff (1990) direciona sua atenção para este mesmo ponto ao afirmar
que:

De fato, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado,


mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no
desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que
se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores
(LE GOFF, 1990, p. 535).

Trabalhando com as noções de documento e monumento enquanto “materiais da


memória”, Le Goff (1990) procura demonstrar que o documento foi firmado pela escola
positivista - do final do século XIX e início do século XX - como uma herança objetiva do
passado, em contraposição à intencionalidade e subjetividade presentes na “edificação” do
monumento.
Estabelece assim uma crítica aos documentos lidos sob uma chave positivista, ou
seja, lidos somente enquanto textos que “(...) se impõem por si próprios (...).” (LE GOFF,
1990, p. 536); além disso, coloca em dúvida a suposta objetividade do documento, na
medida em que afirma tratar-se este também de um processo de escolha dos pesquisadores
do passado, com posse de um poder legitimado pela ciência para determinar a perpetuação
de uma determinada história (e, portanto, de uma determinada visão de mundo),
considerada oficial.
O historiador identifica que um documento possibilita uma pluralidade de leituras,
justamente porque possui uma pluralidade de vozes a ele circunscritas; torna-se então
necessário, segundo ele, não somente a ampliação da noção de documento, como que se
transforme a forma como ele é encarado, ou seja, que se passe a considera-lo como um
monumento, do qual é preciso “(...) encontrar, através de uma crítica interna, as condições
de produção histórica e, logo, a sua intencionalidade inconsciente (LE GOFF, 1990, p.
547).

(...) qualquer documento é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso, porque


um monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência
enganadora, uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir
essa montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de
produção dos documentos-monumentos (LE GOFF, 1990, p. 548).

É pensando justamente nessas questões que Olívia da Cunha lança uma nova
proposta de leitura dos arquivos. A antropóloga demonstra que os arquivos têm adentrado

305
à disciplina apenas como fontes (meio, instrumento) de pesquisas, mas que dificilmente
são - ou foram – encarados, eles mesmos, como objetos de reflexão. Ainda quando da
primeira opção, ou seja, da utilização de arquivos como fontes, este tipo de procedimento
antropológico é visto como uma “atividade periférica”, “associada à impossibilidade de
estar lá” 168, e os que dele se utilizam são frequentemente nomeados (de maneira pejorativa)
como “antropólogos de gabinete” (CUNHA, 2004). Depreende-se daí que, dentro da
antropologia, os arquivos sempre estiveram em franca oposição ao campo etnográfico,
atuando apenas como “suportes” em situações em que houvesse algum tipo de
impedimento para o trabalho de campo e para a experiência etnográfica.
Ao expor que os arquivos “Não preservam [apenas] segredos, vestígios, eventos e
passados, mas abrigam marcas e inscrições a partir das quais devem ser eles próprios
interpretados” (CUNHA, 2004, p. 292). Cunha procura ressaltar a importância de uma
mudança de perspectiva quanto à metodologia etnográfica, e a aceitação de outras formas
de prática, como por exemplo: a tomada dos arquivos como um campo etnográfico, ou,
como prefere chamar, uma etnografia de arquivos.

Se a possibilidade de as fontes “falarem” é apenas uma metáfora que


reforça a ideia de que os historiadores devem “ouvir” e, sobretudo
“dialogar” com os documentos que utilizam em suas pesquisas, a
interlocução é possível se as condições de produção dessas “vozes”
forem tomadas como objeto de análise – isto é, o fato de os arquivos
terem sido constituídos, alimentados e mantidos por pessoas, grupos
sociais e instituições (CUNHA, 2004, p. 293).

A etnografia de arquivos, portanto, encerra um projeto de desvendamento de vozes,


lugares, posições estratégicas e hierarquias mantidas (e maneiras de obscurecimento,
invisibilização) no processo de constituição dos arquivos, bem como nas formas de
utilização e leituras destes. Tomá-los como objetos de uma etnografia torna possível que
estas instâncias possam ser não somente observadas, como descritas e interpretadas em
suas origens, usos e efeitos; evidenciando, assim, o seu “(...) caráter artificial, polifônico e
contingente (...)” (CUNHA, 2004, p. 292).

168
Ref. Clifford Geertz: “A capacidade dos antropólogos de nos fazer levar a sério o que dizem tem menos a
ver com uma aparência factual, ou com um ar de elegância conceitual, do que com sua capacidade de nos
convencer de que o que eles dizem resulta de haverem realmente penetrado numa outra forma de vida (ou,
se você preferir, de terem sido penetrados por ela) – de realmente haverem, de um modo ou de outro,
“estado lá”.” (GEERTZ, 2009, p.15).
306
Com posse destas informações acerca da possibilidade (e necessidade) de um fazer
etnográfico de arquivos, percebe-se que este, em seus desafios e potencialidades, se
assemelha, em muitos pontos, ao trabalho de reconstrução biográfica (feito a partir de
documentos contidos em arquivos). De maneira a contribuir e tornar mais complexa esta
discussão, a próxima seção focalizará os arquivos pessoais como um ponto de encontro
comum entre estes dois fazeres, lugar este em que emergem outras questões, sobretudo no
que tange a autoria e a autoridade intelectual sobre os seus produtos (textos).

AUTORIA E AUTORIDADE INTELECTUAL

Sempre continuo achando que a solidão é um crime tenebroso, embora


só nela possamos achar o “caminho de nós mesmos”, como você
escreveu ha tempos. Se devemos participar da vida de todos, na vida
geral de toda instante, o caminho de nós mesmos não entraria
constantemente em conflito com o caminho dos outros, também
achados nas mais desencontradas e deshumanas solidões? (Júlio Barbosa
para Mário de Andrade, set./dez.?/1941)169.

Alguns pontos precisarão ser destacados antes de adentrar as discussões que foram
propostas. Conforme se procurou demonstrar na seção anterior a esta, os arquivos podem
ser compreendidos e encarados (também) como um campo etnográfico. A afirmação
implícita nesta nova condição de enfrentamento dos arquivos é a de que estes se constituem
como lócus de produção de experiência no pesquisador. Além disso, ou melhor, como
consequência desta experiência, tem-se que, impreterivelmente, um texto referente a ela
será produzido.
Direcionando agora o olhar e atenção para os arquivos pessoais, temos que - para
além de todas as vozes (discursos) ali introduzidas durante as fases de preparação,
organização e manipulação do conjunto de fontes primárias ali mantidas - ele é composto,
majoritariamente, pela voz de seu criador (na forma de escritos autobiográficos).
Entretanto, qualquer tipo de trabalho (etnográfico ou de reconstrução biográfica), mesmo
quando utilizando redações autobiográficas, implicará a produção de um texto, que em
última instância é a experiência alheia filtrada pela própria experiência do pesquisador.
Há outra situação envolvendo arquivos pessoais, cujos relatos denotam ocorrer com
bastante frequência (e que, na pesquisa sob a qual se apoia este artigo, destacou-se
sobremaneira), que diz respeito à fusão de duas instâncias de uma vida: pessoal e

169
Arquivo IEB, Fundo Mário de Andrade, Código do Documento MA-C-CPL128. Disponível para consulta.

307
profissional. Este fator demonstra sua relevância uma vez que colabora no entendimento
de que a produção de narrativas profissionais não é feita sem a colaboração do próprio
sujeito biografado.
Na arquivística da antropologia (documentos etnográficos) isso se expressa com
ainda maior clareza, visto que esta é constituída, em sua maior parte, de diários, memórias
e anotações de campo; documentos, por sua vez, que demonstram a imbricação entre os
dois domínios. Segundo Cunha (2004), esta realidade revela a tensão epistemológica
subjacente à disciplina, ou seja, entre os processos de objetivação (produções científicas:
monografias, artigos etc) e os processos de subjetivação (diários, memórias etc).
Neste momento, já é possível perceber que a etnografia e a biografia se encontram
em muitos de seus caminhos (e desafios). Primeiramente, pois ambos constituem gêneros
textuais de natureza intermediária, ou seja, seus discursos estão mais próximos do campo
literário, do que do campo científico. Geertz (2009) considera que a etnografia, e com
maior ênfase, o texto etnográfico, é um “trabalho de imaginação”; e que torna necessária a
superação da confusão “(...) do imaginado com o imaginário, do ficcional com o falso, da
compreensão das coisas com a invenção delas” (GEERTZ, 2009, p. 183).
Além disso, os textos etnográficos, na medida em que necessitam da (e trabalham
com a) experiência, nos fazem voltar os olhos para o fato de que estão intimamente ligados
com as biografias (dos sujeitos pesquisados e dos próprios pesquisadores). Etnografar,
portanto, implica efetuar reconstruções biográficas, bem como, alterar (construir) a própria
biografia. A dificuldade, segundo Geertz, “(...) está em que a estranheza de construir textos
ostensivamente científicos a partir de experiências em grande parte biográficas, que é o que
fazem os etnógrafos, afinal, fica inteiramente obscurecida” (GEERTZ, 3009, p. 22).
Quando tratando de trabalhos feitos em arquivos pessoais e com escritos
autobiográficos, esta dificuldade parece se acentuar ainda mais. Além disso, na esteira do
que vem sido trazido à tona pela antropologia contemporânea (antropologia hermenêutica
ou interpretativa), outra questão merece destaque nesta discussão: a da autoria ou
autoridade intelectual. Nos arquivos pessoais, biografias e autobiografias se confundem,
pois a produção que dali deriva incorporará diferentes tipos de experiências com (e visões
sobre) um mesmo fato. Se forem incorporadas as fontes autobiográficas (como
provavelmente ocorrerá), a voz do sujeito pesquisado, assim como, sua compreensão,
interpretação e ponto de vista sobre a própria vida (sobre a própria experiência), também
serão incorporados no texto. Mas afinal, de quem é a vida que é narrada? Do pesquisador
ou do sujeito pesquisado? Ou colocando em termos mais explícitos, quem é o autor do

308
texto produzido? Quem detém a autoridade intelectual sobre a produção? Conforme
Geertz (2009), “O que antes parecia tecnicamente difícil – introduzir a vida “deles” em
“nossos” livros – tornou-se delicado, em termos morais, políticos e até epistemológicos”
(GEERTZ, 2009, p. 171).
A questão da autoria (e da autoridade) acarreta, portanto, questionamentos de
ordem ética e política; Geertz considera que é preciso não somente que o pesquisador
aceite o “fardo da autoria”, como também que torne clara e evidente esta sua presença
autoral no texto; em outras palavras, é preciso entrar em seus textos (“introduzir-se neles
representacionalmente”) assim como foi necessário entrar numa cultura (“penetrar nela
imaginativamente”) (GEERTZ, 2009).
Os antropólogos comumente chamados pós-modernos (referente à crítica
contemporânea americana), tem questionado essa presença excessiva do antropólogo no
texto etnográfico clássico, na medida em que esta, contraditoriamente, corresponde a uma
ausência; ou seja, quanto mais a sua “(...) inserção no campo, no texto e no contexto em
que escreve” (CALDEIRA, 1988, p.135) não estiver devidamente manifesta (estiver oculta,
ausente), maior será sua presença, influência e autoridade dentro do texto. Pode parecer
ilógico, mas a única maneira de minimizar a presença do autor no texto é justamente
tornando-a clara, identificável. Quando é possível identificar a sua voz, o etnógrafo
imediatamente reduz o seu poder de “falar pelo outro” e de suprimir a voz deste outro.
Se os recursos de experiência e interpretação (ou tradução) funcionam como
chancela de autoridade intelectual, como se pode enfrentar e trabalhar com documentos
autobiográficos no qual o sujeito reclama (e afirma) igualmente uma experiência e uma
interpretação sobre si mesmo?

Os pós-modernos vão tentar romper tanto o caráter de separação das


culturas, quanto o de re-criação da totalidade. Para eles a etnografia não
deve ser uma interpretação sobre, mas uma negociação com um diálogo,
a expressão das trocas entre uma multiplicidade de vozes. (...) A proposta
é, então, escrever etnografias tendo como modelo o diálogo ou, melhor
ainda, a polifonia. (...) A ideia é representar muitas vozes, muitas
perspectivas, produzir no texto uma plurivocalidade, uma
“heteroglossa”, e para isso todos os meios podem ser tentados: citações
de depoimentos, autoria coletiva, “dar voz ao povo” ou o que mais se
possa imaginar. O objetivo final, no que diz respeito ao autor, seria fazer
com que ele agora se diluísse no texto, minimizando em muito a sua
presença, dando espaço aos outros, que antes só apareciam através dele
(CALDEIRA, 1988, p. 141).

309
As relações de alteridade dentro do texto etnográfico e biográfico importam consigo
disputas políticas (relações de poder). Se não se trata de uma escolha do pesquisador ser
autor de seu texto, talvez se trate de uma escolha assumir a autoria única deste texto. Dito
de outra forma, um caminho possível para o etnógrafo ou biógrafo que queira escapar a
esta autoridade inventada – a sua voz como provedora de verdades -, e reproduzir a
diversidade de vozes e olhares presentes num arquivo pessoal, deve esforçar-se em
substituir o apelo à experiência e à interpretação, pelo diálogo e pela polifonia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

E pouco me importa de durar ou não durar. Só peço a Deus que me


deixe acabar ao menos o que tenho começado para assim eu me justificar
de mim mesmo perante (...) homem deste mundo (Mário de Andrade
para Anita Malfatti, 19/março/1925)170.

A esta altura, cabem apenas algumas considerações finais que amarrem as


discussões que aqui se procurou trazer. Este artigo partiu, enfim, de uma experiência
concreta e particular em um arquivo pessoal, arquivo este que continha em seus
documentos outras experiências concretas e particulares.
Os jogos de poder existentes entre experiência e representação foram sendo
desvelados gradualmente, e o seu enfrentamento exigiu uma reflexão acerca dos
entrelaçamentos entre arcabouços teóricos de disciplinas várias.
Desta maneira, pode-se perceber que não somente os fazeres etnográficos e
biográficos estão em estreita conexão, como também que, em se tratando de arquivos
pessoais, ambos se mostram, um ao outro, em relação de dependência. Assim, a “ilusão
retórica” de que nos fala Pierre Bourdieu e “ficção antropológica” denunciada por Clifford
Geertz apresentam muito mais semelhanças do que se pode supor. Em um arquivo pessoal,
alteridade e poder são conceitos a que o pesquisador tem de lidar a todo o momento, em
cada manifestação e em cada vazio, procurando entender que os indícios (e as revelações)
estão também nas ocultações, nos não-visíveis. Para enxergar o que subsiste escondido nos
arquivos, e não degluti-los e reproduzi-los ingenuamente, é imprescindível refazer a
trajetória de sua constituição e seus usos; ou seja, tornar eles mesmos um objeto de reflexão.
Além disso, buscou-se demonstrar a necessidade de alguns questionamentos acerca
dos produtos (textos) etnográficos e biográficos em relação a suas autorias, e ao emprego

170
Arquivo IEB, Fundo Anita Malfatti, Código do Documento AM-04.01.0018. Disponível para consulta.

310
(consciente ou inconsciente) de uma autoridade intelectual sob os seus “sujeitos-objetos”.
É preciso frisar que não se trata aqui de questões puramente textuais, mas sim discursivas;
que, por sua vez, exercem influência política, ética e epistemológica sobre os resultados e
sobre as produções.
É possível escapar das exigências de interpretação e de representação do outro em
gêneros como estes? É possível escapar da autoria? Geertz diz que não, que nenhuma
manobra de método ou linguagem conseguirá desviar destas máximas, na medida em que
elas se encontram na própria natureza destes gêneros; negá-las é possível, mas se estará
fazendo outra coisa que não isso. Entretanto, acredita-se aqui, que há possibilidades ainda
pouco exploradas de representação e autoria minimamente mais equânimes, que são
aquelas que apostam na incorporação de outras vozes (plurivocais, polifônicas) e na
produção de espaços e textos mais dialógicos. Isso, referente aos arquivos pessoais,
equivale a dizer que a autobiografia - a interpretação e representação do(s) sujeito(s)
pesquisado(s) sobre si mesmo(s) - tem não somente de ser levada em conta, como necessita
também aparecer, porque dotada de experiência, como uma voz competente e legítima.

REFERÊNCIAS

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1988.

ANDRADE, Mário de. Epistolografia. In: “Diário Nacional”. São Paulo, 28 de setembro
de 1930.

__________. Inteligência Mineira. In: “Mensagem”, a.1, 11. Belo Horizonte. 15 de


dezembro de 1939.

ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Revista Estudos Históricos, CPDOC/FGV,


São Paulo, v. 11, n. 21, pp. 9-34, 1998.

BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO,


Janaína (Org.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio
Vargas, 1998.

CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. A presença do autor e a pós-modernidade em


antropologia. Novos Estudos CEBRAP, nº 21, jul. 1988, pp. 133-157.
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Tempo imperfeito: uma etnografia de arquivo. MANA
10(2), 2004, pp. 287-322.

GEERTZ, Clifford. Obras e vidas: o antropólogo como autor. Rio de Janeiro: Editora
UFRJ, 2009.

311
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990.
(Coleção Repertórios).

LEVI, Giovanni. Los usos de la biografia. Revista de la dirección de estudios históricos del
instituto nacional de antropologia e historia, n. 37. México, octubre 1996 – marzo 1997.

312
MULHERES NEGRAS EM MARCHA: REFLEXÕES ACERCA DO
MOVIMENTO DE MULHERES NEGRAS NA CIDADE DE SÃO
PAULO

Ayni Estevão de ARAUJO171

Resumo: Este artigo tem por base primeiras impressões de campo etnográfico junto a algumas
organizações de mulheres negras na cidade de São Paulo. Aponto um crescimento, nessa cidade,
na última década, de um movimento, que sob a égide do feminismo negro ou não tem se tornado
cada vez mais expressivo, engendrado seja a partir de coletivos e associações; no interior de outros
movimentos, como sindicais e de moradia; ou ainda enquanto grupos com propostas artístico-
culturais. Por meio dessas articulações, essas mulheres, que refletem sobre si mesmas enquanto
sujeitos políticos, pautam questões que para além do gênero, transpassam discussões acerca das
condições de raça, classe, sexualidade, religiosidade e geração a partir de suas práticas políticas.
Trata-se de um movimento, que, a priori, parte de um não lugar em outros movimentos, como nos
movimentos negros, compostos por homens e mulheres, nos quais essas acusam constantemente
uma exclusão baseada da identidade de gênero; e nos movimentos feministas, nos quais as negras
denotam a dificuldade de pautarem condições de raça e classe entrelaçadas ao gênero.
Compreendo esse campo, consequentemente, enquanto uma multiplicidade de formas de
organização política, que apesar de divergências e diferentes processos de subjetivação, convergem
em sua articulação a partir de um mesmo sujeito coletivo- mulher negra, e das consequências
políticas desse aspecto da identidade. Desse modo, analisar um movimento de mulheres negras,
longe de configurar novos essencialismos que homogeneízem experiência do ser/tornar-se negra
ou as estratégias de organização e de resistência, apontam para processos de disputa, reorganização
ou reconstituição de espaços políticos tradicionais.

Palavras-chave: Dáspora africana. Feminismo negro. Movimento negro. Mulheres negras. Política.

INTRODUÇÃO

Refiro-me a um movimento, neste artigo, compreendendo-o enquanto uma


multiplicidade de formas de organização política, especificamente na cidade de São Paulo,
que apesar de divergências, convergem em sua articulação a partir de um mesmo sujeito
coletivo-mulher negra, e das consequências políticas desse aspecto da identidade. Analisar
um movimento de mulheres negras, todavia, de forma alguma homogeneíza a experiência
do ser/tornar-se negra, tampouco os processos de subjetivação em diferentes grupos que
engendram esse movimento.
O campo etnográfico que proponho realizar, acerca do qual apresento neste
trabalho as primeiras impressões, dá-se junto a coletivos de mulheres negras, sejam eles
núcleos de movimentos maiores, como o “Conversa de Negras”, ligado à Marcha Mundial

171
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, Unesp/Araraquara,
ayni_ayni@hotmail.com.

313
das Mulheres172, sejam independentes, engendrados a partir de pautas ainda mais
específicas, como de mulheres negras periféricas, mulheres negras acadêmicas, mulheres
negras lésbicas, etc. O caminho etnográfico, delineia-se assim, de a acordo com o próprio
campo, através das relações possíveis entre os próprios sujeitos da pesquisa, ou seja, antes
de uma relação prévia de grupos a serem acompanhados, a escolha dessas organizações se
fará de acordo com as referências de outros coletivos. Desse modo, meu ponto de partida
se refere aos coletivos os quais particularmente construo ou com os quais dialogo
juntamente com outras mulheres, mais especificamente, o grupo a qual me referirei em
seguida e um coletivo de mulheres negras da periferia de São Paulo (na zona Leste
paulistana).

DA EXPERIÊNCIA À ESTRATÉGIA

Em 2016, fiz parte de um coletivo de mulheres negras, na cidade de São Paulo, o


“Conversa de Negras”, que surgia enquanto um núcleo de mulheres negras da Marcha
Mundial das Mulheres de São Paulo. Sua criação advinha de uma demanda por
organização de mulheres negras, para que suas pautas específicas fossem mais visibilizadas
e melhor articuladas dentro daquele movimento maior, que reunia mulheres de diversas
etnias, entretanto, em sua maioria branca. Muito dessa necessidade começou a ser mais
explicitada após a primeira Marcha das Mulheres Negras, ocorrida em novembro de 2015,
em Brasília, que reuniu mais de 50 mil pessoas de diversos estados brasileiros. Essa
Marcha, emblemática para os movimentos de mulheres negras em todo o país, não apenas
impulsionou a articulação de inúmeros coletivos a fim de sua organização, como
engendrou, depois dela, a formação de outros grupos.
A princípio, o coletivo tinha por proposta reunir-se a cada quinze dias e agrupava
mulheres (cerca de quinze), de idades, origens, graus de escolaridade, profissões,
orientações sexuais e trajetórias políticas diferentes (inclusive, muitas delas não faziam parte
diretamente da Marcha Mundial das Mulheres). Numa perspectiva de construção, o espaço
que era criado se constituía, como um lugar de compartilhamento e troca de experiências.
Entre cafés da tarde compartilhados, em tardes de sábado, o ambiente criado era
primordialmente afetivo, acolhedor. Ali, vivências cotidianas de opressão, dificuldades,

172
Movimento feminista cujos principais objetivos são a organização das mulheres urbanas e rurais a partir da
base e as alianças com outros movimentos sociais. A Marcha Mundial das Mulheres nasceu no ano 2000
como uma grande mobilização que reuniu mulheres do mundo todo em uma campanha contra a pobreza e
a violência.
314
conquistas diárias, escritos produzidos durante as semanas e projetos eram compartilhados
entre nós. Ora, essa atmosfera afetiva de maneira alguma deixava de segundo plano o
caráter político daqueles encontros. Todas as mulheres ali presentes, declaravam durante
os encontros a necessidade pessoal de se organizar politicamente de algum modo, a partir
da condição de mulheres negras, reconhecendo antes de mais nada, a forma
estruturalmente imposta como o racismo e o machismo pode ser vivido de maneira
específica por mulheres negras.
Uma das primeiras e particularmente mais emblemáticas atividades do grupo veio
da observação conjunta, a partir das experiências compartilhadas, da tendência, nos
movimentos políticos pelos quais havíamos circulado, à inviabilização não apenas das
pautas, como das próprias mulheres negras em seu interior. Mais do que isso, os espaços
políticos, inclusive de movimentos negros ou feministas eram espaços em que muitas vezes
pautar questões relativas ao gênero interligado à raça significava a abertura de um grande
embate, exigia uma posição de resistência. Ainda mais profundamente, uma estrutura
comum a diversos espaços políticos, sejam sindicais, partidários, organizações negras ou
feministas, parecia, com apontávamos, recorrentemente manter os lugares centrais de fala
ocupados por homens ou mulheres brancas.
Essa reflexão do grupo advinda de experiências políticas das mulheres gerou uma
atividade proposta por uma das integrantes, Alessandra, cientista política. A atividade
consistia num exercício de fala em público. Para tanto, cada uma de nós preparou um texto
acerca de um assunto o qual dominávamos muito: nossas próprias histórias de vida. Ao
contar a história, sem que isso fosse previamente combinado, percebemos como o que
expusemos, cada uma a seu modo, era uma releitura de nossas histórias pessoais a partir
da chave racial, um (re)conhecimento de diversas situações, que a partir daquele prisma,
identificávamos circunstâncias em que o racismo e o machismo eram evidentes nas
vivências enquanto mulheres negras. Através dessas situações, ainda que muito diversas,
trajetórias pessoais se coincidiam, como na esfera afetiva, profissional, política, escolar e
acadêmica.
O ato de discursar sobre era em si o primeiro passo para qualquer princípio de
articulação política. A preparação emocional para a ocupação de espaços políticos de fala,
nos quais normalmente não nos víamos representadas, consequentemente era uma
subversão da ordem de sistemas de organização em que, como concluíamos, silenciavam
ou invisibilizavam a presença e as pautas de mulheres negras.

315
O recorte descrito acima, de minha experiência junto a um coletivo de mulheres
negras, que para além de pessoal, constitui-se como inserção em campo etnográfico, pode
sinalizar alguns pontos centrais no movimento de mulheres negras, sobre o qual me
debruço, partindo da observação de recorrências dessas situações em outros espaços
organizativos em que estive presente.
Primeiramente, o fato do grupo organizar-se enquanto um núcleo no interior de
um grande coletivo feminista sinaliza a recorrente insuficiência não apenas do movimento
feminista, mas como de outras organizações não protagonizadas por mulheres negras de
atingirem essa pauta específica, o que é evidenciado pelo fato de as mulheres ali presentes
advirem de outros espaços políticos, como negros, partidários, sindicais, operários, eclesiais
de base, entre outros (conforme as narrativas de suas trajetórias políticas).
Como destaca Moreira (2007) sobre mulheres negras organizadas em relação tanto
aos movimentos negros quanto a movimentos feministas, paradoxalmente, esses grupos
que se insurgem contra a opressão de um segmento social, no decorrer de suas construções
acabam por (in) visibilizar ou secundarizar as especificidades de parte das mulheres que os
compõem. Bairros (1995), aludindo a “teorias do ponto de vista”, dentre as quais o
feminismo negro é uma das principais expressões nos Estados Unidos, sublinha que a
experiência da opressão do sexismo é determinada pela posição que uma mulher se
encontra no âmbito de uma matriz de dominação, na qual entrelaçam-se gênero, raça e
classe em pontos diversos. Pensar a intersecção dessas categorias não significa, entretanto,
partir de uma simples sobreposição de opressões, mas compreender a pluralidade de
possibilidades de posicionamentos e experiências em relação a sistemas opressivos.
Todavia, enquanto para Bairros (1995), se tal pressuposto é o que permite aos
movimentos de mulheres negras dar expressão a diferentes formas de ser negro
(experienciadas pelo gênero) e ser mulher (experienciadas pela raça), tornando-se incabível
para a autora a preponderância do racismo ou do machismo, sendo essas dimensões
inseparáveis; para González (1988), a vivência do racismo se dá anteriormente. Para a
autora, o viés eurocêntrico que olvidava a centralidade da raça na hierarquia de gênero,
bem como o distanciamento das vivências de mulheres negras, que resultava na negação
das trajetórias políticas de lutas e resistências por elas protagonizadas eram pontos de
conflito e as maiores dificuldades para as mulheres negras nos movimentos feministas
brasileiros:

316
Cabe aqui um dado importante da nossa realidade histórica: para nós,
amefricanas do Brasil e de outros países da região -assim como para as
ameríndias- a conscientização da opressão ocorre, antes de qualquer
coisa, pelo racial. Exploração de classe e discriminação racial constituem
os elementos básicos da luta comum de homens e mulheres pertencentes
a uma etnia subordinada. A experiência histórica da escravização negra,
por exemplo, foi terrível e sofridamente vivida por homens e mulheres,
fossem crianças, adultos ou velhos. E foi dentro da comunidade
escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência
que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação. A
mesma reflexão é válida para as comunidades indígenas. Por isso, nossa
presença nos movimentos étnicos é bastante visível; aí nós amefricanas e
ameríndias temos participação ativa e em muitos casos somos
protagonistas. Mas é exatamente essa participação que nos leva a
consciência da discriminação sexual. Nossos companheiros de
movimentos reproduzem as práticas sexistas do patriarcado dominante
e tratam de excluir-nos dos espaços de decisão do movimento. E é
justamente por essa razão que buscamos o movimento de mulheres, a
teoria e a prática feministas, acreditando aí encontrar uma solidariedade
tão importante como a racial: a irmandade. Mas o que efetivamente
encontramos são as práticas de exclusão e dominação racista (...). Somos
invisíveis nas três vertentes do movimento de mulheres; inclusive naquela
em que a nossa presença é maior, somos descoloridas ou desracializadas,
e colocadas na categoria popular (os poucos textos que incluem a
dimensão racial só confirmam a regra geral) (...).Pelo exposto, não é
difícil compreender que nossa alternativa em termos de movimentos de
mulheres foi a de organizar-nos como grupos étnicos. E, na medida em
que lutamos em duas frentes, estamos contribuindo para o avanço tanto
dos movimentos étnicos como do movimento negro (vice-versa,
evidentemente) (GONZÁLEZ, 1988, p. 17-18).

Em segundo lugar, é pertinente destacar como a partir do compartilhamento de


experiências elaborou-se uma estratégia, levando-se em consideração não apensas a
carência de espaços políticos que contemplassem pautas relacionadas àquelas vivências,
mas a falta de lugares de fala em outros contextos de ativismo. Foi a partir da reflexão sobre
nossas próprias trajetórias de vida, que as questões comuns, que tinham raízes na condição
enquanto mulheres negras, emergiam enquanto pautas de luta. Para além do conteúdo
dessas trajetórias, o ato de contá-las, no exercício de retórica, tornou-se algo fundamental,
a tal ponto, que uma das principais impulsionadoras do coletivo, Marli Aguiar, que sempre
compartilhava entre nós seus escritos, com a colaboração das companheiras do coletivo,
no ano seguinte, chegou a publicar um livro de contos, Tecendo Memórias e Histórias173,
no qual em contos, tomava como matéria prima suas memórias familiares no interior do
estado de São Paulo.

173
A edição do livro não foi oficializada por uma editora, mas realizada manualmente pelas mulheres do
coletivo.

317
Trazer a público a própria história, seja através da fala, seja por meios literários,
configura-se enquanto recusa a uma história única e oficial veiculada pelos sistemas
educacionais tradicionais, que inferiorizam, secundarizam e, na maior parte das vezes,
omitem as histórias nas quais mulheres e homens negros são protagonistas. Subverte o
lugar social e culturalmente imposto por uma ordem hegemônica que utiliza o discurso
único e estereotipado acerca daqueles que dominam, não apenas para reduzir lugares de
enunciação, mas para apagá-los como forma de silenciamento.
Na esteira do pensamento feminista negro, Collins (2000) reflete sobre esses
processos de compartilhamento de experiências como importantes estratégias de
empoderamento entre mulheres negras. A partir deles uma consciência, entendida pela
autora como dinâmica e constantemente negociada, é construída coletivamente a partir de
histórias pessoais e diferentes experiências de resistência. Essa consciência, a qual se refere
a autora, diz respeito ao (re)conhecimento ou a reflexão sobre as relações de poder, que
numa dimensão ideológica, circunscreve e implica o sujeito, concomitante com a subversão
dos sistemas em que essas relações se dão. (Re)conhecimento e subversão constituem
assim, para Collins (2000), dimensões de um empoderamento duplo.
Ao pensar políticas de empoderamento entre mulheres negras, a autora debruça-se
sobre diferentes dimensões - disciplinares, ideológicas, interpessoais e estruturais - pelas
quais se constituem relações de poder, ou seja, é a partir da reflexão acerca de como o
poder está organizado em relações sistematicamente opressivas a essas mulheres, que a
autora pensa as estratégias políticas desses sujeitos. Ora, na medida em que, pela análise
do termo, empoderar alguém ou empoderar-se supõe necessariamente mais do que uma
redefinição de relações de poder, uma subversão de sistemas nos quais essas são
constituídas, o pensamento feminista negro, como aponta Collins (2000), traz duas
colaborações centrais para a reflexão acerca dessas políticas de empoderamento: o
paradigma da intersecções de sistemas opressivos; e a reconceitualização das relações
sociais de dominação e resistência, as quais ultrapassam a chave binária de um simples jogo
de ação e reação, dando-se como processos que se determinam mutuamente. Nessa
perspectiva, ao pensar como se constitui e se articula politicamente o movimento de
mulheres negras, é interessante pensá-lo como construído a partir de estratégias de
resistência, que por si são tão complexas, envolvendo tantos agenciamentos, negociações
quanto as políticas e aparatos de dominação.
Essa perspectiva nos leva a um terceiro ponto que destaco na situação descrita. A
insuficiência de outros grupos políticos em relação às pautas das mulheres negras, decorre

318
em parte do fato de suas questões extrapolam uma discussão enviesada de gênero ou de
raça. Isso porque é inerente às lutas históricas de mulheres negras a intersecção de
diferentes sistemas opressivos. Como nota Carneiro (2003), a introdução das questões
levantadas por esse movimento na esfera pública contribui para o alargamento dos sentidos
de democracia, igualdade e justiça social. Nesse sentido, certas pautas, ainda que
tradicionais aos movimentos feministas, ganham outras dimensões quando são abordadas
sobre o prisma da raça, como é possível refletir a partir de vetores que direcionaram muitas
dessas lutas, como o acesso ao mercado de trabalho, a saúde, meios de comunicação e a
violência.
Nesse sentido, pensar, por exemplo, a violência direcionada às mulheres negras
extrapola o domínio das relações conjugais e domésticas e das relações entre homens e
mulheres. A partir do prisma da violência, é exposto um sistema de relações no qual as
mulheres negras são subalternizadas em diversas dimensões. Essa opressão não emerge
somente das diferenças entre homens e mulheres; mas também entre mulheres brancas e
negras, entre brancos e negros e entre classes sociais diferentes. Mais do que um outrem
que oprime, há uma série de contextos históricos que engendram a subordinação das
mulheres negras a um conjunto de relações de dominação, e concomitantemente, de
estratégias de negação, agenciamento e resistência (ARAUJO, 2016, p. 85).
Assim, o movimento em questão, a priori, parte de um não lugar em outros
movimentos, como nos negros, compostos por homens e mulheres, nos quais essas acusam
constantemente uma exclusão baseada da identidade de gênero; e nos feministas, nos quais
as negras denotam a dificuldade de pautarem condições de raça e classe. Da mesma forma,
um feminismo acadêmico, como aponta McClaurin (2001) em relação ao campo da
Antropologia, uma teoria feminista negra tem construído seu próprio cânone baseado em
políticas, práticas e poéticas, na busca de descontruir o racismo e o sexismo institucional.
Assim também Minella (2012) detecta, em um amplo conjunto de pesquisas publicadas em
importantes periódicos centrados em questões de gênero, uma lacuna no que diz respeito
ao recorte racial. Como conclui a autora, as formulações críticas na maior parte dos estudos
feministas direcionam-se ao androcentrismo e ao sexismo, ocorrendo, de algum modo
certa invisibilização do racismo.
É pertinente notar, entretanto, que a identificação com o feminismo negro não é de
fato uma constante entre os diversos grupos que engendram um movimento de mulheres
negras, ou seja, ainda que se possa observar uma alta veiculação tanto da expressão
feminismo negro, em si, como de parte de seu pensamento fundamental, de modo que

319
muitos grupos e lideranças definem seu ativismo como feminismo negro, seria um
equívoco atribuir necessariamente a articulação política dessas mulheres a uma corrente
teórica específica. Essa identificação ou não com o feminismo negro, ou até mesmo com
o termo feminismo, constitui um ponto de divergência e conflito entre diferentes grupos
no movimento que analiso. Muitas ativistas negam a referência histórica do termo
feminismo a lutas que se iniciaram com mulheres brancas, que inviabilizavam
completamente a questão de classe e racial, ocultando uma trajetória anterior de luta e
resistência de mulheres negras.
No entanto, para além dessa discussão, a ser aprofundada no decorrer dessa
pesquisa em seu âmbito maior, no campo teórico, as teorias do feminismo negro, muito
colaboram e auxiliam no entendimento mais profundo desse movimento, como poucas
teorias do gênero o fazem. Além disso, majoritariamente elencadas por mulheres negras,
não deixam de constituir um importante campo de contestação epistemológica e resistência
na esfera da produção de saberes, seja dentro ou fora dos limites acadêmicos.
Da mesma forma, outro campo teórico que inevitavelmente dialoga e muito tem a
colaborar com a discussão acerca do movimento em questão é o construído por autoras e
autores pós-colonialistas, na medida em que se trata de contribuições variadas, que seguem
na esteira da desconstrução de essencialismos no campo epistemológico, já amplamente
apontados, aliás, desde os trabalhos de Derrida e Foucault. São teorias, que de certo modo,
partir do caráter discursivo do social, dialogam com movimentos ou outras teorias para os
quais o questionamento dos lugares de enunciação, bem como a negação de um sujeito
homogêneo e universal é primordial. É o que se evidencia tanto no feminismo negro, bem
como a organização de mulheres negras, que parte da insuficiência das discussões dos
movimentos negros, feministas, ou outros movimentos sociais edificados sobre questões
de classe abarcarem questões específicas que ultrapassam a articulação em torno de um
sujeito coletivo baseado em uma única experiência enquanto mulher, enquanto negra.

FRAGMENTAÇÃO E DIFERENÇA

Analisar um movimento engendrado a partir de um não-lugar, situa a discussão no


âmbito do conflito, uma vez que ele está necessariamente imerso em processos de
desconstrução e desessencialização. Tal posição exige também uma abordagem que
extrapole determinadas dicotomias ou polos aparentemente contrapostos. Como nos alerta
Brah (2006), tratar-se-ia de um equívoco pensar feminismos negros e brancos como

320
categorias fixas e em oposição, ao invés de "campos historicamente contingentes de
contestação de práticas discursivas e materiais" (BRAH, 2006, p. 31).
Ora, se o movimento em questão interliga inevitavelmente diversos sistemas
opressivos, ou melhor, opressões que se dão historicamente de maneira sistêmica a partir
da mobilização de inúmeros aparatos de poder e submissão; é necessária a compreensão
de que não apenas as formas de resistência mas também as próprias dimensões do que seja
para esses sujeitos organizar-se politicamente são diversas. Ou seja, tão múltiplas como são
as formas de se experienciar esses sistemas de opressão, podem ser os modos de
enfrentamento a elas.
Assim como em minha pesquisa de mestrado (ARAUJO, 2016), a partir de uma
concepção de cultura entendida não como um todo homogêneo e fechado, analisei o hip
hop em dois contextos, entre mulheres em São Paulo e entre homens e mulheres em São
Carlos (interior paulista), o olhar para o movimento a que me refiro não objetiva encontrar
necessariamente um sistema coeso de organização e de pautas. Ao contrário, é no plano
na construção que se dá a análise, isto é, de que maneira diversas movimentações, a partir
de um sujeito coletivo, que em si é constituído de maneira heterogênea e circunstancial, de
acordo com diferentes grupos, ora se chocam, ora se complementam, influenciam-se e
modificam-se uns aos outros.
A partir de primeiras incursões a campo, não com muito esforço o que aponto é
para uma certa tendência à fragmentação, a partir de pautas que se tornam cada vez mais
específicas, emergentes, primordialmente de não-lugares. Isso também pode ser notado no
número crescente de vertentes do feminismo, que deixam de se constituir apenas
teoricamente e passam a orientar práticas políticas de grupos diversos.
Entretanto, se um movimento de mulheres negras historicamente emerge
exatamente da invisibilidade de suas pautas próprias em espaços não protagonizados por
elas ou que se encontram em minoria, ainda dentro desse campo, cada vez mais, surgem
novos fragmentos. Atualmente, na capital paulista, é possível encontrar grupos, coletivos e
associações de mulheres negras da periferia, mulheres negras estudantes acadêmicas,
mulheres negras lésbicas, mulheres negras transexuais, mulheres negras de religiões de
matrizes africanas, entre outros.
Cada coletivo, por sua vez, ao justificar sua existência pelo apontamento de certa
invisibilidade dentro de um grupo maior, marca sua diferença e reivindica o direito a ela,
ou melhor, em termos da ação política, organiza-se em outros espaços a fim de articularem-
se a partir de suas pautas específicas.

321
Ora, trata-se de uma constante negação de um sujeito coletivo homogêneo, de uma
única experiência do racismo, ou do machismo. Nessa perspectiva, amplia-se o prisma de
percepção das inúmeras esferas e mecanismos pelos quais pode-se disseminar e consolidar
sistemas racistas e machistas. Pensando quais são as consequências possíveis de tal
tendência à fragmentação, poder-se-ia apontá-la, na esteira das análises de que uma das
implicações da globalização é a ruptura dos vínculos; e que tal fragmentação dos
movimentos sociais nada mais é do que reflexo da perda de espaço cada vez maior das
esferas políticas em relação às lógicas da economia, de modo que a articulação de sujeitos
coletivos é cada vez mais pontual, com objetivos cada vez mais específicos e mutáveis. Isso
se soma ainda a transformações de antigos elementos fundamentais na constituição de
identidades e identidades coletivas, como classe, raça e nacionalidade, que tendem a ficar
de segundo plano em processos de individualização na era global, como apontam autores
como Beck e Beck-Gernsheim (2003).
Arrisco, como hipótese, entretanto, sem abrir mão dos supostos sobre novos
processos de subjetivação cada vez mais transpassados por processos de individualização
nas cidades globais, que podemos estar diante de momentos de reconfiguração das lógicas
desses movimentos políticos, que pode ter como indício uma reivindicação muito comum
no interior desses grupos fragmentados: o lugar de fala.
Se o discurso de uma ativista negra, cis e heterossexual pode ser questionado por
um grupo de mulheres negras transexuais por pouco dialogar com suas pautas específicas;
bem como pode do mesmo modo, ter sua eficácia posta em xeque por um coletivo de
mulheres negras lésbicas; o que se reivindica é uma legitimidade a partir da noção de lugar
de fala.
Essa constante autoanálise por parte desses movimentos no que diz respeito a seus
próprios processos de formação discursiva, ou seja, não apenas daquilo que é enunciado,
mas também do sujeito que o faz e se constitui a partir de seu discurso, e das circunstâncias
e experiências que mobiliza ao produzi-lo claramente dialoga com as discussões da
diferença e da différance.
Como sublinha Costa (2006), diferença, na perspectiva pós-colonialista, não se
relaciona a uma herança biológica, cultural, nacional, ou a um conjunto de elementos
fechados que identifiquem um grupo de indivíduos diante de outros. A diferença, na forma
a qual exploram autores com Bhabha (1998) e Hall (2003), se dá antes no plano discursivo,
no momento mesmo de sua enunciação. Esse sentido vai na contramão da ideia de

322
construções identitárias que homogeneízam e que circunscrevem locais específicos e
fechados da cultura.
Tal linha de raciocínio tanto coincide com perspectivas de cultura na Antropologia
que dialogam com uma pós-modernidade e antes, com o pós-estruturalismo, que
desconstroem a noção de cultura como conjunto de valores e hábitos fechados e pré-
determinados em certa estrutura; quanto com a tendência a tomar as práticas discursivas
não como reflexo do sujeito imerso num regime de verdades, mas essas aquelas construídas
no momento mesmo em que esses também o são, como já nos ensina Foucault (2007).
Como vemos em Bhabha (1998), não se parte de um sujeito determinado por sua
localização numa estrutura social ou reflexo direto de um conjunto fechado de ideias; os
sujeitos, bem como as identidades, são sempre provisórios e circunstanciais. Essa
proposição parte da ideia também defendida por Bakhtin (2006) da impossibilidade de
coincidência total entre significado e significante, que implica a pressuposição de que o
discurso, bem como as definições que se pode atribuir a um sujeito ou ainda a uma cultura,
nunca esgota as possibilidades de significação de um mesmo contexto.
Como nota Costa (2006), a ideia de diferença na maneira a qual é tratada por
autores como Bhabha (1998), Hall (2003) e Gilroy (2001), decorre da noção de différance,
alcunhada por Derrida (1991). O neologismo a partir do termo francês différence aponta
exatamente para o deslocamento dos signos, para a diferença que, na medida em que é
criada a partir do discurso, não pode ser traduzida em um só processo de significação,
muito menos circunscrita em definições dadas por meio de binarismos como eu/outro,
nós/eles, sujeito/objeto, que geram ilusões de representações totalizantes, completas. O
lugar da ideia de diferença desses autores é justamente o residual, aquilo que escapa aos
processos de representação em decorrência de sua incompletude; o excedente de sentido
que não cabe nas diferenciações polarizadas e binárias. Desse modo, toma-se a diferença,
não como pré-existente, essencial e ontológica, mas como algo que pode ser pensado em
sua construção circunstancial, imersa num contexto social discursivo.

CONCLUSÕES

Se sujeitos coletivos são construídos a partir das diferenças, ou de especificidades -


negras, transexuais, lésbicas, acadêmicas, periféricas -, esses aspectos da identidade a partir
dos quais se potencializam opressões sistêmicas, tornam-se no espaço político de ativismo,
mais do que geradores de desigualdades, referências a partir das quais se garante ou se

323
reivindica espaços de enunciação cada vez mais plurais. Para além da fragmentação gerada,
é possível se pensar a construção de movimentos polifônicos, como uma multiplicidade
perspectivas.
Se perspectivas pós colonialistas, feministas, pós-modernas, de algum modo, para
além de conceitos, colocam em xeque sistemas de pensamento ao questionar
epistemologicamente lugares enunciativos, gerando não apenas outros objetos e
conceitualizações, mas metodologias e matrizes cognitiva, essa fragmentação, ou melhor
seria, essa multiplicidade de perspectivas, nos espaços políticos em questão acabam por
gerar mais do que uma pluralidade de temas ou pautas, mas alternativas de organização e
de concepções políticas.
Goldman (2007), faz uma crítica às definições de novos movimentos sociais, como
a de Alvarez; Dagnino e Escobar (2000), enquanto lutas que nos anos 1960 e 1970
extrapolavam pautas das movimentações calcadas nos interesses de classe, com
reivindicações cada vez mais específicas, que em vez de pautarem de direitos entendidos
como universais, passaram mais a se mobilizar, ainda que numa chave de igualdade, pelo
direito à diferença, ou por direitos específicos não universalizáveis. O autor, que ao pensar
como ao longo dos anos 1990, muitos desses grupos passam a mobilizar largamente a
noção de cultura como centrais em seus discursos e práticas, a eles se refere enquanto
novos movimentos culturais. O risco daquelas análises, como aponta Goldman (2007) é a
produção de reflexões que pouco levam em consideração o que esses movimentos em si
têm a dizer, reduzindo-se muitas vezes a processos de construção da cidadania o que mais
profundamente se trata de construções de concepções alternativas de vida. Para além da
busca por direitos e da inclusão numa ordem preexistente, é possível enxergar que nesses
movimentos (não que isso também não seja objetivado de maneira mais imediata), estão
em jogo construções de novas socialidades, por sujeitos que se recusam a permanecer nos
lugares social e culturalmente colocados.
Nessa perspectiva, nos alerta o autor, esses grupos, os quais trazem a cultura para o
cerne de suas discussões, devem ser observados, para além das identidades que criam ou
cristalizam, pelos movimentos em si que desencadeiam em seus processos, sobretudo
enquanto “minorias”, ou seja, como oposição e resistência a sistemas dominantes e como
busca por alternativas aos modelos de Estado.
Assim, na medida em que o movimento para qual aponto tem inevitavelmente, em
sua gênese, a contestação de lugares de enunciação, a desconstrução de essencialismos e
pautas que transpassam campos teóricos e políticos diversos, sua análise só pode se dar por

324
uma perspectiva de construção a partir de conflitos e heterogeneidades. É nesse sentido
que o caminho etnográfico escolhido se dá no mapeamento de grupos que em suas
divergências o compõem não a fim de construir analiticamente um todo coeso que apare
as inconsistências, incoerências e bordas. Ao contrário, entre pautas comuns e específicas
é interessante notar de que modo são agenciadas, negociadas e articuladas as diferenças,
que da mesma forma como são constituídas circunstancial e discursivamente delineiam
formas de subjetivação, concepções e estratégias políticas contingentes.

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326
“ANGOLEIROS DO SERTÃO”: PROBLEMATIZAÇÕES SOBRE A
SALVAGUARDA DA CAPOEIRA PELO IPHAN

Natália Rizzatti FERREIRA 174

Resumo: Este estudo pretende contribuir para a história da capoeira angola, e para a compreensão
da cultura popular brasileira, ampliando o debate acerca da tradição a partir da concepção de
linhagens não-hegemônicas. Para tanto, toma como foco da análise a escola de capoeira Os
Angoleiros do Sertão, fundada na década de 1980, em Feira de Santana, na Bahia, pelo mestre
Cláudio Costa. Embora confere maior importância ao ensinamento da capoeira angola, tomando
esta expressão cultural afro-brasileira como primeiro aporte, o grupo a ultrapassa, reunindo várias
manifestações culturais, a exemplo do samba de roda, o “quebra-pote” e o “rei-roubado”. Trata-se
de um grupo de cultura popular que procura manter os valores culturais da comunidade da
Mantiba, na zona rural feirense, articulando a tradição sertaneja com um estilo de capoeira
diferenciado. Juntamente com outras manifestações da cultura afro-brasileira, a capoeira angola faz
parte do conjunto dos grandes ícones representativos da identidade cultural do Brasil. Em 2008,
duas das suas expressões – a Roda de Capoeira e o Oficio os Mestres de Capoeira – foram
tombados como patrimônio cultural brasileiro de natureza imaterial pelo IPHAN. Em 2014 obteve-
se o título de Patrimônio Imaterial da Humanidade, pela UNESCO. Procura-se assim
compreender alguns significados contemporâneos do processo de patrimonialização da capoeira,
sobretudo no que diz respeito aos impactos e consequências na comunidade capoerística. Parte-se
da constatação de que de a capoeira é uma atividade extremamente diversifica a e heterogênea,
sendo praticamente impossível reduzi-la a um discurso único, sob pena de perder toda a sua
conexão com o mundo real e vivido dos capoeiristas e de seus interlocutores. Sendo assim, se o
processo de patrimonialição deve ser estudado em uma perspectiva múltipla, proponho um olhar
acerca do grupo Os Angoleiros do Sertão.

Palavras-chave: Capoeira Angola. Patrimônio Imaterial. Angoleiros do Sertão. Tradição.

INTRODUÇÃO

A escola de capoeira Angoleiros do Sertão foi fundada na década de 1980, em Feira


de Santana, na Bahia,175 pelo mestre Cláudio Costa.176 Embora confere maior importância

174
Doutoranda em Ciências Sociais pela Unicamp. Email: natrizz@hotmail.com
175
Feira de Santana é uma cidade notável, entre outros elementos, pela sua localização. Situada no leste do
estado da Bahia, a pouco mais de cem quilômetros da capital, ela é o ponto de divisão sociocultural entre
o recôncavo e o interior do estado, ou ainda, entre a zona da mata e o sertão, numa área de transição
denominada agreste baiano. Sua história é relacionada a estrada das Boiadas, onde se desenvolveu uma
importante feira livre, a qual “se tornou entroncamento comercial para mercadores de gado provenientes
do Alto Sertão baiano, Piauí e Goiás” (OLIVEIRA, 2106, p. 172). A partir dessa feira, a região foi sendo
povoada por migrantes vindos do interior da Bahia e de todo o Brasil, se enraizando assim a tradição dos
tropeiros e dos sertanejos. Atualmente, Feira de Santana tem aproximadamente seiscentos mil habitantes e
é um dos mais importantes entroncamentos rodoviários do país.
176
A presença do Mestre, no âmbito da capoeira, é figura fundamental, pois ele é o responsável pela
preservação e transmissão dos saberes e tradições327 que organizam a vida social de determinado grupo,
transmissão essa que privilegia a oralidade. Da mesma forma que Walter Benjamin (1994. p 200) caracteriza
a figura do narrador como aquele que assume a perspectiva de quem tem a autoridade para narrar sua
vivência, transformando-a em experiência passível de ser compartilhada, pode-se traçar um paralelo na
cultura popular, onde os mestres remetem aos velhos anciãos, portadores de uma autoridade perante sua
comunidade.
ao ensinamento da capoeira angola, tomando esta expressão cultural afro-brasileira como
primeiro aporte, o grupo a ultrapassa, reunindo várias manifestações culturais, a exemplo
do samba de roda, o “quebra-pote” e o “rei-roubado”. De acordo com o fundador: “hoje
os Angoleiros do Sertão vai além dessa coisa da escola de capoeira, é mais um grupo
cultural do que simplesmente escola de capoeira, é um grupo cultural onde a base é a
capoeira (sic)” (Mestre Cláudio, 2010).
Cláudio Costa nasceu em 1967, na pequena comunidade de Lagoa das Pedras, na
zona rural feirense. 177 Trata-se de uma região permeada por várias comunidades, onde a
mais conhecida, a Mantiba, é seu atual endereço. No quintal da sua casa ou, na “roça”,
expressão por ele corriqueiramente empregada, se localiza a matriz do seu grupo de
capoeira.178 É também neste lugar que ele promove “uma grande festa de cultura popular”,
contando com a participação dos moradores das comunidades vizinhas (Maria Quitéria,
Matinha etc.), bem como dos praticantes da capoeira e do público simpatizante em geral.
Denominado de “Encontro de Angoleiros”, o evento cumpre várias funções, desde a
diversão, por meio dos “batuques negros”;179 passando por espaços de aprendizagens, por
meio das oficinas de confecção de instrumentos musicais e rodas de conversa; até a
confraternização, por meio do fortalecimento dos vínculos entre as comunidades, cuja
realidade de desigualdade social e vulnerabilidade é latente.
Além desta festa anual (geralmente ela acontece no mês de janeiro), todos os
sábados, a partir das 10h, Mestre Cláudio é o responsável pela habitual roda de capoeira
(seguido de samba de roda) no centro comercial de Feira de Santana, em frente ao
Mercado de Arte Popular180.

177
Ao estudar Feira de Santana nos anos 1950, o historiador norte-americano Rollie Poppino (1968, p. 283)
afirma que “os primitivos cultos africanos perduraram entre os negros e os mulatos das classes inferiores”,
especialmente na periferia da cidade e nos distritos, na zona rural.
178
Atualmente, existem núcleos em outras cidades do Brasil e no exterior, a exemplo da Alemanha,
Finlândia e Croácia. O estado de São Paulo foi a região onde mais se expandiu, com sedes em Bauru,
Marília, Assis, Araraquara, Paraguaçu Paulista, Rancharia, Presidente Prudente, São José dos Campos,
Maracaí, Martinópolis, João Ramalho e, recentemente, a própria capital paulista.
179
Utilizo a definição de “batuques negros” orientada pela concepção veiculada nos trabalhos de José Ramo
Tinhorão. O termo tem a conotação genérica para designar as diversificadas práticas lúdico-percussivas e
de caráter religioso, características das reelaborações culturais dos africanos no Brasil desde o século XVI.
As experiências aqui referidas dizem respeito à capoeira, o samba de roda e outros brinquedos do universo
simbólico afro-brasileiro. 328
180
O Mercado de Arte é um dos prédios mais importantes do patrimônio histórico da cidade, tendo abrigado
por muitas décadas a famosa feira livre. Todo estilizado com colunas toscanas e portais em arco, o prédio
abriga, ainda, a sede do Instituto Histórico e Geográfico e a Academia de Letras de Feira de Santana, com
área para o mercado de cordéis e lançamento de livros. Não à toa, em 1992, ele foi tombado pelo IPAC
(Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia) e recentemente sofreu algumas reformas, agregando
novas estruturas para o comércio dos artesãos, palco de entretenimento e gastronomia regional.
A origem da escola Angoleiros do Sertão – proximamente ao primeiro terço dos
anos 1980 – está atrelada a uma conjectura história maior, marcada por um novo paradigma
acerca das relações étnico-raciais na Bahia. Este paradigma é decorrência das
transformações políticas e sociais no Brasil como um todo: na esteira de um certo
“afrouxamento” da ditadura militar, as greves, concentrações e protestos, sobretudo nos
grandes centros urbanos, demonstraram o crescimento da organização de diversos setores
da sociedade.181 Ganhou relevo a presença dos “novos sujeitos sociais”, isto é, negros,
mulheres, homossexuais e indígenas, que passaram a representar a afirmação de vozes
mínimas e conseguem aos poucos um espaço de locução182. Diferentemente do fenômeno
de contestação social dos anos 1960, a tônica, nas décadas seguintes, recai sobre a
constatação de que não apenas o projeto utópico deixa de ser proposto, como também a
antiga confiança em tal projeto, por meio do questionamento dos meios utilizados para
alcançá-lo.183 Ao lado das teorizações que problematizaram as formas de transformação da
sociedade, irrompem-se as lutas contingenciais e parciais, as quais demandam a construção
de fronteiras identitárias fronte às verdades conquistadas pela hegemonia social.
Em que pese aos afrodescendentes baianos, estes, influenciados por processos
artístico-culturais internacionais – a exemplo da “soul music” norte-americana, do “reggae”
e do movimento “black power”, aliados ao processo de descolonização do continente
africano –, revigoram o sentimento de orgulho e pertencimento à sua identidade negra,
impulsionando-lhes à defesa e o exercício da cidadania. Funda-se o Movimento Negro
Unificado Contra a Discriminação Racial, em 1978, posteriormente conhecido como
MNU. Sob os efeitos da modernização urbana, a cidade de Salvador, no final dos 1970,
presenciou uma nova fase da sua vida cultural com uma série de práticas, representações,

181
A mobilização popular pró-diretas contou com a cobertura dos meios de comunicação, “o hino nacional,
cantado a uma só voz em ruas e praças, passou a significar a unidade em torno do desejo de mudanças.
Vivia-se um clima de esperança vestida de vibrante amarelo” (RODRIGUES, 1994, p. 19). A Constituinte
(que passa a vigorar apenas em 1988) incorporou algumas liberdades, como a proibição da censura e
reconheceu alguns direitos como o de greve e o de não-interferência do Estado nas organizações sindicais.
“Mas é indiscutível que sua existência não altera os desequilíbrios sociais e nem garante que o nela instituído
é direito de todos os brasileiros e, muito menos, que ela abarcará as tensões próprias do confronto
democrático entre as classes sociais” (RODRIGUES, 1994, p. 27-28)
182
A denominação que lhes é atribuída – minorias – parece, contudo, bastante imprópria. Como afirma o
editorial a revista La Gandhi Argentina, 2 “as minorias nunca poderiam se traduzir como uma inferioridade
numérica, mas sim como maiorias silenciosas que, ao se politizar, convertem o gueto em território e o
estigma em orgulho – gay, étnico, de gênero”. 329
183
Ainda que a contracultura demonstre distinções e nuances no interior do seu campo de experiências, cuja
bifurcação se apresentou, resumidamente, entre os caminhos do “desbunde” e da luta armada, entendo,
aqui, que tanto o “porra-louquismo” de cores pacíficas, quanto a opção político-revolucionária se
circunscrevem ao movimento maior de tentar criar um “mundo alternativo, underground, situado nos
interstícios daquele mundo desacreditado, ou no que se acreditava ser o outro lado de suas muralhas.”
(PEREIRA, 1985, p. 22).
temas e motivos estéticos, os quais forneceram releituras para as instituições negras.
Adotando o carnaval como o palco por excelência para as performances identitárias – mas
não o único –, surgem os blocos afros, a exemplo do Ilê Aiyê (1974), Olodum (1979), Malê
Debalê (1980) e Muzenza (1981). A esta nova fase, Antônio Risério, em seu livro “Carnaval
Ijexá” (1981), chamou de “Reafricanização”, salientando que já existiu outra africanização,
descrita por Nina Rodrigues, dentre outros, no começo do século XX184.
Reivindicando “modernidade, liberdade e identidade”, inaugura-se uma nova
atitude dos negros baianos, representada sobretudo por um nexo reelaborado em torno do
signo-África. Embora haja algumas ressalvas a respeito da ideia da “reafricanização”,185 a
utilizo enquanto um “contexto social-discursivo sedimentado” (PINHO, 2005, p. 128), o
qual firmou-se como base tanto para as organizações coletivas, quanto para a reconstituição
da subjetividade afrodescendente a nível nacional (PINHO, 2006, p. 11)186.
É neste cenário de efervescência político-cultural que boa parte dos movimentos
sociais se valeram das experiências e dos conhecimentos oriundos da cultura popular,
nutrindo-se das suas vivências e visões de mundo, agora organizados em função de uma
reivindicação específica e objetiva – o preconceito racial. A capoeira angola adicionou,
assim, um combustível a mais aos processos reivindicatórios em curso. Iniciou-se, assim,
um amplo – e complexo – movimento que ficou conhecido por “ reascensão angoleira”,
haja vista que devido à difusão da vertente da capoeira dita regional, a capoeira angola
sofreu um longo período de decadência, a ponto de ter a sua extinção decretada por Edison
Carneiro187.

184
Antes dos anos 1930, poucos trabalhos se ocuparam da etnografia e sociologia dos africanos e seus
descendentes. Raimundo Nina Rodrigues, no entanto, na obra Os Africanos no Brasil (publicado
postumamente em 1932), faz uma minuciosa descrição acerca das distintas procedências dos povos negros
que colonizaram o Brasil. Ainda que seja o primeiro estudo a abordar o negro enquanto elemento social
relevante para a formação social brasileira, adota-se uma perspectiva racista, tributária aos precursores das
Ciências Sociais, a exemplo de Manuel Querino, João do Rio, Euclides da Cunha e Silvio Romero, para citar
alguns. Numa leitura evolucionista e determinista, Nina Rodrigues interpretou os fenômenos econômicos e
políticos do país, isto é, o “atraso brasileiro”, a partir de dois conceitos-chaves: raça e meio. A saída para esta
condição seria o estímulo da imigração de europeus, base para a processo de branqueamento do Brasil.
185
Para antropólogo Osmundo Pinho (2005, p. 129), por exemplo, ela foi, muitas vezes, capturada “pelo
aparelho de Estado, no sentido de ver reduzida sua capacidade proliferante de produzir outros mundos” e
por outro lado, cooptada por slogans publicitários.
186
Ainda para Osmundo Pinho, o roteiro descrito por Antonio Risério a partir da “reafricanização” é
atravessado por uma visão essencialista. Isso porque330 a valorização do substrato cultural jeje-nagô, isto é, a
textualização do modelo do candomblé, tomando-o como o fundamento, o principio explicativo, o núcleo
originário da identidade essencial do negro no Brasil, antevê uma “naturalidade” ao negro. “Identidades e
culturas se auto-elaboram [...] num jogo reflexivo e crítico, encharcado de determinações históricas,
plenamente político e profundamente complexo, um jogo ainda assim aberto e que extrai seu sentido não
da encenação de algum conteúdo exterior que se presentifica em seus lances, nem pela representação de
uma ‘moral’ que preexista sua ética local e contingente” (PINHO, 2006, p. 17).
187
Sua sobrevivência pode ser atribuía a raríssimos praticantes, “perdidos por alguns redutos na cidade de
Salvador e no Recôncavo Baiano” (ABIB, 2004, p. 43).
HISTÓRIAS E CAPOEIRAS

Para compreender este processo, faz-se necessário uma retrospectiva, onde a


proposta de Areias (1983) no livro “O que é capoeira?”, periodizou a capoeira do seguinte
modo: 1) do início da escravidão e senzalas188; 2) da Lei Áurea e decadência dos
quilombos; 3) da proibição oficial após a Abolição189; e, 4) sua liberação desde 1932 em
diante, o que inclui a academização, a esportivização e a escolarização da capoeira 190, ou
seja, sua popularização191, institucionalização e internacionalização recente192. Eu arriscaria
incluir neste último contorno temporal, o mais recente processo: a patrimonialização.
Dentro deste quadro histórico, a legalização oficial da capoeira é uma inflexão que
trouxe consequências significativas, pois, se antes ela era associada ao mundo do crime e
da desordem, como se fosse coisa de “capadócios das ruas”, depois surge a necessidade
dar-lhe um caráter mais aceito socialmente. Desponta a figura do baiano Manoel dos Reis
Machado (1899-1974), o mestre Bimba, quem estabeleceu modificações substanciais na
prática de até então e, fundou a “Luta Regional Baiana”, também chamada “Capoeira
Regional”. Dentre as mudanças realizadas, ele instituiu a academia – e não mais a rua –
como espaço de aprendizagem e incluiu elementos de outras artes marciais, como o karatê
e o jiu-jitsu, numa perspectiva esportivizante. Foi ele o responsável pela sua difusão país
agora, contando com o apoio das classes média e média-alta soteropolitanas, além do
presidente Getúlio Vargas, quem numa apresentação solene, em 1953, afirmou que “a
capoeira é o único esporte verdadeiramente nacional”. Tamanha mudança na significação
– de crime previsto no Código Penal para ícone representativo da brasilidade – tem como
pano de fundo o projeto nacional-desenvolvimentista, ou seja, o “ideal de modernização

188
A “questão do começo” da capoeira, tem sido estudada por perspectivas múltiplas, mas para Muniz Sodré
(2002), isto é um falso problema, pois o importante não é o começo (a data histórica), mas sim o “principio”,
ou seja: quais são o conjunto de condições histórico-culturais que a geraram e o que a mantém em expansão.
Se, por um lado, a historicidade - o “começo” – é brasileiro, por outro lado, o “princípio” é africano. Assim,
não existiu uma matriz, ou centro irradiador único que pudesse ser considerado como o local de surgimento
da capoeira. Ela brotou espontaneamente e com formas diferenciadas em diferentes locais pelo país, a “a
partir da ‘cultura do instantâneo’, do ‘improviso’ e do ‘não racional’ nas senzalas, ruas e praças” (ABIB,
2004, p. 94).
189
Segundo Soares (2002, p. 547): “Raras vezes – ou mesmo nunca – uma prática cultural, que seria depois
introduzida no universo do folclore, chamou tanto a atenção dos donos do poder no regime escravista e
causou tanta preocupação aos tradicionais dirigentes do Estado no Brasil”. E isso não à toa, haja vista que a
capoeira municiava escravos e marginalizados, de331 armas poderosas na luta direta contra o agente da
opressão, fosse um senhor brutal, fosse um soldado truculento.
190
Em 1972 uma portaria do MEC a reconheceu oficialmente como esporte.
191
Segundo Araújo (2004, p. 96), há cerca de seis milhões de praticantes só no Brasil, e a estatística segue
crescendo em número de alunos com progressão geométrica, ainda que mercantilizada.
192
Segundo Viera (2004, p. 20), a capoeira “se encontra hoje em mais de 164 países, em todos os continentes,
de modo que hoje os berimbaus nunca param de tocar em nosso planeta”.
e de uma demanda de unificação – cultural, política, etc., levado a cabo no contexto
populista do Estado Novo” (LAHUERTA, 1997, p, 106)193.
Assim como qualquer outra identidade – que se faz essencialmente por contraste
–, a partir dos anos 1950 se articulou um movimento “liderado” por Vicente Ferreira
(1889 – 1981), o mestre Pastinha, entre outros capoeiras e intelectuais que, em oposição
às transformações modernizantes aportadas por mestre Bimba, buscaram a “preservação
das formas originais e tradicionais de praticar a capoeira: a ludicidade e a ritualidade
(ABIB, 2004, p. 43)194. Para caracterizar essa prática, criou-se a denominação de “Capoeira
Angola”, o que significa dizer que antes falava-se apenas em capoeira.
Os angoleiros, em geral, requerem para a si os valores da única capoeira legítima,
isto é, aquela calcada na “verdadeira” origem africana, o que mira para um contexto
sonorizado por um arcabouço teórico – a exemplo das contribuições do ISEB (Instituto
Superior de Estudos Brasileiros) entre outros – que, segundo Renato Ortiz (1994), baliza
a discussão cultural no Brasil até bem recentemente. Marcelo Ridenti (2006, p. 235)
levanta a hipótese de que nos anos 50 e 60 construiu-se uma “estrutura de sentimento da
brasilidade (romântico) revolucionária”, em que antevia-se “no passado uma cultura
popular autêntica para construir uma nova nação, ao mesmo tempo moderna e
desalienada”.195 Já o historiador Simone Vassalo chamou de “paradigma culturalista nas
ciências sociais”, o qual não só privilegia a busca das expressões artístico-culturais mais
“puras” e “autênticas” – típicas da identidade brasileira –, senão também classificam-nas
em termos de pureza ou degradação. Assim, os vetores puristas, inflados pelo respaldo
de alguns intelectuais, a exemplo de Edison Carneiro e Jorge Amado, elegeram a arte de
mestre Pastinha como a expressão certeira de uma manifestação cultural que sobrevivia
frente à ameaça do progresso.
A polaridade Regional x Angola traz certo embate ideológico em torno de
diferentes projetos político-identitários. Alejandro Frigerio (1989) interpreta o
aparecimento da primeira como um "embranquecimento" da segunda, seguindo um

193
Após a revolução de 1930, o Estado precisa consolidar seu próprio desenvolvimento econômico-social,
onde a prevalência do tema nacional pode fornecer indícios do “consenso [com] a intelectualidade
chamando-a para participar do processo, realizando a fusão de modernidade e projeto nacional”
(LAHUERTA, 1997, p. 106). Os trabalhos de Arthur Ramos, Edson Carneiro e Gilberto Freyre vem
atender a esta “demanda social”, transformando “a negatividade do mestiço em positividade, o que permite
completar definitivamente os contornos da identidade” (ORTIZ, 1999, p. 41).
194
Além do mais, alguns mestres antigos não aceitaram que Bimba, com apenas 36 anos e auto-intitulado
mestre inventasse novas regras e determinasse os termos desta arte-luta, sobretudo priorizando o caráter
332espiritualistas e políticos da capoeira.
esportivo, em detrimento dos aspectos culturais, rituais,
195
Trata-se de uma modernização alternativa, cujo acento para o futuro vinha acompanhado da melancolia
em relação a uma comunidade mítica já não existente.
esquema semelhante ao proposto por Renato Ortiz (1999) para a Umbanda.196 Evadindo
de desenvolver este debate – do qual parece não se vislumbrar o fim, pelo menos
proximamente – e, ao mesmo tempo, procurando não resvalar em simplismos
obscurantistas, entendo que cada vertente possui uma trajetória própria que se insere e se
tenciona (não necessariamente nesta ordem) com o meio social onde é gestada. As duras
críticas à regional podem ser relativizadas, se compreendidas sob o enfoque de que ela se
utilizou criativamente dos elementos do próprio sistema repressor para ocupar espaços
importantes na sociedade. Por outro lado, sua inserção na cultura de consumo sugere
mais uma “adaptação” à lógica mercantil da sociedade capitalista do que a “contestação”.
Defender a “pureza” da angola tampouco contribui para a interpretação do fenômeno
(embora o discurso essencialista seja a tônica de muitos praticantes e mestres). Mas, é
inegável que nela persistem “traços de uma ancestralidade e de uma ritualidade” que a
regional não conservou (ABIB, 2004, p. 110).
Em vista disso, é possível perceber que há diversas maneiras de se posicionar e
escolher tanto a prática quanto o referencial teórico capoeirístico, até porque vários são
os significados que lhe foram atribuídos, através de diferentes discursos, ao longo da
história da capoeira. A partir das contribuições de Rego (1968), Araújo (1999, 2004), Reis
(2000), Gomes (2012) compartilho a assertiva que o seu surgimento se deu devido à
necessidade de reação e reafirmação humanística de uma classe social oprimida. A
capoeira é a resposta dos africanos escravizados ao regime escravagista, resposta essa que
se dá através do corpo, da mente e espírito. Ela tem componentes mestiços de diversas
etnias negras que se misturaram na vinda para Brasil, desde os navios negreiros,
articulando uma rede de solidariedade entre sujeitos tidos como marginalizados e que
assim a utilizavam enquanto possibilidade de enfrentamento e subversão à ordem
estabelecida.197 Ela é luta, dança e arte, ou como queiram denominá-la. Sua “visão social

196
Em “A morte branca do feiticeiro negro”, Renato Ortiz faz o interessante estudo sobre as religiões de matriz
africana, onde “a umbanda corresponde à integração das práticas afro-brasileiras na moderna sociedade
brasileira; o candomblé significaria justamente o contrário, isto é, a conservação da memória coletiva africana
no solo brasileiro” (ORTIZ, 1999, p. 16).
197
A historiografia acerca da escravidão aponta que os africanos oriundos África Centro-Ocidental
formavam, na Bahia, um “guarda-chuva étnico”, isto é, um grande grupo composto de várias etnias e que
foram reunidas em uma categoria abrangente como Angolas. A ideia de que os Angolas, em função da sua
docilidade, ofereciam margem a uma assimilação maior ao catolicismo do que os nagôs – ideia esta tributária
de determinismos vários – tem sido contraposta com 333
estudos que afirmam a existência de diversas formas
de vínculos sociais, ou ainda, irmandades que foram uma das estratégias utilizadas num projeto de
agrupamento de indivíduos da mesma nação em espaços delimitados (MORAES, 2008, p. 42).
198
de mundo” é pautada por uma lógica diferenciada, isto é, baseada numa outra forma
de se relacionar com a natureza, de se conceber o sagrado e o profano, outra concepção
de tempo e espaço,199 razões pelas quais a racionalidade moderna muita dificuldade tem
para explicá-la e compreendê-la.200 Em uma descrição sumária, capoeira angola pode ser

[...] um universo de conhecimento específico, reproduzido


principalmente através da oralidade, onde ganha vital importância a
figura do mestre, seu discurso e o código de conduta compartilhado
entre ele e seus discípulos. A hierarquia de valores dos angoleiros
aparece regida por princípios relacionados à ancestralidade, fidelidade
a esta e pertencimento à comunidade que a representa, que podem ser
identificados tanto na conduta moral, quanto na expressão corporal do
jogo da Capoeira (ARAÚJO, 2003, p. 07).

Didaticamente, ela se constitui a partir de três aspectos centrais: a música, o jogo


e o ritual. A música reúne os instrumentos da bateria (três berimbaus,201 dois pandeiros,
um reco-reco, um agogô e um tambor) e os cânticos, formando o ritmo Ijexá – na opinião
de Decânio (2001), aquele que contém a célula rítmica da capoeira –, e que produz efeitos
na estrutura cerebral dos seres humanos, com “efeito mântrico, transportando-lhes a um
estado modificado, porque [...] remete à sua memória atávica”. Já os cantos se dividem
em ladainhas202, louvação e corridos (ou coro) e são

198
Segundo postulado por Michael Lowy (2000, p. 13), um “conjunto orgânico articulado e estruturado de
valores, representações, ideias e orientações cognitivas, internamente unificado por [...] um certo ponto de
vista socialmente determinado”
199
Segundo Pedro Abib, diferentemente da concepção linear de tempo, inaugurada pela metafísica, o
universo da cultura popular (e nesta, a capoeira angola) concebe passado, presente e futuro dentro de uma
unidade temporal caracterizada pela circularidade, perspectiva na qual o passado não é algo que se esgotou
e está fossilizado mas, algo vigente, que vigora, guarda e aguarda um sentido e que, sobretudo, se tensiona
com o presente, projetando possibilidades futuras.
200
Pedro Abib defende a tese de que a lógica reinante no universo da cultura popular escapa das categorias
de análise provenientes do pensamento ocidental-cristão predominante na modernidade, pois este, ao
incumbir-se da tarefa de tudo decifrar, preza pelo enquadramento da realidade nas relações de causa-efeito,
na temporalidade linear, na verificação analítica, e, lida com o enigmático, no sentido de torna-lo tangível,
palpável, demonstrável: o que resiste a esta categorização, delega-se a condição de não-existente. Assim, os
próprios parâmetros teóricos construídos pela academia parecem não dar conta de interpretar esse
complexo conjunto de significados presentes na cultura334popular” (ABIB, 2004, p. 13).
201
Na época de maior repressão à capoeira, o berimbau servia também como arma, pois alguns capoeiristas
enfiavam uma foice na madeira para enfrentar os soldados, além de usar um toque específico para alarmar a
aproximação da cavalaria policial. Atualmente o berimbau “exerce função primordial na roda de capoeira
angola, pois é o responsável por estabelecer a conexão com o sagrado, e com a ancestralidade representada
pelo tempo da escravidão, e antes ainda, por tempos remotos e longínquos que remetem à mãe África”
(ABIB, 2004, p. 69).
202
As ladainhas fazem parte do ritual da roda de capoeira e é cantada antes do jogo iniciar, geralmente em
ritmo lento, sofrido, como se fosse uma reza, uma oração. Os participantes devem ficar atentos ao cantador,
pois nela pode-se contar uma história, fazer um desafio, um agradecimento, uma brincadeira etc.
[...] elementos importantíssimos no processo de transmissão dos
saberes, pois é através [da música] que se cultuam os antepassados, seus
feitos heróicos, seus exemplos de conduta, fatos históricos e lugares
importantes para o imaginário dos capoeiras, o passado de dor e
sofrimento dos tempos da escravidão, as estratégias e astúcias presentes
nesse universo, assim como também as mensagens cifradas, que exigem
uma certa “iniciação” para poderem ser compreendidas (ABIB, 2004,
p. 67-68).

O jogo, por sua vez, se dá por meio dos movimentos físicos e das gestualidades
plásticas, que primam tanto pela beleza da expressão corporal, quanto pelo objetivo
principal, que é “surpreender” o adversário, seja pela simples demonstração de um golpe
ou pela sua aplicação certeira. Deve-se preencher o espaço vazio deixado pelo outro; se
defender, se deslocar e atacar, e, ao mesmo tempo responder ao parceiro, numa dinâmica
onde o refinamento técnico reside justamente nos movimentos encolhidos, isto é,
“fechados” para dar pouco espaço ao outro, mas com um perfeito controle do corpo203.
Nota-se a presença da ginga, componente fundamental na medida em que ela faz com que
os jogadores criem certo código cênico, cuja intenção é dificultar a interpretação das suas
intenções204. Para Leticia Reis, precisamente “por permitir disfarçar a luta, sob a forma da
dança, é a ginga a principal responsável por essa ambivalência” (REIS, 2000. p. 181).

Impossível não perceber que durante o jogo de capoeira angola, os


jogadores parecem ser envolvidos por uma atmosfera mágica, uma
espécie de transe que conduz toda a movimentação dos capoeiras, um
diálogo de corpos que se entrelaçam, deslizam um sobre o outro,
orientados pelo ritmo [...] e que cumprem a função de manter essa
atmosfera solene, juntamente com o canto, do coro formado pelos
outros capoeiras, muitas vezes repetitivo, como um mantra que
estabelece a ligação espiritual entre todos os participantes da roda
(ABIB, 2004, p. 70).

Numa analogia com a literatura, Fábio Gomes e Elni Willms compara o fluxo da
escrita artística com o jogo, onde “do corpo que escreve com as mãos, com os pés, a cabeça,
o corpo todo, ou seja, pelo movimento como expressão, [o jogo é] uma espécie de escritura

203
Diferentemente da Regional (que apresenta uma movimentação mais alta, rápida e acrobática), a Angola
apresenta uma complexa comunicação corporal, um entrosamento que pode ser lido como uma
“maravilhosa união em que se favorece a possibilidade de brincar, de se divertir, de cantar, de interpretar,
de refletir e de jogar” (ARAÚJO, 2004, p. 174).
204
O termo ginga remete “a um imaginário de conflito e negociação expresso pela ação política da rainha
Jinga, no embate com os colonizadores/invasores europeus, e também aos seus atributos de magia, que
segundo histórias da capoeira, permitia que ela aparecesse
335 e desaparecesse durante as batalhas que liderava
em África (ABIB, 2004, p. 124).
corporal, e o chão como papel” (2014, p. 218). Frigerio diz algo parecido: “A expressão do
rosto, a gestualidade das mãos e braços, a ginga mais dançada, a cadência geral dos
movimentos – tudo isso é parte importante [da] estética, que reflete fielmente sua origem
social e cultural” (FRIGERIO, 1989, p. 32). Apesar do repertório de golpes, esquivas e
movimentos que compõe a linguagem da angola ser relativamente bem definido, sendo
praticamente uma constante que atravessa a maioria dos grupos, a forma como este
repertório será colocado em prática no momento da interação do jogo é pensado como
algo que é, ou que se almeja que seja, característico de cada grupo.
Por fim, o ritual se dá por meio da interação entre a música e o jogo, e se manifesta
plenamente através da roda de capoeira angola, ocasião por excelência que os sujeitos são
motivados a se debruçarem sobre o passado, a se transportarem “do aqui e do agora para
tempos imemoriais, para locais sagrados” (ABIB, 2004, p. 69) onde se encontram os
antepassados. Os nomes dos mestres antigos são invocados, sendo eles próprios a
encarnação de um pretérito que insiste em presentificar-se circularmente.205 Graças à
ritualidade, se instaura um mundo paralelo, espécie de passagem do mundo real para o
mundo mítico, espécie de entrecruzamento entre sagrado e profano, onde a atribuição de
sentido ao religioso e à religiosidade é outro (ABIB, 2004, p. 69). Desta forma, o tempo
dilata-se.

Quando numa roda de capoeira angola, os jogadores, antes do jogo,


agacham-se em reverência, e no cantar de uma ladainha, invocam todo
um passado de luta e sofrimento; quando se busca nesse momento de
celebração, toda a memória e a tradição espiritual de um povo que
segue resistindo a séculos de dominação; quando esse diálogo corporal
se inicia expressando uma estética que remete a toda uma
ancestralidade que incorpora referências rituais de um passado que
continua vivo, tatuado no corpo de cada capoeira, talvez possamos
compreender um pouco melhor a noção de circularidade do tempo;
talvez possamos sentir essa força instauradora de um passado que vigora
a cada vez que os acordes de um berimbau ecoam como navalha
cortando o ar. Berimbau que era utilizado nos primórdios da África,
como instrumento para conversar com os mortos. Mortos que são
chamados para restituir a dignidade daqueles que insistem em se
fazerem seus herdeiros (ABIB, 2004, p. 77).

205
Segundo Pedro Abib (2004, p. 11), diferentemente da concepção linear de tempo, inaugurada pela
metafísica, o universo da cultura popular (e nesta, a capoeira angola) concebe passado, presente e futuro
dentro de uma unidade temporal caracterizada pela circularidade, perspectiva onde o passado não é algo
que se esgotou e está fossilizado, mas, algo vigente, que vigora, guarda e aguarda um sentido e que,
sobretudo, se tensiona com o presente, projetando possibilidades futuras.
336
Segundo Olga von Simson (1991), o ato de compartilhar a memória é um trabalho
que constrói sólidas pontes de relacionamento entre os indivíduos – porque alicerçadas
numa bagagem cultural comum – e que, talvez por isso, conduza à ação. Este
compartilhamento constitui, para a autora, “uma estratégia muito valiosa nestes tempos em
que tudo é mercadoria, tudo possui valor de troca” (SIMSON, 1991, p. 10).
Em linhas gerais, estas são algumas das características e razões pelas quais é
impossível definir a capoeira angola em uma palavra – arte, dança, luta, esporte, cultura,
discurso, memória etc. Seja qual for, tais palavras aparecem como opções de atendimento
aos mecanismos da racionalidade que fere seus conteúdos e abrangências, reduzindo-a de
outras possibilidades. Talvez por isso, não é raro encontrar angoleiros apregoando-a como
uma “filosofia de vida” (ARAÚJO, 2004, p. 35), expressão que tenta levar em conta, pelo
menos, mais de uma faceta que lhe diz respeito. Seguindo a linha de raciocínio, tenho me
deparado ultimamente com a percepção de que a capoeira angola poderia ensejar uma
“visão social de mundo”,206 posto que ela transmite valores, socializa saberes, representa
símbolos, hierarquiza relações, fideliza pessoas, cria códigos de condutas, reproduz
comportamentos, comunica através da oralidade etc. Numa roda, por exemplo, as relações
entre o cantar/tocar, o jogar e o ritualizar constrói uma série de práticas, ações, princípios
e significados, ditos tradicionais, os quais forjam a visão de mundo de cada grupo de
capoeira.
O uso do vocábulo “tradicionais” não é irrelevante, ao contrário. A ideia de tradição
parece ser o cerne da cultura angoleira. Paulo Magalhães defende a tese de que a marca
distintiva da capoeira angola é – não ousaria dizer a fidelidade à tradição – “mas a
construção de uma identidade que usa a tradição como uma importante base, ancorada em
um discurso de preservação da mesma” (MAGALHÃES, 2011, p. 63).
Ainda nos anos 1980, se instituiu o modelo de grupos de capoeira, tal qual os que
existem na contemporaneidade, isto é, grupos que, a partir da sua orientação ancestral,
recuperam o sentido iniciático da capoeira angola: são descendentes de tal mestre e, por
extensão, pertencem à determinada árvore genealógica. É assim que se avulta a
consolidação de Mestre Pastinha como referência comum de uma tradição que se cristaliza
no imaginário dos seus praticantes. Como se fosse uma espécie de “pedigree”, uma marca
que atesta a sua herança, a sucessão discipular funcionou para que os angoleiros afirmassem

206
Segundo postulado por Michael Lowy, um “conjunto orgânico articulado e estruturado de valores,
representações, ideias e orientações cognitivas, internamente unificado por [...] um certo ponto de vista
socialmente determinado” (LOWY, 2000, p. 13).
337
sobre si próprios referenciais de pureza e tradições que os distinguissem na construção do
olhar sobre os outros.
Estabeleceu-se assim um campo de forças na história da capoeira angola: os
herdeiros de Mestre Pastinha, ao imporem a sua concepção de tradição às demais
linhagens angoleiras, lançaram sombra sobre outros personagens relevantes. Esta é a tese
de Paulo Magalhães que em recentíssimo – e polêmico – livro traz à tona um desses
personagens, com o nome de Aberrê: “A nossa hipótese é que ele foi um dos grandes
articuladores da capoeira angola nas décadas de 1930 e 1940, tendo sua trajetória abreviada
por uma morte prematura” (MAGALHÃES, 2011, p. 63). O pesquisador lista outros
mestres em atividade nesta época, isto é, contemporâneos de Pastinha, mas que tiveram as
suas presenças ofuscadas devido à dinâmica do jogo de forças que moldaram
historicamente o universo da capoeira. Se por um lado, a visibilidade do “tronco” de
Mestre Pastinha fortaleceu a capoeira angola em relação ao predomínio da – esportivização
– da capoeira regional, por outro lado, dentro do campo angoleiro – notavelmente afeito
à rigidez hierárquica – se estabeleceu outro campo de forças. Atentar-se para a sua dinâmica
interna é mote: há se descobrir o que se esconde nos subterrâneos da memória da capoeira
angola, num amplo trabalho de revisão da história.
A problemática sobre o que é tradição situa a capoeira angola dentro de um debate
maior, cujos estudos acerca da cultura popular têm apontado que não há uma tradição
originária, de onde tudo o surja seja mero desdobramento. Antes, há que se pensar em
tradições e, sobretudo, releituras orientadas por intensas e dinâmicas relações de poder.
Esta ótica ata alguns rastros contextuais acerca da “reascensão angoleira” da década
de 1980, pois a adoção de parâmetros que deram a estirpe pastiniana o sentido de
“guardiões da cultura angoleira”, auto-atribuídos, deságua, nos dias atuais, no processo de
patrimonialização, o qual não deixa de ser excludente. Esse panorama demostra, mesmo
brevemente, que a história da capoeira apresenta tensões e disputas em torno da definição
do que é tradição, disputas essas que se manifestam através das diferentes linhagens.
De fato, é possível ver que grande parte dos escritos que se debruçaram sobre a
patrimonialização da capoeira parecem ter como ponto comum a opinião de que foi um
processo permeado por vários problemas e incoerências, questões que estão no decurso
de serem. Minha perspectiva é que se o processo de salvaguarda da capoeira pelo IPHAN
carrega tamanhas máculas é mais por decorrência da natureza do objeto, do que devido à
fragilidade do corpo técnico envolvidos.

338
Observa-se que a problematização central que perpassou o processo de registro
começou pela produção do inventário. Várias questões pairavam no ar, a exemplos de:
como seria feito o reconhecimento? Quem seriam as pessoas responsáveis pelo trabalho?
Qual a visão de capoeira que estaria expressa nesse documento? O mesmo abrangeria a
diversidade da manifestação, com seus estilos, organizações e formas? Se patrimônio diz
respeito a propriedade: é propriedade de quem? Como definir o pertencimento? E quais
são os atores que procuram fazê-lo? Os capoeiristas? Os negros? Os brasileiros?.
Conforme pontua Neuber, “a temática do reconhecimento da capoeira como patrimônio
estava envolvida por uma série de dúvidas e questões, que demandavam uma cautela
necessária, por diversos fatores” (NEUBER, 2016, p. 439).
Sendo assim, os fios intermitentes de trama histórica da capoeira angola estão ainda
abertos, isto é, em processo de elaboração e revisão, até porque a pluralidade das
expressões angoleiras estão articulados a uma localidade que ainda escapam da
centralidade cultural relegada aos grandes centros urbanos. Em outras palavras, a
historiografia a este respeito tem privilegiado o Rio de Janeiro e Bahia e neste último, ainda
assim, a capital.

A historiografia da capoeira na Bahia tem privilegiado certos recortes


de espaços temporais que negligenciaram as experiências produzidas
pelos capoeiras nas cidades do interior baiano. Os pesquisadores têm
feito boas investidas nas regiões de Salvador e algumas comunidades do
Recôncavo, a exemplo de Santo Amaro da Purificação. Ainda assim,
poucos são os trabalhos que analisam as décadas de 1970 e 1980
(OLIVEIRA, 2016, p. 180).

Através das pistas abertas por Josivaldo Pires se pode começar a ter, assim, uma
ideia clara da relevância do presente esboço de estudo que tem por objetivo investigar como
se constrói o discurso da tradição no grupo de capoeira “Os Angoleiros do Sertão”, nascido
na década de 1980, em Feira de Santana, cidade do interior da Bahia. Sendo assim, é um
estudo que diz respeito às diferentes identidades da capoeira angola que se articulam em
torno da ideia de tradição. Trata-se de perscrutar quais são os sentidos e significados
presentes no imaginário do “Os Angoleiros do Sertão”, procurando interpretar como se
estabelecem as relações sociais neste grupo, isto é, como se constrói o ethos do “angoleiro”,
numa perspectiva de compreender quais são as expressões musicais, corporais e rituais que
prevalecem, bem como o papel exercido pelo mestre no âmbito da cultura popular.

339
CONCLUSÕES

Escovar a história a contrapelo”: expressão de um incrível alcance historiográfico e


político e que, num nível micro de análise, pode-se ser um dos intentos desta pesquisa. O
passado está em disputa porque se tenciona com o presente. Uma vez que as tradições dos
vencidos guardam versões do passado que destoam da história dos vencedores, é
necessário recuperar a história desses sujeitos, o que não implica abordá-la “exatamente
como foi”, mas como pode ser narrada hoje. Uma dessas narrativas pode ser o Mestre
Cláudio. Os rumos tomados por uma vida podem se distanciar tanto da sua origem, que
se não houver algum fio narrativo ligando começo, meio e fim, as representações simbólicas
dessa vida podem perder completamente o sentido. É esse o propósito do ato de narrar:
constituir uma unidade coerente à sucessão de dias transcorridos a esmo, lhes imprimindo
assim um valor.

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342
OS DISCURSOS SOBRE MODA E ESTILO E A ELABORAÇÃO DA
IDENTIDADE CONTEMPORÂNEA: HIPÓTESES, OBJETIVOS
EESCOLHAS METODOLÓGICAS

Beatriz Sumaya Malavasi HADDAD207

Resumo: O presente trabalho expõe, além das questões primarias que sustentaram a pergunta
diretriz para o desenvolvimento da pesquisa de doutorado em andamento - pela Faculdade de
Ciências e Letras de Araraquara/ UNESP -, a base teórica e metodológica da mesma. Essa parte do
pressuposto de que há uma forte relação entre o fortalecimento do neoliberalismo – enquanto
conjunto de discursos e práticas associados às transformações experimentadas pelo capitalismo no
último terço do século XX – e a difusão do termo “estilo” em detrimento da noção de “moda”.
Esta pesquisa propõe analisar os discursos de duas importantes revistas de moda, de grande
circulação: Vogue Brasil e Estilo de vida. Inspirado pela Teoria das Mediações, o projeto articula-
se, metodologicamente, em três etapas: análise temática de conteúdo das edições selecionadas,
visando identificar a recorrência ou ausência dos termos “moda” e “estilo”; entrevistas com editores,
visando identificar as principais estratégias de comunicabilidade empregadas e entrevistas com
leitores, com vistas a captar as formas de ressignificação e usos dos conteúdos veiculados. Como
pano de fundo da pesquisa, coloca-se o debate acerca da relação entre consumo e construção de
identidades, visto que a construção da aparência, que envolve o “vestir-se” configura-se como uma
das principais modalidades de consumo distintivo e, portanto, de marcação identitária, na cultura
contemporânea.

Palavras-chave: Consumo. Identidade. Moda e Estilo.

Toda pesquisa nasce de inquietações que passam a tomar conta do dia a dia do
pesquisador, e o motiva a refletir e buscar respostas - ou quem sabe, se deparar com ainda
mais dúvidas.
No decorrer da pesquisa empírica que realizei no mestrado208, as inquietações se
tornavam sempre crescentes e constantes, que me levaram a continuar refletindo e a
aprofundar os estudos.
Na minha dissertação propus estudar as ressignificações e usos locais de símbolos
de marcas de vestuário de moda globais. Para tanto, escolhi como campo de pesquisa uma
comunidade de baixa renda localizada em Santo André/SP, onde realizei diversas
entrevistas.
Os indivíduos entrevistados frequentemente negavam a preocupação e o uso de
roupas consideradas “da moda”, valorizando o que denominavam “estilo próprio”. A moda

207
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, FCLAR/UNESP; doutoranda no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais FCLAR/UNESP; biasumaya@yahoo.com.br
208
Dissertação intitulada Relações entre o Global e Local: Circulação e Uso de Referencias de Moda por
Grupos de Baixa Renda. (Bolsista: CAPES) Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
FCLAR/UNESP.
343
foi caracterizada pelos sujeitos entrevistados como algo que padroniza os indivíduos e que,
por isso, não convém segui-la.
Foi possível notar, a partir do trabalho de campo, que a palavra “moda” remete
instantaneamente àquilo que é “igual a todos”. Para Simmel é a imitação que sustenta a
dinâmica da moda, ela é imitação de um modelo dado e satisfaz assim a necessidade de
apoio social, conduz o indivíduo ao trilho que todos percorrem, fornece o universal, que
faz do comportamento de cada indivíduo um simples exemplo (SIMMEL, 2008. p. 24).
Identifiquei nos depoimentos coletados em trabalho de campo, de um lado a moda,
aspirando à universalidade, associada à padronização e homogeneidade e, de outro, o
estilo, oferecendo o discurso da originalidade, remetendo à possibilidade de escolha.
Diante disso, algumas inquietações nutriram novos questionamentos: porque atualmente o
discurso sobre estilo é tão expressivo? O discurso da moda estaria em crise? A moda,
caracterizada por não pertencer a todas as épocas nem a todas as civilizações
(LIPOVETSKY, 2009), enquanto fenômeno social que aflorou simultaneamente à
modernidade, teria sido superada, ou transformada, concomitantemente a esta?
Diante dessas indagações iniciais, parti para uma reflexão teórica que pudesse
indicar alguns caminhos que contemplasse tais questões, que se tornaram as primícias da
minha pesquisa de doutorado209 que está em andamento e que as apresento no presente
texto.
O fenômeno da moda, enquanto imitação (SIMMEL, 2008) / distinção
(BOURDIEU, 2007) estaria diretamente associada a modernidade e o seu auge,
representado pelo prêt-à-porter, nas sociedades industriais de massa. Assim, moda,
modernidade e sociedade de massa seriam termos correlatos, enquanto o termo estilo
ganharia força no mesmo contexto em que o capitalismo industrial de massa passa por
profundas modificações e a modernidade sofre inflexões num processo de radicalização
(GIDDENS, 1991).
O projeto da modernidade (HABERMAS, 2002), é uma denominação referida a
uma conjunção histórica em que os indivíduos passaram a ter novas formas de conceber o
mundo à sua volta, e novas formas de relações sociais, políticas e econômicas, influenciadas
pela filosofia iluminista do século XVIII, que trouxe à tona uma nova realidade, amparada
nos princípios da racionalidade e da ciência. Somente por meio de tal projeto poderiam as

209
Doutorado em andamento pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências
e Letras de Araraquara/ UNESP, intitulado Da produção do discurso aos usos sociais: os discursos sobre
moda e estilo nas revistas Vogue e Estilo de Vida, sob orientação da Prof. Dra. Ana Lúcia de Castro.
344
qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas (HARVEY,
2014, p. 23), libertando os indivíduos de suas algemas - que os mantinham presos em um
contexto social marcado pela escuridão da irracionalidade -, defendendo sua emancipação
diante das instituições religiosas, econômicas e políticas
A vinculação entre moda e modernidade é trabalhada por Simmel (1973), e os
anseios pela liberdade decorrentes do século XVIII, geraram, segundo o autor, a
desvinculação do indivíduo com a história, dando espaço à busca incessante pela distinção
entre uns e outros, fundamentados em uma igualdade universal. Dessa forma, a
individualidade moderna passa pelo pressuposto da universalidade, que será realçado após
a Revolução Industrial que trouxe um contexto de produção industrial em série e
normatizada, o prêt-à-porter, que atendia a um mercado de massas.
No decorrer do século XX, os bens de consumo padronizados decorrentes da
fabricação industrial sustentam-se através das propagandas e compelem o surgimento de
uma cultura de massa.
Segundo Morin (1997), a cultura de massa é uma das características das sociedades
modernas – consideradas também capitalistas, burocráticas, industriais, burguesas, de
classes, individualistas etc – destinando-se a uma massa social, isto é, um aglomerado
gigantesco de indivíduos compreendidos aquém e além das estruturas internas da
sociedade (classes, famílias etc) (MORIN, 1997, p. 14), ultrapassando assim as antigas
barreiras de classe, onde um mercado comum de mass media anulam as fronteiras
culturais. A mass media é responsável pela produção simbólica de produtos culturais a
partir de meios de comunicação de massa, tornando possível a construção de sujeitos
submetidos à lógica da produção em série.
A esses indivíduos são oferecidas possibilidades de identificação a determinados
grupos pré-estabelecidos a partir do consumo de produtos culturais. Nessa perspectiva, a
individualidade está associada a uma universalidade pré-determinada e oferecida pelo
mercado.
Os produtos de moda podem ser significativos meios pelos quais podemos refletir
acerca da influência do discurso da modernidade no indivíduo e na sua busca pela
individualidade e construção de identidade.
Individualidade que passa por preceitos universais, formando um amontoado do
social, que Baudrillard (1985) afirma ser a característica da modernidade,

345
[...] a massa como um conjunto no vácuo de partículas individuais, de
resíduos do social e de impulsos indiretos: opaca nebulosa cuja
densidade crescente absorve todas as energias e os feixes luminosos
circundantes, para finalmente desabar sob seu próprio peso. Buraco
negro em que o social se precipita. [...] Logo, a massa é silenciosa,
camufla a individualidade e está longe de ter uma atuação social
influente, pois é, uma esponja que absorve de forma neutra toda a
irradiação das constelações periféricas do Estado, da História, da
Cultura, do Sentido (BAUDRILLARD, 1985, p. 05 - 06).

Nesse contexto, os produtos de moda – fabricados dentro de uma concepção


industrial em larga escala – serviriam para sustentar essa dinâmica de massa, não
possibilitando a manifestação da individualidade plena de liberdade.
Segundo Harvey vivemos uma crise moral associada ao pensamento iluminista, que
embora tenha de fato permitido que o homem se emancipasse ‘da comunidade e da
tradição da Idade Média em que sua liberdade individual estava submersa’ (HARVEY,
2014. p. 47), não o tornou completamente livre.
A partir da década de 1970, a modernidade é contestada por novos discursos
relacionados à proliferação de teorias que indicavam o surgimento de um novo contexto:
o da pós-modernidade. A pertinência do uso do termo “pós-modernidade” não é
consensual dentre os autores, frente a ideia de ruptura, carregada pelo prefixo pós. Optei
por assumir a perspectiva que enfatiza os efeitos de continuidade ou radicalização da
modernidade presentes no contexto capitalista do final do século XX e início do XXI
(BAUMAN, 2001; GIDDENS; BECK; LASH, 1997; GIDDENS, 1991; BECK, 1999).
Segundo Harvey (2014), o capitalismo industrial de massa sofreu uma mudança
significativa nos modos de produção e consumo, no ultimo terço do século XX,
ocasionando a substituição do fordismo pela “acumulação flexível”.

A modernidade fordista está longe de ser homogênea. Há muito nela


que se vincula com uma fixidez e uma permanência relativas- capital fixo
na produção em massa, mercados estáveis, padronizados e homogêneos,
uma configuração fixa de influência e poder político-econômico, uma
autoridade e metateorias facilmente identificáveis, um solido alicerce na
materialidade e na racionalidade técnico cientifica e outras coisas dessa
espécie (...). A flexibilidade pós modernistas por seu turno, é dominada
pela ficção, pela fantasia, pelo imaterial (particularmente do dinheiro),
pelo capital fictício, pelas imagens, pela efemeridade, pelo acaso e pela
flexibilidade em técnicas de produção, mercados de trabalho e nichos de
consumo (HARVEY, 2014. p. 303).

346
Dessa forma, o capitalismo assume uma diferente roupagem, associada a ideia de
flexibilidade, em um enfrentamento direto com a rigidez que marcava a produção fordista.
Para Sennett (2009), a flexibilidade atinge todas as esferas sociais, negando a burocracia
excessiva, alterando significado do trabalho e promovendo uma ansiedade coletiva, em um
contexto onde o imediatismo causa impacto na construção da subjetividade. É curioso
notar a concomitância entre o processo de reorganização do capital, apontado por Harvey
no debate teórico sobre a chamada pós-modernidade e o surgimento de um discurso
denominado neoliberalismo.
Para Harvey (2014), a neoliberalização ocorreu como resposta à crise enfrentada
pelo capitalismo nos anos 1970, caracterizada por problemas diversos atrelados a rigidez
do mercado e do capital fixo de larga escala, e da produção em massa que impedia uma
flexibilização. As classes altas viram-se obrigadas a agir a fim de se proteger da aniquilação
política e econômica (HARVEY, 2014. p.25). Nessa perspectiva, o neoliberalismo pode
ser interpretado como um projeto utópico de realizar um plano teórico de reorganização
do capitalismo internacional ou como um projeto político de restabelecimento das
condições de acumulação do capital e de restauração do poder das elites econômicas
(HARVEY, 2012. p. 27).
Lavall e Dardot (2016) sustentam que o neoliberalismo interpretado desde o final
da década de 1970 como uma ideologia e uma política econômica, encontra a essência
desta ideologia em uma crença naturalista de mercado, ou seja, a realidade deveria atuar
por si mesma a fim de atingir estabilidade e crescimento. Todo tipo de intervenção estatal,
apenas perturbaria o caminho natural e espontâneo do mercado.
Assim, o neoliberalismo produz relações sociais especificas e certas subjetividades.
Diante disso, cabe perguntar: seria a ascensão do discurso sobre estilo, enquanto formador
de identidade - a partir de uma escolha individual e “livre” -, associado ao fortalecimento
do discurso neoliberal?
A socióloga americana Diana Crane abre outras perspectivas de análise em relação
a moda contemporânea, apontando que esta caminha concomitante a natureza
fragmentada da sociedade pós-industrial, e a diversidade de opções de vestuário reflete a
complexidade de maneiras pelas quais percebemos nossa ligação com os outros (CRANE,
2006. p. 30). Dessa forma, Crane sustenta que o vestuário assinala as formas pelas quais as
pessoas se veem nas estruturas sociais e como negociam as fronteiras de status, em uma
dinâmica na qual o indivíduo cria narrativas próprias com base em experiências pessoais,

347
passadas e presentes. Assim, Crane atribui ao indivíduo uma responsabilidade desmedida
no processo de “escolhas” para construção da aparência.
Sem desconsiderar o que ressalta a autora, no que toca o papel do vestuário no
processo de construção de identidades e estabelecimento de fronteiras simbólicas entre os
grupos, vale salientar que os indivíduos não são livres para optar pelo estilo que desejam,
como se pudessem percorrer as variadas possibilidades oferecidas pelo mercado de moda,
de acordo com sua personalidade e individualidade. Essas possibilidades de “escolhas” são
alimentadas com informações advindas de todos os lados, tanto do âmbito global como no
local, que dialogam a partir da ressignificação e do uso diário de estilos e/ou modas
diversas.
Neste sentido, parti do pressuposto de que os indivíduos, embebidos por um
discurso neoliberal que preconiza a liberdade e autonomia individuais, percebem na noção
de estilo uma alternativa de individualidade e liberdade, elegendo um discurso que
combate a ideia de moda como inimiga da afirmação de particularidades.
Como apontam Lavall e Dardot (2016), vivemos em uma era em que o cálculo
individual e a escolha são preconizados como valores e requisitos para que o indivíduo
desenvolva uma boa “performance” social. A “obrigação de escolher” coloca-se como regra
básica do jogo, no qual caberia ao indivíduo empreender uma “empresa de si”,
desenvolvendo habilidades calculistas enquanto se move entre oportunidades e busca as
melhores alternativas para maximizar seu interesse próprio.

Isso significa que cada indivíduo deve aprender a ser um sujeito ativo e
autônomo na e pela ação que ele deve operar sobre si mesmo. Dessa
forma, ele aprendera por si mesmo a desenvolver “estratégias de vida”
para aumentar seu capital humano e valoriza-lo da melhor maneira. “A
criação e o desenvolvimento de si mesmo” são uma “atitude social” que
deve ser adquirida, um “modo de agir” que deve ser desenvolvido, “para
enfrentar a tripla necessidade do posicionamento da identidade, do
desenvolvimento de seu próprio capital humano e da gestão de um
portfólio de atividades (LAVALL; DARDOT, 2016. p. 337).

Perspectivas como estas, representadas pelo pensamento de Lavall e Dardot, se


contrapõem tanto ao discurso das instâncias que promovem a circulação e legitimação da
moda, como ao discurso dos consumidores, nos quais a noção de estilo aparece desprovida
de suas articulações com as esferas da produção e do mercado, como se o leque de
possibilidades de escolhas colocado para as construções de estilos não fosse, por um lado,
previamente definido e restrito por interesses da indústria e do mercado e, por outro,

348
limitado pelo próprio habitus (BOURDIEU, 2007) que, como matriz de percepção e ação,
socialmente construída, define gostos, modos de usos e estilos de vida.
Os estilos de vida são, como aponta Bourdieu (2007), produtos dos habitus e, como
tal, expressam “escolhas” realizadas a partir de um leque de possibilidades colocados em
cada um dos sub-espaços simbólicos que o compõem. Cada “escolha” guarda uma
correspondência com as demais, revelando a trajetória do agente e atestando o filtro
subjetivo e a marca do indivíduo. Contudo, o referido leque estrutura-se pelas limitações
impostas pelos interesses da produção e dos agentes do mercado.
A discussão acerca das escolhas que compõem o estilo de vida, configuram-se como
estratégias de distinção social e, portanto, expressam também mudanças identitárias, ou
seja, a construção da aparência é uma das principais modalidades de consumo distintivo e
elaboração de identidade.
Como apontado por Bourdieu (2008), as despesas com a apresentação de si
(vestuário, cuidados com a beleza, artigos de higiene) acompanhadas pelas despesas com
alimentação e cultura, são as três mais significativas estratégias eficazes de distinção das
classes dominantes. Assim, é possível observar as formas de consumo que variam de
acordo com as classes, não necessariamente ligadas a questões de produção, mas à
oposição entre gostos de luxo e gostos de necessidade que constituem os estilos de vida.
Nesta mesma linha analítica destaca-se as reflexões desenvolvidas pela antropóloga Mary
Douglas em conjunto com o economista Baron Isherwood (1980), ao sustentarem que as
mercadorias oferecem sentido à vida dos indivíduos que as utilizam como marcadoras de
fronteiras sociais. Dessa forma, a prática do consumo vinculada ao estilo de vida – que,
por sua vez, é associado ao habitus - possibilita a elaboração subjetiva de identidades.
Munida da teoria aqui exposta, apresento a hipótese de que existe uma relação
entre o discurso neoliberal e a difusão da ideia de estilo associada à nova forma de
produção de capital e às transformações sociais, políticas e culturais que marcam a
experiência contemporânea. Tais mudanças no discurso relacionado às maneiras do vestir,
influenciam diretamente as formas de consumo, bem como as maneiras pelas quais os
indivíduos elaboram identidades. Identidades que podem ser múltiplas e efêmeras, que
respondem diretamente ao hiper–individualismo que marca o discurso predominante
atual.
Motivada por essa hipótese, se tornou fundamental definir a pesquisa empírica, que
tornasse possível a reflexão ancorada em elementos que compõe o dia a dia de indivíduos

349
contemporâneos. Para tanto, elegi como objeto empírico duas revistas voltadas ao tema, de
grande circulação: a Revista Vogue Brasil e a Revista Estilo de Vida.
A escolha não se deu aleatoriamente: a Vogue é uma revista repleta de capital
simbólico210 que a tornou a mais importante e influente no campo da moda211, sendo
publicada atualmente em diversos países. Nascida nos Estados Unidos no fim do século
XIX, foi publicada pela primeira vez no Brasil em 1975212. Desde sua origem213, busca
valorizar a moda considerada global, destacando nomes internacionais da área, bem como
os grandes desfiles de proporções mundiais. Suas capas contam, na maioria das edições,
com modelos internacionalmente conhecidas, raramente elegendo celebridades locais para
tal tarefa. A Vogue é publicada mundialmente pela editora Condé Nast, que no Brasil
possui uma parceria214 com a Editora Globo para a publicação da Vogue Brasil215.
A Revista Estilo de Vida216, em comparação a Vogue detém um capital simbólico
menor, é relativamente nova no país, pois começou a ser publicada no ano de 2002 pela
Editora Abril217, licenciada pela norte americana InStyle. Estilo de Vida é uma publicação
que tem como marca a tentativa de aproximar a moda ao dia-a-dia dos leitores, possuindo
um discurso voltado a ensinar o leitor/consumidor a se vestir no cotidiano, serve como

210
Capital simbólico, segundo Bourdieu, é um capital de qualquer espécie conhecido e reconhecido por um
agente inserido em determinada estrutura. Desse capital simbólico provém o poder simbólico, que é “[...]
um poder que aquele que lhe está sujeito dá àquele que o exerce um crédito com que ele o credit, um fide,
uma auctorias que lhe confia pondo nele a sua confiança. É um poder que existe porque aquele que lhe está
sujeito crê que ele existe” (BOURDIEU, 1989, p. 177).
211
Sobre a importância da Revista Vogue para o campo da moda, Mendonça (2010) discorre, se referindo a
editora responsável pela revista: Diferente das dirigentes de outras publicações, que têm acesso às roupas no
momento do desfile, Anna Wintour, que ocupa o cargo desde 1988, tem acesso às peças antes, nos ateliês.
Sobre ela, já foram publicados livros e estrelados filmes com sucesso de vendas e bilheteria. Por isso, por
mais que haja inúmeras revistas de moda no mercado, o posto de mais relevante é da Vogue (MENDONÇA,
2010. p. 51).
212
http://vogue.globo.com/moda/moda-news/noticia/2015/05/40-anos-de-vogue-brasil-relembre-capas-mais-
surpreendentes-da-revista.html
214
http://g1.globo.com/economia-e-negocios/noticia/2010/07/editora-globo-e-conde-nast-fazem-parceria-para-
publicar-vogue-no-brasil.html
215
Informações Vogue Brasil: tiragem - 109.000 exemplares;
350 circulação – 62.000 exemplares (56% avulsas e
44% assinaturas) (Dados coletados da Midiakit Vogue Brasil disponível no site http://vogue.globo.com/).
216
Informações Estilo de Vida: tiragem 83.000 exemplares; 463.000 leitores; 37.000 avulsas e 46.000
assinantes (Dados coletados da MidiaKit Estilo de Vida disponível no site http://estilo.abril.com.br/)
217
De acordo com o site do Grupo Abril (http://grupoabril.com.br/pt/quem-somos/historia), Editora Abril
iniciou suas atividades em 1950, quando publicou a edição brasileira da história do Pato Donald. Em 1961
lançou sua primeira revista feminina, Claudia, seguida pela Manequim, que ficou conhecida por
disponibilizar os moldes prontos das roupas que expunham nas edições, facilitando sua confecção. Outras
publicações da editora são: Guia quatro rodas, Veja, Recreio, Placar, Exame, Nova Escola, Super
Interessante, Ana Maria, Caras, Arquitetura e Construção, Boa Forma, Bons Fluidos, Capricho, Elle, Minha
Novela, Mundo Estranho, Saúde, Tititi, entre outras publicações. Além disso, a Editora Abril enquanto
integrante do Grupo Abril, possui atuação em diversas plataformas, que vão além da publicação de revistas,
em televisão e internet.
uma vitrine, uma espécie de manual ou guia prático, expondo diversos produtos, com seus
respectivos preços, além da indicação de onde compra-los. Além disso, suas capas são na
maioria das vezes estreladas por celebridades locais, enfatizando inclusive as influencias das
novelas nacionais nas maneiras do vestir. Importante frisar que, ambas revistas originam de
modelos mundiais, e, portanto, devem ser observadas tendo como pano de fundo a
dinâmica da globalização que implica num processo em que referências e elementos
culturais circulam mundialmente e são apropriados e resignificados localmente
(APPADURAI, 1990; FEATHERSTONE, 1990 e 1994; HALL, 2000; ORTIZ 2007;
SAHLINS 1988 e 1997; BAUMAN ,1999; GIDDENS,1991).
Vale ressaltar que ao tomar, como objeto de estudo, a evolução histórica dos
discursos presentes em dois veículos de comunicação de massa, parti do pressuposto, de
que a mídia é um importante meio de veiculação de discursos, e sua análise possibilita,
para além da compreensão dos sentidos neles armazenados, a percepção das mediações
entre esses discursos e as práticas culturais cotidianamente operadas pelos seus leitores, ou
seja, busco também, contribuir para a compreensão sobre as mediações entre mídia e
sociedade. Neste sentido, pretendo no decorrer dessa pesquisa observar a relação entre os
discursos das revistas e os leitores como de mão dupla, na qual os indivíduos, ao serem
constantemente confrontados com mensagens midiáticas, delas se apropriam e as
resignificam.
Como aponta Martin-Barbero (2002), é pela recepção que podemos pensar todo o
processo de comunicação, e, portanto, é por meio desta que todo o processo pode ser
compreendido.
A partir dessa perspectiva – reconhecida como “teoria das mediações” -, torna-se
possível uma nova compreensão da produção social de sentindo mediada pelos meios de
comunicação e pelo consumo, que sustentara a metodologia da minha pesquisa.

Um bom número de estudos sobre comunicação de massa tem mostrado


que a hegemonia cultural não se realiza mediante ações verticais, onde
os dominadores capturariam os receptores: entre uns e outros se
reconhecem mediadores, como a família, o bairro e o grupo de trabalho.
Nessas análises deixou-se também de conceber os vínculos entre aqueles
que emitem as mensagens e aqueles que as recebem como relações
unicamente, de dominação. A comunicação não é eficaz se não inclui
também interações de colaboração e transação entre uns e outros
(CANCLINI, 2008. p. 60).

351
Posto isso, me propus a desvendar as “lógicas dos usos” (DE CERTEAU, 2014;
MARTÍN BARBERO, 1997), ou seja, os sentidos atribuídos aos conteúdos veiculados
pelas revistas estudadas, cuja compreensão se configura como um meio privilegiado para
reconhecer os discursos relacionados à moda, proferidos em um contexto social, político
e cultural especifico, bem como suas transformações.
Espero a partir da pesquisa empírica identificar a presença do termo “estilo”,
coletando matérias em edições selecionadas desde o primeiro número de ambas as revistas
estudadas. Posteriormente, pretendo identificar, na visão dos editores, quais os sentidos
atribuídos as ideias de moda e de estilo, bem como as principais estratégias de
comunicabilidade para penetrarem no cotidiano de seus leitores. Para, por fim, identificar
como os leitores se apropriam e/ou ressignificam os conteúdos das revistas no processo de
construção subjetiva da identidade.
Portanto, metodologicamente, este estudo pretende seguir as seguintes fases:
a) após a pesquisa no acervo de ambas publicações, visando a seleção aleatória de quatro
edições por ano - representando, cada uma, as 4 estações climáticas - realizarei o
levantamento e seleção dos conteúdos internos, segundo os seguintes critérios de triagem:
observação das matérias de capa, seguida pelo sumário. Além disso, pretendo folhear as
edições para assegurar, em nossa análise, qualquer conteúdo relevante ao tema da pesquisa.
A seleção prévia buscara selecionar as edições mais significativas no que toca à presença
do discurso de estilo, desde o primeiro exemplar de ambas publicações. Ao folhear estas
edições selecionadas, voltarei atenção para as chamadas de capa e posteriormente para os
textos das matérias e - não menos importante - para as imagens, que sugiram as ideias de
flexibilidade, individualidade e apropriação de tendências enquanto signos concomitantes
â dinâmica da cultura contemporânea.
b) organização cronológica e temática do material coletado;
c) preparação da pesquisa de campo: por meio de redes de contato, auxílio de redes sociais
ou, ainda, através da observação direta em bancas de revistas, buscarei contato com leitores
das publicações em questão; elaboração do roteiro de entrevistas;
d) visita as edições e entrevista com editores chefes de cada publicação, com o objetivo de
apreender o contexto interno de produção das revistas, bem como as estratégias de
comunicabilidade utilizada pelos editores no que tange os discursos relacionados a moda
e estilo.

352
e) entrevista com os leitores, visando a compreensão das maneiras pelas quais os discursos
alusivos a moda e estilo são apropriados e ressignificados, a partir de seus usos, incidindo
na elaboração de identidades.
f) transcrição das entrevistas;
g) análise de todo material coletado.

A análise dos resultados do presente trabalho iniciará com a transcrição das


entrevistas e a organização cronologia e por tema dos materiais impressos coletados das
revistas.
Tanto as entrevistas como o material impresso serão lidos, em um primeiro
momento, conforme sugerido por Bardin (1977), em sucessivas leituras flutuantes, a fim
de tomar contato com o material coletado, deixando fluir impressões e orientações. Dessa
forma, será possível circundar o material que irá compor corpus de análise e interpretação,
alimentado pela hipótese e objetivos dessa pesquisa.

CONCLUSÃO

O presente texto teve como propósito apresentar as hipóteses, os objetivos e as


escolhas metodológicas da pesquisa de doutorado que está em andamento, intitulada Da
produção do discurso aos usos sociais: os discursos sobre moda e estilo nas revistas Vogue
e Estilo de vida, que buscará contribuir para o debate acerca dos discursos relacionados a
moda enfocando as relações destes com as transformações sociais, políticas e culturais
associadas a difusão do neoliberalismo, enquanto conjunto de práticas e discursos que se
fortaleceram no contexto de transformação do capitalismo, desde o último terço do século
XX.
Consciente de que a prática da pesquisa exige clareza dos procedimentos
metodológicos escolhidos, tanto dos fundamentos teóricos como dos instrumentos
adotados para a análise empírica, as questões e reflexões expostas neste texto se tornam o
cerne para o desenvolvimento da pesquisa, que se encontra no momento progredindo e
tomando forma mais definida a partir do trabalho de campo e de todas as suas ricas
contribuições.

353
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355
EPISTEMOLOGIAS, ALTERIDADE E RELAÇÕES DE PODER:
CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS E ABORDAGENS
DAS DINÂMICAS SOCIAIS PARA ALÉM DO ETNOCENTRISMO E
DO PENSAMENTO COLONIZADO

Sérgio Luiz de SOUZA218

Daniele Severo da SILVA219

Taciso Pereira SILVA Jr220

Cássio Alves LUS221

Resumo: Temos como objetivo discutir aspectos teórico-metodológicos que têm orientado nossos
estudos acerca de relações de poder, alteridade e diversidade no Brasil. Neste sentido, trazemos
dados e concepções presentes em nossas pesquisas sobre atuações de populações negras na região
Sudeste e na Amazônia Sul Ocidental brasileira e, também, a respeito de estudos sobre povos
indígenas, na região Norte deste país, no estado de Rondônia. Em nossa discussão apontamos a
relevância de se considerar os processos de invisibilidade social constituintes das dinâmicas sociais
com as quais dialogam (tanto na dimensão da opressão existente quanto no âmbito da superação
da marginalização e da exclusão social) as populações não hegemônicas, a exemplo das populações
negras e indígenas nos diferentes espaços sociais nacionais. No mesmo contexto, com base nestas
concepções básicas das relações de poder e da existência social, trazemos nossa discussão a respeito
da necessidade da constituição de abordagens fundadas em epistemologias ricas, no sentido de
autonomia teórica e conceitual para além dos limites do pensamento e das construções teórico-
metodológicas etnocêntricas e colonizadas. Nesta discussão pretendemos, portanto, explicitar as
conexões que fazemos entre as atuações dos sujeitos sociais, a partir do levantamento de dados
sobre suas histórias de vida e de dados relativos às dimensões políticas, culturais e econômicas que
compõem o quadro social em que estes sujeitos, seus grupos e classes estão inseridos e com as
quais se relacionam. Esta correlação entre dados do quadro social mais amplo composto por
diferentes, instituições, grupos e classes e os dados referentes às atuações e organizações
estabelecidas pelos grupos sócio-étnico-raciais em foco (negros e indígenas), dizem respeito à
perspectiva epistemológica que colocamos em discussão. Perspectiva esta, pautada em nossas
concepções da dinâmica social enquanto processo multilinear e dialógico fundado no fluxo
constante entre as dimensões políticas, culturais e econômicas em que os grupos e classes sociais
estão inseridos e compõem suas sociabilidades, suas histórias, suas vivências.

Palavras-chave: Negros. Indígenas. Alteridade. Relações de poder. Epistemologias.

INTRODUÇÃO

Neste artigo trazemos concepções presentes nas pesquisas que temos desenvolvido
sobre atuações de populações negras na região Sudeste do Brasil e na Amazônia Sul

218
Universidade Federal de Rondônia; Doutor em Sociologia; sergiosouza@unir.br
219
Universidade Federal Rondônia; Pós-Graduada em Sociologia; danielessevero@gmail.com
220
Universidade Federal de Rondônia; Mestrando; CNPQ; historiadorpsi@hotmail.com
221
Universidade Federal de Rondônia; Mestrando; CNPQ; cassio.alves.luz@hotmail.com
356
Ocidental brasileira e, também, a respeito de estudos sobre povos indígenas, na região
Norte deste país, no estado de Rondônia.
Em nossa discussão apontamos relevância de se considerar os processos de
invisibilidade social constituintes das dinâmicas sociais com as quais dialogam (tanto na
dimensão da opressão existente quanto no âmbito da superação da marginalização e da
exclusão social) as populações não hegemônicas, a exemplo das populações negras e
indígenas nos diferentes espaços sociais nacionais.
Assim, com base nestas concepções básicas das relações de poder e da existência
social, trazemos nossa discussão a respeito da necessidade da constituição de abordagens
fundadas em epistemologias ricas, no sentido de autonomia teórica e conceitual para além
dos limites do pensamento e das construções teórico-metodológicas etnocêntricas e
colonizadas.
Com estes propósitos, pensamos de forma crítica a respeito de diferentes elaborações teórico-
metodológicas que redefiniram, a partir do século XIX, a produção literária e científica
brasileira, pautadas pela estigmatização de determinados grupos sociais nas relações
cotidianas e/ou institucionais. Elaborações estas que, paralelamente produziram o
silenciamento da história destes grupos sociais e desta feita, engendraram e engendram,
desqualificação social, perda de vínculos, perda dos referenciais próprios para a construção
de suas identidades e redução das possibilidades de estabelecimento de projetos políticos
autônomos para populações negras, indígenas, mulheres e demais “outros” da lógica
hegemônica reproduzida em diferentes perspectivas epistemológicas na academia222.
Diante deste contexto, adotamos a seguinte questão: qual a relevância de se estudar
processos identitários, memória e oralidade, quando buscamos apontar a relevância de
novas concepções para a definição de processos mais efetivos de cooperação e de
dinâmicas sociais orientadas a partir da valorização da diversidade nas relações entre classes
e grupos sociais que perfazem a realidade?
Com esta questão orientamos nossa discussão primeiramente tecendo
considerações sobre fundamentos teórico-metodológicos e, posteriormente, trazendo
alguns dados a respeito das pesquisas que temos desenvolvido para expormos mais
concretamente, digamos, algumas limitações por nós percebidas ao lidar com a realidade

222
Ver em Souza Santos e Meneses (2009) as discussões sobre o pensamento abissal e em Capra (1982) as
discussões a respeito da lógica maniqueísta que sustenta as epistemologias insuficientes para compreensão
das múltiplas dimensões constituintes da realidade do viver.
357
social e, sobretudo, conceber e compreender a diversidade de formas de viver e as
possibilidades de conformação das ações dos diferentes grupos e classes sociais.

DAS PREMISSAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Um dos teóricos relevantes no processo de desconstrução da lógica homogênea e


universalista na sociedade brasileira e latino-americana, Alberto Guerreiro Ramos, ao
pensar a produção acadêmica no Brasil e seu arcabouço teórico, aponta a necessidade de
partirmos de reflexões estabelecidas para além dos cânones etnocêntricos eurocentrados,
referendadas em compreensões superficiais e apriorísticas da realidade. Por serem
direcionadas por pressupostos pré-estabelecidos e homogeneizantes, estas produções
acabam por necessariamente desconsiderar as práticas e experiências desenvolvidas na
complexidade e multiplicidade de atuações dos diferentes sujeitos sociais. Na esteira desta
crítica, Ramos (1995) aponta como limite das epistemologias insuficientes para lidar com a
diversidade, a lógica do pensamento dicotômico caracterizado por este pensador como a
lógica do negro tema versus negro vida (RAMOS, 1995, p. 215). Sobre esta reflexão de
RAMOS (1995), Vânia Morales Sierra (2015) explicita de maneira interessante a existência
de uma “fabricação” uma construção estereotipada dos sujeitos sociais:

Esta fabricação da visão do negro acabou produzindo uma divisão entre


a vida do negro e os conceitos criados a seu respeito. A produção
intelectual sobre o negro acabou operando uma divisão, que Guerreiro
Ramos vai chamar de separação entre negro tema e negro vida. O negro
tema é criação dos sociólogos e antropólogos que o conceberam ora
como ser mumificado, ora como curioso, sendo de qualquer modo um
risco. Como negro vida refere-se à realidade efetiva que o negro tem
enfrentado, assumindo o seu destino, fazendo a si próprio nas condições
singulares da sociedade brasileira (GUERREIRO RAMOS, 1995). O
negro vida é luta e resistência, ele não se deixa dominar e escapa as
definições da ciência a seu respeito (SIERRA, 2015).

Desta maneira, ao se pautarem por estereótipos e concepções universalistas de


cultura e sociedade, perdem de vista as dinâmicas em que as populações negras, indígenas
ou demais “Outros”, somente podem ser concebidos a partir de dicotomias, oposições
absolutas e superficialidade, na medida em que a multiplicidade de suas formas de atuar
socialmente e a riqueza e sapiência presentes em suas realizações, são categorizadas sempre
a partir deste olhar fixo e empobrecedor.

358
Desta forma, compreendemos ser necessário superar a utilização de categorias
dicotômicas para entender as interações hegemônicos/subalternizados e,
fundamentalmente, a diversidade dos grupos humanos e de suas experiências que são
constitutivas do mosaico social brasileiro. Devemos estabelecer um relacionamento livre
com o mundo, a partir de referências próprias, e não mais aquelas advindas dos processos
coloniais. Como expressa Sodré (1999) em suas reflexões sobre a diversidade
socioetnorracial e a produção científica, estas operações cognitivas formadoras das
epistemologias homogeneizantes da “verdade absoluta do Uno” rompem a realidade
humana do múltiplo ao desconsiderá-la enquanto dimensão da alteridade e da diversidade
de possibilidades concretas e não hierarquizáveis, a partir de compreensões
assimilacionistas e de integrações forçadas que perfazem o universalismo filosófico
orientado alicerçados em paradigmas etnocêntricos e eurocentrados (SODRÉ, 1999, p.
16).
As realidades cotidianas são atravessadas por diferenças materializadas por modos
de existir da diversidade, maneiras de crer, trabalhar, ritualizar, parecer somática e
corporalmente (SODRÉ, 1999, p. 17) que apenas podem ser de fato compreendidas com
a superação dos estigmas enquanto referenciais de interpretação e com o abandono de
concepções que atribuem status de inferioridade aos mais diferentes grupos. Desta forma,
podemos estabelecer patamares em que os diferentes grupos populacionais possam ser
vistos como protagonistas com iguais condições de comandar os processos decisórios e não
numa simples integração inferiorizada e subalterna que tem sido proposta pelos grupos
hegemônicos.
Reconhecer e desfazer construções históricas permeadas por políticas
preconceituosas e homogeneizantes que têm orientado nosso imaginário a respeito da
realidade histórica e cultural das populações indígenas, afro-brasileiras e africanas é ação
imprescindível para que possamos ter acesso aos patrimônios dos diferentes grupos
humanos presentes e atuantes em nosso contexto sociocultural, político e econômico.
Enfatizamos aqui as relações entre memória, história e identidade, as dimensões
componentes e provenientes do patrimônio histórico-cultural dos grupos sociais. Estas
reflexões são apresentadas em direção à desconstrução das ameaças de bloqueio e de
paralisação dos devires dos grupos sociais colocadas pela repressão dos grupos
hegemônicos. Entretanto, também se situam no sentido de superação das condições do
“racismo de marca” definido por (NOGUEIRA, 1985). Racismo este fundado na negação
das memórias relativas à violência sob a qual se instaurou o processo escravista e que ainda

359
se faz presente na vivência subjetiva e social dos descendentes de africanos, indígenas e de
toda sociedade no Brasil e nas Américas.
Desta forma, a subalternização assenta-se sobre as limitações colocadas aos grupos
na constituição de orientações e projetos políticos próprios. Projetos estes que precisam
deixar de se pautar em função do conjunto de representações sociais geradas a partir da
narrativa histórica e da memória dos grupos hegemônicos, acentuados pelos processos de
branqueamento de nossa sociedade e da história-cultura difundidos no país, desde o século
XIX. Esta reflexão se coloca em diálogo com os apontamentos de Guerreiro Ramos em
suas considerações acerca de Estado, sociedade e diversidade no Brasil quando este critica
concepções teóricas pautadas no entendimento do Estado como um ente sobreposto à
sociedade de forma autoritária, portanto, de modo a conduzi-la a um suposto caminho de
modernidade (RAMOS, 1966, p. 361).
Neste sentido, na Região Sudeste do Brasil, no Nordeste do estado de São Paulo
Paulista, por exemplo, os negros, em meio à dinâmica de invisibilidade social instaurada
na lógica da republicana brasileira que manteve, sobre outros referenciais, fundamentos da
ordem social desigual proveniente do sistema escravista presente no período do Império,
já em 1956, quase 70 anos após a proclamação da República, eram tratados como sinônimo
de estratos sociais inferiores. Nos dizeres do cronista social Prisco da Cruz Prates, ao
descrever o posicionamento dos grupos étnico-raciais no Jardim Público, na cidade de
Ribeirão Preto aos domingos, quando então argumentava sobre a não existência de racismo
no Brasil. Para o cronista, aos domingos, na praça principal da cidade de Ribeirão Preto,
distribuíam-se, naturalmente, sempre em espaços específicos, os barões do café (grandes
empresários), os descendentes de europeus, sobretudo italianos, e os negros e “mulatos”,
grupos que ele distinguia como “os ricos, as classes médias e os negros” (PRATES, 1956,
p. 276). Forma de distinção cuja expressão que denota a situação de subalternidade imposta
ao contingente negro, sinônimo de classe baixa, aos quais era vedada a presença na região
central do Jardim Público e na parte considera nobre, em frente à arquitetura de estilo
europeu do teatro de ópera construído na cidade, onde se situavam os “ricos”. Condição
esta, de classe baixa, que na verdade se consubstanciava a partir de conteúdos étnico-raciais
mais precisos em outros momentos e espaços geográficos, como na elaboração do Código
municipal de Posturas, na cidade de Batatais (também situada na região sudeste brasileira),
em 1898, que trazia em seu bojo a proibição de práticas culturais da população negra como
“danças do jongo, cateretês, moçambiques, batuques, sapateadas, fados, cantarolas dentro
da cidade e povoações” para fins de “tranquilidade pública” (SOUZA, 2010, p. 128).

360
No sentido de abarcar com maior amplitude estes dados, distanciamo-nos do olhar
fundado na lógica dualista da dominação para pensarmos as dinâmicas instauradas pelas
ações difusas de conflitos, disputas, alianças, aproximações e distanciamentos que os
grupos sociais e classes criam e recriam na tessitura do real concreto. Procuramos perceber
os processos socioculturais, políticos e econômicos, enfim a realidade sócio-histórica, como
conjunto de práticas de produção de diferenças que abalam os princípios constantes da
cultura nacional do “verdadeiro” contido em formas reificadas de povo fundadas em
estereótipos e marginalizações.
Nesta orientação, nos colocamos com a compreensão de que a totalidade é sempre
atravessada pelas temporalidades múltiplas das partes. Por esta perspectiva, abarcamos as
organizações negras e indígenas não enquanto objetos encerrados em si mesmos, mas
como parcelas constituintes e constituídas na teia de significados e no conjunto de relações
estabelecidas entre os diferentes grupos e, nas articulações existentes entre o contexto social
destas regiões em estudo e o contexto nacional. Neste sentido, a nação pode ser entendida
a partir de um duplo processo de construção. O movimento de uma memória única
própria dos grupos hegemônicos, a se instituir por sobreposição às memórias dos grupos a
serem subalternizados, os quais, por sua vez, produzem narrativas alternativas para
marcarem memórias e representações autônomas que lhes confiram lugares sociais
distintos daqueles previstos pela narrativa hegemônica (SOUZA, 2010, p. 201).
Na mesma dimensão, situamos também as perseguições das autoridades de Porto
Velho, estado de Rondônia, ainda frequentes nas décadas de 1960 e 1970, guiadas pelo
ideal do catolicismo enquanto religião adequada ao discurso de humanidade absoluta
civilizada, aos cultos afro-brasileiros, obrigados a esconderem-se para evitar ao máximo as
investidas policiais, mesmo com os Terreiros atuando de acordo com as normas
institucionalizadas pela Delegacia de Jogos e Costumes e o poder Judiciário que exigia
licenças e o acolhimento de normas restritas para seu funcionamento (LIMA; FONSECA,
2011, p. 12).
De forma análoga no contexto amazônico, os estudos de (LIMA, 2013)
demonstram que estes pressupostos do racismo de exclusão foram fundamentos na
organização da sociedade, particularmente na realidade de Porto Velho, onde a
pesquisadora centra suas pesquisas.
Marta Valéria de Lima (2013), ao discutir sobre processos de colonização em
Rondônia, a partir do século XIX e no século XX, destaca a visão eurocentrada dos

361
colonos vindos do Sul e Sudeste do Brasil como as bases dos projetos de urbanização e,
também, ocupação do espaço rural, em grande medida:

Em sua obra Cultura amazônica: uma poética do imaginário (1995), João


Jesus de Paes Loureiro esclareceu que desde o período colonial foram
cunhadas certas matrizes ideológicas que tenderam a desvalorizar a
sociedade amazônica, cuja população (indígena ou dela descendente) era
tida como não civilizada. Portanto, inferior. Ele ressaltou que diversos
fatores contribuíram para a construção e a manutenção de uma visão
―real-imaginária desse território, o qual era visto como ―[...] lugar
remoto, desconhecido e impenetrável, por suas condições geográficas e
logo, pela dificuldade de acesso. O desconhecimento a seu respeito
levava à sua idealização como lugar selvagem e distante da civilização
(Paes Loureiro, 1995, p. 97). Isto era dizer: ―Estar longe do espaço
europeizado significava estar situado num tempo passado, primitivo.
(idem, p. 30) (LIMA, 2013, p. 52).

No âmbito desta discussão, Lima (2013), aponta um aspecto fundamental para


entendermos a construção da ordem social e das hierarquias étnico-raciais, qual seja, as
conexões entre estas bases eurocêntricas com a composição do “quadro de construção e
de desconstrução das práticas culturais” das populações afro-brasileiras (LIMA, 2013, p.
52). Este imaginário, alicerçado na oposição espaço e povos selvagens versus colonizadores
modernos (civilizados) é expressão do diálogo estreito e linhas de continuidade entre o
modelo de modernidade que as elites republicanas procuraram concretizar no contexto
social, demográfico e geográfico brasileiro. Modelo este presente no Nordeste paulista e
no Rio de Janeiro, por exemplo, desde as últimas décadas do século XIX e estruturante de
parte da dinâmica social em Porto Velho, na Amazônia brasileira, como apontam estudos
como o de Lima (2013).
Pretendemos observar o devir negro e indígena para além da perspectiva sócio-
histórica e cultural hegemônica, buscando perceber as maneiras pelas quais estas
populações criaram estratégias que lhes permitiram forjar suas territorialidades criando e
recriando suas culturas e suas identidades num processo dinâmico e ativo. Apreciar como
os negros, por exemplo, em um contexto urbano adverso às suas produções culturais, re-
inventaram espaços que se constituíram enquanto lugares de convivência e como caminhos
de mediação com outros grupos sociais.
Em consonância com essa perspectiva, em nossas pesquisas, as culturas são
percebidas enquanto um repertório de símbolos, manifestações artísticas, práticas e
discursos, aberto a empréstimos e aquisições, considerado no contexto dinâmico de

362
relações com outros grupos sociais. As culturas devem ser então, tratadas como “cultura
viva” que se expressam, principalmente em sociedades complexas, através de processos
dinâmicos de re-significação, dentro de relações políticas em que os grupos buscam a
afirmação de sua identidade através de um diálogo e de um contraste com a sociedade
abrangente.
Assim como Marilena Chauí, quando esta analisa as relações entre o nacional e o
popular na formação sociocultural brasileira, procuramos nos diferenciar de leituras
sociológicas ou antropológicas que folclorizam as manifestações culturais negro-populares
banalizando-as como espetáculo ou simples divertimento. Assim procedemos, uma vez que
essas leituras inserem-se no processo ideológico de desvalorização das culturas negras
instaurado pelo caráter etnocêntrico de nossa sociedade. Esta diferenciação nos parece
fundamental, na medida em que nos afasta da perspectiva folclorista e romântica, em que
a cultura dos grupos negro-populares é sinônimo de tradição a ser superada e um passado
fadado a uma deterioração "natural", justificando-se assim, a reorganização destas culturas
pelas "elites cultas" (CHAUÍ, 1986, p. 24-25).
Com este intuito de ampliar a concepção, procuramos fazer o emprego do termo
cultura no plural, apreendendo a multiplicidade dos sujeitos sociais, realizando
interpretações com a capacidade de considerar tanto a lógica cultural interna dos diferentes
grupos, quanto os contextos social e político em que se efetuam as alianças e os conflitos.
Deste modo, evitamos o embuste da lógica dominante que visa unificar e homogeneizar as
diferenças entendendo-as como simples empirismos superficiais (CHAUÍ, 2000, p. 45).
Esta postura crítica a respeito do conceito de cultura, que compartilhamos com
Marilena Chauí, vai ao encontro das avaliações de Dalmir Francisco quando este aborda
os desdobramentos e a importância da herança cultural negro-africana na sociedade
brasileira, como também de estudos como o de Manuela Carneiro da Cunha em seus
estudos sobre as populações indígenas.
Neste diapasão, entendemos que conceber a diversidade cultural significa conceber
as particularidades dos grupos humanos e suas diferentes formas de relacionamento com
o real, expressas em manifestações culturais e formas peculiares de apropriação dos
espaços. Significa reconhecer, na formação cultural brasileira, a pluralidade e a existência
histórica de agrupamentos étnico-culturais particulares. Considerar a existência da cultura
negra compreendendo as ações e o sentido do negro brasileiro como sujeito social e
histórico (FRANCISCO, apud SOARES FONSECA, 2000, p. 142). Ainda neste sentido,
entendemos serem pertinentes as seguintes palavras do autor:

363
[...] o conceito de cultura, como modo de relacão de um grupo humano
com o seu real, possibilita compreender o negro e o não-negro como
seres que compartilham a igualdade dos que se fazem e se identificam
como negro e não-negro; ao instituir uma relação com o real ou
afirmando-se como homem, hominizando o mundo — ao mesmo tempo
em que afirmam a diferença com o diverso, sustentando a diversidade
cultural como condição humana, universalidade que não apaga nem
subsume a particularidade (FRANCISCO, apud SOARES FONSECA,
2000, p. 143-144).

Buscamos estabelecer uma construção teórico-metodológica capaz de apreender as


dimensões, econômica, política e cultural dos processos criativos estabelecidos pelas
populações negras e indígenas no Brasil, processos estes que se expressam na constituição
de suas instituições e de seus espaços de convivência seja nos espaços urbanos ou em seus
territórios em zonas rurais. Desta maneira, entendemos tornarmos-nos capazes de abordar
estes processos que possibilitam a estas populações subverter o status de inferioridade
imposto pelos padrões hegemônicos, estabelecendo relações sociais em que passam a ser
vistas em sua humanidade plena e como populações cidadãs plenos de direitos (LOPES,
2000, p. 127).
Ao abordarmos a cultura como um processo dinâmico, onde ocorre um
reaprendizado entre os indivíduos e seu meio, e também como um elemento que se insere
pelo todo social e econômico poderemos responder, de modo mais eficaz, algumas
questões. Dentre elas, quais as relações existentes entre os grupos negro-populares e seus
espaços de vida, qual o significado das festas e de outras manifestações culturais na
sociabilidade dos trabalhadores, dos negros e outros grupos (MAGNANI, 1998, p. 28).
Compartilhando as ideias de Magnani (1998), entendemos ser o estudo de fatores
culturais das camadas populares, uma via de acesso ao conhecimento de seus valores, de
sua maneira de pensar e de seu modo de vida. Incluindo-se também as festas como um
objeto extremamente rico para o entendimento da dinâmica social. Neste sentido, a
antropologia interpretativa de Geertz (1998) parece-nos bastante elucidativa. Ao partir do
conceito weberiano de cultura, ou seja, das teias de significados tecidas pelos seres
humanos, e que ao mesmo tempo os envolvem Geertz atribui ao pesquisador a tarefa de
interpretá-las através dos vários sentidos atribuídos pelos diversos atores da vida social.
Nesta perspectiva, não busca leis, mas é uma leitura contextual à procura de significados.
Desta forma, podemos aprimorar nosso olhar para perceber os mais diferentes
fenômenos do social como realidade densa constituída pelas mais diversas formas de
organização e estratégias socioculturais e políticas, como as festas e outras expressões dos

364
grupos e classes sociais de populações variadas, como via de acesso a um olhar sociológico-
antropológico que vá além da visão que enfatiza a miséria, o domínio da sobrevivência e
escassez; em direção a uma postura que se coloque na perspectiva de valorização de suas
experiências, “propiciando-nos revelar a riqueza escondida sob a aparente pobreza do
cotidiano e descobrir a profundeza sob a trivialidade” (LEFEBVRE, 1991, p. 44).
Em nossa perspectiva, além de descartarmos leituras sociológicas e antropológicas
que atribuem às culturas negras e indígenas o caráter de espetáculo ou simples
divertimento, como afirmado anteriormente, também mantemos um distanciamento
crítico em relação às interpretações que buscam preservar uma suposta autenticidade das
culturas negras, indígenas ou de outros grupos sócio-étnico-raciais e de suas tradições. Estas
interpretações, por padecerem de uma visão estática de cultura, entendem as culturas
negras como universos fechados, em termos de elementos estáticos, impenetráveis e
herméticos encerrados em si mesmos, em que as trocas simbólicas traduzem-se em
descaracterização e perda de uma suposta pureza (MAGNANI, 1998, p. 25).
Esta maneira de conceber a cultura como um “acervo de produtos acabados e
cristalizados”, alheios ao processo histórico e às transformações a que estão sujeitas as
formações socioculturais em seu leito, nas condições concretas de seus portadores é
problemática. Surge como um caminho certo para reafirmar as concepções daqueles que
entendem as práticas dos grupos não hegemônicos como formas de alienação, exotismo
ou irracionalidade (MAGNANI, 1998, p. 19).
Coerentes com o nosso objetivo de conceber as múltiplas formas de articulação
pertinentes à diversidade de grupos humanos e culturas existentes no Brasil, não
interpretarmos o universo das culturas negro-populares apenas em função dos valores da
cultura eurocêntrica, ou numa relação restrita ao poder dos grupos hegemônicos. Devemos
entender aquelas culturas em suas lógicas particulares que são mediadas por múltiplas
articulações. Lógicas estas pautadas nas ambiguidades existentes na realidade vivida e de
acordo com diversos interesses, que podem ser estéticos, políticos ou econômicos
(CHAUÍ, 1986, p. 63).

PARA ALÉM DA CLASSE

Nas dimensões da discussão que ensejamos, outro aspecto relevante diz respeito a
superação de propostas teórico-metodológicas fundamentadas em concepções genéricas
das relações sociais, neste sentido a categoria classe se apresenta como um exemplo

365
emblemático. Não pretendemos aprofundar a discussão, apenas expor alguns pontos
basilares para a abertura de reflexões.
Nas diferentes formações societárias no Brasil, ao longo do século XX, sobretudo,
a diferenciação social pautada apenas no conceito de classe se mostra insuficiente. Para
além das relações de classe social e dos pressupostos desta em termos de identidade dos
sujeitos com base em sua inserção no conjunto das relações sociais de produção, existem
outras dimensões de organização societária fundamentais e sem estas, qualquer estudo
estará manietado quanto à percepção da complexidade do real. Nesta direção, a concepção
de relações étnico-raciais (sem tocarmos aqui nas questões de gênero, outra dimensão
fundamental) é uma concepção indispensável para irmos além da superfície das formas de
contato, organização e interação nas diferentes realidades sócio-históricas.
Nesta dimensão estão levantamentos e reflexões que estamos a desenvolver acerca
das populações negras e indígenas na Amazônia Sul Ocidental, no estado de Rondônia.
Desta maneira, especificamente no que tange aos afro-brasileiros e outros
contingentes afro-diaspóricos, temos levantado que na formação demográfica amazônica a
presença das populações negras é apontada no século XIX pelo aporte de populações
escravizadas a partir do porto de Belém e também de fugitivos das Guianas que formavam
quilombos em regiões diversas e mucambos (aglomerados de pequenas habitações feitas
de barro batido, construídos de forma espraiada) em periferias urbanas. Em Porto Velho,
desde a “década de 1910 forma-se o primeiro bairro da cidade chamado de Mucambo,
aglomerado periférico junto ao pátio da ferrovia” (LIMA; FONSECA, 2011, p. 05).
Neste processo, na capital rondoniense, próximo ao Bairro Mucambo, se alojaram
também muitos negros vindos das ilhas do Caribe, genericamente denominados
barbadianos e, ainda, nordestinos para trabalhar na construção da Estrada de Ferro
Madeira-Mamoré, desde o fim do século XIX (LIMA; FONSECA, 2011, p. 06).
Como estudiosos pautaram-se por perceber o conjunto das relações sociais para
além do conceito de classe, sem perdê-lo de vista, o que seria um contrassenso na busca
pela riqueza e da multiplicidade do real, conseguiram compreender a existência de
diferenciações de classe e diferenciações étnico-raciais como aspectos complementares das
estratégias e formas de organização dos grupos e classes sociais hegemônicas e dos grupos
economicamente subalternizados. Nesta lógica, foi compreendido um dos caminhos de
afirmação social dos negros na capital rondoniense, na primeira metade do século XX,
consubstanciado a partir da estruturação de espaços religiosos que na década de 1940
obtinham grande reconhecimento social por motivos como a organização de ações de

366
solidariedade, realização de festejos importantes para a sociabilidade da cidade e devido ao
atribuído poder de cura e proteção a líderes religiosos negros, a partir de seus Terreiros e
Irmandades (LIMA; FONSECA, 2011, p. 06).
Embora grande parte dos negros nacionais e uma parte dos negros estrangeiros
barbadianos seguissem os cultos de origem afro-indígena, marcados também por elementos
de catolicismo, os Barbadianos, de maneira geral, procuravam se diferenciar dos demais
negros. Diferenciação dada a partir da língua inglesa, da prática do protestantismo, de
vestimentas, de hábitos alimentares e devido a ocupação de cargos melhores na Estrada de
Ferro (ROCHA; ALLEYNE, 2012, p. 12).
Um dos aspectos deste processo de diferenciação dos “Barbadianos” em relação
aos “negros nacionais” diz respeito à constituição de um espaço festivo próprio para seus
“irmãos protestantes”, preocupados com o avanço e a divulgação das festas e eventos que
o terreiro de Santa Bárbara, na década de 1940, como maneira de evitar o desvio destes
irmãos e sua presença nos espaços de sociabilidade dos outros negros (LIMA; FONSECA,
2011, p. 09).
No Sudeste brasileiro, em nossos estudos, apontamos processos semelhantes,
embora com outros elementos culturais, de segmentação e diferenciação entre os
diferentes grupos étnico-raciais e das populações negras entre si. Acerca dos afro-
brasileiros, para o segmento que buscava se distanciar e diferenciar-se dos demais negros,
um dos fatores refere-se às possibilidades de melhor inserção social de parte dos negros
mais antigos apadrinhados de chefes políticos. Outro ponto diz respeito a melhores
empregos, uso de vestimentas mais “distintas”, acesso a clubes e escolas de “branco” e
religiosidade voltada ao catolicismo (SOUZA, 2010, p. 214).
Como se pode perceber, apontadas estas particularidades, podemos indicar que a
ordem hierárquica verticalizada e pautada na desigualdade e opressão do modelo de
modernidade e progresso instaurado pelos grupos hegemônicos na sociedade brasileira,
serviu também como substrato para as diferenciações entre as populações marginalizadas
legitimarem-se entre si, na busca de mais acesso a bens socioculturais, econômicos e
políticos em Porto Velho. Contudo, este intuito de inserção social por uma parte dos
negros, seja dos afro-brasileiros no Sudeste paulista, seja de uma parcela significativa dos
“Barbadianos” em Porto Velho e Belém, mostrou-se em grande parte frustrado, posto que
a superação da marginalização e o acesso aos bens sociopolíticos e econômicos nesta
estratégia ficam limitados pelos contornos definidos pela lógica hegemônica. Quais os
limites colocados na dinâmica social?

367
Em Rondônia, por exemplo, os negros barbadianos vivam em uma região que eles
denominavam Barbadian Town em alusão à sua ascendência inglesa e, portanto, superior
e civilizada, nos termos do discurso e do modelo societário hegemônico de modernidade.
Contudo, esta denominação dada ao espaço dos negros barbadianos por seus moradores
disputava com a designação de cunho racista, de parte da sociedade envolvente, que a este
se referia como Alto do Bode, nome pejorativo, para muitos estudiosos, segundo ROCHA
e ALLEYNE (2012):

Nos trabalhos de Teixeira, Sampaio e Blackman a referência ao bairro


dos imigrantes como um local de bandidos e de gente mal cheirosa: o
que para os imigrantes era, no início do século, Barbadoes Town, a
população local batizou como “Alto do Bode”, referindo-se de forma
pejorativa à estranha língua falada por seus moradores e, em outra
versão, ao odor exalado pelos barbadianos (ROCHA; ALLEYNE, 2012,
p. 15).

Esta designação do bairro dos imigrantes negros como Alto do Bode remete às
normativas do projeto de modernidade discriminatória das elites brasileiras no século XX.
A associação dos negros com mau cheiro, animalidade, banditismo e primitivismo, reforça
a oposição civilização (brancos) versus primitivismo (negros) e justificou e orientou ações
institucionais e cotidianas de marginalização e desqualificação das populações negras.
Ações como a eliminação do bairro dos “Barbadianos” em 1944 pelas autoridades oficiais
(LIMA, 2013, p.105) ou a desqualificação dos negros antilhanos e dos demais por ações
do Estado ou por posturas de diferentes sujeitos sociais no cotidiano, de maneiras diversas
e em diferentes espaços sociais. Como, por exemplo, em Porto Velho, se deram as
acusações de feitiçaria e perseguição a sacerdotisas e sacerdotes e espaços religiosos de
matriz africana e afro-indígena, na mesma direção, a retirada forçada da imagem de Santa
Bárbara do Terreiro de Santa Bárbara, na década de 1940, a mando da igreja católica, ou
as ações da polícia que invadia Terreiros e furava tambores, quebrava estruturas e acabava
com as festas, ao longo do decorrer do século XX (LIMA; FONSECA, 2011, p. 13).
A partir desta breve reflexão, colocamos nosso entendimento de qualquer suposto
dilema entre raça e classe social, ou a concepção de predominância de um ou outro destes
aspectos na abordagem do social, são pouco profícuas para entender a desigualdade e a
dinâmica entre grupos etnorraciais no Brasil. Todo racismo desenvolve-se no interior de
uma relação racial que ocorre por meio da ficção de uma realidade identitária radicalmente
separada e modulável segundo a variedade dos contextos discriminatórios. Contextos que

368
variam, porém com a hierarquização entre os atores, condição esta estabelecida sempre
em função de um paradigma hegemônico e de uma identidade, fenotípica e culturalmente
determinada, de forma etnocêntrica (SODRÉ, 1999, p. 85).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta perspectiva, a produção de conhecimentos produzidos a partir de premissas


de superação da invisibilidade social e das consequências associadas a esta, de forma geral
a opressão e a marginalização com bases machistas, racistas e classistas, sem olvidar as
questões de gênero incidentes sobre as populações negras, os povos indígenas e outros
grupos e as classes subalternizadas, necessita ser sustentada no reconhecimento da
alteridade e da diversidade. Com esta direção, entendemos que devemos abordar as
narrativas sociais e os processos históricos e memórias geradas também a partir dos
próprios referenciais e modos de vida destas populações, de forma a produzir condições
de se definirem papéis sociais fundados em representações geradas no reconhecimento da
qualidade destas narrativas e memórias como dados a dialogar com os aspectos sociais
presentes em outras fontes narrativas das realidades em estudo. Nesta direção,
compreendemos a desqualificação social e a invisibilidade em situações cotidianas em
relação às populações negras como aspectos do racismo enquanto uma das bases
fundamentais de estabelecimento da dinâmica social verticalizada voltada para a
manutenção da desigualdade e da marginalização destas populações em proveito dos
grupos hegemônicos, entretanto, ao invés de focar os fundamentos de projetos de
dominação ou resistências de maneira dual, mais rico se torna qualquer estudo quando
voltado a apreensão das diferentes dimensões das ações que os grupos e classes sociais
constituem em cada constelação social em determinada conjuntura social pensada em tanto
na dimensão diacrônica quanto sincrônica.
Portanto, entendemos ser condição necessária para as pesquisas em ciências
humanas, reconstituir as conexões existentes entre as atuações dos sujeitos sociais, a partir
do levantamento de dados sobre suas histórias de vida e de dados provenientes de outras
fontes, relativos às dimensões políticas, culturais e econômicas que compõem o quadro
social em que estes sujeitos, seus grupos e classes estão inseridos e com as quais se
relacionam.
Esta correlação entre dados do quadro social mais amplo composto por diferentes,
instituições, grupos e classes e os dados referentes às atuações e organizações estabelecidas

369
pelos grupos sócio-étnico-raciais em foco (negros e indígenas), dizem respeito à perspectiva
epistemológica que colocamos em discussão. Perspectiva esta, pautada em nossas
concepções da dinâmica social enquanto processo multilinear e dialógico fundado no fluxo
constante entre as dimensões políticas, culturais e econômicas em que os grupos e classes
sociais estão inseridos e compõem suas sociabilidades, suas histórias, suas vivências.

REFERÊNCIAS

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de Porto Velho. Dissertação (Mestrado em História e Estudos Culturais). Universidade
Federal de Rondônia, Porto Velho (RO), 2015.

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Paulo: Brasiliense, 2. ed, 1987.

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de uma relação complexa: as religiões afro-brasileiras e a sociedade de Rondônia (1911-
2011). Tese (Doutorado em História da América Latina – Mundos Indígenas).
Departamento de Geografia, História e Filosofia da Universidade Pablo de Olavide,
Sevilha (Espanha), 2013.

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brasileiros em Porto Velho/RO. Revista Veredas Amazônicas, Nº 01, Vol. I, 2011. p. 5 -
21.

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em Ciências Sociais, São Paulo, PUC-SP, 2002.

MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço: cultura e lazer na cidade. São
Paulo: Brasiliense, 1998.
PRATES, Prisco da Cruz. Ribeirão Preto de Outrora. São Paulo: Gráfica José Ortiz
Júnior, 1956.

370
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Migration to Brazil in early 20th century, Journal of Barbados Museum and Historical
Society, Vol. 58, 2012, p. 1 – 42.

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__________. (Re)vivências negras: entre batuques, bailados e devoções-práticas culturais e


territórios negros no interior paulista (1910-1950), Ribeirão Preto (SP): Edição do Autor,
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WILLIANS, Raymond. Cultura. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

371
ARQUIVO E RELAÇÃO: A EXPERIÊNCIA COM O ARQUIVO
MIYASAKA

Rafael F. A. BEZZON223

Resumo: O Arquivo Miyasaka está localizado na cidade de Ribeirão Preto, interior do estado de
São Paulo, o acervo é composto por quatorze mil imagens divididas em três conjuntos, desses
trabalhei com o “Jovem Miyasaka” composto por três mil imagens. Esse texto se propõe a relatar
um pouco da experiência de pesquisa etnográfica junto ao Arquivo Miyasaka, e assim analisar as
relações estabelecidas e seus efeitos no desenvolvimento da pesquisa e na construção de narrativas
sobre o arquivo, o fotógrafo Tony Miyasaka, e as fotografias. Dessa forma, o arquivo é entendido
como um espaço criativo, produtor e potencializador de conhecimentos que se mostram quando
em relação com os usuários – pesquisadores, guardiões – e as coisas – nesse caso as fotografias, as
imagens de maneira geral.

Palavras-chaves: Antropologia visual.Arquivo. Etnografia. Imagem. Relação.

INTRODUÇÃO

A pesquisa é realizada há três anos junto ao Arquivo Miyasaka, localizado aqui, n


cidade de Ribeirão Preto, na antiga residência do fotógrafo e atual morada de sua viúva D.
Tereza e de sua filha, Elza. São aproximadamente 14 mil negativos, divididos em três
conjuntos: “Jovem Miyasaka”; “Fotos Aéreas”; e “Fotos Artísticas”. Desses, escolhi
trabalhar com o conjunto “Jovem Miyasaka”, produzido durante os anos de 1950 e 1960.
São em quase a sua totalidade fotografias analógicas realizadas em preto e branco.
Tony Miyasaka foi um importante fotógrafo, laboratorista, comerciante e professor
de fotografia. Durante sua trajetória de vida foi mais reconhecido pelo seu trabalho como
comerciante, suas fotos ficaram em seu sono arquivístico até o ano de sua morte, em 2004.
O Arquivo Miyasaka é um híbrido de analógico e digital, sobretudo o conjunto
“Jovem Miyasaka”. Parte dos negativos e fotografias foram digitalizados e outras fotos foram
incorporadas, já digitalizadas, do Arquivo Público e Histórico de Ribeirão Preto. O
conjunto com o qual trabalhei e trabalho até hoje, é composto por três mil fotografias,
dessas aproximadamente mil estão digitalizadas.

223
Mestre em Ciências, UNESP/FCLAr, a pesquisa foi realizada com auxílio da Capes. Pesquisador do NAIP
– Núcleo de Antropologia da Imagem e da Performance. Rafaelbezzon@gmail.com.

372
A PESQUISA: ARQUIVO MIYASAKA EM PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

Segundo a antropóloga Fraya Frehse (2006) a “perspectiva antropológica” se


configura como: “[...] uma ‘postura’ perante o conhecimento, uma maneira de justamente
posicionar-se perante o contexto de estudo durante e após o trabalho de campo, nas etapas
de análise e interpretação dos dados” (FREHSE, 2006, p. 301). Ou seja, minha pesquisa
se passou como se o Arquivo Miyasaka, sua lógica de orientação e os espaços que o
compõe, junto às fotografias, textos, objetos e às pessoas que estão relacionadas ao
fotógrafo, ao arquivo e às fotografias, fosse e é o campo da pesquisa. Quando me refiro à
palavra “campo”, ela carrega consigo um grande contexto: o lugar onde o antropólogo, o
cientista social, o pesquisador de uma forma geral, vai para realizar a pesquisa. Viver a
experiência e construir os dados junto aos interlocutores, que serão analisados no
momento da confecção do texto.
O importante é a postura do pesquisador perante à seu lugar de realização da
pesquisa, como aponta a antropóloga, dessa forma procurei evidenciar em minha análises
as relações estabelecidas durante a experiência de pesquisa. Sejam elas entre pesquisador
e interlocutor – as pessoas em relação com o arquivo -, pesquisador e fotografias, e
interlocutores e fotografias. Procurei pensar a fotografia como uma espécie de produtora
de novas relações, como observa a antropóloga inglesa Elizabeth Edwards, “[...] A análise
antropológica se volta, em vez disso, para o modo como as fotografias assumem sua própria
dinâmica de sociabilidade junto às comunidades. [...]” (2011, p. 180-181), ou seja, como as
fotografias se relacionam com as pessoas e o que pode ser evocado desse encontro.
Como proposta de trabalho, comecei a estabelecer uma relação com as imagens a
partir de um olhar sistemático para elas, mas sem a necessidade e preocupação em fazer
uma exegese dos elementos que compõem cada imagem fotográfica. Assim, me propus a
uma abordagem acerca das fotografias que valorizasse sua qualidade polissêmica
privilegiando a experiência vivida com as fotografias, ao invés de uma abordagem
estritamente semiótica (Edwards, 2011, p. 185). Não mais valorizando apenas os conteúdos
analíticos que valorizam a linguagem da fotografia, pois agora “[...] não olhamos apenas
para uma foto, sempre olhamos para a relação entre nós e elas. [...]”. (LEITE, 1993, p.
145).
Ou seja, a “perspectiva antropológica” se orienta pelas análises sobre as fotografias
e sua relação com os diferentes observadores da foto, e a relação que eles estabelecem

373
entre sua própria trajetória de vida junta ao arquivo, às imagens e à trajetória do fotógrafo
Tony Miyasaka.

ARQUIVO E IMAGEM

[...] Nunca, aparentemente, a imagem — e o arquivo que conforma desde


o momento em que se multiplica, por muito pouco que seja, e que se
deseja agrupá-la, entender sua multiplicidade — nunca a imagem se
impôs com tanta força em nosso universo estético, técnico, cotidiano,
político, histórico. [...] (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 209).

O Arquivo se configura como o espaço de realização da pesquisa, é o campo


etnográfico, por isso a experiência de pesquisa se dá no e com o arquivo e tudo que o cerca.
O Arquivo é entendido como um objeto cultural em si mesmo, e por isso se torna
de grande interesse para as Ciências Sociais e especialmente para a Antropologia. Não é
apenas uma fonte de informações, mas um espaço produtor de novas informações quando
posto em relação com seus objetos, usuários, organizadores e pesquisadores. Não está
apenas preocupado com as reminiscências do passado, e sim em movimento refletindo
sobre o passado, o presente e com preocupações em relação ao futuro.
A Imagem é outro eixo importante para a realização da pesquisa, as fotografias
sempre estiveram presentes durante toda a experiência de pesquisa vivida. Grande parte
das situações vivenciadas junto aos interlocutores foram permeadas pela presença das
fotografias, olhar para as fotos se constituiu como uma experiência compartilhada entre
pesquisador e interlocutores. Permitindo que as fotos fossem entendidas não apenas pelos
seus conteúdos semióticos, importantes para as análises das fotografias, mas, sobretudo,
pela significância que elas exercem na vida das pessoas produzindo afetos e gerando efeitos
no observador.
O conceito de Imagem foi tratado durante toda a pesquisa a partir de uma
concepção ampliada. Não apenas a imagem em seu suporte físico, o negativo, o papel e a
tela, mas também a memória, a lembrança, as histórias e narrativas que eram animadas
quando o observador estava em contato com a fotografia.
A perspectiva teórica e metodológica que orientam a pesquisa se baseia na chamada
“Virada Fenomenológica” (EDWARDS, 2011, p. 185), que tem como princípio pensar as
relações, experiências, afetos e efeitos vividos com as imagens. As fotografias também se
apresentam como interlocutoras da pesquisa e são analisadas a partir desses afetos vividos

374
entre o observador, seja ele quem for, e as fotos. Esses encontros geram efeitos
responsáveis pelos caminhos traçados e percorridos durante a experiência etnográfica.
Investigar o Arquivo Miyasaka, portanto, permite (re)conhecer a trajetória do
fotógrafo e seu arquivo, e assim (re)encontrá-lo como um dos expoentes da produção de
imagens, fotográficas e em movimento, da cidade de Ribeirão Preto durante a segunda
metade do século XX.

O ARQUIVO MIYASAKA EM PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

Partir a algum lugar, viajar a outros espaços, é uma característica marcante da


antropologia e de quem pretende fazer etnografia. As viagens podem ser realizadas em
diferentes escalas, das grandes distâncias, como nas monografias clássicas da antropologia
que ocorrem em regiões longínquas da Oceania, África e América do Sul. Mas, as viagens
também acontecem em escalas menores, nas pequenas distâncias percorridas durantes as
jornadas que fazemos ao sair de nossa própria casa e ir a outro lugar dentro da cidade, do
bairro ou mesmo na própria rua. Como certa vez disse Michel Agier (2015, p. 19), “Não
existe etnólogo sem uma partida, sem sair de casa e ir olhar o mundo, que começa bem
perto, além do círculo privado, da casa, dos sentimentos familiares, amorosos, fraternais.
Tomar uma distância daquilo que compõe o seu ‘eu’ é o primeiro passo. [...]”. Sair de casa
e se propor a olhar de uma forma diferente, inquiridora, para as situações cotidianas, já se
torna uma pequena partida para uma experiência antropológica.
Essa mudança na escala das viagens permite um tratamento etnográfico das cidades
e dos espaços que a compõem, um desses lugares típicos das sociedades urbano industriais
são os arquivos. Os arquivos são, como lembram Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2016,
p. 182), um dos grandes índices da chegada da modernidade a contextos coloniais, por
exemplo quando da vinda da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, uma das primeiras
medidas tomadas pelo então Imperador, D. Pedro I, foi a criação do Arquivo Militar. Junto
a outras instituições estabelecidas no período trazia à então colônia os ares de modernidade
já sentidos em outras localidades do globo. Em 1838 o Arquivo Militar vem a se constituir
no Arquivo Nacional, com o objetivo de guardar documentos que tratavam das ações
tomadas pelas principais instituições atuantes no período.
De maneira geral, como observa Clarice Ehlers Peixoto (1999, p. 117), os acervos
de documentos, objetos, imagens e outras coisas que compõem os arquivos são
constituídos pelas instituições públicas, assim essas instituições se tornam as responsáveis

375
pela memória social, política, econômica e cultural de determinada cidade, estado ou país
por exemplo. Os acervos produzidos nesse período, principalmente nas nações europeias,
mas também no Museu Nacional, localizado no Rio de Janeiro, criado em 1818, e no
Museu Emílio Goeldi, localizado em Belém do Pará, criado no ano de 1866, se
estabeleceram articulando preocupações científicas na coleta dos objetos que compõem
seus acervos. As novas técnicas de produção de imagem criadas no período (fotografia e
cinema) foram rapidamente incorporadas e utilizadas seguindo o princípio de uma
aplicação cientifica para a produção de fotografias e filmes em contexto etnográfico, esses
materiais compõem o acervo de diferentes arquivos. Assim, segundo Peixoto (1999, p.
118), a criação de arquivos de imagens em seus diferentes suportes: gravura, fotografia,
cinema e desenho, se mostra de grande interesse científico para o estudo do homem em
seus diferentes contextos sociais.
O desenvolvimento de equipamentos fotográficos e seus materiais, principalmente
no século XX, criam as condições necessárias para que a profissão de fotógrafo se
estabeleça e se popularize. Os arquivos fotográficos produzidos por essas pessoas também
se mostram de grande interesse para as Ciências Sociais e a Antropologia, afinal como
esclarece Elizabeth Edwards (1996, p. 24), uma fotografia antropológica ou que interessa o
cientista social “[...] é qualquer uma da qual um antropólogo possa retirar informações
visuais e significativas.[...]”, e mesmo aquelas “[...] que não foram criadas com intenções
antropológicas, ou secundadas especificamente por conhecimento etnográfico, podem,
todavia, ser apropriadas com finalidades antropológicas. [...]”. Dessa forma, as fotografias,
negativos ou positivos, que constituem o Arquivo Miyasaka se apresentam como um
conjunto interessante para a realização da pesquisa.
Assim busquei inquirir, refletir e me relacionar com o Arquivo Miyasaka através de
uma etnografia de seu espaço e suas imagens. Como “Não existe etnólogo sem uma partida
[...]”, a minha se passa de uma forma sutil, saindo de casa para olhar a cidade onde vivo,
em busca dos espaços privilegiados de realização da pesquisa, os arquivos públicos 224 e
privados, emaranhados com as coisas que o conformam e as pessoas que a eles estão
conectadas. O Arquivo Miyasaka está localizado na cidade de Ribeirão Preto, interior do

224
Parte das fotografias que compõem o “Jovem Miyasaka”, fazem parte do acervo fotográfico do Arquivo
Público e Histórico de Ribeirão Preto. Foi indo ao arquivo público que comecei os primeiros contatos com
a obra fotográfica de Miyasaka, despertando o interesse para conhecer e trabalhar com seu arquivo particular.
376
estado de São Paulo, foi constituído durante os cinquenta e nove anos que o fotógrafo Tony
Miyasaka225 registrou com sua câmera a cidade, sua gente e seus espaços.
Miyasaka foi um importante fotógrafo na cidade de Ribeirão Preto, sua atuação foi
múltipla tendo trabalhado em praticamente todas as etapas de produção da fotografia,
iniciou sua trajetória junto à fotografia retocando retratos junto de seu irmão mais velho
Kazuo. Após um período nessa função, não se mostrando muito talentoso com o pincel e
a tinta, assumiu a função de fotógrafo retratista para o estúdio da família, o Foto Miyasaka,
localizado na região central da cidade de Ribeirão Preto, em frente à Catedral
Metropolitana de São Sebastião um dos marcos da cidade.
A empresa da família foi inaugurada no ano de 1950, e já no ano de 1955
monopolizava os serviços fotográficos e fílmicos, filmagens de eventos sociais, em Ribeirão
Preto e na região, sobretudo a área conhecida como Alta Mogiana226. Mas sua atuação
profissional não se limitou aos trabalhos realizados dentro do estúdio, prestou serviços
fotográficos para diferentes órgãos governamentais, registrando os eventos políticos e
sociais vinculados à prefeitura e também para a perícia da polícia. Fotografou para os
principais jornais da cidade de Ribeirão Preto. Seus assuntos eram bastante variados: de
registros sociais à eventos esportivos, fotografando os jogos dos principais clubes de futebol
de Ribeirão Preto: Botafogo e Comercial. Além de inserirem na cidade e na região o
trabalho de reportagem social, que se disseminou durante a década de 1950.
O conjunto “Jovem Miyasaka” é composto pela produção fotográfica de Tony
Miyasaka realizada durante os anos de 1950 e 1960, são fotos que tematizam os principais
assuntos observados, enquadrados e capturados pela objetiva do fotógrafo ribeirão-pretano,
sobretudo acontecimentos e eventos experienciados na cidade de Ribeirão Preto. Grande
parte das fotografias, aproximadamente um terço das três mil imagens são retratos de
estúdio de pessoas importantes à época na cidade: professores da USP, políticos, grandes
empresários e fazendeiros que compunham a elite social da cidade. A outra parte das
fotografias são tomadas, paisagens urbanas de Ribeirão Preto, de suas ruas, prédios e praças
registradas pela objetiva de Miyasaka, que compõe uma espécie de projeto pessoal do
fotógrafo de documentar a cidade onde viveu. Como certa vez me contou D. Tereza, viúva
de Miyasaka, o fotógrafo tinha por hábito aos finais de semana andar pela cidade com sua
câmera (na companhia da esposa), e fotografar as ruas, prédios, e pessoas, que transitam e

225
Tony Miyasaka chegou ao Brasil com dois anos de idade, vindo do Japão. Aos treze anos sua família
emigrou do campo para a cidade, desde então Miyasaka não parou de se relacionar com a fotografia. Faleceu
no ano de 2004.
226
Corresponde à região que engloba o nordeste do estado de São Paulo.
377
habitam a região central. São várias as fotos tematizando os prédios e os espaços da cidade
em diferentes momentos, registrando as etapas de construção dos edifícios e as
transformações ocorridas na cidade, construção de ruas, pontes, escolas e etc.
Não tive que atravessar grandes distancias em busca de meus interlocutores, os
arquivos estão nas cidades em instituições públicas que guardam seus itens, e também nas
residências, muitas vezes guardados em armários e gavetas. Os arquivos permitem uma
outra espécie de viagem, não mais a que nos leva fisicamente a outro lugar, mas uma viagem
mental, através da imaginação, da memória e do esquecimento. A viagem a outros mundos
possíveis que o arquivo propicia, só se torna possível devido à característica material, de
algo que é possível manejar, dos documentos, objetos, fotografias e negativos conformando
esses arquivos, e também das narrativas possíveis de serem enunciadas a partir do contato
com esses objetos.
As relações estabelecidas e o diálogo travado com as pessoas que utilizam,
trabalham e habitam nos espaços dos arquivos são de grande importância para que as
memórias e lembranças, as histórias e detalhes, emaranhados com esses artefatos e a vida
das pessoas, possam ser acessados e evocados em forma de narrativas. As relações
estabelecidas têm, sobretudo, a imagem fotográfica como seu elo de conexão entre as
diferentes pessoas que se encontram para a realização da pesquisa. Nesse sentido, propus
pensar a imagem não apenas dentro de seus limites físicos, como o quadrado ou o
retângulo em que estão fixadas a imagem fotográfica, mas através das relações por elas
estabelecidas com o observador, e os efeitos e afetos produzidos a partir desse encontro. É
assim que busquei refletir sobre o campo de realização da pesquisa: os arquivos, além das
diferentes imagens e os interlocutores que orientam o fazer da pesquisa.
Uma das potencialidades do tratamento antropológico para o arquivo é o
estabelecimento de relações com os interlocutores que vivem uma relação íntima ou não
com o espaço do arquivo, suas imagens e a trajetória de vida e profissional do fotógrafo
ribeirão-pretano. Como coloca a antropóloga Olivia Maria da Cunha (2005), é preciso “sair
do arquivo”, ir ao encontro das pessoas envolvidas de diferentes maneiras com a produção
do arquivo, suas transformações, reorganizações, as fotos e o fotógrafo “[...] na esperança
de que partilhar um contato diverso com alguns de seus artefatos [...] instaure um outro
conhecimento sobre o passado. [...]” (CUNHA, 2005, p. 10). Esse movimento de saída do
arquivo, de não se ater apenas à lógica arquivística desses espaços ou somente se relacionar
com os documentos e os diversos artefatos em seus diferentes suportes, demonstra a
importância das pessoas envolvidas e em relação com o Arquivo Miyasaka e suas imagens

378
para o conhecimento das narrativas, histórias, memórias que envolvem o fotógrafo, o
arquivo e as fotografias.
Ir ao encontro das pessoas diretamente relacionadas com esses espaços e suas
coisas é parte do empreendimento antropológico que busca a pesquisa, é só a partir do
estabelecimento das relações com as pessoas que é possível conhecer as narrativas que
envolvem Tony Miyasaka, o arquivo e suas imagens, além de permitir que detalhes sobre
o fotógrafo e sua trajetória, o arquivo e as fotografias se apresentam ao pesquisador. Esse
processo é importante para pensar os arquivos como artefatos culturais, afinal eles são
resultado de tentativas de constituir e ordenar conhecimentos realizadas tanto pelo
produtor do arquivo, como nas intervenções dos usuários e pessoas que trabalham em sua
organização (CUNHA, 2004, p. 291).

O FOTÓGRAFO E A CIDADE

A partir da pesquisa com o Arquivo Miyasaka, foi possível contextualizar e entender


melhor a produção fotográfica de Miyasaka realizada na cidade de Ribeirão Preto durante
o período dos anos de 1950 e 1960.
Os anos 50 e 60 são considerados os “anos dourados” da cidade de Ribeirão Preto,
principalmente pela efervescência cultural que a cidade vivia, com a chegada da Faculdade
de Medicina da USP, a criação do Cine Foto Clube de Ribeirão Preto, a Criação da Escola
de Belas Artes do Bosque e a Escola de Artes Plásticas de Ribeirão Preto, além do Centro
Experimental de Cinema.
É no início dos anos de 1950 que a família Miyasaka inicia, na cidade, o estúdio
Foto Miyasaka, onde o fotógrafo começa sua carreira profissional. A fotografia entrou cedo
na vida de Miyasaka, seu início como fotógrafo se deu quando tinha dezoito e anos e a
fotografia só saiu de sua vida quando faleceu no ano de 2004. O fotógrafo sempre esteve
envolvido com a produção de imagens, sejam elas fixas ou em movimento, no ano de 1955
o estúdio Foto Miyasaka já prestava o serviço de filmagem além da fotografia de estúdios e
as reportagens sociais. Dessa forma, a produção fotográfica de Miyasaka, realizada durante
a década de 1950, está emaranhada com os movimentos clubistas, fotográficos e
cinematográficos, e com os diferentes movimentos artísticos que surgiam na cidade de
Ribeirão Preto227.

227
Tadeu Chiarelli (1980) tem um ótimo trabalho que contextualiza esse momento das artes no interior
paulista e especialmente em Ribeirão Preto.

379
Sua trajetória como fotógrafo profissional se inicia no estúdio da família: Foto
Miyasaka, localizado na região central da cidade, comando por Tony Miyasaka, seus
irmãos Kazuo, Takeshi e Tatsuo e o pai, Sakuma. O estúdio foi inaugurado no ano de
1950, uma pequena loja no andar térreo do sobrado onde residia a família Miyasaka, lá o
fotógrafo teve sua primeira função na empresa da família retocando fotografias, ofício que
aprendeu com seu irmão Kazuo. O estúdio era, e ainda é, um ponto de encontro para os
entusiastas e amantes da fotografia na cidade. Após um período nessa função, e por ser um
dos únicos membros da família que à época dominavam o português, afinal haviam
imigrados ao Brasil no início dos anos de 1940, foi alçado ao cargo de fotógrafo oficial do
estúdio para o registro de reportagens sociais e serviços fotográficos prestados aos jornais
da cidade e órgãos público, como a prefeitura, perícia e a polícia da cidade de Ribeirão
Preto.
Portanto, compreender a trajetória do fotógrafo e sua relação com os diferentes
movimentos culturais de produção de imagens se mostra de grande importância para
contextualizar a produção fotográfica de Miyasaka.
É no ano de 1950 que um grupo de amantes e entusiastas da fotografia – em sua
maioria membros da elite social, econômica e cultural da cidade - fundam na cidade o Cine
Foto Clube de Ribeirão Preto, associação cinefotoclubista de fotógrafos e cinegrafistas
amadores criada e organizada seguindo os moldes do co-irmão e precursor, Foto Cine
Clube Bandeirante localizado na cidade de São Paulo. Foi a produção realizada pelos
membros do Bandeirante, durante finais dos anos 1940 até os primeiros anos da década
de 1960, a responsável por instaurar e expandir um olhar moderno na fotografia brasileira.
Os cinefotoclubes eram importantes para a disseminação das discussões e práticas
da produção fotográfica, eram por eles que as influências de olhar moderno se
disseminavam pelas capitais do Brasil e pelas cidades do interior. Se estabeleceram como
uma grande rede, espécie de comunidade imaginária de fotógrafos amadores, onde todos
os membros estão vinculados às associações clubistas, muitas vezes participando dos
mesmos salões e transitando como jurados entre os diferentes clubes de fotografia e cinema
que se espalharam pelas cidades. É dentro desse contexto de bastante efervescência cultural
que se inicia a produção fotográfica de Miyasaka e consequentemente o seu arquivo
particular, sobretudo pela necessidade de se manter os negativos originais e, também, pelo
hábito cultural de guardar.
Miyasaka foi um importante fotógrafo na cidade de Ribeirão Preto durante os anos
de 1950 e 1960, sua atuação foi múltipla tendo trabalhado em praticamente todas as etapas

380
de produção da fotografia, iniciou sua trajetória com a fotografia retocando retratos junto
de seu irmão mais velho Kazuo. Após um período nessa função, não se mostrando muito
talentoso com o pincel e a tinta, assumiu a função de fotógrafo retratista para o estúdio da
família, o Foto Miyasaka, localizado na região central da cidade de Ribeirão Preto, em
frente à Catedral Metropolitana de São Sebastião um dos marcos da cidade. A empresa da
família foi inaugurada no ano de 1950, e já no ano de 1955 monopolizava os serviços
fotográficos e fílmicos, filmagens de eventos sociais, em Ribeirão Preto e na região,
sobretudo a área conhecida como Alta Mogiana. Mas sua atuação profissional não se
limitou aos trabalhos realizados dentro do estúdio, prestou serviços fotográficos para
diferentes órgãos governamentais, registrando os eventos políticos e sociais vinculados à
prefeitura e também para a perícia da polícia. Fotografou para os principais jornais da
cidade de Ribeirão Preto, e seus assuntos eram variados de registros sociais à eventos
esportivos fotografando os jogos dos principais clubes de futebol de Ribeirão Preto:
Botafogo e Comercial. Além de inserirem na cidade e na região o trabalho de reportagem
social, que se disseminou durante a década de 1950.
Sua atuação múltipla não se limitou apenas às fotografias, a imagem em movimento,
o cinema, também era uma das áreas de trabalho de Miyasaka, afinal o estúdio da família
já realizava filmagens desde 1955. É no ano de 1960 que Miyasaka se envolve com a criação
e produção de filmes experimentais e animações junto ao Centro Experimental de Cinema
de Ribeirão Preto – C.E.C., formado pelo fotógrafo, Waldemar Fantini – também membro
do Cine Foto Clube de Ribeirão Preto -, Bassano Vacarini – importante artista plástico -,
R.F. Lucchetti – escritor, roteirista, quadrinista -, e Milton Rodrigues – técnico de som da
rádio PRA-7.
O Centro Experimental de Cinema de Animação de Ribeirão Preto teve um
período breve de existência, mas teve uma grande produção de animações e filmes
experimentais - durante os anos de 1960 a 1963 foram realizados quinze filmes - e ainda
manteve suas atividades exibindo filmes e organizando festivais até o ano de 1965, quando
encerram as atividades.
O principal deles foi o 1° Festival Internacional do Cinema de Animação realizado
no Museu de Arte de São Paulo junto à VIII Bienal de Arte. Em 1962 foi organizado o
Festival do Cinema de Animação no Museu de Arte Moderna de São Paulo, cuja
programação homenageava o cinema de animação infantil, experimental e publicitário,
parte da programação encontrei no Arquivo Miyasaka.

381
Do encontro entre Miyasaka, e os outros quatro membros do Centro Experimental
de Cinema, foram produzidos sete filmes de animação e experimentais228: Cosmos (1961);
Catedralle (1962); Tourbillon (1961) ; Viagem à Lua (1961); Painel Abstrato (1962);
229

Imagens (1962) e Variações sobre um tem de Miró (1962), em todos os elencados acima
Tony foi o responsável pela filmagem e direção de fotografia230, Lucchetti ainda lembra em
depoimento para o filme: A animação de Lucchetti e Vaccarini, 2016, dirigido por
Maurício Squarisi, que Miyasaka teve um papel importante nas filmagens e
experimentações com a câmera, por exemplo para o filme Viagem a Lua quando em
determinado momento de dificuldade para criarem o solo lunar, o fotógrafo resolveu o
problema filmando o doce de banana que a esposa de R. F. Lucchetti cozinhava em sua
casa.
Como lembra Lucchetti, a maioria das produções do Centro Experimental de
Cinema foram realizadas em sua própria residência, uma casa assobradada na região
central da cidade, rua Marechal Deodoro, n° 385, e custeadas de seu próprio dinheiro.
Mesmo após o convite da Escola de Artes Plásticas para ocuparem um espaço da escola
para o C.E.C., eles continuaram a trabalhar na casa de Lucchetti, no estúdio do Miyasaka,
em salas cedidas pela USP. Não tinham um espaço adequado que pudessem usar como
sede para o Centro Experimental de Cinema.
É importante notar que o Centro Experimental de Cinema recebeu bastante
reconhecimento fora do Brasil graças aos esforços de Lucchetti em tornar pública as
produções que realizavam. Foi publicado no ano de 1962 em Portugal através do Serviço
de Propaganda e Expansão Comercial – SEPRO, da embaixada brasileira, uma matéria
intitulada: “Ribeirão Preto: centro do cinema de animação do Brasil”, escrita por Vasco
Granja. No ano de 1963, em Lisboa, Portugal, foi organizada uma exposição: “I Exposição

228
Algumas animações eram desenhadas nos negativos fílmicos e só se sabia o resultado obtido ao projetar o
filme revelado, também produziam animações quadro a quadro, e filmes em que experimentavam novas
linguagens, modificações nas lentes, formas diferentes de filmagem. Lucchetti lembra que no filme Imagens,
produzido por Miyasaka e ele, eles fizeram algumas intervenções na objetiva da câmera para filmar cenas da
cidade. Os filmes de animação desenhados diretos no negativo, eram inspirados pelo cinema do britânico
Norman McLaren.
229
De acordo com R. F. Lucchetti, em conversa realizada em sua residência no dia 14/02/2017, o filme
Tourbillon participou do festival francês de animação: a Vº Jounées Internacionale du Cinema d’Animation
- Annecy, 1963 e recebeu o prêmio “Fotograma de Ouro” - Prêmio Oficial do Conselho Nacional de
Cineclubes, ao Melhor Filme de Categoria Experimental. Outra curiosidade a respeito deste filme, a direção
de fotografia em informações da Cinemateca é de Tony Miyasaka, para o Jornal do Cinema, n°14, é de
382de filmagem desse filme encontradas com Lucchetti,
Waldemar Fantini. Acredito, segundo fotos do processo
que eles eram fotografados e filmados em parceria entre os dois fotógrafos. O importante é o empenho e
interesse de cinco pessoas no interior do estado de São Paulo atuando na vanguarda da animação brasileira.
230
Dados encontrados em pesquisa na base de dados da Cinemateca brasileira, no catálogo sobre Filmografia
Brasileira (FB). Nela foram encontradas quatro fichas catalográficas dos filmes citados. As informações dos
outros filmes foram obtidas junto ao Jornal do Cinema, Ano 4 - nº 14 - outubro/dezembro de 2012.
Documental do Cinema de Animação”, realizada no Cine Império, onde foi exposto uma
grande documentação a respeito do centro localizado em Ribeirão Preto. Além disso
participaram do festival de animação de Annecy, na França, e vários salões organizados no
Brasil, pelo Cine Foto Clube Bandeirante entre outros, foram também convidados, em
1962, a participarem do festival de Cannes231 com suas produções relacionadas ao Centro
Experimental.
É durante a década de 1950, segundo Helouise Costa (2005), que marca o
momento de afirmação da fotografia como meio de expressão autônomo. É nesse período
que surge e se desenvolve a Escola Paulista de fotografia, termo cunhado pela crítica
especializada do período para designar a produção fotográfica do Foto Cine Clube
Bandeirante e de seus fotógrafos associados. Os principais expoentes da Escola Paulista
foram: Eduardo Salvatore, Marcel Giró, Roberto Yoshida, Gertrudes Altschul, Ademar
Manarini, Gaspar Gasparian, Ivo Ferreira da Silva e João Bizarro Nave Filho. (COSTA;
SILVA, 2004, p. 49-50). Há nesse período uma exploração das propriedades da imagem
fotográfica, através da experimentação com os enquadramentos, geometrização dos temas
fotografados, a exploração dos jogos de luz e sombra, próprios à imagem fotográfica, e a
quebra das regras clássicas de composição e do processo fotográfico tradicional.

A Escola Paulista lançou-se com avidez sobre a cidade de São Paulo em


vias de modernização: estações de trem, maquinarias, automóveis,
túneis, placas de trânsito, postes, bueiros, muros, calçadas e exemplares
da arquitetura moderna prestaram-se a composições assimétricas,
construídas a partir de uma rigorosa geometria (COSTA, 2005, p. 06).

Há, então, uma tentativa de se diferenciar do pictorialismo academicista através de


uma expressão fotográfica moderna, aliando um olhar e uma linguagem juntas a uma
expressividade moderna, principalmente nos temas e assuntos abordados pelos fotografos
na construção das imagens. Segundo Helouise Costa (2005), é possível determinar algumas
características gerais da Escola Paulista de fotografia, nas palavras da autora: “(...) As
composições são rigorosas, os enquadramentos precisos e a luz é o elemento construtor
que cria espaço em meio à escuridão. A cidade é o principal foco de interesse, mas
frequentemente são seus fragmentos que tomam o lugar do todo. (...)” (p. 08). A produção
fotográfica realizada no contexto do Foto Cine Clube Bandeirante era veiculada através de

231
Informação encontrada em recorte de jornal fornecida por R. F. Lucchetti e publicada no jornal o Estado
de São Paulo no dia 192/02/1962.

383
seu Boletim Foto Cine, que tornava acessível a outros Cinefotoclubes o conhecimento
dessa produção fotográfica moderna.
Esse olhar moderno na fotografia não foi o único praticado no contexto fotoclubista
brasileiro, ao mesmo tempo em que ocorreu uma produção intensa nessa área a fotografia
de orientação academicista também era muito difundida entre os membros dos fotoclubes,
afinal era tido como algo positivo a convivência entre diferentes orientações estéticas na
produção fotográfica do período.
A fotografia produzida no contexto do Foto Cine Clube Bandeirante não foi, dessa
maneira, de orientação estritamente moderna. Dessa forma alguns fotógrafos inseridos
nesse contexto produziam suas fotografias mesclando a fotografia de orientação clássica
com a outra de orientação moderna, dentre esses fotógrafos estão: José Yalenti, Guilherme
Malfatti, Gaspar Gasparian e Ludovico Mungiolli. A Escola Paulista marcou o período de
auge da produção fotográfica moderna brasileira, influenciando através da rede de
fotocineclubes seus ideais para o interior do estado de São Paulo. A Escola Paulista, ainda
se perpetuou nos anos finais da década de 1950 através da estética moderna influenciada
pela linguagem do fotojornalismo. No contexto da produção fotográfica do FCCB, a Escola
Paulista teve sua diluição no final dos anos 1950 e início dos anos de 1960, quando o
próprio Foto Cine Clube Bandeirante academiciza a linguagem moderna através de seus
concursos internos (COSTA; SILVA, 2004, p. 68-69).

CONCLUINDO

(Re)Conhecer a trajetória de Tony Miyasaka através da experiência no e com seu


arquivo, as imagens e as pessoas, permite contextualizar sua importância através de sua
múltipla atuação como produtor de imagens do período dos anos de 1950 e 1960, junto
aos coletivos que se reuniam em torno do interesse para produção de imagens (Cine Foto
Clube de Ribeirão Preto e centro Experimental de Cinema), seja em fotografia ou cinema,
que aconteciam em Ribeirão Preto nas décadas de 1950 e 1960. Parte de sua produção e
de sua trajetória se mistura e se confunde com a expansão e democratização da fotografia
em Ribeirão Preto – nos anos de 1970 junto com Nilson Maestre funda o curso de
fotografia, ativo até hoje -, sua produção se mistura com os movimentos fotográficos em
voga no período.
A mim me parece, e assim arisco em afirmar, que Tony Miyasaka apresenta em
determinados momentos esse olhar moderno na construção de suas fotografias, mas não

384
sem produzir fotos de uma orientação mais clássica-acadêmica, ou seja sua produção
transita entre as duas vertentes da fotografia, mas sempre procurando pensar o contexto de
sua experiência de vida.
Portanto, nas palavras de Howard Becker: “Como todos objetos culturais, as
fotografias ganham sentido a partir de seu contexto. [...]” (2009, p. 190), penso que com os
arquivos também se passa a mesma coisa, dessa forma compreender o contexto em que
está inserida a produção do fotógrafo, sua trajetória profissional e de vida ajuda entender e
analisar sua obra.

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arte e sociedade num município do interior paulista. São Paulo: USP, 1980. (Relatório
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Vanguarda e Modernidade nas Artes Brasileiras. 2005, Campinas. Escola Paulista de
Fotografia: uma vanguarda possível? Campinas: Cadernos de Pós-Graduação: Instituto de
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PEIXOTO, Clarice Ehlers. Les Archives de la Planète: imagens da coleção Albert Kahn.
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SCHWARCZ, Lilian Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. 1.


Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

386
RITOS E HIERARQUIAS: UMA FOTOETNOGRAFIA DOS RITUAIS
ESCOTEIROS

Marianna Lahr FAUSTINO232

INTRODUÇÃO

No inicio do ano de 2016 iniciei meu mestrado em Antropologia Social na


Universidade Federal de São Carlos, minha pesquisa é pautada na estrutura hierárquica do
movimento escoteiro e também nos rituais desenvolvidos por seus membros. Neste texto
pretendo expor uma pequena parcela da pesquisa etnográfica que venho desenvolvendo
juntamente com o Grupo Escoteiro São Carlos desde o mês de fevereiro de 2017. Como
meu trabalho de campo, bem como minhas leituras ainda se encontram em andamento,
as próximas paginas serão dedicadas a uma visão mais geral da pesquisa e na forma que
pretendo organizar a escrita da dissertação
O movimento escoteiro foi fundado pelo general do exercito inglês Robert Baden-
Powell no ano de 1907, após a publicação do livro “escotismo para rapazes” e do
acampamento experimental realizado na ilha de Brownsea. Tanto na minha dissertação
como neste texto o escotismo será abordado por meio de seu anseio de integrar crianças e
jovens com técnicas de exploração e conduta próprias dos militares. Para destacar esta
integração entre o militarismo advindo de seu fundador e a forma como este é posto em
pratica pela juventude brasileira contemporânea lanço luz a estrutura hierárquica própria
do movimento: o sistema de patrulhas.
O sistema de patrulhas nada mais é do que a forma organizacional que o
movimento escoteiro se vale para delimitar a hierarquia entre pares etários, nele temos a
patrulha escoteira, um agrupamento juvenil formado por entre cinco ou seis jovens sob a
liderança do monitor. O monitor escoteiro se destaca dos demais devido à posição que
ocupa nesta hierarquia entre pares etários, ele é o responsável não apenas pela manutenção
da ordem da patrulha, como também por carregar a bandeirola que a representa, sua
posição a frente da patrulha é fundamental, ele é o exemplo a ser seguido, o líder a frente
dos demais. O segundo na cadeia de comando é o submonitor e os demais jovens recebem
o nome de elementos.

232
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGAS) da Universidade Federal de São
Carlos (UFSCar), marianna.lahr@gmail.com

387
Os membros juvenis do movimento escoteiro brasileiro são divididos em quatro
ramos etários: ramo lobinho (6,5 anos a 10 anos), ramo escoteiro (11 a 14 anos), ramo
sênior (15 a 17 anos) e ramo pioneiro (18 a 21 anos). Já os adultos voluntários, com idade
a partir de 22 anos, são os escotistas ou chefes. Apenas os ramos escoteiro e sênior possuem
a estrutura organizacional do sistema de patrulhas, e este será o recorte etário desta
pesquisa. O movimento escoteiro como fundado por Baden-Powell era voltado apenas aos
rapazes, já o escotismo brasileiro abarca meninos e meninas. As patrulhas do Grupo
Escoteiro são mistas e recebem nomes de animais no ramo escoteiro e tribos indígenas no
ramo sênior, sendo assim em minha pesquisa dou conta de acompanhar as atividades dos
agrupamentos juvenis que se denominam como: Lobo, Coala, Lince, Quati e Krahô.
Meu trabalho de campo consiste em acompanhar a rotina destas cinco patrulhas
durante o ano de 2017, neste processo me utilizo do método da fotoetnografia (ACHUTI,
1997) e busco contribuições em trabalhos já desenvolvidos nas áreas da antropologia dos
militares (CASTRO; LEIRNER, 2009) e juventude (CARDOSO; SAMPAIO, 2005).
Elenquei os rituais escoteiros como forma de adentrar nesse cotidiano escoteiro e me
aproximar dos jovens, e dentre uma infinidade de ritos e cerimonias delimitei quatro
momentos para meu estudo: cerimonia da bandeira, cerimonia da promessa, passagem de
ramo e fogo de conselho.
Como forma de deixar minha exposição sobre o tema mais clara dividi este texto
em três partes: Primeiramente uma ênfase no ritual da bandeira, momento em que o
militarismo do movimento escoteiro se torna mais latente. Em seguida o ritual da
promessa, apresentado aqui como um ritual de iniciação do escotismo. E por fim, a
cerimonia da passagem de ramo, o rito realizado pelos membros juvenis de 15 anos. O
ritual do fogo de conselho que acontece todo fim de acampamento em volta da fogueira
não será apresentado aqui pois o texto que o aborda ainda se encontra em estagio
embrionário. Por fim reservo um espaço para algumas fotos que recebem grande
importância nesta pesquisa.

BANDEIRA

Minha pesquisa busca contribuir aos estudos desenvolvidos pela “antropologia dos
militares” (CASTRO; LEIRNER, 2009), e dentre todos os recortes e abordagens que meu
estudo proporciona sempre me foi nítido que não haveria momento mais propenso para
trazer a tona o passado militar da fundação do escotismo do que a cerimonia da bandeira.

388
É durante o hasteamento e arriamento do pavilhão nacional que a “militarização da
infância” (SOUZA, 2000) proporcionada pelo método escoteiro ganha forma e salta aos
olhos. O posicionamento de cada escoteiro diante do mastro, a saudação e a conduta
corporal servirão como caminho para minha descrição etnográfica.
O Grupo Escoteiro São Carlos possui quatro patrulhas do ramo escoteiro, que se
posicionam em uma formação similar a uma ferradura de cavalo. A orientação se faz em
sentido horário, ou seja, partindo da base direita do mastro até a base esquerda, a primeira
e a ultima patrulha formam uma linha reta, enquanto que a segunda e a terceira se
posicionam em curva. A ordem das patrulhas nesta formação é sempre a mesma: Lobo,
Coala, Lince e Quati.
Também existe uma regra de posicionamento de cada elemento no espaço de sua
patrulha, assim como a primeira patrulha é sempre a Lobo e a ultima sempre a Quati cada
patrulha sempre começa por seu monitor e termina no seu submonitor. O monitor é o
líder da patrulha, quase sempre o escoteiro ou sênior mais velho, ele é o responsável por
carregar a bandeirola e sempre deve estar à frente dos demais membros juvenis, seja na
formação em ferradura seja numa fila indiana. Ao lado esquerdo do monitor seguem os
demais elementos sempre pautando seu lugar ao tempo de movimento, os que aderiram
mais recentemente ao escotismo ficam mais próximos do líder da patrulha. Por fim o
ultimo jovem da patrulha é o submonitor e a sua esquerda se inicia a próxima patrulha,
sempre seguindo a mesma lógica.
Logo atrás da formação em ferradura feita pelos escoteiros são posicionados os
membros juvenis do ramo sênior, por possuir apenas uma patrulha eles são seguidos pelos
membros do clã pioneiro, formando uma linha meio curva que acompanha a já delimitada
pelas patrulhas Coala e Lince. O posicionamento interno da patrulha segue a mesma lógica
já exposta pelos escoteiros: monitor, elementos e submonitor. Por fim a alcateia dos
lobinhos forma um círculo no interior da ferradura dos escoteiros, também segundo uma
lógica de posições marcadas. Os chefes se posicionam atrás do mastro, formamando uma
linha, não parece existir uma ordem especifica para a ocupação do espaço, não sendo raro
os momentos em que eles trocam de posições, mas, em via de regra, quase sempre chefes
de um mesmo ramo tendem a ficar mais próximos.
Eu enquanto pesquisadora e principalmente enquanto fotografa que sempre regista
todas as cerimonias de hasteamento e arriamento tenho a liberdade para ocupar o espaço
ao redor das formações, minha circulação é livre e determinada pelos enquadramentos que
minha câmera exige. Círculo por de trás da linha formada pela tropa sênior e pelo clã

389
pioneiro, por vezes me aproximo das pontas da direita, próximo ao monitor da patrulha
Lobo ou da esquerda onde está a submonitora dos Quatis. Também tenho liberdade para
ficar entre os chefes e por vez ou outra, e isso muito raramente, me esquivo por entre os
escoteiros e chego próximo aos lobinhos que estão no centro da formação.
A cerimonia da bandeira é um rito cotidiano do movimento, realizado sempre no
começo e no fim de uma atividade escoteira, seja ela social (na sede do grupo) ou mateira
(no campo), e consiste basicamente em saudar, com os dedos indicador, médio e anelar
da mão direita estendidos e unidos na altura da testa (BRASIL, 2013), a bandeira nacional
a subir ou a descer do mastro, com o corpo estático numa postura ereta. Uma saudação ao
pavilhão nacional, um corpo em posição firme e um comprometimento de serviço à pátria,
aqui temos o escoteiro como um explorador em tempos de paz (BADEN-POWELL,
1990) em um ritual eu abarca “simbolismo, moralidade e estrutura” (TURNER, 2005).
O chefe responsável pela cerimonia convoca dois voluntários para hastear a
bandeira. Os membros juvenis dispostos a participar do ritual levantam a mão e ficam a
espera de serem convocados pelo chefe, por acompanhar diversas vezes este ritual no
Grupo Escoteiro São Carlos pude notar que os voluntários são quase que sempre os
mesmos. Devido ao seu grande número de jovens é corriqueiro que um dos voluntários
seja da tropa escoteira dente de sabre, ao ponto que tanto os sênior e guias quanto os
membros do clã pioneiro quase nunca se dispõem voluntariamente.
Até mesmo para se dirigir ao mastro é necessário seguir algumas normas de
conduta, após a decisão do chefe de qual membro juvenil fara o ritual e necessário que ele
deixe a formação, ou seja, saia de sua patrulha de forma orientada, ritualizada e com a
autorização do monitor. Neste caso o monitor orienta a patrulha para que fique em firme,
o elemento que necessita sair da formação então se direciona ao monitor e solicita
“permissão para sair da patrulha” o monitor então concede “permissão concedida” os dois
se cumprimentam com um sempre alerta e uma saudação e somente assim o jovem se
direciona ao mastro, enquanto seu monitor posiciona a patrulha em descansar novamente.
Caso o voluntario seja o próprio monitor, este deve passar a bandeirola a seu submonitor,
para que possa seguir ao mastro com as mãos livres. Neste caso ele convoca o seu monitor,
a patrulha se posiciona em firme, a saudação ocorre, a bandeirola passa das mãos do
monitor para as mãos de seu submontior e somente assim ele pode seguir ao mastro.
Quando os dois voluntários chegam diante do mastro é necessário que verifiquem
a posição correta da bandeira, já que essa não pode subir de ponta cabeça. Também é
necessário tomar cuidado para que a bandeira não encoste no chão. Um dos jovens então

390
se posiciona rente ao mastro enquanto o outro, com abandeira nas mãos caminha até o
centro da formação, ou seja, para o meio do círculo formado pelos lobinhos. Neste
momento é possível visualizar que os três elementos fundamentais do ritual formam, os
dois jovens e o topo do mastro um triangulo retângulo. O ângulo reto se encontra na mão
do jovem que esta na base do mastro e a bandeira será hasteada seguindo a corda que se
forma na hipotenusa, entre o jovem na ponta e o topo do mastro.
O jovem da ponta é o responsável por comandar a ritual neste momento, somente
quando percebe que o triangulo se fez, que a bandeira não esta de ponta cabeça é que
informa: “chefe, bandeira nacional pronta”. Neste momento o chefe comanda: “atenção,
firme!” Todos ficam com o corpo ereto, as pernas juntas e os braços rente ao corpo. Nisso
recebem o segundo comando: “bandeira em saudação”, todos saúdam a bandeira, lobinhos
com dois dedos e os restantes com três. Somente neste momento a bandeira começa a
subir. Os olhos de todos acompanham seu caminho pela hipotenusa, até que atinja o topo
do mastro. Somente os membros que ainda não realizam a promessa é que ficam em firme,
eles só podem saudar a bandeira depois que realizarem o ritual de iniciação, depois do
juramento. Assim que a bandeira atinge o topo do mastro o chefe orienta a todos que
fiquem em posição firme e logo depois em descansar.
O jovem que estava na ponta então caminha até o jovem que esta na base do mastro,
para que posam amarrar a corda de forma a que a bandeira não desça do topo, ela
permanecerá lá até o fim da atividade. Após darem um nó na corda e se certificar de que
tudo esta correto os dois jovens se direcionam até o meio da formação e realizam o seguinte
procedimento: firme, saudação a bandeira, firme, descansar aos lugares. Esse
procedimento é comandado por um dos dois jovens, neste caso o mais velho em tempo
de movimento escoteiro. Todo o restante da formação já se encontra em posição de
descansar, os dois jovens se direcionam a suas respectivas patrulhas e, novamente, é preciso
seguir outra norma para retornar aos seus lugares iniciais. Assim como na saída, para entrar
também é necessária a autorização do monitor. O arriamento da bandeira segue a mesma
logica do hasteamento, com a mesma formação, a mesma saudação e as mesmas ordens
de comando.
Qualquer atividade escoteira só começa oficialmente quando a bandeira nacional
atinge o topo do mastro, e só termina que ela desce. A bandeira no topo do mastro acaba
então demarcando a temporalidade das atividades escoteiras, seja por duas horas que é o
tempo médio das atividades semanais, seja por três dias como no caso dos acampamentos.
Além de uma demarcação temporal e bandeira também demarca o espaço da atividade

391
escoteira, seja em suas sedes de campo ou social, seja no campo de em acampamento ou
até mesmo em uma praça da cidade. É como se a bandeira no topo do mastro representasse
que mesmo o local sendo público, naquele momento ele passa a ser o território dos
escoteiros.

PROMESSA

A cerimonia da bandeira que acabei de apresentar é o primeiro ritual desenvolvido


por um escoteiro logo que adentra de forma voluntaria ao movimento. Logo que o jovem
adentra a sede do Grupo Escoteiro motivado pelos amigos, família ou até mesmo por mera
curiosidade ele já se vê convidado a participar do hasteamento e arriamento da bandeira
nacional, mas isto não significa que ele já seja um escoteiro. Um jovem só passa a fazer
parte do que os escoteiros denominam como “fraternidade mundial” após o ritual da
promessa. O ritual da promessa se consolida, então, como um ritual de iniciação ao
escotismo.
Durante a cerimônia da bandeira os membros dos ramos escoteiro e sênior saúdam
o pavilhão nacional com três dedos da mão direita esticados e posicionados na altura da
testa, essa saudação é efetuada por todos que já realizaram sua promessa, os novos
elementos que ainda não passaram por este ritual permanecem apenas na posição de firme.
Como já disse um pouco antes neste texto os elementos de uma patrulha possuem lugares
marcados na formação, e o membro mais novo está sempre a esquerda do monitor da
patrulha, esse posicionamento é de suma importância para que o jovem possa receber as
orientações de seu líder de como se portar nas cerimonias.
Na promessa o novo membro juvenil tem, pela primeira vez, seu pescoço envolto
pelo lenço do seu grupo escoteiro, e por meio de um juramento, passa a integrar as
“fronteiras de pertencimento” (LEIRNER, 1997), a uma fraternidade em nível mundial,
uma instituição a nível nacional, um grupo em nível local, a uma tropa em nível etário, e
por fim a uma patrulha. Logo após sua primeira atividade escoteira o novo elemento passa
alguns meses no período introdutório, momento em que os chefes e o monitor da patrulha
auxiliam o jovem a se integrar ao escotismo. Durante estes meses o novo escoteiro realiza
pesquisas sobre a fundação do movimento, sobre as atividades desenvolvidas pelo grupo,
aprende os nós básicos e coisas corriqueiras as atividades escoteiras como montar uma
barraca ou se orientar por uma bussola. Somente após estas primeiras instruções é que ele

392
está apto a realizar a promessa e receber o lenço de seu Grupo, neste caso o lenço do
Grupo Escoteiro São Carlos, um lenço verde com bordas nos tons amarelo e azul escuro.
Cada Grupo Escoteiro possui um lenço que lhe particular e único, mesmo que as
cores de lenços de Grupos diferentes se repitam, o brasão, numeral e nome são exclusivos.
Os lenços são entregues aos jovens escoteiros durante a cerimônia aqui apresentada, onde
por meio de um ritual e de um juramento se comprometem a ter a lei e a promessa
escoteira como deveres e valores para suas atitudes e sua conduta dali em diante, não
apenas nas atividades escoteiras, mas em todo o seu cotidiano. Um escoteiro sempre tem
um lenço envolvendo seu pescoço, e esse lenço deve ser sempre o do grupo no qual
realizou sua promessa e onde aderiu de forma voluntaria ao escotismo.
Durante o período introdutório o escoteiro é apresentado a lei escoteira e ao
juramento da promessa, elementos fundamentais não apenas para este ritual como para
todo o seu período no movimento. A lei escoteira nada mais é do que um código de
conduta que pretende condicionar as ações dos membros juvenis e adultos do escotismo,
esta lei é dividida em dez artigos: 1) O escoteiro tem uma só palavra, sua honra vale mais
que sua própria vida, 2) O escoteiro é leal, 3) O escoteiro está sempre alerta para ajudar o
próximo e praticar diariamente uma boa ação, 4) O escoteiro é amigo de todos e irmão
dos demais escoteiros, 5) O escoteiro é cortês, 6) O escoteiro é bom para os animais e
plantas, 7) O escoteiro é obediente e disciplinado, 8) O escoteiro é alegre e sorri nas
dificuldades, 9) O escoteiro é econômico e respeita o bem alheio, 10) O escoteiro é limpo
de corpo e alma.
Antes de proferir o juramento da promessa o chefe responsável pelo ritual solicita
ao jovem que escolha um destes dez artigos que considere o mais importante. Os escoteiros
devem sempre saber os artigos da lei escoteira, já que são eles que norteiam suas ações,
por diversas vezes em jogos ou até mesmo em conversas corriqueiras os chefes costumam
perguntar a respeito da lei, como forma de comprovar o conhecimento dos jovens sobre o
assunto, não lhes é solicitado saber a ordem correta ou até mesmo que sempre tenham os
dez artigos na ponta da língua, mas sim que saibam o que eles significam e que os levem
como valores a serem seguidos não apenas no escotismo e sim em todo o seu cotidiano,
seja na escola ou na família. Em outras palavras, é pretendido que o escoteiro seja ante de
tudo horado, leal, prestativo, fraterno, cortês, ecológico, obediente, alegre, econômico e
puro.
A promessa é realizada no mesmo espaço e na mesma formação da bandeira, sendo
assim acaba quase sempre ocorrendo logo depois que a bandeira atinge o topo do mastro,

393
ou poucos minutos antes que ela desça. A formação é a mesma, com a círculo dos lobinhos,
a ferradura dos escoteiros e as linhas dos chefes, sêniors e pioneiros. A cerimonia se inicia
com o chefe responsável convocando o monitor e o novo elemento para o centro da
formação. O novo escoteiro se posiciona no centro do círculo dos lobinhos logo à frente
do chefe.
Todos são orientados a permanecer em posição de firme. O chefe solicita ao jovem
que lhe diga o artigo da lei escoteira com o qual se identifica e pede que justifique, nas
cerimonias que acompanhei no Grupo Escoteiro São Carlos as escolhas foram desde a
lealdade, perpassando pelo cuidado com a flora e a fauna e abarcando inclusive a pureza
de corpo e alma. Feita a escolha do artigo da lei chega a hora do juramento, o chefe então
convoca todos a realizar o sinal de promessa. O sinal de promessa compreende em esticar
os três dedos da mão direita de forma similar ao feito na saudação a bandeira, mas neste
caso não rente a testa e sim diante do peito. Todos os escoteiros que já tiverem efetuado
suas promessas reproduzem o gesto juntamente com o novo membro juvenil, os que ainda
não passaram por este ritual permanecem em posição de firme. Chega então a hora do
juramento.
O juramento proferido na cerimônia da promessa é o seguinte: “Prometo, pela
minha honra, fazer o melhor possível para: cumprir meus deveres para com Deus e minha
Pátria; ajudar o próximo em toda e qualquer ocasião; e, obedecer à Lei Escoteira”. Este
juramento traz a tona os deveres do escotismo, para com Deus, a pátria e o próximo, por
meio dele o escoteiro se compromete a ajudar os demais e a obedecer os dez artigos da lei.
Normalmente este juramento é proferido pelo chefe o escoteiro apenas repete suas
palavras, durante meu trabalho de campo esta foi a regra em quase todas as cerimonias.
Feito o juramento o escoteiro tem seu pescoço envolto pelo lenço de seu grupo para
primeira vez, e somente assim passa a pertencer a fraternidade mundial do movimento
escoteiro. Além do lenço recebe também um distintivo com uma flor de lis bordada para
ser usado no bolso direito do seu uniforme. Lenço e distintivo são entregues pelo chefe
seguidos de abraços e felicitações. Este ritual costuma durar poucos segundos a mais do
que a cerimonia da bandeira e é comum que ao seu fim o novo elemento seja saudado por
todos os demais com uma palma escoteira.

394
PASSAGEM

Antes de apresentar minha etnografia sobre o ritual da passagem de ramo é


necessário explicar o que estes ramos realmente são e principalmente quais as diferenças
entre eles. Como já apresentei de forma breve na introdução deste texto o escotismo
brasileiro se encontra dividido em quatro ramos etários: lobinho, escoteiro, sênior e
pioneiro. Cada divisão etária compreende uma forma especifica de realizar as atividades e
auxiliar na autonomia dos escoteiros.
O ramo lobinho é mais voltado para atividades lúdicas, sempre tendo a história de
Mowgli e dos animais da floresta como plano de fundo. Já no ramo escoteiro a ênfase se
dá nas técnicas mateiras, é neste momento que aprendem os nós, as amarras, a montar
barracar, ler mapas e se orientar por bussolas. Aventura, desafio e superação dos limites
são o foco do ramo sênior, suas atividades principais são escalas, jornadas mais longas,
acampamentos com redes e lonas no lugar das barracas, e descer um rio em uma jangada
construída apenas com bambus e cordas. Por fim, o ramo pioneiro direciona suas
atividades a comunidade, realizando campanhas de arrecadação de alimentos, visitas em
asilos e hospitais, e também propondo projetos que possibilitem melhorar as condições de
vida de moradores de rua.
Existem três momentos de passagem entre os ramos juvenis. O primeiro quando o
jovem completa onze anos e passa da alcateia dos lobinhos para tropa dos escoteiros; o
segundo, aos quinze, marca o momento que o escoteiro ou escoteira se torna um sênior
ou uma guia; e finalmente aos dezoito anos o jovem deixa de pertencer ao ramo sênior
para se tornar um pioneiro. Como minha pesquisa visa destacar o sistema de patrulhas e
esta estrutura hierárquica é encontrada apenas nos ramos escoteiro e sênior meu trabalho
de campo foi pautado em etnografar apenas ritos de passagem desenvolvidos por jovens
de quinze anos, momento em que deixam de pertencer a uma patrulha com nome de
animal para se tornar membro de um agrupamento juvenil que carrega uma tribo indígena
em sua bandeirola.
Assim como temos um período introdutório que antecede o ritual da promessa o
ritual da passagem também se inicia antes da cerimônia propriamente dita.
Aproximadamente seis meses antes de completar quinze anos o jovem do ramo escoteiro
já começa a participar das atividades especificas do ramo sênior, ainda sem deixar de lado
sua patrulha escoteira. Neste momento ele se divide entre os dois ramos e
consequentemente entre as duas patrulhas, este intercâmbio entre um agrupamento etário

395
e o outro normalmente é organizado de forma conjunta em diálogos pontuais entre o
escoteiro ou escoteira prestes a passar de ramo e os chefes responsáveis por cada tropa.
Este momento recebe o nome de “Trilha”. Durante meu trabalho de campo tento realizar
comparações entre a cerimonia da promessa e o ritual da passagem de ramo entendendo
este como um “rito de iniciação em classe de idade” (VAN GENNEP, 2011). Além disso
destaco o período de trilha como uma “fase liminar” (TURNER, 2005) do membro juvenil
do movimento escoteiro.
A cerimonia da passagem propriamente dita ocorre pouco antes ou pouco depois
do aniversário de quinze anos do membro juvenil, e diferentemente das cerimonias da
bandeira e da promessa neste caso não existe uma forma especifica e demarcada para que
o ritual ocorra. Em via de regra os ritos de passagem quase sempre implicam em ultrapassar
algum obstáculo ou uma serie deles, no caso especifico das passagens que acompanhei em
meu trabalho de campo o circuito de obstáculos foi ultrapassado com os olhos vendados e
em meio aos gritos ensurdecedores dos demais membros da patrulha Krahô.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Obviamente minha descrição destes rituais escoteiros neste momento foi bem
básica, simples e sem maiores detalhes, existem muito pormenores que acabei deixando
de lado, mas creio que mesmo de forma breve tenha sido possível compreender a
importância destas cerimonias e como elas se integram ao estudo da hierarquia do sistema
de patrulhas. Na minha dissertação pretendo agregar os detalhes não expostos aqui, incluir
falas dos próprios jovens a respeito dos rituais bem como ampliar o diálogo com as
produções antropológicas nas áreas dos estudos com militares, juventudes, rituais e
antropologia visual.

REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: Um estudo de antropologia visual


sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial, 1997.

BADEN-POWELL, Robert Stephensen Smith. Escotismo para rapazes: Um manual de


instrução de boa cidadania por meio das artes mateiras. Brasília: Editora Escoteira, 1990.

BRASIL, União dos Escoteiros do. Princípio, Organização e Regras. Curitiba: UEB/DN,
2013.

396
CARDOSO, Ruth; SAMPAIO, Helena. Bibliografia sobre juventude. São Paulo: Edusp,
1995.

CASTRO, Celso; LEIRNER, Piero de Camargo (Orgs). Antropologia dos militares:


reflexões sobre pesquisa de campo. Rio de Janeiro: FGV, 2009.

COLLIER JR., John. Antropologia visual: a fotografia como método de pesquisa. São
Paulo: EPU/Ed.da USP, 1983.

DA MATTA, Roberto. Carnavais Malandros e Heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

DAWSEY, John. Sismologia da performance: ritual, drama e play na teoria antropológica.


Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, n 2, 2007.

LEIRNER, Piero de Camargo. Meia-Volta, Volver: um estudo antropológico sobre a


hierarquia militar. Rio de Janeiro: FGV, 1997.

___________. O sistema da guerra: uma leitura antropológica dos exércitos modernos.


São Paulo, USP, 2001, tese de doutorado.

PEIRANO, Mariza. Rituais ontem e hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

SOUZA, Rosa Fatima de. A militarização da infância: expressões do nacionalismo na


cultura brasileira. Caderno Cedes, ano XX, nº 52, novembro/2000.

TURNER, Victor. Floresta de Símbolos. Aspectos do Ritual Ndembu. Niterói: EdUFF.


2005.

397
NOTAS SOBRE ESCRAVIDÃO NO BOLSÃO
SULMATROGROSSENSE (1838-1888)

Alexandre de CASTRO 233

Douglas Willians dos SANTOS 234

Resumo: A apresentação desta comunicação trata do desenvolvimento de projeto de pesquisa com


objetivo central de recuperar, analisar e interpretar aspectos da história da escravidão contida nos
registros e notas do Serviço Notarial e Registral do Primeiro Ofício do Município de Paranaíba,
Estado de Mato Grosso do Sul. A elaboração dessa formulação tornou-se possível em virtude do
levantamento de dados contidos nas fontes consultadas durante o desenvolvimento de pesquisa na
sede do Cartório realizada entre os anos de 2012 a 2014, onde foram localizadas e analisadas 09
Doações de escravos, 01 Distrato de venda de escravo, 01 Alvará de liberdade, 153 Compras e
vendas de escravos, 06 Revogações de carta de liberdade, 01 Recibo de compra de liberdade, 02
Contratos de trabalho para pagamento de liberdade, 89 Cartas de liberdade, 01 Título de liberdade,
04 Compras de liberdade, 01 Carta de manutenção de liberdade, 01 Avaliação de escravo, 04
Permutas de escravos, 01 Divisão de escravos (herança), 02 Hipotecas de escravos, 10 Compras e
vendas de parte de escravos, 01 Carta de liberdade por emancipação. A revisão da história
escravocrata em âmbito regional do bolsão sulmatogrossense, aliada a uma pesquisa bibliográfica
especializada na temática da escravidão no Estado de Mato Grosso, possui dupla pretensão:
recuperar aspectos do cotidiano de um regime assentado na mão de obra escrava entre os anos de
1838 a 1888, que permanece em silêncio na historiografia Estadual e nacional, além da recuperação
do papel dos escravos na fundação e desenvolvimento do município de Paranaíba e região. Da
análise da documentação realizada é possível compreender que parte da dinâmica do cotidiano
entre senhores e escravos guarda estreita relação entre os fatos que aconteciam no Brasil durante
boa parte do século XIX.

Palavras-chave: Escravidão. Cotidiano. Relações Sociais. Mato Grosso do Sul.

INTRODUÇÃO

Trata a presente comunicação de considerações iniciais relativas ao


desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado A escravidão em documentos: análise
dos registros públicos da escravidão no Município de Paranaíba/MS, desenvolvido entre
outubro de 2012 a fevereiro de 2014 junto ao Serviço Notarial e Registral do Primeiro
Ofício do Município de Paranaíba, Estado de Mato Grosso do Sul.
Do trabalho realizado foram analisados conteúdos de 11 (onze) livros de Registro
sob a guarda e responsabilidade do Cartório, totalizando 887 (oitocentos e oitenta e sete)
páginas de documentos a respeito de Notas, Registros, Procurações e Escrituras do período

233
Alexandre de Castro é doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho - UNESP/Câmpus de Marília SP. xadrecas@gmail.com
234
Douglas Willians dos Santos é Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista Júlio
de Mesquita Filho – UNESP/ Câmpus de Marília SP. douglaswilliam16@hotmail.com
398
compreendido entre 22 de agosto de 1838 a 24 de março de 1888, abordando quarenta e
nove anos e três meses de história do município. Ressalvado a ausência do Livro de número
06 (seis) criando uma lacuna temporal, pois se trata de um livro onde foram realizados os
registros de 02 de maio de 1873 a 28 de setembro de 1877.
Durante a execução do projeto foram levantados registros de 32 Procurações, 18
Permutas de imóveis, 01 Compra com reserva de usufruto, 422 Compras e vendas de
imóveis, 02 Doações de gado, 35 Doações de imóveis, 02 Declarações, 01 Nomeação de
Tabelião, 05 Trocas de imóveis, 01 Casamento, 01 Composição e troca de partilha, 01
Contrato de arras, 02 Contratos de sociedade, 02 Contratos conjugais, 01 Auto de posse,
01 Contrato para entrega de rezes, 01 Quitação de dívida, 24 Atas, 01 Nomeação de tutor,
01 Contrato de condomínio, 02 Lançamentos de crédito, 01 Retificação, 02
Requerimentos, 01 Título de transmissão, 03 Contratos para propor ação judicial, 01
Crédito, 01 Aprovação, 01 Nulidade, 10 Hipotecas, 01 Demarcação, 04 Desistências de
herança, 12 Testamentos, 01 Título de benfeitoria, 01 Desistência de compra e venda, 02
Distratos, 01 Adiantamento da legítima, 01 Contrato de serviços médicos, 01 Habilitação,
03 Contratos para administrar fazenda, 01 Contrato de serviços domésticos, 05 Escrituras,
01 Arrolamento de partilha, 06 Recibos, 01 Acordo, 05 Títulos de propriedade de terras,
01 Contrato para plantio de café, 02 Contratos de empreitada, 01 Carta de adjudicação, 01
Ajuste de conta, 01 Habilitação, 03 Arrendamentos de terras, 02 Cartas, 02 Cessões de
herança, 01 Promissória, 03 Perfiliações, 01 Desistência de cessão de bem imóvel, 01
Ressalva, 01 Cessão de direitos, 02 Offícios.
No que diz respeito ao objetivo geral deste projeto, a averiguação de registros a
respeito da escravidão na comarca, foram localizadas e analisadas 09 Doações de escravos,
01 Distrato de venda de escravo, 01 Alvará de liberdade, 153 Compras e vendas de
escravos, 06 Revogações de carta de liberdade, 01 Recibo de compra de liberdade, 02
Contratos de trabalho para pagamento de liberdade, 89 Cartas de liberdade, 01 Título de
liberdade, 04 Compras de liberdade, 01 Carta de manutenção de liberdade, 01 Avaliação
de escravo, 04 Permutas de escravos, 01 Divisão de escravos (herança), 02 Hipotecas de
escravos, 10 Compras e vendas de parte de escravos, 01 Carta de liberdade por
emancipação.
Da análise do material levantado constituiu-se como objeto de estudo o
desenvolvimento da escravidão no Bolsão Sulmatogrossense, a denotar relações sociais
pautadas pelo comércio humano, pela luta em prol da liberdade dos cativos, pela concessão
da manumissão, até mesmo indícios do uso da violência entre proprietários e escravos no

399
desenvolvimento de uma Capitania que, até então, é conhecida pela referência aos
“bandidos” (CORRÊA, 2006), ou sua vocação para o desenvolvimento pastoril
(CAMARGO, 2010).
Resultados do levantamento aqui realizados confirmam que o Município de
Parnaíba enfrentou problemas e se desenvolveu envolto em conflitos inerentes ao regime
escravocrata, situações enfrentadas por qualquer núcleo de povoamento que se utilizou da
mão de obra escrava durante o período do cativeiro no Brasil.

Grosso modo, as relações entre senhores e escravos na sociedade


brasileira do século XIX giravam em torno de três eixos: o doméstico,
que compreendia as possibilidades de acesso à alforria, os arranjos
concernentes à vida familiar e comunitária das senzalas e o
disciplinamento por meio do castigo físico; as práticas relativas à compra
e venda, que concerniam aos modos de inserção dos cativos no mercado
e à pressão que poderiam exercer sobre o desenrolar dessas transações;
na relação entre as prerrogativas senhoriais e a atuação do poder público.
(CHALHOUB, 2012, p. 55, grifo nosso).

Particularmente, no Município de Paranaíba, Estado de Mato Grosso do Sul, os


registros cartorários apontam, na relação entre senhores e escravos, aspectos semelhantes
daqueles descritos acima, ou seja, concessão de alforrias, as transações de compra e venda
de escravos, até mesmo revogações de manumissões em virtude de ingratidão alegadas
pelos senhores, por parte do comportamento de alguns escravos.
Para tanto, na segunda parte desse trabalho destacamos o declínio do Ciclo do
Ouro no século XVIII como motivação da migração interna brasileira e o deslocamento
dos primeiros ocupantes para região de Santana de Paranaíba. Embora senso demográfico
da época aponte uma considerável população de negros e mulatos, muito pouco é
conhecido a respeito da escravidão e da contribuição do negro para a região.
Para tratar da invisibilidade do negro nessa região do Bolsão Sulmatogrossense, na
parte três recorremos a dois referenciais teóricos no intuito de resgatarmos a importância
dos negros na dinâmica da sociedade que se organizava. Os primeiros migrantes ali
estabelecidos excluíram da história local os escravos que os acompanharam na ocupação
territorial. A completa ausência nos remete a Elias e Scotson (2000) e o estigma ainda
presente no seio da sociedade brasileira em ignorar a contribuição laboral e cultural dos
escravos. Essa aparência de naturalidade é tratada por Heller (2000) argumentando que
fazemos coisas cotidianamente e tomamos como verdades aquilo que nos é apresentado
como é o caso da não percepção do negro como cidadão.

400
De posse desses dois referenciais iniciamos a análise dos documentos propriamente
ditos, na parte quatro, com as manumissões registradas em sede cartorária. Embora o ato
de concessão de liberdade apareça de forma contínua no período histórico estudado, há
um período no qual o beneficiário deveria trabalhar para só depois gozar de sua liberdade,
permitindo assim o prolongamento do regime servil.
Mas os documentos cartorários nos revelam uma história nem sempre positiva,
história de violência e insubordinação de escravos, semelhante ao que ocorrera no final do
século XIX, na região de Campinas. Na parte cinco dessa comunicação trazemos exemplo
de revogação de liberdades pelo outorgante em virtude de ingratidão e violência que
permeou a relação entre senhor e escravo, não só no Brasil de uma maneira geral, mas em
Santana de Paranaíba em particular.
Por fim, na sexta e última parte, falamos do escravo como mercadoria em virtude
de vários documentos mencionarem a venda e compra, troca, avaliação de escravos etc.,
indicando um constante comércio escravagista na região.

A CHEGADA DOS PRIMEIROS ESCRAVOS À PROVÍNCIA DE MATO GROSSO

Pode causar certa estranheza falar em escravidão na Província de Mato Grosso,


sobretudo em Santana do Paranaíba, situada no extremo leste da região, ponto de
intersecção entre os Estados de São Paulo, Goiás e Minas Gerais.
Mas, fato é que desde a fundação da Capitania de Mato Grosso, nomeando para
Governador e Capitão-general em 1748, Rolim de Moura, nos “[...] componentes da
monção que [o] transportou [...] de São Paulo a Cuiabá, já estava delineada a composição
racial do povo que ele, em seguida, encontrou fixado na Capitania, ou seja, os europeus,
os negros, os índios e os mestiços” (FIGUEIREDO, 2010, p. 35, grifo nosso).
Portanto, a presença negra já se faz sentir desde a fundação da Capitania de Mato
Grosso. Com respeito à região do Santana do Paranaíba, a presença negra se deu em
virtude da utilização desta mão de obra nas atividades econômicas desenvolvidas pelos “[...]
entrantes mineiros e francanos [na] posição de desbravadores, de primeiros ocupantes, ou
pioneiros que, oriundos de São Paulo, Minas Gerais, Paraná e Goiás [...] chegaram [...]
para ocupar o espaço visto como desabitado” (CAMARGO, 2010, p. 15, grifo do autor).
A devida importância da etnia negra e dos cativos na região é destacada por
Camargo (2010, p. 168):

401
Grande parte dos negros escravizados utilizados nas mais diversas
atividades da unidade pastoril era oriunda da região de Minas Gerais.
Muitos deles foram trazidos também para o sul de Mato Grosso,
sobretudo por ocasião do tráfico interno a partir de 1850. A vida material
da sociedade santaense pode ser retirada dos livros de matrícula de
escravizados, das cartas de alforria, processos-crimes, testamentos,
hipotecas [...].

Em O sertão de Santana de Paranaíba: um perfil da sociedade pastoril-escravista


no sul do antigo Mato Grosso (1830-1888) (2010), Isabel Camilo de Camargo resgata e
elucida a história do município paranaibense, destacando a importância da mão de obra
escrava e sua vocação agropastoril. Aí encontramos quadros com a classificação dos cativos
a serem libertados e inventários com o número de escravos com informações sobre sua
origem.
Contudo, a importância da presença da etnia negra nesta região ainda carece de ser
contada. Há um aparente “esquecimento” de seu papel na fundação e desenvolvimento da
região.
Tal fato é notório na produção bibliográfica destinada a contar a história da região
que, em sua grande maioria, só se dá a conhecer a história dos colonizadores. Na obra
Santana do Paranaíba (1994), dividida em três partes, as duas primeiras destinadas a
memória fotográfica destacam aspectos físicos, prédios, e as famílias pioneiras da fundação
da cidade. Encontramos rápida menção aos primeiros habitantes da região, os índios
Caiapós, no capítulo I, da terceira parte.
Na parte três da obra, ao destacar o censo de 1872, o autor traz uma informação
interessante, pois neste período Santana do Paranaíba possui uma população de 3.234
habitantes “[...] constituídos de 838 brancos, 692 negros, 1.610 mulatos, 94 caboclos; a
população livre era de 2.880 pessoas e a escrava, de 354; havia 100 estrangeiros (todos
africanos, dentre eles 34 escravos)” (CAMPESTRINI, 1994, p. 101, grifo nosso).
Embora com uma população considerável de negros e mulatos que habitavam
Santana do Paranaíba por volta da segunda metade do século XIX, nenhuma referência é
encontrada na obra com relação à participação da etnia negra na sociedade paranaibense.
Uma segunda edição desta mesma obra foi publicada no ano de 2002 com a mesma
omissão. Atualizada com alguns dados, teve um capítulo adicionado, de número dois,
denominado Gente que fez história destacando profissionais, políticos e religiosos de
destaque na sociedade, novamente sem nenhuma menção ao papel da etnia negra e sua
participação na criação e desenvolvimento do município.

402
HISTÓRIA (DOS NEGROS EM SANTANA DE PARANAÍBA) ESQUECIDA

A temática da etnia negra no Brasil parece-nos “[...] ser uma constante universal em
qualquer figuração de estabelecidos-outsiders: o grupo estabelecido atribuía a seus
membros características humanas superiores; excluía todos os membros do outro grupo
do contato social [...]” (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 20). Para Elias e Scotson (2000, p.
23) fatos como esse ocorrem quando [...] um grupo consegue lançar um estigma sobre
outro – a sociodinâmica da estigmatização [...]”
Em termos de Brasil, parece-nos que a reiterada afirmação da inferioridade do
negro e sua invisibilidade como pessoa encontram explicações no discurso da vida
cotidiana da sociedade brasileira, cotidiano esse que esboçará sinais de mudanças a partir
de 1808, com a chegada da família Real ao Brasil. Até então, tínhamos um ambiente que
por muito tempo permaneceu com os traços de sua fundação, permeado pelas condições
“sociodinâmicas da estigmatização” típicas: uma nação de analfabetos, predominantemente
rural, exclusivamente católica e modelo econômico baseado na monocultura e na
exploração na mão de obra escrava.
De acordo com Heller (2000), a sociedade no qual estão mergulhados os indivíduos
é marcada por atividades de natureza repetitiva, motivadas pela busca de resultados
passageiros e nesta atividade com vistas à realização de nossas mais diversas tarefas,
empreendemos comportamento que fomos levados a acreditar como corretos, sem
contestações ou críticas. Para Heller (2000, p. 44), a vida cotidiana seria inviável se “[...]
nos empenhássemos em fazer com que nossa atividade dependesse de conceitos fundados
cientificamente”.
Também compartilhamos dessa crença de que as atividades do cotidiano não
obedecem a critérios científicos, sendo dirigidas por ações baseadas em generalizações,
“ultrageneralizações”, ou seja, generalizações em excesso, juntando ”[...] coisas, fatos,
pessoas [...] numa só idéia ou numa única opinião coisas, pessoas e fato julgados
semelhantes, sem indagar se a semelhança não seria aparente [...]” (CHAUÍ, 1996/1997).
Segundo Heller (2000, p. 44) os homens extraem destas generalizações os conceitos
com os quais se orientam no complexo social; extraem “[...] uma regra provisória de
comportamento: provisória porque se antecipa à atividade possível [...]”
A completa ausência do papel da etnia negra na historiografia do município
paranaibense e sua invisibilidade como atores sociais no desenvolvimento da região
obedecem a mesma lógica de exclusão discutida por Elias; Scotson (2000). O silêncio tem

403
patrocinado esta exclusão de forma tão eficaz ao ponto de próprios alunos da Universidade
(muitos são moradores do município) desconhecerem por completo a vigência do regime
escravocrata na região durante os anos de 1838 a 1888.
Além do silêncio, toda a história do município é contada e cotidianamente
reforçada pela ótica dos proprietários que nos levam a acreditar que os únicos e verdadeiros
responsáveis pelo desenvolvimento do município e da região foram as famílias tradicionais
que para ali migraram no início do século XIX.
O resgate desta história, quebrando o silêncio e rompendo com tal reafirmação
deste cotidiano se traduz na “[...] tentativa de elaborar respostas e soluções às [...] dúvidas
e problemas e que levam à compreensão [...] do mundo em que se vive” (KÖCHE, 2009,
p. 43).
Entretanto, dos escritos constantes dos livros de registros pesquisados fluem uma
quantidade de fatos que contribuem para entender aspectos do cotidiano e indicar a efetiva
participação, por intermédio de seu labor, da etnia negra na formação e na história de
Paranaíba.

AS PRIMEIRAS MANUMISSÕES EM PARANAÍBA

Assim como no restante do Brasil durante do século XIX as relações entre senhores
e escravos foram marcadas ora por relações caracteristicamente domésticas, ora pautadas
pela violência, os registros são reveladores de tais características no município
sulmatrogrossense.
Com destaque ao âmbito doméstico, constata-se uma relação de submissão
escravista que tinham a pretensão de perdurar vinte, trinta e cinco anos até a concessão da
alforria. A primeira manumissão a constar dos livros de Registros em poder do Serviço
Notarial e Registral do primeiro Ofício do Município de Paranaíba, Estado de Mato Grosso
do Sul (embora não seja de data mais antiga), é o Registro de uma Carta de Liberdade
outorgada pela Senhora Anna Angelica de Freitas as suas três escravas: Joanna Crioula,
Maria Bangula e Theresa Affricana, no dia dois de janeiro de 1841.

Saibão quantos virem este publico Instrumento de Cartas de Liberdades,


ou como em Direito melhor nome e lugar haja e diser-se possa e que
sendo no anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil
oitocentos e quarenta e hum duodécimo da Independencia e do Imperio
aos dois dias do mês de Janeiro do dicto anno neste Destricto da
Parochia de Sant`Anna do Paranahiba do Municipio da Cidade de

404
Cuiaba e Provincia de Matto Grosso, em o Escriptorio de mim Escrivão
ao diante nomeado e assignado compareceo presente Donna Anna
Angelica de Freitas e algumas escravas suas na forma que abaixo se
declara [...] por Ella Oltorgante me foi dicto em presença de seu marido,
e das testemunhas abaixo nomeados e assignados e de mim igualmente
reconhecidos, que por este Instrumento era bem assim e muito de sua
livre vontade declarar, e como de facto declarado tem libertar as suas
escravas dos nomes seguintes, a saber Joanna Crioula depois de servir
mais cinco annos no captiveiro, Maria Benguela depois de servir vinte
annos, e Theresa Affricana depois de servir trinta e cinco annos, as quais
todas gosarão de plena liberdade, logo que se concluão os mencionados
prasos que lhe são relativos. (Livro 01, p. 14, 1841, grifo nosso).

O ato de liberalidade na manumissão das escravas contém em si relações sociais


que ainda estão por serem interpretadas e esclarecidas, sobretudo porque em suas
primeiras outorgas não constam os motivos que levaram senhores(as) proprietários(as)
destes cativos a revelarem ou apresentarem diante do Escrivão quais foram os motivos
determinantes da concessão das liberdades.
A dificuldade em perceber os motivos de concessão de liberdade também está
presente em uma segunda outorga que, apesar de longa, serve como exemplo e reflexão:

Trastado de huma Carta de liberdde passada por Anna Maria de São


José a duas escravas suas creoulas, na forma que abaixo se declara.
Saibão quantos virem este publico instrumento de carta de liberdade ou
como em Direito melhor nome e lugar haja e diser-se possa, que sendo
no anno do nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito
centos e quarenta, vigésimo da Independancia e do Imperio, neste
Destricto da Parochia de Sant`Anna do Parnaiba oitavo do Municipio
da Cidade de Cuiaba e Provincia de Matto Grosso, em o Escriptorio de
mim Escrivão aodiante nomeado e assignado compareceo presente o
padre Francisco de Salles Sousa Fleuri, de mim reconhecido pelo
próprio, e por elle emvista das testemunhas abaixo nomeadas e
assignadas me foi entregue hu` papel disendo, que era carta de liberdade
passada por sua irman Anna Maria de São Jose a suas escravas Maria e
Francisca cujo papel passando das mãos do apresentante para as de mim
Escrivão, com por elle os olhos e vique tinha sido feito por Francisco
Garcia Lial, e assignado pela Libertante, e por Felisberto Rodrigues da
Costa, as quais forão por mim reconhecidas pelas próprias; cujo papel
He do theor seguinte: Digo eu Anna Maria de São Jose abaixo assignada
que entre os mais bens que possuo livres e desembaraçados, digo
desembargados, hi bem assim duas escravas creoulas de nomes Maria e
Francisco (sic), esta de idade de oito annos, e aquela de dez dictos, as
quaes muito di minha livre vontade e sem constragimento de pessoa
algum, hei por bem passar carta de Liberdade,em cujo goso plena so
entrarão depois de minha morte, e do mano Padre Francisco, ou ainda
em nossa vida depois de inteirar cada huma trinta annos completos, e
para firmesa e validade d`este papel pesso e rogo as Justiças do Imperio
lhe dêem todo o vigor como se fosse passado por Escriptura publica.
Sant`Anna a dose de Maio de mil oito cento e quarenta. A rogo de Anna

405
Maria de São Jose Francisco Garcia Lial= Anna Maria de São Jose=
Testemunha presente Felisberto Rodrigues da Costa. E nada mais se
continha em dicto papel a que reportei em presença das testemunhas
Miguel da Costa Lima e Vicente Gomes de Paiva, os quaes se assignão
depois de lhes ser este lido por mim Luis Beltrão de Sousa. Escrivão que
o escrevi e assignei Luis Beltrão de Sousa Miguel da Costa Lima Vicente
Gomes de Paiva (Livro 01, 1840, p. 20).

Embora os motivos das alforrias ainda não possam ser devidamente esclarecidos,
percebe-se que seu acesso se dava estritamente ao nível do ambiente doméstico,
possibilitando o controle da mão de obra escrava.
Mas há entre os documentos analisados a concessão de liberdade mediante
proposta de ação judicial, intentada por ex-escravos, contra seus senhores com base na Lei
nº 2.040, de 28 de setembro de 1871, conhecida como Lei do Ventre Livre. Ao
promoverem essa ação os cativos invocaram o “Artigo 6º Serão declarados libertos, § 4º os
escravos abandonados por seus senhores”. (BRASIL, 1871). A decisão proferida nessa
ação consta do lançamento da Carta de Liberdade:

Faço saber aos que a prezente carta de liberdade virem que na acção de
abandono movida por Mizael, José, Vitalina e Manoela [...] foi dada pelo
Meritissimo Juiz de Direito interino da Comarca a sentença do theor
seguinte: [...] conciderando que há três annos mais ou menos os
curatelados [...] vivem há seis ou sete léguas distante de seos ex-Senhores
sem que estes os mantenhão [...] denotando isto o consentimento dos
senhores e herdeiros no abandono em que vivão e vivem seus ex-
escravos – Julgo-os libertos e mando [...] entregar-lhes a carta de
liberdade (Livro 10, 1886, p. 05 verso).

Mas, nem sempre as liberdades foram concedidas pela justiça, ou pela liberalidade
dos senhores/as. O exercício da autoridade senhorial não se deu de forma pacífica e nem
sempre foi aceito ou obedecido pelos cativos.

REVOGAÇÕES DE MANUMISSÕES: A VIOLÊNCIA E A INGRATIDÃO

Um segundo exemplo decorre exatamente da inobservância do domínio senhorial,


por parte de alguns cativos, revelando a tensa relação entre senhores e escravos no
Município de Paranaíba. Encontramos nos Registros exemplos da complicada relação que
permeou a sociedade escravista brasileira da segunda metade do século XIX: o problema
da violência.

406
Trata-se de uma tentativa de homicídio praticado por cativo contra seu senhor que
teve sua liberdade, prometida anteriormente, revogada:

A liberdade fora prometida em treze de junho de (fl. 38-39) e agora fora


revogada, pelo libertante, de Antonio Procopio pelo fato de ele ter
atentado contra a vida do libertante Joaquim Garcia Leal. Foram
testemunhas: Anastacio Alves Pereira e Francisco Anselmo Grillo.
Escrivão: José Rodrigues Anacleto. (Livro 01, s/d, p. 45).

A violência contra senhores proprietários era um recurso utilizado pelos escravos


nas mais diversas regiões brasileiras onde a relações sociais foram mediadas pelo regime
escravista.
Porém, encontramos nos Registros, outro exemplo que ensejou a revogação da
liberdade dos cativos, reafirmando que “[...] o poder dos senhores se exercia em meio a
tensões e conflitos, que ao mesmo tempo reforçava a ideia de inviolabilidade da vontade
do senhor [...]” (CHALHOUB, 2012, p. 55). Trata-se da ingratidão.

Saibão quantos virem este Instrumento, dego publico publico


Instrumento de Carta de revogação [...] que sendo no anno do
Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito sentos e
sencoenta e quatro nesta Freguesia de Santana do Paranahiba, em o
escriptorio [...] Compareceo presente Joaquim Garcia Leal e por elle me
foi entregue hum papel disendo que hera a Carta derevogação
deliberdade [...] do theor seguinte. Digo eu Joaquim Garcia Leal abaixo
assegnado que promette a vários escravos seus a liberdade [...] porem
como os escravos Jeraldo Crioulo e Luis Creoula tem se tornado
engratos para comigo, não me servindo como devião e athe evadendo se
de minha companhia depois que souberão dapromessa da liberdade, hei
por bem revogar a ditta promessa de liberdade dos ditos escravos [...]
(Livro 01, 1854, p. 61, grifo nosso).

Percebe-se que os atos de violência, bem como a ingratidão, funcionaram como


“arranjos disciplinares” na tentativa de controlar os cativos.
Mas ainda temos uma terceira questão a ser levantada com relação a condição dos
cativos na nascente região leste, hoje denominada Mato Grosso do Sul: a condição de
escravo como mercadoria.

407
ESCRAVOS COMO MERCADORIA

Já analisamos em outra oportunidade, Castro (2012), a metamorfose pela qual a


etnia negra foi se “transformando”, desde sua condição de propriedade debatida durante a
Assembleia Nacional Constituinte de 1823; passando pela concepção de ser inferior
difundida pelas teorias raciais no Brasil, principalmente, no início dos anos 20 do século
XX; até as lutas mais recentes pelo reconhecimento de sua igualdade como cidadão
brasileiro, pela Promulgação do Estatuto da Igualdade Racial, em 20 de julho de 2010.
Nesta etapa final destacamos, a partir dos levantamentos dos Registros cartoriais, a
identificação do negro como propriedade. Passível de ser comprado e vendido, pois das
análises dos Registros encontramos 153 compras e vendas de escravos, 02 hipotecas de
escravos, além de 10 compras e vendas de parte de escravos. Além dos institutos jurídicos
da compra/venda e hipoteca, os cativos também podem ser compreendidos como
mercadoria na doação. Um ato jurídico de liberalidade de determinada pessoa em
transferir parte de seu patrimônio a outrem.

Copia do papel de Duação, Ressibo de do dote, que faz Janoario Jose de


Sousa, passada à seu genro Joaquim Jose de Sousa e Theresa Joaquina
do Espirito Santo, como abaixo se de clara= Ressebe de meu sogro o
Senhor Janoario Jose de Sousa, huma Escrava de nome Bonifacia,
Crioula, de idade de quatorse annos, avalleada em seis sentos milreis –
500H000rs. E assim mais hum poldro em trinta mil reis – 72H000rs,
tudo como dote de sua filha e minha mulher Theresa Joaquina do
Espirito santo, e me obrigo a todo o tempo que preciso for entrar com
ovalor de tudo à collação. E para constar, pedi ao Padre Francisco de
Salles Sousa, este por mim fisesses em que sómente meassigno.
Sant`Anna 11 de setembro de 1848 [...] (Livro 01, 1848, p. 48, grifo
nosso).

A doação envolve, não somente uma escrava, bem como outros bens como forma
de dote para o casamento, demonstrando a “coisificação” dos escravos sendo equiparados
aos outros animais e demais bens de natureza imóvel. Assim, as transações comerciais
envolvendo os escravos obedeciam as regras da compra/venda do mercado. A valorização
e o preço a ser comercializado eram especulados para racionalizar os ganhos daquele que
porventura pretendia colocar seu escravo no comércio.
Encontramos nos Registros a mesma lógica mercantil a que estavam subordinados
os escravos em Parnaíba na segunda metade do século XIX:

408
Lançamento do Papel de Avaliação de huma escrava crioula de nome
Claudina pertencente a Francisco Sudario Mariano que havia recebido
por docte de seu sogro Joao Ferreira de Mello e sua sogra Dona Maria
Luciana do do Espirito santo como abaixo se declara. [...] Em o cartório
de mim escrivão ao deante nomeado e assgnado, aparecio presente
Francisco Sudario Mariano elhe entregou hum papel desendo que hera
avaliação de sua Escrava Claudina [...] de edade de vinte e sete annos
para alienar e avaliar. Passando nos a examinar observamos que Ella
padesse de excrolfulas, e mal de engasgue como seja estas moléstias
graves, e encuraveis, avaliamos em duzentos mil reis em nossas
conciencias. E para constar passamos apresente que assegnamos Santana
do Paranahiba deis de Março de mil oito sentos e sencoenta e sinco=
Padres Francisco de Salles Sousa Fleury= João Coelho Paim = José
Aprigio de Tolledo= E nada mais se continha em o dito papel de
Avaliação que bem efielmente Copiei e a elle me reporto. Eu Manoel
Silverio de Oliveira escrivão Ynterino que escrevy. (Livro 01, 1855, p.
62).

A condição de coisa dos cativos cessa com a Promulgação da Lei Àurea em 1888,
no entanto, os Registros encontrados no Serviço Notarial e Registral do Primeiro Ofício
do Município de Paranaíba, Estado de Mato Grosso do Sul, guarda em seus arquivos
aspectos históricos a demonstrar a dinâmica do cotidiano entre senhores e escravos no
município guardam estreita relação entre os fatos que aconteceram no Brasil durante boa
parte do século XIX.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Desbravada” no início do século XIX por famílias provenientes, sobretudo de


Minas Gerais e norte do que conhecemos hoje por Estado de São Paulo, os primeiros
ocupantes de Santana de Paranaíba não chegaram só. Vieram acompanhados por seus
escravos.
No entanto é difícil encontrarmos sinais da presença e da contribuição advinda da
cultura negra. Prédios públicos recebem o nome das “famílias tradicionais”, o mesmo se
dá com nomes de ruas, avenidas e praças. Como se no passado da constituição do
município nunca houvera trabalho escravo.
Mas ao consultarmos os documentos contidos no Serviço Notarial e Registral do
Primeiro Ofício do Município de Paranaíba, a história pulsa em suas páginas nos revelando
um cotidiano cheio de contradições, lutas, violência e conquista de liberdades. Parte dessa
história encontra-se nos conteúdos de 11 (onze) livros de Registro sob a guarda e

409
responsabilidade do Cartório, mas nunca “olhado” com interesse histórico. Nesses livros
temos um total de 887 (oitocentos e oitenta e sete) páginas de documentos a respeito de
Notas, Registros, Procurações e Escrituras do período pequeno da história municipal
compreendido entre 22 de agosto de 1838 a 24 de março de 1888, abordando quarenta e
nove anos e três meses de história do município.
Trata-se de um passado que começa a ter seu cotidiano revelado, depois de mais
de cento e setenta e três anos de silêncio.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n° 2.040, de 28 de setembro de 1871. Lei do Ventre Livre. Rio de Janeiro,
28 set. 1871.

BRASIL. Livros de Notas, Registros, Procurações e Escrituras. Cartório do 1º Ofício da


Comarca de Paranaíba/MS. Livro 01, 10 de abril de 1838 a 16 de junho de 1859. 75 p. f/v.

BRASIL. Livros de Notas, Registros, Procurações e Escrituras. Cartório do 1º Ofício da


Comarca de Paranaíba/MS. Livro 10, 15 de janeiro de 1886 a 24 de fevereiro de 1887. 30
p. f/v.

CAMARGO, Isabel Camilo de. O sertão de Santana de Paranaíba: um perfil da sociedade


pastoril-escravista no sul do antigo Mato Grosso (1830-1888). 2010. 232 f. Dissertação
(Mestrado em História). Universidade Federal da Grande Dourados-UFGD, Dourados,
Mato Grosso do Sul, 2010.

CAMPESTRINI, Hildebrando. Santana de Paranaíba. Campo Grande/MS: Instituto


Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul, 1994.

CASTRO. Alexandre. A construção da cidadania negra no Brasil: ser propriedade, ser


incapaz, ser igual. In: PRADO, Alessandro; BATISTA, Cláudia Karina Ladeia;
SANTANA, Isael José. (Orgs.). Direitos humanos: novos olhares. Curitiba/PR: Editora
CRV, 2012. p. 21-33.

CHALHOUB, Sidney. População e sociedade. In: CARVALHO, José Murilo de. (Org.).
A construção nacional 1830-1889. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012. p. 37-81. (História
contemporânea do Brasil).
CORRÊA, Valmir Batista. Coronéis e bandidos em Mato Grosso: (1889-1943). 2 ed.
Campo Grande/MS: Editora UFMS, 2006.

FIGUEIREDO, Israel de Faria. Origem da capitania de Mato Grosso: 1748-1765. Cuiabá,


MT: Carlini & Caniato, 2010.

HELLER, Agnes. O cotidiano e a história. 6 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

KÖCHE, José Carlos. Fundamentos de metodologia científica. Teoria da ciência e


iniciação à pesquisa. 26ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2009.

410
IMPRENSA, HISTÓRIA E MEMÓRIA NO BRASIL235

Gabriel Papa Ribeiro ESTEVES236

Resumo: Esta pesquisa busca compreender a relação entre a mídia impressa, a sociedade brasileira
e a memória histórica da ditadura civil-militar desde o golpe de 1964 aos dias atuais, para captar
como tem sido elaborada a representação memorial deste passado (recente e latente) no espaço
público da grande imprensa de massas nacional. O passado em questão deixou marcas,
consequências e continuidades profundas nesta sociedade. Escolhemos pesquisar a cobertura feita
pelos jornais Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo (Estadão) e O Globo, pelo fato de serem meios
de comunicação influentes na articulação de discussões públicas no país e por terem uma circulação
diária nacional significativa desde a época do golpe até atualmente e um grande alcance de suas
ideias na sociedade. Visamos analisar, comparativamente, amostragens de edições dentre 1964 e
2014 no que tange suas abordagens sobre fatos e acontecimentos históricos, icônicos,
representativos e marcantes relacionados à ditadura e ao golpe de 1964: O Golpe de 1964; A
instauração do AI-5; A revogação do AI-5; A promulgação da Lei da Anistia; A Votação da Emenda
Dante de Oliveira; A promulgação da Constituição de 88; Os 50 anos do Golpe.

Palavras-chave: Mídia. Memória. Ditadura.

INTRODUÇÃO

Passaram-se mais de 50 anos do golpe civil-militar de 1964 no Brasil e sua


atualidade ainda é latente. O termo ‘Civil’ é pertinente devido às camadas da sociedade,
como parte do congresso nacional, dos governos estaduais, da classe média e das elites
agrárias e urbanas (setores comerciais, industriais e midiáticos), que apoiaram e legitimaram
o regime encabeçado pelos militares, pois não é possível a existência de regimes autoritários
se a sociedade em que ele está posto não o construiu historicamente com base em parcelas
sociais que o apoiam e o legitimam. O caráter militar do regime se deu porque os agentes
políticos que comandaram e instauraram o regime, através de um golpe de Estado, eram
os militares das três forças armadas, principalmente os oficiais de alta patente do Exército
(AARÃO REIS, 2005). Pretendemos, a partir desta pesquisa, oferecer uma contribuição
para compreensão da dinâmica social de nosso país, buscando a descoberta de
regularidades no passado e no presente, tomando os fatos como resultantes dos conjuntos
de práticas culturais, no que se refere à análise de como fora representado o golpe de
Estado de 1964 e o regime que dele se seguiu à sociedade brasileira, no espaço público das
mídias impressas, em especial nos três jornais mais lidos/vendidos/circulados do Brasil

235
Este artigo é o esboço do projeto de doutorado que está atualmente em desenvolvimento.
236
Doutorando em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP –
Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara. Email: gabriel-papa@hotmail.com
411
(segundo a Associação Nacional de Jornais – ANJ e o Instituto verificador de comunicação
- IVC), a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo (Estadão) e O Globo, mediante suas
linhas editoriais. Pois assim poderemos ter maior dimensão de quais interesses têm
permeado o oligopolista setor midiático do país desde o golpe até a atualidade e como isto
se transfigurou numa maneira de induzir/orientar/influenciar opiniões e práticas sociais na
sociedade, justificando assim autoritarismos e violências institucionalizadas. Essa dinâmica
sistêmica possui uma lógica economicamente objetiva no contexto das concentrações
midiáticas diagonais, horizontais e verticais. O que desencadeia um abalo de diversificação
de conteúdos e uma dominação produtiva e distributiva destes. Estes jornais apresentam
ambiguidades em suas trajetórias desde golpe aos dias de hoje, chegando mesmo a atenuar
a violência da ditadura, representando uma imagem branda do regime perante a sociedade
ou se colocando como críticos da ditadura (que ajudaram a construir) e defensores da
democracia (que ajudaram a desestabilizar).
A Folha de S. Paulo e teve um passado de apoio ao golpe, ao regime militar
brasileiro e aos agentes da repressão, participando inclusive com incentivo logístico para a
chamada Operação Bandeirante (OBAN), cujo intuito era combater opositores da
ditadura. Apoiou a Marcha da Família com Deus pela liberdade (manifestações públicas
contra o governo, sua agenda reformista e a suposta ameaça Comunista), manifestou-se a
favor do golpe e, durante a ditadura, optou pela autocensura. O Estado de S. Paulo apelou
à intervenção militar, exaltou a Marcha da família com Deus pela liberdade e festejou a
‘Revolução’. Ao longo da ditadura, porém, assumiu uma postura crítica e foi censurado.
Nos anos finais do regime o jornal participou da luta pela redemocratização, algo que
atualmente representa como um orgulho da instituição jornalística (SEVERIANO, 2012).
O Globo legitimou o golpe e apoiou a ditadura fazendo apologias ao milagre econômico e
beneficiando-se do poder neste período. Tornou-se um conglomerado midiático e livrou-
se de investigações acerca de negociações ilícitas graças à sua simbiose com o regime
autoritário (HERTZ, 1989).

A essência da regra oligárquica não é a hereditariedade de pai para filho,


mas a persistência de determinada visão de mundo de um certo estilo de
vida impostos pelos mortos sobre os vivos. Um grupo dominante
continua sendo um grupo dominante enquanto puder nomear seus
sucessores. [...] Não importa quem exerce o poder, contanto que a
estrutura hierárquica permaneça imutável (ORWELL, 2009, p. 247).

412
Estes jornais são os meios de comunicação mais influentes do Brasil, como nos
informa a obra A mídia nas eleições de 2006, organizada por Venício A. de Lima (2007).
Pertencem a três famílias oligárquicas no campo das comunicações, que orientam a opinião
pública, dominam e condicionam o noticiário de todo o país, através do alcance,
disponibilidade e frequência dos seus órgãos de imprensa e comunicação e suas
orientações editoriais: os Marinho (Organizações Globo), os Frias (Grupo Folha) e
os Mesquita (Grupo Estado). Estas três famílias controlam alguns dos principais órgãos da
imprensa no Brasil, tais como os jornais O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S.
Paulo (Estadão), sites e revistas diversas. Sendo assim, muitas vezes, quando acabam por
se remeter ao regime militar, constroem representações perante uma memória forjada dia-
a-dia em suas coberturas acerca do assunto, do que foi o golpe de 64, o regime e o que eles
significaram. Com a grande circulação que têm e, como consequência, credibilidade, suas
versões e perspectivas muitas vezes são interpretadas como verdade ou como a totalidade
dos acontecimentos. Os meios de comunicação de massas (dentre eles a grande imprensa)
oferecem uma percepção razoável da realidade, incutindo certas convicções de um
monopólio elitista capaz de construir consensos por dispor de recursos e poder para fazê-
lo, criando representações, muitas vezes, desproporcionais à realidade social (CHOMSKY,
2013). Portanto, estes jornais da grande imprensa são fundamentais para se pensar a
sociedade brasileira, em um período histórico recente, atrelado à dinâmica de instituições
políticas e de organizações empresariais como a oligopolista e aristocrática Mídia comercial
brasileira, dispositivo central na consolidação ou desestabilização de governos e Estados de
direito, algo singularmente relevante para as Ciências Sociais.

MEMÓRIA E SOCIEDADE

Sociedades que desconhecem o passado vivem na escuridão e deslocam-se do


próprio presente para um limbo de ignorância de si mesmas em função da ignorância sobre
seus contextos socioculturais, uma vez que o presente é o futuro do passado e todo futuro
é uma síntese entre passado e presente. Conhecer o passado e a forma como ele é
representado na esfera pública, é importante pelo fato de que se ele não é elaborado de
forma clara, apontando os ressentimentos e erros e incitando o diálogo e representações
críticas entre as partes e a sociedade, corre-se o risco de ele não ser compreendido. “A
elaboração da memória se dá no presente e para responder a solicitações do presente. É
do presente, sim, que a rememoração recebe incentivo, tanto quanto as condições para se

413
efetivar” (MENESES, 1992, p. 11). Isto significa que mesmo que o fato ou realidade não
exista mais integralmente, suas estruturas podem continuar infiltradas na sociedade. E,
assim, os mesmos atos e decisões que foram cometidos outrora, incorrem no presente
como potencialmente possíveis, porém, mascarados por representações tendenciosas e
omissas da história, afinal, a representação restrita de uma memória impõe uma maneira
específica de recordar, o que na verdade, significa um impedimento de memória, a
construção de uma memória a partir de representações jornalísticas impõe uma maneira
específica de recordar a história a partir de pontos de vistas restritos e específicos de uma
elite de poder, que possuem e representam interesses da instituição empresarial jornalística
que os publicam e de seus patrocinadores e consumidores, o que na verdade significa um
impedimento de memória e da elaboração de um passado. A memória é coletiva, é a
reconstrução do passado com imagens e ideias do presente, através dela os indivíduos
reconstroem o passado no presente. E a memória dos indivíduos está amarrada à memória
do grupo e esta está amarrada à tradição – continuidade – (HALBWACHS, 2004). A
história de cada sociedade é um problema em aberto. O presente é o lugar da história, o
ponto de partida de sua realização, o lugar das problematizações, o passado ajuda a
entender o presente e o presente ajuda a compreender o passado como uma sucessão de
fatos no tempo histórico das culturas humanas e suas narrações. A história social é a
narrativa que constrói passado e presente de um povo, portanto mesmo que o passado não
mude, o conhecimento sobre ele e sua narrativa no presente estão em constante
transformação. O presente não é uma superação do passado e nem o futuro uma superação
do presente, mas sim uma continuidade, uma vez que a história não se encapsula no
passado e é sempre contemporânea, afinal, é no presente que se escolhe os
questionamentos e reflexões que serão feitos acerca do passado e assim elabora-se a
memória social, um patrimônio coletivo. O próprio fazer histórico se transforma no
decorrer do tempo, pois as sociedades mudam e com isso o objeto histórico se configura
como narrativas que se constroem como sínteses do conflito de perspectivas que expressa
o poder da sociedade do passado sobre a memória e o futuro. As narrativas são construções
de discursos e o discurso, além de traduzir os sistemas de dominação, é um poder em
disputa (FOUCAULT, 1996). Em cada presente se faz uma pergunta própria ao passado,
buscando entender sua interferência e continuidade no presente com o anseio de impactar
no futuro (LE GOFF, 1996).
A fonte de pesquisas, em nossa problemática (o que resta do passado no presente),
passa a ser tudo aquilo que o homem produz ou produziu como cultura e os documentos

414
históricos são entendidos como monumentos permeados por narrativas dominantes, sendo
importantes, não mais só pelo que mostram, mas também, pelos aspectos que
escondem/omitem acerca do passado. A história não está mais no documento em si e sim
nos desdobramentos de uma análise crítica que o conceba como resultado da interação
humana em sociedade, onde a fonte é um fazer histórico definido pela pergunta que se faz
ao passado, elencando referências e enumerando elementos que identifiquem a forma, o
conteúdo e quais representações suscita. A forma como concebemos a realidade à nossa
volta está alicerçada em uma teia de representações construídas socialmente.
Representação seria como que a exibição de uma presença, a presença de uma coisa
ausente com algum significado ou valor moral exibido através de linguagem simbólica
(CHARTIER, 1990). A representação é a:

Forma de conhecimento do senso comum, na interface do psicológico e


do individual, do individual e do coletivo. É uma construção de uma
apropriação da realidade, pressupõe a comunicação, decisão, ação;
permite ao indivíduo inserir-se num grupo social e legitimar seus
comportamentos. Apesar de construírem uma visão incompleta e/ou
parcial do real, um artefato, ela é, para cada sujeito, seu real, quer dizer,
sua maneira de pesar (SCHIMIDT, 2010, p. 84).

Cada época e cada sociedade constroem suas próprias representações. As narrativas


históricas permitem um diálogo entre o presente e o passado a partir de representações e
para problematizá-las não se deve apenas descrever as fontes, mas partir de uma
representação crítica de construção de conceitos através da articulação entre o contexto do
presente e seus fenômenos sociais com as continuidades do passado numa perspectiva
diacrônica e dialética. A memória coletiva é um elo entre o passado e o presente, uma
espiral em que as representações interferem nos imaginários através de discursos que agem
na percepção, que afeta a consciência, que reconstrói a memória que refaz as
representações. A memória está no passado e a história está no presente, ao se trazer a
memória para o presente gera-se uma representação no futuro, portanto a representação
está entre a memória e a história. (LE GOFF, 1996). A mentalidade de uma época é
comum ao conjunto das representações da sociedade, é por isso que a história desdobra-
se como um tempo de longa duração, como uma temporalidade, pois os acontecimentos
não se esclarecem por si só, mas por suas continuidades e descontinuidades, pelas
perspectivas construídas sobre seus significados e pela reflexão crítica feita sobre eles. “[...]
os acontecimentos brilham, mas não aclaram” (MICELI, 2003). Sem a problematização

415
não se constrói o objeto histórico, logo, é a pergunta que fazemos que nos aponta para as
sínteses do passado, para as temporalidades sobrepostas que constituíram a cultura, a
economia, as mentalidades, as crenças e a sociedade através de conflitos ininterruptos. É
necessário procurar os erros e falhas das fontes, pensando o presente em comparação com
o passado, em como se constrói as narrativas nesta temporalidade, sua multiplicidade, que
permite a contraposição crítica. (BLOCH, 2001). Pois sem isto, as injustiças do passado se
projetam no presente como potencialidades. A injustiça não acaba com o passar do tempo
e sim com a denúncia de suas causas e consequências, ao passo que fica supostamente
isolada no passado, acaba por se configurar como uma ameaça no presente. Uma injustiça
contra qualquer um, mesmo que no passado, é uma ameaça contra todos, mesmo que no
presente. (LAMBERT, 1942).

[...] articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como de


fato ele foi. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento do perigo. [...] O dom de despertar no passado
as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o
inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer (BENJAMIN,
1985, p. 224 - 225).

A história é um campo de possibilidades e local privilegiado dos conflitos, onde os


acontecimentos históricos representam-se através das narrativas dos vencedores. Portanto
a história se mantém permanentemente aberta às perspectivas de ter se realizado de outro
modo (BENJAMIN, 1985). Se ainda não se realizara é porque somente os herdeiros dos
vencedores têm se beneficiado deste mecanismo, afinal, ao passo que os vencedores
representam o passado como épico, superado e irreversível, os vencidos representam o
presente como o futuro de um passado arruinado e ainda por concretizar-se pela
interrupção da continuidade da história dos vencedores, recuperando o passado e
impedindo que o futuro do presente daquele passado se realize. Enquanto os herdeiros
dos vencedores perpetuarem esta continuidade, os herdeiros dos vencidos serão elos entre
as injustiças do passado e as injustiças do presente. (FRANCO, 2015). “Quem controla o
passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado” (ORWELL,
2009, p. 47).
50 anos após o golpe de Estado de 1964 a ditadura continua protagonizando, em
nossa sociedade, discussões importantes sobre as representações de sua memória. O
espaço público da imprensa tem importante destaque na difusão desta pauta e no

416
posicionamento opinativo e informativo do assunto. Identificar o modo como, em
diferentes lugares e momentos, uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler é um pressuposto para a compreensão de como determinados grupos têm
forjado as representações do mundo social. Por isso a necessidade de compreender a
relação entre os discursos da imprensa, pois a percepção do social não vem de um discurso
neutro, ela produz estratégias e práticas impostas à custa de outras, justificando suas
escolhas e condutas (CHARTIER, 1990).
No dia 30 de Março de 2014, a Folha de S. Paulo publicou um editorial chamado
“1964”237, nele percebemos a ambiguidade da linha editorial do jornal. O texto aponta que
o regime militar é merecedor de repúdio e que a ditadura representou uma notória
violência, porém acaba por indicar certas justificativas aos acontecimentos, dizendo que os
golpistas de 1964 detiveram um impulso de mudança e participação social alegando estar
impedindo seus adversários de instaurar uma ditadura ainda pior, portanto a
responsabilidade da violência, de acordo com o texto daquele editorial, se distribui pelos
dois extremos, pois parte da esquerda teria forçado os limites da legalidade na urgência de
realizar reformas socioeconômicas de base, que a Folha de S. Paulo chama de
demagógicas, e posteriormente organizou-se desencadeando uma luta armada dedicada a
instalar, segundo o editorial, precisamente aquilo que eram acusados pelos adversários,
uma ditadura pior ainda do que aquela que viera a se estabelecer. O jornal pontuou que às
vezes se cobra da Folha de S. Paulo o fato de ela ter apoiado a ditadura e esclarece que seu
apoio se deu na primeira metade da vigência do regime, sendo na metade seguinte um
veículo de críticas ao regime, em seguida o jornal reconhece que aquele apoio foi um erro
aos olhos de hoje e que toda violência deveria ter sido rechaçada, mesmo que os
responsáveis de outrora tenham agido como lhes pareceu melhor naquelas circunstâncias.
Em 31 de Março de 2014 o Estado de S. Paulo publicou o editorial chamado “Meio Século
depois”238 direcionando o discurso para o período do golpe e da ditadura para pontuar que
haviam, na época, aspirações de cunho socialista sem respaldo popular e que as violências
de Estado e de oposição foram insensatas e resultantes das imposições da ala reformista do
governo e da sociedade. O jornal não cita que apoiou o golpe e se isenta de uma discussão
ética sobre o assunto. O Globo publica, também em 31 de março de 2014, o editorial “Para
nunca mais se repetir”239 onde o jornal reconhece o equívoco editorial e arrependimento

237
<http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/03/1433004-editorial-1964.shtml> Acesso em 21/06/2016.
238
<http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,meio-seculo-depois-imp-,1147202> Acesso em 20/06/2016
239
<http://oglobo.globo.com/opiniao/para-nunca-mais-se-repetir-12022298> Acesso em 19/06/2016.
417
quanto ao apoio do golpe e exalta o Estado democrático de direito, no entanto não usa o
termo ‘ditadura’ e não menciona sua subserviência ao regime, sua apologia ao suposto
sucesso econômico e aos autoritários governos militares.
A partir destas declarações editoriais dos jornais, nos surgiu o questionamento de
compreender as diferentes ambiguidades da grande imprensa que, como vimos, apoiou o
golpe e contribuiu na construção da memória social do regime que dele se sucedeu, através
das representações que fizera destes durante a temporalidade que se desdobra desde a
instauração do estado de sítio até a redemocratização e a atualidade. Entender a
representação da memória do golpe e da ditadura civil-militar brasileira nos dá margem
para que a partir de então se alargue na esfera pública o debate real do que foi e do que é
a sociedade em questão, para, dessa forma, emancipá-la e confrontá-la com seus equívocos
e acertos. Para tratar do conceito de esfera pública e de qual a função da mídia em sua
estrutura, em termos teóricos, nos reportamos a J. Habermas (1984), para quem o sujeito
dessa esfera pública é o público enquanto portador da opinião pública, incluindo-se entre
os órgãos da esfera pública as mídias, pois servem para que o público se comunique. A
esfera pública seria uma estrutura intermediária que faz a mediação entre o sistema politico
e os setores privados através das discussões de assuntos comuns aos múltiplos e diversos
atores sociais, gerando a opinião pública. O espaço público seria a interação entre práticas
sociais e representações sociais (CHARAUDEUAU, 2003). “No âmbito das mídias o
caráter público tornou-se um atributo de quem desperta a opinião pública” (HABERMAS,
1984, p. 14-15). Dialogamos, a partir de então com as proposições de Sérgio Costa (1997),
presentes em seu artigo Contextos da construção do espaço público no Brasil, em que ele
reconhece a habilidade das mídias em transformar sua influência social em poder político,
e aponta um espaço assenhoreado por conglomerados de comunicação associados a novas
estratégias de manipulação das preferências das massas, refletindo os interesses e
aspirações de poder daqueles que controlam os meios de comunicação. Assim, segundo
Sérgio Costa (1997), a esfera pública transforma o processo de legitimação democrática em
uma questão de manipulação eficiente do campo simbólico. No encalço deste debate
acerca da esfera pública, estamos nos pautando em obras que percorram o processo de
formação e consolidação da mídia no Brasil, qual o papel da mídia e como se dá sua relação
com a política e com o poder, como, por exemplo, Mídia. Crise política e poder no Brasil,
de Venício A. de Lima (2007), em que ele estabelece teses acerca da relação entre mídia e
política, argumentando que o papel mais importante que a mídia desempenha decorre do
poder de longo prazo que ela tem na construção de representações da realidade, da política

418
e dos agentes políticos, mostrando que o que realmente está em jogo quando se trata da
relação entre mídia e política é o processo democrático, sendo a mídia um fator
socializador no processo de socialização contínuo do indivíduo em que, através dela, o
sujeito também se constitui, internalizando a cultura e as normas sociais de seu grupo e
reproduzindo sua ordem discursiva. A atividade simbólica é contínua, intensa e
fundamental nas relações sociais, pois os indivíduos constantemente se expressam em
formas simbólicas e interpretam simbolicamente expressões e ações usadas pelos outros,
ou seja, estão em comunicação entre si e numa troca ininterrupta de conteúdo simbólico
no espaço social. No fomento dos conteúdos simbólicos, os indivíduos, grupos ou
instituições se utilizam do capital cultural que possuem e de seu prestígio acumulado, o
capital simbólico que lhe dá condições de exercer o poder simbólico (BOURDIEU, 2000),
para agir de modo a intervir no curso dos acontecimentos, podendo influenciar a ação dos
outros e desencadear eventos advindos da produção e transmissão das formas simbólicas
(THOMPSON, 1999). O campo do simbólico é pertinente aos nossos estudos, uma vez
que a memória social, coletiva ou individual da história do país nada mais é do que uma
construção simbólica realizada em diversos campos, e um deles é a mídia, da qual a Folha
de S. Paulo o Estadão e O Globo fazem parte e figuram como protagonistas do setor.
Michel Foucault (1979) nos ajuda a entender as relações de formação de um
discurso tido como verdadeiro pela grande mídia, de forma a constituir uma opinião
pública permeada de interesses econômicos e políticos, opinião essa que se fundamenta
naquilo que é difundido como verdade pelos grandes meios de comunicação,
principalmente por estes construírem seus discursos retoricamente embasados em
afirmações pseudocientíficas e científicas, ou melhor, tidas como verdades pelo corpo
social. A partir disso podemos argumentar que a formação dos saberes requer que se atente
para práticas discursivas e não discursivas e ao funcionamento entrelaçado delas, com
efeito, o saber e o poder se apoiam e se reforçam mutuamente numa racionalidade de
legitimação (FOUCAULT, 1979).

A opinião era para eles como que uma reatualização espontânea do


contrato. Eles desconheciam as condições reais de opinião, as media,
uma materialidade que obedece aos mecanismos da economia e do
poder em forma de imprensa, edição, depois de cinema e de televisão
(FOUCAULT, 1979, p. 224).

419
Para situarmos historicamente nosso objeto de estudo nesta discussão, contamos
com obras críticas sobre o golpe, a ditadura, suas rupturas e continuidades, como a
Revolução Burguesa no Brasil de Florestan Fernandes (2005) que ao empregar o conceito
de “revolução burguesa” como “tipo ideal”, o coloca como fio investigativo da gênese do
capitalismo brasileiro e seus desdobramentos e continuidades numa temporalidade que
remonta a realidade social atual. Partimos também das obras de Maria Helena Capelato e
Carlos Guilherme Mota (1981), chamada História da Folha de São Paulo: 1921 – 1981,
em que é traçado um panorama detalhado acerca da gênese e desenvolvimento do jornal
Folha de São Paulo percorrendo uma trajetória desde sua fundação e proximidade com os
assuntos que afetavam o dia a dia da população paulistana, principalmente os trabalhadores
urbanos; seu posicionamento em oposição ao Estadão, que assumia uma posição mais
conservadora, tradicional e rígida, até os dias atuais, traçando um perfil sério e um estudo
sobre a vida do jornal; de Nascidos para perder de Mylton Severiano (2012) que conta a
história d’O Estado de S. Paulo, fundado em 1875 para defender interesses de fazendeiros,
capitalistas e republicanos paulistas, sob a fachada de liberal. Perdeu todas as eleições na
República Velha, perdeu em 1930, 1932, mesmo em 1964 – sob censura após o golpe
vitorioso que apoiaram, perdeu espaço para os Frias (FOLHA) em 1984 ao negar apoio às
Diretas Já, perdeu em 2002 e 2006 para Lula e em 2010 e 2014 para Dilma.; e de A história
secreta da Rede Globo Daniel Hertz (1989) que aborda a criação da Rede Globo durante
a ditadura militar brasileira e as relações que a família Marinho, dona majoritária da
instituição, mantinha com a ditadura civil-militar, além dos procedimentos ilegais que
levaram à estruturação da emissora. Outra questão importante que tomamos como
fundamental para pensar criticamente a imprensa, agora sob o prisma de sua atuação
durante o regime ditatorial é levantada por de Beatriz Kushnir (2004) em Cães de Guarda,
Jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988, onde a autora traça um diagnóstico
da censura jornalística imposta pela ditadura, mapeando a experiência de
colaboracionismo de uma fração da imprensa com órgãos de repressão no pós-AI-5,
fazendo uma importante análise da posição dos próprios jornais, jornalistas e editores,
mostrando que muitas vezes, os próprios jornais e jornalistas censuravam a seus próprios
colegas e/ou subordinados, trabalhando como verdadeiros cães de guarda do regime
dentro das instituições midiáticas, ou seja, muitas vezes não era o governo que mandava
censurar algo que seria publicado, e sim os próprios editores ou donos do jornal. Cada
jornal obteve sua particularidade em relação à censura, exemplo disso foi o Estadão que
substituía as partes censuradas, a contragosto, do diário por receitas culinárias e poemas.

420
Problemática abordada também por Bernardo Kucinski (1998) quando este reflete sobre
a ética no jornalismo brasileiro: “Assim, com base no mecanismo da autocensura,
constituiu-se o pacto não escrito entre os barões da mídia e a hierarquia militar. A
autocensura passa a definir o padrão desse pacto e o padrão do controle da informação”.
(KUCINSKI, 1998, p. 62). Como havia uma censura instaurada no regime militar, o que
parecia para muitos jornalistas era que eles e seus superiores tinham o mesmo problema
em comum, a censura. Este alinhamento ideológico se deu pela conjuntura política e
econômica do momento, onde a Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo e O Globo
acabaram por se aproveitar do contexto em benefício de sua própria estruturação e dos
interesses de seus executivos e editores.
Nossa hipótese é de que nos anos que se seguiram após 1964, o que a Folha de S.
Paulo; O Globo e o Estado de S. Paulo fizeram foi criar representações que gerassem uma
justificativa à derrubada do governo legítimo de João Goulart e às consequências do regime
político que dali se formou e seu caráter violento e autoritarista. Temos o pressuposto de
que existe uma continuidade discursiva que perdura décadas na grande mídia brasileira,
em especial na grande imprensa, desde o golpe em 1964. Este objeto de pesquisa, aqui
apresentado, é pertinente para entendermos como o golpe de 1964 e a ditadura que dele
se sucedeu foram legitimados e justificados através dos grandes meios de comunicação,
forjando-se, assim, significados disseminados na sociedade acerca das ideologias que
figuraram o cenário político do período. Sobretudo, esta problemática nos permitirá
investigar quais valores e princípios contidos nas linhas editoriais destes jornais diários
foram enfatizados, ocultados ou criticados e quais projetos políticos a imprensa se alinhava
e se alinha historicamente desde o golpe até atualmente e quais suas continuidades e
rupturas, através da busca daquilo que tem sido interceptado e modelado nos discursos e
nas opiniões manifestas por seus editoriais, colunas, artigos e notícias em destaque. Nossos
objetivos são, portanto, pesquisar e analisar fragmentadamente e amostralmente as edições
dos jornais entre 1964 e 2014 no que tange suas abordagens sobre fatos e acontecimentos
históricos icônicos, representativos e marcantes relacionados à ditadura e ao golpe de 1964,
para assim termos um objeto de análise suficientemente denso que nos permita comprovar
nossa hipótese. Analisaremos comparativamente as coberturas feitas pelos jornais acerca
do Golpe de 31/03/1964; da instauração do AI-5 (supressão do habeas corpus e instauração
da censura) em 13/12/1968; da revogação do AI-5 em 13/10/1978; da promulgação da Lei
da Anistia em 28/08/1979; da Votação da Proposta de Emenda Constitucional Dante de
Oliveira (decidiria sobre o restabelecimento das eleições diretas para presidente da

421
república no Brasil após 20 anos de regime militar) em 25/04/1984; da promulgação da
Constituição Cidadã em 05/10/1988 e da data que marca o aniversário de 50 anos do
Golpe: 31/03/2014. Focaremos nossa análise no recorte da cobertura jornalística feita pela
Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo sobre os fatos históricos nas datas de
cada acontecimento exposto e nos três dias anteriores e nos três dias posteriores ao evento
abordado. Traçaremos, assim, as rupturas e continuidades das representações e discursos
que os enquadramentos destes jornais têm produzido em nossa sociedade e
internacionalmente desde o golpe até os dias de hoje. Cabe ressaltar que mesmo que os
conteúdos sejam assinados por terceiros, a linha editorial da Folha de S. Paulo, do Estadão
e d’O Globo são responsáveis por aquilo que é publicado, podendo dar mais ou menos
espaços e visibilidade nas edições dos jornais à determinadas posições ou determinados
assuntos, variando de acordo com as posições da própria linha editorial. Seguiremos os
mesmos procedimentos de coleta de dados que utilizamos em nossa pesquisa de Mestrado,
já estamos fazendo uma pesquisa detalhada nas páginas
http://edicaodigital.folha.com.br/login.aspx; http://acervo.folha.com.br/;
http://bd.folha.uol.com.br/; http://acervo.oglobo.globo.com/;
http://acervo.estadao.com.br/, mediante ferramentas, disponíveis (como já verificado) em
cada um dos campos e sistemas operacionais de pesquisa, de busca textual e temática de
todos os exemplares diários das datas pré-estabelecidas, em especial nos editoriais e
colunas de opinião (que são de extrema relevância, pois expressam posicionamentos e
tendências da entidade jornalística), em que serão recolhidos todos os fragmentos que se
reportem de alguma forma, subjetiva ou objetivamente, aos temas estabelecidos acima. Esta
pesquisa é importante porque a configuração do campo midiático atual é uma herança
direta dos tempos do regime militar, sendo a grande mídia (os maiores e principais meios
de comunicação) a mais poderosa instituição privada de hegemonia, principalmente pelo
fato de, no Brasil, ela funcionar como um setor da sociedade civil fiscalizador do poder,
portanto como um poder em si, porém sem um contra-poder que a fiscalize, ao menos
institucionalmente. O que suscita um debate fundamental para o desenvolvimento da
sociedade e fortalecimento da democracia brasileira no que tange compreender e tornar
claros os mecanismos de representação memorial histórica de grandes e expressivos órgãos
midiáticos nacionais, acerca de um assunto que interessa à sociedade brasileira como um
todo, elucidando a posição da Folha de S. Paulo do Estadão e d’O Globo perante a política
nacional. Para pensarmos a questão histórica e a posição desta elite da imprensa ao tratar

422
o ocorrido no período, podemos nos apoiar teoricamente em Theodor W. Adorno,
segundo o qual:

(...) a consciência consola-se argumentando que fatos dessa gravidade só


poderiam ter ocorrido por que as vítimas deram motivos quaisquer para
tanto, e este vago “motivos quaisquer” pode assumir qualquer dimensão
possível (ADORNO, 1995, p. 31).

Esta passagem de Adorno se refere a um período pós-nazismo na Alemanha,


porém pode ser transposta para o período pós-golpe no Brasil, para pensar a questão de
órgãos midiáticos que apoiaram um regime autoritário, pragmático e violento no país, e
que mesmo quando o regime se tornava cada vez mais autoritário, se referiu ao golpe de
uma forma delicada e cautelosa, construindo perante seus leitores e sociedade uma
imagem, acerca do golpe, que amenizasse seus traços e derrotasse no dia-a-dia o
ressentimento histórico dos adversários. O que é muito perigoso, uma vez que próprio
Adorno (1995) propôs que a “sobrevivência do fascismo e o insucesso da tão falada
elaboração do passado, hoje desvirtuada em sua caricatura como esquecimento do vazio e
frio, devem-se à persistência dos pressupostos sociais objetivos que geram o fascismo”, e
entendemos que um dos pressupostos sociais objetivos de que fala Adorno é a crença
disseminada de que regimes autoritários sejam necessários para se evitar algo pior,
exatamente como se sucedeu no Brasil após a instauração da ditadura civil-militar, quando
os golpistas e seus aliados se diziam necessários para evitar o pior, sendo o pior algo relativo
no que se trata de ideais políticos. Tudo isto se torna mais crítico quando o algo pior se
torna um tabu construído no espaço público, delineando uma sociedade cujos caminhos
para a consolidação da democracia são permeados por uma tradição política autoritária
evidente. Consideramos essencial, portanto, pensarmos como a memória do golpe de 1964
e do regime ditatorial que dele se formou, tem sido delimitada, desde o golpe até a
atualidade, através de representações, e sobre quais bases históricas, ideológicas e políticas
se sustenta. Afinal, a memória dos vencedores silencia aspectos fundamentais do passado.
E é, também, o que está silenciado que nos interessa.
A intenção dessa pesquisa é compreender a relação entre mídia, cultura e política
a partir do noticiário de grandes instituições de comunicação de massa. O objetivo é
dialogar com a nossa hipótese segundo a qual os jornais citados fizeram uma cobertura
jornalística ambígua, que retoma um período histórico conturbado e com suas feridas não
totalmente curadas, rememorando o que ele foi e o que representou (e representa), porém,

423
mostrando os fatos e as ideologias de formas mais amenas, e muitas vezes, omissas em
relação ao que foram de fato, criando justificativas ideologizadas para tornar plausível o
golpe e tudo o que dele se formou, mostrando como a memória do passado em questão é
mal resolvida na sociedade brasileira, inclusive (ou principalmente) no noticiário de jornais
tão significativos no país. A imprensa tem, como órgão midiático que é, o papel de suscitar
o debate na esfera pública, sendo um dos componentes da formação da opinião pública
brasileira e fonte de documentos jornalísticos que nos ajudam a entender a história do
Brasil uma vez que estes jornais aqui destacados cobriram momentos decisivos como os
acontecimentos e articulações que destituíram João Goulart da Presidência da República,
e com ele as possibilidades de realização das reformas de base, e continuam em intensa
atividade ainda nos dias de hoje. Porém, como a grande imprensa se configura por
instituições privadas que visam o mercado, ou seja, a mercantilização e comercialização da
notícia e preza pelo interesse de seus anunciantes, proprietários e editores, o que estas
entidades têm feito, em nosso ponto de vista, foi (quando inevitável) levantar debates
delicados sem se posicionar de forma clara para não comprometerem certa imagem
pública com o intuito de vender seus exemplares e se eximirem de qualquer culpa ou
responsabilidade que se pudesse, porventura, ser atribuída a elas, e, para isentarem-se de
vez de qualquer responsabilidade moral e ética, buscaram, durante os anos que sucederam
ao golpe de 1964, justificar o golpe e a ditadura civil-militar brasileira como perversos e
infames, porém necessários para se impedir algo supostamente mais perverso ainda.
Propomos a análise dos discursos midiáticos produzidos para podermos realizar uma
reflexão sobre as disputas e trocas simbólicas estabelecidas por instituições centrais do setor
midiático brasileiro e, por consequência, sobre a disputa, entre os oligopólios dos meios
de comunicação, pelo direito de colocar-se como construtores do sentido objetivo da
memória histórica recente do país. E, na tentativa de estabelecer uma relações entre a
mídia, a memória, a política e a cultura, propomos uma análise empírica sobre um conjunto
de discursos produzidos durante o período recortado, visando a compreensão da nossa
problemática a partir das disputas simbólicas no espaço midiático, que, segundo Bourdieu
(2000), proporcionariam a condição das instituições midiáticas colocarem-se como agentes
estruturadoras. Em nosso caso, os três jornais citados podem ser pensado como estruturas
estruturadoras da estrutura sociocultural da memória histórica.
Como orientação metodologica para pesquisar nosso objeto de estudo, recorremos
à Isabel Ferin Cunha (2012) em sua obra Análise dos Média, que nos norteou na pesquisa
de mestrado, uma vez que a autora faz um percurso acerca das teorias e metodologias de

424
análise midiática, apresentando três paradigmas analíticos e apontando que os métodos
mais eficientes atualmente são as análises do discurso e de conteúdo. A autora usa a análise
de conteúdo para realizar uma análise de mídia, com o objetivo de esclarecer o processo
científico necessário para realizar tal pesquisa, expressando que seus objetivos devem ser a
compreensão e interpretação de mecanismos que levam à elaboração de previsões e
antecipações, através da construção de cenários e tendências nas mídias. Entende que para
proceder a uma análise das mídias precisa-se observar os conteúdos veiculados pelos meios
e situar-se no contexto das empresas de mídia, de forma a interpretá-los em função dos
cenários em que estão inseridos. Complementando o paradigma metodológico que
utilizaremos neste projeto está a obra de Laurence Bardin (1977), chamada Análise de
Conteúdo. Esta obra é um manual operacional acerca do método de investigação da
Análise de Conteúdo, sendo este um dos meios mais eficazes para analisar mídias
impressas (CUNHA, 2012), por separar e analisar quantitativa e qualitativamente o objeto.
O que terá grande valia nas análises do conteúdo, que será organizado para esta pesquisa.
Partimos de um método de separação e organização de conteúdo, baseado em técnicas
clássicas da “Análise de conteúdo” (BARDIN, 1977) dividindo o material recolhido em
editoriais; colunas; notícias; reportagens e opinião do leitor (textos enviados por leitores,
mas selecionados pelo jornal). Uma vez assim divididos, os fragmentos recolhidos serão
subdivididos nos seguintes critérios de qualificação (RUBIM, 2004): Material de
enquadramento positivo - em que há referências positivas ao golpe e/ou à ditadura no que
tange sua suposta necessidade e importância; que reproduza declarações positivas acerca
de sua efetivação e de suas causas e consequências; relatos de fatos que o demonstrem
positivamente; declarações de pessoas que afirmem ser favoráveis ao golpe e à política e
dinâmica social dele resultantes (LIMA, 2007); Material de enquadramento negativo - em
que há referências negativas ao golpe e/ou à ditadura no que tange seus ares autoritários,
violentos e antidemocráticos; exposição crítica dos acontecimentos e das arbitrariedades do
regime decorrente do golpe; reprodução de críticas de terceiros (incluindo de adversários
políticos do regime e dos grupos golpistas) à sua ação política e imposições legais; relatos
de fatos que demonstrem negativamente o golpe e suas causas e consequências;
comentários de ordem política, moral ou pessoal, desfavoráveis à memória do que foi e do
que representou a tomada do poder por grupos políticos através de uma manobra civil-
militar (LIMA, 2006). Posteriormente à organização deste material, serão elaborados
gráficos quantitativos que expressem algumas tendências da cobertura jornalística da Folha
de S. Paulo, do Estado de S. Paulo e d’O Globo. Para se analisar qualitativamente o

425
conteúdo do discurso presente nos fragmentos, será feita uma leitura analítica destes, em
que serão destacados aqueles que reforcem ou refutem as hipóteses e pressupostos deste
projeto, de forma a exemplificar claramente os resultados obtidos. Para tanto, buscaremos
delimitar os ‘eixos temáticos de representação’ (RUBIM, 2004), outra formulação técnica
de pesquisa que utilizaremos para categorizar assuntos, acontecimentos e temas específicos
correntemente detectados no decorrer das publicações jornalísticas do período
determinado, forjando-se enquanto referências de representação da memória na medida
em que têm espaço nos enquadramentos publicados na imprensa e ganham atenção das
mídias e da sociedade. Consideraremos, no recorte de nosso objeto, ‘eixos temáticos de
representação’ os temas e assuntos que estiveram presentes em enquadramentos de
diversas e variadas datas e em diversos e variados setores do jornal. Os eixos são ‘nós’ que
aglutinam conteúdos jornalísticos que representam e rememoram o período histórico
estudado a partir da abordagem de algo específico. Uma vez feito este processo e
delimitados os ‘eixos temáticos de representação’ teremos condições de comprovar que a
Folha de S. Paulo, o Estado de S. Paulo e O Globo, ambiguamente, influenciaram na
construção da memória social do golpe de 1964 e da ditadura civil-militar de forma a
justificá-los numa temporalidade histórica contínua em que, devido aos excessos violentos
e desumanos do regime militar, ele tornou-se injustificável (ao menos no aspecto moral e
ético), no entanto necessário àqueles que eram aliados dos grupos que se perpetuaram no
poder através dele ou se beneficiaram de alguma forma de suas consequências.

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430
O ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 1980: A CONSTRUÇÃO
SOCIAL DO SUCESSO240

Tiago Barros de Oliveira ROSA241

Resumo: Trata-se de um estudo sobre o rock brasileiro dos anos 1980, também denominado Rock
Brasil. Intentamos apresentar o surgimento e a consolidação, na cena cultural brasileira, dessa
geração específica do rock nacional em diálogo com os marcantes acontecimentos políticos,
econômicos e sociais do período, tais como o gradual esfacelamento da ditadura civil-militar
brasileira (1964-1985), os movimentos sociais pela redemocratização, a eleição – ainda que indireta
– de um presidente civil e os diversos planos econômicos instituídos. Analisamos o Rock Brasil,
sobretudo, por meio do estudo da biografia coletiva (prosopografia) de alguns dos seus principais
personagens, isto é, dos integrantes das bandas que, segundo o público, a bibliografia e a crítica
cultural especializada, mais se destacaram no cenário musical dessa época. Buscamos demonstrar
que a geração de roqueiros brasileiros dos anos 1980 se caracterizou por ser, no tocante ao perfil
social de seus integrantes, um agrupamento bastante homogêneo, formado – em ampla maioria –
por indivíduos jovens, brancos, do sexo masculino e detentores de alto grau de capitais econômico,
social e cultural. O estudo da trajetória de vida dos agentes tem sua fundamentação nos
pressupostos teórico-metodológicos de Pierre Bourdieu. Segundo Bourdieu, os indivíduos são
condicionados, em suas ações e visões de mundo, pelo habitus – algo como uma matriz cultural
identitária que possui imbricada relação com a posição social ocupada pelos sujeitos em
determinada sociedade. Portanto, a compreensão da classe social de origem, dos capitais herdados
e adquiridos ao longo do processo de socialização, tem consequências para a compreensão da visão
de mundo e das crenças dos indivíduos. Em nossa hipótese, tratam-se, os agentes do movimento
Rock Brasil, de um grupo de poder econômico e simbólico significativo, uma classe dominante,
nos termos de Bourdieu. O estudo da biografia coletiva empreendida nessa pesquisa, nos permitiu
objetivar a orquestração de habitus do período, ou melhor, identificamos o habitus de classe dos
roqueiros dos anos 1980, constituído por uma geração de jovens, herdeira de alto capital
econômico e cultural, com aptidão socialmente construída para ocupar o lugar de destaque que
ocuparam. Trata-se, desse modo, de uma elite econômica e, sobretudo, cultural que produziu e
reproduziu crenças – por meio de músicas e declarações – que contribuiu para a formação cultural
do brasileiro daquela época, com eficácia simbólica até os dias de hoje.

Palavras-chave: Prosopografia. Rock brasileiro anos 1980. Sociologia Relacional de Pierre


Bourdieu.

INTRODUÇÃO

A historiografia brasileira registra no correr da década 1980 marcantes eventos, tais


como os momentos finais da ditadura civil-militar (1964-1985) e o processo de abertura
política.
Houve, durante o referido período, intensas movimentações em torno da exigência
de eleições diretas para presidente da república, contínua crise econômica, taxas
exorbitantes de inflação, planos econômicos diversos, instituição de novas moedas, eleição

240
Pesquisa desenvolvida no Nespom-FClar, sob a orientação da professora Maria Jardim
241
Bacharel em Ciências Sociais; Unesp/Araraquara; tiagobor2013@gmail.com

431
– ainda que indireta – do primeiro presidente civil em vinte e um anos (a súbita morte
desse futuro presidente dias antes de assumir o mandato), a promulgação de uma nova
constituição e, consequentemente, o nascimento da Nova República. Acontecimentos de
grande relevância nos planos político, econômico e social.
A esfera cultural, em articulação com o contexto descrito acima, igualmente,
encerrou significativas alterações. A partir principalmente do abrandamento da censura e
do patrulhamento ideológico, operou-se toda uma reformulação da relação entre os
produtores de bens culturais, os meios de comunicação de massas e o público.
Foram inaugurados espaços – festivais, programas de rádio e televisão, revistas,
colunas em jornais, etc. – dedicados a abrigar criadores e receptores de novas formas de
expressão e arte, culminando com a ascensão de novos personagens ao panteão artístico
nacional. (ALONSO, 2015; MAGI, 2011).
Dessa forma, o aparecimento da geração do rock brasileiro dos anos 1980 está
atrelado à convergência de uma série de eventos sociais, econômicos e políticos. Com base
na bibliografia estudada (MAGI, 2011; PAIVA, 2016; ALONSO, 2015) podemos destacar
principalmente: i) o gradual esfacelamento da ditadura civil-militar e a consequente
abertura política; ii) a crise financeira pela qual passava o Brasil e a indústria fonográfica no
período; e iii) o envelhecimento e desgaste dos ídolos da MPB que dominavam o campo
musical no Brasil.
Note-se que os elementos que acima fazemos referência estão articulados entre si.
A lenta derrocada do regime ditatorial acarreta toda uma reestruturação do Estado
brasileiro, afetando, além das instâncias jurídicas, políticas e econômicas, também a
cultural. Nesse sentido, o Rock Brasil – que irá eclodir em 1982 – é fruto do processo de
abrandamento do Estado autoritário e da censura (DAPIEVE, 2015; PAIVA, 2016;
ALEXANDRE, 2013).
Os autores pesquisados destacam, como fundamental para a eclosão do Rock
Brasil, a ausência de identificação do público jovem com os antigos e consagrados artistas
da MPB, especialmente, após o fim da ditadura quando a linguagem rebuscada e
metafórica utilizada para “driblar” a censura teria perdido parte de sua função.

Teria sido impossível fazer um rock (in)descente, cantado em português,


sob a violenta censura. Por outro lado, o uso forçado do cachimbo
deixara a boca da MPB torta. Quando a vigilância foi abrandada, ela teve
dificuldades de se livrar de seus antigos artifícios de sobrevivência –
linguagem rebuscada, metáforas impenetráveis, primado do

432
subentendido – e falar olhando nos olhos de novos públicos, sobretudo
o jovem urbano (DAPIEVE, 2015, p. 205).

Os autores evidenciam, também, a oposição declarada e as provocações, em


entrevistas, músicas e apresentações, feitas pelos novos roqueiros aos astros da música
popular brasileira (ALONSO, 2015; MAGI, 2011; DAPIEVE, 2015; PAIVA, 2016).

Em 1985 Roger, do Ultraje a Rigor, entrava na briga: “A MPB tradicional


está se repetindo, o público sente isso e os músicos iniciantes também.
(...) Aqui o rock chegou com o fim ditadura. O samba não serviria como
trilha sonora dessa época que vivemos porque é um gênero conformista,
que exalta a miséria (ALONSO, 2015, p. 6).

Inserida no contexto da redemocratização e da demanda por renovação artística


por parte do público jovem, a crise comercial que acometia as principais gravadoras
brasileiras foi também decisiva para a ascensão de novos personagens na cena musical do
país (DAPIEVE, 2015; MAGI, 2011).

[...] a MPB se aburguesara, autocomplacente e autofágica – estéril.


Sustentar esse gênero hipertrofiado saía caro para as gravadoras [...]. O
disco do tronco principal da MPB tinha um intérprete caro, que cantava
um repertório caro (em direitos autorais) sustentado por músicos e
produtores caros, sem falar em eventuais participações especiais ou
gravações no exterior. E, apesar de todo esse aparato, nem vendia muito.
Trinta ou quarenta mil cópias eram comemoradas efusivamente
(DAPIEVE, 2015, p. 25-26).

É dos circuitos alternativos do eixo Rio-São Paulo que sairiam as bandas que
conseguiram se estabelecer simbolicamente, no sentido usado por Bourdieu (2006), e
comercialmente, atingindo o mainstream na cena do rock nacional.
Casas noturnas como Madame Satã, Napalm ou Carbono 14 em São Paulo ou o
Circo-Voador no Rio de Janeiro, são espaços que se tornaram famosos por abrigar bandas,
então desconhecidas, tais como: Blitz, Paralamas do Sucesso, Engenheiros do Hawaii,
Legião Urbana, Capital Inicial, Ira!, Titãs, Ultraje a Rigor, Barão Vermelho, etc.
(DAPIEVE, 2015; PAIVA, 2016; MAGI, 2011).
O circuito, então underground – alternativo ou restrito a um grupo reduzido de
pessoas –, passou, gradualmente, por um processo de expansão de público e de
profissionalização, consequentemente os ganhos financeiros foram aumentando
substancialmente.

433
É a partir desse momento que os grupos musicais, que citamos acima, irão
desenvolver suas carreiras de forma profissional, amparados por empresários e gravadoras
(muitas vezes multinacionais) que atuarão de modo planejado para promover seus discos
e shows.
Considerando este contexto, esse artigo tem como objetivo geral, realizar um estudo
sobre o rock brasileiro dos anos 1980, uma geração específica do rock nacional, aqui
denominada Rock Brasil, surgida na cena musical e cultural em princípios da referida
década, enquanto no horizonte político-social ocorria o processo de redemocratização do
país.
Assim, além de contextualizar o surgimento e a consolidação do rock nacional dos
anos 1980 – em diálogo com alguns dos acontecimentos que marcaram a historiografia
brasileira – realizamos o estudo da biografia coletiva (prosopografia) de determinados
expoentes do Rock Brasil, ou seja, analisar a origem social e trajetória de vida dos
integrantes das mais destacadas bandas desse período.
Com relação ao método prosopográfico, este pode ser sintetizado como uma
investigação das características em comum de um grupo de atores em determinado campo
ou recorte histórico, buscando articular trajetórias individuais e coletivas. Isso permitiria
observar os grupos sociais em suas dinâmicas internas e em sua relação com outros grupos,
em especial, com o espaço do poder (JARDIM, 2014).
O estudo prosopográfico concentra-se em fatores previamente determinados da
trajetória dos agentes, entre eles: nascimento e morte, casamento e família, origens sociais
e posição econômica herdada, lugar de residência, educação, tamanho e origem da riqueza
pessoal, ocupação, religião, diplomas, renda, cultura, etc.
Para a realização do estudo prosopográfico, selecionamos trinta nomes de agentes
que se destacaram no referido período, a saber: Arnaldo Antunes, Paulo Miklos, Branco
Melo, Tony Belotto, Nando Reis, Marcelo Fromer, Charles Gavin e Sérgio Brito dos Titãs;
Herbert Viana, Bi Ribeiro e João Barone dos Paralamas do Sucesso; Cazuza, Roberto
Frejat e Guto Goffi do Barão Vermelho; Evandro Mesquita, Lobão e Fernanda Abreu da
Blitz; Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos da Legião Urbana; Além de Paula
Toller (Kid Abelha), Roger Moreira (Ultraje a Rigor), Paulo Ricardo (RPM), Nasi e Edgard
Scandurra (IRA!), Clemente (Inocentes), André Petrorius (Aborto Elétrico), Dinho Ouro-
Preto e Fê Lemos (Capital Inicial) e Humberto Gessinger (Engenheiros do Hawaii).
Justificamos que a seleção dos agentes e dos grupos musicais que foram analisados
deu-se com base no critério de sucesso comercial, reconhecimento pela crítica

434
especializada e importância histórica para o desenvolvimento da geração do rock dos anos
1980.
Dentre as variáveis às quais atentamos, demos destaque ao local onde o agente
nasceu, assim como a profissão de seus pais (e se possível, avós), sobretudo, do pai, visto
que em gerações anteriores era menos comum as mulheres trabalharem (fossem de estrato
social baixo ou elevado). Para Bourdieu (2001), é de nosso núcleo familiar que herdamos,
além do capital econômico – bens ou posses materiais –, igualmente, os capitais social e
cultural – imateriais ou simbólicos, mas não menos importantes (visto que podem ser
reconvertidos em capital econômico e vice-versa).
Outro quesito importante na perspectiva da sociologia relacional, diz respeito à
educação formal recebida pelos atores sociais. A trajetória educacional dos indivíduos –
formação básica e superior, e as instituições por onde passaram – são constitutivas (embora
não exclusivamente) daquilo que Bourdieu intitulou capital cultural legítimo, logo,
valorizado no mercado de bens simbólicos. Essas variáveis ganharão destaque em nosso
estudo.
Nossas fontes de pesquisa para elaborar o estudo prosopográfico foramo, além das
informações encontradas na bibliografia sobre o tema, entrevistas concedidas pelos
músicos à imprensa, biografias em sites oficiais dos artistas e perfis mantidos em
enciclopédias colaborativas (como a Wikipédia).
Nosso método se inspira na sociologia relacional de Pierre Bourdieu,
especialmente o conceito de habitus.
Para o sociólogo francês, os indivíduos seriam condicionados, em suas ações,
escolhas e visão de mundo, pelo habitus, isto é, algo como uma matriz cultural identitária
que predispõe os sujeitos – a “gostar” ou execrar algo, como um partido político ou um
estilo musical, por exemplo – e possui imbricada relação com os capitais – econômicos,
social e cultural – herdados ou adquiridos no processo de socialização, em suma, com a
posição social ocupada em determinada sociedade (BOURDIEU, 2006).
Nesse sentido, o estudo da trajetória de vida ou da herança social dos agentes é
relevante, uma vez que, a compreensão da classe social de origem, dos capitais e bens
simbólicos adquiridos tem consequências para a compreensão da visão de mundo e das
crenças destes indivíduos (JARDIM, 2014).
No caso do agrupamento de músicos estudados, suas respectivas crenças
incorporadas serão difundidas, por meio de músicas, declarações e tomadas de posição,
com o reforço da indústria cultural brasileira, a um grande público.

435
Esclarecemos, ainda, que nosso conceito de crença é inspirado em Bourdieu, para
quem, crença é um conceito estabelecido de “verdade”, um senso comum compartilhado
e incorporado – no corpo e na mente –, como algo “natural”, como um consenso, como
um senso prático. Em Bourdieu (2001), crença é a doxa dominante, sendo a doxa uma
verdade imposta, mas que por ser naturalizada, não se nota sua arbitrariedade. Portanto,
as lutas e disputas sociais seriam para a imposição da doxa ou do senso comum.
Além desta introdução e das considerações finais, o artigo é composto pela segunda
seção onde discutimos a institucionalização e a legitimação do rock brasileiro nos anos
1980 e pela seção três onde apresentamos os resultados da pesquisa prosopográfica.

O ROCK BRASILEIRO DOS ANOS 1980: CONSOLIDAÇÃO NO CENÁRIO


CULTURAL

Segundo Dapieve (2015) a institucionalização do rock no Brasil, em especial do


rock dos anos 1980, está atrelada ao seu engajamento na luta pela redemocratização no
país. “A tese é a de que o rock só conquistou cidadania brasileira nos anos 80, superando
décadas de desconfiança ideológica, graças à sua participação no movimento de
redemocratização (2015, p. 07).
Alonso (2015), embora pareça não concordar completamente com esse fato, e
proponha novos caminhos para a compreensão do processo que culmina com a
assimilação do mainstream do Rock Brasil ao “panteão artístico nacional” (2015, p. 02),
assinala que “a ideia de que o rock ‘também’ foi resistência ao regime militar tornou-se
consenso na bibliografia” (2015, p. 11).
Magi (2011) analisa a consolidação e autonomização do campo – nos termos de
Pierre Bourdieu – do rock no Brasil. A autora busca compreender “as interferências dos
múltiplos agentes sociais envolvidos e mobilizados” na consolidação desse campo
específico da música brasileira (2011, p. 07). Os “múltiplos agentes sociais” a que faz
referência a autora, são, além dos músicos integrantes das bandas dos anos 1980, também,
os jovens jornalistas, radialistas e produtores musicais que irão ascender a postos chave da
indústria cultural brasileira.
Sua pesquisa destaca o papel fundamental da imprensa na legitimação, frente ao
grande público, do campo do rock no Brasil e, sobretudo, o papel da crítica cultural
especializada, enquanto instância consagradora, capaz de instituir “porta-vozes de uma
nova geração” (MAGI, 2011, p. 35).

436
Alonso (2015) argumenta que o status e a legitimidade obtidas pela geração roqueira
dos anos oitenta, principalmente, a partir de meados da década, se deu por meio da
aproximação com setores da MPB. Embora essa alegação possa parecer contraditória em
relação ao que afirmamos na introdução deste projeto, o autor explica que tal aproximação
não foi um processo linear.
Assim como os demais autores estudados, Alonso (2015) também evidencia a
hostilidade e as investidas dos jovens roqueiros contra os artistas renomados e estabelecidos
da MPB. No entanto, o autor aborda com acuidade a questão referente às concepções
hierarquizantes da música brasileira.
Nesse sentido, Alonso (2015) demonstra que a proximidade de determinados
músicos do Rock Brasil com personalidades da MPB, objetivava a obtenção de ganhos
simbólicos por parte dos primeiros. Embora essa aproximação também tenha sido benéfica
aos artistas consagrados, pois estes puderam, desse modo, renovar seu próprio público.
O símbolo maior da associação e incorporação de setores do Rock Brasil com a
MPB, é Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza. O cantor e compositor, ainda no
Barão Vermelho, foi louvado por Ney Matogrosso e Caetano Veloso, sendo
crescentemente estimado por críticos porque era visto como um músico não “limitado” ao
rock (ALONSO, 2015). Renato Russo, Herbert Vianna – dos Paralamas do Sucesso – e
os integrantes dos Titãs, como Nando Reis e Arnaldo Antunes, igualmente, são aceitos sob
o “manto” da MPB.
O ano de 1986 marcaria o auge da exposição e do sucesso comercial dessa geração
do rock nacional. Destacam-se, nesse ano, as expressivas marcas de vendas de discos dos
Paralamas do Sucesso (300 mil cópias), da Legião Urbana (800 mil cópias) e, sobretudo,
do RPM (2.2 milhões de cópias).
Tal feito não pode ser dissociado da conjuntura econômica (política e social) em
que estava inserido o país naquele momento. Em 28 de fevereiro de 1986, o então
presidente, José Sarney anunciara em rede nacional de rádio e televisão a criação de um
novo plano econômico, com vistas a controlar a inflação e devolver o poder aquisitivo aos
trabalhadores.
O Plano Cruzado – entre outras medidas, obrigava o congelamento de preços e
instituía uma nova moeda, o Cruzado, em substituição ao Cruzeiro. Houve, então, um
breve momento de euforia por parte da população, que com a “inflação domada na marra”,
viu seu poder de compra aumentar e uma injeção de novos consumidores no mercado
(ALEXANDRE, 2013, p. 265).

437
A geração de bandas de rock que floresceu em princípios dos anos oitenta, atingiu
o ápice da exposição e do sucesso comercial a partir de meados dessa década, quando, em
paralelo, alguns de seus expoentes passaram a obter o reconhecimento junto às instâncias
consagradoras da música popular brasileira, ao aproximar-se os anos 1990, foi perdendo
suas forças.
A partir de 1989, principalmente, o rock começou a não vender mais como antes
e foi perdendo seu espaço nos meios de comunicação de massas para outros estilos
musicais, sobretudo, para o sertanejo, o axé e o pagode que dominaram o cenário musical
após a virada da década (PAIVA, 2016).

RESULTADOS: PERFIL SOCIAL DOS ROQUEIROS BRASILEIROS

Apresentaremos, nessa seção, os dados coletados em nossa pesquisa


prosopográfica relativa ao perfil social de alguns dos principais atores da geração musical
denominada Rock Brasil. Iremos evidenciar aspectos da trajetória individual dos músicos
que justificam nossa hipótese, a saber, que tratam-se – em sua maioria – de jovens
pertencentes a um estrato social privilegiado, portadores, sobretudo, de alto grau de capitais
econômico, social e cultural, principalmente, quando comparados com o restante da
população brasileira do mesmo período histórico.
Conforme explicado em nossa introdução, as fontes de pesquisa para elaborar as
tabelas com os dados prosopográficos foram, além dos livros escritos pelos jornalistas que
fizemos referência ao longo deste escrito e da bibliografia sobre o tema, entrevistas
concedidas pelos músicos à imprensa, biografias em sites oficiais dos artistas e perfis
mantidos em enciclopédias colaborativas, tais como a Wikipédia.
Com relação ao nosso recorte dos atores, o primeiro aspecto que gostaríamos de
realçar é a proporção muito maior de integrantes do sexo masculino. À exceção de
Fernanda Abreu, backing vocal da banda Blitz, e de Paula Toller, vocalista do grupo Kid
Abelha, os principais expoentes do Rock Brasil são todos homens.
Em sua absoluta maioria, também, são brancos, excetuando-se Clemente, líder,
baixista, vocalista e compositor da banda Inocentes, que é negro. Ademais, de acordo com
nossa pesquisa, é um dos únicos cuja origem social é dos estratos econômicos mais baixos
da sociedade. Morador de um bairro periférico paulistano, seu pai vendia guarda-chuvas
na Praça da Sé e sua mãe trabalhou como empregada doméstica.

438
Outro fator relevante, que os aproxima ou agrupa, é a faixa etária. O corte
geracional demonstra que os músicos em sua ampla maioria tinham vinte e pouco anos,
alguns até menos, quando principiaram os anos 1980. Os mais velhos de nossa amostra
são Evandro Mesquita (Blitz), nascido em 1952, Roger Moreira (Ultraje a Rigor), em 1956,
e Lobão (Blitz/Solo), em 1957. Se retirarmos esses três nomes de nossa lista, todos os
demais integrantes nasceram após 1958.
O local onde nasceram – um importante referencial dentro da perspectiva teórica
de Bourdieu –, da mesma forma, aproxima suas trajetórias individuais. Os agentes sociais,
que aqui analisamos, tem seu lugar de origem, principalmente, nos dois estados com maior
poder econômico e cultural da federação – Rio de Janeiro e São Paulo.
Herbert Vianna (Paralamas do Sucesso) é paraibano, mas muda-se com sua família,
ainda na infância, para Brasília; assim como Dinho Ouro-Preto (Capital Inicial) que nasceu
no Paraná, mas durante sua infância e juventude morou na Áustria, Suíça e E.U.A antes
de se fixar na capital federal, o centro do poder nacional. Apontamos, ainda, Dado Villa-
Lobos (Legião Urbana) que nasceu na Bélgica, André Petrorius (Aborto Elétrico) na África
do Sul e Humberto Gessinger (Engenheiros do Hawaii) que é gaúcho de Porto Alegre.
Elemento fundamental para se objetivar a posição social de origem de determinado
indivíduo é a profissão de seus pais, sobretudo, do pai, visto que em gerações anteriores
era menos comum as mulheres trabalharem (fossem de estrato social alto ou baixo). É de
nosso núcleo familiar que herdamos, além do capital econômico – os bens ou posses
materiais –, igualmente, os capitais social e cultural – imateriais ou simbólicos, mas não
menos importantes (visto que podem ser reconvertidos em capital econômico).
Nesse quesito, chamam nossa atenção as altas posições ocupadas pelos
progenitores dos artistas do Rock Brasil, principalmente, das bandas de maior expressão
no interior dessa geração ou movimento, tais como Barão Vermelho, Legião Urbana, Titãs
e Paralamas do Sucesso. Entre os integrantes desses grupos encontramos músicos que são
filhos de políticos de expressão nacional, diplomatas, militares de alta patente, professores
universitários e executivos de grandes corporações.
Os líderes e compositores do grupo carioca Barão Vermelho, Roberto Frejat
(Guitarrista) e Cazuza (vocalista), são filhos, respectivamente, de José Frejat, um político
carioca, e João Araújo, produtor musical e executivo da indústria fonográfica.
José Frejat foi vereador na cidade do Rio de Janeiro, deputado estadual pelo mesmo
estado (1960 a 1962) e, em 1978, eleito deputado federal, sendo reeleito à câmara federal
pelo PDT em 1982.

439
O pai de Cazuza, João Araújo, fez carreira como produtor musical e diretor artístico
em diversas gravadoras multinacionais, foi o responsável pela contratação de Gal Costa,
Jorge Ben Jor e Caetano Veloso para a então gravadora Phillips. Em 1969, fundou a Som
Livre – pertencente às Organizações Globo –, e que viria a se tornar líder no mercado
fonográfico nacional, tornando-se seu principal executivo.
O pai de Sérgio Brito, tecladista, vocalista e compositor dos Titãs, é o político
Amazonense Almino Monteiro Alves Afonso. Almino Afonso foi eleito deputado federal
pelo Amazonas em 1958, e reeleito no pleito de 1962. Assumiu o posto de ministro do
Trabalho e da Previdência Social no governo de João Goulart em 1963. Cassado pela
ditadura civil-militar retorna ao Brasil em 1976, onde participa da gestão do, então
governador paulista, Franco Montoro. Almino Afonso elegeu-se vice-governador do estado
de São Paulo na chapa de Orestes Quércia e exerceu a função de governador do estado
nas viagens e impedimentos do titular.
Bi-Ribeiro (Paralamas do Sucesso) e Dado Villa-Lobos (Legião Urbana) são filhos,
respectivamente, dos diplomatas Jorge Carlos Ribeiro e de Jayme Villa-Lobos. O diplomata
Jorge Carlos Ribeiro – pai de Bi – foi chefe do cerimonial da presidência da república no
governo Ernesto Geisel.
Dado Villa-Lobos, que é sobrinho-neto do compositor Heitor Villa-Lobos
(considerado o maior expoente da música modernista brasileira), em função da profissão
de seu pai, nasceu na Bélgica, morou no Uruguai na infância e por quatro anos, morou na
capital francesa, até 1979, quando mudou-se para Brasília, onde passaria a integrar a banda
Legião Urbana.
Também são filhos de Diplomatas o cantor Dinho Ouro-Preto (Capital Inicial),
Phillipe Seabra (Plebe Rude) e André Petrorius (Aborto Elétrico). O Aborto Elétrico é
uma banda lendária de Brasília, conhecida pelos admiradores do rock nacional por ser a
primeira banda de Renato Russo e por ter dado origem, após a sua dissolução, à Legião
Urbana e ao Capital Inicial – maiores nomes do rock brasiliense.
O pai de Herbert Vianna foi militar, brigadeiro da Aeronáutica, responsável pelos
voos da presidência da república durante o governo do general Ernesto Geisel. É conhecida
a história da primeira guitarra de Herbert Vianna – trazida por seu pai, dos
E.U.A, em um dos Voos do presidente – quando, naquele momento, eram
proibidas as importações desses artigos.
Renato Manfredini Júnior, o Renato Russo, é filho da professora Maria do Carmo
Manfredini e do economista Renato Manfredini. A família Manfredini, após a obtenção de

440
uma bolsa de estudos pelo pai de Renato Russo, muda-se para Nova Iorque, em 1968,
quando o cantor e compositor tinha 8 anos de idade. Em 1970 retornam ao Brasil e em
1973, fixam-se em Brasília. Renato Manfredini era funcionário público de carreira no
Banco do Brasil e ocupou o cargo de assessor da presidência deste banco.
Brasília se tornaria um centro irradiador de músicos que se destacaram no rock
brasileiro dos anos 1980. Renato Russo, Herbert Vianna, Dado Villa-Lobos, Bi-Ribeiro,
Dinho Ouro-Preto, Philippe Seabra e os irmãos Fê e Flavio Lemos (Aborto
Elétrico/Capital Inicial) não só eram do Distrito Federal, como eram amigos próximos.
Herbert Vianna e Bi-Ribeiro acabariam por fundar os Paralamas do Sucesso,
juntamente com o baterista João Barone, no Rio de Janeiro, mas tiveram proximidade com
os músicos que citamos acima. Estes faziam parte de um grupo de amigos que se auto
intitulou “turma da Colina”. O nome é uma referência ao conjunto de prédios do Distrito
Federal – Colina – projetado para residência dos professores e servidores da Universidade
de Brasília (UNB), onde esses jovens se reuniam.
Na Colina moravam Fê e Flavio Lemos que integraram, com Renato Russo, a
banda Aborto Elétrico e após desentendimento, formaram o grupo Capital Inicial, com
Loro Jones e Dinho Ouro-Preto. O pai dos irmãos Lemos era professor de
Biblioteconomia na UNB e se muda com a família para a Inglaterra em 1977. Fê e Flavio
Lemos chegariam em território britânico no auge do movimento punk, o que acabou por
exercer grande influência em suas trajetórias de vida e de artistas.
Outros expoentes do Rock Brasil, igualmente, eram filhos de professores
universitários de instituições de renome, tais como Tony Belloto (Titãs), Arnaldo Antunes
(Titãs) e Humberto Gessinger (Engenheiros do Hawaii).
Outro quesito importante na perspectiva da sociologia relacional, diz respeito à
educação formal recebida pelos atores sociais. A trajetória educacional dos indivíduos –
formação básica e superior, e as instituições por onde passaram – são constitutivas (embora
não exclusivamente) daquilo que Bourdieu intitulou capital cultural legítimo, logo,
valorizado no mercado de bens simbólicos.
Conforme demonstram nossos dados, os roqueiros da geração de 1980, estudaram,
em sua maioria, em colégios particulares, muitas vezes de renome, destinados aos filhos da
elite brasileira. Tal como Cazuza, que frequentou o tradicional colégio carioca Santo
Inácio, por onde passaram também: Vinícius de Moraes, Armínio Fraga, Pedro Malan,
Eduardo Viveiros de Castro, Luís Gastão de Orléans e Bragança, dentre outros nomes de
evidência dos mais variados campos da sociedade brasileira.

441
Em Brasília, Renato Russo estudou no colégio Marista, igualmente, uma escola
privada, católica e de tradição, onde foi colega de sala, por exemplo, do filho do então
deputado federal Afrísio Vieira de Lima, o Geddel Vieira Lima, que viria a se eleger
deputado federal pelo estado da Bahia por 5 vezes consecutivas e se tornar ministro de
Estado em dois governos distintos, antes de ser preso pela polícia federal no mês de julho
de 2017.
Ainda com relação à formação educacional básica, gostaríamos de evidenciar o
significativo caso do grupo Paulista Titãs. Com exceção do guitarrista Tony Belotto e do
baterista Charles Gavin, os outros seis membros da formação “clássica” da banda – Arnaldo
Antunes, Sérgio Britto, Branco Mello, Nando Reis e Paulo Miklos – se conheceram na
escola onde estudavam, o famoso colégio paulistano Equipe. Inclusive, começaram a tocar
juntos nas dependências desta instituição.
O colégio Equipe, durante os anos 1970, foi um foco de resistência ao regime
militar, seus professores e diretores tinham histórico de participação na luta democrática,
destacamos José Genoíno, ex-presidente nacional do Partido dos Trabalhadores e ex-
deputado federal, que foi professor de história no curso pré-vestibular desse colégio.
Além disso, o Equipe se tornou conhecido por desenvolver um forte trabalho de
arte-educação, valorizando e incentivando as atividades artísticas por parte de seus alunos.
O colégio promovia, ainda, uma forte programação cultural, a cargo na época, em que os
futuros integrantes dos Titãs lá estudavam, do funcionário Sérgio Groisman – futuro
apresentador de televisão –, responsável pelas apresentações que ocorriam no interior da
escola, de artistas como Gilberto Gil, João Bosco, Hermeto Pascoal, Raul Seixas e Luiz
Gonzaga.
Os Titãs, em suas entrevistas ou biografias, sempre fazem referência a esse período
vivido no colégio Equipe. Arnaldo Antunes, considerado uma das principais mentes do
grupo, que antes de estudar no Equipe, passou pelos colégio de aplicação da PUC-SP e
pelo colégio Luís de Camões, declarou: “aquela época era uma idade definidora da vida
da gente, de tomar consciência, dos 15 aos 18 anos", recorda. "É uma coisa muito marcante.
Vivi essa coisa no Equipe e considero uma sorte tremenda.
Quanto aos estudos superiores, é interessante notar, que muitos dos músicos aqui
observados ingressaram em universidades, no entanto, em função desse período ter
coincidido com o momento em que começaram a fazer sucesso com suas bandas,
acabaram por abandonar seus respectivos cursos.

442
Os expoentes do rock brasileiro dos anos oitenta passaram pelas faculdades de
jornalismo (Renato Russo e Paulo Ricardo), Arquitetura (Humberto Gessinger, Roger
Moreira, Herbert Vianna e Fernanda Abreu), Letras (Arnaldo Antunes), Matemática
(Nando Reis), Ciências Sociais (Dado Villa-Lobos e Fernanda Abreu), Psicologia (Fê
Lemos), dentre outras.
A circulação internacional, ou seja, viagens e períodos morando no exterior, antes
de alcançar projeção no cenário cultural brasileiro com sua produção artística foi,
igualmente, um traço definidor dessa geração.
Além de Renato Russo, que morou em Nova Iorque durante sua infância, dos filhos
de diplomatas e professores universitários que citamos acima, outros roqueiros brasileiros
puderam usufruir dessa oportunidade. Roger (Ultraje a Rigor) morou por um ano e meio,
entre 1979 e 1980, em São Francisco, cidade estadunidense no estado da Califórnia,
intimamente ligada ao rock. Paulo Ricardo morou entre 1982 e 1983 em Londres, antes
de formar o grupo RPM que se destacaria no cenário musical após 1985. E Cazuza, assim
como Roger, morou na Califórnia, o cantor cursou fotografia na universidade de Berkeley
durante sete meses no ano de 1979.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa teve como tema o rock brasileiro dos anos 1980, uma geração
específica do rock e da música nacional, que surgiu e se consolidou na cena cultural ao
mesmo tempo em que ocorriam marcantes eventos da historiografia brasileira.
Apesar de ser um tema razoavelmente explorado na bibliografia – não é marginal
como nos anos 1990, mas ainda longe da atenção e consagração que recebem as
manifestações artísticas e musicais relacionadas ao “bom gosto”, como a MPB, Bossa Nova
e Tropicália, por exemplo – não encontramos pesquisas com o objetivo de compreender
o habitus individual-coletivo dos agentes de destaque do período.
Há bastante literatura – acadêmica e não acadêmica –, sobretudo, com relação aos
dois maiores expoentes dessa geração: Renato Russo e Cazuza (que em vida já haviam
conquistado reconhecimento, mas o infortúnio da morte precoce contribuiu na construção
do mito em torno de suas figuras). Porém, na perspectiva da “ilusão biográfica”
(BOURDIEU, 1996), ou seja, a biografia ou história do artista isolada das demais histórias
e biografias de sua época ou geração.

443
Desse modo, nossa originalidade foi, a partir da sociologia relacional de Pierre
Bourdieu, realizar o estudo prosopográfico dos roqueiros dos anos 1980, buscando
identificar o perfil social individual e coletivo dos principais expoentes do Rock Brasil.
Nossos achados indicam a existência de um habitus coletivo de características:
masculino, branco, entre 18-26 anos, origem geográfica do Sudeste (especialmente São
Paulo e Rio de Janeiro), com circulação internacional e oriundos de famílias com alto
capital econômico e cultural, sendo filhos de políticos de expressão nacional, diplomatas,
professores universitários e executivos do alto escalão de empresas públicas e privadas.
Trata-se de um grupo de poder econômico e simbólico significativo, uma classe
dominante, nos termos de Bourdieu. O estudo da biografia coletiva empreendida nessa
pesquisa, nos permitiu objetivar a orquestração de habitus do período, ou melhor,
identificamos o habitus de classe dos roqueiros dos anos 1980, constituído por uma geração
de jovens, herdeira de alto capital econômico e cultural, com aptidão socialmente
construída para ocupar o lugar de destaque que ocuparam.
Finalmente, trata-se, desse modo, de uma elite econômica e, sobretudo, cultural
que produziu e reproduziu crenças – por meio de músicas e declarações – que contribuiu
para a formação cultural do brasileiro daquela época, com eficácia simbólica até os dias de
hoje.

REFERÊNCIAS

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filosóficos. Rio de Janeiro, Zahar, 1985.

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MAGI, Érica. Rock and roll é o nosso trabalho: a Legião Urbana do underground ao
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Monografia (graduação em Ciências Sociais) – Faculdade de Ciências e Letras,
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a questão das classes. Novos Estudos-CEBRAP, São Paulo, n. 96, p. 87-103, 2013.

445
A REPRESENTAÇÃO DO BRASIL NA MÚSICA POPULAR
BRASILEIRA: ANÁLISE DO ÁLBUM “SAUDADE DO BRASIL” DE
ELIS REGINA

Daniel da Silva PIRES242

Sulivan Charles BARROS243

Resumo: Na proposta de discutir Cultura, Identidade e Memória, este trabalho se propõe a


entender de que forma a Música Popular Brasileira foi e permanece sendo uma transmissora de
discursos políticos que servem como retrato, resistência ou crítica a determinados períodos
históricos. Neste sentido, a obra deixada pela cantora Elis Regina representa o cenário artístico-
cultural do Brasil em sua efervescência, especialmente nas décadas de 1960 e 1970. Em “Saudade
do Brasil” (1980), álbum que originou mais um de seus espetáculos, deu continuidade a uma nova
fase da carreira de Elis, que a partir de 1975 se tornara referência na montagem de espetáculos
musicais, nos quais se apropriava de características circenses, dançantes e teatrais. Nesta montagem,
a intérprete se posiciona como uma artista que se inclui no contexto de repressão militar, de
exclusão social e da situação das mulheres no Brasil. Suas propostas artísticas desta época traziam,
sobretudo, conteúdos marcados por crítica social, em um processo de identificação do artista com
o cidadão comum, das muitas categorias sociais estabelecidas. Tendo como ponto referencial a
subárea da Sociologia da Cultura, esta pesquisa tem o objetivo de estabelecer relações entre a
produção cultural da época com a atualidade, compreendendo o conceito de indústria cultural e
constatando os impactos da obra de Elis Regina no contexto de mercantilização da música e da arte
brasileiras, mas também de reação política a tais questões. Através de uma análise das músicas
presentes no álbum “Saudade do Brasil” e o processo de montagem deste espetáculo retratados
em biografias escritas e arquivos de audiovisual, o trabalho se apresenta como relevante para a
discussão de democracia apresentada congresso, discutindo o acesso à arte e produção cultural
pelas mais diversas camadas sociais do Brasil.

Palavras-chave: Sociologia da Cultura. Memória. Saudade do Brasil. Elis Regina. Música Popular
Brasileira.

INTRODUÇÃO

O Brasil que a história conheceu a partir de 1964 já não era o mesmo dos anos
anteriores; era, aliás, resultado dos muitos fatos políticos e históricos que emergiram das
décadas anteriores. Este período histórico originou uma série de mudanças conjunturais
na vida política, social e também artística do Brasil.
Os movimentos político-artísticos que precederam o Golpe militar, nos anos 1950,
estavam relacionados em grande importância pela ideologia nacional-popular. Embora esta
ideologia poderia também ser apropriada pela direita política, era utilizada pela esquerda
no sentido de ressaltar os valores do Brasil e a importância da nacionalidade brasileira. O

242
Graduando no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão.
243
Professor no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão.

446
PCB (Partido Comunista Brasileiro) teve sua relevância para a afirmação deste ideal,
interferindo nas artes e, depois, no “Frentismo cultural” nos anos 1960, integrando o
movimento de resistência ao Regime Militar.
Carine Dalmás (2013) considera o desenvolvimento do Frentismo Cultural como
adjacente aos países latino-americanos que sofreram golpes autoritários. Este termo se
traduziu na prática durante os anos 1960 no Brasil, Chile, dentre outros países. A autora
defende que este movimento artístico tinha o imaginário de penetração das ideias políticas
contrárias aos governos repressivos e autoritários na sociedade. A partir desta leitura, já é
possível traçar um processo de identificação solidária entre os países latino-americanos, que
se desenvolvera com mais intensidade nos anos 1970244.
Através da Sociologia da Cultura, subárea em que se insere este trabalho, buscando
traçar e caracterizar a cultura brasileira, compreendendo-a como um conjunto extenso e
complexo de relações simbólicas, analisa-se a representação do Brasil em seu contexto
político-social; relações estas que se apresentam através da arte.
Norbert Elias (1991), ao analisar a biografia de Mozart Elias de um modo
sociológico, oferece a compreensão de que um artista não pode ser dissociado de seu
tempo e que este é um retrato de sua realidade social, podendo resistir ou se aliar a tal
realidade por meio da arte que produz. Assim, fazer a leitura de uma Elis Regina que
dialogou constantemente com sua era não só no âmbito da música, mas também na
política. Esse engajamento ficou perceptível a partir do espetáculo “Falso Brilhante” (1975-
1977), no qual não apenas interpretou canções de crítica política, mas também assumiu
uma postura consciente e crítica ao governo militar, à situação doa artista no Brasil e os
efeitos da industrialização da música no Brasil.
Elis Regina (1945-1982) pode ser lida como uma artista em constante mutação; seus
paradoxos e suas peculiaridades são retratadas em duas biografias póstumas de maior
destaque, sendo “Furacão Elis” (ECHEVERRIA, 1985) e “Elis Regina: Nada será como
antes” (MARIA, 2015), oferecendo dados e uma série de relatos que permitem uma análise
da artista enquanto um ser inserido na vida social, política e com sua relevância artística
para o Brasil.
Na descoberta de seu talento, Elis teve grande importância nas rádios gaúchas, ao
ser revelada como um talento mirim no Clube do Guri, ainda na década de 1950. A partir
de então, a cantora se torna também um objeto a ser construído para o mercado e para a

244
Em 1976, Belchior compõe letras em que faz referência à América Latina, assim como Elis Regina grava
canções de Mercedes Sosa e Atahualpa Yupanqui no seu álbum “Falso Brilhante” (1976).

447
mídia. Em seu primeiro disco “Viva a Brotolândia” (1961) lançado pela gravadora
Continental, Elis Regina era usada como uma nova Celly Campello, o que era contrário
àquilo que acreditava imaginava e creditava enquanto artista.
No dia 31 de março de 1964, coincidentemente no mesmo dia do Golpe militar,
Elis Regina chegava ao Rio de Janeiro. O desenvolvimento inicial da carreira de Elis fora
do Rio Grande do Sul se deu no Bottle’s Bar, um dos bares da noite boêmia, inserido no
Beco das Garrafas no Rio de Janeiro. Ali, seu canto ecoava pela noite carioca e também
em São Paulo, quando começa a se afastar do Beco para cantar na noite paulista, se
aproximando ainda mais de um novo tipo de produzir música.
Foi em 1965 que Elis Regina se tornou conhecida nos cantos do Brasil em que se
tinha acesso aos meios de comunicação. O I Festival de Música Popular Brasileira (1965)
deu à “Arrastão” de Edu Lobo e Vinícius de Moraes a vitória de melhor canção, com a
interpretação de Elis Regina. Com uma impostação de voz diferente aos tons e recursos
vocais utilizados por cantores bossa-novistas, utilizando os movimentos corporais que
aprendera no Bottle’s Bar com Lennie Dale245 e com os anos de experiência, Elis teve com
“Arrastão” o reconhecimento que buscava em sua carreira.
Assim, a cantora se desenvolveu, revelou compositores novos, se tornou um novo
tipo de referência vocal, se envolveu com diversos setores da MPB, gravando músicas de
compositores intelectuais que criticavam o Regime Militar e se posicionou no campo
político, tendo não só aplausos e arrastando multidões por uma causa como aconteceu ao
gravar “O Bêbado e a Equilibrista” (BOSCO J; BLANC A, 1978), mas também sofreu
com as imposições do regime autoritário dos militares e com a crítica dos movimentos de
esquerda246, relatando um Brasil que não tinha apenas dimensões continentais ou belezas
naturais, mas também problemas políticos de ordem histórica e social.
O objeto de análise deste trabalho, o álbum “Saudade do Brasil” (1980) e,
consequentemente, o espetáculo que o originou, se insere em um outro contexto. Com a
abertura política que vinha aos poucos, Elis Regina já era parte deste processo, tendo o
reconhecimento, dentre outros, como a cantora que gravou “O Bêbado e a Equilibrista”,

245
O dançarino norte-americano que veio da Broadway para o Brasil se tornou uma das primeiras referências
de Elis no Rio de Janeiro, ajudando-a a criar movimentos longos com todo o corpo, o que deu a ela um
maior despojamento no palco.
246
Em uma entrevista à Rádio Holandesa, Elis Regina argumentou contra a repressão e censura militares,
dizendo que o Brasil era um país governado por “um bando de gorilas” (HOLANDA, 1969). Em seguida,
Elis Regina foi intimada a prestar depoimento para o CIE (Centro de Informações do Exército) sobre suas
opiniões políticas e o fato de gravar canções ligadas ao movimento negro e de compositores exilados do país.
448 na Olimpíada do Exército (1972) exibida em rede
Elis Regina foi obrigada, ainda, a cantar o Hino Nacional
nacional, o que também provocou uma perseguição da esquerda crítica à cantora.
conhecido como o hino da Anistia. A cantora vinha trazendo a novidade dos espetáculos
musicais desde quando estreou o espetáculo “Falso Brilhante” (1975-1977) que influenciou
a história do show business247, tendo sido este espetáculo um sucesso não só de público e
crítica, mas também de permanência em um mesmo teatro.
Para Elis Regina, mudar era sempre necessário, mas tinha como princípio uma
visão do artista como sujeito da história de seu pais, como aquele que atua politicamente e
conta para o povo sua história. A cada espetáculo, a cantora renovava suas temáticas e se
remetia cada vez mais a assuntos políticos, sociais e cotidianos. Se em “Falso Brilhante”, a
ideia era contar a vida do artista, tendo a sua como exemplo e citando os impactos
mercadológicos na vida de um músico e convidando os brasileiros à extroversão e à
resistência a qualquer tipo de censura, em “Transversal do Tempo” (1978), Elis Regina
falava pelos boias-frias, do caos dos grandes centros urbanos e de uma crítica necessária a
seu tempo. Quando lança o álbum “Essa Mulher” (1978), Elis compõe uma imagem mais
leve, ao adotar os cabelos longos, na tendência a discutir o papel da mulher em sociedade,
mas também trazer um novo ânimo aos que lutavam por um país mais justo; este foi,
também, o primeiro álbum da cantora pela WEA, o que a levava a se colocar à par de
mudanças e também de trazer o grande público para próximo de si248. Em “Saudade do
Brasil”, Elis Regina retomava assuntos do cotidiano brasileiro, mas tendo como papel trazer
o cidadão comum para seu espetáculo e inserir um novo modo de valorização do Brasil
em sua produção musical.

SAUDADE DO BRASIL

Como discutido anteriormente, a construção de “Saudade do Brasil” vem de uma


onda de produção de espetáculos assinados por Elis Regina. O álbum leva o mesmo título
do espetáculo, constituindo um processo inverso de deixar que o álbum tenha origem no
espetáculo apresentado. Assim, o álbum e o espetáculo de Elis, se difundem nesta
discussão sociológica.
Ao se referir à montagem do espetáculo em que falaria do Brasil, Elis diz expôs em
uma entrevista o que pensava de sua nacionalidade, se remetendo sutilmente ao período
de repressão:

247
Pode ser entendido como a indústria do espetáculo.
248
Júlio Maria (2015) descreve a auto pressão de Elis para se colocar novamente como uma grande vendedora
de discos, o que tinha deixado de ser desde o lançamento do álbum “Dois na Bossa” (1967) que lançara com
Jair Rodrigues.
449
[...] houve um período em que a gente até esqueceu de rir. No entanto,
é preciso a gente lembrar que o brasileiro é legal, que sabe fazer anedota,
que tem humor, muito especial, muito alegre – quando deixam (Folha
de S. Paulo, 1978).

Este ideário de Elis Regina compõe, também, a nova característica que trazia do
disco “Essa Mulher” – era necessário falar de Brasil e de política, sem se esquecer que no
Brasil, os brasileiros também podem ter esperança e autoestima, buscando força em si
próprio.
Débora Dutra Fantini (2011) retrata como Elis Regina fez parte da ideologia
nacional-popular em variados momentos de sua carreira. Em “O Fino da Bossa” (1967),
programa que apresentava ao lado de Jair Rodrigues, a exaltação de um Brasil
musicalmente original se apresentava constantemente. Elis foi levada ao extremo, quando
liderou junto a outros artistas a “Passeata contra a Guitarra Elétrica” (1967). A atitude de
Elis foi repensada posteriormente, o que pode-se constatar pelo uso futuro de guitarras
elétricas nas músicas do disco “Ela” (1969). O fato é que, embora houvesse um discurso
de defesa da música genuinamente brasileira, seu programa estaria perdendo espaço para
a Jovem Guarda que chegara ganhando audiência, com um tipo de rock americanizado
que ganhava a mídia e as massas.

A MONTAGEM DO ESPETÁCULO

Regina Echeverria, escritora da primeira biografia póstuma de Elis Regina, narra


parte do processo de experimentação do espetáculo “Saudade do Brasil”:

Em 80, três dias depois de ter completado trinta e cinco anos, Elis
estreou no Canecão do Rio um novo espetáculo: Saudade do Brasil. Era
o resultado de um trabalho de seis meses. No palco, vinte e cinco
pessoas: Elis, treze músicos e onze bailarinos. Márika Gidali comandou
a dança. Marcos Flaksman, o cenário. E, na direção geral, Ademar
Guerra... (ECHEVERRIA, 1985).

450
Para Elis Regina, falar sobre o Brasil era importante, mas também queria que os
brasileiros participassem intensamente desta montagem. Em 1979 os jornais anunciaram a
procura de um novo elenco para o espetáculo de Elis, levando milhares de pessoas a
participarem do concurso, que povoou a Rua Augusta em São Paulo, com uma imensa fila.
É possível observar a partir desta escolha, a ideia de recuperação de uma identidade
brasileira que fosse, acima de tudo, autêntica.

Era como se os anos de chumbo tivessem sequestrado símbolos


seculares de domínio público como o próprio Hino, que era escutado
agora com um pé atrás e uma emoção contida mesmo em dias de jogos
da Seleção Brasileira. Cidadão que se deixasse levar por ele poderia ser
apontado como um entreguista, satisfeito com a política dos quartéis. Se
emocionar com o Brasil havia se tornado um perigo (MARIA, 2015).

Torna-se compreensível, então, a escolha do nome que justifica uma interpretação


de Brasil não só de Elis Regina, mas também daqueles que tiveram sua liberdade cerceada
pelo regime. A visão de um Brasil nostálgico e saudoso se apresenta a partir desta ideia.
A seleção das músicas foi feita por Elis e César Camargo Mariano, pianista e
arranjador de suas músicas e seu marido à época. As ideias de espetáculo e disco se fundem
também neste aspecto. O álbum “Saudade do Brasil” gravado pela WEA foi lançado como
álbum duplo e retratava as passagens sonoras do espetáculo.

A REPRESENTAÇÃO DE BRASIL, SEGUNDO ELIS REGINA

No disco 01, o ouvinte é inserido no ambiente do show: a primeira faixa que abre
o espetáculo é uma compilação instrumental de músicas que marcaram a carreira de Elis.
A segunda faixa e as que se sucedem, trazem uma mensagem de ânimo e valorização da
força humana.
Para Adalberto Paranhos (2000), a análise de uma música não deve se limitar a
apenas uma letra, pois ela é uma produtora de sentidos no âmbito social. Além de produzir
sentidos, a música toma características novas com a interpretação e performance do artista.
No consumo, a música também sofre novas apropriações e ressignificações.
O último refrão da música “Terra de Ninguém” (Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle)
abre o espetáculo afirmando a certeza de um esperado futuro. “[...] Mas um dia vai chegar,
que o mundo vai saber: não se vive sem se dar. Quem trabalha é que tem direito de viver,
pois a terra é de ninguém”. Na letra há uma exaltação do trabalho, que remete à ideia de

451
progresso e crescimento presentes no período do governo de Juscelino Kubitscheck,
porém a mensagem caminha ao lado da ideia de que todo o tipo de trabalho deve ser
valorizado. Outra canção que traz o saudosismo de tempos passados, é de autoria de Juca
Chaves, intitulada “Presidente Bossa Nova”, letra na qual se remete à figura de JK e à Bossa
Nova que se desenvolvia.
Dentre outras canções, uma das grandes novidades é a letra composta por Rita Lee
e Roberto de Carvalho, “Alô, Alô Marciano”, que contribuiu para a proposta performática
de Elis: um espetáculo descontraído, que não deixasse o bom humor de lado, tampouco a
crítica à situação política do Brasil. A canção, na sequência do espetáculo e do disco, é a
primeira que traz uma ideia crítica em torno da situação brasileira. Elis Regina utilizou nesta
interpretação, sua musicalidade que é uma marca registrada, inserindo em um dos trechos
da letra a imitação de um vocal feito por Louis Armstrong em “High Society Calypso”, na
qual também ironiza o modo de vida das elites.

Alô, alô, Marciano


Aqui quem fala é da Terra
Pra variar, estamos em guerra
Você não imagina a loucura
O ser humano tá na maior fissura porque
Tá cada vez mais down no high society.

Alô, alô, marciano


A crise tá virando zona
Cada um por si todo mundo na lona
E lá se foi a mordomia
Tem muito rei aí pedindo alforria porque
Tá cada vez mais down the high society

Down, down, down


The high society
Down, down, down
The high society
Down, down, down
The high society
Down, down, down
(LEE, R; CARVALHO R, 1979).

A música pode ser entendida como uma ironia referente à decadência das elites
sociais que tentavam manter a boa pose e aparência, mas que também viam os efeitos das
crises econômicas, morais e políticas deixadas em grande parte pelo Regime militar naquele
início dos anos 1980.

452
Milton Nascimento, um dos compositores mais gravados por Elis Regina, que
resguardava com a cantora uma profunda amizade e ligação, teve cinco músicas gravadas
em “Saudade do Brasil”. A linguagem múltipla de Milton é registrada pela diversidade de
temas tratados nestas cinco músicas. Se em algumas delas, o cantor e compositor fala de
uma gente guerreira ou de amizades profundas, em “Menino”, que escreveu junto a
Ronaldo Bastos, remete ao caso de Edson Luís, assassinado por um policial militar em
1968. “Quem cala sobre teu corpo consente a tua morte...” (NASCIMENTO M; BASTOS
R, 1979); com estes versos Elis Regina dá continuidade a um ritmo tenso e impactante do
espetáculo, após interpretar “Onze Fitas” (Fátima Guedes), que também fazia crítica à
violência policial; gravando uma canção da nova compositora, Elis a tornava mais
conhecida pelo público, como fizera com outros compositores.
Em “Aos Nossos Filhos” (Ivan Lins e Vitor Martins), Elis Regina junta mais uma
vez, técnica e emoção. A canção pode ser entendida de várias formas, mas em sua época
se tratava de um apelo feito àqueles que sofriam com a solidão, segurança e opressão do
mundo que havia sido cercado por uma realidade repressiva imposta pelo Regime Militar.

Perdoem a cara amarrada


Perdoem a falta de abraço,
Perdoem a falta de espaço.

Os dias eram assim... Perdoem por tantos perigos,


Perdoem a falta de abrigo,
Perdoem a falta de amigos,
Os dias eram assim... (LINS I., MARTINS V.; 1980).

No início da canção, um eu-lírico parece se dirigir a alguém, pedindo remissão e


compreensão de uma realidade opressora, na qual os dias eram de aperto, falta de ar e
ausência de caminhos a se seguir. Nos últimos versos, é traçada uma esperança de que os
“nossos filhos” possam ver um dia diferente, onde se volte à plenitude:

[...] E quando passarem a limpo,


E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos,
Façam a festa por mim...

[...] Quando brotarem as flores,


Quando crescerem as matas,
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim...
Digam o gosto pra mim... (LINS I.; MARTINS V., 1979).

453
Aquele eu-lírico cansado e saturado por tempos difíceis, pede então para que os
próximos de outra geração plantem novos frutos e os colham, podendo contar às gerações
passadas, o sabor de uma certa liberdade e alegria de viver.
Depois, a interpretação de “Sabiá” (Tom Jobim e Chico Buarque) marcam a
sequência de faixas, dando espaço para o encerramento do espetáculo.
Outras quatro músicas dão um tom de exaltação ao Brasil que tem riquezas não só
naturais, mas também riquezas humanas. “Mundo Novo, Vida Nova” (Gonzaguinha);
“Aquarela do Brasil” (Ary Barroso); “O que foi feito Devera (de Vera)” (Milton
Nascimento e Fernando Brant); “Redescobrir” (Gonzaguinha); são canções que retornam
ao caráter inicial do espetáculo: a figura de um Brasil saudoso, mas também que sonha
com um futuro com esperança e alegria é constante nesta obra.

CONCLUSÕES

Nesta análise é possível perceber uma leitura e interpretação de Brasil diferente de


muitas outras, apresentando uma capacidade ímpar dos artistas brasileiros de serem
múltiplos em suas referências. Elis Regina fez parte de um grupo de cantoras que
imprimiam às suas interpretações e seus trabalhos de forma geral, sua personalidade e sua
leitura de sociedade ou daquilo que desejavam interpretar.

Os intérpretes e, sobretudo, as intérpretes – dada a absoluta


predominância das vozes femininas na MPB – foram fundamentais para
a efetiva disseminação social da canção, materializada em performances
de alta ressonância social. Em alguns casos, como o de Elis Regina, Gal
Costa, Maria Bethânia e Clara Nunes, o poder de comunicação e dotes
vocais dessas intérpretes marcavam a tal ponto o sentido da canção que
poderíamos falar numa segunda autoria, problema altamente complexo
e ainda pouco exercitado na historiografia da canção brasileira
(NAPOLITANO, 2010).

Em sua análise sobre Música Popular Brasileira e suas correntes específicas,


Marcelo Ridenti (1993) descreve três grupos que dialogam entre si e também se debatem
no processo de politização da arte ou do que pode se chamar como frentismo cultural.
Aqui, entende-se que Elis Regina dialogou com estes três grupos: o Nacional Popular,
Formalistas e Vanguardistas. Além de gravar canções dos compositores que integraram

454
estes grupos, a cantora também se integrou no processo de lutas políticas e discussões que
estiveram em efervescência durante sua vida.
Com “Saudade do Brasil”, é possível fazer a leitura de que a identidade e memória
brasileiras sempre foram temas abordados. Embora se possa apontar diversas
interferências norte-americanas ou de outras naturezas na Música Popular Brasileira, a
força do discurso político e engajado na música é identificado com grandeza, fato que se
reafirma ao perceber que as canções gravadas neste álbum de Elis foram compostas em
1930, outras em 1950, 1965 ou próximos ao lançamento do álbum.
Podem ser apontadas como categorias alcançadas neste álbum o discurso sobre
gênero, violência policial, repressão, entreguismo, memória e principalmente identidade
dos indivíduos brasileiros.
A indústria cultural – fator que seria discussão-chave do próximo espetáculo de Elis
Regina em 1981, “Trem Azul” – pode ser entendida no âmago da constituição do álbum
“Saudade do Brasil”.
Álvaro Neder (2012) credita a industrialização cultural como essencialmente ligada
ao Regime Militar. A lógica do Regime de manter os meios de comunicação à serviço de
suas ideias de nacionalidade, provocou um pensamento geral sobre a definição de ser
brasileiro, fomentando ainda a censura e a restrição à diversidade cultural produzida no
país. Porém, esta análise de indústria cultural leva à constatação de que houve uma
resistência neste campo, observando que os artistas da Música Popular Brasileira
conseguiram, ainda assim, manter uma diversidade ampla de estilos e formas de resistência,
seja por meio de canções de protesto, as rupturas performáticas ou o próprio movimento
tropicalista.
O Brasil que se celebra na obra de Elis Regina é não apenas um país saudoso, mas
também que possui um povo que luta por sua liberdade e resiste. A penúltima música do
espetáculo traz esta noção de “povo” que não refere a si próprio em uma perspectiva
individualista.

[...] Falo assim sem tristeza


Falo por acreditar
Que é cobrando o que fomos
Que nós iremos crescer

Outros outubros virão


Outras manhãs plenas de sol e de luz

Alertem todos os alarmas

455
Que o homem que eu era voltou
A tribo toda reunida, ração dividida ao sol
De nossa Vera Cruz

Quando o descanso era luta pelo pão


E aventura sem par

Quando o cansaço era rio e rio qualquer dava pé


E a cabeça rolava num gira-girar de amor
E até mesmo a fé não era cega nem nada
Era só nuvem no céu e raiz

Hoje essa vida só cabe na palma da minha paixão


Devera nunca se acabe, abelha fazendo o seu mel
No canto que criei, nem vá dormir como pedra e esquecer
O que foi feito de nós. (NASCIMENTO M, 1978).

É possível afirmar que esta era também a esperança de um país que se fortalecesse
em união, naqueles meados de final do Regime Militar, no qual se percebe uma autocrítica
em torno da identidade brasileira e dos assuntos em pauta na época.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Rio de


Janeiro: Ed. Zahar, 1985.

ECHEVERRIA, Regina. Furacão Elis. Rio de Janeiro: Ed. Nórdica, 1985.

ELIAS, Norbert. Mozart: A Sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1995.

FANTINI, Débora Dutra. O Nacional-Popular na obra de Elis Regina (1961-1974).


Dissertação (Pós-Graduação em História) – Universidade Federal de São João Del Rei,
2011.

MARIA, Julio. Elis Regina: Nada será como antes. São Paulo: Ed. Master Books, 2015.

MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais: Uma Parábola. São Paulo: Ed. 34, 2003.

NAPOLITANO, Marcos. A Música Popular Brasileira (MPB) dos anos 70: Resistência
Política e Consumo Cultural. IV Congresso de la Rama latinoamericana del IASPM,
Cidade do México, 2002.

NAPOLITANO, Marcos. MPB: a trilha sonora da abertura política (1975/1982).


Estudos Avançados. São Paulo, v. 24, n. 69, p. 389-402, 2010.

NEDER, Álvaro. MPB: identidade, intertextualidade e contradição no discurso musical.


Revista Brasileira de Estudos da Canção. Natal, v. 1, n. 1, p. 80-87, 2012.

RIDENTI, Marcelo. O fantasma da Revolução brasileira. São Paulo: Edunesp, 1993.

456
OS SENTIMENTOS NO CAPITALISMO DA ERA GLOBAL: UMA
ANÁLISE SOBRE A PSICOLOGIA E A LITERATURA DE
AUTOAJUDA EMOTIVA

Maraisa GARDINALI249

Resumo: O presente trabalho investiga como a condição autônoma dos indivíduos na sociedade
capitalista contemporânea promove um sentido de liberdade essencialmente utilitarista e privado,
que gera a tendência da redução das emoções à forma de mercadoria e de bens de consumo.
Queremos analisar como a psicologia e os livros de autoajuda voltados para o indivíduo
contemporâneo passaram a ter uma importância fundamental na sociedade capitalista atual e como
colaboram com o processo de transformação dos afetos e dos sentimentos em produtos notáveis
do capitalismo na era global. Em uma palavra, desejamos estudar, por meio da análise do papel da
psicologia e da literatura de autoajuda emotiva, como a sociedade capitalista tem transformado
paixões e psique ao promover um amplo processo de mercantilização, alienação e reificação das
relações afetivas, emotivas e amorosas. A investigação será realizada por meio da articulação entre
o pensamento de Alain Ehrenberg e de Eva Illouz aliada ao emprego da teoria crítica da primeira
geração (Horkheimer, Adorno, Marcuse e Benjamin) tanto na analise de como as “potências
formativas” constroem o indivíduo que necessitam e os valores e processos sociais que promovem
a estabilidade e a reprodução das instituições e estruturas sociais, quanto na análise da fragilidade
da vida privada como produto das instituições integrantes do “mercado do afetivo”. Acreditamos
que a condição de indivíduos autônomos nos teria colocado, portanto, numa nova Erlebnis que
nos levaria a buscar fora de nós mesmos pontos de referência, promessas de felicidade e fórmulas
de sucesso. Na nova Erlebnis o controle emocional, realizado pelos produtos ofertados pelo
mercado afetivo, elaboraria um significado e um estilo de vida que possibilitariam a formação de
um repertório cultural compartilhado que desempenharia uma função disciplinar,
compatibilizando as emoções com a cultura dominante.

Palavras-chave: Autonomia. Emoções. Globalização. Mercado.

INTRODUÇÃO

O mito da Torre de Babel presente nas culturas suméria e hebraica narra a façanha
da construção de uma torre cujo objetivo era alcançar o céu para colocar os homens
próximos de Deus. A ação envolvia um grande número de pessoas que falavam a mesma
língua e que compartilhavam da mesma vontade e do mesmo objetivo, mas Deus as teria
impedido de realizarem seu feito ao castigá-las por tamanha ambição: os envolvidos na
obra passaram a falar línguas diferentes entre si, o que tornou impossível a comunicação e
o entendimento entre eles. A diferença linguística os teria forçado a se afastarem e a se
reagruparem, desenvolvendo culturas também diferentes umas das outras. Babel simboliza,

249
Mestranda em Ciências Sociais; Unesp/Araraquara-SP; CAPES; maraisa.gardinali@gmail.com

457
portanto, uma passagem radical que teria transformado a vida pessoal e coletiva dos
homens. O desenvolvimento arrebatador do modo de produção capitalista e, em
decorrência, as transformações nos modos de vida, gerou uma espécie de Babel no mundo
moderno globalizado, já que o mesmo é fortemente caracterizado por experiências
marcadas pela transformação (MARRAMAO, 2009) intensa que passa a ser constante e
cada vez mais veloz.
O novo mundo se conjecturou tendo como princípios norteadores a “estrutura
uniformizadora da tecno-economia” e o “comércio global”, que provocaram a radicalização
da modernização econômica e política com o advento das redes globais de produção,
distribuição, consumo e troca. No entanto, a complexidade do mundo globalizado que é
espacialmente comprimido, temporalmente acelerado e constituído pela multiplicidade e
diversidade de valores e experiências sociais, torna a sua própria compreensão impossível
de ser construída na chave de uma lógica única. Encontramo-nos numa existência cujo
tempo histórico não é mais o da modernidade edificada e ordenada pelos atores dos
Estados nacionais, mas que também não é ainda o de uma ordem mundial construída por
uma sociedade civil global.
O término da Guerra Fria proporcionou uma radical remodelação do capitalismo:
“[...] o propósito foi abrir o terreno global para modos novos ou fortemente expandidos de
extração de lucro, mesmo em domínios improváveis [...]” (SASSEN, 2014, p.18). Nas
décadas de 1970 e 1980 empresas americanas e europeias deram início à prática do
deslocamento geográfico de unidades produtivas em busca da maximização dos lucros –
foram criadas as empresas transnacionais. O deslocamento das empresas para os países em
desenvolvimento com a finalidade de conquistar novos mercados, produzindo nesses
países a demanda gerada pelos seus países de origem, só foi possível graças à ação dos
Estados na garantia de conveniências. Os agentes políticos dos países receptores de
unidades fabris passaram a favorecer os interesses econômicos das empresas
transnacionais, facilitando sua instalação com regalias como a redução do custo do trabalho
e com a garantia de manter sob controle os interesses da classe trabalhadora organizada.
Em uma década de desindustrialização dos locais de origem das fábricas e
industrialização dos países em desenvolvimento, 2/3 da produção global passou a ser
realizada em países emergentes (GALLINO, 2012). Dessa forma, é possível observar que
tanto os Estados nacionais quanto os agentes privados transnacionais foram os responsáveis

458
pelo fenômeno da “mobilização total” (GALLI, 2010)250. Inclusive, foram os agentes
privados transnacionais os principais responsáveis pela realização da abertura efetiva de
todos os espaços claramente delimitados na primeira modernidade: fronteiras e territórios;
instituições econômicas, sociais e políticas nacionais; constituição nacional; associações e
grupos sociais; mercado nacional; o corpo e a mente das pessoas.
A dinâmica transnacional provocou a desregulamentação de acordos e
compromissos da democracia moderna e do keynesianismo, a generalização do livre
mercado, o acirramento da competitividade e a ascensão dos espaços regionais e das
cidades globais251. Também modificou o formato da luta de classes: se no Estado de bem-
estar social ela era conduzida de baixo e com a finalidade de melhorar as condições de vida
dos trabalhadores e cidadãos por meio do reconhecimento social do trabalho, após o
declínio histórico do comunismo a nova luta de classes passou a ser dirigida pelo alto, pelas
forças econômicas e políticas das empresas nacionais e transnacionais que buscavam
recuperar os privilégios, os lucros e, sobretudo, o poder que foram substancialmente
diminuídos durante o Estado de bem-estar social.
A reorganização e concentração do poder econômico por meio da racionalidade
neoliberal contribuíram para que as forças sociais vencedoras da Guerra Fria constituíssem
uma classe global única, uma elite capitalista transnacional que detém a capacidade técnica
de inserção de valores e desejos no imaginário e na consciência das pessoas, produzindo a
estrutura social e o tipo de pessoas que necessita para a conservação do seu status quo. O
poder global dessa elite manipula a consciência, exercendo violência simbólica por meio
da criação de modelos que colonizam o imaginário (MARRAMAO, 2009). Portanto, a
elite transnacional que é capaz de acionar e articular um processo de produção em
qualquer região do mundo e de transportar mercadorias para mercados mais rentáveis,
também é capaz de gerar uma demanda global de novos produtos por meio da força de
convencimento e sedução das propagandas globais.
Nos últimos trinta anos, aproximadamente, o desenvolvimento extraordinário do
sistema financeiro caracterizou a mais nova fase do capitalismo global, cuja força mais

250
Para o filósofo político italiano Carlo Galli a essência da globalização está na compreensão do espaço
absoluto, no fenômeno econômico, político e tecnológico que provocou a “mobilização total”: a possibilidade
objetiva e a capacidade subjetiva da utilização de recursos naturais e culturais, físicos e humanos na busca
pela extração e apropriação da maior quantidade de valor e concentração de poder material e imaterial. Esse
fenômeno não respeita fronteiras geográficas e torna o mundo único, deformando a geometria política da
modernidade e alterando a noção de espaço social e tempo histórico.
251
Os espaços regionais e as cidades globais constituem importantes espaços do mundo de produção industrial
e extração de lucros que estão se tornando zonas459 de profundas desigualdades não mais determinadas
politicamente, mas pelas estratégias e interesses dos agentes que atuam na lógica neoliberal.
potente é o próprio capitalismo financeiro que trouxe consigo impactantes mudanças nas
relações sociais. As alterações no processo de produção e de reprodução do valor, a criação
das empresas transnacionais, o vertiginoso declínio do Estado social e a formação do atual
sistema financeiro são partes articuladas de um processo ideológico de conquista de poder
que é eminentemente político. Logo, o capitalismo financeiro pode ser compreendido
como uma “mega-máquina”252 de valorização e extração máxima de valor a qualquer preço
que não considera as consequências ambientais como a devastação, a contaminação e a
poluição do meio ambiente, e os custos individuais e coletivos: o trabalho precário, o
desemprego, a perda de dignidade, a exclusão social e a marginalização (GALLINO,
2011).
A condição de trabalho precária e a posição social dos indivíduos diante das mega-
máquinas do capitalismo industrial e financeiro produzem, entre outros, o fenômeno
imediato das “vidas adiadas” (idem). Vidas adiadas são aquelas incapazes de guiar a si
mesmas e de idealizar e concretizar planos pessoais com autonomia devido à posição social
sempre mais frágil, pois desprovida de segurança e direitos. Isso implica na diminuição de
renda, no aumento dos índices de acidentes no trabalho, nos sofrimentos e nas doenças
psicossociais vinculadas à competitividade, à produtividade, ao excesso de trabalho e à
ameaça constante da rescisão de contrato e demissão que culmina em morte.
“Vidas adiadas” são, portanto, vidas que adiam decisões importantes para o ser
humano em consequência da precariedade da condição social e humana gerada pelas
condições também precárias de trabalho e pela dinâmica social que essa condição impõe:
são vidas que precisam lidar com o aumento da insegurança e incertezas em relação ao
futuro; com a fragilidade dos vínculos sociais; com a perda da autoestima; com a exposição
às variações inesperadas que impossibilitam a projeção de quadros pessoais; com o medo
permanente e próprio da vida que se desenvolve sem destino pessoal e coletivo. As causas
do medo contemporâneo encontram-se justamente no fato de que a origem dos problemas
enfrentados no cotidiano provém dos espaços globais e por isso não estão ao alcance da
ação política local (BAUMAN, 2008, p. 40).

Inicialmente, os esforços dos modernos eram dirigidos às fontes de


insegurança humana, e solicitavam em troca a aceitação do controle e

252
Luciano Gallino, sociólogo italiano, classifica como “mega-máquinas” potências que superaram a
capacidade de extração de valor no capitalismo industrial e que, por meio da lógica do dinheiro que gera
mais dinheiro do capitalismo financeiro, desvaloriza o trabalho e acumula riquezas como nunca antes,
impondo mudanças em todos os extratos sociais.
460
do autocontrole, a domesticação e o freio dos desejos e paixões: em
outras palavras, a modernidade oferecia uma maior segurança em troca
da liberdade individual. [...] Nos últimos quarenta anos, a obsessão
modernizante se movimentou em direção oposta àquela originária:
cada vez mais as áreas da vida privada foram libertas de uma
regulamentação normativa e transferidas ao reino da “política da vida”
conduzida individualmente ao custo da segurança da vida e das
condições sociais, sustentadas pelo governo e garantidas coletivamente.
Em outras palavras: maior liberdade individual, mas menor segurança
salvaguardada socialmente” (Ibid., op. cit.).

A liberdade e a segurança são dois valores fundamentais para a vida humana, sem
os quais, ela se torna indigna e indecente, prejudicada e esvaziada de sentido. A conciliação
entre um e outro é sempre uma ação complexa, pois ambos podem se limitar
reciprocamente. Se há mais liberdade do que segurança, a vida pode se transformar em
uma vida breve, pois estará exposta à violência cometida por outrem. Se a liberdade é
inexistente, a segurança da vida é próxima da forma escrava: protegida por um senhor, mas
desprovida de dignidade e de decência (Ibid., loc. cit.). Nos últimos quarenta anos, o medo
passou a refletir a ausência de segurança e o excesso de liberdade que tornaram a vida
social frágil, exposta à violência e ao sofrimento causado pela racionalidade neoliberal.

AS NOVAS PATOLOGIAS SOCIAIS

A sociedade capitalista definida no final do século XX pelo êxito da economia de


mercado, pela hegemonia do discurso neoliberal e pela mundialização produziu uma nova
ordem social, política e cultural. A nova dinâmica aliada às revoluções de gênero e sexual
acarretaram profundas mudanças na individualidade: desfizeram os vínculos do indivíduo
com preceitos e normas do passado, com a sociedade tradicionalista, repressora e punitiva,
fazendo com que o mesmo experimentasse a sensação de liberdade total. Os “filhos da
liberdade” (BECK; BECK-GERNSHEIM, 2002)253 representam, ao mesmo tempo, a
interiorização e a institucionalização da liberdade. São aqueles que cresceram educados
pela ideia do livre agir, do mundo livre, da independência e da autonomia do eu, são
aqueles responsáveis pela “institucionalização do individualismo”. A cristalização desse
comportamento resultou na mudança da ordenação dos valores sociais, colocando a

253
No entanto, os filhos da liberdade interiorizada produzem uma aceleração nas experiências pessoais,
gerando novos estilos e formas de vida. O problema está nas novas formas de experiências pessoais que
combinam com os novos estilos de vida elementos paradoxais como interesse pessoal e altruísmo,
competição e atividade voluntária, narcisismo e compaixão com os mais frágeis, egoísmo e solidariedade,
tornando caótica a compreensão racional e sobretudo sentimental da vida.
461
liberdade e a autonomia como condições sociais fundamentais para o indivíduo moderno
contemporâneo.
A nova noção de individualidade instituiu o eu como uma unidade de decisão e de
ação independente, responsável por si mesmo, ao mesmo tempo em que provocou
rupturas com os vínculos valorativos comuns, bem como com os vínculos de proteção do
Estado e com os laços de solidariedade com grupos secundários (trabalho, sindicato e
partido). Essa configuração social gerou uma sobrecarga considerável ao indivíduo que,
além do esforço solitário e permanente na construção de si mesmo, do eu competitivo e
produtivo, encontra-se desamparado institucionalmente. A mesma individualidade
estendeu a concepção de autonomia para todo o conjunto da vida social. A prática comum
de atribuição de valor social passou a ser realizada por meio da avaliação de performances
individuais. Do mesmo modo, a questão da igualdade também passou a ser pensada nos
termos de igualdade de autonomia, na necessidade de possibilitar aos sujeitos competir
profissionalmente com base unicamente no seu recurso pessoal254. A condição autônoma
alimentada pelo individualismo institucionalizado, pelo contexto do hiperindividualismo,
da hipercompetitividade e do hiperconsumismo, impôs ao eu o cansaço permanente
decorrente do processo de construção de si por si mesmo, “la fatigue d’être soi”
(EHRENBERG, 2008)255.
A profunda mudança efetuada na psique individual pelos processos de
transformação cultural localizados nas últimas décadas do século XX fez com que o pavor
do fracasso e da baixa produtividade, aliados ao cansaço, produzissem novas formas de
sofrimento: as neuroses de caráter. Até mesmo a depressão possui agora novos fatores
desencadeadores: ela passa do sentimento de culpa e do sofrimento moral para a tristeza e
o medo decorrente da ansiedade provocada pelo sentimento de inadequação e de
incapacidade de iniciativa e de ação objetiva (EHRENBERG, 2010). A depressão de
caráter motiva outros distúrbios psíquicos como a síndrome do pânico, os transtornos
alimentares (bulimia e anorexia), a síndrome de burnout 256, a apatia e o isolamento social,
a dependência, o hiperativismo, etc., doenças tão presentes no nosso cotidiano e que
definem o mal-estar do nosso tempo.

Ver Amartya Sen, A ideia de justiça (2010).


254

A expressão “la fatigue d’être soi”, ou o cansaço de ser si mesmo, foi concebida pelo sociólogo francês
255

Alain Ehrenberg no seu estudo sobre a depressão como um fenômeno sociológico revelador das mudanças
na individualidade contemporânea.
256
Consiste no distúrbio psíquico de caráter depressivo, caracterizado por esgotamento físico e mental intenso
em decorrência do stress no trabalho. 462
As novas formas de sofrimento social estão, portanto, vinculadas às profundas
mudanças provocadas pela autonomia na figura do indivíduo e na individualidade, bem
como pelas transformações nas normas, valores, nas relações familiares, nas relações
práticas no trabalho, e nos vínculos sociais e políticos da sociedade contemporânea. Não
são mais produtos do conflito neurótico entre desejo-norma-transgressão como outrora,
mas sim da percepção de insuficiência e incapacidade do indivíduo para realizar suas
tarefas, seus próprios desejos e em atender às expectativas alheias. No entanto é
imprescindível diferenciar e associar “sofrimento psíquico” e “sofrimento social”. O
sofrimento social é um sofrimento psíquico, pessoal, de origem social. Já o sofrimento
psíquico quando relacionado ao sofrimento social revela a qualidade das relações sociais,
os modos de ação e de comportamentos individuais em meios sociais alterados.
O cansaço e suas patologias caracterizam o mal-estar da sociedade capitalista
globalizada, levando a mesma a colocar a saúde mental no centro das atenções e da opinião
pública. No entanto, o faz concebendo o processo de construção de relações sociais por
meio de uma linguagem afetiva e psicológica que combina o bem enquanto realização e
sucesso pessoal, e o mal enquanto sofrimento psíquico. Essa linguagem provocou uma
mudança no status social do sofrimento ao disseminar a ideia de uma infelicidade que é
comum a todos e ao associar o mal-estar individual ao coletivo (EHRENBERG, 2010). A
aceitação da linguagem afetiva transformou a ciência psicológica em uma “potência cultural
formativa” (HORKHEIMER, 1974)257, assim como as mídias, tornando-as centrais no
controle das emoções, na elaboração de um estilo de vida e de uma semântica que
possibilitam a formação de um repertório cultural compartilhado, desempenhando uma
função disciplinar que torna as emoções compatíveis com a cultura dominante. Dessa
forma, o sofrimento social é enquadrado dentro do discurso psicologizante que tende a
analisar as patologias sociais em termos do eu.
As novas patologias sociais são, portanto, consequências do sistema de dominação
proposto pela racionalidade neoliberal que, por meio da disseminação ilusória da liberdade
total, procura moldar economicamente o indivíduo por meio da disseminação do discurso
psíquico do sofrimento, conduzindo o mesmo à incorporação da lógica da produtividade
baseada na competitividade e na busca exaustiva e performática pelo alto rendimento em
todos os campos da vida. Essa dinâmica manipula a realidade social e nos incentiva cada

257
Potências culturais formativas compreendem as organizações que atuam na produção cultural e que por
meio dos seus produtos moldam tanto a consciência dos indivíduos como também os valores e os processos
sociais a fim de promover a estabilidade e a reprodução das instituições e estruturas sociais desejadas.
463
vez mais a nos enxergarmos vulneráveis, doentes, e necessitados cada vez mais de produtos
desenvolvidos para conter, equilibrar e inibir o sofrimento psíquico, como drogas sintéticas
e práticas terapêuticas, ofertados pelo campo do “capitalismo emocional” (ILLOUZ,
2011)258.

PSICOLOGIA E AUTOAJUDA NA CONSTRUÇÃO DO CAPITALISMO


AFETIVO

A ideia de saúde mental e bem-estar psíquico desfrutou de um imenso sucesso e


desenvolvimento nos EUA ao longo do século XX, promovendo a racionalização das
emoções e dos sentimentos. Movida pela lógica neoliberal, a ciência psíquica não busca
mais a compreensão da alma e do espírito, mas se dedica a conhecer, a partir de então, a
personalidade humana. O movimento norte-americano de redução do psiquismo às forças
biológicas e sociais acordava com a necessidade de previsão das possibilidades de ação,
inicialmente pensadas para o campo profissional, na lógica: conhecer para prever, prever
para dominar. A necessidade de construção de um eu positivo, de elevada autoestima,
produtivo e performático, alcançou todos os campos da vida social dando origem às teorias
econômicas do “menagement” e da “inteligência emocional”. A psicologia comportamental
norte-americana, ao propor a organização da psique do indivíduo desamparado, acabou
ocupando os lugares tradicionalmente pertencentes à família, à religião e à sociedade em
suas instâncias formativas (escolas e universidades, por exemplo).
Entre 1880 e 1920 a expansão capitalista norte-americana foi intensa, ininterrupta
e direcionada para uma economia de serviços. O desenvolvimento econômico foi
acompanhado por teorias de administração e pela presença dos psicólogos clínicos que
passaram a ser recrutados pelas empresas a fim de garantir a sistematização e a
racionalização dos processos de produção. Os psicólogos ao importarem as categorias
terapêuticas para o local de trabalho, valorizando o componente afetivo dos
relacionamentos nesse ambiente, revolucionaram as teorias de administração e redefiniram
o perfil de empregado a ser contratado pelas empresas. O discurso científico com ênfase
sobre o eu, seus sentimentos e relacionamentos, foi ao encontro dos sentimentos de

258
A socióloga franco-israelense, Eva Illouz, investiga o governo das emoções e a influência do capitalismo
nas maneiras de sentir e de amar. Para a autora o capitalismo emotivo é a peculiaridade manifesta do
capitalismo atual: representa o salto de qualidade efetuado pelo sistema de produção capitalista, em relação
ao seu próprio processo de dominação, ao passo que além da dominação efetuada por meio do controle do
modo de produção e da manipulação das palavras e ideias – como nos colocou Marx – na sociedade
capitalista contemporânea, a dominação é também produzida por meio da manipulação das emoções e dos
sentimentos. 464
instabilidade e insegurança, gerados pelas crises cíclicas do capitalismo e pelo grande mal-
estar durante a recessão da década de 20, e se consolidou enquanto um novo “estilo de
pensamento” (ILLOUZ, 2011)259. O discurso psicológico fundamentado sobre os termos
de “igualdade”, “cooperação” e “capacidade de comunicação”, estabeleceu uma nova
forma de sociabilidade e de afetividade, democratizando as relações de poder ao afirmar
que seria a personalidade do indivíduo e não sua colocação social o que lhe possibilitaria
o sucesso profissional.
Ainda nos anos de 1920, o cinema e a literatura, expressões da “indústria cultural”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985) exerceram um importante papel na difusão das
ideias psicológicas e de normas afetivas, além de determinar o vocabulário pelo qual o eu
passaria a compreender a si mesmo. Na década de 1950 a legislação norte-americana
incentivou o desenvolvimento da psicologia e da psiquiatria voltada para a comunidade e
assim, a partir de 1960, a linguagem terapêutica se tornou um componente da cultura
popular norte-americana que, aliado ao movimento feminista, elegeu as mulheres como
principais consumidoras do aconselhamento terapêutico. O envolvimento entre psicologia
e feminismo levou à racionalização das relações íntimas que determinou o estilo privado,
racional e metódico da vida afetiva.
A Psicologia e a noção de autoajuda teriam se encontrado ainda no século XIX,
combinando a concepção freudiana e psicanalítica da cura pela terapia e o ethos da
autoajuda que crê no poder que o indivíduo possui em si mesmo para alcançar o sucesso.
Essa associação produziu a teoria psicológica do desenvolvimento pessoal260, que
estabeleceu uma identidade comum de sofrimento neurótico entre patrões e empregados,
por exemplo, tornando democrática a ideia de sofrimento. Foi, portanto, a junção de
fatores como o movimento da cura pela mente, a teoria psicológica do desenvolvimento
social, o caráter democrático do sofrimento, e a “revolução das brochuras” 261 que
possibilitaram o acesso à linguagem terapêutica pelas classes médias, consolidando a
indústria da linguagem afetiva. A escrita afetiva, também denominada como autoajuda,
propõe o controle dos sentimentos, dos valores e dos objetivos de cada um por meio de
técnicas de cálculo e de objetificação dos sentimentos (ILLOUZ, 2011). Isso instituiu uma
dinâmica que aliena as pessoas de si mesmas ao as afastarem do processo de

259
Deve ser compreendido no sentido mannheimiano do termo.
As teorias do “menagement” e da “inteligência emocional”.
260

261
A “revolução das brochuras” foi o movimento realizado em 1939 pela editora Pocket Books com o objetivo
de tornar acessível o custo dos livros ao maior número possível de consumidores (ILLOUZ: 2011).
465
conscientização dos seus próprios sentimentos. Estes, por sua vez, passam a ser
interpretados como fenômenos externos ao eu e, dessa forma, podem ser observados,
controlados e manipulados. Acordamos com a compreensão de Eva Illouz (2011) de que
o discurso terapêutico, ao encontrar como um dos meios de propagação os livros de
autoajuda, inaugurou uma espécie de nova “ontologia afetiva”, estabelecendo o cálculo
sobre as relações íntimas, tornando-as objetos que podem ser negociados e, portanto,
trocados como mercadorias.
O crescimento da produção literária de autoajuda foi possibilitado pela concepção
de saúde atrelada à ideia de realização pessoal: o eu não realizado, insatisfeito e descontente
deveria lançar mão da terapia, pois não desfrutaria de boa saúde. Assim, comportamentos
antes entendidos como normais foram reinterpretados negativamente como derrotistas,
neuróticos e doentes. Enquanto um produto do “apparatus” (MARCUSE, 1998) cultural,
a autoajuda se tornou uma ferramenta organizacional das percepções de cada um em
relação a si e aos outros na vida social e, ao equiparar pacientes a consumidores potenciais,
deu origem a um nicho de mercado. No entanto, a narrativa da autoajuda, ao invés de se
colocar como oposta ao sofrimento psíquico acabou se constituindo na própria narrativa
do mesmo, dando origem a um novo campo específico, o campo afetivo. Diferentes atores
sociais e institucionais ligados ao campo da saúde desenvolveram “campos afetivos”262 nos
quais sentimentos e competências afetivas são trabalhados – objetificados e mercantilizados
– enquanto saúde emocional.
Com a consolidação do campo afetivo, o comportamento afetivo foi convertido em
fator determinante da conduta econômica e social, definindo a dinâmica da vida e de
aumento do capital social. Desse modo as competências afetivas passaram a ser entendidas
na qualidade de benefício social e empregadas de acordo com a mesma ideia de benefício.
As competências afetivas, ou inteligência emocional, são, sobretudo, ferramentas de
classificação e de distinção capazes de estratificar grupos sociais, pois o capitalismo afetivo,
ao converter estilos afetivos, ou seja, maneiras de pensar e agir sobre os afetos, em moeda
de troca, define também uma identidade social ideal para tomar posse desse capital. O
modelo terapêutico de competência afetiva, uma ferramenta da segunda modernidade, age
na esfera privada da vida orientando para a felicidade e para o sucesso, além de auxiliar na

262
Em Illouz (2011), campos afetivos são campos de ação e discurso com regras, objetos e fronteiras próprios,
que funcionam edificando, ampliando e mercantilizando o campo da saúde afetiva, além de controlar a
entrada de novas formas competência social ou competências afetivas, de estilos afetivos que não foram
definidos e nem oferecidos pelos psicólogos, os principais atores do campo afetivo.
466
construção da relação entre a individualidade e as instituições, buscando cultivar,
principalmente, o sentimento de segurança nesse indivíduo fragilizado e sobrecarregado
mesmo em condições de profundas incertezas.

CONCLUSÃO

Desde Marx aprendemos que a classe dominante de uma dada formação social não
apenas controla o modo de produção, mas também domina palavras e ideias. Isso nos
serviu para compreendermos os sistemas produtivos ao longo da história. No entanto, o
desenvolvimento da sociedade capitalista produziu um salto de qualidade no processo de
dominação: além da dominação efetuada através da manipulação das palavras e ideias, na
sociedade capitalista contemporânea a dominação é também produzida pela manipulação
dos sentimentos e das emoções.
A produção neoliberal de emoções e sentimentos como forma de dominação
social, torna fundamental a investigação sociológica das tendências da modernidade em
avaliar as patologias em termos do eu. A psicologia e a literatura de autoajuda refletem esta
tendência da modernidade que, fundamentada sobre a condição autônoma dos indivíduos,
nos proporcionou uma experiência, uma forma de vivência pessoal, atomizada e privada –
própria do indivíduo na grande cidade – sem vínculos com o passado e com a comunidade,
metrificada pelo valor da utilidade e da eficácia. Logo, estamos vivendo sob a égide de uma
nova Erlebnis (BENJAMIN, 1994) na qual a condição autônoma dos indivíduos livres dos
condicionamentos da sociedade (bem como da família, da classe, do sindicato e do
partido), atomizados e envolvidos nas dinâmicas da hipercompetitividade e do hedonismo
sem fim, buscam fora de si mesmos pontos de referência, promessas de felicidade, e
fórmulas de sucesso. A Erlebnis, portanto, se faz ainda mais presente no cotidiano dos
indivíduos da era global, já que aqui os indivíduos encontram em produtos ofertados pelo
“mercado afetivo” elementos que formem a sua “aparência social” (CARNEVALI, 2012)
de sucesso e poder.
O processo subjetivo das organizações e das instituições sociais no interior dessa
nova Erlebnis e seu potencial emancipatório pode ser apreendido por meio da análise do
papel social colonizador da Psicologia e da literatura de autoajuda na sociedade brasileira
globalizada. Tamanho feito impõe a necessidade de aprofundamento sobre uma
antropologia do indivíduo contemporâneo, ou seja, é preciso compreender a construção
histórica do individualismo no contexto cultural particular dessa sociedade. A partir disso,

467
se torna possível interpretar a estrutura psíquica desse sujeito e identificar a posição
ocupada pelas patologias mentais e sua relação com o sofrimento social. A observação da
relação estabelecida entre o mal-estar pessoal e as relações sociais conturbadas dessa
sociedade, permite analisar o desenvolvimento do seu mercado afetivo. No Brasil, a análise
da expressão econômica e social da linguagem terapêutica e do consumo da literatura de
autoajuda, enquanto produtos afetivos e elementos da cultura popular aponta que, ao
elaborar um determinado estilo de vida e um significado que possibilita a formação de um
repertório cultural compartilhado que desempenha uma função disciplinar e compatibiliza
as emoções e a cultura dominante, estes produtos acabam reproduzindo a vida prejudicada.

REFERÊNCIAS

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filosóficos. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

BAUMAN, Zygmunt. Bauman, o dela paura. Nuovi Argomenti. Arnaldo Mandadori


Editore, Milano, v. 5, n. 44, out./dez., 2008.

BECK, Ulrich; BECK-GERNSHEIM, Elizabeth. Individualization. Institucionalized


individualism and its social and political consequences. Londres: Sage, 2002.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios
sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

CARNEVALI, Barbara. Le apparenze sociali. Una filosofia del prestigio. Bologna: Il


Mulino, 2012.

EHRENBERG, Alain. La fatigue d’être soi. Depression et société. Paris: Odile Jacob,
2008.

____________. La société du malaise. Le mental et le social. Paris: Odile Jacob, 2010.

GALLI, Carlo. Political spaces and global war. London: University of Minnessota Press,
2010.

GALLINO, Luciano. Finanzcapitalismo. Torino: Einaudi, 2011.

____________. La lotta di classe dopo la lotta di classe. Roma; Bari: GLF Edittore Laterza,
2012.

____________. Vite rinviate: lo scandalo del lavoro precario. Roma: Laterza, 2014.

HORKHEIMER, Max. Teoria crítica. Buenos Aires: Amorrotu, 1974.

ILLOUZ, Eva. O amor nos tempos do capitalismo. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.

468
MARCUSE, Herbert. Técnologia, guerra e facismo. São Paulo: Editora Unesp, 1999.

MARRAMAO, Giacomo. Tras Babel: identidade, pertinência y cosmopolitismo de la


diferencia. Santiago: Naciones Unidas, CEPAL, 2009.

SASSEN, Saskia. Expulsions. Brutality and complexity in the global economy. Cambridge:
The Belknap Press of Harvard University Press, 2014.

469
MEMÓRIA E ORALIDADE: TRANSMISSÃO DE SABERES EM
DUAS MANIFESTAÇÕES POPULARES BRASILEIRAS

Natália Carvalho de OLIVEIRA263

Ana Paula Santos HORTA264

Resumo: O presente trabalho parte de análise sobre os processos de transmissão de saberes


presentes em duas manifestações de origem popular distintas, o batuque em Araraquara/SP e a
folia de reis da região da Serra da Canastra/MG, que apesar de estarem situadas em espaço-tempo
diferentes, compartilham aspectos semelhantes em suas constituições. O batuque de
Araraquara/SP, manifestação de origem afro-brasileira presente em algumas cidades do estado de
São Paulo, embora não se manifeste mais, manteve suas lembranças e histórias nas memórias dos
grupos familiares. Estes ao se relacionar e rememorar os tempos do batuque, dinamizam nos afetos
e cuidados entre famílias, o gosto pelo encontro e a possibilidade de afirmar identidades; já a folia
de reis é uma festa religiosa de tradição popular, cuja transmissão de conhecimentos se dá pela
oralidade instituída por meio de vínculos familiares e comunitários. Como o traço das relações
familiares, que de geração em geração, propagam valores e refletem sobre estes, compondo nos
festejos, ambientes em que o rememorar é elemento de expressividade significativa e
transformadora dos próprios encontros. O objetivo deste trabalho é, portanto, discorrer sobre
processos de transmissão e partilha de saberes em manifestações culturais populares.

Palavras-chave: Folia de Reis. Batuque. Memória. Saberes.

INTRODUÇÃO

Sabemos que termos como “cultura popular” ou “religiosidade popular”, apesar da


boa intenção de seu uso, podem emanar sentidos confusos, polêmicos e em alguns casos,
até reducionistas. De certa maneira, tudo que se refere aos termos “povo” ou “popular”,
nas Ciências Humanas, carrega algumas contradições inerentes à sua significação. Dentro
da tradição teórica marxista, a “cultura popular” serviria principalmente como uma espécie
de resistência a toda opressão causada pelas elites e instituições que, de uma forma ou de
outra, detinham algum tipo de hegemonia econômica, política e cultural. Entretanto, sabe-
se que a simples pergunta: “que povo é esse?”, já renderia um arsenal de respostas, muitas
delas contraditórias.
Não cabe a esse trabalho fazer uma retrospectiva histórica e intelectual do
surgimento ou “invenção” da cultura de um povo, denominada cultura popular, contudo,
com a finalidade de introduzir o tema, lembramos que o popular, a cultura popular e a
religiosidade popular são temas que estavam na agenda de discussões de intelectuais e

263
Mestranda em Ciências Sociais; UNESP/Araraquara; natalia.carvalho.gea@gmail.com
264
Doutoranda em Ciências Sociais; UNESP/Araraquara; ana.horta@fclar.unesp.br

470
militantes das ações populares no Brasil, durante a década de 70 e 80 do século passado.
Revelando um campo simbólico com uma autonomia relativa e não reduzida a fenômenos
tal qual a economia, a cultura do “povo” mostra sua riqueza pois através dela mulheres e
homens se expressam coletivamente por meio de cultos, festas, peregrinações e danças.
Assim, as pessoas dão conta de uma realidade vigorosa que os intelectuais do passado já
condenaram ao esquecimento/desaparecimento, mas no entanto, mostra sinais evidentes
de vitalidade a despeito das grandes transformações por que sofrem diante dos processos
de globalização. Falar em cultura popular é levar em conta hibridismo, transformações,
dinâmicas e fazeres cotidianos que se manifestam de diferentes formas e elaboram infindas
estratégias de sobrevivência.
Numa tentativa de renovação metodológica, concebemos cultura popular como
modos de pensar, de sentir, de traduzir e de transmitir sentimentos, valores e concepções
de mundo próprios de populações tradicionais brasileiras, em geral remanescentes de
comunidades rurais. Longe de arriscar definição para um termo tão abrangente, afirmamos
apenas que cultura popular é o que as pessoas – para não dizer povo e incorrer em
equívocos ideológicos – fazem em comunidade e sobre o que nós agora nos desafiamos
pensar dentro e fora da universidade.
Neste sentido, o presente trabalho visa dialogar sobre o papel da memória e da
oralidade para a manutenção dos saberes em duas manifestações populares: o batuque em
Araraquara (SP) que sobrevive na memória de seus antigos participantes, mantendo suas
lembranças ao longo dos anos através da oralidade, e a folias de reis da Serra da Canastra
(MG), manifestação popular praticada por devotos e leigos do catolicismo não
institucionalizado, cujos significados do ritual é transmitido de geração em geração.
As memórias, sejam individuais ou coletivas, são um conjunto de representações
sobre o passado. Nelas estão a capacidade de reter e relembrar experiências vividas
coletivamente nos processos de socialização nos quais constroem-se redes de
relacionamentos e ressignificação coletiva de aspectos do passado, “envolvendo
participantes de diferentes gerações de um mesmo grupo social” (SIMSON, 2000, p. 66).
Além de compreender os significados dados às vivências culturais/sociais, nelas observa-se
a produção de sentidos, uma vez que “festas, rituais, tradições populares [...] constituem
um espaço fecundo para a análise dos processos de mudança, pois cultura é o processo de
sua constante recriação, num espaço socialmente determinado” (MAGNANI, 1998).
No indivíduo conflui as memórias individuais formadas por vivências pessoais,
mantidas em si, e as memórias coletivas inerentes aos diversos grupos aos quais pertence

471
ou pertenceu. Por este motivo, ao relembrar fatos pretéritos é comum confundir, o vivido
com o ouvido, as vivências individuais com os relatos coletivos, uma vez que nos
reconhecemos e sentimos parte dela e, ao mesmo tempo, o contato com os grupos ajudam
a relembrar eventos pregressos. No entanto, quando não nos reconhecemos nas
lembranças e não conseguimos recriar as imagens que nos relatam, ocorre o que
Halbwachs (2006) chama de “descontinuidade”, na medida em que não podemos
reconstruir a imagem e transformá-la em lembrança. Para ele, nunca estamos sozinhos,
carregamos em nós diversas perspectivas, cada uma trazida por uma pessoa, neste sentido
“A memória faz cruzar a história e a intimidade, o mais público e o mais pessoal”
(GONÇALVES FILHO, 1988, p. 99)
Vale ressaltar que o indivíduo filtra o que será retido ou apagado da memória; os
filtros estão relacionados à cultura, ao meio que pertence. É no ato de narrar as vivências
individuais e coletivas que se trocam conhecimentos. Na oralidade, ouvir e narrar histórias
é um processo de entrecruzamento de experiências de uns com os outros, experienciando
e refletindo mutuamente o que se fala e ouve “o narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência de seus ouvintes” (BENJAMIN, 1994, p. 201).

NAS NARRATIVAS DO BATUQUE

Abordaremos, primeiramente, as narrativas sobre o batuque em Araraquara,


partindo da premissa de que estas histórias são saberes que foram vivenciados por parte da
população negra de Araraquara e são transmitidos por meio da oralidade. Mas, alguns
apontamentos devem ser feitos: como a pesquisa está em estágio inicial, não podemos
inferir com certeza que o batuque deixou de ser dançado na cidade, mas por hora,
conceberemos que sim. Outra questão de extrema relevância é pensar qual a terminologia
usada para denominar o batuque.
Ao entrar em contato com os trabalhos produzidos por Valquíria Tenório (2005,
2012, 2013) sobre o Baile do Carmo, festa organizada e protagonizada pela população
negra de Araraquara que, segundo relatos, data de inícios do século XX, era “uma estratégia
de ocupação de espaços aos quais os negros não tinham acesso de forma generalizada”
(TENÓRIO, 2013, p. 36). Por meio desta pesquisa, foi possível identificar diversos relatos
que citavam de forma passageira a existência do batuque. Este apareceu associado, em
diferentes momentos, a três eventos: festas em comemoração ao 13 de maio, festas

472
familiares e ao Baile do Carmo. As denominações dadas pelos(as) interlocutores(as) ao
festejo variam, ora aparece como “batuque”, “umbigada” ou “batuque de umbigada”, sendo
que cada participante utilizou uma destas denominações. Explicaremos à frente cada uma
delas.
João Maurício Rugendas (1979), viajante que fez expedições ao Brasil nos anos de
1802-1858, em sua obra “Viagem Pitoresca Através do Brasil”, realizou estudos e pinturas
sobre a situação geral do Brasil, levando em consideração a diversidade da composição da
população brasileira, dos costumes, dos aspectos econômicos, histórico e social. Durante
suas viagens observou as danças realizadas pela população negra. Para ele a principal era o
batuque, classificação geral dada a todo tipo de manifestação realizada por este grupo, que
tinha como característica, a batida das palmas, o canto composto por um refrão que é
repetido por todos, a dança em roda, em que ao meio há um dançador (RUGENDAS,
1979, p. 154). Segundo José Ramos Tinhorão em seu livro “Os Sons dos Negros no Brasil”
(2012), há referências aos batuques, na literatura brasileira, já em fins do século XVI. Neste
sentido vemos que a terminologia “batuque” era frequente na descrição de ritmos e festas
de origem afro-brasileira. Como era uma denominação geral, ainda é comum em diversas
partes do território brasileiro, porém cada uma delas possuem suas próprias características,
como exemplo o batuque no Rio Grande do Sul e Porto Alegre que é cerimônia religiosa
(ARAÚJO, 1967, p. 231).
A “umbigada” é um movimento de encontro entre dois ventres, geralmente um
masculino e feminino. Para Edison Carneiro (1974, p. 63) a umbigada foi paulatinamente
substituída por gestos equivalentes (lenço, movimento dos pés, gestos), pois aos olhos da
moral cristã era tida como ato sensual e obsceno. Este gesto, ainda hoje, está presente em
distintas manifestações culturais brasileiras tais como o Jongo, Samba de Coco, Samba de
Roda, Tambor de Crioula e etc. e estão distribuídos em diversos estados, tais como:
Maranhão, Piauí, Ceará, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Rio Grande do Norte, Bahia, São
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro e etc.
Já o “batuque de umbigada” ou “Tambú” é uma manifestação de origem afro-
brasileira presente, principalmente no interior do Estado de São Paulo na chamada “zona
batuqueira paulista” que abarca as cidades do Vale Médio Tietê, nos municípios Tietê,
Pôrto Feliz, Laranjal, Pereiras, Capivari, Botucatu, Piracicaba, Limeira, Rio Claro, São
Pedro, Itu, Tatuí (ARAÚJO, 1967). A manifestação é acompanhada por instrumentos de
percussão, letra de música e dança. Os instrumentos utilizados são: tambú (tipo de tambor);
quinzengue (tambor agudo); matracas (paus); guaias ou chocalhos de metal (NOGUEIRA,

473
2009, p.7). Além dos instrumentos os participantes cantam, geralmente músicas próprias,
que contam histórias vivenciadas e dançam em duas fileiras (frente a frente) uma feminina
e outra masculina, que ao soar dos instrumentos e no ritmo da música se aproximam e
proferem a umbigada e em alguns momentos realizam passos livres (NOGUEIRA, 2009,
p.7).
Ainda não podemos afirmar que tipo de batuque era realizado em Araraquara. Mas
suas referências estão presentes, além dos relatos trabalhados por Tenório (2005, 2012,
2013), em diversas narrativas da população negra com mais de cinquenta anos. Através
delas podemos vislumbrar o que foi esta manifestação em tempos pretéritos. Ademais, há
um texto de autoria de Pio Lourenço Corrêa escrito em 1948, sobre a abolição da
escravidão em 13 de maio de 1888 em Araraquara, podemos ver a menção que ele fez ao
batuque:

Seguiu-se à Lei Área, uma aguda da crise social. O negro [...] não queria
mais trabalhar! [...] Bronco, mal aconselhado pelos demolidores do
regime, não trabalhava. Bebia e dançava. Os batuques eram coisas diárias
nos arrabaldes da cidade. Assim eram também os furtos de galinhas, de
cabras, de gêneros alimentícios. O homem branco reagiu irado: - a sóva
de pau e rebenque nos libertos, era igualmente diária [...] (CORRÊA,
1948 Apud. TENÓRIO, 2005, p. 41).

Neste trecho, o batuque aparece como celebração à abolição, porém é interpretado


como desordem, sendo apenas citado de forma geral sem detalhes, impossibilitando,
assim, inferir as características e os significados atribuídos a ele. Há também dois jornais,
um de 1930 e 1936, no qual convidam a população para participar do batuque em
comemoração ao 13 de maio, estes são uns dos poucos documentos escritos que fazem
menção ao batuque na cidade. Para além destes documentos e da pesquisa citada, as
histórias sobre o batuque em Araraquara estão nas memórias dos antigos participantes ou
de pessoas que ouviram tais narrativas e se manteve ao longo dos anos traves da oralidade.
Em 2015, ao participar da disciplina “Memória e História Oral no Ensino e na
Pesquisa”, ministrada pela profa. Dra. Claudete de Souza Nogueira, tivemos a
possibilidade de entrar em contato com alguns referenciais teóricos sobre história oral e
memória. Motivada pela disciplina, contatamos Maria Nazaré Salvador (Nazaré), sua irmã
Lazara Salvador (Lazinha) e sua prima Irma, para a realização de uma conversa sobre as
memórias do batuque na cidade. Em duas conversas realizadas em 2015, uma com Nazaré

474
e Lazinha e a outra com Irma e Nazaré, as três mulheres contaram um pouco sobre o que
conheciam do batuque.
Nazaré e Lazinha, ambas mulheres negras com mais de 60 anos, relataram que
quando crianças ouviam em sua casa principalmente em momentos de festividade ou visitas
de amigos e familiares, histórias sobre o batuque e associado a ele, era frequente, o nome
de Benta Raquel apelidada de “a rainha das muié” mulher que, segundo Nazaré, estava a
frente do batuque e que era ligada à religiosidade de matriz africana. Nazaré e Lazinha não
sabiam ao certo se à umbanda ou candomblé. Relataram que em meados da década de
cinquenta o batuque acontecia perto do bairro Santana, nas proximidades da Igreja São
Bom Jesus, à época, local afastado da cidade. Nas lembranças de Nazaré muitas vezes estes
relatos eram carregados de tom pejorativo e por muitas vezes diziam que era pecado, fato
que fazia com que algumas crianças, tal como Lazinha na época, tivessem medo.
Irma, prima de Nazaré e Lazinha, além de ouvir histórias de seus familiares, certa
vez, quando criança, chegou a observar de longe a roda de batuque. Ela nos contou que o
batuque, na época, aproximadamente entre as décadas de cinquenta e sessenta, ocorria na
Vila Xavier, um bairro de Araraquara. Lembra que o batuque era dançado em roda e que
ao centro dançavam duas pessoas, um homem e uma mulher, esta última de saia longa e
rodada. Ao dançar ao som e no ritmo dos tambores e das palmas, juntamente com o
homem proferiam a umbigada, encontro dos umbigos, e no momento do encontro batiam
as mãos sobre a cabeça. Identificou também a presença de Benta Raquel e a descreveu
como mulher negra de pequena estatura, “forte estrutura” que impunha respeito e que
chamava atenção ao dançar.
Por conseguinte, ao observar os relatos é possível assinalar três elementos que
compõem e dão sentido às memórias, que são: acontecimentos, personagens e lugares
(POLLAK, 1992). Estão relacionados às vivencias individuais e coletivas do sujeito ou
grupo, portanto carregam variadas versões, significados e interpretações sobre o vivido.
O acontecimento são momentos vividos pelo indivíduo ou pelo grupo ao qual está
inserido. Pode ocorrer, devido ao seu envolvimento, a não distinção do que foi vivenciado
e do que foi ouvido, estes podem ser chamados de acontecimentos “vividos por tabela”
(POLLAK, 1992); no caso em questão o acontecimento é o batuque no qual os
participantes dançavam e como elemento da dança havia a umbigada. Já os personagens,
se referem a pessoas que conhecemos direta ou indiretamente ao longo da vida e que por
vezes podem ou não pertencer ao mesmo espaço/tempo; são familiares ou tornaram-se
conhecidas por serem constantemente lembrados (POLLAK, 1992), nas falas, a única

475
figura que aparece é a de Benta Raquel, além de personagens gerais como mulheres e
homens. Os lugares são espaços que se relacionam com as lembranças e se constituem
enquanto apoio à memória (POLLAK, 1992), estes por sua vez estão associados aos bairros
onde as depoentes cresceram: proximidades do Bairro Santana e Vila Xavier, localizados
em pontos opostos.
Nas narrativas percebe-se a forte presença da família como mediadora das vivências
e saberes do grupo. Halbwachs (2006) ressalta a relevância da participação da família na
vida da criança, por ser este o grupo mais ativo em suas primeiras vivências, suas memórias
estarão associadas às lembranças dos familiares, “as lembranças da infância só são
conservadas pela memória coletiva porque no espírito da criança estavam presentes a
família e a escola” (HALBWACHS, 2006, p. 93).
Observamos também, a importância da oralidade na transmissão dos saberes e
conhecimentos. Os tios, avôs, pais e amigos contavam suas histórias, experiências
individuais e coletivas ao círculo familiar e de amizade. Outra característica da memória é
a sua seletividade, na medida em que se mantém nas lembranças, tanto pessoais quanto do
coletivo, o que faz e dá sentido aos indivíduos, sendo assim “[...] sempre ‘fica’ o que
significa” (BOSI, 1994, p.66)
Ecléa Bosi em “Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos” (1994) ressalta o
papel social dos mais velho no trabalho da lembrança e nos diz que estes estão “se
ocupando consciente e atentamente do próprio passado, da substância mesma da sua vida”
(BOSI, 1994, p. 60). Neste processo há a “refacção” do passado na medida em que ocorre
a “desfiguração” ao ser visto pelos valores e olhares do presente o que foi vivenciado
outrora (BOSI, 1994). Assim, a memória “não é a mesma imagem que experimentamos
na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-
se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor” (BOSI, 1994, p. 55). No
processo de socialização, busca-se a confirmação do que é dito, nos olhares e gestos de uns
com outros “buscam a confirmação do que se passou com seus coetâneos em testemunhos
escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta esse tesouro que é guardião” (BOSI, 1994,
p. 83).
Em suma, os mais velhos possuem papel central na transmissão de saberes do
tempo passado ou presente; suas memórias são produto das vivências individuais e
coletivas, da relação com o mundo. Nas memórias destas guardiãs mantiveram-se vivas
histórias outrora vivenciadas e a transmissão destes saberes se faz através da oralidade,
momento pelo qual a palavra falada ganha destaque por dar vida às histórias, que via

476
gestualidade, interpretação/encenação dão novo fôlego às narrativas. Os mais velhos de
hoje, são os guardiões das histórias de ontem, de quando eram pequeninos e ouviam, no
ambiente familiar, as experiências de seus pares. Hoje são eles que contam suas vivências
e são responsáveis em manter viva, as histórias que representam seu grupo e carregam a
narrativa de sua trajetória de origem.

TRANSMISSÃO DE CONHECIMENTO NAS FOLIAS DE REIS

As folias de reis foram objeto de estudo de vários folcloristas que buscaram fazer
uma descrição dos elementos que as compunham, bem como uma retrospectiva histórica
que apontava para as origens ibéricas destas manifestações culturais. A grande parte dos
estudos apontava para um passado remoto que estava em vias de ser extinto, de desaparecer
em virtude das transformações advindas da industrialização. Sem dúvidas, tratava-se de
uma concepção que traz em si muitos equívocos, pois a ideia de cultura popular como um
lugar de resistência e sobrevivência de valores que precisam ser “resgatados” e preservados
guarda em si um olhar romântico, nostalgicamente voltado ao passado que, por sua vez, é
idealizado e utópico.
A partir da década de setenta do século passado, pesquisas de cunho analítico
começam a ser realizadas e com isso surge uma visão mais sistêmica de cultura. As folias
de reis passam a ser entendidas como um sistema de prestações totais, ou seja, sistema no
qual “indivíduos e grupos trocam tudo entre si, constitui o mais antigo sistema de economia
e de direito que podemos constatar e conceber, no qual destaca-se a moral da dádiva-troca”
(MAUSS, 1974, p. 169). Sob essa perspectiva, destacam-se os trabalhos de Carlos
Rodrigues Brandão (1977, 1981), antropólogo que chama a atenção para o fato das folias
não serem só manifestação cultural, mas também um sistema que envolve além de foliões
(cantores e instrumentistas), uma rede de devotos e moradores das comunidades onde as
festas são comumente realizadas. São promesseiros, devotos, foliões, festeiros e
colaboradores, pessoas que estabelecem algum tipo de relação fundamental entre si tendo
como elo a folia de reis (BITTER, 2010). A partir desta reflexão, podemos dizer que: “folia
de reis é um espaço camponês simbolicamente estabelecido durante um período de tempo
igualmente ritualizado, para efeitos de circulação de dádivas – bens e serviços – entre grupo
e moradores do território por onde ele circula” (BRANDÃO, 1981, p. 36).
Neste sentido, ressaltamos que a folia de reis é também um espaço de circulação
de memórias, de saberes específicos de como fazer a festa. É preciso saber cantar e é

477
preciso saber tocar instrumentos, mas é preciso saber mais que isso. Há regras rituais, há
mitos de origem, há proibições, há formas de dialogar com os foliões e de receber a
Bandeira. Em síntese, como há um sistema de prestações totais – um sistema de trocas –
há um sistema de ideias nativas, “a partir do qual a folia de reis é vista como portadora de
poderes e de conhecimentos – enfim, do próprio fundamento da folia de reis” (BITTER,
2010, p. 210). Há, portanto, conhecimentos específicos, saberes que são transmitidos de
geração para geração, por meio da oralidade e da memória que se perpetua.
Numa etnografia realizada junto a comunidades tradicionais de Minas Gerais
(HORTA, 2011), onde as folias de reis são muito presentes e significativas, constata-se que
a maioria dos foliões se iniciou numa companhia de reis quando menino e, se ainda não
morreu, certamente morrerá folião. Esta identidade que eles mesmos reconhecem ter com
a companhia de reis garante, além da vivência religiosa, sociabilidade, compadrio, espaço
criativo e partilha das memórias individuais e coletivas. Se ela consegue tal feito, é muito
por recordar uma história tão antiga quanto sagrada, partilhada tanto no espaço simbólico
da fé, quanto no concreto da festa.
Recorda também os lugares, as datas, as pessoas que morreram, as comidas, as
rezas, as cantigas, os versos e o enredo. Com isso, a memória coletiva se firma e a memória
individual se afirma numa dinâmica de recordação contínua da história enquanto tempo
vivido e cultura arraigada. A folia de reis pode ser considerada mais que uma riqueza
cultural; é um espaço de sociabilidade e vivência da memória individual e coletiva.
Além das trocas materiais que engendram um sistema específico de normas, as
folias de reis se constituem como um dos espaços onde é mais consciente e ordenada a
relação de ensino-aprendizagem. A transmissão do conhecimento se faz por repetição: de
casa em casa, de ano em ano, dos mesmos rituais, falas e ordem de apresentação do enredo.
Ainda que haja sempre espaço para o improviso, há certo rigor que ordena e renova o
ritual.
Sem a pretensão de invadir o espaço da Etnomusicologia, podemos fazer uma
analogia entre a música e a forma de ordenar o conhecimento dentro da folia de reis. Numa
cantoria, a primeira voz é sempre do capitão. Ele canta e é seguido pelo 2º capitão,
contramestre, respondedor ou ajudante de capitão, que só faz repetir seus versos. De forma
progressiva, outras vozes se unem ao coro. Vale lembrar que os nomes mudam de região
para região ou até de companhia para companhia, mas em geral a voz intermediária é

478
chamada contralto, “contrato”, turina ou “turinda”265. Por último, uma voz bem aguda, um
grito fininho, esticado, se junta à cantoria. É a “retinta”, “requinta”, “tipe”, “tipo”. De longe
se pode ouvir a “requinta” se propagando ao sabor dos ventos e avisando a presença de
folia de reis na redondeza. Chega a ser comovente a agudeza da voz, um grito fino que se
faz música. Uma letra apenas, a última letra da última palavra do último verso cantado pelo
capitão. Assim, os foliões repetem em coro ordenado o que foi cantado anteriormente.
Da mesma maneira, a transmissão dos saberes específicos é ordenada pela
repetição. O menino ouve tantas vezes o avô, o tio ou o pai cantar que, quando entregam
em suas mãos um pandeiro e colocam em seu corpinho miúdo uma farda de folião, ele
canta orgulhoso os versos que aprendeu “de ouvido”. E a toada continua: um canta, outro
ouve, outros cantam juntos. Entra ano, sai ano, as pessoas vão aprendendo e ensinando
umas às outras, do jeito mais caloroso possível.
Carlos Rodrigues Brandão, em O Ardil da Ordem (1983), investiga os caminhos e
as armadilhas da educação popular ajudando no desvelamento dos valores humanos no
sistema de transmissão de saberes. O autor classifica as folias de reis como uma equipe de
trabalho especializado ou grupos corporados de trabalho ritual. Estáveis, mantendo por
anos o mesmo grupo de figurantes essenciais, as folias produzem trabalho religioso
coletivo, e é por meio de seus figurantes que flui uma grande parte do universo simbólico
de representação da natureza e da realidade social (BRANDÃO, 1983, p. 20).
Para cada tipo de atividade do ciclo rural - a derrubada da mata, o preparo do solo,
o plantio, as limpas da lavoura, a colheita, a estocagem e a circulação dos bens - há um
repertório próprio de conhecimentos, cuja aparente rusticidade apenas esconde segredos
e “saberes” de uma grande complexidade. Muitos termos e expressões foram criados para
dar conta deste universo, tais como: tecnologia rústica, conhecimento popular ou ciência
caipira.
No mundo rural, saber trabalhar com a terra e com os animais é determinante para
a subsistência humana. O saber, por sua vez, não é apenas técnico, mas relaciona-se
estreitamente com a natureza e seus sinais, sendo as estações e as fases lunares, para citar
apenas dois exemplos, elementos a partir dos quais se interpreta o mundo e se trabalha
concretamente na transformação do mesmo. De maneira equivalente, voltando às
Companhias de reis da Serra da Canastra, é especializado o conhecimento que tem cada

265
Pesquisas realizadas junto a folias de reis que se apresentam na zona rural do município de São Sebastião
do Paraíso/MG, nos anos de 2005, 2009 e 2010, revelaram haver grandes diferenças nos nomes dados às
vozes dentro de uma Companhia. Em Paraíso, os foliões nem sequer conhecem a palavra contralto e
intitulam de caceteiro o homem que faz a voz correspondente.
479
folião de seu papel na folia. De acordo com afirmação do folião Amador, de São José do
Barreiro: “O Adilson é o primeiro capitão e o Murilo segundo ou terceiro, depois vem o
taleiro, o contralto, as duas retintas e o caceteiro, tudo na fila, sabe. Não vai você pensar
que eu dou conta de fazer a dele. E ele também não faz a voz que eu faço. Todo mundo
tem o seu dom” (HORTA, 2011, p. 94).
Vivendo em comunidade, as pessoas criam e reproduzem os seus próprios sistemas
de transmissão de conhecimentos. Na Companhia de reis, por exemplo, o capitão, não é
apenas quem dirige ou guia o grupo ritual, é a pessoa que sabe no todo o que os outros
sabem aos pedaços. Transmitir este saber é uma missão do mestre que deve ser elaborada
antes de deixar a Companhia, ou a vida. Por sinal, Carlos Rodrigues Brandão (1995), como
resultado de uma pesquisa de campo em São Luís do Paraitinga e em Catuçaba ilustra uma
cena em pai e filho que evidencia a permanência e, ao mesmo tempo a dinâmica, da cultura
popular transmitida de geração em geração:

Tocando reses no campo gritavam um para o outro. Cantavam para não


estar sozinhos. Sem palavras que dissessem alguma coisa, falavam versos
carregados de uma rara qualidade de amor. Frases do trabalho e o seu
saber, de um estranho afeto rude pela terra e pela vida nas difíceis
misturas entre o homem e a natureza, cujos sentidos e mistérios as
páginas seguintes procuram decifrar e descrever (BRANDÃO, 1995, p.
02).

Ainda no que concerne folias de reis, dentre os depoimentos coletados na Serra da


Canastra (HORTA, 2011), Zé Vitor foi o capitão mais idoso entrevistado. Antes de falecer
ele já tinha deixado o mandato para um discípulo mais jovem, o Adilson. Por motivo de
doença, Zé Vitor deixou de acompanhar a folia nos giros rurais, mas quando o grupo estava
no vilarejo ele integrava a equipe. Chegou a receber os foliões em sua casa e as visitas
ficaram marcadas pelo sentimento de gratidão que têm os mais jovens para com os antigos
mestres266. Modalidades complexas de saber e de trabalho religioso, as folias precisam ser
ensinadas e aprendidas dentro de uma ordem popular de exercício coletivo (BRANDÃO,
1984, p. 24).
Com base na Psicologia entendemos que toda ação e pensamento comportam um
aspecto cognitivo, representado pelas estruturas mentais, e um aspecto afetivo,

266
A seguir fala de Zé Vitor: “A maior parte desses meninos mais novos fui eu que ensinei. O Adilson canta
muitas vezes isso quando eles vêm em minha casa, que eu que ensinei a ele. E diz que eu fui professor e ele
foi meu aluno. Ele faz isso para me homenagear” (HORTA, 2011).

480
representado por uma energética, que é a afetividade. Não existem estados afetivos sem
elementos cognitivos, assim como não existem comportamentos puramente cognitivos. Os
papéis da assimilação e da acomodação cognitiva, enquanto processos da adaptação,
possuem um lado afetivo, posto que haja o interesse em assimilar o objeto ao self – o
aspecto cognitivo é a compreensão (ARANTES, 2002).
Nessa perspectiva, o papel da afetividade é funcional na inteligência, sendo a fonte
de energia de que a cognição se utiliza para seu funcionamento. Na relação do sujeito com
os objetos, com as pessoas e consigo mesmo, existe uma energia que direciona seu interesse
para uma situação ou outra, e a essa energética corresponde uma ação cognitiva que
organiza o funcionamento mental. Complementando, todos os objetos de conhecimento
são simultaneamente cognitivos e afetivos, sendo conhecimento e também afeto.
Em síntese, como lado a lado vivem separadas as duas cordas centrais da viola, as
mesmas que devem estourar ao fim da embaixada para “batizar” o instrumento, afinando-
o, pedir e receber são fundamentos significativos no ritual da devoção, pois estreitam os
laços de afetividade entre as partes. Isso vale tanto para os foliões quanto para os que os
recebem, já que neste caso a fé precisa da confirmação imediata de que a troca foi realizada.
“Afinal, Deus se obriga, Santo reis garante e os foliões proclamam” (HORTA, 2011, p.
96).
Enquanto os produtos da chamada cultura erudita circulam por meio de livros,
registros virtuais, revistas e jornais etc, sendo formas de cultura que se produzem por meio
de agências formais e especializadas de transmissão do saber (BRANDÃO, 2003, p. 46),
tradicionalmente o saber popular flui por meio de relações interpessoais e, portanto, via
memória e oralidade. Pais e avós foliões ensinam seus filhos as canções, o tocar
instrumentos, as danças e os ritos. Nesta dinâmica a memória e a oralidade ocupam um
lugar fundamental. Com Pollak temos que:

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das


interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra como
vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de
tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs,
famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão
dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir
seu lugar respectivo, sua complementariedade, mas também as
oposições irredutíveis (POLLAK, 1989, p. 9).

481
As festas são momentos sociais de dilatação das fronteiras comunitárias, tempo e
lugar quando e onde a transmissão do conhecimento popular se faz mais eficaz. As festas
reforçam o sentimento de pertencimento e revelam que a cultura popular não deve ser
tratada como se fossem imóveis, estáticas ou cadavéricas. Considerando-as em todo o
sistema de trocas – sejam elas matérias ou simbólicas – temos que festas são corpos vivos,
são momentos fugazes, mas ao mesmo tempo perenes em que as pessoas tomam
consciência sentimental de si próprias, dos outros, do passado e da sua condição frente ao
outro.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Reconhecemos que tanto o batuque quanto a folia de reis elaboram suas próprias
subjetividades ao emanarem significados totalizantes que permitem superar as contradições
vividas nas comunidades estudadas e articular o pessoal e o coletivo, o presente e o passado.
Seja no concreto da existência cotidiana – no caso da folia de reis – ou na reminiscência
do que um dia existiu – no caso do batuque – essas manifestações culturais são articuladoras
da memória – do indivíduo e do grupo.
Batuque e folia de reis compartilham saberes – ao mesmo em que são
propriamente saberes/códigos/conhecimentos – transmitidos por gestos, símbolos,
vivências e oralidade, sendo esta última uma das características da cultura popular que, por
sua vez, “se transmite de pessoa a pessoa, de grupo a grupo e de geração a geração, segundo
os padrões e dinâmicas de reprodução do saber popular, ou seja oralmente, por imitação
direta e sem a organização de situações formais e eruditas de ensino-aprendizagem”
(BRANDÃO, 2003, p. 46). As pessoas das comunidades onde manifestações como essas
são realizadas compartilham crenças e conhecimentos comuns que renovam de forma
contínua “um saber cuja força é ser o mesmo para ser aceito. Repetir-se até vir a ser, mais
do que apenas um saber sobre o sagrado, um saber socialmente consagrado” (id., 1984, p.
35).
Cabe ainda ressaltar que a família desempenha um papel significativo, sendo lugar
de produção, reprodução e circulação de saberes. No interior da família, aliás, é que se
originaram muitos dos grupos da cultura popular brasileira, dentre eles o batuque e folias
de reis. Tanto em grupos de matrizes africanas, quanto em grupos devocionais do
catolicismo popular a família é o berço e a continuidade dos saberes, pois há uma
obrigatoriedade dos parentes e amigos próximos em participar das festas religiosas e

482
celebrações. “Equipes estáveis ou sazonais, como as constituídas por pais e filhos, por mães
e filhas, por pequenos grupos de camaradas temporariamente associados a um patrão, são
as unidades reais através das quais cotidianamente se dão as relações locais” (id., 1995, s/n).
Refletir sobre as duas manifestações, organizadas de modo diferenciado pela ação
memorial, nos possibilita ver os papeis que a experiência tem sobre a ação humana, em
que os conhecimentos são colocados à troca, configurando os limites, que tocam
mutuamente a tradição e a inovação. Intersecção que abarca dimensões de um tempo
vivido e que pode tanto adquirir a espessura rígida ou porosa das possibilidades de troca
com os ambientes e cultura produzida num momento, de modo que as nuances de
configuração com o presente, organizam-se na medida que a oralidade transmite os saberes
próprios às convivências.

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484
SUJEITOS E CONFLITOS: PRÁTICAS DE SUBJETIVAÇÃO E
IDENTIFICAÇÃO NA EXPERIÊNCIA DOS CLUBES SOCIAIS EM
RIO CLARO NO SÉCULO XX

Pedro de Castro PICELLI

Resumo: A partir da experiência dos clubes sociais de Rio Claro- SP, entre os anos de 1900 e 1980,
destacando as práticas associativas e a organização das agremiações de lazer brancas- Grêmio
Recreativo da Companhia Paulista de Ferro, Ginástico, Philarmônica, Sociedade Dançante Cidade
Nova-, das sociedades negras- Sociedade Dançante 28 de Setembro, Frente Negra, Sociedade
Henrique Dias, Associação José do Patrocínio, S.D. Progresso da Mocidade, Uma Noite de
Alegria, Centro Cívico Luís Gama, S.D.Familiar José do Patrocínio, Sociedade Beneficente
Recreativa José do Patrocínio e Tamoio F.C-e das equipes de futebol da cidade- Rio Claro F.C,
A.E Velo Clube, A.A Matarazzo -, propõe se pensar as formas de produção de subjetividade e
identidade dos membros destas associações em consonância às formas de se viver em liberdade e
cidadania no período pós-abolicionista e republicano na cidade. Busca-se orientar a reflexão à
dimensão conflitiva das relações racializadas produzidas no espaço rio-clarense, a partir das
vivências nos clubes sociais “negros”, “brancos” e de futebol como uma das possíveis fontes de
produção subjetiva e identitária de seus membros e de suas memórias. Para realizar tal proposta,
irá se debruçar sobre fontes primárias de pesquisa, como atas e registros dos clubes, e de fontes
secundárias contidas em arquivos e bibliotecas, como jornais da época e bibliografia já produzida,
além da realização de entrevistas com membros dos clubes. Tem-se como hipótese central de
trabalho o entrecruzamento de práticas produtoras de subjetivação e identificação que se
legitimaram e orientaram mecanismos de dominação social e que se ocuparam de constituir a
branquitude como “um lugar estrutural de onde o sujeito branco vê os outros, e a si mesmo”267

Palavras-chave: Clubes sociais. Espaço social. Raça.

INTRODUÇÃO

Entre tantos debates que tomaram conta do processo abolicionista ao longo século
XIX, a um deles dedicamos atenção especial para a elaboração deste projeto: o problema
da formação de uma nação a partir da libertação jurídica-formal de negras e negros dos
cativeiros brasileiros. José Bonifácio de Andrada Silva, o “Patriarca da Independência” e
ministro do Império de D. Pedro I, pensara, anos antes da promulgação da Lei Áurea, em
um projeto268 que acabasse com a escravidão- ao seu entendimento, nociva à indústria- e
que construísse, de forma processual, o povo brasileiro simbolizado na nação Brasil. Esta
formação poderia ser sintetizada na relação de tutela entre o ex-senhor e o ex-escravo para

267
Piza, Edith. Porta de vidro: entrada para branquitude. In: Carone, Iray e Bento, Maria Aparecida da Silva
(org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Vozes, 2002.
268
Silva, José Bonifácio de Andrada. “Representação à Assembléia Geral Constituinte e Legislativa do
Império do Brasil sobre a escravatura”; In: Salgado, Graça (org), Memórias sobre a escravidão. Rio de
Janeiro, Arquivo Nacional, 1988 485
promover o exercício de amor ao trabalho no liberto e a promoção de uma sociedade
coesa. Seria possível e desejável, pois, a conversão gradual de libertos em homens livres
ativos, que se transformassem em “amigos e clientes” dos concessores de suas liberdades.
Domingos Alves Branco Muniz Barreto269, intelectual anterior a Andrada, já havia se
posicionado contrariamente a ideia central do projeto do ministro do herdeiro de Dom
João VI. Barreto via na abolição um elemento nocivo e de bases fracas para a manutenção
da estabilidade da sociedade brasileira oitocentista. Para ele, tal decisão traria prejuízos à
indústria e cessaria o lucro dos proprietários de terras. Seria melhor, portanto, “atalhar a
tirania dos senhores sem afrouxar a obediência e a subordinação do escravo”270. Em certa
medida, mostrar-se-ia mais vantajoso aos senhores tornarem-se amos dos negros,
eliminando, quase como decorrência do estabelecimento desta relação, a ociosidade dos
escravos na busca de uma nação mais produtiva.
No seio de todo este debate, muitas medidas jurídicas foram articuladas no sentido
de atribuir a camada dominante da sociedade o controle das disputas políticas-sociais do
processo abolicionista e que permitisse a ela passar ilesa, ou o menos atingida possível,
pelas inúmeras revoltas escravas e formação de quilombos por todo o território brasileiro,
como aponta João José Reis271. No ano de 1831, fora sancionada a lei que buscava regular
liberdade a determinados grupo de escravos que entrassem no país272. Em 1850, agora no
governo de D. Pedro II, consolidam-se duas leis: a Lei de Terras e a Lei Eusébios de
Queirós. A primeira dispunha sobre a organização das propriedades privadas,
especificamente as terras devolutas, no Brasil, e em seu primeiro artigo elaborava a questão
central do que se propunha:

Art. 1º Ficam prohibidas as acquisições de terras devolutas por outro


titulo que não seja o de compra. Exceptuam-se as terras situadas nos

269
Barreto, Domingos Alves Branco Muniz. “Memória sobre a abolição do comércio da escravatura”. In:
Salgado, Graça (org), Memórias sobre a escravidão. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1988
270
ibid
271
Reis, João José. Quilombos e revoltas escravas no Brasil: “Nos achamos em campo a tratar da liberdade”,
Revista-USP, São Paulo, p.14-39, dezembro/fevereiro 1995/96
272
Art. 1º Todos os escravos, que entrarem no territorio ou portos do Brazil, vindos de fóra, ficam livres.
Exceptuam-se: 1º Os escravos matriculados no serviço de embarcações pertencentes a paiz, onde a escravidão
é permittida, emquanto empregados no serviço das mesmas embarcações. 2º Os que fugirem do territorio,
ou embarcação estrangeira, os quaes serão entregues aos senhores que os reclamarem, e reexportados para
fóra do Brazil. Para os casos da excepção nº 1º, na visita da entrada se lavrará termo do numero dos escravos,
486 dos mesmos, e fiscalisar-se na visita da sahida se a
com as declarações necessarias para verificar a identidade
embarcação leva aquelles, com que entrou. Os escravos, que forem achados depois da sahida da embarcação,
serão apprehendidos, e retidos até serem reexportados. (http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-
1899/lei-37659-7-novembro-1831-564776-publicacaooriginal-88704-pl.html- acessado em 15/05/2017, às
16:30)
limites do Imperio com paizes estrangeiros em uma zona de 10 leguas,
as quaes poderão ser concedidas gratuitamente273.

A segunda estabelecia “medidas para a repressão do tráfico de africanos neste


Império” dispondo que “as embarcações brasileiras [...] e as estrangeiras encontradas [...]
tendo a seu bordo escravos [...] , ou havendo-os desembarcado, serão apprehendidas [...]
e consideradas importadoras de escravos”274. É importante apontar que a associação destas
duas leis é debatida por José de Souza Martins em “O Cativeiro da Terra”, cuja tese indica
que a Lei de Terras somada à Lei Eusébio de Queiroz assegura a transposição do valor de
riqueza, ou seja, do objeto de renda capitalizada da elite branca, do escravo para a terra275.
Vinte e um anos depois, em 1871, a Lei do Ventre Livre trazia novas asserções à já
decadente jurisdição escravocrata, e que, na análise de Gebara276, tomara forma como uma
cartada final da qual se valeram os proprietários de terras para postergar a resolução do
conflito escravocrata, ao passo que elaboravam as relações de trabalho livre no Brasil. Esta
lei indicara, portanto, uma medida de controle que expressava o desejo de uma transição
pacífica e gradual, que não provocasse grandes transtornos ao poder dos senhores sobre
seus escravos:

Art. 1º Os filhos de mulher escrava que nascerem no Imperio desde a


data desta lei, serão considerados de condição livre.
§ 1º Os ditos filhos menores ficarão em poder o sob a autoridade dos
senhores de suas mãis, os quaes terão obrigação de crial-os e tratal-os até
a idade de oito annos completos. Chegando o filho da escrava a esta
idade, o senhor da mãi terá opção, ou de receber do Estado a
indemnização de 600$000, ou de utilisar-se dos serviços do menor até a
idade de 21 annos completos277.

Quatorze anos mais tarde seria a vez da promulgação da lei dos Sexagenários que
propunha liberdade aos escravos com 60 anos ou mais. Não tardando, três anos depois e
após inúmeros conflitos, é promulgada, em 1888, a Lei Áurea. Os reflexos destes processos
podem ser observados por todo o Brasil. Estados como Rio de Janeiro, Pernambuco e São
Paulo são casos concretos do tensionamento da reelaboração das relações sociais

273
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L0601-1850.htm (acessado em 15/05/2017- às 16:19)
274
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM581.htm (acessado em 15/05/2017- às 16:33)
275
Martins, José de Souza. O Cativeiro da Terra, São Paulo- SP, Livraria Editora Ciências Humanas, 1981,
p. 24
276
Gebara, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil. São Paulo; Brasiliense, 1986.
277
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/LIM2040.htm
487 (acessado em 15/05/2017- às 16:39)
ancoradas pelo crivo étnico-racial. Na cidade de Rio Claro, o que se observa não é exceção
a regra.

A CIDADE DE RIO CLARO E OS CLUBES SOCIAIS

A povoação do território, que hoje se constitui como cidade, situa-se neste


momento histórico. O censo de 1822 aponta a existência de uma população composta por
mil e trinta e três pessoas, das quais 85% seriam livres e brancas278. É neste período também,
mais precisamente no ano de 1827, que o povoado eleva-se da categoria Sesmaria dos
Pereiras à categoria Capela-Curada de São João Batista do Rio Claro para, cinco ano
depois, ser elevada à Paróquia. A região, atualmente chamada, Rio Claro, construiu-se
historicamente como local de pouso de tropas que assumiram as missões de expansão para
o oeste brasileiro ainda no século XVIII. Em breves linhas, com a crise da mineração em
fins deste século, a “boca de sertão” da Sesmaria dos Pereiras transformara-se a partir do
impulso da cultura canavieira e do crescimento de mão-de-obra escrava no primeiro
cinqüentenário dos anos 1800. Mas uma nova crise, dessa vez açucareira, impõe a mudança
que apontaria para os primeiros momentos de uma mudança na estrutura social em São
João Batista do Rio Claro. A segunda metade do século XIX responde, segundo Bilac279, a
duas transições pelas quais passa a lavoura rio-clarense. A primeira é a passagem da cultura
do açúcar à do café. A segunda é a incrementação da mão de obra escrava com a mão de
obra imigrante. Nota-se, portanto, que mesmo antes da abolição formal da escravatura a
transição da mão-de-obra começa a se dar. Neste mesmo período, em 1852, a Capela-
Curada de São João do Rio Claro conta, como aponta Bilac, com dez engenhos de açúcar
e noves estabelecimentos dedicados a produção de café, além das inúmeras fazendas ao
em torno da região. Neste período, observa-se uma população de 6.564 pessoas- tendo seu
número de habitantes sextuplicado em trinta anos- elevando-se, por decorrência, à
categoria de cidade em 1857. Nas duas décadas seguintes começam a germinar os
processos que iriam coincidir com o auge da produção cafeeira nos anos 1880-1890. Nos
anos de 1864 e de 1873, como indicam os “Almanack de Rio Claro” de 1895 e 1906280, a
cidade apresentava em seu núcleo urbano doze ruas- Rua São Benedito, Rua das Flores,
Rua das Formigas, Rua do Comércio, por exemplo. Além disso, contava com dezoito lojas

278
Ceapla.2.rc.unesp.br/atlas/hist_rioclaro.php
279
Bilac, M.B. Bianchini; As elites políticas de Rio Claro , Piracicaba ; Campinas, SP : UNIMEP, UNICAMP,
2001
280
http://aphrioclaro.sp.gov.br/livros-digitalizados/ Acessado em 18/05/2017, às 13:25
488
de tecido, oito ferragens, trinta e cinco depósitos de açúcar, três casas de saúde, sete
capitalistas, setenta e oito fazendeiros281 e trinta e quatro lavradores. Rio Claro apresenta,
assim, interessantes níveis de urbanização para o período e se consolida como um dos
importantes centros produtores de café deste momento histórico.
A vida urbana rio-clarense, e em linhas gerais a do Brasil, como pode se inferir a
partir das informações expostas, passa por inúmeras transformações a partir das últimas
quatro décadas do século XIX. No campo cultural, são construídos o Teatro São João
(Teatro Phoenix) e o Gabinete de Leitura de Rio Claro, em 1863 e 1876, respectivamente.
No campo do trabalho, por sua vez, a cultura cafeeira viria para fragmentar os antigos
latifúndios de monocultura da cana de açúcar e formar os seus próprios a partir de outro
tipo de cultura, mantendo, entretanto, o braço escravo como mão-de-obra primordial da
nova produção, somada, agora, ao contingente de trabalhadores imigrantes que chegavam
às lavouras. Foi a partir desta mudança das formas de produção e do aburguesamento
cultural das elites rurais que, em 1876, os trilhos da Companhia Paulista de Ferro chegam
à cidade como prolongamento do eixo Jundiaí-Campinas282. Com ela, faz-se, por
conseqüência, a instalação dos sistemas de luz elétrica (1884), de reservatórios de água
(1885) e de serviço de esgoto (1902). Apresentadas algumas alterações estruturais na
cidade, cabe analisar as transformações sociais que ocorreram nesta sociedade no final de
século XIX e início do século XX.
Com a imposição da cultura cafeeira na cidade e a alforria da maior parte dos
escravos antes mesmo de 1888, coloca-se um novo projeto para obtenção de mão-de-obra:
o estímulo ao trabalho imigrante tendo como plano de fundo a transposição do objeto de
renda capitalizada do escravo para a terra. A nova sociedade, portanto, como aponta
Bilac283, passa a ser formada por segmentos sociais que contribuiriam para tornar Rio Claro
“uma cidade de importância no conjunto urbano do Estado de São Paulo”284. Dentre esses
grupos, citamos os proprietários rurais- detentores de renda capitalizada e de capital
cultural oriundos da posse do trabalho e de propriedades do cultivo de cana de açúcar e
café no século XIX- o contingente populacional imigrante- como parte expressiva da mão-
de-obra da lavoura rio-clarense na segunda metade do século XIX, e situados, com o passar
do tempo, nas atividades comerciais da cidade no século XX. Parte deles destinou-se

281
Ibid. Grifo nosso
282
Em 1892, ocorre a instalação das oficinas de Cia.Paulista na cidade
283
Bilac, M.B. Bianchini; As elites políticas de Rio Claro , Piracicaba ; Campinas, SP : UNIMEP, UNICAMP,
2001, p.33
284
ibid
489
também ao trabalho na Cia Paulista de Estradas de Ferro285- escravos e negros libertos- que
constituíram a maior parte da mão-de-obra nas lavouras de café e que, com a chegada da
ferrovia, já com a ascensão do trabalho livre, migraram para esta área de atuação.
Ao se olhar para a sociedade rio-clarense percebe-se, pois, que esta configuração social
tem início antes da assinatura da Lei Áurea e da Proclamação da República, de modo que
a presença imigrante na cidade não surge apenas no século XX, mas a partir da segunda
metade do século XIX, com a implementação da cultura cafeeira e da elevação da Capela
Curada à cidade. Nota-se, por exemplo, a parte policial de abril de 1880 de um dos jornais
da cidade, O Correio do Oeste- Orgão Imparcial de São João do Rio Claro, publicado em
dois de maio do mesmo ano286, onde consta a prisão do italiano Folquete João no dia onze
do quarto mês do ano e sua soltura cinco dias depois. Observa-se também que, apesar de
sancionadas diversas leis que buscavam regular e reestruturar a escravidão, e existência de
relações baseada na relação senhor e escravo ainda perduram até os últimos anos do século
XIX e início do XX, como pode se perceber no mesmo jornal que noticia a prisão de
Folquete e que também se noticia a fuga de um escravo no dia vinte e cinco de abril de
1880287:

Fugio da Fazendo [rasgo no jornal] e pertence a Bueno Filho e Camp.


um escravo de nome Roque, preto, não retinto, barbado com falta de
dentes na frente, com falla abobada, tem os três dedos mais pequenos
dos dois pés, bastante curtos e levantados de maneira que não assentão
no chão e não aparecem no rastro, pés mal feitos e andar molle. Foi
escravo de Franciso Antonio Machado. Quem o apreender e entregá-lo
na dita fazenda ou em Brotas ao dr. Assis será gratificado com a quantia
de 200$.

No obituário da mesma edição deste anúncio, também se informam a morte de


Clara, “africana de 40 anos, escrava de Dona Maria R.P. Souza, vítima de peritonites
agudas” e de Justo, “crioulo do exm. Visconde de Trez Rios, vítima de desynteria
chronica”.
O desenho social que se configura na sociedade rio-clarense em fins do século
XIX e nos primeiros anos do XX ainda encontra no pólo dominante- proprietários rurais-
a concentração de poder e prestígio social que alicerça as relações a partir do crivo senhor-

285
Os italianos se concentraram majoritariamente no tratamento do couro e do comércio, os alemães na
produção de metais, charretes e da carpintaria, os portugueses, por sua vez, ficaram mais voltados à produção
do café.
286
Consulta realizada no Arquivo Público e Histórico de Rio Claro.
287
ibid
490
escravo, mas que agora não pode mais manter o objeto de renda capitalizada no escravo,
mas sim na terra. São a partir destas relações que constroem as estratégias de manutenção
de poder da ordem social vigente, seja por meio de casamentos endogâmicos, de
investimentos realizados na lavoura e na construção das estradas de ferro, da ocupação de
cargos administrativos e de concentração de propriedades de terras288. O grupo imigrante,
identificado enquanto majoritariamente branco289, volta-se ao trabalho manual da lavoura
cafeeira e das atividades comerciais ou relacionadas aos trilhos da Cia Paulista de Estradas
de Ferro. Mas uma nova mudança se dá nos anos 1920. O declínio da cultura cafeeira na
cidade, como aponta Bilac (2011), leva a “burguesia agrária”- proprietários rurais- a
abandonarem Rio Claro dirigindo-se à capital em busca de outros negócios, que não
necessariamente o café. A conclusão a que chega a autora é que a crise do café- ou seja, a
crise da terra como objeto de renda capitalizada típica dos “empresários-fazendeiros”- ajuda
a solidificar o núcleo urbano, que se esboçava desde as últimas décadas do século XIX,
como um pólo de atração para imigrantes que, especificamente na cidade de Rio Claro290,
alargaram de maneira expressiva sua participação no cenário político local. Essa
participação dava-se tanto na esfera política como na esfera cultural da cidade,
principalmente a partir de clubes de lazer que promoviam práticas esportivas, bailes,
festejos e cordões carnavalescos.
Em Rio Claro, formam-se clubes destinados aos folguedos da população branca,
cada qual com sua especificidade. No ano de 1879, em primeiro de junho, forma-se a
Sociedade Philarmônica- destinada aos coronéis e herdeiros da cultura do café na cidade
que na maioria das vezes realizavam seus estudos na capital. A cinco de agosto de 1896,
forma-se o Grêmio Recreativo da Companhia Paulista das Estradas de Ferro- clube
destinado aos funcionários brancos da companhia. Vinte e três anos depois, ao sexto dia
de 1919, é fundado o Grupo Ginástico Rio Clarense- composto pela classe média branca
rio-clarense em sua maior parte imigrantes ou descendentes. Um dos efeitos desta
mudança estrutural na sociedade fora a articulação entre os coronéis, aqueles que ainda
permaneceram na cidade, com os imigrantes, oriundos das classes medianas da sociedade

288
Bilac, M.B. Bianchini; As elites políticas de Rio Claro, Piracicaba ; Campinas, SP : UNIMEP, UNICAMP,
2001
289
Ver, por exemplo, a discussão a respeito da formação identitária branca no Brasil. Indica-se: Alves, Luciana.
Significados de ser Branco- a brancura no corpo e para além dele. Dissertação de mestrado apresentada à
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo
290
Bilac aponta que o fenômeno da participação direta de imigrantes na política das cidades do Estado de São
Paulo não dá indícios de ser geral, ocorrendo de maneira
491 específica em pouquíssimas cidades, como o caso
de Rio Claro
para a construção de um esquema de “dominação política”291, que, a partir da segunda
década do século XX, não mais poderia ter na concentração de propriedades rurais suas
bases de poder. Portanto, ocorre em Rio Claro uma agregação de setores sociais ao grupo
politicamente dominante e não uma substituição entre eles, excluindo-se desta
possibilidade de participação política e de seus clubes a população negra da cidade. Nestas
primeiras décadas do século XX surgem também dois importantes clubes de futebol para
a cidade: o Rio Claro Futebol Clube (1909) e a Associação Esportiva Velo Clube Rio
Clarense (1910).
A população total rio-clarense no censo de 1920- primeiro ano da década da crise
da cultura cafeeira em Rio Claro- como aponta Pereira292 era composta por cinqüenta mil
e quatrocentos e dezesseis pessoas. Destas, 16,62% eram estrangeiros não africanos, sendo
57,8% italianos, 14,9% portugueses, 13,3% espanhóis e 8,3% alemães/suíços e austríacos.
Ainda em relação à população total, 44.024 eram brancas, outras 2.898 negras, 97 amarelas
e duzentas e 24 pardas. Os eleitores- brasileiros, natos ou naturalizados, alfabetizados e
maiores de dezoito anos- eram pouco mais de 14.500 pessoas, sendo 8.050 homens e 6.612
mulheres. Em linhas gerais, aponta a autora, a cidade era majoritariamente branca e
racializada em suas relações. Como exemplo Pereira nos mostra anúncio retirado do jornal
Diário do Rio Claro de vinte e nove de janeiro de 1930293 e uma charge de vinte e dois de
abril de 1932, como se mostra abaixo.

291
Bilac, M.B. Bianchini; As elites políticas de Rio Claro , Piracicaba ; Campinas, SP : UNIMEP, UNICAMP,
2001
292
Pereira, Flávia Alessandra de Souza. Organizações e espaços da raça no oeste paulista : movimento negro
e poder local em Rio Claro (dos anos 1930 aos anos 1960) Tese de Doutorado– São Carlos : UFSCar, 2009

492
(a placa situada ao lado da porta traz os seguintes dizeres: Dr. Claro Branco das Neves)

Observa-se, portanto, que tal sociedade ancora-se em discursos e práticas


racializadas. O senhor Djalma de Paula294, negro e membro de sociedades negras da cidade,
relembra relatos de parentes que reconstruíam a memória do Jardim “Público” de Rio
Claro da primeira metade do século XX:

A praça era cercada. Desfilava um (brancos) do lado, outro (negros) do


outro. Então, já era coisa que o pessoal, minha mãe, minhas tias já
reclamavam pra gente, que eu praticamente não cheguei a alcançar. Os
negros desfilavam na Praça da Liberdade, não no jardim Publico. Então,
tinha todas essas dificuldades que a gente enfrentava. E quando eu
comecei a vir pra escola, já existia ainda certa resistência, tal. A gente
sentiu os resquícios daquela resistência que existia, daquela diferença
mesmo.

É com essa “resistência que existia” que a cidade se estruturara, somada, também,
à ausência de um aparato legal de Estado que protegesse a população negra de qualquer
tipo de violência no espaço de Rio Claro. Em linhas gerais, a organização da população
negra rio-clarense, assim como outras associações existentes de ajuda e socorros mútuos,
se dá com o objetivo de criar mecanismos de proteção e auxílio de seus membros para que
pudessem enfrentar uma estrutura social racializada e violenta, não amparados por políticas
de proteção social. Isso se demonstra explicitamente no estatuto da Sociedade Beneficente
Recreativa José do Patrocínio, oriunda da renomeação da Sociedade Dançante José do
Patrocínio295, em seu artigo primeiro:

294
Entrevista concedida a Pedro de Castro Picelli no dia vinte e seis de janeiro de 2017
295
Consulta realizada no Arquivo Público e Histórico de Rio Claro

493
a) A prática de caridade moral, intelectual, material, sob todas as
formas, e dentro das possibilidades da sociedade, nos casos de
emergência
b) Distribuição de medicamentos, agasalhos e socorros aos
indigentes reconhecidos, nas medidas das possibilidades
c) Corte e costura, amparo a velhice desamparada, digo
reconhecidamente necessitada com número limitado

Motivados, pois, pela ausência de espaços públicos que pudessem ser freqüentados
sem constrangimentos pela população negra começam a surgir as primeiras sociedades
destinadas a esta parcela populacional da cidade e que tinham no carnaval e na promoção
de bailes suas formas principais de socialização. Em 1930 surge a Sociedade Dançante 28
de Setembro. Dois anos mais tarde, mais três associações são fundadas na cidade: Frente
Negra296, Sociedade Henrique Dias e Associação José do Patrocínio. Em 1934, 1935 e 1937
são formadas, respectivamente, Sociedade Dançante Familiar Progresso da Mocidade,
Uma Noite de Alegria e Centro Cívico Luís Gama. A Sociedade Dançante Familiar Jose
do Patrocínio é construída em 1948, tendo doze anos depois se transformado na Sociedade
Beneficente Recreativa José do Patrocínio. Entre esta transformação, em 1951, foi fundada
o Tamoio Futebol Clube.
Portanto, é a partir do estudo de caso da cidade de Rio Claro entre os anos de 1900
e 1980 e das relações sociais postas a partir da vivência dos clubes sociais “brancos”,
“negros” e de futebol e dos seus membros, tanto no espaço das sociedades, quanto do
espaço urbano rio-clarense, que se busca refletir sobre as formas de subjetivação e
identificação dos integrantes destas associações enquanto interação de indivíduos
socialmente racializados em e quais são as identidades e subjetividades que se constroem
na tensão existente entre o espaço social da cidade e do espaço dos clubes .
A cidade de Rio Claro foi escolhida pela possibilidade de ser analisada a partir da
idéia que Angel Rama chama de “a cidade como um sonho de ordem”297. Em A cidade das
letras, o autor retoma a formação das cidades no período moderno a partir de sua
distribuição espacial e pela observação de que a razão ordenadora dos núcleos urbanos
fundamenta-se em transportar a ordem social hierárquica em uma ordem distributiva
geométrica. Em outras palavras, o que Rama aponta é para “a transladação da ordem social
a uma realidade física”298 que, por trás de sua planificação, mantém um regime de

296
A Frente Negra Brasileira é fundada na cidade de São Paulo em outubro de 1931, em 1932 ela instala uma
delegação local em Rio Claro
297
Rama, Angel. As cidades das letras. São Paulo, Boitempo, 2015, p. 21
298
Ibid, p.25
494
transmissões de imperativos do alto para baixo e vê no espaço urbano uma maneira de se
assegurar e conservar as estruturas que se impõem. Em suma, o que aponta o intelectual
uruguaio, é o surgimento das cidades coladas à ideia de ordem, implicando, assim, na
possibilidade de leitura da sociedade pelo mapa da cidade. Esta análise anda em compasso
ao relato de seu Paulo299, membro do José do Patrocínio e mestre-sala da escola de samba
Grasifs Voz do Morro300

Aqui em RC, o racismo era extremo. Tinha três clubes, como hoje, o
Grêmio, a Philarmônica e o Ginástico. Nestes clubes, negros não
entravam mesmo. Vamos supor, na rua, se você passasse correndo na
rua e a polícia visse você estava em cana. [...] Não podia! O centro da
cidade, a praça pública era cercada, só os brancos podiam entrar. Era
tudo fechado, e os negros só por fora. Era uma divisão bem forte!

É importante, então, que se analise esse espaço físico baseado na divisão que se faz
das possibilidades de trânsito entre os grupos brancos e negros pela cidade e,
principalmente, como isso atua nos processos de criação de uma auto-imagem e de
identidade com os grupos raciais. Hebe Mattos301 nos aponta três importantes dimensões
para pensarmos o que esse trânsito implica nas vivências de cidadania e significados da
liberdade no Brasil a partir de meados do século XIX até o processo abolicionista. Para
Mattos, as experiências de se viver livre não se restringiam a elites, mas ampliava suas
práticas aos homens pobres livres, escravos e libertos que as usavam como estratégias de
inserção/sobrevivência social. A primeira dimensão, grosso modo, consiste em
experimentar a liberdade a partir da mobilidade espacial, ou seja, do trânsito dos sujeitos.
A segunda é a busca pela criação de novos laços, sejam eles familiares, de amizades ou
relações de foro pessoal. Por fim, a “potência da propriedade” garantia a estes sujeitos uma
possibilidade de se viver a liberdade. A autora aponta que até a primeira metade do século
XIX a liberdade era, a priori, um atributo branco que potencializava a inserção social e o
controle da propriedade privada. Contudo, a partir da segunda metade deste mesmo
século, estas bases de representação da liberdade como elemento de exclusividade branca
são solapadas e as camadas sociais mais baixas passam a agir socialmente segundo a sua
própria reinterpretação dos “códigos culturais correntes naquela sociedade”, promovendo
a ampliação dos conflitos. Portanto, novas formas de identificação e de criação de

299
Entrevista concedida a Pedro de Castro Picelli no dia dezesseis de dezembro de 2016
300
Esta escola de samba fixou sua sede na S.B.R José do Patrocínio logo que a sede deste clube foi construída.
301
Mattos, Hebe; Das cores do silêncio; Campinas, SP; Editora Unicamp; 2013

495
subjetividade se dão nas relações sociais a partir dos anos de 1850, coincidindo com o
período do inicio da cultura cafeeira em Rio Claro. Sujeitos de suas próprias histórias,
escravos, libertos e homens pobres livres passam a tensionar as experiências de liberdade
até o ano da abolição jurídica (1888) e confrontar as formas de dominação impostas até
então. Desta maneira, é importante compreender como as novas formas e práticas de se
viver em sociedade produziram também novas formas de se subjetivar e de se identificar
em um contexto histórico assombrado pelo “fantasma da desordem” como aponta Hebe
Mattos. Assim, a partir das esferas de análise escolhidas, procura-se olhar para o que se
coloca em jogo nas novas formas de sociabilidade do século XX.
Ao olhar para estas novas formas de sociabilidade postas pelos clubes sociais
segundo um olhar para as suas práticas e da dinâmica do conflito social como forma de
subjetivação e identificação, é necessário que se delimite o que entendemos como
subjetividade e identidade para que a proposta se justifique teórica e empiricamente.
Guattari302, mesmo que analisando outro objeto, propõe que a subjetividade supere a
dicotomia indivíduo e sociedade, definindo-se por ser plural, polifônica, sem uma instância
dominante de determinação, mas olhando-se primordialmente para as práticas de
subjetivação. A definição que este autor propõe afirma que uma possível definição
provisória de subjetividade se refere ao

[...] ao conjunto das condições que torna possível que instâncias


individuais e/ou coletivas estejam em posição de emergir como território
existencial auto-referencial, em adjacência ou em relação de delimitação
como uma alteridade ela mesma subjetiva303

Esta definição aponta também para as condições de produção de subjetividade que


implicam na relação de instâncias inter-subjetivas (coletivas) a partir de um universo de
referências incorporais, ou seja, de referenciais artísticos, musicais, associativos, etc.
Portanto, ao encarar a subjetividade como um território que o sujeito existe em si mesmo
e passa a se auto-referenciar a partir de relações de alteridades construídas segundo os
mesmos processos de subjetivação ganhamos algumas condições de análise que outras
definições eclipsariam quando se voltasse à análise dos membros dos clubes sociais. Ao
entender a subjetividade, então, a partir de uma dimensão relacional entre individuo e/ou
coletivo eliminamos o risco de isolá-lo de sua dimensão social e recairmos em uma análise

302
Guatarri, Felix. Caosmose. São Paulo, Editora 34, 2006
303
Ibid

496
essencializante de um tipo de conduta social. Da mesma maneira, ao se compreender a
subjetividade como um emergir de um território existencial, podem-se analisar as formas
de reinterpretação social que os membros de uma sociedade fazem da realidade e a partir
dela direcionam suas condutas de maneira não necessariamente homogênea. Ou seja, a
partir desta definição a subjetividade é colocada como uma construção relacional e, de
certa maneira, histórica, que não se realiza sem alteridade, contendo, portanto, a dimensão
da representação do “eu” e do “outro”.
Stuart Hall304 ao olhar para o papel da representação indica que ela é “parte essencial
do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros
de uma cultura [...] e envolve o uso da linguagem, de signos e imagens que significam ou
representam”305 algo. Representar, pois, é descrever ou retratar aquilo que se observa. É
simbolizar alguma coisa, colocar no lugar desta coisa uma amostra ou substituto. Assim, é
para a esfera da representação que se debruçará enquanto olharmos para os processos de
identificação. Dito de outra maneira, faz-se necessário, pois, analisar quais são as formas
de descrição social a que se constroem entre os membros da sociedade: 1) a partir da lente
racializante- nos jornais, nas práticas cotidianas, etc-, 2) a partir da dinâmica da própria
associação, ou seja, como os clubes representam seus membros e 3) a partir de como os
grupos definem os outros, ou seja, como os membros de determinado clube constroem
imagens dos membros de outros clubes. Assim, a proposta é olhar para como a sociedade
constrói a imagem segundo signos de seus grupos e como os grupos constroem suas
imagens em seu interior e a partir da representação do outro e da própria atribuição de
sentidos. Em consequência, é apontar, pensando com J. Scott306, para a existência de um
discurso público como “um auto-retrato das elites dominantes como elas gostariam de ser”
e para um discurso oculto que se constrói segundo a “infrapolítica dos subordinados” em
espaços fechados de resistência e construção de sentidos e discursos antihegemônicos.
Procuramos, pois, a partir das práticas sociais dentro dos clubes que se propõe estudar as
imagens e símbolos pelos quais suas representações, como uma das partes da identidade
de um indivíduo ou grupo, são construídas e articuladas. Ao pensar a partir da subjetividade
definida em Guattari e de representação em Hall olha-se para a dimensão conflitiva que há
entre as práticas que possam orientar a construção do território existencial auto-
referencial307 e as condutas de produção de símbolos e imagens da coletividade destes

304
Hall, Stuart. Cultura e Representação. Rio de Janeiro, Editora PUC-RJ, 2016
305
Ibid
306
Scott, James. A dominação e a arte da resistência: discursos ocultos. Lisboa, Letra Livre, 2013
307
Guatarri, Felix. Caosmose. São Paulo, Editora 34, 2006
497
clubes em suas atividades cotidianas dentro do espaço das agremiações, quanto no convívio
a partir do espaço urbano da cidade de Rio Claro. Portanto, propõe-se olhar para o que
Gilberto Velho308 chama de “tensão entre a individualização e a busca da sociabilidade”
apoiada na possibilidade de negociações da realidade.

CONCLUSÕES E POSSIBILIDADE DE DEBATE

Portanto, objetivo central desta exposição é refletir as formas de produção de


subjetividade e identidade a partir das práticas dos clubes sociais tendo como recorte
metodológio o crivo racial existente na sociedade rio clarense do período proposto por este
estudo. Desta maneira, procura refletir segundo as práticas produtoras de subjetivação e
identificação em três esferas sociais diferentes e que se cruzam todo momento. A primeira
delas é a esfera urbana que se constrói a partir da racialização e distribuição espacial
desigual- brancos no centro, e negros na periferia- de seus membros e se estrutura mediante
exclusão de segmentos sociais de sua vida pública- que confia, exclusivamente, seus cargos
administrativos e políticos às classes médias da cidade unidas aos antigos barões do café,
ou seja, à população imigrante da cidade somada a “burguesia agrária”309 remanescente na
cidade. Irá se levar em conta também as novas relações de trabalho que passam a se
construir na cidade pela cultura cafeeira e, principalmente, pela chegada dos trilhos da
Companhia Paulista de Estradas de Ferro na cidade. Nesse momento irá se olhar para as
relações do campo de trabalho e a origem de seus funcionários, como por exemplo, o
comércio que reunia a maior parte dos imigrantes e os trabalhos mais pesados nas ferrovias
reunindo a população negra. A última esfera de análise é a comunidade que se forma em
cada clube, ou seja, os membros que ela reúne, os tipos de festejos e celebrações que
promove, as maneiras que se festeja e a relação que mantém com as outras agremiações.
As fontes orais dialogaram com as formas metodológicas e de análise das fontes
primárias e secundárias. Como afirma Ecléa Bosi310

[...] quando um grupo trabalha em conjunto, há uma tendência de criar


esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos,
verdadeiros “universos de discurso”, “universos de significados”, que dão

308
Velho, Gilberto. Subjetividade e Sociedade: uma experiência de geração. Rio de Janeiro, Zahar, 2002
309
Bilac, M.B. Bianchini; As elites políticas de Rio Claro, Piracicaba; Campinas, SP: UNIMEP, UNICAMP,
2001
310
Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos- 3ª edição- São Paulo: Companhia das Letras,
1994, p.67.
498
ao material de base uma forma histórica própria, uma versão consagrada
dos acontecimentos.

É, portanto, para a construção social da memória que o estudo das entrevistas irá
se voltar. A partir do relato das experiências dos entrevistados na cidade de Rio Claro e nas
atividades dos clubes buscam-se encontrar quais são as formas de representação elaboradas
pelos clubes em diálogo com seus membros e quais as formas de representação construídas
e legitimadas nas relações sociais no espaço da cidade. Construir-se-á um roteiro de
entrevistas que busque apreender quais as práticas habituais dos clubes, desde reuniões a
eventos sociais destinados aos seus respectivos públicos, quais as demandas e
contrapartidas exigidas pelas associações de seus membros, as dificuldades encontradas
para a instalação de um clube social na cidade e sua relação com os demais. Dar-se-á voz
para que o entrevistado narre sua biografia e suas experiências pessoais dentro e fora do
clube social que é associado. A narração, então, será analisada como “uma forma artesanal
de comunicação que não visa transmitir o ‘em si’ do acontecido”, mas visa o construir até
atingir uma “forma boa”. Ela investe sobre o objeto e a transforma311. É pela dimensão da
transformação da memória em uma flexão dotada pelo narrador de sentido articulado entre
passado e presente que irá se analisar a formação da subjetividade como um “território
existencial auto-referencial” individual/coletivo. Dito de outra maneira, analisar-se-á as
entrevistas segundo elementos que permitam compreender como o sujeito dentro de um
clube social constrói-se subjetivamente e arregimenta possibilidades de se auto-referenciar
em um espaço estruturado por discursos racializados e racializantes. Ou seja, como sujeitos
elaboram suas experiências e se referenciam dentro de sistemas de representação segundo
discursos públicos e dos próprios discursos ocultos.

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311
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502
ANTIGO REINO DO KÔNGO: ORIGENS DA MEMÓRIA
HISTÓRICA DO CONGADO

Tatiane Pereira de SOUZA312

Dagoberto José FONSECA313

Resumo: Este artigo é parte da tese de doutorado em andamento, intitulada “Permanências


Africanas no Congado Brasileiro”, cujo objetivo geral, busca identificar e descrever as permanências
africanas dentro do Congado, para compreender como elas influenciam a identidade dos grupos e
o sentimento de pertença de seus participantes. Assim, entende-se o Congado como uma tradição
oral afro-brasileira de origem africana que tem suas raízes históricas no Antigo Reino do Kôngo,
localizado na África Central do século XVI até meados do século XVIII; no que hoje corresponde
ao noroeste de Angola, incluindo o enclave da província de Cabinda e os territórios dos países da
República do Congo, à parte ocidental da República Democrática do Congo e à parte centro-sul
do Gabão. Estima-se que parte da ritualística e dos elementos simbólicos presentes no Congado
têm origem na África Central, precisamente nesse reino de onde vieram mais da metade das
pessoas africanas - incluindo nobres de linhagens reais - traficadas e escravizadas no Brasil,
principalmente durante o século XVIII. Não obstante, o Congado enquanto celebração do reinado
africano de coroação dos reis da matriz Congo e Angola, traz em sua performance e narrativa as
insurgências e o modo como os povos africanos viviam antes, durante e após a invasão dos
europeus. Entender a história do Reino do Kôngo, permite entender não somente as narrativas
memoriais e históricas que expressam os/as congadeiros/as, mas sobretudo a cosmovisão de mundo
dessa África bantu, presente no Congado. A propósito, perfazer o surgimento do Congado no
Brasil por meio do Reino do Kôngo é não somente contribuir para escrever novas páginas da
história do Brasil, mas também ampliar através dessa história os conceitos e análise sobre o
Congado, logo sobre a parte fundante da cultura e da resistência negra no Brasil.

Palavras-chave: África Central. Congado. Memória histórica. Reino do Kôngo.

INTRODUÇÃO

Este artigo é parte da tese de doutorado em andamento, intitulada “Permanências


Africanas no Congado Brasileiro”, cujo objetivo geral, busca identificar e descrever as
permanências africanas dentro do Congado, para compreender como elas influenciam a
identidade dos grupos e o sentimento de pertença de seus participantes. Assim, entende-
se o Congado como uma tradição oral afro-brasileira de origem africana que tem suas raízes
históricas no Antigo Reino do Kôngo, localizado na África Central do século XVI até
meados do século XVIII; no que hoje corresponde ao noroeste de Angola, incluindo o

312
Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), Doutoranda Programa Ciências Sociais
UNESP/FCLAr, AKOMA - CLADIN-NUPE-LEAD (UNESP-CNPQ), Bolsista da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), e-mail: <tatiane.profa@gmail.com>.
313
Professor titular e o orientador UNESP-FCLAr, CLADIN-NUPE-LEAD (CNPq).
503
enclave da província de Cabinda e os territórios dos países da República do Congo, à parte
ocidental da República Democrática do Congo e à parte centro-sul do Gabão.
Estima-se que parte da ritualística e dos elementos simbólicos presentes no
Congado têm origem na África Central, precisamente nesse reino de onde vieram mais da
metade das pessoas africanas - incluindo nobres de linhagens reais - traficadas e
escravizadas no Brasil, principalmente durante o século XVIII. Não obstante, o Congado
enquanto celebração do reinado africano de coroação dos reis da matriz Congo e Angola,
traz em sua performance e narrativa as insurgências e o modo como os povos africanos
viviam antes, durante e após a invasão dos europeus.
Entender a história do Reino do Kôngo, permite entender não somente as
narrativas memoriais e históricas que expressam os/as congadeiros/as, mas sobretudo a
cosmovisão de mundo dessa África bantu, presente no Congado por meio das linhagens
familiares, crenças, histórias e celebrações de cada grupo que o compõe, a saber: os ternos
ou cortes de Congos/Congadas, Moçambiques, Marujos/Marinheiros, Catopés/Catupés,
Vilão, Caboclos/Caboclinhos e Cavaleiro de São Jorge. E mais, compreender tal história
permite discutir e incorporar nos currículos escolares, temáticas relativas à História da
África e de sua Diáspora, precisamente da Cultura Afro-Brasileira, justamente o objetivo
da Lei 10.639/03; posteriormente, complementada pela Lei 11.645/08 que insere a
temática indígena nos artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB 9.396/96);
que por sua vez, é regulamentada pelo Parecer CNE/CP 003/04, que traz as Diretrizes para
a Educação das Relações Étnico-Raciais e o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. A propósito, perfazer o surgimento do Congado no Brasil por meio do Reino do
Kôngo é não somente contribuir para escrever novas páginas da história do Brasil, mas
também ampliar, através dessa história, conceitos e análise sobre o Congado, logo sobre a
parte fundante da cultura e da resistência negra no Brasil.

O ANTIGO REINO DO KÔNGO

Essa tradição de coroação dos reis que tem a congada como forma de manutenção
simbólica do poder real e ancestral, tem sua origem ainda em solos africanos no antigo
Reino do Kôngo entre os séculos XVI e XVII314, entendido pelos portugueses dos séculos

314
Cabe salientar que não queremos aqui tecer uma revisão histórica e detalhista do Reino do Kongo de sua
origem e declínio, uma vez que essas contextualizações carecem de informações provenientes dos próprios
descendentes desse reino predominantemente bakongo, tudo o que se tem em suma maioria, são trabalhos
acadêmicos e literários com informações oriundas das cartas e registros dos colonizadores, o que dificulta a
compreensão de um ponto de vista dos kongoleses, angolanos e do povo bakongo, descendentes de Reino.
504
XVI ao XIX, como terras abrangentes no Congo, Angola e suas imediações. O território
desse reino antigo atualmente se situa geograficamente entre o noroeste de Angola, o
enclave de Cabinda, a República do Congo, a parte ocidental da República Democrática
do Congo e a parte centro-sul do Gabão, a população desse reino que foi formada por
povos bantos principalmente pela etnia bakongo.

Figura 01: Reino do Kongo - Fundado por NtinuWene, no século XIII, esse Estado
centralizado dominava a parcela centro-ocidental da África. Na sua máxima dimensão,
estendia-se desde o oceano Atlântico, a oeste, até ao rio Congo, a leste, e do rio Oguwé,
no actual Gabão, a norte, até ao rio Cuanza, a sul.
Fonte: http://historiadomundo-8a.blogspot.com.br/2013/04/o-reino-do-congo-fundado-
no-seculo-xiv.html

Com a expansão da Europa na conquista do mundo, de suas riquezas e extensão


de poder escravagista, por meio da economia e religião, entre meados de 1482 e início de
1483315 Diogo Cão chega à foz do Rio Zaire, que nominou de Rio do Padrão, ali sua armada
finca uma pedra, assinalando a chegada dos portugueses. Não tendo intérprete para
compreender os naturais, os portugueses assimilaram que os nativos dali diziam ser senhor
daqueles povos um rei muito poderoso, que tinha a sua corte a muitos dias de caminho
dali, para o interior do país. Diogo Cão envia alguns mensageiros a saudarem tal rei, e ficou

315
Nos registros de D. Domingos José Franque (1940), Diogo Cão aporta da foz do rio Zaire em meados de
1482, já para Marina Mello e Souza (2006), Charles R. Boxer (2002) datando o contato dos portugueses em
1483.
505
à espera deles na povoação chamada Mpinda, assim contata por meio de seus mensageiros
pela primeira vez o manisSoyo, chefe local do Reino do Kôngo. Após alguns meses os
mensageiros não regressaram, pois foram retidos pela corte congolesa para prestar
esclarecimento do que faziam ali e suas intenções. Cansados com a demora Diogo Cão
decide regressar a Portugal, captura e leva consigo quatro negros daquela região, com a
intenção de lhes ensinar português e outras matérias da civilização europeia, a fim de
servirem de intermediários numa segunda viagem. Como prometido, a nova expedição
retorna com os congoleses capturados, agora instruídos na língua e nos costumes
portugueses, como veremos mais adiante, a mediação dos emissários portugueses e dos
congoleses rendem preciosas informações aos planos de expansão econômica e marítima
de Portugal (MELLO E SOUZA, 2002).
Os portugueses perceberam, constataram e tinham interesses no comércio forte e
influente que o Kôngo exercia, e no sistema monetário de trocas e compras na qual o
dinheiro eram as conchas extraídas na região da ilha de Luanda, chamadas de nzimbu.
Num primeiro momento, os lusitanos “contentaram-se em reconhecer seus reis do Congo
como irmãos de armas, trata-los como aliados, e não como vassalos” (BOXER, 2002, p.
112). Após sucessivas invasões e negociações, portugueses e congoleses estreitariam e
conflitariam as “relações” de poder e força, ora por parte do reino contra a dominação,
invasão portuguesa e intensificação do tráfico de escravizados, ora os portugueses tentando
impor-se, dominar, conquistar e subjugar os habitantes nas terras do Kôngo.
A formação do Reino do Kôngo é datado, desde meados do século XIV, e era bem
estruturado e forte, compunha-se de vários povos bantos que residiam na vasta extensão da
África Centro-Ocidental, abrangendo províncias tais como: Soyo, Mbata, Wandu e Nkusu
que eram governadas por chefes de primeira categoria, os herdeiros e descendentes de
invasores que controlavam a região “dominada” politicamente, ou por chefes de segunda
categoria que faziam parte da nobreza local, a “dominada” e que mediante escolha do rei
administravam províncias que eram atribuídas pelo reconhecimento do Rei e dos grupos
invasores.
Além de recolherem parte dos rendimentos no reino para si, ambos os chefes,
tinham como dever arrecadar encargos e impostos para o rei - mani Congo, designação
dada ao rei (do povo bakongo que fala o idioma kikongo). Essas províncias eram compostas
por aldeias, cada aldeia tinha seu chefe, o kitomi, chefe religioso, ou os nkuluntu, o mais
velho local, que eram os responsáveis pela divisão e estrutura do trabalho na aldeia, e ainda,
pela comunicação entre os setores do reino, província e aldeia. A esses chefes era conferido

506
o dever de receber os excedentes agrícolas, para repassar parte destes aos superiores
políticos, os nobres das linhagens governantes-chefes das cidades das províncias locais
(MELLO E SOUZA, 2002, p. 45-47).

Figura 02: Mapa do Reino do Kôngo publicado em 1630 por Gerhard Mercator, 1512-1594316.

Segundo Mello e Souza (2002), o controle do reino era exercido pelo rei, que
estreitava e governava por meio da linhagem dos nobres que casavam entre si, e fortaleciam
suas relações comerciais, sociais e políticas. O mani Kôngo e os chefes nobres controlavam
a produção e cultivo nas terras dentre as diferentes regiões e provinciais do reino, da capital
M’banza Kôngo (literalmente cidade do Kôngo), que mais tarde se chamaria São Salvador
do Congo317 por influência portuguesa. O rei administrava juntamente com pessoas da
nobreza num conselho real, com atribuições administrativas que eram divididas em:

316
Disponível em https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/8/8e/Mercator_Congo_map.jpg
317
Nas cartas de Álvaro I entre os anos 1568-1587, aparecem às primeiras referências a M’banza Kongo como
São Salvador do Kongo, esse nome perdurou até 1975. Com a independência de Angola seu nome original
foi restituído e a cidade volta a se chamar M’banza Kongo. Atualmente M’banza Kongo é uma cidade
angolana da província do Zaire em Angola, e tem cerca de 68.000 habitantes. Esse município foi fundado
antes da chegada dos portugueses, ela era a maior cidade da África subequatorial, e era o lar do Mani Kongo
que governava o Reino do Kongo desde 1483, durante guerras civis que eclodiram no século XVII o local
foi abandonado (MELLO E SOUZA, 2002). 507
coletores de impostos, secretários reais, oficiais militares, empregadores pessoais e juízes
que auxiliavam na administração das províncias, regiões e chefes do reino (MELLO E
SOUZA, 2002, p. 47-48).
Todo o trabalho que acumulava a riqueza e a produção do reino era feita por
trabalho escravizado, mas não nos moldes europeus que retira a dignidade e humanidade
do Outro, mas da soberania política de poder da guerra, que torna os vencidos em servos
que com seu trabalho contribuem para a expansão dos territórios e das riquezas locais.
Conforme uma apropriação da mão-de-obra dos prisioneiros de guerra, que em regime de
servidão que participavam no desenvolvimento do reino (MELLO E SOUZA, 2002, p.
48). Os servos que trabalhavam na produção cultural e econômica do reino eram oriundos
de várias etnias dos povos bantos da região ocupada da capital M'Banza Kôngo e viviam
com suas famílias tendo direito de exercer sua humanidade e direito a vida.
Segundo Mello e Souza (2002), após a conversão dos reis congoleses ao
cristianismo em 1641, a região de M’banza Kôngo passou a se chamar São Salvador.
Segundo cálculos de 1650, essa região foi habitada por cerca de 500 mil pessoas, de
diferentes etnias e linhagens nobres que conferia ao mani Kôngo vital solidez e força
política, pois apesar das revoltas e lutas sucessórias internas em relação à resistência no
pagamento dos impostos e tributos, as diferentes etnias e nobres “linhagens preferiam
aderir ao grupo que no momento dominasse a política da capital”, reforçando a coesão da
administração do rei (MELLO E SOUZA, 2002, p. 48).
Apesar dos enfrentamentos militares empreendidos por expedições a mando da
administração do reino aos rebeldes nas aldeias e províncias, o maniCongo manteve o reino
unido e exerceu domínio significativo do final do século XV a meados do século XVII,
segundo Mello e Souza (2002, p. 49). A população do reino se sentia parte e membro
daquela comunidade sob organização política do rei, esse “sentimento estava presente ao
cumprirem com suas responsabilidades tributárias, ao se engajarem em guerras[...]”na
aceitação das ordens do poder vigente, e nos momentos em que compareciam em
cerimonias, eleições e entronizações da realeza. Mas como veremos a seguir, esse
sentimento de pertença e organização social e política enraíza novos e piores contornos a
partir do contato e acordos comerciais entre congoleses e portugueses (MELLO E
SOUZA, 2002, p. 49).

508
O CONTATO ENTRE CONGOLESES E PORTUGUESES

Figura 03: Bakongos e Portugueses - O contato dos portugueses com as autoridades


políticas deste reino teve grande importância na articulação do tráfico de escravos318.

Estudos tais como do inglês Battel, de W. G. L., entre outros319, ainda descrevem o
contato estabelecido entre congoleses e portugueses do ponto de vista do conquistador, e
de interpretações de cartas e crônicas que não são aquelas oriundas dos próprios habitantes
da terra. Infelizmente, tais estudos não consideram a tradição oral como fonte segura ou
comparativa e nem sequer mostram em sumula a resistência e insurgência dos povos locais
contra a invasão europeia. A tradição oral reconta e conta por meio da memória dos mais
velhos, trajetórias e histórias dos povos e das famílias tradicionais em África.
Por muitos anos com a invasão europeia aos países do continente africano a escrita
se postou com os conquistadores em detrimento e desvalorização da oralidade, que no
nosso entender também é uma forma de escrita, mas se configura de outra forma, a caneta
se constitui na fala, e o papel se constitui na memória de quem conta a história. E a história

318
Uma expressiva parte dos escravizados que trabalharam na exploração aurífera do século XVII,
principalmente em Minas Gerais, era proveniente da região do Kongo e de Angola. O intercâmbio cultural
com os europeus acabou trazendo novas práticas que fortaleceram a autoridade monárquica no Kongo.
Disponível em http://civilizacoesafricanas.blogspot.com/2010/01/reino-do-congo.html Acesso em: 16 de nov.
2014.
319
Tais como Kenny Mann no livro African kingdoms of the past (1996) e Anne Hilton em The Kingdom of
Kongo (1985), Wyatt Macgaffey no livro Kongo, Ndongo,509 West Central Africa (1996) e Claude Mellassoux
(1995).
é uma narrativa do que se passou no passado, não é boato, algo inventado, e nem
evidencias, indícios, são fatos verídicos, que podem até tomar contornos distintos em
algumas palavras, mas o fato narrado é sempre o mesmo nas escritas narradas e impressas
na memória dos mais velhos.
Fica difícil entender a história disponível somente na versão e interpretação por
indícios e comparações com entendimentos do que pode vir a ser uma palavra, um gesto
e até mesmo as expressões da época. Mesmo porque quando os portugueses chegaram à
região do Congo o idioma que se falava era o kikongo não o português, esse último idioma
foi ensinado-e-aprendido com o decorrer do contato-amizade-imperialismo-opressão,
assim foram escritos documentos e cartas dos próprios congoleses já cristianizados
(MELLO E SOUZA, 2002), mas essas informações carecem de metodologia mais sensível
à tradição oral e aos costumes locais da época, para entender maneiras próprias da escrita
e da comunicação dos e entre os africanos. É preciso considerar as dificuldades de
entendimento da língua e também o fato de que as narrativas, registros e crônicas
encontradas sobre esse contato foram às anotações em cartas entre congoleses e
portugueses, quiçá sejam conflituosas e tendenciosas, dada ao projeto de expansão e
domínio comercial e religioso europeu.
Continuaremos a breve contextualização dos fatos históricos, mas sabemos que no
momento o que utilizamos como fonte escrita de informação, são pesquisas e escritos que
ainda carecem de um bom entendimento desde a perspectiva dos povos que lembram e
descendem da história e do reino do congo em África. Fica aqui impresso a necessidade
de desenvolvimento de pesquisas nesse sentido, de estudar a história dos povos e
civilizações da África desde a perspectiva dos africanos, levando em consideração a
oralidade que se faz presente nas distintas tradições e formas de desenvolvimento e
organização das sociedades entre os povos deste continente.
Como já sabemos a história do Reino do Kôngo e dos demais povos africanos e de
outros povos no mundo não começa com a “chegada”- invasão dos europeus. Os povos do
mundo já eram protagonistas de sua história independente dos europeus, a história que
começa com a chegada dos europeus, é a história da invasão, da conquista, escravização e
malfeitorias em detrimento de outros povos, cujos europeus consideravam inferiores,
criaturas não civilizadas, e que tinham que se redimir perante o amor de Cristo e ao
trabalho redentor da salvação: a escravidão e a conquista europeia: o maior holocausto em
massa da humanidade até os dias de hoje. É considerando o interesse religioso, sobretudo
comercial desses invasores europeus e como consequência esse holocausto que

510
abordaremos a seguir os fatos que se sucedem.
Segundo Teixeira (1967), Mello e Souza (2002), no fim do século XV, no ano de
1485, Diogo Cão e sua expedição retornam a África e chega ao Reino do Kôngo às margens
da foz do rio Zaire, trazendo consigo os homens que haviam sido capturados e levados e
que vinham satisfeitos com o tratamento que haviam recebido em Portugal. Desta vez a
expedição sobe a foz do Rio Zaire até onde lhe foi possível e fica detido na foz do Rio
Mpozo, ali seus homens gravam nas pedras de Yellala (pedras de granito), na altura do
limite navegável do rio, a seguinte inscrição, que se mantém até hoje: “Aqui chegaram os
navios do esclarecido rei Dom João o segundo de Portugal: Diogo Cão, Pedro Anes, Pedro
da Costa”.

Inscrições portuguesas na pedra de Yellala, rio Zaire, R.D. Congo320

A partir daí se estreitam os contatos com os habitantes da província de Soyo


(sonho), e começam as primeiras providencias para a cristianização da população daquele
reino. Acompanhados de interpretes congoleses (que haviam sido capturados pelos
portugueses na visita anterior) e com instruções para contato pacífico, a chegada dos
portugueses “a essa região nada mais foi do que o desenvolvimento do esquema econômico
seguido pela nação portuguesa, no sentido de encontrar uma nova rota para o comércio
com o Oriente” (TEIXEIRA, 1967, p. 77) e, impulsionar a expansão do comércio
marítimo de mercadorias e pessoas escravizadas.
Para Teixeira (1967) o governo português já vislumbrava ótimos lucros e
oportunidades de dominar a área e expandir o comercio, já para os habitantes locais do
reino do Congo, o interesse se configurava nos lações de amizade, religiosidade e

320
Imagens disponíveis em <http://historia8.blogs.sapo.pt/4251.html> e < http://afmata-
tropicalia.blogspot.com.br/2011_04_01_archive.html>. Acesso 12.fev.2014. A réplica dessas inscrições está
no Museu de Marinha, na Sala dos Descobrimentos, em Lisboa, Portugal.
511
diplomacia que poderiam se estabelecer mediante o contato e acordos. Cabe ressaltar que,
antes da chegada e invasão europeia ao continente africano, o Reino do Kôngo estabelecia
acordos e relações diplomáticas com reinos e sociedade vizinhas e também do exterior, na
qual, diplomatas do reino viajavam em defesa da política e da organização do Reino.
Cumprindo com o prometido na visita anterior, a expedição que hora havia
aportado novamente traz consigo os presentes para o maniKongo e os congoleses
capturados que agora sabiam expressar a língua e os costumes portugueses, assim, a
chegada dessa expedição foi comemorada e festejada pelos habitantes do reino. De acordo
com Mello e Souza (2002) a comemoração na ocasião vislumbra um fundo da
espiritualidade do povo Bakongo, que estabelecia para garantir a sobrevivência e existência
do povo, uma forte relação com o mundo dos antepassados do povo do Reino do Kongo,
os Bakongo.
Segundo a autora, havia um entendimento que aqueles homens poderiam
representar um reino distante que foram enviados como presente pelos antepassados, pois
haviam chegado pelo oceano, em embarcações. Eram estranhos esses homens brancos que
seguravam um objeto do formato do que conhecemos como cruz. Na cosmovisão e
simbologia da maioria dos povos bantos, principalmente dos Bakongos, algumas
características identificadas nas pessoas da expedição, foram ligeiramente relacionadas aos
antepassados e crenças locais, tais como: a cor branca e o próprio oceano foram vistos
como a morada dos mortos.
A cruz foi interpretada como um símbolo de passagem, uma espécie de
encruzilhada entre o mundo dos vivos e o dos mortos, pois na representação da
cosmogonia bakongo. “A cruz era símbolo de especial importância nas relações entre o
mundo natural e o sobrenatural” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 60). Esses entendimentos
facilitaram o contato de uma possível admiração e amizade por parte dos congoleses.
Conforme Mello e Souza (2002) entendendo a visita como um presente dos
antepassados para os vivos, o contato com o reino distante passou a ser aceito entre o povo
como um prestigio do maniKongo. Assim, os chefes locais e os nobres foram comunicados
para ouvir os congoleses que tiveram em Lisboa e conhecer os presentes enviados por D.
João II, rei de Portugal na época.
De fato, quem se converteu inicialmente ao catolicismo no reino do kôngo foi a
nobreza, a elite que governava o reino. Essa adoção ao cristianismo por parte dos nobres
congoleses deu aos portugueses a falsa impressão de que o povo se submeteu facilmente a
nova forma religiosa, mas a massa da população do reino não se curvou à nova religião. A

512
estrutura espiritual e religiosa dos bakongos reconhecia Deus-Nzambium ser supremo, e
tais aspectos do catolicismo foi “assimilado” pela nobreza por conta da curiosidade e
facilidade que alguns povos bantos tinham em se dar a conhecer e integrar outras culturas
no sistema-mundo bantófono, mas isso não é sinônimo de submissão e benevolência e sim
de xenofilia, um interesse em conhecer o que parece ser diferente, estranho, estrangeiro,
um tratamento e estima aos visitantes, um sentimento de amizade aos que visitam.
Provavelmente, por conta desse interesse em tratar bem os visitantes e amigos, e a crença
sobre o presente enviado pelos ancestrais, que o maniKongo se engana, ao se converter ele
e a nobreza ao catolicismo.
Segundo Mello e Souza (2002) e Teixeira (1967), a conversão da elite congolesa ao
cristianismo foi um “mal-entendido”, um equívoco, pois portugueses e congoleses estavam
interpretando o mesmo evento de maneiras diferentes, ambos interpretavam a realidade
conforme suas visões de mundo. O primeiro buscava brechas para expandir o domínio
econômico-religioso e aumentar o tráfico de escravizados, o segundo entendia que além de
ter vantagens nas relações diplomáticas com Portugal, esses que haviam se mostrado
confiáveis e respeitosos, segundo a crença dos congoleses, os portugueses teriam sido
enviados das “terras dos mortos”.
Diante da “institucionalização do mal-entendido”, após a conversão, os congoleses
trataram de estreitar os laços diplomáticos e começaram a aprender os usos e costumes, e
a falar, ler e escrever em português, foi construída igreja na qual se batizaram os primeiros
congoleses pertencentes à nobreza. Com a expedição que seguiu vitoriosa nos planos para
Portugal, o maniKongo enviou pessoas nobres e embaixadores carregados de presentes
para retribuir os favores recebidos e para comunicar de sua conversão e batismo. O
maniKongo além de enviar nobres para estudar em Lisboa, também solicitou pessoas de
ofícios como escritores, padres, artesãos, dentre outros pedidos ao rei de Portugal, foram
sucessivas ações, viagens, missões, cerimonias e confraternizações que marcariam o início
das relações diplomáticas capitaneadas pela fé entre a elite congolesa e a elite de Portugal
(MELLO E SOUZA, 2002; TEIXEIRA, 1967, VANSINA, 2010), “inseridos em
universos culturais completamente diferentes, congoleses e portugueses criaram um campo
de compreensão mútua a partir do qual se desenvolveram os “mal entendidos” propiciados
pela leitura dupla dos mesmos eventos e ideias (MELLO E SOUZA, 2002, p. 66-67).
Para Mello e Souza (2002) as crônicas desses primeiros contatos apontam um
começo e duradouro tempo em que portugueses e congoleses traduziriam o contato como
fonte de amizade e aprendizados para ambas as partes, mas com assimilações e “noções

513
alheias para a sua própria cultura, forjando analogias que os levaram a achar que estavam
tratando das mesmas coisas, quando na verdade os sistemas culturais distintos
permaneciam bastante inalterados” (p. 54-55).
Conforme Teixeira (1967) e Mello e Souza (2002) os portugueses já haviam
acordado de levar para lugares longínquos a fé em Cristo, para facilitar para outros
portugueses em missão, os contatos, o processo de organização administrativa e aculturação
dos povos locais considerados primitivos e inferiores. Nessa direção de dominação
econômica, a Igreja serviu como posto avançado da expansão portuguesa, atribuindo aos
naturais da terra-convertidos e iniciados na fé a missão de propagar o cristianismo dentre
aos demais.
Dentro da estrutura e organização política e administrativa encontrada no Reino do
Kôngo, os portugueses se beneficiavam de toda e qualquer oportunidade que favorecia
seus projetos imperialistas, procurando tirar sempre o melhor proveito das situações em
que era propicio a contenda e o conflito nas lutas pela sucessão real, na qual tendiam
posicionamento favorável ou não para esse ou aquele, dependendo da maleabilidade ou
amabilidade do candidato que propusesse interesses que iam ao encontro dos planos dos
dominadores - os portugueses. Foi assim, como consequência da imposição da sua cultura,
na introjeção de falácias e intrigas que os portugueses começaram a exercer influência no
declínio do Reino do Kôongo em meados do século XVII e na expansão massiva do
comércio de escravizados desse e dos lugares circunvizinhos (TEIXEIRA, 1967).
Mesmo assim, o catolicismo ensinado pelos portugueses na qual muitos congoleses
se converteram foi reinterpretado por meio da matriz africana. A forma como os
portugueses chegaram trazendo os capturados reféns em 1485 foi decisiva para a
sensibilização voluntaria do maniKongo e dos nobres congoleses, pois estes entenderam
que regressavam os mortos ressuscitados, “sobreviventes de uma iniciação excepcional nos
poderes dos mortos, sendo o batismo prometido pelos visitantes uma iniciação numa nova
e mais poderosa versão do culto dos espíritos locais” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 63).

COSMOVISÃO BANTU

Assim, como falamos anteriormente os habitantes do reino remetiam suas práticas


religiosas em culto aos antepassados (bakulu) e nas forças da natureza (Ba-símbi), nesta
área da bacia do rio Congo, atualmente Zaire (província de Angola) os cultos aos bakulu –
antepassados/mortos do clã são dominantes. Acredita-se, conforme Teixeira (1967)

514
aponta, que os bakulus habitavam próximos aos rios e bosques e dominavam sobre a terra
formando “cidades semelhantes as dos vivos e viviam em prefeita harmonia” (p.81), sendo
que os antepassados maus após julgamento não eram admitidos a residir ali. Havia também
a devoção absoluta ao ser supremo que escapava a percepção humana, mas que não se
envolvia diretamente nos problemas dos humanos. Esse ser dogmático e supremo
identificado como NzambiAmpungu - senhor do mundo que separava o mundo dos vivos
e o mundo dos mortos, reinava sobre tudo, e conferia a vida e regia ao homem suas leis
fundamentais para a existência, seus significados: Nzambi - ser supremo; Ampungu ou
Mpungu - significa mais destacado, o maior, o mais alto das forças, de grande categoria.
(MELLO E SOUZA, 2002; TEIXEIRA, 1967).
A maneira como os congoleses identificaram a chegada dos portugueses, como
emissários dos antepassados, e a adaptação de NzambiAmpungu como Deus celeste,
originou os equívocos e favoreceu a cristianização do reino do Kôngo “uma vez que era
hábito corrente entre os missionários a atribuição de significados cristãos a vocábulos
correntes na língua kikongo, numa busca de paralelismo de sentidos” (MELLO E SOUZA,
2002, p. 54) que tornava a confusão e conflito de significados e sentidos ainda mais
sincréticos. Para Mello e Souza (2002) e Randles (1968) aos olhos do povo congolês
NzambiMpungu significou o rei divino na figura do rei de Portugal que segundo a crença
local vivia em outro mundo onde habitavam os mortos, além do rio dos mortos (oceano
atlântico) na qual os bakulus haviam “enviado seus representantes, portadores de novos
ritos religiosos e tecnologia desconhecida321” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 58).
Basicamente por meio desses equívocos o cristianismo foi se tornando uma religião
de elite, atingindo aos poucos a população da capital, porém com menos força a população
das províncias do reino. Cabe ressaltar que o cristianismo não era tão atraente aos
congoleses, ao aceitarem a cruz e ao cristianismo católico muitos resistiam em sincretizar e
adaptar a nova religião aos usos, costumes e conceitos locais, “expressando assim suas
crenças tradicionais ao mesmo tempo em que levavam os portugueses a achar que
abraçavam integralmente a nova fé” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 60).
Apesar de aceitarem e se converterem ao catolicismo muitas práticas não foram
abandonadas e sim adaptadas, os ritos cristãos foram aceitos como nova maneira de adaptar
e lidar com velhos conceitos baseados na reinterpretação dos signos culturais próprios do

321
Obviamente volto alertar que a veracidade dessas interpretações narradas como próprias concepções dos
kongoleses acerca dos acontecimentos carecem de estudos mais aprofundados em crônicas e narrativas
equivalentes encontradas na tradição oral local em África.
515
povo congolês. Criava-se ali um tipo de catolicismo “que vem sendo chamado de
cristianismo africano, que aceita vários elementos do cristianismo e combina de forma
dinâmica as diferentes cosmologias” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 67): a portuguesa e
congolesa, cujas características e significações perpassavam pelo sistema religioso já
existente e na codificação da cultura local, numa “releitura do cristianismo a partir da
cosmogonia bakongo” (idem, 2002, p. 68).
No entender de Mello e Souza (2002) há um dinamismo entre os movimentos
religiosos que percorriam constantemente a África Centro-Ocidental, a tradição nunca era
flexível para aprimoramentos, ocorriam com frequência novas contribuições de pessoas e
grupos, nessa lógica, o cristianismo foi recebido como um novo movimento religioso que
trazia a renovação a alguns elementos da tradição local, sendo aos poucos incorporado na
cultura e padrão tradicional de vida bakongo, por meio das “danças, iniciação, queima de
velhos minkisi, incorporação de novas rezas, ritos e símbolos, sonhos confirmadores”
(idem, 2002, p. 68). A luz desse dinamismo religioso dos bakongos, segundo a autora, a
adoção da nova religião fortalecia o poder do maniKongo, pois representava a harmonia e
segurança nas comunidades que governavam. Assim, a postura da nobreza congolesa
perante ao cristianismo era a de controlar a difusão e a ação dos missionários nas aldeias e
províncias do Reino. Nessa época, a partir de 1493, meados do século XVI, a nobreza
enviava muitos congoleses para estudarem e conhecerem Portugal e o cristianismo, para
posteriormente auxiliarem na difusão da fé nas aldeias e nas missões pelo reino. Entre esses
que chegavam a ocupar elevados cargos na administração do reino “que a educação
religiosa e o ensino da leitura e escrita estavam mais presentes” (idem, 2002,71), foram
estes que expandiram e mantiveram o catolicismo a moda africana no reino.
Mesmo reconhecendo milagres e aceitando a conversão dos nobres congoleses,
novos na fé cristã, “os missionários europeus nunca deixariam de ver parte considerável da
religião congolesa como sendo de natureza diabólica” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 68).
Muitos missionários portugueses não compreendiam as práticas religiosas locais, e sem
respeito e diplomacia não entendiam a cultura e a tradição diferente. Com o proposito
garantido em regimentos firmados ainda em solos portugueses deliberando a expansão
marítima de Portugal, cujo objetivo era o de aculturar e dominar outros povos, os
portugueses no Kôngo penetravam na cultura e política local excomungando, censurando
e condenando o “politeísmo como feitiçaria e pratica do demônio, a poligamia como
concubinagem, as cerimonias de iniciação como danças lascivas e práticas imorais”
(TEIXEIRA, 1967) atribuindo como blasfêmia e de ordem primitiva os costumes e práticas

516
dos habitantes do Kôngo.
Devido ao mau entendimento inicial com a “identificação dos portugueses com os
emissários dos antepassados, e a adaptação de NzambiAmpungu às características do Deus
cristão” (TEIXEIRA, 1967, p. 81), no final do século XIX, os desdobramentos dessa
conversão e o estabelecimento de um cristianismo africano, além de não excluir a estrutura
socioeconômica e religiosa bakongo, esse cristianismo, ainda, servia como instrumento de
legitimação da nobreza do reino. Diante desse possível fortalecimento e consolidação
religiosa local, “o catolicismo do reino passou a ser questionado” pelos “[...] europeus, que
colocaram fora da esfera da ortodoxia o até então aceito cristianismo congolês” (MELLO
E SOUZA, 2002, p. 72). Esse tipo de cristianismo local, não era conveniente para os planos
coloniais dos portugueses, pois diante da nova religião poderia contribuir para a unidade e
força do maniKongo no reino.
Ao longo dos anos, o entendimento cristão dos europeus foi produzindo a prática
repressora aos costumes locais e as interferências nas relações religiosas e econômicas da
nobreza e do reino. Assim, os conflitos e discórdias foram se acentuando ainda mais.
Conforme Teixeira (1967, p. 83) esse tipo de prática foi se tornando ainda mais
intransigente, pois a maioria dos missionários portugueses que vivia no reino se sentia “no
direito de agir como fiscal da vida particular do rei e dos nobres”. Eram muitas as
resistências contra a aculturação e a invasão ainda sutil dos portugueses e suas normas
religiosas, tanto Mello e Souza (2002), Jan Vansina ,quanto Teixeira (1967, p. 83) apontam
na população os atritos e conflitos entre os congoleses convertidos ao cristianismo e os
defensores da religião tradicional, que se dividiam em duas facções politicas: os
modernistas - “que adotaram o Cristianismo e a nova cultura – e os tradicionalistas – os
que permaneceram fieis a cultura e religião locais”.
De acordo com Mello e Souza (2002), um dos temas que mais provocavam
polemica e incitavam os atritos entre o rei, a nobreza e os habitantes do reino eram a recusa
à aceitação da monogamia imposta pelos padres, “uma vez que a extensão da rede de
solidariedade tecida pelos casamentos” (p. 72) era uma tradicional e essencial forma de
perpetuar os lações reais e a extensão do poder da nobreza local. No entendimento dos
congoleses o cristianismo não era uma forma de legitimar a crença e a posição católica do
manikongo, pelo contrário, o cristianismo católico incorporado à moda local se dava
“como fator de fortalecimento do poder, conforme os moldes em vigor” (p. 74) e não como
forma de opressão e dominação da população tal como pretendiam os portugueses.
Mais tarde após sucessivas lutas políticas entre as facções modernistas e

517
tradicionalistas, os portugueses apoiando os modernistas contribuiriam decisivamente para
o declínio do forte e poderoso Reino do Congo, por meio da influência e defesa da igreja
ao tráfico e comercio de escravizados, e, consequentemente da ação do cristianismo como
“força de dispersão e dominação” social e econômica dos habitantes do reino. No entanto,
a Igreja Católica não teve êxito na eliminação da cultura do povo e nem conseguiu “vitória
sobre a religião local” dos bakongos (TEIXEIRA, 1967, p. 83). Mas infelizmente os
portugueses conseguem vitória na sua última e principal influência no Reino do Kôngo: a
econômica. O reino tinha suas bases econômicas principalmente na exploração da terra e
no comercio com outros reinos, mas naquela altura, os portugueses haviam estreitado com
eles laços econômicos, auxiliando-os na expansão da riqueza do reino, na importação de
mercadorias europeias, sobretudo, na incrementação da extração de cobre. Com isso os
portugueses, visavam a implementação e expansão do tráfico de escravizados pelas rotas
de comércio e mercados “nzandu” já desenvolvidas no reino do Kongo. Em cima desse
sistema econômico e comercial do reino é “que iriam processar-se as mudanças, por
influencias dos portugueses e de outros estrangeiros” europeus que de posse de interesses
comerciais buscaram expandir suas áreas de comércio e influência, não somente dentro e
nas imediações do reino do kôngo, mas em outras regiões de África (TEIXEIRA, 1967, p.
84; MELLO E SOUZA, 2002).
Assim, com a pretensão de avançar sob os domínios da Abissínia, terra de Preste
João, D. Manuel, rei de Portugal, tinha como estratégia alcançar por meio do reino do
Kôngo as fronteiras com a Abissínia e assim impor ao mundo islâmico as forças armadas
cristãs, uma vez que “a expansão do islã preocupava ao rei católico e a igreja” (TEIXEIRA,
1967, p. 78). Na esperança de chegar ao reino de Preste João, D. Manuel via no Reino do
Kôngo com o reinado de D. Afonso I, um grande e possível aliado cristão para a segurança
e expansão do catolicismo português na África e no oriente.
Dessa forma, em meados do século XV, D. Manuel envia por meio da embaixada
liderada por Simão Silva, o Regimento de 1512, na qual continha uma série de instruções
e regulamentos que favorecia a investigação sobre o reino na Abissínia e estabelecia o plano
de aculturação formal e cristianização do reino do Congo. Contudo, “esse processo de
cristianização seria usado juntamente com o tráfico escravo, justificando-o e amparando-o”
(TEIXEIRA, 1967, p. 78). É no reinado de D. Manuel, que, iniciam-se as explorações
marítimas que ao seu serviço os navegadores chegaram à Índia, ao Brasil e às ambicionadas
“ilhas das especiarias” – as ilhas Molucas – nesse período, D. Manuel assume o título como
o primeiro monarca “Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia

518
e Índia”.
Os portugueses foram estrategicamente se aproveitando das fragilidades do reino,
das situações adversas e de invasões de povos guerreiros, e aos poucos, introduziram sua
moeda, aproveitaram e expandiram o tráfico de escravizados. Por volta de 1513 sai do
reino do kôngo a primeira remessa de 400 escravizados, em 1514 raptam mais 190
escravizados, daí em diante “a caça ao homem tornou-se fator de maior interesse para os
portugueses” (TEIXEIRA, 1967, p. 86). E a situação do reino começa a fugir ao controle
do maniKongo, oportunistas, os portugueses na ambição de raptarem e aprisionarem os
escravizados “não deixavam escapar nem nobres, nem membros da família real” do reino
do kôngo (Idem, ibid).
Em 1526, meados do século XVI, o rei do Kôngo MvembaNzinga, batizado de
Afonso I, diante da situação calamitosa, escreve uma carta ao rei de Portugal reclamando
dos abusos acometidos pelos traficantes de escravizados, mas a carta é ignorada pelo rei de
Portugal (TEIXEIRA, 1967; MELLO E SOUZA, 2002).
Ainda na segunda metade do século XVI, os escravizados eram traficados da área
do Reino do Kôngo e de Angola para trabalharem nas atividades agrícolas do Brasil. Nesse
período de expansão do comércio para outras terras, após o descobrimento do caminho
marítimo para a Índia e na sequência do lucro crescente com a venda de escravizados, a
ambição desmedida dos comerciantes portugueses desconsidera o proselitismo religioso
que ficou relegado ao segundo plano. A coroa portuguesa começa a desinteressar-se pelo
Congo e as relações entre os dois reinos começavam a perder o fervor dos primeiros
tempos. As queixas apresentadas pelo ManiKongo-Afonso I, ao monarca português,
começam a ser frequentes e são linearmente ignoradas, desde a sucessão em 1495, de D.
Manuel ao trono de D. João II (TEIXEIRA, 1967; MELLO E SOUZA, 2002).
A partir daí os Bakongos começaram a se dar conta de que aqueles homens não
eram seus antepassados que haviam voltado. Quando perceberam que o interesse dos
portugueses era o lucro com o comércio de escravizados, já era tarde, o poder do rei já
havia se desorganizado e ele perdera parte do controle sobre a arrecadação de tributos do
comércio, exploração da terra e dos mercados. Muitos chefes já haviam se rebelado contra
seu domínio, fazendo alianças diretamente com os portugueses, “a combinação de
descontrole administrativo, revoltas internas e inimigos externos enfraqueceu o estado”
(MELLO E SOUZA, 2002, p. 77) que marcado por intensas lutas pelo poder, já não era
o mais poderoso reino e, sua estabilidade começa a ruir.
Em 1568, o reino é invadido por povos inimigos e não consegue se reerguer até

519
1641, quando sobe ao trono um monarca que passou a combater os portugueses, várias
são as resistências e tentativas com sucesso e com derrotas por parte dos congoleses em
retomar o controle da situação. Porém, em 1665 na batalha de Ambuila, às forças
congolesas lideradas pelo mani Congo Antonio I são derrotadas pelos portugueses, que
matam a corte e o rei Antonio I. Depois disso, o Reino do Kôngo entra definitivamente
em decadência política e econômica no século XVII, tendo cada vez mais baixa na
população do reino, com cerca de milhares de escravizados embarcados por ano e,
traficados em sua maioria para o Brasil (MELLO E SOUZA, 2002). No entanto, o país
seguiu existindo, ao menos nominalmente como Reino do Kôngo, durante outros dois
séculos até que o reino foi repartido entre Portugal, Bélgica e França na Conferência de
Berlim (1884-1885).
O tráfico de pessoas passa a ser intensamente praticado e apoiado por padres e
missionários da igreja que muitas vezes possuíam sociedade com os traficantes de pessoas
escravizadas (TEIXEIRA, 1967). Ao lado da moeda portuguesa, as pessoas tornadas
semoventes pela condição de escravizadas eram as moedas internacionais. Quando os
portugueses evidenciam o domínio e a expansão do comércio de escravizados sob o
pretexto da cristianização, os congoleses e demais províncias do reino se aliam a outros
invasores para expulsar e derrotar os lusitanos, como foi o caso que veremos mais adiante,
da estratégia política de Nzinga, Rainha das províncias de Ndongo Oriental, regiões de
Ndongo e Matamba, conhecidas hoje como Angola (MELLO E SOUZA, 2002, p. 77).
O fim da centralidade e poder comercial e político do ManiKongo é o início de um
holocausto em massa da população africana. Certamente quando os portugueses se
estabeleceram no reino do congo, D. Manuel sabia o quanto poderia lucrar com o
desenvolvimento do tráfico de escravizados, começa aí não só o declínio do
desenvolvimento dos povos africanos, mas também o advento institucionalizado do tráfico
de escravizados e declínio e massacre dos povos africanos, consequentemente dos povos
indígenas.

CONCLUSÕES

Nos dias atuais, assim como várias outras chefias tradicionais que continuam a
existir dentro dos países do continente africano, o rei do Kôngo não possui a hegemonia
política de outrora, agora, ele apenas representa uma chefia local em Angola, mas esse rei
e outros chefes já não possuem a mesma autonomia econômica e política que possuía antes

520
da chegada dos portugueses. Mesmo assim, com toda a invasão e os processos de
aculturação, os bakongos, com sua cultura visível e invisível, resistiram como um povo com
história, tradições e cultura próprias, alimentadas pelos valores e visão de mundo, próprios
a eles, que se evidenciam nas traduções materializadas da cosmovisão bakongo, na rica
tradição e nas narrativas orais presentes no atual território de Angola.
Vale ressaltar que nesse mesmo período, com o advento institucionalizado do
tráfico de escravizados, o declínio e domínio comercial e político do Reino do Kôngo, os
portugueses passam a expandir seus interesses escravagistas na África Centro-Ocidental,
buscando estreitar as relações nas províncias ao sul do Kôngo, em territórios
independentes, que mais tarde se tornaria colônia portuguesa - chamada Angola.
Nessa região localizava-se Ndongo e Matamba, províncias do Reino do Kôngo que
pagavam tributos ao ManiKongo, compostas pelos povos jagas e ambundos, esse território
tornar-se independente do rei do Congo, entre lutas e batalhas pelo poder após a morte de
seu irmão, o Ngola (chefe local na língua desses povos), a Rainha Nzinga Mbandi Ngola
(1582-1663), mulher persistente e inteligente, assume o comando de Ndongo e Matamba,
contemporânea a Zumbi, seu reinado é marcado por grandes lutas e resistência contra a
dominação portuguesa (MELLO E SOUZA, 2002).
A maioria dos escravizados que vieram para o Brasil, a partir do século XVIII, foi
arrancada dessa região do antigo Reino do Kôngo e da província do Ndongo e Matamba,
que além de ser conhecido é sempre lembrado e imortalizado na figura do rei D. Afonso,
como soberano, rei da organização, hierarquia, poder e fé, no congado ele é representado
na figura do rei Kongo. E a Rainha Nzinga, mulher forte e guerreira, que hoje no Congado
se faz representada como a Rainha Conga. Com o território africano presente na memória,
muito dos ritos, costumes, presentes no antigo do Reino do Kôngo e suas províncias, foram
e são lembrados até hoje na Coroação dos Reis Congo (Reis Negros) na América Latina:
Cuba, Colômbia, Venezuela, Peru, Uruguai, Argentina - e em muitas outras manifestações
no Brasil, tais como o reisado, o maracatu, banda de congo, candombe, dentre outras o
congado. Resta-nos saber quais elementos e ritualísticas perfazem este caminho
geosimbólico da reterritorialização de África por meio de suas continuidades na tradição
congadeira.

REFERÊNCIAS

BOXER, Charles R. O império marítimo português 1415-1825. São Paulo: Companhia


das Letras, 2002.

521
MELLO e SOUZA, Marina de. Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de
coroação do Rei Congo. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002.
__________. África e Brasil africano. São Paulo: Ática, 2006.
TEIXEIRA, Marli Geralda. Notas sobre o Reino do Congo no século XVI. Revista Afro-
Asia, n. 4-5 (1967). Acesso em 20.nov.2010. Disponível em
<https://portalseer.ufba.br/index.php/afroasia/article/view/20354>.
THORNTON. John K. A África e os africanos na formação do mundo atlântico, 1400-
1800. Rio de Janeiro: Editora Campus / Elsivier, 2004.
VANSINA, Jan. A Tradição Oral e sua Metodologia. In: KI-ZERBO, Joseph (Ed.).
História Gerald a África, I: Metodologia e pré-história da África. 2 ed. Brasília: UNESCO,
2010.

522
A PRESENÇA NEGRA NO ESPAÇO TEATRAL: UMA ANÁLISE
SOBRE ESTEREÓTIPOS, VISIBILIDADE E INVISIBILIDADE
NEGRA NO TEATRO BRASILEIRO

Danusa de Oliveira JEREMIN322

Resumo: Questões relacionadas a presença do negro no entretenimento sempre estiveram em


pauta no movimento negro brasileiro, internacional e contemporaneamente tem alcançado a mídia
mundial. A pesquisa propõe compreender o processo de invisibilidade e estereotipação do ator
negro no espaço de espetáculos, considerando como se desenvolveram os processos identitários e
de diferença através dos estereótipos nessa primeira metade do século XX, período em que a
camada de ex- escravizados ainda tentava se introjetar na sociedade. Para tanto, partiremos do
pressuposto da existência de lugares simbolicamente construídos que são permitidos ou proibidos
aos negros sendo o teatro da então “elite” um deles. Visto que, a simples presença do negro no
espaço da arte pode ser considerada uma forma de resistência ao racismo e a subalternização, ao
criar um espaço que o tornava visível enquanto pessoa. A partir dos conceitos teóricos–
metodológicos dos Estudos Culturais em que a identidade cultural é fruto da identificação, passível
de transformação e mudança. Em que a transformação cultural nada mais é que um processo de
marginalização de algumas formas de práticas culturais que são expulsas do centro da vida popular.
Portanto, a pesquisa propõe responder quais foram os instrumentos que cristalizaram estereótipos
com relação a persona do negro no entretenimento, a partir da análise da personagem negra no
teatro brasileiro, compreendendo por onde se deu o acesso do negro as artes dramáticas e
analisando até que ponto seria possível pensar os meios de comunicação como determinantes na
cristalização de estereótipos que impediam o negro de se auto representar e atuar fora das categorias
a eles relegadas.

Palavras–chave: Estereótipos. Mídia. Blackface. Teatro Negro. Relações étnico-raciais.

INTRODUÇÃO

Para pensar a visibilidade negra no espaço teatral é preciso fazer um regaste


histórico sobre o papel do negro, em um espaço que sempre ocupou, mas que nunca lhe
foi dado o devido crédito. Sendo possível analisar que tanto populações africanas quanto
populações consideradas autóctones já se utilizavam de representações dramatizadas dos
seus grandes feitos, contudo, a gênese da arte da dramatização é creditada aos gregos.
Certamente que foi na Grécia que se tomou uma outra proporção e um outro formato,
mas é possível afirmar que a gênese da representação dramática se deu pela África. “A
própria forma dramática dos ritos, tornando-os mais sugestivos, assim como a prática do
culto a Dionísio, foi imitação do Egito Negro” (NASCIMENTO, 1981, p. 11).

322
Mestranda no Curso de Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara. Bolsista
CAPES. Email: danusaj174@gmail.com

523
Contudo, ao se pensar sobre o processo de invisibilidade negra no espaço do
espetáculo cênico e consequentemente sobre a falta de atores negros como protagonistas
na produção, atuação e direção de seus projetos, até que ponto seria possível pensar os
meios de comunicação como determinantes nesse cenário esvaziado de representatividade
e ao mesmo tempo estereotipados do entretenimento. Seriam os meios de comunicação
também cristalizadores de estereótipos? De forma a analisar como foram construídos
papeis estereotipados dos negros no contexto brasileiro e como se deu essa efetiva
invisibilidade no espaço do entretenimento e do espetáculo, ou seja, dentro do espaço das
artes do palco e das artes cênicas, é que pretendemos desenvolver dado artigo.
Visto que é possível levantar enquanto hipótese que esses meios de comunicação
que lidam com o entretenimento e o espetáculo originam discursos e retiram assuntos,
agendas, eventos, imagens da audiência, de formações discursivas ou fontes de dentro da
estrutura sociocultural e política, que opera com uma ideologia que crê ser uma “definição
da situação”323. Podemos afirmar, com aquilo que já é sabido e implícito na sociedade, que
a mesmo carrega uma representação daquilo que em seu privilégio creem ser o mundo.
Mesmo porque sabemos que questões relacionadas à representação do negro no
entretenimento sempre estiveram em pauta no movimento negro brasileiro, internacional
e contemporaneamente tem alcançado a mídia mundial.
O jornal Folha de São Paulo do dia 05 de Maio de 2015, publicou em sua mídia
digital uma matéria sobre uma discussão que já estava de certa forma “viralizada”324 na
internet. Uma estudante de arquitetura se sentiu incomodada após assistir uma peça exibida
em São Paulo, ao constatar uma cena de blackface durante o espetáculo, ou seja, uma cena
em que um ator ou atriz branco (a) pinta o rosto de preto e atua como naquilo que é
acreditado ser o estereótipo do negro. Essa estudante, por coincidência também é uma
blogueira reconhecida e com bastantes “seguidores”, que debate frequentemente a questão
racial em seus escritos. Sendo assim, o que seria somente mais uma reclamação virtual,
tomou uma grande proporção midiática levando o grupo a parar a temporada e repensar
o modelo da peça, retirando o blackface do espetáculo do grupo. Esse evento também
culminou em um debate sobre Arte e Sociedade: A representação do Negro em Maio de
2015, promovido pelo Itaú Cultural, empresa que também patrocinava a peça, convidando
a blogueira, a companhia teatral entre outros teóricos tanto a favor quanto contra o
acontecido.

323
Hall, Stuart. 2009. Dá diáspora. P. 367
324
Termo utilizado para se referir a conteúdos que ganham grande repercussão nas redes sociais.

524
A partir desse de muitos outros acontecimentos, que denunciam os processos de
preterição do ator negro nos meios midiáticos de entretenimento e estereotipação de sua
persona, é que surgiu a necessidade de iniciar uma pesquisa sobre o tema do espaço do
negro no entretenimento brasileiro, fazendo uma análise da trajetória do ator/atriz negros
no espaço cênico. Mesmo porque, se contarmos o número de atores negros em cartaz no
teatro e na televisão (com um contingente um pouco maior), ainda é ínfimo. De acordo
com Joel Zito Araújo em A Negação do Brasil (2000), os atores negros só eram escalados
para interpretar personagens estereotipados, subalternos a brancos, em papeis como o das
antigas Mammy para os norte-americanos ou “mãe preta” aqui no Brasil como as criadas
fieis aos seus patrões ou no caso donos, empregadas domésticas, escravos, “Gabrielas”
mulatas salientes, a mulher sofredora, ou o homem cafajeste, gatuno, ébrio, vagabundo
entre várias outras “qualidades”. Esses personagens com o passar do tempo foram sendo
redesenhados, mas permanecendo com a mesma função a de servir aos propósitos dos
personagens brancos, servindo de coadjuvantes ou protagonistas sofredores e/ou
erotizados.
Seria interessante pensar nesses papeis cristalizados estereotipados, creditados aos
atores negros, como produto anterior das telenovelas que são investigadas por Araújo
(2000). Esses personagens são fruto de uma época, de uma literatura e, portanto, na mesma
medida em que são interpretados cenicamente pelo teatro romântico e realista nacional,
levam adiante estereótipos de um período. Em peças como O Dote (1888) de Aluísio
Azevedo, partidário do movimento abolicionista, que mesmo colocando atores negros em
suas peças, sempre os colocava centrados na figura coadjuvante do “Pai João”, os
desenhando enquanto sujeitos que precisavam de redenção (MENDES, 1993).
Indo em linha com o pensamento de Silva (2015)325, os estigmas associados à cor e
a raça negra podem ser encontrados em um longo espectro temporal da criação
dramatúrgica teatral e cinematográfica desde do século XX até hoje. Em que a partir de
um racismo à brasileira a subalternização do negro é compreendida como natural. Por
definição racismo se refere à hierarquia de uma raça ou etnia sobre a outra, o “racismo à
brasileira”326 teria um viés mais velado, sutil, mas ainda assim discriminatório, presente
também em instrumentos cênicos ou na construção dos personagens negros. Voltando ao

325
Debate no Itaú Cultural sobre Arte e Sociedade e a Representação do Negro, em maio de 2015. Disponível
online em <https://www.youtube.com/watch?v=LG_cRXBsKfE>
326
Definição de “Racismo à brasileira” a partir do livro: “Você conhece aquela? A piada, o riso e o racismo à
brasileira” de Fonseca, Dagoberto José. 2012.
525
autor, ele continua agora trazendo Foucault ao debate ao dizer que o racismo vai se
desenvolver paralelo com o colonialismo, ou seja, com o genocídio colonizador.
Da mesma forma, Georges Balandier em a Situação Colonial: Uma abordagem
Teórica (2014), também discorre sobre essa questão levantada por Silva. De acordo com
o autor o “choque de civilizações ou “choque de raças” resultado de “contatos” é que
produziram a “situação colonial”. Ou seja, seria essa a dominação de uma minoria
estrangeira “racialmente (ou etnicamente) e culturalmente diferentes, em nome de uma
superioridade racial (ou étnica) e cultural dogmaticamente afirmada...” (Idem, p. 55).
Assim sendo, essas relações antagonistas geram uma hierarquia social e cultural na
realidade e no imaginário dos colonizados. E o autor comprova essa realidade ao analisar
o Continente africano, a Ásia e a Oceania. Sendo essa “Ação Colonial” que aconteceu no
decorrer do século XIX – XX a forma mais importante e que mais trouxe consequência
tanto para população subjugada quanto para aqueles que foram conquistados.

O caráter fundamentalmente antagonista das relações que existem entre


estas duas sociedades se explica pelo papel de instrumento ao qual é
condenada a sociedade colonizada; a necessidade, para manter a
dominação de recorrer não somente à “força”, mas também a um
sistema de pseudojustificativas e de comportamentos estereotipados, etc
– mas apenas esta enumeração seria insuficiente (BALANDIER, 2014,
p. 55).

Foi a partir deste contexto cultural que são reconhecidas enquanto atrasadas ou
“sem mecanização”, tradições e costumes diferentes daqueles praticados pelos europeus e
foi dentro desse espectro que os intelectuais produziram seus conhecimentos, já partindo
do pressuposto da existência que no período era comprovada cientificamente de
inferioridade étnica e racial. Ou seja, a diferença em si já os tornaria automaticamente
inferiores e quando a palavra inferior não funcionasse dependendo do contexto, a palavra
utilizada seria exótica como forma de classificação, tanto dos conhecimentos quanto físico.
Sendo assim, seria através daquilo que o autor classifica como “políticas de
dominação”, que a sociedade colonial seria de certa forma fechada e distante, da sociedade
colonizada. Atribuindo também a esse fato, o motivo da falta de compreensão e apreciação
recíproca, permitindo assim o uso dos estereótipos como forma de também legitimar a
dominação de um sob o outro. Portanto, o que deveria conter dentro da “situação colonial”
seria a inautenticidade daquilo que é desenvolvido por aqueles sujeitos a serem subjugados.

526
Com isso viria à necessidade da reprodução de modelos: políticos, econômicos e
sociais, resultando deste modo, em uma dependência, sendo ela consequentemente
econômica social e política. Significando que não haveria necessidade de um país
colonizado desenvolver seus próprios sistemas, mas o correto seria transpor os sistemas
daqueles que deram certo, mesmo que em diferentes condições. Isso é devido à crença da
incapacidade dos povos autóctones de se auto gerir, se torna quase inerente a “casta
dominante” contida dentro daqueles que se consideram pertencentes à superioridade
branca de serem também líderes políticos, pelo menos foi assim no caso brasileiro e em
muitas outras ex-colonias tanto da América do Sul, quanto na América Central e também
na África, dentro de Oligarquias, ou Bandos ditatoriais ou sistemas políticos que operavam
sempre dentro de uma métrica considerada civilizada e apropriada a todos.
Entretanto, diferentemente do que a escola da Antropologia Social afirma, não
houve somente um movimento de “adaptação e recusa” produtos da destruição dos
modelos sociais, prossegue Balandier (2014). Mas houve um movimento de resistência, ou
como o autor descreve “pontos de resistência” das sociedades colonizadas, presentes nas
estruturas e comportamentos fundamentais. Portanto, entender como se fundamentaram
grupos negros organizados em um contexto nada propício é também entender isso como
um movimento de resistência a ordem vigente.
Na mesma linha, de forma concomitante neste período, a questão da busca de uma
identidade brasileira já começa a ser esboçada pelos intelectuais, acentuando o papel do
índio como herói ou bom selvagem e do negro, o de Caliban327 amoral como explicitado
antes, contudo a partir do século XIX a inferioridade do negro começa a ser embasada não
mais somente na bíblia mas a partir de teorias racialistas em alta na época, que tentavam
afirmar a inferioridade do negro através de taxonomias raciais como a craniometria que
comparavam o tamanho do crânio, estrutura capilar e a cor da pele atribuindo uma
inferioridade as anatomias diferentes das caucasianas. Em que, muitos intelectuais do
período que foram ao continente africano com interesse tanto científicos, quanto
econômicos e para tanto subjugaram aos povos daquele território, conseguiram assim
inferiorizar tanto a África quanto aos africanos, a partir de um “etnocentrismo ocidental”,
destituído de bases científicas, ou melhor, bases científicas eles acreditavam ter, mas que
na realidade eram errôneas podendo ser consideradas atualmente em pseudociências,

327
Crivo da autora, a partir da leitura de Pele Negra, Máscaras Brancas (2008) de Franz Fanon em que dialoga
com Octave Mannoni (1950) sobre a obra “Psicologia da Colonização” no qual a partir da obra “A
Tempestade” de Shakespeare é feita uma analogia, sobre o negro como sendo considerado o devasso sujeito
a um adestramento e Próspero europeu o detentor de conhecimento como o colonizador.
527
(SCHWARCZ, 1993; FONSECA 2014, no prelo). Entretanto, a partir do século XX a
questão de raça é evidenciada, através da mestiçagem que começa a ser problematizada
pelos intelectuais como Nina Rodrigues (1988), Arthur Ramos (1988), Gilberto Freyre
(2006) e contemporaneamente dentre outros autores também analisado por Kabengele
Munanga (2004) e por Lilia Schwarcz (2007) entre outros.

O interessante é que, para a confirmação da identidade, a raça teve que


ser positivada: assim como no Império você positiva o indígena, no
século XX, positiva-se a mestiçagem. A mestiçagem de nosso profundo
veneno se transforma na grande virtude: é o momento em que você tem
a oficialização da capoeira, a descriminalização do candomblé, o futebol
se transforma numa prática negra, Nossa Senhora Aparecida se
transforma numa santa mestiça, ícone nacional (SCHWARCZ, 2007, p.
134).

Com base neste cenário de construção da identidade nacional, procuro também


compreender a questão dos processos identitários pelos quais passavam os negros em um
país que sustentou a escravidão por vários séculos.

PROCESSOS DE VISIBILIDADE E INVISIBILIDADE NOS MEIOS DE


COMUNICAÇÃO E ENTRETENIMENTO

A simples presença do negro no espaço da arte como produtor de conhecimento


foi uma forma de resistência ao racismo e a subalternização, como já dito anteriormente.
Ao ocupar um espaço que o tornava visível enquanto pessoa e não mais como somente um
ex-escravizado. Deste modo, a representação negra era uma afronta ao pensamento
hegemônico excludente e racista da época e o blackface328 já presente no teatro ligeiro e no
circo–teatro além de ser um arquétipo do teatro clássico, por si só já é uma expressão
simbólica racista que propõe impedir o negro de se auto representar, como um ser humano
assim como os outros complexo e não um animal selvagem que compartilha a mesma
língua da elite como acaba sendo significada e decodificada para quem se dirige, ou seja,
enquanto objeto de ridicularização.
Ao se pensar processos de visibilidade e invisibilidade nos meios de
entretenimento, diretamente pensamos sobre mídias e meios de comunicação. No livro
Mídia e Racismo (2007), é dita a seguinte afirmação: “Os meios de comunicação são, por

328
Blackface: Quando uma pessoa branca pinta o rosto de preto e atua enquanto um negro a partir de seus
estereótipos.

528
assim dizer, um caso – modelo de reprodução das nossas relações raciais”. (p. 8). Os meios
de comunicação operam dentro de “dinâmicas de exclusão” complexas, mas sutis, que
invisibilizam e silenciam.

Através dos meios de comunicação, especialmente dos meios de massa,


como a televisão e o rádio, as desigualdades raciais são naturalizadas,
banalizadas e muitas vezes racionalizadas. Em grande medida, através da
mídia de massa as representações raciais são atualizadas e reificadas. E
dessa forma, como “coisas”, circulam como noções mais ou menos
comuns a toda a sociedade e como ideias mais ou menos sensatas
(RAMOS et. al. 2007, p. 09).

Portanto, trazemos neste momento a questão o que seria essa invisibilidade e


porque o representar e ser representado tem uma grande importância para os grupos
minoritários? A representação importa pois, não ter representação significa não se ver, não
ver pessoas iguais a você ocupando determinados espaços, logo, “se não me vejo, não sou
nada; e se eu não sou nada, se ninguém se importa comigo, se eu não me importo com
nada, para que eu preciso dos mecanismos e dos instrumentos de luta que já temos desde
a colonização, que se perpetuam, mas que não nos dão visibilidade?” (RAMOS et. Al.,
2007, p.23). A invisibilidade seria então uma forma de cristalizar aquilo que um grupo ou
uma elite hegemônica creem ser uma “imagem da situação”, ou seja, é uma forma de
cristalizar desigualdades e firmar uma estética do branqueamento.
Portanto, a mídia pode sim ser considerada uma das formas de se internalizar
racismos tanto na cultura quanto em nossas mentes. Como se a sociedade reconhecesse os
indígenas e negros enquanto formadores da civilização brasileira, mas os visse enquanto
minoria, e muitas vezes apartados do imaginário daquilo que é ser civilizado. O indígena,
por exemplo, a partir do momento que veste uma calça jeans e uma camisa não é mais
indígena e o negro a partir do momento em que alisa o cabelo e aceita as normas brancas
de beleza, que dá uma miscigenada não é mais negro.

A mídia é o intelectual coletivo desse poderio, que se empenha em


consolidar o velho entendimento do povo como “público”, sem
comprometer–se com as causas verdadeiramente públicas nem com a
afirmação da diversidade da população brasileira. O racismo modula-se
e cresce à sombra do difusionismo culturalista euroamericano e do
entretenimento rebarbativo oferecido às massas pela televisão e outros
ramos industriais do espetáculo (SODRÉ, 1999, p. 243).

529
Assim, voltamos para um ponto apresentado na introdução. Esse costume
brasileiro de ser ou imitar o melhor possível o modelo europeu, mais uma vez mostra suas
ramificações. Quanto mais admitíssemos que a presença negra estivesse aumentando e
ocupando espaços de importância na sociedade brasileira, mais nos afastaríamos do
modelo europeu. Reafirmando, mais uma vez o debate sobre a questão da identidade
nacional, se somos todos uma mistura, qual seria a face do brasileiro? Quanto mais
mestiçado melhor? Se parte de ser brasileiro é também ser negro, porque necessariamente
essa parte precisa ser reprimida ou feia? Então o que se retira desse fato? Que realmente
essa falaciosa democracia racial, seria “história para inglês ver”.
Mesmo porque, a identidade nacional é construída através de aparatos sociais,
como a comunicação e a educação. Eles que determinariam e influenciariam valores e
atitudes, que formariam a consciência. Para tanto necessitariam transmitir valores étnicos e
estéticos presentes na identidade étnica de cada grupo. Concomitantemente, padrões
culturais de linguagem e estética africana sempre foram muito reprimidos, ou seja, valores
étnicos da população de ascendência africana eram tidos como selvagem e grosseiro. E os
valores étnicos positivados eram outros, aqueles que já me estendi bastante discorrendo
sobre, o “ocidental” (BORGES; BORGES, 2012).

O ATOR NEGRO/A OU A PERSONAGEM NEGRA

Para se pensar o processo da estereotipação do ator e da atriz negro/a, seria preciso


necessariamente compreender as personagens que tem interpretado ao longo da história,
entender quais papéis lhes foram escritos, analisar esses papeis é perceber como eram
operados esses preconceitos dentro do teatro. Para tanto durante a pesquisa tivemos acesso
a três literaturas relevantes para se pensar o ator e atriz negro/a no espaço teatral brasileiro.
Duas literaturas foram escritas por Miriam Garcia Mendes, Doutora em Artes Cênicas que
pesquisava o negro em um espaço considerado por ela, em disputa. Seus livros foram
extremamente importantes para essa pesquisa, o primeiro deles “A personagem Negra no
teatro brasileiro entre 1838 e 1888 (1982) e o segundo, Negro no teatro brasileiro (1993),
no qual a autora faz um recorte de 1889 até 1982. E a terceira foi uma dissertação de
mestrado intitulada: A formação de professores/as de arte em educação para as relações
étnico-raciais: interrogando os currículos de licenciatura em teatro de Monique Priscila de
Reis (2017). Na qual investiga a questão de como a temática étnico-racial é abordada dentro
do ensino de artes cênicas nas escolas. Essa terceira mesmo sendo um tema um tanto

530
distante de meu objetivo de pesquisa, traz uma definição interessante sobre a questão do
teatro negro e a personagem negra.
Em A personagem negra, a autora faz um levantamento da trajetória do trabalho
do ator negro, ou melhor, dos papéis que esse ator negro deveria interpretar, desde as
performances como instrumento catequético pelos jesuítas até o período Monarquista em
que os negros que antes ocupavam os palcos perdem seus espaços, para peças cada vez
mais afrancesadas. Sendo que os únicos papeis relegados aos negros neste período eram
sempre o de ex-escravizado, ou escravizado e coadjuvante, sendo poucas exceções como
constata a autora de papeis principais para negros que de qualquer forma sempre atuaria
enquanto alguém que em algum momento da vida foi escravizado.
Para chegar a tal análise, a autora investiga a partir da atividade negra nos teatros do
século XVIII início do XIX, relatada por viajantes que por aqui passaram. Em um período
em que casas de espetáculo começavam a surgir também com elencos permanentes. Elenco
esse que de acordo com os mesmos viajantes era composto principalmente por atores que
eles denominaram de cor, sendo que atores brancos mesmo encarnavam personagens
estrangeiros (MENDES, 1987).
A autora credita tal predominância de atores negros neste espaço, ao preconceito
generalizado com relação a essa profissão. Que somente a partir do incentivo da monarquia
a artes cênicas, várias companhias estrangeiras tornaram o Brasil uma rota artística sendo a
partir desse momento que o teatro deixa de ser um espaço ao qual o negro possa ou “deva”
ocupar. A partir do momento que o ato de ir ao teatro ganha um status maior na sociedade.
Tanto os conteúdos das peças, quanto os atores que as encenaria seriam aqueles também
considerados esteticamente qualificados para tal. Tanto é, que as “Categorias estéticas”
tomam uma proporção na construção do personagem enorme, provindo da escola
“Romantismo” no século XVIII desenvolve a dicotomia entre aquilo que é “Belo” e o que
é “Grotesco”. Que se olharmos a fundo a partir da análise feita nos capítulos anteriores é
por meio da literatura, dos jornais e da impressa que o negro se torna aquele sujeito
imaginado, feio, animalesco, bruto e sem intelecto. E, portanto, a influência deste ideário
na construção do personagem negro é imensurável, pois será ele sempre o malfeitor.
Com o tempo, outro fato importante seria o da predominância das comédias sobre
o drama. Em geral, os dramas não conseguiam se manter muito tempo em cartaz, devido
à falta de público. De acordo com Mendes (1982), a transição do modelo teatral romântico

531
para o realista se estabeleceu no Brasil melhor a partir da comédia de costumes329, gênero
próximo da vida real, que de certa forma tinha a capacidade de fazer o povo se divertir
com seus vícios e virtudes sendo este o centro da peça, entretendo mais até mesmo que
uma peça dramática.
De acordo com Dagoberto J. Fonseca em sua dissertação A Piada: Discurso sutil
da Exclusão Um Estudo do Risível no Racismo à Brasileira (1994), ao citar Aristóteles em
sua obra “Poética” afirma que a comédia nada mais é do que a imitação de algo que é
considerado inferior. Mas é importante salientar, assim como o autor informa em sua obra
que essa análise é fruto de um pensar o riso a partir de uma ideologia da seriedade. Nessa
obra é possível compreender como a conotação dada ao riso vai mudando durante as
décadas, contudo, o que permanece são os sujeitos fruto da ridicularização. Como é
possível notar neste trecho:

O riso da piada e de outras expressões satíricas são considerados como


manifestações de verdadeiros trotes sociais contra aqueles que não se
adequam aos valores morais e estéticos da sociedade burguesa. Ele
expressa a marginalização e a segregação dos contingentes populacionais
e, mesmo dos indivíduos, que estão fora do padrão hegemônico. O riso,
nesta perspectiva, transforma–se na mais refinada expressão do
etnocentrismo e do racismo pela sociedade ocidental contra os
indivíduos e populações não-ocidentais, principalmente sobre a negra
(FONSECA, 1994, p. 34).

Isso nos leva a pensar sobre a personagem negra, anteriormente foi dito que a partir
do “tema do escravizado” que nasceria a personagem negra no teatro brasileiro. Sendo
possível unir esse fato um ideário cristalizado no imaginário social burguês sobre o corpo
negro ser inerente ao escravismo. Ou seja, para os padrões convencionais, o negro não
chamaria atenção pelos atributos estéticos, a não ser que fosse de forma a retratar um corpo

329
“Em Geral, qualquer COMÉDIA que ridicularize os modos, costumes e aparência de um determinado
grupo social. Especificamente, um tipo de comédia muito em voga na França e na Inglaterra do século XVII,
cuja visão satírica da sociedade era feita através de uma linguagem brilhante, inteligente e espirituosa (...) No
Brasil, o principal representante da comédia de costumes é Luis Carlos de Martins Pena (1815-1848), que
escreveu sob influência do modelo francês.” (VASCONCELLOS, p.47-48, 1987) VASCONCELLOS, Luiz
Paulo. Dicionário de teatro. L. e PM Editores, 1987
“Forma pouco valorizada a princípio, seja por força dos princípios, seja por forças dos preconceitos de
escritores românticos e intelectuais do período em relação ao uso dos recursos do baixo cômico, seja pela
posição secundária que ocupava nos espetáculos da época, a comédia de costumes à maneira de Martins
532
PENA conquistou o gosto do público e de vários escritores ao longo de muitas décadas.” Guinsburg, 2006:
p. 253. GUINSBURG, Jacó; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariangela Alves de. Dicionário do Teatro
Brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: SESC São Paulo, 2006. (p. 253 – 254).
.
negro de maneira estereotipada, ou ser o exemplo daquilo que seria considerado grotesco,
assim, sua posição neste período seria de extrema inferioridade.
Contudo, a autora demonstra que houve também um contra movimento, “até então
visto como “preto imundo, boçal, degenerado, imoral, mentiroso”, e outras coisas mais,
para uma imagem tão deformada quanto à primeira” (MENDES, 1987, p. 23). Na
contramão surgiam movimentos de exaltação, relacionando ao heroísmo negro, sendo
Castro Alves um dos expoentes desse movimento. A autora classifica esse fator como uma
“formação de novos mitos”, ou seja, estereótipos com sinais invertidos indo em
contraponto com a mentalidade da época. Porém, quebrar estereótipos cristalizados é uma
tarefa que infelizmente o movimento abolicionista não foi capaz de mudar.

O negro, pois, encarado dessa forma, sem categoria estética, sem passado
mítico, lendário, glorioso, não tinha condições de despertar no escritor
ou artista a vontade de toma-lo como modelo. Mas, paradoxalmente foi
o que acabou acontecendo. Muito embora, para ser transformado em
herói, tivesse de passar, muitas vezes por um processo de idealização que
lhe amenizou as feições, alisou ou domou a carapinha, para aproximá-lo
o mais possível do branco. Só se admitia mais ou menos autentico
quando se tratava de figuras pouco expressivas (MENDES, 1987, p. 24).

Ademais, é possível notar que o personagem negro abriria uma gama de


possibilidades de interpretação somente dentro da realidade que autores brancos,
burgueses ou não, pertencentes à elite ou não tivessem deles, os negros eram retratados a
partir das concepções dos brancos. E ainda mais, no cognitivo do século XIX era
inconcebível a ideia de retratar o negro fora da persona de escravizado. Assim, enquanto
as comédias retratavam o negro enquanto ingênuo com traços caricatos, o drama
representava o negro enquanto escravo fiel com qualidades e até adepto a um conformismo
com sua realidade. Sem nem mesmo mencionar algo sobre sua condição social degradante.
Entretanto, o movimento abolicionista também teve um efeito nas produções
literárias dramáticas. Mesmo porque, as críticas abolicionistas tomaram os jornais, fizeram
parte de romances produzidos na época que implicitamente afetou o teatro. E qual seria a
saída? Positivar o estereótipo da “mulata”, no lugar da negra. Ou seja, para se contrapor ao
sujeito imaginado simiesco a solução seria sexualizar, exotizar e esbranquiçar.

Nas comédias, salvo raras exceções, a personagem negra não poderia


mesmo ter ido muito além do papel que habitualmente lhe cabia. Ficou,
por isso, nos estereótipos que o teatro continuaria usando até o fim da
primeira metade deste século: os pais-joões, as mães-pretas, os moleques

533
espertos, as mulatinhas dengosas, cujas vidas privadas não interessavam
ao público, nem aos autores. (...) Na verdade, o negro escravo não tinha
história própria, uma vez que não podia dispor de sua vida para coisa
alguma. Mesmo quando parecia ter, era mais provável que estivesse
sendo instrumento do seu senhor para que este alcançasse algum
objetivo. Pois não era dono de seus atos, incluindo aqueles que se
relacionavam com seus sentimentos. Não tinha dinheiro, usava nome
emprestado (o do seu senhor), ou possuía registro falso, era declarado
oficialmente morto e prosseguia vivo com o nome de outrem. Não era
ninguém, em suma; era objeto. Tudo o que os autores disseram a seu
respeito se prendia a uma só coisa: a sua condição social (MENDES,
1987, p. 196).

E com a Lei Áurea, o negro se tornaria uma questão do passado, já fora de moda,
principalmente nos dramas, não haveria mais porque retratá-lo nem enquanto pano de
fundo de alguma obra. Já nas comédias o que mudaria seria a nomenclatura do serviço
creditado ao negro, de escravizados seriam agora empregados e empregadas, sempre muito
próximos das famílias que os acolheram, (MENDES, 1987).O interessante é notar como
condições sociais afetam intrinsecamente o teatro, se a literatura produzida na época é uma
forma de compreender como se sistematizam categorias de pensamento de uma época, o
teatro produzido a partir disso traria vida, ou seja, seria viver aquela época e suas questões
sociais.
Durante a transição deste período pós-abolição até a chegada dos anos 1920,
década em que o teatro perde soberania, outros meios de entretenimento começam a
dividir o público assíduo, no entanto um dos estilos teatral que se manteve firme, foi o
teatro de revista. Resultado provável daquela melhor aceitação pública a comédia, como
relatada acima, sendo então o investimento em grupos de teatro musical a única resposta
possível na época à pesada industrialização cinematográfica dos Estados Unidos e seus
filmes e séries que atraiam cada vez mais um público cativo (MENDES, 1993)
Desta maneira, a partir deste cenário em que as peças dramáticas não tinham muito
espaço, pouco se nota a presença negra e nas comédias sempre a partir de personagens
dentro dos estereótipos escravistas. Ou como figurante, mas exercendo alguma posição
subalterna, ainda que a função no teatro fosse trabalhar a empatia, esses personagens
estereotipados seriam sempre mote de chacota.
Além disso, a autora fez um levantamento sobre as dramaturgias que descreviam a
existência de atores negros em determinadas peças. Porém, em muitas delas era utilizado
o advento do Blackface, contudo, os dados levantados pela autora não foram nítidos o
suficiente sobre em quais das peças analisadas era de fato um ator negro atuando ou um

534
ator branco com o rosto pintado de preto. Tanto é que em um dos raros casos descritos
pela autora, ela informa que uma companhia chamada Dulcia-Odilon, eram atores brancos
que interpretavam esses personagens negros. Tornando extremamente difícil de fato dizer
se haviam muitos atores negros em atividade, ou se seriam somente personagens negros.
Portanto mesmo que vários autores como Martins Pena, Artur Azevedo, Samuel Campelo
entre outros escrevessem textos com negros na história, eles poderiam não ser
interpretados por negros, visto que os personagens negros foram uma persona inventada a
partir de um estereótipo. Então a questão étnica-racial não seria só algo a mais, mas o fato
de ser negro já adentrava enquanto personagem em uma categoria.
Ainda em linha com Mendes (1993), essa mentalidade só mudaria na década de
1940 com o Teatro Experimental do negro vem para acabar com essa representação do
branco sobre o negro. A partir de uma revalorização do negro tanto como ator quanto
como personagem. E que concomitantemente quase não se via mais atores brancos
interpretando atores negros, contudo, é possível discordar da autora em alguns pontos.
Primeiramente, é importante ressaltar a importância de seu livro para a análise das
relações étnicos-raciais na dramaturgia. Mas também é importante salientar, que ela quase
não menciona a Companhia Negra de Revista330, que era tanto criadora quanto produtora
e encenadora de suas peças, posto que a atividade deste grupo pode sim ser considerada
como uma valorização do ator negro para muito antes do Teatro Experimental do Negro
(TEN). Durante sua obra a autora, também não menciona os trabalhos de Di Chocolat,
com a Companhia Negra de Revista, o que é realmente um infortúnio, talvez se tivesse tido
acesso não terminaria sua obra creditando somente ao TEN, uma expressão máxima do
talento e da capacidade do negro em atuar. Também com quanto ao fato deles (TEN)
terem findado ao uso do blackface, talvez realmente o tenham feito em alguma medida,
mas não inteiramente, no teatro talvez de forma maior. Mesmo porque, se olharmos para
a televisão a novela A Cabana do Pai Tomas teve o ator Sergio Cardoso pintando o rosto
de preto, ou seja, fazendo o blackface de 1969 à 1970, anos após o TEN ter sido criado,
até mesmo a atriz Ruth Cardoso que também fez parte do TEN, participou da novela
enquanto coadjuvante do ator, e teve sua personagem diminuída na novela devido à baixa
aceitação do público (ARAÚJO, 2000).

330
A Companhia Negra de Revista foi um grupo de teatral formada somente por atores negros, que manteve
suas atividades de 1926-1927. Teve nomes como Grande Otelo e Pixinguinha enquanto parte da trupe,
fundada pelo ator e dançarino Di Chocolat.
535
E contemporaneamente no teatro temos o exemplo da Companhia Os fofos
encenam fazendo a peça A mulher do trem (2015).. Portanto, esse êxito que a autora
credita ao TEN talvez seja exagerado.
Mendes (1993) também entra na questão sobre o branqueamento não ter sido
expressado na dramaturgia daquela época. Contudo, é possível perceber que atores com o
fenótipo mais claro estavam sim ocupando o teatro, contudo não enquanto personagens
que só poderiam atuar dentro de algumas categorias. Melhor dizendo, o personagem com
fenótipos mais claro, poderiam acabar atuando em uma gama maior de personagens que
o ator negro, que enquanto negro só poderia atuar dentro da categoria de ex-escravizado.
Porém, ao encerrar seu livro a autora menciona uma questão pertinente:
aparentemente, a televisão e o cinema, ainda que com tantos estereótipos, deu mais espaço
ao negro que o teatro. E essa conclusão vem a partir do depoimento de atores negros, que
reconhecem que existem empecilhos para conseguirem triunfarem em suas carreiras sendo
que muitos deles creditam o fato ao racismo. Portanto afirmamos que esse racismo se
instaurou de forma inconsciente/consciente na população que já relega automaticamente
ao negro “locais imaginados de pertencimento”, seja isso, na vida artística, na vida pública
ou privada.
Assim, se estabeleceria um círculo vicioso em que não haveria bons papeis para
negros e os negros não conseguiriam desenvolver completamente suas capacidades cênicas.
Afinal não atuariam tanto quanto o necessário, ou estaria sempre atado aos mesmos
personagens:

O que acontece então, segundo Fontana, é que o ator negro, sem


possibilidade de atuar profissionalmente, não consegue desenvolver suas
potencialidades artísticas. E isso justifica a alegação de muito autor: não
há bons papéis para atores negros porque não há bons atores negros.
Estabelece-se, então, um círculo vicioso, de onde não se sai, omitindo-se
a existência de um comportamento ideológico fundamentando o fato: o
teatro que temos é um teatro de brancos...e para brancos. Logo, não há
lugar para negros (MENDES, 1993, p. 183)
Não há bons papéis para negros porque não há bons atores entre eles”,
alegam os autores. “não há bons papéis para atores negros” queixam-se
os atores (MENDES, 1993, p. 190).

Na dissertação de Monique Priscila de Reis (2017) é levantada a indagação sobre o


que seria fundamental “para pensar a conceituação do que seria o teatro negro como meio
de transformação do lugar dos negros e negras no universo teatral” (p. 46). E ela vai
exatamente a contraponto com MENDES (1988; 1993) ao afirmar que a distinção não está

536
sob a questão somente de fenotipia, mas ela considera a experiência, a memória cultural e
histórica, o lugar social do sujeito negro, que “se articulam no discurso que os representa e
os faz representarem-se simbolicamente e figurativamente” (MARTINS, 1995, p.84 apud
REIS, 2017, p. 46).

A experiência da alteridade negra reduzia-se, assim, à própria negação


do outro, projetado platonicamente como simulacro ou antônimo das
personagens socialmente reconhecíveis. Através dessas linhagens de
dramatização da persona negra, o teatro brasileiro veiculava e reificava
um discurso do saber que se propunha como verdade, estabelecendo
convenções de figuração e argumentos de autoridade cênica e
dramatúrgica que estabeleciam, a priori, um valor pejorativo e um lugar
marginal e periférico para o negro na cena brasileira, como tema,
personagem ou intérprete. O percurso do personagem negro, sempre à
margem da história nacional e de sua própria ação, e a do ator,
substituído quase sempre pelo intérprete branco pintado de negro, não
pareciam incomodar os agenciadores teatrais e o contexto cênico
brasileiros, por mais mobilizados que pudessem parecer autores,
diretores e atores em relação a outras questões políticas, ideológicas e
estéticas que instigavam o contexto teatral (MARTINS p. 226 apud
REIS, 2017, p. 48).

Logo, estas seriam aquilo que Reis (2017) considera, “Teias de relações discursivas
da cultura negra”. Sendo que o próprio fato dos negros se representarem seria uma
ferramenta contra o racismo no nível cênico e teórico. De acordo com Martins (2009 apud
REIS, 2017), a presença do negro no teatro até o início do século XX foi marcado pela
apresentação de uma representação deformada e estereotipada do negro. Ainda em linha
com a autora, desenvolvida a partir de uma visão etnocêntrica, “a representação da
personagem negra reflete o imaginário e as práticas ideológico-raciais brasileiras” (2017, p.
48). Isso também acontecia na dramaturgia que não assimilava a “herança cultural e
civilizatória dos povos africanos e se seus descendentes no Brasil” (MARTINS, 2009, p.
226 apud REIS, 2017, p. 48). Sendo aquilo que Reis (2017) define como a negação do
outro, que platonicamente funciona como uma representação oposta daquilo que é
“socialmente reconhecível” (REIS, 2017, p. 48).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante o artigo foram levantados pontos acerca da causa da invisibilidade e


estereotipação do negro. Em primeiro momento foi analisada quais são os efeitos da mídia
tanto na disseminação quanto na cristalização de estereótipos negros e em um segundo

537
momento foi analisada a construção deste negro enquanto personagem, fator que dificulta
grandemente pensar o negro enquanto um ator. Mesmo porque, se seu corpo já é a
representação de algo, atuar enquanto um personagem qualquer fora desse estereótipo
sempre foi uma grande problemática, o que é um fato interessante de se pensar, afinal se
toda a ideia presente no teatro é de se fingir ser algo que não é, o fato do ator negro pouco
acessar esses tipos de personagens é um problema muito mais profundo. Ao se levar em
consideração, que as manifestações culturais de cunho oral sempre estiveram presentes na
vida social do negro escravizado, através da forma de retratar sua história de forma mítica,
interpretativa, expressiva e também improvisada como com os “griots”331 (VANSINA,
2010). A inferioridade epistemológica creditada aos negros mostra uma total falta de noção
histórica de um povo que descende de um continente tão rico de conhecimento
instrumental e performático quanto à África.
Contudo, mesmo com uma representação inacurada, inautêntica das tradições da
comunidade negra, pelo fato de não sermos “tolos culturais” pois é possível ver as
experiências por de trás das deformações. “Em sua expressividade, sua musicalidade, sua
oralidade e na sua rica profunda e variada atenção à fala; em suas inflexões vernaculares e
locais; em sua rica produção de contra narrativas” (HALL, 2009, p. 324).
Portanto é a partir desse movimento contestatório que é trazido à tona um discurso
que é diferente que demonstra outras formas de representação. No entanto, é importante
fazer uma ressalva que mesmo que não sejamos “tolos culturais”, a mensagem difundida
pode não ser compreendida. Portanto aquilo que pode ser claramente um estereótipo pode
ser visto como uma verdade, também tem a possibilidade dessa representação ser a
primeira vez em que nos vemos identificados de alguma forma, gerando ainda assim um
impacto na pessoa que consome essas informações e infelizmente em muitos casos produz
um movimento de aceitação, principalmente nos mais jovens.
Assim, a invisibilização e o silenciamento vêm pelo mesmo caminho, são ambos os
fatores de desumanização que legitimam a impossibilidade, ou melhor, agem enquanto
ferramenta de impedimento de um grupo poder se representar, é o mesmo fator que
auxilia na objetificação do corpo negro. E aplicado ao nosso tema, é o ponto nodal que faz
o ator negro ser imediatamente um personagem já construído. Portanto, o que sobra aos
negros são os espaços “sobredeterminados” aos repertórios da cultura negra, que seria

331
“Griots são trovadores que reúnem tradições em todos os níveis e representam os textos convencionados,
diante de uma audiência apropriada, em certas ocasiões – casamento, morte, festa na residência de um chefe,
etc” (Vansina, 2010, p.150)
538
classificado dentro de uma “caixa” ou por sua herança cultural ou por suas condições
diaspóricas, sendo esses os únicos espaços e papeis performáticos a seguir. Portanto, a
cooptação, a apropriação e a rearticulação seletiva das ideologias europeias juntamente
como o patrimônio africano desenvolveram formas de ocupar um espaço social que no
momento lhe parecia alheio.
No livro Mídia e Racismo (2006) utilizado aqui no trabalho, há uma afirmação que
diz ser o racismo um problema não só de negros, mas de brancos e negros. Logo, a
problemática a se vencer seria para além da eliminação do racismo, mas de uma luta por
inserção; atitude essa em que teríamos de compreender como o aceitar a diferença,
respeitar a diferença, e acima de tudo não olhar as diferenças como fatos hierarquizantes,
melhor ou pior. Partimos do pressuposto que o negro não chegava nem a acessar locais
tidos como superiores a eles, porque eles teriam a capacidade de mudar a opinião pública.
É por isso que analisamos a Mídia enquanto cristalizadora de conceitos, afetando
diretamente naquilo que é compreendido enquanto cultura de determinadas sociedades.
Por isso, que a cultura popular negra opera de forma contraditória dentro de uma
marca da diferença na cultura popular (HALL, 2009). Esse significante “negro” seria o
local onde as tradições e lutas significariam a sobrevivência da diáspora, ou seja, da
experiência, da estética negra e das contra narrativas que foram tão duramente reprimidas
ou silenciadas, se representadas da forma que os negros assim a viam sem antes passar
antes pelo crivo daquilo que foi hegemonicamente construído.
E consequentemente ainda em linha com Hall (2009) se faz necessário aceitar a
ideia de diferença e não união no campo da cultura popular. Ao se desnaturalizar e “des-
historicizar” a diferença, o histórico e o cultural são confundidos com o natural, ou melhor,
com o biológico. Ao retirar o negro de seu contexto político, cultural e histórico ele é
alojado em uma categoria racial biologicamente constituída, é valorizado o racismo. Ao se
pensar estereótipos, essas “contra identidades” fixam significantes que representam no caso
negro arquétipos preconceituosos de masculinidade, ou sexualidade, indo em contraste
com a delicadeza e poder intelectual daquilo que é considerado pertencente ao sujeito
branco. Enfim, na história da literatura brasileira, logo, também nas artes cênicas o ator
negro está preso ao imaginário do que é ser negro. Enquanto, o ator ou atriz branco/a pode
ser quem quiser ser, até mesmo um raso personagem negro enquadrado dentro daquilo
que é entendido enquanto o estereótipo do ser negro. Enquanto essa mentalidade não
mudar as relações continuaram sendo afetadas por essas categorias hierarquizadas do que

539
é bom e ruim, bonito ou feio e a racismo continuará presente em várias esferas a sociedade
principalmente nas artes.

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542
DESENHANDO IDAS E VINDAS: MUDANÇAS NOS FLUXOS
MIGRATÓRIOS NORDESTINOS PARA O INTERIOR PAULISTA E
RESSIGNIFICAÇÕES DE “ORIGEM RURAL”

Iara Lalesca Calazans de ALMEIDA332

Resumo: Em oposição às perspectivas clássicas sobre o estudo das migrações, revisando conceitos
e abordagens teóricas correntes, esse trabalho visa contribuir para o entendimento da dinâmica
cultural nos fluxos migratórios internos e ainda compreender em que medida – se isso ocorre –, as
narrativas da terra natal, para aqueles que migram, têm papel fundamental na afirmação dentro do
novo espaço em que se fixam. Os grupos observados serão migrantes da região Nordeste da Bahia,
mais precisamente da microrregião de Serrinha, que se instalam na cidade de Américo Brasiliense,
interior de São Paulo. Américo brasiliense tem um amplo histórico de fluxos migratórios advindos
de diversas regiões do país, mas, que se concentram, principalmente, nas cidades limítrofes de
Serrinha. Diante de mudanças decorrentes da reestruturação do sistema produtivo, com a
mecanização do corte de cana – principal fonte de renda até então na cidade de Américo, a qual
colaborou para a recepção dos migrantes –, e consequentemente a fixação destes por conta dos
contratos por tempo indeterminado, é possível observar mudanças na dinâmica migratória
contemporânea. Com isso, tem-se a formação de bairros os quais são territórios de práticas culturais
próprias desses agentes migrantes que resultam em processos identitários de grupos específicos
dentro dos próprios bairros, atribuindo-lhes, dessa forma, sentidos particulares. É com essa
perspectiva que o trabalho visa o papel do migrante não como um conceito abstrato, mas como
agentes ativos no processo em que estão inseridos, os quais, possivelmente, se utilizam de
determinados referenciais imaginários e valorativos que propõe dar sentido a sua fixação dentro
dos espaços em se inserem desenhando, dessa forma, suas trajetórias migratórias.

Palavras-chave: Ação e representação. Dinâmicas culturais. Migrações internas.

INTRODUÇÃO

Esse trabalho se apresenta como resultado parcial de um projeto de pesquisa que


ainda se encontra em desenvolvimento. Desta forma, o debate está sustentado
principalmente por reflexões teóricas.
Tendo Américo Brasiliense como locus de análise, o presente trabalho espera
contribuir para as reflexões a respeito dos fluxos migratórios internos no Brasil. O grupo
de análise são migrantes da região nordeste da Bahia que deslocam para o interior de São
Paulo. Nesse contexto empírico específico, propõe-se, portanto, a proposta de se olhar
para a dinâmica cultural nos fenômenos migratórios, na tentativa de compreender de que
forma esses sujeitos se organizam e dão sentido às suas trajetórias, bem como a fixação no
local de destino.
MUDANÇAS NOS FLUXOS MIGRATÓRIOS E NOVAS PERSPECTIVAS

332
Graduanda em Ciências Sociais, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Campus de
Araraquara; iaracalazanns@live.com

543
Criado em 1922, o distrito de Américo Brasiliense obteve em 1965 sua
emancipação de Araraquara; localiza-se na região central do estado de São Paulo, tendo
como cidades limítrofes Araraquara, São Carlos e Santa Lúcia. É conhecido como “Cidade
Doçura” por conta de a atividade canavieira aparecer predominantemente, por muito
tempo, como a principal fonte de renda do município. Condição essa que teve como
consequência o fato de que o município se tornou o destino de um grande contingente de
migrantes vindos especialmente da região Nordeste – Bahia, Piauí e Maranhão333 - e que
tinham como objetivo o trabalho nas safras do corte de cana.
A partir do contexto dos municípios sucroalcooleiros do nordeste do estado de São
Paulo – como Américo Brasiliense –, em processo de reestruturação produtiva pela
mecanização do corte da cana, com mudanças nas atividades laborais e nos contratos de
trabalho, na medida em que a perspectiva de retorno dos trabalhadores nordestinos aos
locais de origem se restringe ou se fecha, observam-se mudanças no processo migratório,
como na dinâmica dos bairros formados por trabalhadores migrantes sazonais de certas
regiões do Nordeste – Bahia, Piauí e Maranhão –, em particular do nordeste da Bahia, a
partir de municípios que abrangem a microrregião de Serrinha.
Esses migrantes, contudo, atualizam práticas e valores culturais do local de origem
referenciados por narrativas que remetem a essa “origem”, bem como introduzem uma
nova prática do retorno periódico a esses locais, desde a qual reforçam essas narrativas. A
proposta da reflexão é a de apreender como tais atualizações de práticas e valores estão
relacionadas a reconfigurações das relações e das identidades, construídas na trajetória das
migrações, possivelmente atribuindo sentido a essa nova experiência de fixação no novo
local e do fechamento da possibilidade de retorno definitivo.
As abordagens clássicas dos estudos da migração não se apresentam como
suficientes para o entendimento de um fenômeno tão dinâmico. Marilda Aparecida de
Menezes (2002), nos apresenta a ideia de que a migração não deve ser considerada apenas
como um processo progressivo e linear, que compreende espaços polarizados, como lugar
de origem e lugar de destino. A exemplo, a autora analisa camponeses-trabalhadores
migrantes do interior da Paraíba que vivenciaram o processo migratório para a zona da
mata seca do estado de Pernambuco, rompendo com a ideia de que é uma tendência
natural entre esses sujeitos a passagem da migração sazonal diretamente para a migração

333. Disponível em < http://www.americobrasiliense.sp.gov.br/site/dados-do-municipio-2/.>. Acessado em 02


set 2016.

544
permanente, ou a perspectiva de que estes, necessariamente, passarão por um processo de
transformação o qual resultará na proletarização. Menezes ainda acrescenta que a migração
deve ser entendida enquanto um fenômeno que ocupa diversos espaços. “Nenhuma
análise convencional que trate apenas de uma única estrutura, cultura, comunidade ou
sociedade contemplará o fenômeno da migração” (MENEZES, 2002, p. 20).
Guedes (2015), ao desenvolver as ideias a respeito da noção de movimentos e
mobilidades irá pontuar os múltiplos significados que esses termos carregam. “Considero
assim como o movimento pode se referir à circulação e ao deslocamento espacial; à
agitação característica de certos contextos específicos; e às ideias de luta, autonomia e
evolução” (GUEDES, 2015, p. 01)

ATRIBUINDO SENTIDO ÀS IDAS E VINDAS

Na medida em que os fluxos migratórios se apresentam como complexos, podendo


agir sobre a vida e as representações dos atores envolvidos, esse trabalho visa contribuir
para o estudo da dinâmica cultural no processo de migração interna, levando em conta suas
transformações mais recentes. Entendendo a cultura enquanto "algo constantemente
reinventado, recomposto, investido de novos significados" (CUNHA, 2009, p. 239),
consideramos significante apontar a ação e o caráter intencional dos sujeitos migrantes ao
dar novas formas a sua existência: “Toda a análise de fenômenos culturais é
necessariamente análise da dinâmica cultural, isto é, do processo permanente de
reorganização das representações na prática social, representações estas que são
simultaneamente condição e produto desta prática” (DURHAM, 2004, p. 231).
Em face disso, o problema em foco é o de como migrantes do nordeste da Bahia
– microrregião de Serrinha – como os que se fixam em Américo Brasiliense, interior de
São Paulo, em busca de trabalho, reconstroem narrativas de um antigo rural, atualizando
suas representações a partir das experiências no novo espaço social. Ou seja, aqui
buscaremos compreender as especificidades das formas culturais que resultam do
relacionamento entre as experiências da terra natal e as que se desenrolam no local de
destino, agora transformado.
A mecanização recente da colheita, e a consequente reestruturação no processo de
produção, gerou uma mudança substancial na dinâmica migratória destes trabalhadores.
Se, outrora, a primeira geração migrava temporariamente para o corte de cana, a partir da
mecanização configura-se uma nova tendência nos deslocamentos destes, a de fixação em

545
Américo Brasiliense – como em outros municípios sucroalcooleiros da região, ao mesmo
tempo em que ocorre o retorno periódico, para visitas, aos locais de origem.
Uma mudança importante nesta dinâmica deve-se às novas formas de contratos de
trabalho, uma vez que a possibilidade de um trabalho por tempo indeterminado propõe a
fixação destes migrantes na cidade de destino:

O contexto socioeconômico regional remete-nos às reconfigurações


pelas quais tem passado o labor nos canaviais paulistas especialmente na
última década, e que têm efeitos sobre a chamada migração
“permanentemente temporária” (SILVA, 2005) de trabalhadores,
reorientando a dinâmica dos deslocamentos laborais e seus sentidos
(SALATA, 2016, p. 02).

Assim, o trabalho detém-se nas transformações dos fluxos migratórios em Américo


Brasiliense, na medida em que não são mais determinados pela temporalidade das safras
do corte de cana, sendo recorrente a permanência dos migrantes na cidade. Com isso, há
uma reestruturação na dinâmica do território e do espaço (SALATA, 2013).
É possível notar esse aspecto pela formação de bairros característicos de migrantes,
especialmente nordestinos. Em Américo Brasiliense, são famosos os bairros como São
José, Santa Terezinha, Luiz Ometto e Maria Luiza. Assim, é relevante analisar as mudanças
na dinâmica migratória, a partir desse contexto, especialmente a maneira como os ex-
trabalhadores volantes constroem esse espaço social.
Para entender esse processo, é fundamental destacar a importância dos laços com
familiares e conhecidos que já se encontram no local e compartilham referências e
experiências neste novo espaço. Também se faz necessário destacar a importância de redes
primárias de relacionamentos que se apresentam como fundamentais na prática migratória
destes trabalhadores (SALATA, 2016). Além disso, mesmo sem a perspectiva de retorno
definitivo, a constante volta ao seu local de nascimento, o que lhes proporciona certo
contato com as narrativas e os lugares de reminiscências, é uma característica relevante
desses sujeitos.

É precisamente enquanto lugar de origem que a terra natal permanece


como foco de amplo espectro de relações culturais. Fonte de valores e
identidades herdadas, a comunidade natal transcende outras fronteiras
culturais, conformando as ações e atitudes da parcela de seu povo que
vive em contextos urbanos e/ou estrangeiros (SAHLINS, 1997, p. 119).

546
A proposta, então, é de analisar o dinamismo desse processo cultural, pensar em
particular a condição daquele que migra enquanto um agente ativo neste processo,
contribuindo assim para a própria construção dos fluxos migratórios.
Para isso, compreende-se que a migração está inserida em um sistema de redes, as
quais delimitam a própria tessitura dos deslocamentos. Barnes (2009) desenvolve o
conceito de rede social, que pode ser apropriado para pensar sobre situações em que
"grupos persistentes, como partidos e facções, não estão formados, bem como em situações
em que indivíduos são continuamente requisitados a escolher sobre quem procurar para
obter liderança, ajuda e orientação" (BARNES, 2009, p. 176). Rede social é um conceito
que visa circunscrever a realidade concreta da vida social, uma vez que apresenta a rede
como "uma cadeia inter-relacionada ou um sistema de coisas não materiais" (Ibid., p. 178).
Aqui é possível pensar o conceito de capital social desenvolvido por Pierre
Bourdieu, pelo qual o autor analisa os benefícios angariados por agentes em virtude do
pertencimento a grupos.

O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão


ligados à posse de uma rede durável de relações mais ou menos
institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou,
em outros termos, à vinculação a um grupo, como conjunto de agentes
que não somente são dotados de propriedades comuns (passíveis de
serem percebidas pelo observador, pelos outros ou por eles mesmos),
mas também são unidos por ligações permanentes e úteis (BOURDIEU,
2007, p. 67).

Ao olhar para a bibliografia sobre o tema, podemos observar que muitos dos
estudos sobre migrações apontam a importância da cadeia de relacionamentos, como, por
exemplo, Durham (2004), segundo a qual a migração não pode ser compreendida
simplesmente como um deslocamento no mapa, mas como “um trânsito inserido em uma
rede de relações sociais" (DURHAM, 2004, p. 185). Na maioria das vezes, o migrante rural
não sai de seu local de origem completamente destituído de referências, antes migra com
a convicção de que chegará ao destino com a segurança de encontrar um trabalho e
conhecidos. Assim temos que, dificilmente, o migrante se arriscará em um lugar
desconhecido, uma vez que ele quase sempre “se orienta por notícias, informações e
relações" (DURHAM, 1973, p.138).
Cabe apontar como prática hoje recorrente entre os trabalhadores nordestinos que
ainda migram para a cidade de Américo Brasiliense, visar o município enquanto território
de contato na conquista de outras oportunidades de trabalho, uma vez que,

547
contemporaneamente, a agroindústria não se apresenta mais como o principal setor
empregatício na cidade. Atualmente é constante a inserção desses atores na indústria
metalúrgica. Nesse setor, são comuns as viagens para os denominados “trechos”, nos quais
essas indústrias desenvolvem serviços extra-município, muitas vezes em outros estados,
obrigando-os a fixarem-se por meses e retornar novamente quando a “obra” acaba.
As redes de relacionamentos se apresentam como importantes na acomodação
desses sujeitos. Assim, temos que as noções de espaço geográfico e espaço social se
embaralham, na medida em que escolher o local de destino tem por critério estar entre
parentes, compadres, amigos e conhecidos já instalados. O que não quer dizer que os novos
relacionamentos no local de destino, eventualmente, não provocarão impactos substanciais
na maneira de ser e agir dos jovens que migraram. Contudo, é importante ponderar de que
maneira essas novas experiências delimitarão a reconstrução de sua identidade, tanto a
individual como a de grupo.
Considera-se, portanto, a importância antropológica dos aspectos da ação e da
representação na cultura, assim como nos aponta Durham (2004). A cultura não pode ser
entendida como um produto acabado. Contrariamente, é fundamental considerar o modo
pelo qual é produzida, ou seja, enquanto um produto em constante produção. Segundo a
autora, uma visão antropológica é dada por uma “tentativa de apreender essa dinâmica no
modo como seres humanos empiricamente definidos incessantemente constroem e
reconstroem coletivamente sua própria existência, atribuindo-lhe significação”
(DURHAM, 2004, p.35).
Segundo Menezes, "o processo simultâneo de integração e exclusão na metrópole
faz com que os migrantes reavaliem certos traços da terra natal, atribuindo-lhes novos
significados” (MENEZES, 1996, p. 455). Ao mesmo tempo, "os migrantes também
expressam de forma crítica as relações de sociabilidade na metrópole. As relações
impessoais, instrumentais, e o anonimato são representados como discriminação,
desvalorização da pessoa" (Ibid., 456).
Portanto, podemos dizer que há uma dupla relação, na qual esses migrantes
atualizam suas referências culturais produzindo novos valores de acordo com o presente
em que se inserem, recorrendo, contudo, à linguagem das construções indentitárias
anteriores, reelaboradas na trajetória mesma da experiência da migração.
Na medida em que atualizam suas representações, utilizam-se de um referencial
“tradicional” para lidar com aquilo que não convém, ou para afirmar uma identidade que
lhes é particular em certos contextos, atribuindo-lhes, assim, novos significados. "Na

548
complexa dialética da circulação cultural entre a terra natal e os lares alhures, as práticas e
relações tradicionais ganham novas funções e talvez novas formas situacionais" (SAHLINS,
1997, p. 114).
Nesta perspectiva, Cunha reflete acerca do que denomina cultura de contraste
(CUNHA, 2009, p. 237). Segundo a autora, a cultura de determinados grupos étnicos que
estão em constante contato, não se perde ou se funde, mas adquire novas funções. Esse
limiar de novos contrastes determina diversos processos diferenciadores, como por
exemplo, a língua.

A língua de um povo é um sistema simbólico que organiza sua percepção


do mundo, e é também um diferenciador por excelência […] Ora,
quando não se consegue conservar a língua, constrói-se muitas vezes a
distinção sobre simples elementos de vocabulário, usados sobre uma
sintaxe dada pela língua dominante (CUNHA, 2009, p. 237).

No caso dos migrantes sob estudo, os traços diacríticos que escolhem podem ser
referidos a uma tradição, como a prática de criação de animais em terrenos alugados –
cavalos, galinhas e até mesmo gado – que dão características próprias aos bairros em que
se inserem, assim como as reuniões nos finais de semana, com músicas da região natal e a
venda de comidas típicas. Esses traços também podem ser valorativos, por exemplo,
quando ressaltam adjetivos característicos do local de origem e qualidades próprias e de
conterrâneos, tais como o fato de serem trabalhadores, honestos e caridosos.
Este trabalho propõe estudar o processo de migração não como algo que
necessariamente exclui referências de uma cultura de origem — até porque o conceito de
cultura transcende a tese de algo puro, orgânico —, mas sim como a construção de novas
representações e práticas, levando em consideração diferentes aspectos da cultura e, com
isso, de novas identidades que situem o migrante nas suas trajetórias de deslocamento e no
novo espaço social. De acordo com Durham, “… a cultura constitui, portanto, um processo
pelo qual os homens orientam e dão significado às suas ações através de uma manipulação
simbólica que é atributo fundamental de toda prática humana” (DURHAM, 2004, p. 231).
Portanto, é importante pensar a produção cultural de modo que ultrapasse
concepções essencialistas de identidade e cultura. Como hipótese, para estes migrantes, a
perspectiva de não retorno, ao mesmo tempo em que o contato permanente com seus
locais de origem, transforma este novo espaço, local de destino, em um contexto para novas
construções identitárias. E, sendo assim, neste contexto, pode ser observado o trabalho

549
sobre aspectos culturais para a elaboração de novas identidades, configurando novos
processos de identificação. Sobretudo porque cultura e identidade são noções
constantemente relacionadas, mas que necessariamente não carregam significados
idênticos.

Em última instância, a cultura pode existir sem consciência de


identidade, ao passo que as estratégias de identidade podem manipular
e até modificar uma cultura que não terá então quase nada em comum
com o que ela era anteriormente. A cultura depende em grande parte de
processos inconscientes. A identidade remete a uma norma de
vinculação, necessariamente consciente, baseada em oposições
simbólicas (CUCHE, 1999, p. 176).

O contexto da migração é fundamental para a compreensão da construção de novas


identidades. Esse contato com grupos de origens distintas, a disputa por trabalho e espaço
social, se dão ao mesmo tempo em que os migrantes compartilham experiências
migratórias sob referências comuns. Essas trocas podem servir de aparato para
diferenciação no novo território. "A identidade permite que o indivíduo se localize em um
sistema social e seja localizado socialmente"(CUCHE, 1999, p. 177).
Assim sendo, a observação aqui proposta aponta para a importância de se analisar
o processo de migrações internas no Brasil, a partir de um caso concreto emblemático da
migração sazonal para o corte da cana, sob uma perspectiva mais antropológica, na busca
por transcender a tese econômica e geográfica predominante de que os grandes fluxos
migratórios resultaram do próprio desenvolvimento econômico do país (DURHAM,
1973), marcado por desigualdades regionais, que teve como consequência primeira o
deslocamento involuntário de pessoas como abastecimento de mão de obra para grandes
metrópoles.
Com isso, o processo migratório é analisado sob uma perspectiva que coloque os
migrantes como sujeitos que desenham suas idas e vindas atribuindo-lhes novos
significados. Nesta perspectiva, ganham importância as redes de sociabilidade que se vão
traçando nestes processos de idas e vindas, uma vez que estas são responsáveis por dar o
aparato referencial aos "códigos culturais de seu local de origem, em especial no que se
refere às regras de parentesco" (NOGUEIRA, 2010, p. 22).
Dessa forma, importa considerar a formação de uma identidade específica desses
migrantes, - especialmente jovens —, referenciada à localidade de origem, em um novo
contexto. Ou seja, os valores mudaram, mas o processo identitário pode se referir a uma

550
narrativa de um rural original. De acordo com Menezes (1996) "… a migração não expressa
necessariamente uma perda de valores, mas representa muitas vezes uma reatualização de
certos traços da comunidade camponesa" (MENEZES, 1996, p. 455). Com isso, no
contexto em foco, caberá perceber se está se atualizando, ou não, e em que medida, essa
narrativa da origem rural. É o processo dinâmico da cultura que deve ser destacado, a
ressignificação dos símbolos e a autonomia na construção de novas identificações, por esses
migrantes.

O PROBLEMA CENTRAL E OS MEIOS DE ANÁLISE

Na medida em que as concepções nas perspectivas clássicas da literatura nacional


a respeito dos fluxos migratórios, se articulam, predominantemente, sobre questões causais
das saídas desses sujeitos do seu local de origem, - sob a visão hegemônica de áreas como
a economia e geografia – saídas qualificadas, mormente, como forçadas, pormenorizando
ou excluindo o poder de agencia dos sujeitos que integram os fluxos migratórios,
(DURHAM, 1973), o trabalho apresenta como é importante analisar de que maneira
aqueles que emigram participam ativamente do processo no qual estão inseridos, que tem
início nas redes de relacionamentos e vai até a fixação no local de destino.
Frente a isso, é possível observar que o foco de análise consiste em entender o
modo como atores empiricamente localizados se organizam nos fluxos migratórios, para
compreender, portanto, como migrantes até recentemente sazonais reorientam seus
valores e escolhas em diálogo com as macro-mudanças nos móveis da migração interna.
Como se relacionam no novo espaço social, como ressignificam suas representações e
redefinem seus códigos culturais, e se, nesse processo, fazem-nas presentes. Destarte,
identifica-se até que ponto fazer referência a uma cultura de origem, própria de uma região
rural, realmente é importante para esses migrantes na afirmação de identidades no novo
espaço social.
Marshal Sahlins (1997) apresenta novas perspectivas para se analisar a cultura e o
modo como grupos locais podem construir novos significados utilizando-se de seu
referencial “original”: “[…] a cultura assumiu uma variedade de novas configurações, e que
nela agora cabe uma porção de coisas que escapam ao nosso sempre, lento demasiado
entendimento” (SAHLINS, 1997, p. 58). Dessa forma, compreende-se o modo como o
grupo de migrantes observado, manipulam seus “valores e significados” (Ibid., p. 1) de
modo a organizar sua vida no novo espaço social em que se inserem.

551
Manoela Carneiro da Cunha colabora para a reflexão acerca dos usos da cultura,
quando populações tradicionalmente estudadas pela antropologia voltam seus olhares para
a própria “cultura”.

Mas a questão é essa: falar sobre " a invenção da cultura" não é falar sobre
cultura, e sim sobre "cultura", o metadiscurso reflexivo sobre a cultura. O
que acrescentei aqui é que a coexistência de "cultura" (como recurso e
como arma para afirmar identidade, dignidade e poder diante de Estados
nacionais ou da comunidade internacional) e cultura (aquela "rede
invisível na qual estamos suspensos") gera efeitos específicos (CUNHA,
2009, p. 373).

A concepção de atores empiricamente localizados que têm papel ativo no universo


em que estão inseridos apoia-se nas noções desenvolvidas por Eunice Durham a respeito
do conceito de “ação e representação”.

A especificidade da antropologia, tal como eu concebia, consistia na


tentativa de apreender essa dinâmica no modo como seres humanos
empiricamente definidos incessantemente constroem e reconstroem
coletivamente sua própria existência, atribuindo-lhes significação. A
apreensão desse processo de construção e reconstrução envolve
necessariamente o reconhecimento de sua multidimensionalidade, pois
nele as formas de sociabilidades, a produção material e simbólica e a
realidade pervasiva do poder estão simultaneamente presentes e
imbricadas (DURHAM, 2004, p. 35).

Ainda, o conceito de capital social de Pierre Bourdieu contribui para a análise das
redes de relacionamentos, na medida em que estas se apresentam como fundamentais nas
idas e vindas dos migrantes. Assim, é possível identificar de acordo com a perspectiva do
autor quais os ganhos angariados por esses sujeitos ao pertencer à essas redes.
Finalmente, deixando de lado um parti pris de reflexões teóricas, a tarefa de
desconstrução e reconstrução dos conceitos, levando em consideração os dados da
realidade empírica particular, se torna fundamental para melhores resultados.

CONCLUSÕES

552
A pesquisa que dá base para às discussões neste trabalho ainda se encontra em
andamento, desta forma, não possui conclusões. Contudo, de acordo com as reflexões
teóricas abordadas até o momento, é possível destacar a importância da revisão de
concepções tradicionais acerca do tema das migrações, conceitos e categorias que,
mormente, diminuem ou fecham substancialmente o leque de entendimento acerca da
problemática. Além disso, direcionar o olhar, nesse fenômeno, para os envolvidos
enquanto sujeitos capazes de dar sentido às suas idas e vindas, atribuindo significações aos
espaços que ocupam se mostra como essencial.

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TRADICIONAIS: REFLEXÕES SOBRE O
TRABALHO DE CAMPO EM TEMPOS DE
SUPRESSÃO DE DIREITOS
CONSTITUCIONAIS

557
ESPÍRITO SANTO DA FORTALEZA DE PORCINOS:
REAGRUPAMENTO E AUTOCONSTITUIÇÃO EM UM PROCESSO
DE TITULAÇÃO DE TERRA QUILOMBOLA

Sheiva SORENSEN334

Cilea Santos LIMA335

Resumo: O presente trabalho é fruto da atuação das autoras no âmbito de convênio estabelecido
entre INCRA e UFSCar, que visa à produção de Relatório Técnico de Identificação e Delimitação
de uma Comunidade Quilombola do estado de São Paulo. Desta perspectiva, a discussão ocupa
lugar nos trabalhos acerca das chamadas comunidades remanescentes, tratando-se, em específico,
de um grupo de parentes autoidentificado como remanescentes do quilombo de “Espírito Santo
da Fortaleza de Porcinos”. Em cenário caracterizado pelos órgãos de regulamentação fundiária
como uma situação de desterritorialização, parcelas significativas dessa parentela encontram-se
atualmente em processo de disputa por titulação de terras desvelando uma situação, senão
exclusiva, bastante peculiar. As terras em disputa localizam-se no município de Agudos, interior do
Estado de São Paulo. Entretanto, os membros da família encontram-se atualmente dispersos em
algumas cidades, incluindo a própria Agudos, Bauru e outros municípios do entorno. A trajetória
dos Porcinos no interior do estado de São Paulo tem seus primórdios no contexto da sociedade
escravista, período no qual a paisagem da região era ainda majoritariamente tomada por imensas
fazendas e sesmarias. No final do século XIX, ex-escravizados da então chamada fazenda Areia
Branca tornaram-se donatários de uma porção significativa de terras e desde então, em situações
diversas, esse grupo familiar (que de uma forma geral se autodenominam Porcinos) tem vivenciado
um movimento marcado por dispersões e reagrupamentos, com especial destaque para o recente
contexto, isto é, sua assunção quilombola somada à busca por direitos territoriais. As histórias
narradas pelos Porcinos, bem como o conteúdo dos autos de ações judiciais, evidenciam que os
antepassados dos atuais membros do grupo residiam nas terras doadas desde 1886, ano da referida
doação por escritura testamentária, até no mínimo 1969, data que acreditamos marcar a inicial
dispersão involuntária que obrigou os descendentes dos ex-escravizados a se deslocarem para
outros espaços, entre outras situações, empregando-se em usinas de cana na região. O pleito pela
titulação, bem como a assunção quilombola do grupo envolve uma confluência de elementos como
militância política, dispersão, trajetória familiar, reagrupamentos, produção de parentesco e
experimentação com a burocracia estatal. Atenta-se para os desafios e particularidades do trabalho,
isto é: gente dispersa em diferentes graus de adesão ao discurso das lideranças, embates jurídicos,
interlocução com o Ministério Público Federal, INCRA e CONAQ.

Palavras-chave: Quilombo. Autoconstituição. Laudo antropológico. Porcinos.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho é fruto da atuação das autoras no âmbito do convênio


estabelecido entre INCRA e UFSCar, que visa à produção de Relatórios Técnicos de

334
PPGAS-UFSCar. Doutoranda em Antropologia Social; shesorensen@hotmail.com. (CAPES)
335
UFSCar. Especialista em relações internacionais e ciências criminais, bacharel em direito e graduanda em
Ciências Sociais; cilealima@hotmail.com.
558
Identificação e Delimitação de Comunidades Quilombolas do estado de São Paulo336. A
reflexão ocupa lugar nos trabalhos acerca das chamadas comunidades remanescentes,
tratando-se, em específico, de um grupo de parentes autoidentificado como remanescentes
do quilombo de “Espírito Santo da Fortaleza de Porcinos”.
Em cenário caracterizado pelos órgãos de regulamentação fundiária como uma
situação de desterritorialização, parcelas significativas dessa parentela encontram-se
atualmente em processo de disputa por titulação de terras desvelando uma situação, senão
exclusiva, bastante peculiar. As terras em disputa localizam-se no município de Agudos,
interior do Estado de São Paulo. Entretanto, os membros da família encontram-se
atualmente dispersos em algumas cidades, incluindo a própria Agudos, Bauru e outros
municípios do entorno.
As discussões acadêmicas em torno das chamadas comunidades remanescentes de
quilombo ganharam fôlego na esteira da promulgação da Constituição Federal de 1988.
Através do art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o Estado brasileiro
passou a reconhecer a existência de grupos dotados de direitos específicos e demandas
próprias, recomendando, portanto: “Art. 68- Aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva,
devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos” (CONSTITUIÇÃO FEDERAL
BRASIL, 2003).
Nesse contexto, como colocou Arruti (1997), os trabalhos que vinham sendo
produzidos já durante a década de 80, especialmente na USP, passam a operar com o
conceito de “etnicidade”, invertendo assim a questão dominante da década de 70, ou seja,
não se tratava mais de comunidades rurais cuja particularidade era a de serem negras, mas
de “comunidades negras que tinham a particularidade de serem camponesas” (ARRUTI,
1997, p. 13). Ainda de acordo com o autor, o campo de estudos sobre os negros passa a
ter de responder a novas demandas originadas na luta política e um número crescente de
antropólogos passa a investir no tema337.

336
O objetivo deste convênio é a realização dos Relatórios Técnicos de Identificação e Delimitação (RTID)
das comunidades remanescentes de quilombo do Carmo (São Roque- SP) e de Porcinos (Agudos-SP), como
são mais conhecidas, em consonância com o Termo de Execução Descentralizada celebrado entre a
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), conforme D.O.U. de 19 de outubro de 2015, p. 143.
337
No ano de 1994, o GT sobre Comunidades Negras Rurais da ABA anunciou um empreendimento
analítico acerca da ampliação da noção de “remanescentes
559 de quilombo”. Essa “ressemantização” definia tais
comunidades como “grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus
modos de vida característicos num determinado lugar, cuja afinidade se define por uma referência histórica
comum, construída a partir de vivências e valores partilhados. Nesse sentido, eles constituíram grupos étnicos,
O conceito de grupo étnico surge, então, associado à ideia de uma
afirmação de identidade (quilombola) que rapidamente desliza
semanticamente para a noção da auto-atribuição, seguindo o exemplo do
tratamento dado à identidade indígena (ARRUTI, 2006, p. 94).

De fato, a inclusão da questão dos remanescentes na constituição federal criou uma


nova categoria de sujeitos de direito ao mesmo tempo em que forçou as comunidades a
buscarem reconhecimento através de interpretações e definições exteriores. “Na história
de quilombolas esse curso histórico é familiar: o reconhecimento pelo outro pode significar
uma ação do Ministério Público, de organizações políticas, de instituições do Estado”
(ALMEIDA, 2014, p. 22). Desta lógica, decorre o fato de que os grupos em questão
passam a se deparar com um aparato jurídico e práticas institucionais via de regra
desconhecidos, lidando necessariamente com a obrigatoriedade de “vir-a-ser”.
A autoconstituição ou a emergência de grupos denominados remanescentes de
quilombo se desenvolve paralelamente à tomada de consciência política, acesso a certo
conhecimento, em menor ou maior grau, das especificidades jurídicas-administrativas e das
alianças e relações que os quilombolas estabelecem entre si e com diversas instâncias e
atores. Com efeito, atenta-se para a necessidade de descrever e entender o processo de
autoconstituição de comunidades “do ponto de vista de suas ontologias em elaboração”
(ALMEIDA; PANJOTA; COSTA, 2013, p. 129). Desta perspectiva, o presente trabalho
busca refletir acerca do processo de assunção quilombola junto a uma extensa e dispersa
parentela de descendentes de ex-escravizados residentes no município de Agudos e região
(SP).
Cabe mencionar que apesar da participação na produção de um laudo
antropológico (em elaboração) ter possibilitado a inserção em campo, não ignoramos as
dificuldades e especificidades que tal situação impõe a pesquisa, uma vez que, dentre outras
questões, o antropólogo

[...] ao entrar em campo para uma perícia ou para um laudo, ele já está
vinculado, de um lado, a um determinado conjunto de demandas do
grupo (ou da fração do grupo ligada à tais demandas) e, de outro,
comprometido com um padrão de persuasão discursiva próprio às
instâncias do Estado, pautado pelos critérios de verdade e pela linguagem
administrativos ou jurídicos (ARRUTI, 2005, p.129).

isto é, um tipo organizacional que confere pertencimento por meio de normas e meios empregados para
indicar afiliação ou exclusão, segundo a definição de Fredrick Barth” (ARRUTI. 2006, p. 92).

560
Levando-se em conta os diferentes fatores implicados neste caso, busca-se iniciar a
discussão acerca dos sentidos e efeitos da autoconstituição quilombola experimentados no
quadro de uma peculiar dinâmica de dispersão, e reagrupamento do grupo familiar desde
as primeiras décadas do séc. XX.
Fora do âmbito dos estudos quilombolas, mas de grande importância para a
discussão, destacamos aqui a etnografia de Mariana Panjota (2004) sobre um grupo de
parentes que atendem pelo nome de Os Milton, seringueiros da reserva extrativista
(RESEX) do Alto Juruá, Estado do Acre. A etnografia da autora toma como ponto de
partida a trajetória dos ascendentes e descendentes de Milton e de Dona Mariana,
reconstruindo a partir da organização e movimentação dessa família a história de mais de
cem anos dos seringais acreanos. Através das biografias de alguns dos parentes, a autora
descreve as crises e os apogeus da borracha, a circulação de trabalhadores e de
mercadorias, os padrões de posse e ocupação das terras, a dinâmica de parentesco, o
contato entre caboclos e cariús e os subsequentes conflitos, jamais neutralizados, não
obstante a criação da RESEX em 1990. Panjota classifica os Milton enquanto uma “família
ampliada”, uma “coalização política de parentes”, “isto é, “um grupo cujo principal
patrimônio são seus próprios integrantes e sua coesão e solidariedades internas”
(PANJOTA, 2004, p. 349).
A importância da obra para a presente discussão evidencia-se, por um lado, por
conta dos objetivos da própria temática, isto é, a trajetória de um grupo de parentes.
Contudo, é sobretudo por conta da experiência recente vivenciada pelos Milton que o
trabalho de Panjota se mostra relevante aqui. Atualmente, o grupo familiar dos Milton,
tendo em vista sua ascendência indígena, reivindica sob a denominação de índios
Kuntanawa o reconhecimento de um território próprio, a ser desmembrado da RESEX –
evidenciando, no termo da autora, um “ressurgimento étnico” (PANJOTA, 2004, p. 378).
Tal contexto tem marcado, como descreve Panjota, a participação dos membros do grupo
familiar em reuniões organizadas por lideranças indígenas, além da exibição pública de
seus corpos com pinturas, ornamentados com cocares e outros elementos materiais que
atuam como marcadores de uma diferenciação. São contextos de autoafirmação em que a
exibição pública e a necessidade de provar a existência, igualmente ao caso dos Porcinos,
comportam em si contextos e processos não lineares de autoconstituição.

561
DA DOAÇÃO DE TERRAS À DISPERSÃO: O HISTÓRICO DA COMUNIDADE
QUILOMBOLA DE PORCINOS

A trajetória dos Porcinos no interior do estado de São Paulo tem seus primórdios
no contexto da sociedade escravista, período no qual a paisagem da região era ainda
majoritariamente tomada por imensas fazendas e sesmarias. No final do século XIX, ex-
escravizados da então chamada fazenda Areia Branca tornaram-se herdeiros de uma
porção significativa de terras e desde então, em situações diversas, esse grupo familiar tem
vivenciado momentos marcados por dispersões e reagrupamentos, com especial destaque
para o recente contexto, ou seja, sua assunção quilombola somada à busca por direitos
territoriais.
A narrativa acerca da referida herança remete ao ano de 1886. Conforme relatos
orais e documentos históricos, os senhores de escravos Antônio Balduíno Ferreira e sua
mulher Francisca Cândida de Jesus eram os proprietários dessas terras em decorrência de
doação dos pais de Antônio, juntamente com uma herança do pai de Francisca e também
por compra a Leonel dos Santos Simões, ocorridas em 1857. O conjunto das terras
recebidas e adquiridas pelo casal representava a Fazenda Areia Branca que,
posteriormente, foi doada por testamento aos escravizados,

[...] instituem-se entre si e reciprocamente como universais herdeiros


visto não terem eles testamenteiros necessários devendo o sobrevivente,
dos bens que possuem gozarem do uso e fruto dos mesmos bens, ficando
os seus escravos Justino, Francisca e os filhos destes, Rita, Quintiliano,
Catarina, Julia, Serafim, Mariana, Camillo, Norberta, Bôa-ventura,
Anna, Joaquim, e a ingênua Carolina, e a escrava Luisa, libertos com a
condição de servirem ao testador sobrevivente durante a sua vida, e que
por morte deste ficarão como herdeiros universais, com a exceção de
carro, animais, gado, e direito e uso e fruto sem que possam delas
fazerem venda, devendo os mesmos bens serem nas mesmas condições
transferidos à mesma prole em direitos sucessórios. (Transcrição de
Escritura testamentária de Antonio Balbuino Ferreira formalizada em 30
de maio de 1886, localizada no livro de notas n.5, às folhas. 24, do
Tabelião pela do Distrito de Piatã, e arquivada no cartório de Registro
Civil de Agudos).

Em posse das terras e livres do trabalho compulsório, os Porcinos organizaram-se


de modo a ocupar a extensa quantidade de terras com plantações e pequenas pastagens.
Com o passar dos tempos empreenderam melhorias como a reconstrução das casas de
barro e sapê construídas pelos antepassados, bem como a manutenção das terras como
área de uso comum. É certo também que os Porcinos circulavam pela região, uma vez que

562
em muitos casos deixavam a terra por determinado período para viver em outras cidades,
onde estabeleciam variados tipos de relações, realizavam trabalhos informais e depois
retornavam338, além de situações comuns em que membros da família trabalhavam para
proprietários de terras locais.

Nesse contexto, a origem da comunidade de Espírito Santo da Fortaleza de


Porcinos encontra-se na ascendência em comum dos atuais membros da família -
descendentes dos ex-escravizados herdeiros da Fazenda Areia Branca.
Até o presente momento, foi possível concluir que a comunidade quilombola
organiza-se através de subdivisões de ramos familiares que teriam se formado a partir de
descendentes dos filhos dos escravizados Justino e Francisca. Contudo, as referências
acerca dos antepassados não se limitam aos filhos de Justino e Francisca. Antonio Porcino
de Mello, bem como Augusto Porcino de Mello são outras duas importantes figuras citadas
nas narrativas acerca da fundação e organização do grupo. Ao que tudo indica, Antonio
Porcino de Mello, bem como seu irmão Augusto, eram escravos de João Antonio de Mello,
sogro de Antonio Balbuíno, doador da Fazenda Areia Branca. Nota-se que João teria
passado o sobrenome Mello para os escravizados Antonio e Augusto, assim como Antonio
Balduino Ferreira fez com a maioria dos filhos dos escravos Justino e Francisca:

338
Informações obtidas em depoimentos presentes em ação de uso capião, (ajuizada no ano de 1963/ 2º Vara
Cível da Comarca de Agudos-SP) bem como através de relatos atuais de membros do grupo familiar.

563
Quintilliano Antonio Ferreira, Serafim Antonio Ferreira, Camilo Soares Ferreira, Boa
Ventura José Ferreira e Joaquim Antonio Ferreira.

Isso significa dizer que tanto Justino e seus descendentes, como Antonio e Augusto
Porcino de Mello são oriundos de um grupo muito próximo, ou mesmo de um único
grupo, de ex-escravizados. Nesse contexto, e muito provavelmente por conta da relação de
proximidade que estes escravizados estabeleciam entre si, Antonio Porcino de Mello casou-
se com duas das filhas de Justino e Francisca: primeiramente se casa com Julia e após a
morte desta acaba casando-se com Carolina. A história associada ao grupo em questão,
ainda que não figure nas páginas de uma história oficial de Agudos, deixou marcas na
memória local, traduzidas em uma ampla rede de relações que extrapolam o núcleo
familiar formado pelos atuais descendentes e evidencia a porosidade dessas fronteiras.
Para além da memória de membros da família e moradores da cidade de Agudos
acerca do histórico de surgimento e organização do grupo, parte da história dos Porcinos
encontra-se registrada em um conjunto de documentos reunidos por membros da família.
A leitura nativa acerca destes documentos parece estar relacionada com a formulação de

564
um discurso local sobre o passado, bem como com a autoconstituição experimentada no
presente. Entre os documentos estão recortes de jornais antigos, mapas, diagramas
genealógicos, relatórios e fotos, além de documentos cartoriais e processos judiciais, entre
eles, Ações Judiciais de Usucapião, que tramitaram na Comarca de Agudos-SP nos anos
60. Nesse processo judicial aparecem como confrontantes alguns supostos descendentes
dos herdeiros de Antônio Balduíno Ferreira e Francisca Cândida de Jesus, antigos
proprietários da Fazenda Areia Branca.
É possível afirmar que os desdobramentos da referida sentença de usucapião
levaram à perda de 600 alqueires de terra, e, segundo histórias narradas por membros da
família, é provável que no passado, parentes tenham sido cooptados e levados a erro por
representantes de grandes empreendimentos interessados nas terras em questão. Nessas
circunstâncias, apesar da ética expressa na época pelos mais velhos - "terra de preto não se
vende" -, os Porcinos involuntariamente e sem conhecimento, terminaram cedendo os seus
direitos sobre parcelas inteiras de suas glebas, e até mesmo todos os seus quinhões da
herança.
As histórias narradas pelos quilombolas, bem como os autos da referida ação
judicial, evidenciam que os antepassados dos atuais membros do grupo residiam nas terras
herdadas desde 1886, ano da referida doação por escritura testamentária, até no mínimo
1968, data que marca a inicial dispersão involuntária que obrigou os descendentes dos ex-
escravizados a se deslocarem para outros espaços, entre outras situações, empregando-se
em usinas de cana na região.
Não obstante, é possível apontar a relação entre o contexto de dispersão do grupo
familiar, - tendo em vista a expropriação das últimas glebas - com uma nova fase de
crescimento do município de Agudos, marcada pela chegada, nos anos 60, de grandes
empreendimentos como a indústria de silvicultura e a posterior consolidação do polo
agroindustrial. O entorno das terras anteriormente ocupadas é tomado por grandes
empresas, pelo agronegócio e por condomínios, revelando a intensa especulação
imobiliária e o conflito de interesses, assim como, de projetos e de usos que envolvem a
região tradicionalmente ocupada desde o séc. XIX.

REAGRUPAMENTO E AUTOCONSTITUIÇÃO

De acordo com a memória oral da Comunidade dos Porcinos, seus ascendentes se


viram obrigados a saírem de suas casas na Fazenda Areia Branca, e a procurarem outros

565
locais para morar e trabalhar, haja vista a caracterização de um processo de expulsão, e as
plantações de pinus que começaram a invadir os limites de suas residências nas terras
herdadas. Ainda segundo os relatos orais, os últimos quilombolas, já idosos, saíram da
Fazenda Areia Branca em 1969, sendo que somente fizeram isso no momento em que
ficou impossível continuar ali vivendo, “com pinus praticamente entrando em sua casa”.
Os demais quilombolas foram expulsos de suas casas na Fazenda Areia Branca em
1964 e se dirigiram ao sitinho, local considerado por eles como gleba dentro da Fazenda
Areia Branca, onde outros quilombolas residiam, e que se tornou abrigo às famílias
desalojadas. Através de suas memórias, os quilombolas narram que a Fazenda Areia
Branca tinha cerca de 1500 (mil e quinhentos) alqueires em seu total, composta de
inúmeras famílias de ex-escravizados e seus descendentes, afirmando, ainda, os mais
velhos, que mesmo em um período de suas vidas vivenciado durante a infância, se lembram
do temor sentido pela comunidade em relação às pessoas “que plantavam pinus”.
O sitinho também foi doado aos quilombolas em 1893 e atualmente é objeto de
Ação de Reintegração de Posse que tramitou na Justiça Federal de Bauru e encontra-se em
fase recursal no Tribunal Regional Federal da Terceira Região. Em 1960, nesse local de
reagrupamento dos quilombolas desabrigados, já moravam outros pretos ex-escravizados,
como Diógenes Batista da Cunha, sua esposa e demais familiares, configurando uma área
contínua de moradia e convivência tradicionais existente desde o final do século XIX,
repetindo a mesma dinâmica da Fazenda Areia.

566
Através de relatos orais e registros cartoriais, é possível observar que ambos os
espaços existiam concomitantemente até as importantes expropriações sofridas que se
iniciaram em meados dos anos de 1960. Em dezembro de 2010, em virtude de uma
decisão liminar, membros da Família Porcinos que ainda permaneciam neste fragmento
de terra foram retirados desse último espaço que lhes restava.
Até então, essa área havia se consolidado como o centro de um movimento de
resgate cultural, onde os quilombolas mantinham plantações, empenhavam-se na
construção e reconstrução de casas, se reuniam para pensar formas de acesso às políticas
fundiárias ou para atualizar e estreitar relações. Se em um passado não muito distante o
sitinho foi como um pronto-socorro, no tempo atual ele assumiu um papel fundamental
na manutenção e resgate de memórias: um espaço de construção de parentesco, de
reconhecimento e da idealização de futuros projetos.
A convivência familiar experienciada no sitinho parece remeter ao que Overing e
Passes (2000) chamaram de convivialidade, uma vez que, aciona os sentimentos imbricados
na experiência de compartilhar um mesmo modo de viver. Segundo os autores, a
convivialidade define o modo de socialidade amazônico comportando elementos como
experiências cotidianas, amizades, comensalidade e a valorização de uma vida feliz. Entre
os Porcinos, a convivialidade experimentada no sitinho e nas suas relações cotidianas se
expressaria especialmente na construção e manutenção de afetos, de relações de
parentesco, na noção de comunidade e solidariedade familiar e em situações de resistência.
As dimensões emocionais, nesse sentido, atuam para além do compartilhamento de
substâncias genéticas (Carsten, 2000), uma vez que, para as pessoas,

[...] parentesco é onde se produz boa parte do seu material imaginativo.


Enfim, é também onde elas vivem suas vidas, mas é onde pensam sobre
o futuro, o passado, onde elas especulam sobre o que poderia ser se tudo
fosse maravilhoso, mas também o que é terrível em suas vidas
(CARSTEN, 2014 p.156).

O processo de auto identificação dos Porcinos ou, em outras palavras, sua assunção
quilombola, ganhou força em 2007 a partir do contato de alguns parentes com a agenda
política de lutas e regularização fundiária para fins de reforma agrária. Em um evento sobre
agricultura familiar promovido pela AGRIFAM, uma das lideranças veio a tomar
conhecimento que a condição histórica e atual dos Porcinos poderia ser definida enquanto
a de remanescentes de quilombo, o que vinha a fornecer uma nova alternativa às demandas
territoriais do grupo. A situação aqui apresentada desencadeou significativos

567
desdobramentos nas trajetórias pessoais de membros dessa família, que a partir de então
passaram a empenhar-se pessoalmente na luta pelos direitos dos quilombolas. Através da
militância e de suas “andanças” (MOURTHÉ, 2015) irão se esforçar para construir um
leque variado de alianças.
Tal contexto vem desencadeando um processo de autoidentificação e
autoconstituição quilombola, o que ocorre, simultaneamente, com a intensificação das
relações entre os Porcinos e órgãos como a Fundação Cultural Palmares, o INCRA, o
Ministério Público Federal e a própria CONAQ (Coordenação Nacional das
Comunidades quilombolas) nos últimos anos. Desta perspectiva, tomando de empréstimo
a definição de Almeida (2014), podemos dizer que os quilombolas que emergiram em
Agudos seriam “entes interacionais”, cuja existência depende do reconhecimento de “um
outro” e “para o outro”. Nesse ponto, cabe destacar a necessidade implícita de “tornar-se”
quilombola por diferentes meios, incluindo tanto instituições públicas em si mesmas, bem
como os documentos que produzem, isto é, laudos e pareceres oficiais. Contudo, essa
autoconstituição mediada parece comportar aquilo que Ian Hacking (1995) chamou de
“efeito de looping”. Esse autor classificou como “efeito de looping” o fenômeno que diz
respeito ao modo como pessoas, ou “tipos humanos”, reelaboram, em suas experiências,
as tipificações externas produzidas sobre elas. Nesse movimento, as categorias, ao invés de
necessariamente produzirem estereótipos, produzem efeitos locais imprevistos. Não se
trata, portanto, de mera instrumentalização de memórias (MOURA, 2012) e identidades:
quilombolas e outros entes interagem com tais classificações – e o que era inicialmente
constituição “para outro” vai paulatinamente transformando-se em constituição “para si”,
ou ainda, conforme formulação de Mauro Almeida, em uma “luta para suprimir ou negar
esse existir-no-outro”. (2013, p. 17).
Cabe destacar que os Porcinos passaram a externalizar sua condição quilombola,
sobretudo, após a configuração de uma nova situação de conflito, cujo ponto culminante é
a perda dos últimos alqueires do território identificado como tradicional (2010). Dessa
perspectiva, trata-se “do aparecimento de entes sociais em situações de incerteza e de
perigo” (ALMEIDA, 2013, p. 24), o que os inserem em uma guerra (ou conflito) em que
o primeiro passo é provar a sua existência. São guerras ontológicas, das quais processos de
expropriação, documentação histórica e formulações locais da realidade entram em
contato, produzindo eventuais fraturas e/ou coalizões.

568
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os percursos do que seria uma situação de autoconstituição sinalizam para a


necessidade de tratar etnograficamente tanto o processo como os possíveis “resíduos”
envolvidos na assunção quilombola, uma vez que o grupo em questão se articula por
intensos laços de parentesco e vizinhança muito anteriores à atual situação. Em outras
palavras, também interessa apreender o que sobra para além do que é mobilizado enquanto
identidade auto-atribuída, isto é, aquilo que escapa, tendo em vista a inexistente “situação
uniforme de grupo étnico” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 121). O caso comporta
questões e mediações específicas não apenas entre os quilombolas, mas com os percursos
da pesquisa etnográfica e também com a própria figura do antropólogo, via de regra,
instado a colaborar na produção de laudos e relatórios técnicos.
A assunção quilombola dos Porcinos associa-se a um movimento de
reagrupamento, como apontam os próprios membros da família, o qual se dá certamente
na chave da experimentação. Dessa perspectiva, os Porcinos parecem refletir atualmente
sobre as trajetórias de seus antepassados ao mesmo tempo em que idealizam novos
projetos. Parentesco, ascendência comum, dispersão e reagrupamento, convergem neste
processo com o conceito de quilombo e com o “tornar-se” quilombola.

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570
INTELECTUALIDADE INDÍGENA E A EMERGÊNCIA DE UMA
CIÊNCIA NATIVA

Priscila da Silva NASCIMENTO339

Resumo: Analisamos neste trabalho a trajetória de constituição de uma ciência nativa ou paradigma
investigativo indígena proposto por intelectuais indígenas de países como África do Sul, Nova
Zelândia, Austrália, Estados Unidos e Canadá a partir das décadas de 1960 e 1970. Críticos das
categorias teórico-metodológicas consolidadas pelo fazer científico ocidental para pensar processos
que envolvem os povos indígenas propõem a construção de uma epistemologia própria, que ora
dialoga, ora opõe ou mesmo amplia a ciência tradicional, pluralizando as perspectivas de
compreensão da realidade social. Assim, questionando o sujeito epistêmico moderno, a saber,
branco, sem sexualidade, gênero ou etnia e seus fundamentos epistemológicos baseados na
racionalidade, objetividade e universalidade advertem para a necessidade de se construir uma
ciência onde questões relativas ao universo cosmológico não sejam ignoradas nos estudos sobre a
realidade indígena. Neste sentido, acionam a noção de relacionalidade presente em distintas
cosmovisões indígenas na qual a realidade é entendida como uma totalidade onde tudo o que vive
se encontra unido. Depreende-se desta epistemologia relacional a importância de fatores como o
contexto, as cosmovisões ancestrais, as relações interpessoais e com os seres não humanos e o
conhecimento como um procedimento coletivo. No fazer científico apontam para a importância
da língua nativa como lugar de enunciação, uma vez que, todo conhecimento produzido sobre os
indígenas deve ter como preocupação uma ampla divulgação entre os mesmos e a ideia de justiça
social, na qual, há uma indissociabilidade entre atividade científica e militância. Toda pesquisa,
neste sentido, deve passar por códigos de segurança e proteção em favor dos povos indígenas, seus
conhecimentos e territórios, garantindo-se assim, que sejam os autênticos beneficiários.

Palavras-chave: Ciência. Indígena. Epistemologia.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho apresento algumas reflexões iniciais presentes na discussão que me


proponho a realizar em minha tese de doutorado atualmente em andamento, mas antes de
adentrar propriamente no tema gostaria de expor o percurso que me trouxe para este tema
ainda pouco estudado no país.
O interesse por estudar o potencial intelectual no discurso de indígenas surgiu ainda
no mestrado. Ao analisar as demandas das mulheres indígenas do movimento zapatista no
México na década de 1990, percebi que as reivindicações e estratégias de luta das indígenas
zapatistas eram, na maioria das vezes, muito distintas daquelas dos movimentos de
mulheres que vivem sob o espectro cultural ocidental. Debruçando-me sobre os
documentos reivindicatórios elaborados por elas, deparei com o alto grau complexidade

339
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista
(UNESP), Araraquara/SP. Pesquisa financiada pelo CNPQ. E-mail: pri18silva@ig.com.br

571
de suas demandas, onde questões relativas ao universo cosmológico indígena
desempenham um papel de extrema importância. Um exemplo é o uso da categoria
corazón, que no mundo ocidental se encontra associado à ideia de amor romântico e não
goza de status científico, para caracterizar a existência de uma intíma relação entre
sabedoria, memória e conhecimento340.
Estas observações sugeriram-me inúmeras outras questões. A mais significativa diz
respeito aos limites das categorias teórico-metodológicas consolidadas pelo fazer científico
ocidental para pensar processos que envolvem os povos indígenas. Até que ponto é
possível, por exemplo, utilizar noções como a de racionalidade, objetividade,
universalidade, indivíduo, entre outras, para compreendê-los? A própria noção de
“indígena”, que de acordo com Bonfil Batalla (1972) denota a condição de colonizado, é
também passível de tal questionamento341.
A cosmovisão e sabedoria indígenas não podem ser ignoradas nos estudos sobre a
realidade indígena. Depreende-se disto que toda análise séria a respeito de determinado
grupo indígena deva levar em consideração seu universo simbólico e o que os próprios
indígenas dizem a respeito de si mesmos. Em muitos campos de estudo que tem a questão
indígena como elemento de análise ainda cabe a seguinte interrogação: são os próprios
sujeitos pesquisados quem falam nos textos dos pesquisadores ou, ao contrário, ainda é a
voz desses que serve de suporte para a expressão daqueles? Como bem observou Todd
(2015) a respeito da denominada “virada ontológica”, cujo grande representante no Brasil
é o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, o ambiente acadêmico posiciona pessoas que
falam sobre os povos indígenas acima daqueles que são indígenas e dos que procuram
dialogar com eles em pé de igualdade.
No caso específico que aqui me interessa, a saber, o da produção intelectual de
indígenas, procuro não me colocar na posição de falar por eles. Busco, antes, conhecer
suas trajetórias pessoais e produção teórica de modo a posicioná-los no contexto do saber
científico contemporâneo, neste sentido, esta pesquisa também destoa dos estudos,
igualmente recentes e relevantes, que abordam a presença indígena na universidade,
discutindo temas como o acesso e permanência estudantil, mapeando políticas afirmativas

340
De acordo com Marcos (2008, p. 29), corazón é a “sede de las atividades intelectuales superiores”, o centro
de onde emanam seus pensamentos e estratégias de luta. Neste sentido, é preciso que “No
sentimentalicemos, colonicemos ni reduzcamos las referencias al corazón en el discurso de las mujeres como
meramente emocional, por muy maravilloso que pueda parecernos”.
341
Esclareço que ao usar a expressão indígenas, assim mesmo no plural, não compreendo os mesmos como
portadores de uma cultura única, tampouco quando uso a expressão ocidental pretendo generalizar todas as
experiências não-indígenas. Compreendo que em cada 572um destes universos há um conjunto de caraterísticas
comuns que me permitem fazer tal generalização.
ou mesmo as motivações por trás dos elevados índices de evasão escolar que, de acordo
com estimativas oficiais, chega a 90% em alguns cursos342. Minha intenção é ir além da
questão do acesso ao conhecimento científico por parte dos/as indígenas e discutir a
contribuição epistemológica de alguns deles/as para o que reconhecemos como uma
ciência nativa, pois, conforme expõe o antropólogo baniwa Gersem Luciano (2011, p. 105)
“existe a nova situação de sujeitos indígenas estudando a si mesmos como sujeitos que
pensam e produzem conhecimento”.
Discuto neste espaço, de forma introdutória e não conclusiva, a iniciativa de alguns
indígenas de construção de uma epistemologia própria, que ora dialoga, ora opõe ou
mesmo amplia a ciência tradicional, pluralizando as perspectivas de compreensão da
realidade social. Acredito que sem este primeiro passo de contextualização dos saberes
indígenas emergentes se torna inviável adentrar na apropriação dos mesmos a respeito do
discurso científico, uma vez que a crítica que realizam de forma recorrente aos parâmetros
de pesquisa utilizados na compreensão dos povos indígenas, parâmetros estes que
reproduzem um conjunto de mal-entendidos insistentemente repetidos por muitos
intelectuais, se insere no espaço aberto por diferentes pesquisadores indígenas.

A EMERGÊNCIA DO PARADIGMA INVESTIGATIVO INDÍGENA

O paradigma investigativo indígena ou ciência nativa começa a emergir nas décadas


de 1960 e 1970 em países como África do Sul, Nova Zelândia, Austrália, Estados Unidos
e Canadá. Este processo esteve intimamente ligado ao ingresso de indígenas nos espaços
de educação formal, no caso a universidade, e à forte pressão que exerceram no interior
destas instituições para que pudessem produzir conhecimento científico a partir de seus
próprios referenciais culturais.
No início, a luta destes indígenas esteve centrada na defesa da permanência
estudantil e no direito de serem aceitos nas universidades como pesquisadores indígenas.
Obrigados a cumprir os protocolos institucionais e a utilizar metodologias já consolidadas
para validarem seus projetos perante a comunidade acadêmica não puderam, neste
momento, elaborar e utilizar métodos próprios de investigação.
O uso da linguagem científica tradicional, no entanto, demonstrou aos poucos ser
insuficiente para refletir adequadamente as problemáticas indígenas. À medida em que

342
De acordo com o Ministério da Educação (MEC), em 2011 havia apenas um indígena para cada 500
estudantes em universidades públicas brasileiras.

573
mais indígenas adentravam nas universidades e se interessavam em produzir conhecimento
científico, aumentava o desconforto com a pratica de transpor conceitos e teorias
produzidas para e pela sociedade envolvente para compreensão da realidade dos povos
indígenas. Desafiados pela histórica dinâmica de exclusão que caracteriza o ambiente
acadêmico, tiveram que demonstrar, a partir do questionamento dos cânones científicos
vigentes, que uma narrativa indígena em diálogo com a mitologia e a tradição poderia
também constituir conhecimento em moldes científicos e que este conhecimento também
era legítimo.
A ideia de se construir um paradigma investigativo indígena começa a ganhar
contornos mais claros a partir da década de 1980. Neste período, um grande número de
indígenas já questionava de forma mais explicita o tratamento dado à questão indígena por
inúmeros pesquisadores, propondo em contrapartida novas metodologias e categorias
analíticas melhor adaptadas à realidade de seus grupos étnicos. Alertavam também para a
necessidade da descolonização do pensamento científico ocidental, por entender os
saberes indígenas como relíquias arqueológicas, superstição, narrativa mitológica, entre
outros, e nunca como ciência.
Embora isto tenha representado uma significativa abertura no debate sobre o
pluralismo epistemológico, os indígenas tiveram, contudo, que esperar ainda algum tempo
para acionar estas novas metodologias, sob pena de terem questionados a legitimidade de
seu trabalho e sua posição de pesquisador.
Questionar as bases da ciência tradicional e propor uma ciência nativa passava,
necessariamente, por desvelar criticamente o discurso colonial dominante que por muito
tempo promoveu uma visão cristalizada e anacrônica dos povos indígenas, critica esta que
encontrou eco nos estudos denominados pós-coloniais.
As teorias pós-coloniais ou pós-colonialistas se desenvolveram primeiramente no
contexto anglo-saxão nas décadas de 1980-90 com a preocupação de deslocar o olhar para
as margens dos centros hegemônicos de produção de conhecimento, de forma a privilegiar
o lugar de enunciação de sujeitos que foram historicamente subalternizados. Embora muito
diferentes entre si, possuem o objetivo político comum de criticar o projeto científico
moderno através da reflexão sobre os efeitos das estruturas de poder coloniais e suas
formas de pensamento sobre sociedades e culturas periféricas.
Conforme argumenta Costa (2006, p. 117), o projeto da modernidade ocidental é
questionado pelos teóricos pós-coloniais com o intuito de esboçar, pelo método da
desconstrução dos essencialismos, uma referência epistemológica crítica às concepções de

574
modernidade. Neste sentido, os estudos pós-coloniais se constituirão como uma crítica
radical à concepção de sujeito por traz do conhecimento científico moderno que,
amparado na ideia de progresso amplamente difundida a partir do século XVIII, reforçou
as estruturas de poder estabelecidas pela conquista europeia, que impôs aos mais diferentes
povos sua concepção de espaço-tempo e uma nova relação entre natureza e cultura.
A constituição dos parâmetros epistemológicos do pensamento moderno está
profundamente amparada em uma situação de dominação e exploração. Com efeito, a
ideia de um sujeito epistêmico universal, sem sexualidade, gênero, etnia, classe,
espiritualidade, língua, e que produz a verdade a partir de um monólogo interior consigo
mesmo sem relação com nada de fora é apenas um dos vários efeitos deste processo.
Muitos autores (QUIJANO, 1992; MIGNOLO, 2006, SPIVAK, 2010) têm denunciado,
cada um ao seu modo, as características específicas deste sujeito, a saber, homem branco,
europeu, heterossexual e proprietário dos meios de produção.
O caráter excludente do projeto moderno e de sua matriz epistêmica invisibilizou
todos os sujeitos que se encontram distantes do padrão denominado por Castro-Gómez e
Grosfoguel (2007, p 72) de “sistema-mundo europeo/ euronorteamericano/ capitalista/
patriarcalmoderno/ colonial”. Sob esta perspectiva, é “normal” que sejam poucos aqueles
autorizados a produzir, validar e colocar em circulação dentro das universidades outras
formas de conhecimento.
A pensadora indiana Gayatri Spivak (2010), cujo projeto teórico se concentra em
uma subárea dos estudos pós-coloniais denominado subaltern studies, caracterizou esta
condição descrita acima através da palavra subalternidade. Para ela, subalterno é todo
aquele que não possui voz ou representatividade – política, legal, entre outros - em
decorrência do status social que adquiriu ao longo do processo de colonização.
Em Pode o subalterno falar?, sua obra mais conhecida, discute a necessidade da
descolonização do pensamento científico ocidental a partir do argumento de que não se
trata apenas de dar voz ao outro subalternizado, como pretendem alguns pensadores deste
campo de estudo, mas de constituir as bases epistêmicas para que o mesmo seja
compreendido a partir de outras lógicas. Neste projeto, o papel dos intelectuais é
questionado e sua conivência com as estruturas de dominação, ao se reivindicarem como
representantes do discurso do outro, denunciada. De acordo com Carvalho (2001), o
projeto teórico-político desta pensadora, centrado na reflexão sobre a consciência da
mulher subalterna, está relacionado à sua necessidade biográfica de desfazer o duplo lugar

575
de fala subalterna que lhe foi imposto desde a infância, a saber, o de mulher em uma nação
colonizada.
Na América Latina, os estudos pós-coloniais emergiram através de uma profunda
crítica a herança colonial nas diversas esferas da sociedade. De acordo com Quijano (2000,
p. 201), esta herança se refere, basicamente, ao processo jurídico e econômico de
apropriação de novos territórios pelos europeus iniciado no século XVI. No campo
científico, se expressa por meio daquilo que denomina de “colonialidad del poder”, que
produz uma continua invisibilização dos povos indígenas como produtores de
conhecimento sistematizado. Como ressalta Quijano (1992, p. 37), a colonialidade do
poder é regida por “una racionalidad específica a perspectiva del conocimiento que se
impuso mundialmente de forma hegemónica colonizando y sobreponiéndose sobre
saberes concretos”.
A inversão de perspectiva geopolítica produzida pelos estudos pós-coloniais
colocou em cena uma multiplicidade de sujeitos sócio históricos até então excluídos do
processo de produção de conhecimento pelos saberes dominantes. De acordo com Walsh
(2009, p. 27), isto abriu espaço para a formulação de modelos epistemológicos contra-
hegemônicos atentos à questão do eurocentrismo, do racismo e da condição colonial a qual
estão submetidos os mais diferentes povos. Estes modelos serviram de ponto de partida
para a proposição de um paradigma investigativo indígena.
A reflexão sobre a descolonização do pensamento cientifico ocidental foi, sem
sombra de dúvidas, um passo importante para a formulação do paradigma investigativo
indígena. Seu papel foi o de desvelar a “la destrucción de los conocimientos propios de los
pueblos causada por el colonialismo europeo, que a su vez generó un imperialismo cultural
y la consecuente pérdida de experiencias cognitivas” (SANTOS, 2010, p. 57). No próximo
subitem, nos deteremos de forma breve sobre este paradigma investigativo, que apresenta
categorias de pensamento orientadas pelas cosmovisões, saberes e práticas indígenas.

A CONSOLIDAÇÃO DE UM PARADIGMA INVESTIGATIVO INDÍGENA

O final da década de 1990 foi o ponto chave para que as reflexões epistemológicas
realizadas por indígenas se firmassem como formas de conhecimento válidas dentro dos
ambientes universitários, sobretudo os de língua inglesa. A ativista do movimento indígena

576
maori Linda Tuhiwai é considerada umas das pioneiras na proposição de uma metodologia
indígena de pesquisa343.
De acordo com esta intelectual indígena, são as construções teóricas e os métodos
de investigação que sustentam uma trama de poder colonial capaz de forjar um modelo de
Outro selvagem e sem capacidade de produzir conhecimento significativo. Partindo da
crítica pós-colonial, denuncia em sua mais importante obra, Decolonizing Methodologies.
Research and Indigenous Peoples (1999) - traduzida para o castelhano em 2016 com o
título A descolonizar las metodologías: investigación y pueblos indígenas – a perspectiva
eurocêntrica presente no conhecimento científico produzido sobre povos indígenas e
aponta para a importância de se reconhecer a produção intelectual ocidental como parte
constituinte da própria cultura ocidental e cujas consequências políticas e sociais tem
promovido a ausência de um lugar discursivo para a produção de intelectuais indígenas344.
O pensamento científico ocidental, ainda segundo Tuhiwai (1999), tem sido
historicamente cumplice dos colonialismos e dos imperialismos. Neste sentido, uma
ciência próxima ao universo indígena deve se voltar não para temas gerais, mas para as
problemáticas enfrentadas pelas comunidades e seus membros. Assim, lista 25 projetos de
pesquisa que considera condizentes com as preocupações dos pesquisadores indígenas.
São eles: reivindicação, testemunhos, narrativas, celebração da sobrevivência, lembranças,
gênero, indigenizar, intervir, revitalizar, conectar, ler, escrever, representar, vislumbrar,
reenquadrar, restaurar, retornar, democratizar, criar redes, nomear, proteger, criar,
negociar, descobrir e partilhar (TUHIWAI apud RAMOS, 2013, p. 19).
Um ano após a publicação de Decolonizing Methodologies. Research and
Indigenous Peoples, o filosofo indígena tewa Gregory Cajete 345
publica outra obra
importante intitulada Native Science (2000), na qual enfrenta a questão de uma
fundamentação teórica para a nascente ciência nativa346. Assim como Linda Tuhiwai,
acredita que uma ciência produzida por indígenas deva visar o reconhecimento da milenar

343
Linda Tuhiwai atualmente é professora de educação indígena na Universidade de Waikato, na Nova
Zelândia.
Faz-se necessário esclarecer que não há consenso sobre a utilização da expressão intelectual, tanto no meio
344

acadêmico como entre os próprios indígenas, para caracterizar sujeitos indígenas que se dedicam a produzir
algum tipo de reflexão teórica. Isto em virtude do fato de que o emprego do termo intelectual pode muitas
vezes confundir a atuação desses atores políticos comunitários com a de uma elite indígena letrada já
desconectada de seu povo.
345
Gregory Cajete é professor da Universidade do Novo 577México, nos Estados Unidos
346
Segundo Cajete (2000), a etiqueta de “ciência” empregada no termo ciência nativa diz respeito a uma
estratégia política para dar a ela o mesmo status da ciência ocidental.
produção de conhecimento realizada pelos povos indígenas. Caberia, então, ao intelectual
indígena perceber, pensar, conhecer, atuar e sistematizar estes conhecimentos.
De acordo com Cajete (2000, p. 2-3), uma ciência nativa envolve

(...) espiritualidade, comunidade, criatividade e tecnologias para manter


o meio ambiente e cuidar da vida humana (...) envolve aspectos como o
espaço e o tempo, a linguagem, o pensamento e a percepção, a natureza
e os sentimentos humanos, a relação dos seres humanos com o cosmos
e todos os aspectos ligados com a realidade natural347.

Esta ciência, por sua vez, deve se orientar pelos seguintes paradigmas que
reproduzo aqui na integra:

A ciência nativa integra uma orientação espiritual.


A dinâmica harmônica multidimensional é um estado perpetuo do
universo.
Todos os conhecimentos humanos estão relacionados com a criação do
mundo; portanto, o conhecimento humana está baseado na cosmologia
humana.
A humanidade tem um papel importante na perpetuação dos processos
naturais do mundo.
Todas as “coisas” são animadas e tem um espirito.
Todos os lugares são importantes e significativos porque cada lugar
reflete a integridade da ordem natural.
A história das relações deve ser respeitada de acordo com os lugares,
plantas, animais e fenômenos naturais.
A tecnologia deveria ser apropriada e refletir o balanço das relações do
mundo natural.
Há relações básicas, padrões e ciclos no mundo que necessitam ser
entendidos; este é o rol das matemáticas.
Há etapas de iniciação para o conhecimento.
Os maiores são guardiões do conhecimento.
As atuações no mundo devem ser acompanhadas através do ritual e da
cerimônia.
Os artefatos antigos contem a energia dos pensamentos e materiais com
os quais foram criados e são símbolos de rituais que expressam esses
pensamentos, entidades e processos.
Os sonhos são considerados portas para a criatividade e o conhecimento
se usa com sabedoria, prudência e de forma pratica348 (CAJETE, 2000,
p. 64-65).

Outra obra importante para o desenvolvimento do paradigma investigativo indígena


é Indigenous Research Methodologies (2012), da teórica indígena africana Bagele Chilisa349.

347
Tradução livre.
348
Tradução livre.
349
Bagele Chilisa é atualmente professora na Universidade de Botsuana.
578
Nesta obra, argumenta sobre necessidade de se desconstruir e reescrever a história dos
povos indígenas através do empoderamento de seus membros e da autonomia dos
processos de investigação no qual o indígena passa de objeto a sujeito de conhecimento de
forma a ressaltar a necessidade de uma justiça social.
Mesmo expondo aqui de forma breve o pensamento de alguns intelectuais
indígenas que tem contribuído para a consolidação do paradigma investigativo indígena,
acredito poder apontar uma de suas principais características. A primeira delas é a de
localizar e analisar o discurso colonial promovendo uma crítica descolonizadora do
pensamento sem, contudo, deslegitimar toda a produção intelectual do Ocidente. Trata-
se, antes, de examiná-la a fim de defender os interesses dos povos indígenas. O paradigma
investigativo indígena é, portanto, ao mesmo tempo uma proposta de ciência nativa dentro
de instituições acadêmicas e um recurso social e político de descolonização e autonomia
dos povos indígenas baseado na cosmovisão e conhecimentos indígenas.
Nas palavras de Shawn Wilson (2001, p. 176), indígena cree do Canadá, o
paradigma “es un conjunto de creencias sobre el mundo y sobre la obtención de
conocimientos que van de la mano para guiar las acciones de las personas sobre cómo
hacer su investigación”. Implica, segundo Jelena Porsanger (2004, p. 107-108) em um

(...) conjunto de métodos e teorias indígenas, normas e postulados


empregados na investigação com o enfoque dos povos (...) assegurar que
a investigação sobre as questões indígenas sejam conduzidas de maneira
respeitosa, ética, correta, útil e benéfica, desde o ponto de vista dos povos
indígenas350.

Por fim, cabe considerar que no paradigma investigativo indígena dimensões


como a espiritual e fatores psicológicos tais como a intuição são levados em consideração,
visto que descrevem o modo como os povos indígenas concebem seus mundos. Sobre isto,
apresento algumas considerações no próximo e último subitem.

OS ASPECTOS CONSTITUTIVOS DO PARADIGMA INVESTIGATIVO


INDÍGENA

Uma das bases fundamentais do paradigma investigativo indígena é a noção de


relacionalidade presente nas distintas cosmovisões indígenas. A realidade é entendida
como uma totalidade na qual tudo o que vive se encontra unido. Nesta totalidade, há uma

350
Tradução livre.

579
dimensão material e outra não imaterial e todas as coisas tem vida e possuem um espírito.
Esta epistemologia relacional investe de importância fatores como o contexto, as
cosmovisões ancestrais, as relações interpessoais e com os seres não humanos, a língua
nativa como lugar de enunciação, o conhecimento como processo coletivo e o papel do
investigador no processo de produção de conhecimentos.
Diferentemente das ciências de matriz ocidental, a realidade não é nem separada e
nem isolada em partes como se cada uma delas tivesse uma vida própria; pelo contrário, é
composta por um conjunto de relações complementares e interdependentes entre si. Os
entes materiais e não-materiais estão relacionados de diferentes maneiras em redes de
relações vivas e espirituais que conformam uma totalidade-relacional. Se no sistema de
conhecimento indígena tudo está relacionado, os conceitos não poderiam ser pensados de
outra maneira. Expressam-se sempre em movimentos relacionados, em relações
interpessoais, intrapessoais e espirituais.
A temática da espiritualidade, que na tradição ocidental está relacionada quase
sempre à fenômenos de caráter religioso, é recorrente nos autores que trabalham dentro
do paradigma investigativo indígena. É utilizada como uma categoria teórico-explicativa que
permite adentrar em questões de ordem imaterial que não poderiam ser excluídas das
análises sobre a organização social dos grupos indígenas. Segundo Wilson (apud RAMOS,
2013, p. 12) “a espiritualidade não é separada, mas parte integral e entranhada no todo que
é a visão de mundo indígena”.
Para Cajete (apud RAMOS, 2013, p. 12), a espiritualidade não tem nada a ver com
religião, mas com a busca de verdade ou verdades: “A ciência nativa, em seus níveis mais
altos de expressão, é um sistema de caminhos para chegar a essa verdade perpetuamente
em movimento, ou ‘espírito”. Esta última noção, de acordo com Cajete (apud RAMOS,
2013, p. 12), diz respeito a uma verdade inconstante

Como o nascimento de uma criança ou um raio ligando céu e terra por


uma fração de segundo, são esses os momentos infinitos tanto do caos
como da ordem. São esses os preceitos da ciência nativa, pois a verdade
não está num ponto fixo, mas sim num ponto de equilíbrio em constante
mudança, perpetuamente criado e perpetuamente novo.

Verdade, neste sentido é “sempre relativa a um sistema conceitual, que qualquer


sistema conceitual humano é em sua maioria de natureza metafórica e que, portanto, não

580
existe verdade que seja totalmente objetiva, incondicional ou absoluta” (LAKOFF;
JOHNSON apud RAMOS, 2013, p. 15)
A ideia de relacionalidade e de movimento não estão associadas apenas a de
espírito e de verdade. Outro conjunto de ideias importante é a de propriedade intelectual,
compromisso ético e justiça social no fazer científico. Sobre isto, os intelectuais indígenas
reforçam que o conhecimento ao ser construído de maneira relacional não pertence a uma
só pessoa, portanto, não pode ser comercializado nem apropriado alguém. Para melhor
expressar esta compreensão, Wilson (2001, p. 179) usa a seguinte metáfora “o que exalam
as árvores eu o inalo. O que eu inalo a arvore o inala”
É possível constatar entre os intelectuais indígenas a preocupação em serem
coerentes com o princípio ético de difusão dos conhecimentos indígenas como
instrumento de responsabilidade, respeito e reciprocidade baseada no consentimento
coletivo dos participantes com vistas à justiça social. Para a concretização deste ideal,
propõem desenvolver códigos de segurança e proteção a pesquisa em favor dos povos
indígenas, seus conhecimentos e territórios.
A pesquisa é vista necessariamente como uma atividade militante. Conforme
propõe Tuhiwai (1999) com sua Agenda de Pesquisa Indígena, o objetivo é que os temas
de pesquisa sejam definidos pelos indígenas visando uma atuação política que permita aos
povos indígenas ter controle sobre a produção do conhecimento, mudar seus processos,
recuperar e consolidar identidades culturais, bem como promover a busca de alternativas
a multiplicidade de problemas enfrentados no cotidiano das comunidades. Trata-se,
portanto, de conferir aos indígenas o direito de controlarem seus próprios destinos. A
respeito disto, Tuhiwai (1999) instrui os indígenas para que aceitem participar de pesquisas
somente quando forem os autênticos beneficiários.
O caráter subjetivo que envolve o processo investigativo é claramente assumido por
estes intelectuais indígenas. A neutralidade não tem espaço nesta perspectiva, ao contrário,
o que se propõem é uma metodologia de pesquisa engajada. Conforme expõe Harding
(apud ESPINOSA-MINOSO, 2014, p.10), “la investigadora o el investigador se coloque
en el mismo plano crítico que el objeto explícito de estudio, recuperando de esta manera
el proceso entero de investigación para analizarlo junto con los resultados de la misma”.
O conjunto de análises realizadas aqui, embora ainda iniciais, apontam para uma
nova forma de se fazer e entender a ciência. Nela, são colocados em jogo considerações a
respeito do humano e do não-humano, uma perspectiva relacional de entendimento do
mundo, uma postura investigativa de envolvimento com o objeto, entre outros aspectos.

581
Acredito que as ferramentas conceituais e metodológicas produzidas pelos intelectuais
indígenas que se filiam a esta perspectiva de compreensão da realidade social são de grande
relevância para aqueles que, como eu, se incomodam com certos modismos teóricos
acadêmicos que, longe de facilitarem nossas vidas, acabam nos enclausurando em
concepções teóricas que expressam muito pouco a realidade vivida por muitos de nós. Por
isso a necessidade de uma desobediência epistêmica.

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583
AS MULHERES CORAJOSAS DA ALDEIA TAUNAY- IPEGUE:
XAMANISMO, CRISTIANISMO E ATUALIZAÇÃO COSMOLÓGICA

Noêmia dos Santos Pereira MOURA351

Rosalvo Ivarra ORTIZ352

Ane Caroline dos SANTOS353

Resumo: Os Terenas cristãos falam nos xamãs como se estivessem resgatando as lembranças de
sua infância ou relatos de seus anciãos o que nos levam a pensar que o tempo do desaparecimento
dos koixomuneti não é tão remoto quanto pretendem apresentar. Os líderes evangélicos e católicos
com os quais dialogamos no período de 2003 a 2009 e recentemente em 2016 faziam essas
afirmações constantemente. Dessa forma, suas narrativas os levaram a evidenciar um perfil de pajé,
tal como se autodenominou à época a nossa principal interlocutora Dona Miguelina Silva, terena
da Aldeia Ipegue da Reserva Taunay/Ipegue, localizado no município de Aquidauana no Estado
de Mato Grosso do Sul. A pajé também era uma das coordenadoras/líderes do Grupo das
Mulheres Corajosas da Igreja Católica, que atentas aos movimentos da aldeia se uniam para
informar ao Conselho Tribal, sobre situações de risco na comunidade. As mulheres levavam ao
Cacique, liderança temporal da aldeia terena, situações consideradas por elas como fora do “padrão
Terena”. Uma característica que percebi foi que as mulheres do grupo, em sua maioria, eram
benzedeiras e filiadas à Capela Católica da aldeia Ipegue. As Mulheres Corajosas, portanto, era um
grupo de referência católica e de benzedeiras, que ocupava a função de denunciar comportamentos
que consideravam inadequados ou fora do ethos Terena. Percebemos as atualizações da figura do
xamã, que em contato direto com os Terena e destacamos os novos xamãs católicos ressignificados
em benzedores, pajés, purungueiros e fazedores de simpatias. Portanto, algumas benzedeiras do
grupo de Miguelina, segundo ela, especializava se em doenças específicas de uma faixa etária.
Assim, Dona Miguelina benzia as crianças, mas também adultos. O destaque para essa situação em
que a interlocutora é pajé, benzedeira e associada a um grupo de mulheres, que se autodenominam
Corajosas, para enfrentar situações liminares em sua comunidade e, tem o objetivo de evidenciar
os lugares sociais e políticos que as mulheres ocupam em uma aldeia Terena para lidar com as
diversas instâncias internas.

Palavras-chave: Cosmologia Terena. Atualizações Xamânicas. Protagonismo das mulheres.

Os Terenas falam nos Xamãs como se estivessem resgatando as lembranças de sua


infância, o que nos leva a pensar que o tempo do desaparecimento dos koixomunetinão é
tão remoto quanto pretendem as liderançasindígenas evangélicas e as católicas. Suas

351
Professora Adjunta III da UFGD, licenciada e mestre em História com ênfase em História Indígena
(UFMS), doutora em Ciências Sociais/Etnologia (UNICAMP). Coordenadora Institucional PIBID/UFGD.
Pesquisadora na etnia Terena. E-mail: noemiamoura@ufgd.edu.br
352
Mestrando em Antropologia- PPGAnt/UFGD. É membro do grupo de pesquisa GIPEDAS- Grupo
Iberoamericano para Pesquisa e Difusão da Antropologia Sociocultural cinculado à Universidade de
Salamanca (USAL)- Espanha e Universidade Federal da Grande Dourados- UFGD. Pesquisa arte e
cosmologia ameríndia. E- mail: rosalvortiz@hotmail.com
353
Mestranda em Antropologia- PPGAnt/UFGD. Realiza 584 pesquisa acerca das mulheres Kaiowá e Guarani de
Mato Grosso do Sul. E- mail: carol.santos43@hotmail.com
informações, juntamente com as demais que conseguimos levantar com os outros
participantes desta pesquisa, levam-nos a traçar um perfil do (a)pajé, como são
denominados os koixomunetiatualmente pelos Terenas. Temos um exemplo do que
atualmente estamos denominando de pajé (koixomuneti): Miguelina Silva, da Aldeia
Ipegue. Miguelina era líder do grupo - Mulheres Corajosas - vinculadoà Igreja Católica, no
ano de 2007, quando dialogamos sobre o xamanismo e o catolicismo.
As Mulheres Corajosas, em sua maioria benzedeiras, se (re) uniam para levar
denúncias ao Conselho Tribal, liderado pelo Cacique, sobre comportamentos e práticas
dos indígenas que entendiam estar fora do “padrão Terena”. Dona Miguelina destacou
como exemplo de má conduta o envolvimento de adolescentes e jovens com drogas, cujos
desdobramentos chegaram à Polícia Federal. A intenção era zelar pela manutenção da
cultura a partir das práticas de observar e denunciar os desvios de conduta.

Foto 01: Grupo da Capela da Igreja Católica de Ipegue – Mulheres Corajosas (Miguelina Silva – segunda
mulher em pé da esquerda para a direita).
Fonte: Arquivo pessoal de Miguelina Silva.

Para além do grupo religioso católico, Miguelina nos contou sobre outras formas
de inserção religiosa que mantinha. Erapajéreconhecida pelas lideranças políticas da região
e até tinha feito pajelança na Organização das Nações Unidas (ONU). Os grandescomo
denominava os políticos que a chamavam para se apresentar em suas festividades, a

585
convidavam parabenzerlugares e pessoas. Auxiliada por sua filha a professora Maria
Alexandra Silva, mostrou com satisfação as fotos da pajelança em comemoração ao Dia do
Índio, na ONU. Relatou a participação em eventos na aldeia e fora.

Foto 02: Miguelina Silva, na ONU.


Fonte: Arquivo pessoal de Miguelina Silva, Aldeia Ipegue, Aquidauana-Mato Grosso do Sul- Brasil.

As fontes acessadas evidenciaram que Miguelina Silva é xamã, que se


autodenomina conforme a situação, benzedeira ou pajé. Sua trajetória na qual focarei essa
outra parte do texto evidencia como se construiu liderança religiosa em Ipegue. As
identidades, católica e xamânica, se alternam, conforme o contexto no qual se encontra.
No ano de 2007, ocupava o cargo de Coordenadora da Capela Católica de Ipegue e, nessa
condição realçava a identidade de benzedeira, ao invés de xamã. Nesse período, as
pajelanças se davam mais para o exterior da área indígena, tal como na cidade de
Aquidauana, a convite do Prefeito, de outras lideranças partidárias ou de entidades.
A pajé fez referência ao evento de agradecimento ao Prefeito de Aquidauana por
ocasião da eleição de sua neta, que recebeu o título de Miss sul-mato-grossense e
representou o Estado e o Município de Aquidauana no Concurso de Miss Brasil. Pelo
apoio o líder político recebeu as bênçãos da índia Terena Miguelina Silva, pajé da Aldeia
Ipegue. Percebi que o evento havia sido muito significativo para a família da Miss e para
sua etnia, pois ela usou como traje típico a indumentária Terena. As trocas entre a etnia e
a autoridade civil, nesse evento, foram mediadas pela figura da xamã de Ipegue.

586
Foto 03: Miguelina Silva e Lídia (Mulheres Corajosas) fazendo pajelança na Festa do Dia do Índio
(19/04/2006).
Fonte: Arquivo pessoal de Miguelina Silva (Miguelina a 1ª mulher da esquerda para a direita e Lídia, a
primeira mulher da direita para a esquerda).

A pajelança de Miguelina Silva era à época destacada mais uma atividade externa à
Aldeia. Na década atual, quando algumas famílias terena resolvem realçar sua performance
guerreira e iniciaram a ocupação das áreas em litígio, a xamã, entre outros xamãs realça sua
identidade de pajé. A atividade religiosa faz parte do fenômeno das Retomadas354. A luta
pela terra indígena, desenvolvida a partir da década de 1990 no Mato Grosso do Sul,
evidencia o protagonismo terena, guarani e kaiowá no processo de recuperação de seus
territórios e um dos elementos de destaque é a participação de lideranças religiosas
fortalecendo a espiritualidade dos guerreiros e guerreiras (XIMENES, 2017).O
xamanismo, portanto, é ressignificado no benzedor, no curandeiro, no raizeiro, no fazedor
de simpatias, no purungueiro e em outras formas religiosas (MOURA, 2009).

354
A historiadora Lenir Ximenes (2017, p. 248) evidencia em sua tese de doutorado a forte presença da
pajelança, mas também da oração católica, evangélica, entre outras, bem como a capacidade de tolerância
religiosa em um contexto que a luta pela terra é a prioridade. Destaca a performance guerreira de pastores,
membros de várias denominações religiosas e o marco da pajé/xamã/rezadora Terena, Dona Miguelina Silva
na Retomada em Taunay/Ipegue.
587
O purungueiro, homem ou mulher, tem sobre si uma carga de tradição muito
pesada, que associa a pessoa tanto com as coisas boas quanto com as coisas ruins. Os
termos bem e mal, nesse caso em específico, se relacionam com as ações potencializadoras
de conflitos que envolvem os fuxicos, as brigas, os feitiços e as disputas. A concepção de
bem e mal depende da perspectiva de quem o está anunciando. Aquilo que faz bem a
alguém pode destruir ou dificultar a vida do outro. Miguelina se apresentou como pajé,
quando nos contou sobre o ritual na ONU. No tocante ao movimento religioso interno à
Ipegue anunciou que percebia uma associação da religiosidade com a liderança desde a
época em que sua avó “tinha liderança” [era xamã ou benzedeira]. Depois passou para sua
mãe e depois para ela. Do lado de seu pai também tinha liderança religiosa xamânica, pelo
discorre abaixo.

(...) Minha mãe e minha vó também tinha liderança. (...) Em primeiro


lugar, eu falo, eu tenho o meu guarda espiritual, meu pai, foi liderança
antigamente aqui, e eu continuei sendo como ele, meu guia (...) em
português, é Maurícia Constantino (Amipé). Amipé significa mulher
lutadora, [D. Amipé que ensinou a senhora e sua irmã a benzer?] É, meu
cunhado, marido da minha irmã, teve 50 anos de função, como se diz,
nesse trabalho dele, trabalho espiritual; uma missão, uma missão dele.
Aí a minha mãe começou, a minha irmã foi, casou, e minha mãe
começou. Aí, depois também me pegaram no jeito, e também entrei. [e
como que a pessoa é escolhida?] É, a pessoa é escolhida. Ele olha
também se a pessoa não é muito fofoqueira, se não fala mal da vida do
outro, se não briga, não xinga, se é uma pessoa pura, sempre alegre;
Porque ele dizia tava benzendo e ia chegar e dizer: - Ah! Daqui a pouco
fulano ia, e já ia dizer fulano tá enfeitiçado; se tá vendo que fulano tá
enfeitiçado, não tem que tá falando, porque não cura logo. Então, tem
uma parte muito séria nessa parte espiritual, né. E se você for desse jeito
você não consegue curar ninguém, não cura. Eu vejo muito aí benzedor
que não cura. Porque a gente sabe que quando Jesus passou na Terra,
ele não cobrava um tostão; então a gente tem que seguir o rastro dele,
entendeu? [e se as pessoas quiserem dar alguma coisa?] Sim, sim, a gente
ganha, mas não cobra. Então a vida da gente continua isso aí (Igreja
Católica de Ipegue, depoimento de Miguelina Silva, fev. de 2008).

O relato demonstra o processo acerca de como iniciou e se formou


xamã/benzedeira de criança. A anciã rememora o seu passado e a relação familiar com o
xamanismo. Foram gerações de benzedores. Para curar, o xamã tinha que manter um
padrão de comportamento severo. Dieta alimentar e moral. Não ser fofoqueiro, não brigar,
não xingar, não cobrar pelo benzimento, entre outros. Afirma ter seguido o padrão. E
reafirma a gente ganha, mas não cobra.

588
Da mesma forma como antes cada aldeia tinha o seu pajé principal, que passava
por um longo período de preparação (desde pequenininho), cuja vida social era bastante
discreta (não saía na rua), as aldeias Ipegue e Bananal ainda os tem no presente. A diferença
é que hoje são benzedores, curandeiros, purungueiros e fazedores de simpatias. Alguns se
especializam em doenças de crianças e outros estendem seus serviços para arranjar ou
reatar casamentos, entre outros desejos manifestados por seus clientes. Os curandeiros,
que utilizam as plantas como meio de cura, geralmente são crentes vinculados às igrejas
pentecostais e protestantes. O fato é que pudemos observar que tanto os terena católicos
quanto os crentes recorrem aos trabalhos dos xamãs (MOURA, 2009).
O poder dos pajés antigos, segundo Miguelina, permitia-lhes prever o futuro e livrar
as pessoas de situações embaraçosas (profeta e adivinhador), além de realizar curas ou
colocar feitiços. Numa situação de campo anterior, em 2004, conhecemos Paulo Gomes,
um dos mais famosos xamãs entre os regionais, procurado pelos fazendeiros e políticos,
segundo ele mesmo. Ganhara fama por ter realizado várias curas entre os indígenas e não
indígenas, sendo muito procurado inclusive por alguns médicos de Campo Grande (a
capital do MS), que vez ou outra solicitavam sua ajuda em alguns casos complexos. As
pessoas se deslocavam de muito longe para se consultar com ele.
“Quando a pessoa chegava eu já sabia qual era o problema dela”. Além das curas
o xamã também ajudava os políticos a ganhar as eleições. Os candidatos solicitavam sua
intervenção espiritual para alcançar resultados positivos nos pleitos eleitorais. Quando
finalizava o processo vinham até ele para agradecer e retribuir a ajuda.
No caso de Miguelina Silva, vimos apenas o lado da cura e da benção, sem entrar
no âmbito das profecias e dos seus demais conhecimentos. A pajé nos falou de sua relação
com a natureza povoada que era habitada pelos espíritos donos das plantas, dos animais,
da água, pois para os Terena todo ser existente tem seu dono. As doenças, por sua vez,
também tinham donos e donas. Por isso, alguns rezadores que não detinham poder para
combater determinado tipo de doença enviavam o cliente para outro rezador.
Todo o poder xamânico, dessa forma, emanava do mundo dos espíritos, com os
quais o xamã tinha o poder de se comunicar. O benzedor da Aldeia Bananal, do bairro
Jaraguá, Mariano José nos relatou uma situação em que sua filha contraiu uma doença
curada por outro benzedor, contra a qual seus conhecimentos não eram suficientemente
fortes (Igreja Católica de Jaraguá, depoimento do benzedor de Bananal Mariano José da,
fev. 2008). Segundo Miguelina os benzedores podem se especializar em uma determinada
faixa etária ou em determinadas doenças.

589
No início de sua função Miguelina era responsável apenas por benzer as crianças.
Depois de algum tempo, sua mãe lhe transmitiu os outros conhecimentos pertinentes às
demais faixas etárias. Aprendeu tudo, mas dedicou-se à cura através das orações.
Aprofundou seus conhecimentos com seu cunhado Daniel a quem considera como um
poderoso xamã da época mais recente. Atualmente reside na região de Nioaque. É possível
que tenha sido um dos xamãs envolvidos no evento relatado por um crente que se
converteu ao cristianismo por desilusão com outro xamã, cuja oração ao invés de curar
matou sua irmã. Segundo o interlocutor, um xamã morava em Ipegue e o outro em
Bananal.
O evento é uma situação de disputa de poder e cura. O narrador demonstrou
constrangimento ao relembrar o acontecimento, pois revivia a situação histórica na qual se
sentira vitimado juntamente com sua família. Em seu depoimento, a luta teria ocorrido
entre os dois xamãs envolvendo um membro de sua família. Devoto de são Jorge e nascido
na aldeia Ipegue, viveu parte da sua adolescência e juventude trabalhando fora da aldeia, o
que lhe rendeu prestígio junto aos seus parentes quando retornara. Abriu seu próprio
comércio e retomou sua identidade de católico e festeiro de São Jorge. Como prova de sua
devoção ostentava um quadro com a imagem de seu Protetor na parede de sua mercearia.
Uma de suas irmãs, estando grávida apresentou algumas complicações na gestação e foi
atendida pelo xamã local, de sua inteira confiança. Tudo corria dentro da normalidade até
a disputa entre xamãs se iniciar. Na leitura de nosso interlocutor, o xamã da aldeia Bananal
demonstrara superioridade sobre o xamã que atendia sua irmã. “Medindo forças
espirituais” exigiu do oponente uma prova de obediência e respeito. O resultado foi que a
cliente veio a óbito.
O xamã de Ipegue derrubou o de Bananal, que por sua vez ficou receoso em
desafiá-lo novamente. No caso em questão, o feitiço virou-se contra a família do narrador,
cuja doente morreu de “complicações no parto”. O narrador concluíra que ao invés de
ajudar no parto da paciente o xamã a amarrava. Após a morte da parturiente, sua família
se converteu ao protestantismo. Percebendo a ausência de uma argumentação convincente
os familiares da parturiente prenderam e pressionaram o feiticeiro pra que contasse a
verdade acerca da morte. Pressionado, o xamã confessou que não tivera forças suficientes
para fazer oposição aos poderes do xamã oponente.
A saída para aquela família foi procurar outra força espiritual, com a qual pudesse
contar em outra situação daquela. Teria sido por esse motivo que o narrador rompera com
o catolicismo/xamanismo e abandonou o Santo (São Jorge). Passou a tomar conta da

590
família de sua irmã e seus sobrinhos netos que também acompanharam a sua decisão de
mudar de religião. Fora um sentimento de decepção e impotência diante das forças de um
poderoso xamã, que levara à ruptura com as tradições Terena, encerradas no seio do
catolicismo.
Segundo Carvalho, a ideia de feitiço está muito associada ao contexto em que se dá
a doença. Situações liminares da vida do indivíduo deixam-no mais vulnerável, como no
caso de feitiço. O feitiço é uma manifestação do poder do xamã Terena, porém o mesmo
possui a função de cura, de equilíbrio do cosmos e de manter a memória ritual da etnia.

Na sociedade Terena – assim como em muitas sociedades indígenas, em


especial naquelas onde está presente o Xamanismo – a noção de
equilíbrio cósmico está por trás das representações de doença e morte.
Esse equilíbrio é, de fato, inexistente, está sob constante ameaça,
configura-se como uma orientação – um eixo, uma linha mestra – da
dinâmica social; essa mesma dinâmica que o rompe a todo o momento.
A concepção de equilíbrio é uma construção teórica; é um “tipo ideal”,
se é possível à analogia entre essas noções. Assim, entre os Terenas, as
representações da doença estão associadas à concepção de um equilíbrio
rompido: pensa-se na origem da doença pela falta ou excesso de alguma
substância no organismo. Essa substância é mais concebida em termos
energéticos (espirituais) do que em termos concretos (materiais). A
substância concreta (matéria) é, em geral, simbólica, é a representação
de algo que a transcende (CARVALHO, 1996, p. 86).

Situamos os purungueiros como uma continuidade dos koixomuneti, pois trazem


consigo a ambiguidade do bem e do mal. Dona Miguelina Silva faz pajelança com a
porunga, porém se denomina pajé. Os benzedores, curandeiros e fazedores de simpatia
são atores que há muito tempo povoam o imaginário regional com suas práticas de curas e
bênçãos. Maués e Villacorta (1998) produziram uma classificação que talvez nos auxilie a
compreender a diferença existente entre esses especialistas. O especialista mesmo não se
considerando pajé, conhece variados remédios e é um prático muito procurado pelas
pessoas que acreditam precisar de seu tratamento. Vejamos a classificação abaixo:

O benzedor ou a benzedeira é um especialista que, podendo ser também


um experiente, alia a essa condição um dom especial, que caracteriza sua
especialidade: sabe benzer mal olhado, quebranto, “ersipla” (erisipela) e
outras doenças suscetíveis de benzeção. O benzedor usa orações fortes
e, muitas vezes, água e ramos de ervas no momento da benzeção. (...) O
“farmacêutico” é um dono de farmácia, geralmente localizada nas sedes
municipais, que também receita remédios à população; alguns desses
farmacêuticos podem ser muito considerados entre os moradores rurais
e urbanos das classes populares. As parteiras têm uma importância

591
especial nas localidades rurais, onde não há médicos nem hospitais.
Algumas delas são reconhecidas e recebem treinamento pelos serviços
oficiais de saúde das sedes municipais do interior. Nas localidades onde
atuam, as mais consideradas são as “parteiras de dom”, isto é, aquelas
que, além de conhecerem as técnicas de atendimento às mulheres
grávidas e gestantes, também são assistidas por caruanas, que as auxiliam
em sua tarefa. Essas parteiras não são necessariamente pajés ou
curadoras, mas atendem às parturientes com ajuda dos encantados
(MAUÉS; VILLACORTA, 1998, p. 13).

Entre os Terena era corrente a prática das parteiras assumir a saúde das mulheres.
Atualmente, as parteiras ainda atendem as aldeias, mas a predominância é dos partos
realizados em hospitais da região na qual se localiza a Terra Indígena Terena. A Fundação
de Saúde exerceu um controle sistemático sobre as famílias indígenas a partir de 1990,
porém agora passou a função para a Secretaria de Saúde Indígena (SESAI).
Em seu estudo sobre as práticas de cura entre os Terena, Fernanda Carvalho (1996)
nos apresentou um pluralismo médico amplamente perpassado pelo Xamanismo. Para a
autora, os koixomuneti devem ser classificados em curandores e feiticeiros, embora todos
se identifiquem como católicos. Por outro lado, apresenta-nos os curandeiros, geralmente
crentes, que desenvolvem seus tratamentos à base de plantas medicinais, pois a fitoterapia
é utilizada nos tratamentos de todos os males. Salienta que “O Xamanismo, embora
bastante modificado, atualizado, continua existindo como parte do universo Terena”
(CARVALHO, 1996, p. 97).
Com relação ao comportamento dos crentes e católicos destacou que a diferença
está em um controle mais rigoroso sobre os padrões de comportamento dos indivíduos
por parte dos pastores. Em suas palavras, “A abstenção de bebidas alcóolicas, do fumo e
da dança é uma prática almejada pelos ‘crentes’. Alguns Terenas atribuem uma situação de
maior coesão e melhor possibilidade de ‘progresso’ da comunidade ao fato de estarem
vinculados a religiões protestantes” (CARVALHO, 1996, p. 67).
Em linhas gerais, buscamos evidenciar a trajetória da xamã Miguelina Silva com a
qual tive oportunidade de dialogar algumas vezes. Respeitada benzedeira, inclusive pelas
irmãs Lauritas que moram em Aquidauana, bem como por muitos regionais que recorrem
à sua poderosa oração quando precisam da cura.

592
SÍNTESE E CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nas interlocuções com lideranças religiosas evangélicas e católicas,


podemos concluir que o Xamanismo se encontra no cotidiano Terena e sempre é
requisitado pelos índios e os não índios das aldeias e das cidades vizinhas, bem como pelos
Terena de outras Terras Indígenas ou cidades. Entretanto, na atualidade, os xamãs
encontram-se incluídos entre os leigos, afiliados ou clientes da Igreja Católica de suas
aldeias. Com isso estamos querendo destacar que os xamãs são católicos Terena.
Por mais que ressaltemos a permanência do Xamanismo, temos que salientar que
o desejo de reforma moral foi uma decisão dos próprios terenas, preconizada na situação
histórica de Reserva, ainda na primeira metade do século XX. Enquanto sujeitos históricos
produtores de estratégias criativas os Terena aceitaram o Cristianismo e todas as alterações
produzidas em seu cotidiano. São católicos ou crentes em sua maioria.
Isso foi possível porque as agências cristãs também abriram, ao longo do século
XX, novas possibilidades de participação e interação com as lideranças religiosas e políticas
indígenas interna e externamente às suas áreas. Tanto os indígenas quanto as agências
religiosas passaram por mudanças no processo histórico. Ao conjunto de mudanças
ocorridas no modus vivendi Terena denominamos de reforma moral e social (WRIGHT,
2004).
A reforma moral afetou diretamente a dimensão das relações sociais internas e
externas, pela qual o afiliado passou e passa quando conclui seu processo de conversão,
atingindo o plano espiritual.Disciplina o plano terreno, no qual o adepto passa a viver a
partir de novas regras de conduta, norma e comportamento, tal como deve ser um
verdadeiro cristão. Na ótica dos evangélicos o convertido liberta-se de seus vícios terrenos
tais como: o fumo, a bebida alcoólica, os festejos profanos, o concubinato, a idolatria, a
bigamia, a jogatina e o xamanismo. O cristão evangélico convertido nasce para uma nova
vida. Esse modo de ver e viver no mundo cristão e protestante Terena é propagado em
suas missões junto às outras etnias indígenas (MOURA 2001). O católico segue o livre
arbítrio e sua conduta não é acompanhada pelos demais católicos.
Retomo o grupo terena das Mulheres Corajosas, que ao mesmo tempo rezam,
benzem, praticam pajelança e denunciam as situações e comportamentos que acreditam
ser destoantes do jeito de ser terena. O grupo tem um papel político pontual quando
denuncia os comportamentos inadequados dos jovens terenas, que se organizam em gangs
nas aldeias, ao mesmo tempo em que denuncia o tráfico e consumo de drogas na Terra

593
Indígena Taunay/Ipegue. Ao assumirem a identidade de benzedeira as mulheres desse
grupo fazem emergir a sua dimensão xamã. Miguelina é potencialmente uma dessas
mulheres xamãs.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Fernanda. Koixomuneti e outros curadores: Xamanismo e práticas de


cura entre os Terena. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). São Paulo: USP,
1996.

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MOURA, Noêmia S.P. UNIEDAS: O Símbolo da Apropriação do Protestantismo
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sobre Alternativas Religiosas na América Latina, 8., p. 02 – 34, São Paulo, 1998.
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MOURA, Noêmia S.P.. UNIEDAS: O Símbolo da Apropriação do Protestantismo


Norte-Americano pelos Terena Crentes (1972-1993). Dissertação (Mestrado em
História). UFMS, Campus de Dourados-MS, 2001.

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Pentecostais e Neopentecostais entre os Povos Indígenas no Brasil. Campinas, SP:
Edunicamp, Vol. II, 2004.

XIMENES, Lenir. A Retomada Terena em Mato Grosso do Sul: Oscilação Pendular


entre os Tempos e Espaços de Acomodação em Reservas, Promoção da Invisibilidade
Étnica e Despertar Terena. Tese (Doutorado em Geografia Humana). Programa de Pós-
Graduação em Geografia Humana da Universidade Federal da Grande Dourados,
Dourados-MS, 2017.

594
POVOS INDÍGENAS: DINÂMICAS CULTURAIS E SISTEMAS DE
MUNDO

Meire Adriana da SILVA355

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo promover uma breve reflexão acerca das
transformações do capitalismo e de suas novas características, com ênfase para as mudanças
ocorridas entre as populações tradicionais, em especial, os povos indígenas. As reflexões serão
pautadas principalmente no modo de vida e nas perspectivas de futuro de parte das populações
indígenas. Para tanto, utilizo obras de autores como Sahlins (1988; 1997), Morgado (1993) e Cunha
(2009) como arcabouço teórico. O trabalho não abrangerá a totalidade dos povos indígenas
brasileiros em suas relações com o capitalismo ou com uma sociedade global. Além de não ser o
objetivo, essa abrangência implicaria um trabalho inesgotável, pois o país possui uma enorme
diversidade de povos indígenas. Os processos históricos de contato, de respostas, de resistências, e
de graus diferentes de interação dos povos indígenas do Brasil com a sociedade não indígena devem
ser levados em consideração para que as especificidades de cada povo, bem como suas relações
com as sociedades envolventes, sejam evidenciadas. Dessa forma, as discussões sobre o sistema
mundial e as apropriações ou não que os povos indígenas fazem ao seu próprio sistema de mundo
não podem ser generalizadas, pois existem etnias com pouco grau de contato com a sociedade não
indígena, enquanto outras possuem situações bem contrárias a essas. Nesse sentido, esses graus
diferentes de interação com a sociedade não indígena acarretam diferentes maneiras de
relacionamento com aspectos decorrentes do capitalismo. Na tentativa da não generalização, utilizo
exemplos principalmente relativos aos Galibi Marworno, aos Galibi Kalinã, aos Palikur e aos
Karipuna, localizados no Estado do Amapá, região do município de Oiapoque.

Palavras-chave: Capitalismo. Povos indígenas. Sistema mundial.

INTRODUÇÃO

Nós temos que pedir para o Presidente a demarcação de nossa área. Se


a gente não pedir e lutar para isso, eles não vão se preocupar. O chefe é
chefe para defender os interesses de todos. Eu não quero me vender,
para vender meu pai, meus irmãos e ver os meus filhos viver amanhã na
miséria. Nós preferimos passar miséria juntos, mas não quero vender o
meu povo. Tem gente que até me ofereceu motor de popa. Já
pensou...viver sob o domínio de um rico! (Manoel Floriano Maciel).

O relato acima, que é parte de uma fala da liderança Galibi Marworno, ocorreu
durante a Assembleia dos chefes e representantes dos povos indígenas da região de
Oiapoque, no norte do Amapá, Aldeia Kumarumã, Terra Indígena Uaça, em setembro de
1976. A referida assembleia teve como objetivo a discussão sobre a demarcação dos
territórios indígenas dessa região.

355
Doutoranda em Ciências Sociais; Unesp/Araraquara. Graduada e Mestre em História pela Universidade
Federal do Mato Grosso do Sul/UFMS/UFGD; CNPq; meireas@outlook.com

595
Essa região é composta pelas Terras Indígenas Uaçá, Juminã e Galibi, e possui
várias aldeias que, na sua grande maioria são transitáveis apenas de barco, pois as estradas
são os rios. Em 1976, os povos indígenas tinham pouco acesso aos barcos de popa, mas,
atualmente, muitas famílias de algumas aldeias das Terras Indígenas de Oiapoque, entre
elas, a Kumarumã, possuem esse tipo de barco.
Retomarei, neste trabalho, analogamente, a frase “tem gente que até me ofereceu
motor de popa. Já pensou...viver sob o domínio de um rico!” que retrata o espanto do
senhor Manuel, liderança dos Galibi Marworno, quanto à possibilidade de ficar na
dependência de um rico. É uma fala riquíssima em significados e aqui será utilizada para
propiciar algumas reflexões ao longo do texto, entre elas: viver sob o domínio de um rico
hoje, para essas populações, seria estar totalmente dependente do capitalismo? Atualmente
esses povos se apropriaram de produtos, como o barco de popa. Qual o sentido da
associação do barco de popa ao domínio de um rico em 1976? Seria o mesmo significado
para os dias atuais?
Nesse sentido, esse trabalho tem como objetivo promover uma breve reflexão
acerca das mudanças do capitalismo e suas novas características, com ênfase nas mudanças
ocorridas entre as populações tradicionais, em especial, os povos indígenas.
Comungaremos das ideias de que houve mudanças nas características do capitalismo nos
últimos séculos. Portanto, se o capitalismo sofreu alterações, logo as populações indígenas
também sofreram. Essas reflexões serão pautadas, principalmente no modo de vida e nas
perspectivas de futuro das populações indígenas.
Dessa forma, as acaloradas reflexões sobre o sistema mundial e as apropriações ou
não que os povos indígenas fazem ao seu próprio sistema de mundo não podem ser
generalizadas. Nesse sentido, os graus diferentes de interação da sociedade indígena, com
a sociedade não indígena acarretam diferentes maneiras de relacionamento com aspectos
decorrentes do capitalismo, entre eles a necessidade de bens materiais. Para essas reflexões,
utilizo exemplos principalmente relativos aos Galibi Marworno, aos Galibi Kalinã, aos
Palikur e aos Karipuna, localizados no Estado do Amapá, região do município de
Oiapoque.
Apesar das questões citadas como objetivos principais desse trabalho não estarem
diretamente ligadas à atual pesquisa de doutorado denominada: Galibi Marworno, Galibi
Kalinã, Palikur, Karipuna e o processo de homologação de seus territórios indígenas –
Amapá, as reflexões propostas aqui são tangentes à pesquisa, pois o processo de
territorialização perpassa pelo modo como esses povos são vistos e como observam o

596
chamado sistema mundial ou a globalização e suas decorrentes associações com as relações
capitalistas.
Para Oliveira (1998) a territorialização se refere também à tomada de decisões dos
povos indígenas. Para o autor:

O que estou aqui chamando de processo de territorialização é,


justamente, o movimento pelo qual um objeto político administrativo -
nas colônias francesas seria a “etnia”, na América espanhola as
“reduciones e resguardos, no Brasil as “comunidades indígenas” – vem
a se transformar em uma coletividade organizada, formulando uma
identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de
representação, e reestruturando as suas formas culturais [...]
(OLIVEIRA, 1998, p. 56).

Esse processo de territorialização nos remete à discussão sobre a dinâmica da


cultura e o processo da mundialização ou globalização, pois as decisões tomadas pelos
povos indígenas refletem seus mecanismos e estratégias locais e em contextos mais amplos.
Dessa forma, entender, explicar e compreender como se deram as relações dos povos
Galibi Marworno, Palikur, Galibi Kalinã e Karipuna para legalização dos seus territórios
perpassa os caminhos de interação e de separação destes com um mundo globalizado.

O DEBATE DE SAHLINS E MORGADO ACERCA DO SISTEMA MUNDIAL

O debate acerca da tese da ameaça do capitalismo e da globalização frente ao fim


das populações tradicionais é um tema contemporâneo às Ciências Sociais, e que traz
consigo algumas reflexões, entre elas: a globalização e a mundialização estariam em vigência
de proporcionar o desaparecimento ou enfraquecimento de populações tradicionais? Ou
é nesse processo de territorialização que ações políticas de estratégia de contato e de
ressignificações geram o fortalecimento dessas populações?
Para Wallerstein (apud MONTEIRO, 1993), não é possível resistir à expansão da
economia capitalista, pois a lógica capitalista penaliza as economias que não maximizam
lucros, e os valores antimercado não são introduzidos nas decisões de forma sistemática e
permanente. Deste modo, indago: seriam essas teses comparáveis às teorias de
assimilacionismo que fizeram a previsão do fim das populações indígenas brasileiras? Essas
teorias, embora superadas, influenciaram nas políticas indigenistas brasileiras.
Cunha (2009) afirma que há um entendimento errôneo sobre o que seja
integração, pois entende-se integração como sinônimo de assimilação cultural. Para Cunha,

597
ao se considerar o índio como tutelado a partir de 1831, passou-se a entender que,
enquanto fossem índios, ou “crianças grandes”, estes deveriam ser protegidos até que
deixassem de ser índios e gradualmente fossem se integrando à sociedade não indígena.
No entanto, a autora expõe outra reflexão do que seja integração: “Querer a integração não
é, pois, querer assimilar-se: é querer ser ouvido, ter canais reconhecidos de participação no
processo político do país, fazendo valer seus direitos específicos” (CUNHA, 2009, p. 257).
Deste modo, no caso dos povos indígenas brasileiros e diante das reflexões acerca
da não resistência ou do enfraquecimento desses povos, devido ao sistema mundial e à
expansão do sistema capitalista, coube a mim refletir que o fato desses povos estarem
integrados a um sistema capitalista é estar vivo e possuir estratégias de convivência com o
sistema capitalista, quando for necessário.
Montero (1993) faz o debate sobre o papel da antropologia frente à questão das
sociedades indígenas e a mundialização. Para ela o “processo de mundialização não leva
necessariamente a homogeneização cultural, mas, ao contrário, repõe em outro nível as
diferenças” (MONTERO, 1993, p.161). Nesse sentido, a autora propõe que o papel do
antropólogo seja compreender os complexos jogos das estratégias de integração/separação
de culturas.
Sahlins (1988), em a Cosmologia do capitalismo, une-se às críticas de antropólogos
contrários a ideia de que:

[...] a expansão global do capitalismo ocidental, ou do chamado sistema


mundial, transformou os povos colonizados e “periféricos” em objetos
passivos de sua própria história, e não em seus autores, e de que, por
meio de relações econômicas tributárias, transformou da mesma
maneira suas culturas em bens adulterados (SAHLINS, 1988, p. 444).

Para o referido autor, o encontro cultural não desacultura esses povos, mas, sim,
integra suas experiências no sistema mundial ao seu próprio sistema de mundo, pois
entende que o “sistema mundial não é uma física de relações proporcionais entre
“impactos” econômicos e “reações” culturais” (SAHLINS, 1988, p. 446). Além disso, o
antropólogo afirma que os efeitos das forças materiais globais dependem da forma como
são mediados nos esquemas culturais locais.
Montero (1993), apesar de comungar da ideia de Sahlins (1988) sobre uma
dinâmica cultural entre povos tradicionais, o que ela chama de reposição de diferenças e
ele de integração no sistema mundial em seu próprio sistema de mundo, critica Sahlins no

598
tocante às condições desiguais em que essas relações se dão entre povos tradicionais.
Montero (1993) afirma que Sahlins descreve que cem anos após a descoberta das Ilhas
Sandwich, os havaianos foram transformados em proletariados rurais e, dessa forma, a
autora reforça a crítica às condições desiguais nas relações entre os povos tradicionais e o
sistema mundial. No entanto, Sahlins (1988), na continuidade do episódio citado por
Montero (1993), problematiza o fato de esses povos terem se transformado em
proletariados:

Mas não é verdade que o curso da história havaiana, desde 1778, tenha
sido regido por esse resultado, ou que tenha consistido meramente na
substituição das relações polinésias por relações burguesas. Ao contrário,
o arquipélago assistira a um período significativo de desenvolvimento
indígena quando os chefes governantes se apropriaram das mercadorias
ocidentais para seus próprios projetos hegemônicos – ou seja, para as
condições tradicionais de sua própria divindade (SAHLINS, 1988, p.
446).

Por outro lado, Montero (1993) concorda que os efeitos das forças materiais globais
dependem da forma como são mediadas por culturas locais, mas levanta outra questão
interessante e muito problematizadora, bastante pautada pela antropologia atual,
principalmente em aspectos relativos à cultura e identidade de povos indígenas, qual seja:
“A reflexão sobre os encontros culturais não pode colocar entre parênteses o fato de que
as mediações locais se fazem sempre sob condições desiguais” (MONTERO, 1993, p 165).
Sahlins (1988) parece continuar, ao longo de suas produções, a problematizar as
respostas que os povos tradicionais – africanos e indígenas – foram dando ao contexto do
chamado sistema mundial, e a contrapor as ideias do enfraquecimento desses povos,
enquanto povos tradicionais. Em 1997, ao discorrer sobre o conceito de translocalidade356,
entendido como as relações entre os imigrantes africanos com seus locais de origem e a
ressignificação que a fazem em seus novos espaços, ou seja, cidade/campo/aldeia, afirma
que: “na complexa dialética da circulação cultural entre a terra natal e os lares alhures, as

356
“Os imigrantes identificam-se com seus parentes na região de origem, e é a partir dessa identificação que
se associam transitivamente entre si no estrangeiro. Esses habitantes da cidade e do mundo exterior
permanecem ligados a seus parentes na terra natal, especialmente por entenderem que seu próprio futuro
depende dos direitos que mantém em seu lugar de origem. Assim o fluxo de bens materiais favorece em geral
os que ficaram em casa: estes se beneficiam dos ganhos obtidos e das mercadorias adquiridas por seus
parentes na economia comercial externa. Nas palavras de um pesquisador, a aldeia consegue reverter ‘a
função parasita tradicionalmente atribuída às cidades’
599(HUGO, 1978, p. 264). Sob esse aspecto, portanto, a
ordem indígena engloba a moderna” (SAHLINS, 1997, p.115-116).
práticas e as relações tradicionais ganham novas funções e talvez novas formas situacionais”
(SAHLINS, 1988, p. 114).
Desse modo, para Sahlins (1988), o fato de as populações tradicionais terem sido
transformadas em proletariados rurais não as faz deixarem de ser quem são, ou seja, essas
populações mantêm vínculos de origem e o reproduzem em seus novos espaços, como,
por exemplo, os laços de parentesco que criam e recriam, bem como a comercialização de
bens entre seus locais de origem e seus novos locais.
Montero (1993) ressalta que, para haver uma antropologia das sociedades
contemporâneas é necessário estar atento às características trans-sistêmicas de ordenação
do mundo contemporâneo e às consequências sobre as culturas. A autora recorre à
afirmação de Balandier: “o encontro cultural não pode ser compreendido como simples
contato ou troca entre duas culturas” (BALANDIER apud MONTERO, 1955, p. 165).
Para a autora, embora o conceito de sistema mundial não tenha sido abordado no campo
cultural por Walerstein (1985), tendo em vista a compreensão dos mecanismos
econômicos do capitalismo, esse conceito coloca na pauta dos antropólogos a necessidade
de reflexão a respeito de um duplo fenômeno, que se aparenta contraditório, mas que,
segundo ela, responde ao funcionamento do sistema. Os fenômenos consistem em: “a
expansão da lógica capitalista para outros sistemas culturais leva, por um lado, a
aproximação das culturas e gera, por outro, mecanismos de reposição de novas diferenças”
(MONTERO, 1955, p. 165).
Diante das relações de povos indígenas com o chamado sistema mundial ou com
os encontros culturais, as políticas internas, que se dão no interior das aldeias, são fortes
aliadas desses povos para a discussão de seus problemas e busca de soluções, mas há a
necessidade das relações dos povos indígenas com a política global. Nesse sentido, as
análises da política, relacionada com a democracia e pluralidade feita por Mouffe (2015) é
pertinente para a reflexão das demandas dos povos indígenas.
Mouffe se refere à necessidade da radicalização da democracia, de maneira que
todos possam expressar suas demandas no campo da política. Nesse sentido, as demandas
dos povos indígenas nesse campo, ou de uma possível democracia pluralista, também
perpassam pela forma como eles vão se relacionando com o chamado sistema mundial.
Ou seja, os encontros culturais dos povos indígenas perpassam por suas demandas
políticas. Por outro lado, é sabido que há campos concorrenciais conflitantes entre parte
das sociedades indígenas e não indígenas. O debate entre Montero (1993) e Sahlins (1988),

600
nesse sentido, faz-nos refletir sobre as desigualdades de condições a que estão expostos
esses povos, sejam condições políticas ou culturais.
Portanto, a diferença entre Montero (1993) e Sahlins (1988) parece estar
relacionada à questão das não condições de igualdade nos chamados encontros culturais,
ou seja, não há um equilíbrio que faça com que os modos de ser possam estar fortalecendo
os modos de vida atuais de povos tradicionais nesses encontros. No entanto, nota-se que a
preocupação de Sahlins (1988) não se centra na questão de equilíbrio de valores, costumes
e formas de organização, mas, sim, na interpretação de que esses povos se mantêm sendo
eles mesmos, por meio de suas recriações, independente da balança cultural pesar mais
para as chamadas culturas ocidentais ou não. Sahlins (1988), inclusive, faz uma crítica à
chamada ocidentalização. Para ele, as ideias místicas da dominação ocidental, que
predominou entre parte de antropólogos e historiadores, levaram-nos à interpretações
equivocadas de que a expansão mundial do capitalismo levaria ao fim das formas de
história cultural. Sahlins (1988) afirma, ainda, que o ocidentalismo poderia ser substituído
por pós-ocidentalismo, como sugere John Kelly.
Na antropologia contemporânea, são variados os conceitos de cultura que ressaltam
a dinâmica cultural e que, de certo modo, dialogam ou até mesmo são concomitantes às
ideias do chamado sistema mundial e das formas como povos indígenas se relacionam com
esses aspectos. Entre eles, um dos conceitos que considero bastante pertinente é proposto
por Cunha (2009):

A cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de


intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire
uma nova função, essencial e que se acresce ás outras, enquanto se torna
cultura de contraste: esse novo princípio que a subtende, o do contraste,
determina vários processos. [...] Em suma a cultura não é algo dado,
posto, algo dilapidável também, mas sim algo constantemente
reinventado, recomposto, investido de novos significados; e é preciso
perceber (como muito bem apontou Eunice Durham, ver [1977] 2004)
a dinâmica, a produção cultural (CUNHA, 2009, p. 237 - 239).

Diante dessas questões como: dinâmica cultural, reposição de diferenças,


integração de experiências do sistema mundial em seu próprio sistema de mundo,
globalização, sociedade mundial ou mundialização, cujos temas são pertinentes a uma
antropologia contemporânea, levanto alguns questionamentos: Montero (1993), apesar de
reconhecer a dinâmica cultural, possui uma visão pessimista sobre o futuro dos povos
indígenas tendo em vista condições desiguais nos chamados encontros culturais? Ou trata-

601
se de um processo dialético, como citado pela autora e por Sahlins? Embora não haja essa
afirmação explícita nas observações de Montero (1993), a análise da desigualdade de
condições nos encontros culturais pode estar prevendo novamente a extinção de
comunidades tradicionais? Estaríamos diante de uma nova ou velha tendência
epistemológica frente ao futuro desses povos, quanto à assimilação? Diante da
mundialização, ou globalização, esses povos sobreviverão enquanto povos tradicionais por
meio da integração de suas experiências no sistema mundial em seu próprio sistema de
mundo, como quer Sahlins (1988), ou acabarão tendo uma total assimilação ao sistema
mundial? Montero (1993), afirma que a antropologia poderia dar conta da dialética da
integração/separação.
Pois bem, mesmo diante das desigualdades de condições referentes às trocas
culturais, entendo que, se há uma dialética, essa imersão no sistema mundial propiciara
mecanismos de afirmação das diferenças ou reposição das diferenças. Por outro lado,
questiono: já seria o momento epistemológico de superação da oposição entre resistência
e submissão, como sugere a autora, transportando-nos para o momento de análise da
reposição das diferenças? Ou resistência e submissão ainda são fatores merecedores de
melhores e mais específicas análises contemporâneas?
Diante destas inquietudes, penso que possíveis respostas a esses questionamentos
dependem de cada contexto específico. No que se refere aos processos históricos ao longo
dos séculos vividos pelos Galibi Marworno, Palikur, Galibi Kalinã e Karipuna, é necessário
perceber essas especificidades, pois, como observou Antonella (2003), cada grupo indígena
foi dando respostas diferentes diante das várias frentes de colonialismo.
Na atual pesquisa de doutorado, pretendo demostrar como foram essas respostas,
enquanto convivência e estratégias políticas e culturais desses povos no tocante à legalização
de seus territórios. Diante dessas questões, nota-se que a antropologia contemporânea
também tem o desafio da não generalização ao analisar cada contexto atual das variadas
etnias, pois cada uma delas pode estar respondendo de maneira diferente aos encontros
culturais e aos sistemas mundiais.
Sahlins (1988), critica os estudos de Wolf (1982) sobre o Mundurucu. Para ele, ao
mesmo tempo em que o autor defende o papel ativo histórico das pessoas enquanto
sujeitos que moldam as circunstâncias materiais que lhe são impostas, ele é adepto a uma
teoria cultural que vê as concepções das pessoas como funções de circunstâncias materiais.
Nesse sentido, Sahlins destaca que a teoria marxista-utilitarista, que foi favorecida pelos

602
teóricos do sistema mundial, entende cultura como reflexo do modo de produção, e
contesta esse entendimento da teoria marxista:

Entretanto, precisamos levar mais a sério o entendimento marxista da


produção como apropriação da natureza no interior e através de uma
forma determinada de sociedade. Decorre dai que, em si mesmo, um
modo de produção não especifica nenhuma ordem cultural – a menos e
até que sua própria ordem, como produção, seja culturalmente
especificada. A produção escreveu Marx, é a “reprodução de um modo
de vida definido” (MARX; ENGELS, 1970, p. 32). Um sistema de
produção é a forma relativa de uma necessidade absoluta, um modo
histórico particular de atender as exigências humanas. Por isso a
apropriação cultural que as pessoas fazem de condições externas que elas
não criam, e das quais não podem escapar, constitui o próprio princípio
de sua ação histórica (SAHLINS, 1988, p. 445).

Desse modo, Sahlins observa ainda que não se trata de desconhecermos as forças
devastadoras modernas, mas que seu curso histórico deve ser visto como um processo
cultural. Além disso, o autor afirma que o capitalismo ocidental inseriu no mundo imensas
forças de produção e que essas são coercitivas e destrutivas, e reconhece que essas forças
são irresistíveis, mas que, por isso, as relações e os bens do sistema mais amplo passam a
ocupar lugares dotados de significados na ordem local das coisas.
Essas afirmações me recordaram a fala de Maciel: “Tem gente que até me ofereceu
motor de popa. Já pensou...viver sob o domínio de um rico!”. Essa irresistibilidade, ou seja,
esse não resistir, é produto da história de contato de cada povo e das necessidades de cada
uma delas. O barco de popa que Maciel resistiu, em 1976, torna-se irresistível nos últimos
anos entre os povos indígenas de Oiapoque, já que melhora bastante as condições de
transporte, pois esses povos têm vários assuntos a resolver tanto em aldeias próximas
quanto na cidade. Não me aprofundarei nessa discussão por achar que o tema merece um
trabalho de campo etnográfico, mas certamente a inserção do barco a motor trouxe a esses
povos soluções e problemas. Ainda assim, com essa inserção, esses povos permanecem
sendo Galibi Marworno, Palikur, Galibi Kalinã e Karipuna.
Durante uma das minhas aulas com os alunos indígenas da Licenciatura Indígena
de Oiapoque, entre 2008 e 2012, discutíamos a questão da economia entre eles. Nesse
contexto, utilizei-me do exemplo do uso de barco de popa para problematizar os modos
de economia entre eles. Propus a seguinte reflexão: atualmente com o barco de popa vocês
levam muito menos tempo da aldeia até a cidade para realizarem suas atividades do que
com o uso de canoas. O que fazem com o tempo ocioso? Se usarem para ter mais

603
empregos, como muitas vezes parte da sociedade não indígena faz, penso que estariam
sobre uma lógica capitalista igual a nossa. Caso contrário, essa apropriação de bens
materiais pode ser diferenciada, ou seja, seria o que Sahlins (1988) denomina de atribuir
ao sistema mundial seu próprio sistema de mundo.
Sahlins reconhece que a dependência da economia mundial pode, em longo prazo,
vulnerabilizar povos tradicionais, mas ressalta que “destino não é história e nem é sempre
tragédia” (SAHLINS, 1988, p. 448).
Nesse sentido, para análise de como os povos indígenas se relacionam com o
capitalismo, sua história de contato colonial, contemporâneo e do presente deve ser
considerada.

BREVES CONSIDERAÇÕES

As novas características do capitalismo contemporâneo perpassam pelo modo de


vida de parte das populações indígenas brasileiras, dependendo do contexto histórico de
cada povo. Deste modo, as novas faces do capitalismo estão notadamente inseridas em um
contexto mundial, e as populações tradicionais não estão fora desse contexto, em especial,
uma parcela dos povos indígenas. Assim como o capitalismo, esses povos estão em
constante processo de mudança.
Nesse sentido, é necessário um olhar interdisciplinar das ciências sociais, seja ele
voltado à antropologia, ao pensamento social, ao pensamento político ou à ciência política.
O tema – povos indígenas e capitalismo – não deve ser exclusivo da antropologia
e o diálogo entre a antropologia e essas demais áreas de conhecimentos das Ciências Sociais
sobre as novas características do capitalismo e das populações indígenas pode ser salutar
para uma maior problematização do tema proposto, qualificando ainda mais o debate
epistemológico sobre o futuro dos povos indígenas.

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605
POLÍTICA INDÍGENA DA ÁGUA: A EXPERIÊNCIA DOS TUXÁ DE
RODELAS

Gustavo Moreira RAMOS357

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo realizar uma etnografia das práticas de atuação
indígena nas questões relacionadas à gestão da água na região do submédio do Rio São Francisco,
a partir da experiência dos Tuxá de Rodelas (BA). Os Tuxá foram expulsos da ilha em que viviam
no rio São Francisco (Ilha da Viúva), a qual foi inundada quando da construção da hidrelétrica de
Itaparica, realizada pela Companhia Hidroelétrica do São Francisco (CHESF) em 1987. Após isso
foram reassentados nos limites da nova cidade de Rodelas, construída para abrigar uma parcela dos
ex-moradores das cidades inundadas. Conforme dizem os próprios Tuxá, esses foram “jogados”
na cidade de Rodelas, onde residem em uma aldeia urbana sem nenhum apartamento entre a área
indígena e o restante do município. Apesar da luta pela água ser uma constante na história Tuxá, é
apenas em 2001 que ela recebe fôlego novo com a instituição do Comitê da Bacia Hidrográfica do
Rio São Francisco (CBHSF) - órgão colegiado, instituído por decreto presidencial, que abrange os
Estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe e o Distrito Federal e tem
como missão “descentralizar o poder de decisão, integrar as ações públicas e privadas e promover
a participação de todos os setores da sociedade” nas questões referentes à gestão das águas da bacia
do Rio São Francisco. Em 2013 o cacique Tuxá tornou-se representante indígena no comitê de
bacia, função que exercerá até 2019, intensificando a atuação indígena nas questões relativas à
gestão da água na região. Assim, se em determinado tempo a importância política dos Tuxá se deu
por meio da disseminação do Toré como prática ritual de afirmação dos povos da região enquanto
indígenas, hoje essa relevância política ocorre, também, por meio da atuação do cacique Tuxá como
representante indígena no CBHSF, posto que a gestão da água é assunto primordial aos povos
indígenas da região, ao lado daqueles relativos à questão territorial e à afirmação étnica. Isto posto,
a intenção é investigar as relações de força que permeiam as práticas políticas indígenas no órgão e
as estratégias nativas que produzem tais práticas, privilegiando as categorias nativas a fim de buscar
compreender o que pode ser a dimensão do político para os povos indígenas da região, em especial
os Tuxá de Rodelas, tendo em vista a estreita relação entre luta pela água, processos de
territorialização e etnicidade.

Palavras-chave: Antropologia. Política indígena. Água. Rio São Francisco. Tuxá.

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa tem como objetivo realizar uma etnografia da atuação indígena
no Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), mais especificamente
na Câmara Consultiva Regional do Submédio Rio São Francisco (CCR Submédio)358

357
Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Antropologia Social da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar). Agência financiadora: CNPq.
gustavomoreiraramos@gmail.com
358
A CCR Submédio, com sede na cidade de Petrolina (PE), é uma das quatro subdivisões regionais do Comitê
da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco (CBHSF), órgão colegiado, instituído por decreto presidencial
de 5 de junho de 2001 (BRASIL, 2001), que abrange606os Estados de Minas Gerais, Goiás, Bahia, Pernambuco,
Alagoas, Sergipe e o Distrito Federal e tem como missão “descentralizar o poder de decisão, integrar as ações
localizada em Petrolina (PE), a partir da experiência dos Tuxá de Rodelas (BA), cujo
cacique Uilton Tuxá é representante indígena na instituição.
O trabalho de campo envolve o acompanhamento da atuação do cacique Tuxá, em
colaboração com outras lideranças indígenas, no órgão mencionado, a fim de cartografar
as práticas indígenas a partir do lugar atribuído ao CBHSF pelo povo Tuxá, e outros povos
indígenas da região, em seu próprio contexto sócio-cosmológico, especialmente nas
questões relativas à água359 (cosmovisão, usos). Assim, tenciono verificar as relações de força
que permeiam uma “política indígena da água” no CBHSF, tendo em vista que esse é um
órgão instituído com a finalidade de tratar questões relacionadas à gestão da água nessa
região do rio São Francisco. Para isso, proponho acompanhar o processo de elaboração,
submissão, tramitação e possível implementação do Projeto Permanente Indígena (PPI),
que é, no momento, a principal iniciativa indígena em andamento no órgão, a fim de
averiguar como as lideranças indígenas da região fabulam360 suas práticas.

OS TUXÁ

OS TUXÁ E A QUESTÃO DA ÁGUA

Os Tuxá ocupam atualmente três áreas: uma no estado de Pernambuco, à margem


direita do rio Moxotó, e as demais no estado da Bahia, sendo uma no município de
Ibotirama e outra no município de Rodelas. Essa divisão é consequência direta da
construção da hidrelétrica de Itaparica, realizada pela Companhia Hidroelétrica do São
Francisco (CHESF) em 1987, que causou a inundação da ilha em que vivia o povo Tuxá,
a Ilha da Viúva (SALOMÃO, 2006, 2011). Após a inundação da Ilha da Viúva, os Tuxá
foram reassentados nos territórios supracitados, apenas o grupo hoje denominado Tuxá de
Rodelas permaneceu próximo ao seu antigo território, vivendo nos limites da nova cidade
de Rodelas, construída para abrigar uma parcela dos ex-moradores das cidades

públicas e privadas e promover a participação de todos os setores da sociedade”nas questões referentes à


gestão das águas da bacia do Rio São Francisco. A região denominada como Submédio do São Francisco
corresponde a 17% do território da bacia do São Francisco, abrangendo 25 municípios da Bahia e 59
municípios de Pernambuco (CBHSF, 2016).
359
O termo “gestão” (da água) será utilizado apenas quando a questão for tratada no âmbito do CBHSF.
Quando estiver me referindo aos Tuxá, serão utilizados os termos “uso da água” ou simplesmente “água”,
tal como os mesmos tratam a questão.
360
“Pegar as pessoas em flagrante delito de fabular607
é captar o movimento de constituição de um povo”
(DELEUZE, 2013, p. 161).
inundadas361. Conforme dizem os próprios Tuxá, esses foram “jogados” na cidade de
Rodelas, onde residem em uma aldeia urbana sem nenhum apartamento entre a área
indígena e o restante do município.
Apesar da luta pela água ser uma constante na história Tuxá, é em 1987 que ela se
intensifica, em resultado da construção da hidrelétrica de Itaparica, e apenas em 2001 que
recebe fôlego novo com a instituição do CBHSF por decreto presidencial (BRASIL, 2001).
Porém, somente em 2013 passam a ser abertos editais para submissão de projetos com
demandas especificamente indígenas. Foi também nesse ano a eleição do cacique Uilton
Tuxá como representante indígena na CCR Submédio. Conforme o regimento do
CBHSF, os mandatos de todos os cargos têm duração de três anos, assim o cacique Tuxá
exerceu a função de 2013 a 2016, ano em que foi reeleito, iniciando um segundo mandato
que se entenderá até 2019.
Conforme indica o cacique Uilton Tuxá, o principal objetivo em seu segundo
mandato será “marcar a presença indígena” (UILTON TUXÁ, 2016), com a tentativa de
implementação do Projeto Permanente Indígena (PPI). Atualmente o funcionamento do
CBHSF, no que se refere ao atendimento das demandas específicas de cada segmento que
compõe o órgão, ocorre da seguinte forma: são abertos editais para captação de recursos,
os grupos componentes do Comitê submetem suas demandas na forma de projetos, que
concorrerão com os dos demais grupos. Dessa forma, as demandas indígenas competem
sempre com outros grupos componentes da CCR Submédio. A proposta do PPI é que o
órgão tenha obrigatoriamente que repassar uma quantia anual fixa aos povos indígenas da
região através de seu representante na CCR, excluindo assim a necessidade, e mesmo a
possibilidade, das demandas indígenas competirem com projetos dos demais grupos
componentes. Segundo o cacique, o PPI se justifica no fato de que os recursos que
demandam os povos indígenas da região são voltados para sua própria subsistência,
especialmente a agricultura indígena, tão dependente das águas do rio São Francisco, sendo
que esses recursos para subsistência são necessários, principalmente, por consequência da
poluição do rio São Francisco e da destruição de terras indígenas férteis, especialmente
pela inundação dessas terras durante a construção da barragem de Itaparica, fatos que
fazem parte da história recente dos Tuxá.

Sobre a questão do impacto da construção da barragem de Itaparica, ver Araújo et al. (2000). Sobre essa
361

mesma questão, mas tendo o povo Tuxá como estudo de caso, ver Marques (2008); Melo (1988).

608
OS TUXÁ E A QUESTÃO INDÍGENA DA ÁGUA

É escassa a bibliografia relacionada às práticas políticas do povo Tuxá, cuja


relevância é destacada em diversas etnografias produzidas sobre outros povos indígenas
situados na região Nordeste (CARVALHO, 2005, 2011; BATISTA, 1991; BRASILEIRO,
1996), como, por exemplo, na importância do povo Tuxá na disseminação da prática ritual
do Toré362, cuja dimensão política para os povos indígenas da região é destacada em outros
trabalhos (ARRUTI, 1995, 1999, 2003, 2006; OLIVEIRA, 1988; CARVALHO, 2005,
2011), indígenas.
Em estudo a respeito do povo indígena Kiriri, Carvalho (2005), aponta que “a
mobilização étnica desencadeada na década de setenta teria buscado, através do Toré
tomado de empréstimo aos Tuxá, reorganizar o grupo e elevá-lo social e moralmente” (p.
85), empreendimento esse que ela caracteriza como étnico-político. Ainda sobre a relação
entre os Kiriri e os Tuxá, Carvalho, a partir da etnografia de Brasileiro (1996), destaca:

A influência Tuxá se exercerá também sobre os Kiriri (Ba) e os Atikum-


Umã. No primeiro destes casos, graças à iniciativa de Lázaro Gonzaga
de Souza, que, eleito cacique em 1972, empreende uma série de ações
políticas -- viagens para conhecimento da máquina estatal; relação com
outros povos indígenas; e adoção do Toré - com o objetivo de unificar e
revitalizar etnicamente os Kiriri. Desse modo, com a ajuda do PI --
estabelecido desde 1949 -- que fornece o transporte, Souza organiza uma
caravana de mais de cem índios e se dirige para a aldeia Tuxá. O pretexto
aparente era a realização de um jogo de futebol, mas a intenção
inequívoca era participar do Toré Tuxá, ou melhor, "resgatá-lo". Para o
que contará também com o incentivo e a disponibilidade desses índios,
que fazem deslocar dois tuxás para a AI Kiriri, que aí permanecerão o
tempo requerido pela (re) aprendizagem do ritual (BRASILEIRO, 1996
apud CARVALHO, 2011, p. 8).

Em outro trabalho, agora a respeito dos Truká, Carvalho (2011) afirma, baseando-
se nos dados de Batista (1991), que

[...] de fato [...], os Tuxá constituem referência especialmente relevante


para os Truká” (p. 7), para quem a possibilidade de “refazer a trajetória
política Tuxá são aspectos importantes para o entendimento das estreitas
362
“O Toré é uma dança na qual os participantes, portando vestes típicas chamadas “cataioba” ou “farda”, ou
trajes comuns, fazem evoluções, em coreografias das filas do grupo dos homens e do grupo das mulheres, ao
mesmo tempo em que entoam cânticos ou linhas” (SAMPAIO-SILVA, 1997, p. 57). Dançado também como
diversão, uma “brincadeira” de índio, mas principalmente como forma de afirmação étnica dos povos
indígenas no Nordeste em espaços públicos e mobilizações sociopolíticas. A esse respeito ver
GRUNEWALD, 2005. 609
relações estabelecidas entre esses dois povos” (p. 7), inferindo que “os
dados disponíveis [...] permitem concluir que os Tuxá atuaram
efetivamente como seus mentores no plano ritual, a este povo devendo
ser creditada a (re)introdução do Toré entre os Truká” (p. 7).

Sobre a importância política do Toré, Arruti afirma:

O Toré também viria a desempenhar outros dois [papeis]: de expressão


obrigatória da indianidade (para o órgão indigenista) e de máquina de
guerra na luta por reconhecimento (para as lideranças indígenas). [...] A
realização do Toré [...] torna-se fundamental. Cria-se um circuito de
intercâmbios rituais explicitamente destinados a trocar e adaptar
conhecimentos e cerimônias voltadas às expectativas estabelecidas pelo
órgão indigenista oficial, os “índices de indianidade”, por assim dizer.
Assim como surgem especialistas, no interior de alguns grupos, capazes
de “levantar” novas aldeias a partir de uma combinação de
conhecimentos místicos (relativos ao Toré) e burocráticos (relativos à
FUNAI). (ARRUTI, 2003, p. 07 - 10).

O que ressalta a importância política dos Tuxá, por meio da disseminação do Toré,
tanto entre povos indígenas da região, quanto em relação ao órgão indigenista.
É necessário salientar que os dados expostos acima se referem a trabalhos sobre
outros povos indígenas da região submédio do rio São Francisco que não os Tuxá. Para
além dos estudos com fins estritamente estatísticos (ANAI, 1981), os trabalhos
exclusivamente sobre o povo Tuxá se resumem às dissertações de Nasser (1975a) e Nasser
(1975b), ambas com análises de determinados aspectos tratados separadamente,
organização social e atividades econômicas, respectivamente; à monografia de Sampaio-
Silva (1987), cujo empreendimento etnográfico visou “identificar e caracterizar alguns
aspectos fundamentais do que se pode considerar a identidade ética desse povo, no âmago
desse sistema interétnico específico” (SAMPAIO-SILVA, 1987, p.13), entre eles mitologia,
rituais, organização social, parentesco e atividades econômicas; aos textos de cunho
históricos de Fonseca (1996) e etnohistóricos, como salienta o próprio autor, de Salomão
(2006, 2011); e a textos que abordam a questão específica da relação entre o povo Tuxá e
a construção da hidrelétrica de Itaparica (CARVALHO, 1981; MELO, 1988; MARQUES,
2008) e do reassentamento do povo Tuxá após a expulsão da Ilha da Viúva quando da
construção da hidrelétrica (BRASILEIRO, 1988).
Exceto os trabalhos de Nasser (1975a) e Nasser (1975b), todos os demais citados
acima foram realizados, assim como grande parte das etnografias produzidas a respeito dos
povos indígenas situados na região do nordeste brasileiro, sobre bases teóricas que

610
priorizam, ou ao menos tangenciam, noções como “contato interétnico”, “etnogênese” e
“etnicização”. Reconhecendo a importância dessas contribuições e tendo em vista,
conforme exposto acima, a relevância política do povo Tuxá na relação com outros povos
indígenas da região, este estudo propõe, porém, deslocar o foco da investigação para as
práticas de atuação indígena nas questões referentes à gestão da água na região do submédio
do rio São Francisco.
Entendendo que, se em determinado tempo a importância política dos Tuxá se deu
por meio da disseminação do Toré como prática ritual de afirmação dos povos da região
enquanto indígenas (ARRUTI, 1995, 1999, 2003, 2004; OLIVEIRA, 1998; CARVALHO,
2005, 2011), hoje essa relevância política ocorre, também, por meio da atuação do cacique
Tuxá como representante indígena no CBHSF, posto que a água encadeia um conflito
central na relação entre os povos indígenas da região e o Estado Nacional e iniciativas
privadas, sendo essa atuação ferramenta fundamental não apenas a uma questão da água
colocada aos indígenas e com a qual eles são impelidos a lidar, mas principalmente às
práticas específicas efetuadas por esses, as quais demandam uma questão indígena da água,
no sentido de ser por eles próprios colocada.

POLÍTICA INDÍGENA DA ÁGUA

ATUAÇÃO INDÍGENA EM ÓRGÃOS DE GESTÃO DA ÁGUA

Pesquisas importantes que privilegiam a participação indígena em órgãos


governamentais relacionados à gestão da água foram realizadas, porém estes estudos
abordam essa participação a partir de um caráter quantitativo, como, por exemplo, os
trabalhos de Galvão (2011, 2013) e Marques (2008), que, calcados em uma discussão mais
da ordem ambiental, abordam as relações de força entre indígenas e sociedade envolvente
enfatizando a inferioridade numérica de representantes indígenas em órgãos
governamentais relacionados à gestão da água em comparação a outros grupos integrantes,
negligenciando aspectos importantes do modo como ocorrem e as particularidades desses
conflitos no campo próprio da atuação indígena, como as práticas e os discursos
envolvidos.

611
AS PRÁTICAS INDÍGENAS DA ÁGUA COMO AFIRMAÇÃO ÉTNICA

Em concomitância ao apontado acima sobre a importância política dos Tuxá, se


outrora o Toré desempenhava papel central como prática ritual de afirmação dos povos da
região enquanto indígenas, a atuação nas questões relacionadas à gestão da água, por meio
da representação do cacique Tuxá no CBHSF, vem exercendo função essencial em uma
das questões indígenas, aquela da afirmação étnica.
Essa afirmação étnica parece ocorrer na atuação no CBHSF por meio da
diferenciação das práticas de uso e de luta pela água entre brancos e indígenas, enfatizada
todo tempo pelas lideranças indígenas, entre elas o cacique Tuxá, como fica claro em sua
fala reproduzida abaixo:

A água para nós, indígenas, não é o mesmo que para eles (brancos). A
população não indígena tem tratado a água não como um bem, um
patrimônio essencial para a vida, mas como uma mercadoria, da qual
podem tirar renda e lucro. Nós, indígenas, não podemos nos contaminar
por essas práticas. Devemos lutar para termos água e para isso é preciso
um ambiente propício e preservado (UILTON TUXÁ, 2016).

Dessa forma, os indígenas buscam sempre diferenciar-se dos brancos pelo modo
como tratam a água, desde a utilização dos termos, como ocorre, por exemplo, com o
termo “gestão”, evitado pelos indígenas e substituído normalmente pelo termo “uso”, e que
designa não o consumo apenas, como poderia dar a entender, mas toda uma gama de
práticas para com a água intrinsecamente relacionadas às cosmologias dos povos indígenas
da região. Assim, a diferença entre “uso” e “gestão” da água evidencia não apenas a
diferenciação por meio das práticas, mas também a divergência entre o que é água para os
indígenas e para os brancos, noção essa (a de o que é água) que para os indígenas é
indissociável dessas próprias práticas. Nesse ponto é importante destacar a preocupação
dos indígenas de não se deixar “contaminar” pelas práticas dos brancos, sendo mesmo
possível fazer o paralelo entre a contaminação das práticas e aquela da própria água.

A DIMENSÃO DO POLÍTICO NAS PRÁTICAS INDÍGENAS DA ÁGUA

Para tratar o que aqui denomino como uma “política indígena da água”, entendo
como necessário realizar aquele movimento que Isabelle Stengers (2005) refere-se como
uma desaceleração do pensamento (“slow down”), em consequência disso o “político”

612
deixa de ser a explicação a priori e passa a ser o que deve ser explicado, sendo que esse
último modo de abordagem deve ser elaborado a partir das práticas nativas, nesse caso a
atuação indígena na questão da água. Se a presente pesquisa busca compreender como se
dá uma espécie de “política indígena da água” no interior de um órgão estatal, é preciso
que o primeiro questionamento seja “o que pode ser uma dimensão do 'político' em
sociedades diferentes da nossa” (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 199).
Sendo necessário, a partir das práticas indígenas nas questões relacionadas à água,
investigar como ocorre uma dimensão do político nessas práticas, entendo que há também
a demanda de uma abordagem que privilegie a relação entre micropolítica e macropolítica,
especialmente nos termos dessa discussão apresentados por Deleuze e Guattari (1995).
Assim, não se trata de (o)posicionar inflexivelmente esses dois pólos enquanto dimensões
distintas, apreendendo o Estado como a macropolítica por excelência e os indígenas como
permeados apenas por uma micropolítica, pois a própria relação entre ambos é o que nos
permite falar de macropolítica e micropolítica.
O problema que minha pesquisa deve se colocar é o de traçar o mapa de como
micropolítica e macropolítica se atravessam na atuação política indígena na questão do uso
da água em um órgão estatal. Simplesmente opor essas duas dimensões políticas seria
negligenciar toda uma rede de relações que interferem, seja suprimindo ou produzindo as
práticas políticas indígenas, pois se essas são atravessadas por uma micropolítica, quase que
inerente pelo fato de os indígenas comporem um grupo minoritário, também ocorre que
uma macropolítica as atravessa, sendo intuito de minha pesquisa investigar como se dá essa
relação a partir dos problemas colocados pelos indígenas. Pois, se a questão da água e a
questão indígena compõem uma questão estatal concernente a uma macropolítica, é não
menos legítimo afirmar que a questão indígena da água e a questão indígena da afirmação
étnica compõem micropolíticas não apenas em relação direta àquela macropolítica estatal,
mas também permeadas em sua própria produção pela última e mesmo modificando-a, ou
seja, as dimensões macro e micropolítica funcionam afetando-se mutuamente.
Dessa forma, não se trata de opor política estatal a política indígena, mas de
investigar como essas se relacionam a partir de uma perspectiva (que é também um
posicionamento político relacionada à essa própria abordagem etnográfica), a saber, a dos
povos indígenas, a fim não de produzir decalques teóricos sobre universais concernentes à
dimensão do político, mas de criar mapas da atuação política indígena tendo em vista as
relações existentes nesses conflitos entre questões estatais e questões indígenas. Portanto,
“a demarcação não depende aqui de análises teóricas que impliquem universais, mas de

613
uma pragmática que compõe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades”
(DELEUZE; GUTTARI, 1995, p. 24).

CONCLUSÃO

É necessário ressaltar o caráter ainda introdutório, posto que é uma pesquisa em


andamento, do trabalho apresentado, o qual propõe alguns apontamentos teóricos a serem
ainda aprofundados quando da pesquisa de campo propriamente dita.
Sendo esse um evento cujo tema geral é a democracia, que das mais variadas formas
permeiam os trabalhos apresentados, recordo Paul Veyne em seu texto “Os gregos
conheceram a democracia?”:

Suponhamos que em diferentes épocas o que se chamou de política


tenha sido sempre subentendido por pressupostos que escapavam à
consciência dos agentes; que escapam igualmente à posteridade, muito
apressada em reencontrar-se em seus ancestrais, mesmo que seja
banalizando os traços de sua fisionomia. Nesse caso, as mesmas palavras,
as vagas analogias, nos esconderiam diferenças imperceptíveis e
enormes, da mesma maneira que as árvores escondem a floresta
(VEYNE, 1984, p. 58, grifo meu).

Se certa antropologia deixa de comparar sociedades sobre um modelo, a sociedade


ocidental, para abordar as culturas a partir de suas próprias construções simbólicas (seu
próprio “senso comum”, no sentido que Herzfeld (2001) aplica ao termo), afim de que da
relação dessas com o saber antropológico se produza novos efeitos, é preciso também que
a democracia não seja esse modelo de comparação, mas que seja investigada a partir das
práticas que a permeiam em suas mais variadas formas, tendo em vista que a compreensão
cotidiana de como o mundo funciona, “está incorporado tanto na experiência sensível
quanto na prática política” (HERZFELD, 2001). Assim, etnografar essas práticas indígenas
da água é considerar a compreensão de mundo desses a partir de seu próprio sistema
simbólico e, em diálogo com o saber antropológico, estabelecer relações possíveis entre
diferenças, entre saberes distintos, ou ainda, introduzir a diferença no conceito (de política,
nesse caso), com o intuito de melhor formulá-lo, acautelando-se das vagas analogias que
escondem tais diferenças.

614
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617
CONTEXTOS DE RETOMADA E AUTODEMARCAÇÃO DA
TERRA INDÍGENA TEKOÁ MIRIM: O NHANDEREKÓ E A
COSMOPOLÍTICA MBYÁ GUARANI ELABORADOS COMO
POSSIBILIDADES DE LUTA CONTRAHEGEMÔNICA AO
ESBULHO DOS DIREITOS INDÍGENAS NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO

Fábio do Espírito Santo MARTINS363

Resumo: Propôs-se neste trabalho evidenciar o protagonismo Mbyá Guarani, concretizado no


processo de luta pela Autodemarcação da Terra Indígena Tekoá Mirim, cuja localização no interior
do Parque Estadual da Serra do Mar sob a delimitação administrativa do núcleo Curucutu,
circunscrita portanto, pelo município de Praia Grande, no litoral do estado de São Paulo, fez com
que as instâncias do Poder Executivo Municipal passassem a percebê-los como invasores, e mais,
corroborou para que os órgãos ambientais estaduais, sobretudo, a Secretaria Estadual de Meio
Ambiente, assumissem a postura de considerar a permanência dos Mbyá Guarani que vivem na
Tekoá Mirim, contrária ao corpus legal que legisla sobre a ocupação humana nas Unidades de
Conservação Ambiental. Deste modo, verificou-se na atuação do Estado, que a legislação que a
norteou padece de uma profunda e ininteligível contradição, isso ao que diz respeito à garantia dos
direitos dos povos indígenas no Brasil, sobretudo, quando definem as questões relacionadas às TIs,
e a permanência nas mesmas pelos respectivos povos que secularmente se relacionam com elas.
Nesse sentido, se revela que no decorrer dos séculos as relações de contato pouco mudaram, fruto
da recusa em se admitir povos com outras visões de mundo, de espaço e de tempo. Contudo, os
Mbyá sabem de seus direitos constitucionais, e lutam para concretizá-los, assim como, para que seja
interrompida a opressão social, e, possam, portanto, construir melhores condições de criação e
recriação do seu Nhanderekó; o que seguiria ampliando as possibilidades à existência integral das
futuras gerações, esta sim, a preocupação fundamental dos mais velhos.

Palavras-chave: Povos indígenas. Mbyá Guarani. Protagonismo. Autodemarcação.

INTRODUÇÃO

Pretendeu-se analisar neste trabalho, a partir das concepções nativas dos Mbyá
Guarani que vivem na Terra Indígena (TI) Tekoá Mirim, as suas relações com o espaço e
com a sociedade evolvente, além de como elas forjaram mudanças históricas que
influenciaram a sua configuração sociocultural contemporânea. Mas, sobretudo, como
esses aspectos convergem para uma compreensão acerca da sua agência e protagonismo na
questão fundiária que os afeta. Neste sentido, é preciso inicialmente, evidenciar a
perspectiva de espacialidade concebida pelos Guarani. Devendo então, ser considerado
que eles, ao se fixar em uma área específica, tradicionalmente se estabelecem sem a

363
Doutorando em Ciências Sociais; Unesp/Araraquara; CNPq; epiritomartins@bol.com.br

618
preocupação de definir limites precisos. Entretanto, o processo histórico de constante
contato com a sociedade envolvente impôs mudanças nesse aspecto.
Desta maneira, propõem-se evidenciar a luta dos Mbyá no contexto de
autodemarcação da TI Tekoá Mirim no município de Praia Grande, no litoral do estado
de São Paulo. TI esta, exatamente localizada no interior da Unidade de Conservação (UC)
ambiental do Parque Estadual da Serra do Mar (PESM). Contexto que fez com que as
instâncias do Poder Executivo Municipal passassem a considerar os Mbyá que lá se
instalaram, como invasores; e mais, situação que corroborou para que os órgãos ambientais
estaduais, sobretudo, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente de São Paulo (SEMA – SP),
responsável administrativo do PESM, assumissem a postura de considerar a permanência
indígena na Tekoá Mirim contrária ao “corpus” legal que legisla sobre a ocupação humana
nas UC ambientais, dando início, portanto, a uma articulação político-administrativa para
impossibilitar a sua permanência naquele território. Permanência esta, que remonta a uma
posse que secularmente, está assegurada pela concretização sócioespacial do modo de vida
próprio dos Mbyá, ou seja, o seu Nhanderekó364; completamente ignorado e desprezado
pelas representatividades do Estado brasileiro.
Assim, diante de tal contexto, pretendeu-se dar visibilidade às motivações
sociocosmológicas, que justificam a dinâmica de ocupação espacial dos Mbyá,
problematizando também, os processos etnohistóricos que justificam a autenticidade da
ocupação do território em questão.
Por isso, as reflexões contidas nesta discussão, irão se referir às análises executadas
sobre o fato de que os Mbyá Guarani ao estabelecerem a Tekoá Mirim, o fizeram em
execução plena de concretização e consonância de sua cosmologia com a sua práxis
dialógica, derivada das relações estabelecidas com a sociedade envolvente. Verificando-se
também, a atuação das instâncias do Estado diante desta situação. Constatando-se,
portanto, em relação ao que diz respeito à garantia dos direitos dos povos indígenas no
Brasil, que as legislações que a norteiam padecem de uma profunda e ininteligível
contradição, sobretudo, quando definem as questões relacionadas às TIs e a posse das
mesmas pelos respectivos povos que secularmente as utilizam.

“Nhanderekó é como nós, Guarani M’bya, chamamos o que o juruá (não índio) chama de cultura. Mas
364

Nhanderekó para nós é mais do que isso. É todo o nosso modo de ser, o nosso modo de viver, o jeito como
nós educamos nossos filhos e nossas filhas, como enxergamos o mundo, como nos relacionamos com a nossa
espiritualidade. É impossível para o juruá entender o que é o Nhanderekó, porque somente vivendo é que
se compreende o que ele é” (COMISSÃO GUARANI YVYRUPA).
619
Sendo assim, fica evidenciado que no decorrer dos séculos, as relações de contato
pouco mudaram, frutos da recusa em se admitir que povos com outras visões de mundo,
de espaço e de tempo possam coexistir em espacialidades compreendidas e classificadas
de maneiras diferentes em relação àquelas padronizadas pela sociedade envolvente.

O NHANDERECÓ COMO CONDIÇÃO DETERMINANTE PARA A


CONCRETIZAÇÃO DA TEKOÁ MIRIM

Algumas experiências cotidianas dos Mbyá Guarani da TI Tekoá Mirim serão


problematizadas em relação àquilo que se referem às dificuldades enfrentadas por eles para
poderem estabelecer-se e se manter de acordo com o seu Nhanderekó, ou seja, o seu modo
próprio de existência, que permeado por sua cosmologia se materializa na ocupação e
utilização do espaço social. Assim, é a partir desta análise que se problematizará o processo
de fixação do mencionado grupo indígena na Tekoá Mirim. Portanto, irá se discutir as
complexas composições culturais Mbyá que afirmam tratar-se como seu território ancestral,
a área escolhida para fixarem-se e concretizarem a sua Tekoá.
Desta forma, invalidando a compreensão e posteriores ações de várias esferas do
poder público municipal e estadual, que passaram a considera-los como invasores do seu
próprio território. Situação, pretensamente avalizada, segundo o Estado, pelo fato de que
a TI em questão, se localiza circunscrita pelas delimitações espaciais do PESM, classificado
de acordo com a legislação ambiental como uma UC, o que por definição, exclui
completamente dos povos indígenas os seus direitos originais de permanecerem a habitá-
las. Desconsiderando-se, portanto, o fato de que aquelas terras são ocupadas por eles desde
remotos períodos, quando história e mito se permeavam na elaboração de uma realidade
particular.
Neste sentido, a proposição deste trabalho compõe-se justamente, a partir do
inédito acompanhamento antropológico nesta TI do quase que simultâneo processo de
fixação do grupo em questão, priorizando assim, a apreensão etnográfica do
estabelecimento das relações sociais, políticas, econômicas, rituais e religiosas
estabelecidas, além é claro daquelas que se estabeleceram e são mantidas com elementos
pontuais da sociedade envolvente.
Sendo cabível, portanto, a clara percepção que o local exato em que se dera a
concretização desta TI, em hipótese nenhuma, se materializou motivada por circunstâncias
aleatórias, ao contrário; concretizou-se acerca das complexas premissas cosmológicas que
influenciaram à lúcida e consciente opção. Evidenciando, portanto, que sob a óptica Mbyá

620
Guarani, toda a espacialidade geográfica que abriga a Serra do Mar, e, por consequência,
que circunscreve a área escolhida como aquela a conter a Tekoá Mirim, trata-se de
território indígena (Mbyá) ancestral. Já, que os Guarani se movimentam numa ampla
geografia, com migrações eventuais a regiões bastante específicas e com frequentes
deslocamentos dentro de uma mesma região. Destarte, como afirmou Ladeira (2007), “A
noção de terra está, pois, inserida no conceito mais amplo de território que sabidamente
pelos Mbyá se insere num contexto histórico/mítico cíclico, e, portanto, permanentemente
recriado e ressignificado, pois ele é o próprio mundo Mbyá”.

O tekoá é traduzido como o lugar onde é possível realizar o modo de ser


Guarani. Tekó, “o modo de ser”, abrange a cultura, as normas, o
comportamento, os costumes. O tekoá, com toda a sua materialidade
terrena, é, sobretudo uma interrelação de espaços culturais, econômicos,
sociais, religiosas e políticos. Na verdade, “fundar” um tekoá, ou
recuperá-lo ou reconstruí-lo mediante as unidades familiares, é realizar
o projeto coletivo de reconstrução do mundo Mbyá por meio da
reprodução, nos diversos tekoá, dos elementos originais existentes em
yvy apy (LADEIRA, 2007, p. 93-94).

Então, a predileção dos Mbyá por fixar-se no território compreendido pela Serra
do Mar se justifica por aspectos culturais que tangenciam o plano das concepções
mitológicas, principalmente, encontrando fundamento no mito “da origem da terra sem
males (yvÿ pyaú)”, como foi registrado por Clastres (1978). Assim como também, fatores
de ordem práticas relativa a práxis destes indígenas em relação à espacialidade que ocupam,
corroboram por justificar a sua preferência pelas regiões serranas do litoral. Por isso,
“quando os Mbyá definem a Serra do Mar como “terra boa” (tekoá porã), isso significa que
ali ainda é possível reproduzir as normas tradicionais em termos do uso da terra e da
relação com os parentes” (AZANHA; LADEIRA, 1988, p. 24).
O que essas informações significam? De acordo com as afirmações de Azanha &
Ladeira (1988): “Isso quer dizer que a escolha do lugar não é gratuita: ela segue a tradição,
seja ela histórica e/ou cosmológica”. Portanto, graças a sua experiência religiosa e a seu
sistema de vida, os Guarani vêm resistindo e mantendo o seu existir circunscrito as Tekoá,
o lugar do seu modo de ser. Assim, a possibilidade de prática do Nhanderekó, é a
concretização de se reproduzir a manutenção da terra em seu próprio suporte.
Por isso, insistir na perspectiva conservacionista radical, significa associar-se à
permissividade da exclusão do direito Mbyá Guarani de permanecer habitando sua
espacialidade territorial cosmologicamente constituída. E mais, desse modo, mantendo

621
essas práticas autoritárias, em benefício das populações urbanizadas o Estado contribui
para a perda de enormes potencialidades de etnoconhecimentos e etnociência, de sistemas
criativos de manejo de recursos naturais e da própria diversidade cultural.
Devendo então, ficar bastante claro como a concepção sociocosmológica, portanto,
culturalmente ancestral, preconizou tanto a seleção e fixação territorial, quanto à
contextualização das dinâmicas de estabelecimento da Tekoá Mirim. Desta maneira, com
relação às prerrogativas socioculturais Mbyá que concretizaram suas significações e
subjetividades cosmológicas através de motivações práticas para a constituição de sua
“nova” Tekoá, um importante exemplo, manifestado pelo grupo indígena etnografado, se
refere à memória sobre o uso ritual que os ancestrais dos Mbyá contemporâneos,
executavam na territorialidade que atualmente circunscreve a área de instalação da Tekoá
Mirim. Memórias estas, que evidenciam algumas das considerações que compõem o
entendimento Mbyá a respeito da posse mítica (histórica) de seu território, que, somada ao
ordenamento jurídico e ao reconhecimento legislativo ocidentais que reconhecem o
“direito originário” dos povos indígenas sobre os seus territórios, apenas por si, deveriam
se caracterizar como a justificativa legal para a inquestionável fixação e utilização
culturalmente peculiares, que os Mbyá reivindicam para a sua Tekoá Mirim.

AMBIENTE E TERRITÓRIO: PERCEPÇÕES MBYÁ NA TEKOÁ MIRIM

Entre os Mbyá, a coesão das várias dimensões da existência é expressa pela ideia
de Tekó (modo de estar, vida). Portanto, deve-se atentar para os processos que
caracterizam materialmente a integridade do Mbyá Tekó, percebendo que se dá pelo
constante deslocamento de pessoas e famílias. Traduzindo-se desta maneira então, um
importante princípio cosmo-ecológico Mbyá Guarani, que tem seu fundamento na ideia
de lugar. Melià afirma que: “La ecología guaraní no es solo naturaleza, es sobre todo una
interrelaçión de espacios culturales, económicos, sociales, religiosos y politicos” (MELIÀ
apud LADEIRA, 1988, p. 5). Ficando deste modo, implícito aí, a noção não apenas da
aldeia, mas junto a ela os espaços existentes e percorridos entre elas, o Tekoá, o lugar da
vida onde se assenta o seu próprio modo de estar. A ideia de tekóa é básica ao
desdobramento de todas as demais manifestações culturais e transcende os limites formais
estabelecidos no zoneamento do mapa político.
Assim, a aldeia Tekoá Mirim e o grupo Mbyá em questão, protagonistas dessas
considerações, se instalaram em área circunscrita pelo PESM. Devendo, portanto, tais

622
processos de deslocamento e fixação espaciais deste grupo, serem vistos e compreendidos
a partir da perspectiva de concepção mitológico-religiosa e político-social, enfim
cosmológica, peculiar ao grupo e indivíduos que as criam, recriam e as experienciam.
Entretanto, em absoluto, deve-se desconectá-los de outra composição do espaço,
complexamente organizado e diversamente habitado, que interage dialogicamente, sendo
consequência e produzindo causas de interferências reais e concretas na vida humana
(Mbyá). Afastando-se então, uma percepção equivocada e essencialista, e mesmo
preconceituosa, a respeito da sua ocupação/permanência espacial e territorial.
Portanto, o deslocamento espacial, tão caro aos Mbyá, como história e como
projeto, constitui um traço característico dos Guarani. Concretiza-se, mediante a vivência
cultural da sua estrutura mitológica. “Como estrutura do modo de pensar do guarani, dá
forma ao dinamismo econômico e a vivência religiosa que lhes são tão próprios (...) é a
síntese histórica e prática de uma economia vivida profeticamente e de uma profecia
realista, com os pés no chão” (MELIÁ, 1989, p. 294).
Desta maneira, como indicou Ladeira (2007), se constata que “a história Mbyá é
resgatada cotidianamente”. Porque “(...) para os Mbyá, especialmente os que ainda não
têm definido um lugar para um assentamento mais duradouro, “viver os mitos”, não se
distingue da vida cotidiana, pois o cotidiano está impregnado de relações míticas com o
universo” (LADEIRA, 2007, p. 77). Neste sentido, “O mito é uma história verdadeira
porque se refere sempre a realidades” (ELIADE, apud LADEIRA, 2007, p. 76).
Neste sentido, a proposição destas considerações compõe-se justamente, a partir da
percepção sobre o “uso ambiental” que os Mbyá estabelecem com o seu território, isto é,
com a sua Tekoá, que se concretiza justamente, na articulação consciente de cada uma
daquelas relações apontadas, em suas múltiplas interações com os diversos elementos que
constituem aquela territorialidade, mesmo aqueles que não sejam dotados de vida, além, é
claro, das múltiplas formas de vida e dos muitos planos que compõem aquela realidade.
Constituindo então, um entendimento a respeito do “ambiente”, caracterizado pala
integridade de sua composição. Diferenciando-se, deste modo, da caracterização e
compreensão ocidentais a respeito da complexidade ambiental, em que circunscreve as
sociedades humanas, como entes parciais, contextos isolados, caracterizados pela
prerrogativa de que a incessante e incomensurável utilização dos ambientes que as
circunscrevem, seria prática “natural”.
Assim, trata-se aqui nestas considerações, de se estabelecer reflexões acerca da
apreensão e do entendimento mais corretos das dinâmicas sócioespaciais Mbyá Guarani,

623
como materializações de contextos cosmológicos particulares, expressões peculiares do
ecúmeno existir da humanidade.
Portanto, os Guarani são povos que se movimentam numa ampla geografia, com
migrações eventuais a regiões bastante específicas e com frequentes deslocamentos dentro
de uma mesma região, o que se concretiza como uma possibilidade de compreensão de
que eles “ocupam terras com características ecológicas bem constantes. Não obstante, esta
terra não constitui um fator inflexível nem imutável. Se bem que a terra imponha suas
condições é o guarani que faz a sua terra. A terra guarani vive com os guarani que nela
vivem” (MELIÁ, 1989, p. 336). O que também deve ser levado em conta, com relação a
se compreender o dinamismo de ocupação territorial Mbyá, enquanto processo cultural, é
que a ecologia Guarani não se restringe aos “recursos”, nem se define por seu valor
exclusivamente produtivo. Portanto, vê-se legitimada a interpretação Mbyá, tanto quanto a
sua narração, enfim, a sua maneira de registrar e justificar sua permanência em seu
território ancestral, seu por direito, ou seja, a Tekoá Mirim. Afinal, segundo Meliá (1989),
“é sempre em função da palavra inspirada que o guarani cresce em sua personalidade (...)”.

[...] o pensamento Guarani se traduz no viver cotidiano desse povo. O


mito explica o porque da vida, assim, a educação tradicional dos Guarani
deve ser compreendida como a junção da palavra (mito) com a terra
(local onde se realiza o nhanderekó). Neste sentido, a “palavra Guarani”
enfeita a “terra Guarani” e a “terra Guarani” sustenta a palavra, uma não
se dá sem a outra. Pois é na “terra Guarani” que a palavra pode ser
trocada com o outro, a reciprocidade do dizer. A palavra só tem sentido
quando é dita e ouvida, a palavra e a terra Guarani se dão na comunhão
com o outro. A palavra Guarani humaniza e diviniza o ser Guarani
(CARVALHO; GODOY, 2011b, p. 124-125).

Não se deve considerar a Tekoá Mirim, tal qual a mentalidade racional do ocidente
caracteriza uma aldeia, como se tais conceitos fossem exatamente simétricos, sinônimos
enfim. A Tekoá “não é apenas a terra e as casas, a eles estão associados à casa de rezas e
as relações com os parentes; é onde enterram os mortos e onde rezam; onde radica o
direito divino de fazerem suas roças; que haja a mata e que possam plantar (...)”
(LADEIRA, 1988, p. 23).
Ficando então, bastante claro como estava composta a concepção nada aleatória,
ao contrário, como fora completamente consonante com as determinações
sociocosmológicas, portanto, que definiram os processos relativos à interrupção da
mobilidade migratória ritual realizada pelos Mbyá conduzidos pelo Xeramo’i Karaí Mirim,

624
e que preconizaram tanto a seleção e fixação territorial, quanto à contextualização das
dinâmicas de estabelecimento na Tekoá Mirim. Desta maneira, com relação à memória
sobre o uso ritual que os Mbyá executam na territorialidade que circunscreve a área de
instalação da Tekoá Mirim, devem ser destacadas as memórias do cacique Karaí Ñee’re,
pois, evidenciam algumas das considerações que compõem o entendimento Mbyá a
respeito da posse mítica (histórica) de seu território. Portanto:

É! Quem me dexô estas informação foi o Xeramo’i Manequinho, que


hoje vive lá na Tekoá Taquari, que fica em Eldorado. Ele já contô que
quando era ainda criança, junto com pai dele, fazia Oguatá..., deixava as
aldeia do Vale (do Ribeira) e atravessando a Serra (do Mar), onde hoje
tem as aldeia de Itanhaém, Mongaguá e aqui, eles ia pra São Paulo. O
Xeramo’i Manequinho, também fala que conhecia estas terras antes da
linha do trem, que os Guarani já era dono, antes do trem. E também, ele
já contô que esta linha (ferroviária) que vem pro porto, ela foi construída
por cima de uma Tekoá Guarani. E pior, que lá foi tudo queimado, as
casa (Oó), que teve estrupo de mulher, criança e mulher também que foi
robado e muita morte de índio (Cacique Karaí Ñee’re).

Pois bem, o curto trecho da fala do cacique Karaí Ñee’re, acima registrado, ao ser
relacionado com as motivações cosmológicas, assim como, com aquelas de ordem prática
e cotidiana do grupo indígena Mbyá, e, que direcionaram a escolha da área definida para
o seu estabelecimento, bem como, para a concretização da Tekoá Mirim, deixa evidente
as suas referências culturais, quanto à compreensão e uso da sua peculiar espacialidade,
com a utilização e percepção que seus ancestrais apresentavam sobre esta mesma
territorialidade. Portanto, derivado da percepção característica que os Mbyá concretizam
sobre a territorialidade que determinam para que se constitua como sua Tekoá, também
se caracteriza utilizações peculiares desta mesma territorialidade. Já, que o entendimento a
respeito da sua materialização, se dá mediante o entendimento que esta deriva da
sobreposição de múltiplas dimensionalidades da cosmologia e da vida prática, por
conseguinte, a sua utilização materializada, isto é, a Tekoá, se concretiza também de forma
diversificada, para que as diversas esferas da vida, tanto de ordem prática, quanto,
econômica, política, religiosa e cultural, sejam contempladas. Isso, em decorrência de um
modo de uso que pressupõe a utilização dos recursos ambientais de maneira diversificada
e integral, para além do uso meramente predatório e apoiado na exploração insustentável
daqueles recursos.
Destarte, quanto à fala do cacique Karaí Ñee’re, registrada acima, quando utilizada
como material derivado de coletas etnográficas que objetivam analisar a multiplicidade de

625
sentidos contida nas formas de apreensão e usos sobre a territorialidade Mbyá, escolhida
por eles para a constituição da Tekoá Mirim, ela deixa implícita relações de ordem
cosmológica, culturais, portanto, para a definição e escolha daquela localidade em
específico para a fixação e concretização de sua aldeia. Ou seja, mesmo derivado de um
deslocamento espacial e territorial constante, que caracteriza o modo de vida Mbyá, os
sucessivos processos de interrupção destas movimentações migratórias que têm origem em
questões míticas e religiosas, tanto quanto em questões pragmáticas de relacionamentos
políticos circunscritos pelo cotidiano destes grupos, tais interrupções não se concretizam
de modo aleatório quanto ao que se refere à territorialidade escolhida. Assim, os processos
de mobilidade territorial entre os Mbyá, apesar de constantes, reafirmam-se em diferentes
temporalidades por domínios naturais específicos.
Deste modo, o Tekó Porã, o bom modo de ser, de ser efetivamente Guarani. Existir
em plenitude enquanto Mbyá é a percepção deste povo indígena, de que a terra recebe sua
formosa plenitude de seu fundamento religioso, amparado pelo complexo litúrgico
entregue por Nhanderú. Consequentemente, a conservação do mundo consiste em manter
viva e atual esta liturgia, derivada da manutenção dos ambientes peculiares da Tekoá.
Assim, a possibilidade de exercício e prática do Nhanderekó, é a concretização de se
reproduzir a manutenção da terra em seu próprio suporte, de se manter existindo a
estabilidade; enfim, o equilíbrio do mundo.

ALGUNS PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO PARA NOVAS POSSIBILIDADES NA


TEKOÁ MIRIM

Quanto às aproximações e os distanciamentos políticos estabelecidos entre a Tekoá


Mirim e as demais aldeias Mbyá que se encontram ao seu redor, percebe-se que a partir
das constantes e mútuas visitas entre os habitantes das aldeias vizinhas e vice-versa, mantêm-
se uma identidade política comum. Sobretudo, quando se veem frente a problemas que
compreendem a oposição da sociedade envolvente em relação a qualquer uma das aldeias
Guarani no litoral sul paulista. Imediatamente, todas elas assumem uma posição de união
e unicidade quanto à postura de defesa do posicionamento indígena. Reafirmando assim,
a identidade comum a todos eles, de serem Guarani, indígenas, portanto, que lutam pelo
reconhecimento e acessibilidade à especificidade dos seus direitos, legalmente
reconhecidos pela Constituição Federal de 1988.
Entretanto, ao que se refere ao relacionamento entre as aldeias do litoral sul de São
Paulo, principalmente, aquelas localizadas em São Vicente, Mongaguá, Itanhaém e

626
Pariquera-açú, a construção da Opy’i, a Casa de Rezas da Tekoá Mirim, tal qual se
concretizara, passou a assumir um caráter de elemento cultural comunicador, que expressa
o entendimento próprio que os Mbyá da Tekoá Mirim assumem sobre si em relação aos
seus parentes das demais aldeias que se localizam em regiões circunvizinhas. Ou seja,
segundo os registros etnográficos que foram coletados em interlocução com o Xeramo’i
Karaí Mirim, que era naquele momento o detentor dos conhecimentos relativos às técnicas
e aos procedimentos de construção da nova Opy’i, a configuração que ela passaria a
assumir, mediante aos procedimentos e técnicas a serem utilizados na sua confecção,
expressariam a maneira com que os “verdadeiros” Mbyá realizavam tal processo de
construção. Assim, estando nas entrelinhas, a afirmação sobre os Mbyá da Tekoá Mirim,
que seriam eles, étnico e culturalmente falando, os “verdadeiros” Mbyá, em oposição aos
outros Guarani das demais aldeias. E mais ainda, já que além da criação de um contexto
de distinção étnico cultural, os procedimentos e técnicas de construção da sua nova Opy’i,
ao estar concluído, expressaria também a opção e as preferências para a concretização das
articulações políticas a se materializarem entre eles e outras Tekoá Mbyá, que não aquelas
que os circunscrevem no litoral sul paulista.
Tratava-se, portanto, das aldeias Mbyá localizadas ao norte da Argentina, local de
nascimento do Xeramo’i Karaí Mirim e onde ainda hoje mantém estreito relacionamento
com os seus parentes que lá vivem, seja pelo fato de que algumas de suas filhas encontram-
se casadas naquela localidade, ou pela situação de que regularmente o Xeramo’i o visita
com a sua família; mas principalmente, devido a ter se concretizado um deslocamento do
Xeramo’i à região mencionada, não para uma visita regular, mas sim, para que fosse trazido
por ele até a Tekoá Mirim, um de seus genros (Martim), que segundo o xamã, apesar de
ele deter os conhecimentos necessários à construção, apenas Martim é que saberia executá-
los. Assim, como há muito já consta na literatura antropológica, e havia sido destacado por
Lévi-Strauss, pode-se notar no contexto acima destacado, a existência de um fluxo de
trocas, de conhecimentos (“bens” subjetivos) e indivíduos, para o estabelecimento de
alianças. A estruturação de um processo consciente de articulação seletiva para o
estabelecimento de determinados conjuntos de relações políticas, em detrimento de outras.
Já, quanto à conclusão dos trabalhos de construção da Casa de Rezas, para além
das significações cosmológicas e culturais que ela expressa, significa também, a
materialização de um complexo conjunto de conhecimentos ecológicos e de uso e manejo
sustentável do ambiente que os Mbyá ocupam, atribuem significações e o utilizam de

627
maneira integral, concebendo-se a si mesmos como parte constituinte, e não como
elementos externos a este mesmo complexo sistema ambiental.
Deste modo, portanto, alguns registros referentes ao processo de construção da
nova Opy’i levado a cabo pelos Mbyá na Tekoá Mirim, podem contribuir perfeitamente,
para que seja compreendido como uma clara analogia em relação a outros importantes
processos de construção que a referida população indígena está desenvolvendo em seu
contexto cotidiano de relações diretamente estabelecidas com a sociedade envolvente na
contemporaneidade, mas, sobretudo, com as esferas políticas representativas do Estado,
sejam elas, constituídas em suas esferas municipais, estadual e federal.
Assim, a reflexão a seguir, que deriva da etnografia concretizada ao longo do
trabalho de campo, virão exemplificar alguns daqueles processos. Como a articulação das
lideranças da aldeia junto à Câmara Municipal de Praia Grande, para que através destes
contatos, passasse a estar ampliado o potencial de pressão que os representantes da Tekoá
Mirim, viessem a executar sobre o Poder Executivo Municipal. Por exemplo, sobre a
Secretaria Municipal de Saúde, no sentido que os seus direitos constitucionais que
garantem o pleno atendimento dos serviços municipais de saúde a todos os cidadãos,
fossem efetivamente garantidos quanto à sua acessibilidade.
Portanto, de maneira diferente a passividade conformista, que infelizmente,
caracteriza a maioria da população brasileira quando se depara frente à ineficiência do
Estado, os Mbyá da Tekoá Mirim se mobilizam, assumindo-se enquanto portadores de
agência, e, desta forma, construtores do protagonismo diante da necessidade de
enfrentarem situações de mitigação junto aos órgãos representativos do Estado, sobretudo,
quando a inoperância deste, passa a comprometer diretamente às suas condições de vida.
Outro processo de luta que vem sendo construído pelos Mbyá da Tekoá Mirim se
caracteriza, pela ação das lideranças da aldeia, principalmente do cacique e dos professores,
diz respeito à pressão que estes vêm exercendo sobre uma esfera estadual de representação
do Estado, a saber, a Diretoria de Educação de São Vicente, representante direta da
Secretaria Estadual de Educação, sobre os assuntos relativos às escolas e a educação
indígena. É justamente em oposição a precariedade que se dirige a ação das lideranças
Mbyá, que em perfeita consonância com o contexto contemporâneo de luta dos povos
indígenas pela valorização de seus conhecimentos, saberes e processos educacionais
próprios, elaboram a construção de projetos e propostas pedagógicas e curriculares
propriamente ditas, que não apenas valorizem, mas que sejam pautados pelo “sistema
pedagógico” peculiar a cultura Mbyá.

628
Entretanto, nenhum processo de luta que está contemporaneamente, sendo
construído pelos Mbyá da Tekoá Mirim, é mais difícil do que aquele que se refere ao
enfrentamento à morosidade característica aos processos legais de reconhecimento,
homologação e demarcação da TI Tekoá Mirim. Dificuldade esta, que se concretiza,
sobretudo, pelo fato de que o objetivo final desta luta, ou seja, a demarcação legal submete
os Mbyá que lá vivem, a “fronts” múltiplos e simultâneos de construção desta luta. Desta
forma, os Mbyá da Tekoá Mirim veem-se frente à necessidade de construírem estratégias
de luta para poderem concretizar o enfrentamento, para além dos preconceitos históricos
que a sociedade envolvente mantém em relação aos povos indígenas, principalmente
quando se trata da relação estabelecida entre estas populações e a posse de suas terras. Haja
vista, especificamente, ao que se refere aos Mbyá da Tekoá Mirim, as dificuldades criadas
e impostas pelo Poder Executivo Municipal de Praia Grande, tanto quanto, pelo Poder
Executivo Estadual, na sua ação através da SEMA-SP, cuja atuação junto a esta comunidade
indígena, imediatamente após a sua fixação na área correspondente a Tekoá Mirim, dirigiu-
se sempre em sentido de dificultar, e mesmo de impedir o seu estabelecimento naquele
território.
Entretanto, há ainda maiores e piores dificuldades de enfrentamento a serem
superadas pelos Mbyá da TI Tekoá Mirim naquilo que se refere ao processo de construção
de sua luta pela demarcação fundiária de seu território tradicional. E, que na
contemporaneidade, diz respeito à elaboração da estrutura institucional do país, haja vista,
portanto, todos os processos legais relacionados à demarcação das TIs em território
nacional estarem completamente paralisados. Situação esta, que se deve as discussões
institucionais, que envolvem diretamente o Poder Executivo e o Poder Legislativo federais,
e indiretamente, os nefastos e, economicamente falando, vultosos interesses dos lobistas
que atuam em consonância com específicos representantes daqueles poderes, que, por sua
vez, pretendem alterar todo o contexto institucional, jurídico e legal, àquilo que se refere
às demarcações das terras indígenas, isto por meio do Projeto de Emenda Constitucional
nº215, ou simplesmente, a PEC 215. Que de maneira sumária, pretende anular as
atribuições atuais do Poder Executivo Federal, que por meio das atuações da FUNAI e do
Ministério da Justiça, são os responsáveis pela execução de todas as etapas relativas aos
processos de reconhecimento, homologação e, por conseguinte, de demarcação das terras
indígenas no país, para então transferi-las, em sua integridade, direta e unicamente, para o
Poder Legislativo Federal, isto é, para o Congresso Nacional.

629
Contudo, para uma real e crítica percepção deste contexto, é necessário que seja
considerada a composição histórica da bancada de maior influência daquela casa, e, que
na maioria das vezes, define a direção a que são encaminhadas a maior parte das discussões
que opõe diretamente, os seus interesses aos de outros grupos da sociedade, sobretudo,
quando se trata de grupos marginalizados. Neste sentido, observamos no contexto político
e social contemporâneo no Brasil, o Congresso Nacional, composto de uma maneira
extremamente fragmentada, politicamente falando, além de definir-se a partir de um
caráter extremamente conservador, com a clara predominância dos interesses econômicos
e, portanto, políticos, da bancada ruralista, representante do agronegócio, que assume
claro, interesses e prioridades diametralmente opostas àquelas manifestadas pelos povos
indígenas, principalmente, quando tais interesses se referem à propriedade e usos de terras
em território nacional.
Assim, de maneira geral, a luta dos povos indígenas no Brasil, pelo reconhecimento
e demarcação legal de seus territórios tradicionais, e especificamente, de modo semelhante,
a construção da luta dos Mbyá da Tekoá Mirim, passam a se caracterizar na
contemporaneidade, como um complexo processo, cujas dificuldades se multiplicam
quando se passa a considerar o cenário político institucional do país na atualidade, o que
imediatamente, causa a necessidade de que múltiplos setores da sociedade civil organizada
passem a reconhecer verdadeiramente, o contexto que circunscreve as problemáticas
relacionadas às questões das demarcações das Terras Indígenas. É, portanto, nesta
perspectiva, que este trabalho propõe se constituir como uma colaboração, ao apresentar,
a partir de evidências etnográficas e antropológicas a ancestral relação sociocultural e
cosmológica, que une o grupo indígena Mbyá aqui pesquisado com o referido território da
Tekoá Mirim.

CONCLUSÃO

Conclusivamente, a realização deste trabalho pretendeu caracterizá-lo como um


elemento auxiliar às demandas dos povos indígenas e demais interessados, por
instrumentos teóricos e metodológicos que ajudem a efetivar ações concretas em contextos
que circunscrevem os processos de luta pela demarcação das TIs no país. Para tanto, tratou-
se aqui de maneira específica, das condições que caracterizam a realidade contemporânea
do grupo indígena Mbyá Guarani no processo de ocupação territorial e constituição da sua
Tekoá Mirim.

630
Neste sentido, as principais contribuições deste trabalho estão circunscritas ao
contexto de que, inicialmente, esta é a primeira investigação etnográfica realizada junto aos
Mbyá da Tekoá Mirim, portanto, o ineditismo destas análises poderiam explicar suas
possíveis limitações, porém, é este mesmo ineditismo que garante os primeiros registros
acerca de todo o complexo processo de ocupação territorial que realizaram; do
estabelecimento de sua nova Tekoá e dos usos que efetuam sobre o ambiente ocupado.
Situação esta, que pode vir a colaborar em grande medida com os novos trabalhos a serem
desenvolvidos junto a esta população.
Outra contribuição específica deste trabalho se caracteriza pelo fato de que, fica
revelado o constante e ininterrupto processo de manutenção e reprodução sociocultural
dos Mbyá Guarani do litoral sul de São Paulo, sobretudo da baixada santista, àquilo que se
refere a sua mobilidade espaço-territorial, processo este que garante a reprodução de sua
forma própria de viver, e que, portanto, contrapõe-se a predominância do senso comum,
que insiste na manutenção da errônea concepção de que a referida região, já não é mais
habitada por povos indígenas na atualidade.
Assim, com relação às contribuições que este trabalho pretende concretizar, pode-
se considerar, que ao longo do seu desenvolvimento, ao ter sido efetuado o processo de
articulação entre as complexas realidades étnicas, cosmológicas, legislativas, de interesses
políticos e econômicos, tratadas anteriormente, entre os Mbyá da Tekoá Mirim e a
sociedade envolvente, o que se buscou foi à concretização de alguns apontamentos
conclusivos sobre o contexto de luta dos Mbyá, para auxiliá-los a garantir o reconhecimento
legal sobre a ocupação que realizaram em seu território ancestral. Para tanto, se faz
extremamente necessário em relação às análises e considerações aqui propostas, que seja
evidenciada a inércia quanto às concepções e aplicação dos direitos fundiários dos povos
indígenas no país. Principalmente, quando se sobrepõem a territórios ancestrais, cultural e
cosmologicamente já definidos quanto à posse e utilização, leis alienígenas a estas culturas,
que de modo ignorante, egoísta e violento lhes são outorgadas pela sociedade ocidental
pretensamente civilizada. Pois, sob a argumentação preservacionista, se posicionam
justificativas contra a existência das populações tradicionais em áreas naturais protegidas, já
que consideram incompatíveis a presença/manutenção destas populações e a proteção da
biodiversidade naquelas áreas. O que atesta o desconhecimento de estudos recentes que
afirmam que a manutenção, e mesmo o aumento, da diversidade biológica nas florestas
tropicais, está relacionada intimamente, com as práticas tradicionais da agricultura
itinerante dos povos indígenas. Apontando desta forma, à desmistificação das “florestas

631
intocadas” e a importância das populações indígenas e tradicionais na conservação da
biodiversidade.
Enfim, considera-se conclusivamente, que mesmo sob a afirmativa da necessidade
da reparação histórica e jurídica aos povos indígenas, quanto ao reconhecimento territorial
e acesso aos seus direitos de posse e usos tradicionais permanentes, estes procedimentos
devem se submeter as concepções e usos tradicionais, previamente estabelecidos por
cosmologias peculiares a cada uma das populações indígenas reparadas pelas políticas
fundiárias do Estado.
Já, quanto aos Mbya da Tekoá Mirim, apesar das dificuldades decorrentes da luta
pelo reconhecimento e demarcação de sua Tekoá, e, portanto, de poderem concretizar de
maneira integral a sua existência, circunscrita pela materialização e subjetivação de seu
Tekó, se expressa claramente nas entrelinhas do conceitual exposto acima, mas
principalmente, na prática e na fala dirigida ao autor pelo cacique Karaí Ñee’re, o
entendimento e a percepção deste povo sobre as limitações da composição cosmológica e
cultural, que tal demarcação territorial assumirá, quando dinamicamente estiver submetida
ao uso tradicional que os Mbyá lhe atribuírem. Assim, de modo bastante evidente, é
perfeitamente claro para eles que a sua espacialidade, culturalmente compreendida,
extrapola os limites físicos que a demarcação territorial da TI Tekoá Mirim lhes oferecerá,
entretanto, necessidades elementares inclusive, fazem com que eles, também de modo
consciente, passem a considerá-la, mobilizarem-se e articularem-se politicamente, para que
este processo político - administrativo se efetue o mais breve possível.
Porém, de maneira também consciente, os Mbyá articulam novas ações políticas,
para subverterem as limitações cosmológicas que a demarcação de sua tekoá lhes imputará
quanto à concretização de seu Nhanderekó, isto é, concebem conscientemente, a
rearticulação política de sua espacialidade, evidenciada pela tangência física das unidades:
aldeias, quando legalmente já não podem contar com a existência de um único e vasto
território Guarani. Esta proposição se evidencia na referida fala do cacique ao pesquisador,
sobretudo, ao mostrar-lhe os limites de sua terra:

(...) lá, em cima da serra, vai acabá Tekoá Mirim. Mas, é onde começa a
Tekoá Tenondé Porã. É a casa dos nosso parente (...) vai dá pra ir e voltá
caminhando, Oguatá; sabe....

632
Assim, constata-se de modo bastante claro, toda a vitalidade da percepção e
entendimentos contemporâneos dos Mbyá que habitam o litoral paulista, acerca da
territorialidade que concretiza e circunscreve suas aldeias. Portanto, para eles, suas Tekoá,
são compreendidas como devendo existir, não como áreas isoladas e estanques - como
quer decidir o Estado através dos procedimentos administrativos de demarcação de TIs -
mas como um complexo geográfico, ambiental, social e econômico que compreende as
aldeias do planalto, caminho de ligação e trilhas de coleta e caça às aldeias do litoral. Manter
a integridade desse complexo é fundamental quando se observa que as áreas Guarani
possuem exígua extensão territorial em seus limites decorrentes das demarcações realizadas
pelas agências estatais responsáveis.

REFERÊNCIAS

AZANHA, G.; LADEIRA, M. I. Os índios da serra do mar. São Paulo. Ed. Nova Stella.
1988.

BRASIL. Projeto de Emenda Constitucional nº215 de 2000. Inclui dentre as


competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas;
estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por
lei. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14562

________. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). Brasília. Ed. Senado


Federal. 2005.

CARVALHO, M. A.; GODOY, M. G. G. Representações míticas Guarani Mbyá: A


palavra como fundamento da educação. (In): CARVALHO, S. M. S. (org.). Mitos e
Prática Social. São Paulo. Ed. Terceira Margem. 2011.

COMISSÃO GUARANI YVYRUPA. A Comissão Guarani Yvy Rupa. Disponível em:


http://videos.yvyrupa.org.br/a-cgy/

CLASTRES, H. A Terra Sem Mal. São Paulo. Ed. Brasiliense. 1978.

LADEIRA, M. I. O Caminhar sob a Luz: território Mbyá à beira do oceano. São Paulo.
Ed. UNESP/FAPESP. 2007.

MELIÀ, B. As Reduções Guaraníticas: uma Missão no Paraguai colonial. (In): SUESS, P.


Queimada e Semeadura: Da conquista espiritual ao descobrimento de uma nova
evangelização. Petrópolis. Ed. Vozes. 1988.

_________. A experiência religiosa Guarani. (In): O Rosto Índio de Deus. (trad.)


CLASEN, J. A. São Paulo. Ed. Vozes. 1989.

633
O POVO KAINGANG NA CIDADE DE MARINGÁ: FRONTEIRA
ENTRE COMÉRCIO E ARTE NO CONTEXTO URBANO

Tadeu dos SANTOS365

Resumo: O objetivo deste estudo consiste na análise das transformações observadas nos padrões
gráficos, trançados e tingimentos na cestaria Kaingang. A metodologia adotada foi uma pesquisa
bibliográfica para o desenvolvimento do estudo. Os resultados deste estudo evidenciam que a
cestaria Kaingang participa de um modo de produção estético que manifesta a identidade cultural
deste povo. A comercialização da cestaria indígena nas cidades a transforma em mercadoria,
contudo não rouba seu potencial simbólico enquanto objeto que expressa valores da estética e
cultura Kaingang, atrelada à sua cosmovisão. Em conclusão o presente estudo afirma que o
fenômeno da fricção internétnica do índio com o branco no município de Maringá possui
especificidades que se manifesta por meio de mecanismo excludente, que coloca o índio na
dependência dos recursos materiais disponíveis no centro urbano.

Palavras-chave: Cultura indígena. Arte. Artesanato. Fricção interétnica.

INTRODUÇÃO

Os Kaingang que costumam visitar Maringá (PR) vivem na T.I Ivaí, próxima às
cidades de Manoel Ribas e Pitanga. Situada no centro do Estado do Paraná, a T.I. Ivaí está
localizada a aproximadamente 180 km da cidade de Maringá. Atualmente vivem na T.I.
Ivaí, conforme dados do censo de 2010 (IBGE, 2010): 887 mulheres e 800 homens,
somando 1.687 moradores, distribuídos em 353 casas.
Estima-se que 44,6% da população da T.I. Ivaí seja constituída de crianças até 14
anos de idade; (13,3%) de jovens de 15 e 19 anos; (36,5%) adultos entre 29 e 59 anos; e
em torno de 5% de idosos com mais de 60 anos. Esses resultados mostram que a
comunidade indígena do Ivaí possui uma população jovem e infantil muito alta em relação
á população adulta, isso repercute na qualidade de vida, uma vez que poucos têm de
trabalhar para alimentar muitos (MOTA, 2003, p. 93).
Com o surgimento da Associação Indigenista (ASSINDI) localizada em Maringá,
em 2000, os artesãos Kaingang passaram a ter um local de hospedagem, no período de sua
permanência na cidade. As pesquisas na ASSINDI possibilitaram a reunião de
informações sobre os modos de produção, os recursos obtidos na venda e as formas de

365
Mestrando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). É professor e artista
plástico, graduado em Artes Visuais na Associação Educacional Leonardo da Vinci (UNIASSELVI) e
Graduado em Comunicação Social na Faculdade Metropolitana de Maringá (UNIFAMMA). Especialista em
Arte Terapia com Enfoque no Ambiente Escolar na Faculdade Dom Bosco. email: artetadeu@ig.com.br
634
comercialização da cestaria. Elas foram realizadas por meio de entrevistas, registros
fotográficos, estudos de documentação e observação participante.
A ASSINDI é uma organização não governamental, que atende, desde 2000,
famílias indígenas Kaingang em situação de risco e vulnerabilidade social e econômica. A
entidade possui um Centro Cultural com cerca de um alqueire, composto por quatro casas
para os estudantes universitários indígenas, um centro infantil, um museu, horta, campo de
futebol, poço artesiano e uma casa que hospeda cerca de 80 indígenas por mês, vindos da
T. I. Ivaí. Os artesãos Kaingang podem permanecer na ASSINDI durante 30 dias, para
que a entidade possa hospedar outros grupos ao longo do ano. A ASSINDI recebe apenas
os artesãos Kaingang da T.I. Ivaí, por ser a T.I mais próxima de Maringá, por suas
limitações de espaço físico e de equipe para atendimento.
O estudo sobre a produção da cestaria Kaingang, além da observação participante,
entrevista com artesãos e análise de documentos da ASSINDI, também incluem a análise
de referenciais bibliográficos fundamentados na etnoestética e materialismo dialético.
A criação artística na manufatura dos objetos está diretamente relacionada à
construção de uma memória que redefine as identidades representadas por meio da
tradução dos conteúdos simbólicos na confecção dos trançados. O modo de produção da
cestaria Kaingang parte do pressuposto no qual, de acordo com o materialismo dialético,
o trabalho artístico é fator de humanização e libertação, gerando consciência crítica e
interação entre grupos sociais distintos (PEIXOTO, 2003). A cestaria, portanto, além de
instrumento para a subsistência, também permite a resistência da identidade cultural
Kaingang nos territórios urbanos.
O objetivo deste estudo consiste na análise das transformações observadas nos
padrões gráficos, trançados e tingimentos na cestaria Kaingang.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada neste projeto implica na articulação de referenciais teóricos


relacionados às teorias da etnicidade, aos estudos sobre fricção interétnica e ao
materialismo dialético, assim como à hermenêutica e à etnoestética. Os referenciais foram
utilizados em articulação com dados levantados na observação participante e pesquisa de
campo sobre as transformações sofridas pela cestaria produzida pelo grupo Kaingang da
T.I. Ivaí, comercializada em centros urbanos.

635
A fundamentação teórica serviu como suporte para as reflexões sobre etnicidade,
fricção interétnica e arte indígena. As pesquisas de campo, realizadas junto aos artesãos
Kaingang, possibilitaram o conhecimento sobre a criação da cestaria em relação aos
processos de construção da identidade do grupo. Esses processos se dão no contexto atual
de fricção entre a comunidade Kaingang da T.I. Ivaí e a cidade de Maringá.

ESTUDOS ETNOGRÁFICOS: UM CAMINHO PARA O DIÁLOGO

O conceito de etnicidade está relacionado à organicidade dos grupos étnicos em


relação às fronteiras. A etnicidade, portanto, define os aspectos de diferenciação e interação
entre grupos que partilham de uma determinada cultura (RAY, 2014).
A emergência de novas identidades, como a reinvenção de etnias já reconhecidas,
nos mostra como as definições podem ser criadas em processos de reconstrução
indenitárias. João Pacheco de Oliveira Filho assinala a atualização histórica em relação à
etnicidade:

(...) o que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização
histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo
o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que
decorre a força política e emocional da etnicidade (OLIVEIRA FILHO,
1998, p. 64).

Os estudos etnográficos sobre o povo Kaingang foram realizados por meio de


pesquisa de campo na T. I. Ivaí e também na Associação Indigenista – ASSINDI - Maringá,
a fim de contextualizar as mudanças na produção da cestaria. A reunião de metodologias
de pesquisa ligadas aos estudos etnográficos, em concordância com as demais metodologias
utilizadas, configura uma trama interdisciplinar, na qual os sentidos são construídos a partir
da etnomedotologia.
O principal teórico e fundador da etnometodologia, Harold Garfinkel, enfatiza a
ação humana de forma ativa e racional, em oposição às abordagens que a condiciona a
fatores exteriores ou a internalização de condutas.

A etnometodologia consiste num conjunto coerente de utensílios


conceptuais para a descrição e a compreensão de um terreno. Ela
veicula, contudo, uma filosofia social mínima cujo objectivo é o de pôr
em evidência, empiricamente, a autonomia dos membros nas suas
relações aos seus contextos sociais, e a complexidade local do seu mundo

636
social que é, por isso mesmo, irredutível a teorias substanciais com
pretensões universalistas. O primado é dado, não mais a uma teoria
prévia, mas à linguagem (lato sensu) dos membros nas suas vidas
quotidianas. A reviravolta, relativamente à metodologia da “sociologia
standard”, é radical. Enquanto que esta procede pela
descontextualização sistemática dos fenómenos sociais (ou das suas
mediações no discurso condicionado do entrevistado), a
etnometodologia procede pela contextualização sistemática dos mesmos
fenómenos. Não há continuidade entre as duas posições, e daí as
reacções inflamadas quando da publicação dos Studies in
ethnomethodology de Garfinkel (MONTENEGRO, 1997, p. 67).

De acordo com Peirano (1995), a etnografia implica em um diálogo não apenas


entre o pesquisador e nativo, mas entre a bagagem cultural e a teórica do pesquisador em
confronto com a realidade a ser interpretada, ou seja, um processo de estranhamento. Vale
lembrar que no período da ditadura militar, com o surgimento do Serviço de Proteção ao
Índio (SPI), foram inviabilizados muitos estudos etnográficos: uma mordaça imposta ao
pesquisador e muitos crimes foram acobertados por regimes autoritários. A Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), entre outros setores, funcionavam como mecanismos de
controle disfarçados de órgãos de proteção.
Segundo Villar, a teoria barhtiana considera que as pessoas criam o significado
étnico na interação social: “Em primeiro lugar, seria possível invocar com facilidade casos
empíricos nos quais indivíduos ou grupos se aferram a sua identidade étnica, mesmo
quando isso lhes causa problemas (VILLAR, 2004, p. 184). De acordo com o autor, Barth
indica uma espécie de jogo identitário, no qual as escolhas étnicas expressam uma
identidade mais ampla e básica. Podemos afirmar, portanto, que a etnicidade pode ser
negociada e que os grupos étnicos reinventam suas identidades de acordo com as dinâmicas
sociais. Seguindo a reflexão de Barth é preciso compreender a relação entre etnicidade e
cultura:

Em razão dessa disjunção entre cultura e etnicidade, geralmente se


admite que o grau de enraizamento das identidades étnicas nas
realidades culturais anteriores é altamente variável, e que toda cultura
“étnica” é, em certa medida, “remendo”. A etnicidade não é vazia de
conteúdo cultural [...] Ela implica sempre um processo de seleção de
traços culturais dos quais os atores se apoderam para transformá-los em
critérios de consignação ou de identificação com um grupo étnico.
Concorda-se igualmente em reconhecer que os traços ou os valores aos
quais pessoas escolhem para prender suas identidades não são
necessariamente os mais importantes, os que possuem “objetivamente”
o maior poder de demarcação [...] Uma vez selecionados e dotados de
valor emblemático, determinados traços culturais são vistos como a

637
propriedade do grupo no duplo sentido de atributo substancial e de
posse [...] e funcionam como sinais sobre os quais se funda o contraste
entre Nós e Eles (BARTH, 1998, p. 129-130).

As análises realizadas durante a pesquisa revelaram que os artesãos Kaingang


estabelecem, há longa data, relações com as cidades em torno das terras indígenas. As
observações apontam que as transformações na cestaria vêm sendo realizadas sem que os
traços culturais, presentes nos grafismos e trançados, desapareçam, pois as alterações
acontecem principalmente no uso de matérias-primas urbanas. As alterações identitárias
também destacam que o uso de objetos industrializados, tais como roupas, celulares e
outros itens, não comprometem a noção de pertencimento ao grupo.
Os autores investigados argumentam que as permanências são menos importantes
que as rupturas, considerando o contexto atual. Tais rupturas geram o fenômeno da crise
de identidade, que conforme Hall (2011) indica, surge na pós-modernidade, formada por
indivíduos que não possuem uma identidade fixa. Segundo Hall (2011), o movimento
histórico é flexível e as paisagens culturais são moldadas conforme os contextos se
fragmentam e se transformam. O autor aponta que o deslocamento pode ser positivo, pois
descontrói identidades estáveis do passado, abrindo possibilidades para novos arranjos.
Neste contexto o tema desta pesquisa trata do estudo da produção simbólica na
cultura Kaingang, manifesta em sua cestaria, comercializada em centros urbanos. O estudo
é constituído pela análise das transformações originadas do contato interétnico,
incorporadas na criação de trançados, grafismos e tingimentos utilizados na cestaria
Kaingang. O contexto é referente à relação entre duas sociedades distintas etnicamente. A
situação dos índios que vêm a Maringá exemplifica o que Cardoso de Oliveira chamou de
fricção interétnica:

Chamamos “fricção interétnica” o contato entre grupos tribais e


segmentos da sociedade brasileira, caracterizados por seus aspectos
competitivos e, no mais das vezes, conflituosos, assumindo esse contato
muitas vezes proporções totais, isto é, envolvendo toda a conduta tribal
e não-tribal que passa a ser moldada pela situação de fricção interétnica
(OLIVEIRA, 1996, p. 174).

Os conceitos de territorialização (CASTRO,1999) e identidade étnica e contato


interétnico (BARTH, 1998; ATHIAS, 2007) constituem a fundamentação para as análises
sobre as relações entre as concepções de território e a unidade clânica nas comunidades

638
Kaingang. Tais conceitos são desenvolvidos junto às reflexões sobre a mobilidade Kaingang
nos territórios urbanos nos períodos de venda de sua cestaria.
Os diferentes momentos pelos quais as concepções de identidade étnica passam
por alterações significativas no Brasil são abordados a partir dos estudos de Athias (2007)
sobre autores brasileiros que contribuíram para o desenvolvimento do conceito, entre eles,
Gilberto Freyre, Darcy Ribeiro e Roberto Cardoso de Oliveira.
O estudo sobre a identidade Kaingang realizou-se com base nos escritos de
Nimuendaju (1986, 1993), Telêmaco Borba (1908) e Juracilda Veiga (1994). Nimuendaju
e Borba forneceram os primeiros relatos sobre a cosmovisão Kaingang, registrando seu
mito de origem. O mito é objeto de análise associada à simbologia Kaingang das metades
exogâmicas Kamé e Kainru, analisadas por Veiga.
Para a investigação sobre as relações entre arte, artesanato, hibridação e mercadoria,
foram utilizadas as abordagens de Marx (1983; 2013) Canclini (2000) e Price (2000). Estes
autores relacionam a produção artesanal de povos autóctones ao eurocentrismo que dá
origem à visão preconceituosa que comumente desvaloriza o trabalho das comunidades
indígenas.
Foram utilizados os conceitos de mercadoria e acumulação primitiva (Marx, 1985;
2013), em suas relações com a produção Kaingang comercializada em Maringá. O estudo
sobre os modos de produção da cestaria Kaingang possibilitaram a compreensão sobre a
inserção dessa produção no âmbito urbano também a partir da teoria da dádiva (mauss,
1974) e da economia solidária (GEIGER, 2000).
Os autores da ‘Escola de Frankfurt’ (BENJAMIN; ADORNO; HORKHEIMER,
1985; 1995; MARCUSE, 1997) compõem o referencial metodológico para os estudos
sobre as relações entre os objetos indígenas comercializados na cidade e sua inserção na
indústria cultural. A condição de mercadoria destes objetos é ampliada com sua simultânea
inserção no sistema das artes. Marcuse (1997) confirma a possibilidade de considerarmos
a produção Kaingang como artística no sentido de potencializar seu sentido revolucionário,
invertendo a alienação característica das produções da indústria cultural.
Thompson (1998), com o conceito de hermenêutica da profundidade promove
neste estudo a costura entre as teorias acima mencionadas. O cruzamento das diferentes
teorias, por meio da hermenêutica da profundidade, encontra ressonância com a
etnomedologia (MONTENEGRO, 1997) e a pesquisa de observação participante,
realizada no Centro Cultural da ASSINDI e na Terra Indígena Ivaí. A hermenêutica da
profundidade constrói as diferentes significações dos elementos simbólicos presentes nas

639
expressões indígenas, permitindo que os estudos sobre etnoestética (SILVA, 2000;
CAVALCANTE; PAGNOSSIM, 2007) possam ser interpretados em consonância com os
contextos históricos em questão e tendo em conta as observações realizadas na pesquisa de
campo.

COMERCIALIZAÇÃO DA CESTARIA KAINGANG EM MARINGÁ

A taquara vem sendo utilizada concomitantemente ao uso de material sintético,


encontrado na cidade pelos Kaingang. Este material, encontrado nas cores verde, amarelo,
vermelho, azul, preto e branco é conhecido como fita de arquear, sendo utilizado em
embalagens de produtos frágeis e assemelha-se a taquara, pois o formato de fita permite a
realização do trançado.
Com a descoberta da possibilidade de uso da fita plástica utilizada na produção de
móveis, os artesãos Kaingang passaram a comprar esta fita de um fornecedor local,
ampliando a palheta de cores utilizada na cestaria.
O uso do material sintético, na cestaria é uma adaptação dos artesãos Kaingang da
T.I. Ivaí, que se deve à dificuldade encontrada pela escassez da taquara nas terras indígenas.
As modificações acontecem em relação à matéria-prima para o trançado, mas nem este e
nem os padrões gráficos presentes na cestaria são modificados com o uso de fibra sintética.
Segundo Pacheco de Oliveira (1998), a "etnologia das perdas" deixou de possuir um
apelo descritivo ou interpretativo e a potencialidade da área do ponto de vista teórico
passou a ser o debate sobre a problemática das emergências étnicas e da reconstrução
cultural. E é orientado por essas preocupações teóricas, que se constituiu do início dos
anos 90 para cá um significativo conjunto de conhecimentos sobre os povos e culturas
indígenas do Nordeste, ancorado na bibliografia inglesa e norte-americana sobre etnicidade
e antropologia política, e é importante acrescentar nos estudos brasileiros sobre contato
interétnico.
O contexto das análises associa-se à noção de territorialização e as teorias da
definição dos índios como sujeitos históricos plenos, proposta por João Pacheco de
Oliveira (1989), diferente da noção de que pertenceriam a estágios iniciais evolutivos da
humanidade.
Para Cardoso de Oliveira, territorialização é: “[...] uma intervenção da esfera
política que associa (de forma prescritiva e insofismável) um território bem determinado a
um conjunto de indivíduos e grupos sociais” (1998, p. 56).

640
As reflexões sobre territorialização contribuem para o esclarecimento de que o fato
de comercializar a cestaria fora da T.I., não significa abrir mão dos valores presentes na
cultura Kaingang. Ao contrário, representa a reocupação de territórios antigos,
apropriando-se dos recursos que ele oferece no momento. Neste caso, a vinda para a
cidade de Maringá, significa a retomada de um costume ancestral, pois seus antepassados
costumavam percorrer a região em busca de caça, pesca e coleta.
Viveiros de Castro (1999), na análise sobre o conceito de territorialização, explica
que:

Se bem compreendi Oliveira, seu conceito de territorialização exprime


a idéia de que a incorporação de uma sociedade indígena pelo Estado
nacional envolve uma passagem do “parentesco” ao “território” como
princípio de constituição social, ou, pelo menos, a instauração de uma
nova relação da sociedade com o território. A territorialização por
incorporação a um Estado, ele mesmo territorialmente organizado,
produz uma modificação no que poderíamos chamar de natureza última
da sociedade indígena (...) (VIVEIROS DE CASTRO, 1999, p. 195-
196).

É possível compreender que o pertencimento étnico e o conceito de território


devem ser analisados de forma correspondente. Esta análise contribui para o
esclarecimento sobre a interação entre os artesãos Kaingang e o contexto urbano,
desmistificando o pensamento do senso comum que considera como perda cultural as
transformações identitárias, decorrentes do contato interétnico.
A noção de identidade étnica, a partir dos estudos de Athias (2007), mostra o
desenvolvimento do conceito na história da antropologia brasileira. Segundo o autor,
existem três correntes relacionadas à questão étnica que determinam os movimentos
identitários no Brasil.
A primeira corrente, representada por Gilberto Freyre e Arthur Ramos, trata da
fusão das raças e também é conhecida como “racismo brasileiro”. A segunda corrente foi
defendida por Eduardo Galvão, com a teoria da aculturação e deu origem à concepção de
transfiguração étnica, de Darcy Ribeiro. A terceira corrente corresponde à teoria da fricção
interétnica, proposta por Roberto Cardoso de Oliveira. Em síntese, as três correntes estão
relacionadas respectivamente aos conceitos de mestiçagem, aculturação e integração.
A primeira corrente, “fusão das raças”, situa-se entre os séculos XIX e XX,
representando a ideia de superioridade da classe dominante no Brasil. Nesta corrente
valorizava-se o ideal de pureza, o “branqueamento das raças”, depreciando a mistura entre

641
etnias. Neste mesmo período o movimento modernista, que culminou com a Semana de
22, apresenta-se em oposição a esta corrente, defendendo o indígena como figura
representativa da cultura nacional. Contudo, o denominado “racismo à brasileira”
predominou, atribuindo às culturas indígenas a ideia de atraso e subdesenvolvimento.
Na segunda corrente, a teoria da “aculturação” consiste no desenvolvimento da
anterior. Athias (2007) critica a segunda corrente analisando o conceito de transfiguração
étnica de Darcy Ribeiro. Encontra-se implícita nas duas correntes a noção de processo
civilizatório, expressa nos sistemas: adaptativo, associativo e ideológico. A ideia de
assimilação também envolve a segunda corrente, expressando a crença de que um grupo é
incorporado em outro, perdendo suas especificidades.
A terceira corrente denomina-se “Integração” e indica a autonomia de um grupo
para criar sua própria organização política e cultural, sem deixar de lado a cultura original.
Nessa corrente o pensamento de Cardoso de Oliveira (1986) e Frederik Barth (1996)
confluem na definição dos grupos étnicos como organizações visíveis em condições
organizacionais coletivas. Em contraposição às teorias de Darcy Ribeiro, Roberto Cardoso
de Oliveira (1986) conceitua as situações de contato como “Fricção Interétnica”: “O autor
propõe uma abordagem sociológica do fenômeno do contato interétnico. Ele considera a
noção de identidade étnica enquanto ideologia” (ATHIAS, 2007, p. 54).
O contato interétnico, portanto, em relação às comunidades indígenas e cidade se
dá pelo estabelecimento de identidades contrastivas, pelas distintas maneiras de
organização social e pela instauração de fronteiras entre os grupos.

Em primeiro lugar, fica claro que as fronteiras persistem apesar do fluxo


de pessoas que atravessam. (...) em segundo lugar, descobre-se que as
relações sociais vitais, são mantidas através dessas fronteiras e são
freqüentemente baseadas preciosamente nos estatutos étnicos
dicotomizados (BARTH, 1988, p. 188).

Considerando que, neste trabalho são investigadas as relações vividas pela cultura
Kaingang e pela sociedade urbana envolvente, moradora do município de Maringá, a
abordagem metodológica associa-se ao pensamento de Barth, no qual a identidade étnica
constitui-se não na diferença, mas sim nos processos de comunicação entre grupos
distintos.

Os ensaios aqui reunidos tentam mostrar que as fronteiras étnicas, em


cada caso, são mantidas por um conjunto imitado de traços culturais.

642
Assim, a persistência da unidade depende da persistência dessas
diferenças culturais, ao passo que sua continuidade pode igualmente ser
especificada por meio das mudanças da unidade resultantes das
mudanças nas diferenças culturais definidoras da fronteira (BARTH,
1998, p. 226).

Considera-se que as diferentes concepções de território e as transformações


advindas do contato interétnico levam a situações de aproximação e distanciamento,
configurando a redefinição das identidades. A persistência no uso dos padrões gráficos na
cestaria Kaingang apresenta-se como sinal diacrítico, juntamente com a utilização da fita
sintética apropriada no contato com a cidade.
A tradição do trançado em taquara no âmbito da cultura material Kaingang é
imemorial. Ela reúne segredos e significados para o povo Kaingang. Silva (2001), Parellada
(2008) e Fernandes (1941) apontam semelhanças entre as inscrições rupestres no Paraná e
elementos presentes na cestaria e pintura corporal observados na atualidade.
O tempo dos antigos (wãxi) continua presente no tempo e espaço novos. É o tempo
novo que lhes impõe a construção dos novos wãre na cidade para venderem suas cestarias.
São novos no sentido em que estes wãre na cidade reproduzem a dependência ao mundo
do branco, articulando parte de sua produção ao mercado. A renda obtida no comércio
não é suficiente para o abastecimento da família. Por outro lado, o trabalho nas reservas
indígenas – nas roças familiares e coletivas – também é insuficiente para sua subsistência.
Presos às rédeas do sistema capitalista no qual foram inseridos (...) (TOMMASINO, 2000,
p. 219).
Na cestaria, observa-se que as modificações são mais visíveis em relação ao
tingimento da taquara, já que os pigmentos naturais foram substituídos pelas anilinas.
Também em relação às matérias-primas, a diminuição dos territórios indígenas provocou
a escassez da taquara ou taquaruçu. O uso das fibras sintéticas encontradas na cidade, em
substituição da taquara é realizado por alguns artesãos e não eliminou o uso da taquara. As
transformações constituem, no modo de produção, um campo de fricção, no qual uma
adaptação não significa ausência dos emblemas identitários presentes nas representações
simbólicas da cestaria.
Na perspectiva de Tommasino, os Kaingang mantiveram parte de seus costumes
autóctones que, somados aos novos padrões introduzidos e/ou inventados após o contato,
constituem a cultura dos Kaingang contemporâneos (TOMMASINO, 2000, p. 215).
Este fenômeno dialoga com o argumento de Barth sobre a flexibilidade quanto às
possíveis transformações culturais em uma relação interétnica: “Os traços culturais que

643
demarcam a fronteira podem mudar, e as características culturais de seus membros podem
igualmente se transformar (...)” (BARTH, 1998, p. 195).
Segundo Motta (2008), o cenário movido pela dinâmica de fronteira, típica das
relações interculturais, define-se em relação aos Kaingang no Paraná, por lutas e estratégias
de sobrevivência.

Não ocorreu a homogeneização esperada pelos representantes da


sociedade envolvente, sendo que os grupos indígenas reelaboraram sua
concepção de sociedade e de mundo, mas mantiveram seu modo
próprio de ocupação e construção do tempo, através da lógica,
relacionando a um novo contexto histórico (MOTTA, 2008, p. 174).

A identidade Kaingang na cidade manifesta-se, entre outros elementos, por meio


dos cestos de taquara nela comercializados, que constitui parte significativa de sua cultura
material. O artesanato é um meio de subsidiar a economia familiar. A presença indígena
nas cidades brasileiras revela a expropriação de seus territórios originais, de onde retiravam
seu sustento. Com a restrição de sua mobilidade imposta pelos colonizadores, obrigando-
os a permanecerem em áreas restritas, surge a resposta indígena com sua vinda para a
cidade. Nela as trocas entre a cestaria e o dinheiro necessário para a compra de alimentos
reflete a perpetuação da condição de exploração dos povos indígenas, pois os recursos
obtidos na cidade são insuficientes.
Os valores de uso e de troca são estabelecidos no campo da produção. Segundo
Marx, o ser humano produz vida material e marca sua subjetividade na relação e na fricção
histórica. Marx explica que o trabalho, como categoria à parte de qualquer relação social
determinada é um processo que envolve o ser humano e a natureza. Trata-se de um
processo em que a ação humana controla as trocas materiais com a natureza. Para Marx o
intercâmbio é um elemento necessário e indispensável na vida humana. Segundo o teórico,
os aspectos que compõem o processo de trabalho são: a atividade que visa um objetivo, a
ação sobre a matéria e os instrumentos ou meios para o trabalho (MARX, 2013). Desta
forma, o ser humano impõe sua vontade, transforma os recursos naturais em coisas úteis à
vida. E esta transformação, guiada por sua vontade, possui um fim a que se deseja chegar.
O resultado do trabalho é, portanto, a realização do que ele criou antecipadamente
em sua consciência. Na teoria marxista o trabalho não modifica apenas o material, mas
confere ao material um projeto concebido por sua consciência.

644
A presença indígena na cidade, portanto, representa uma contrapartida social e
cultural, que leva os cidadãos maringaenses a compreenderem que a sociedade Kaingang
expressa, com sua vinda para a cidade, aspectos de sua ancestralidade, que desde tempos
imemoriais manifesta a mobilidade como signo cultural. E mais: as formas históricas da
produção artesanal, antagonizadas pelo modo de produção capitalista, desde o período da
acumulação primitiva, ressurgem como possibilidades de emancipação através de projetos
contemporâneos de economia solidária (MARX, 2013).

ECONOMIA SOLIDÁRIA, ECONOMIA SOCIAL OU ECONOMIA DA


DÁDIVA?

Na análise sobre as iniciativas de valorização da produção artesanal indígena,


realizadas com grupos Kaingang da T.I. Ivaí, abordamos algumas iniciativas promovidas
pela Associação Indigenista – ASSINDI – Maringá. Estas iniciativas são permeadas pelos
conceitos de economia solidária, economia social e, em relação às formas originariamente
utilizadas pelos povos autóctones, são descritas nos estudos de Mauss, em relação à teoria
da dádiva.
O conceito de economia solidária engloba a premissa, levantada por Gaiger (2000),
na qual a economia dos setores populares é compreendida como uma ação de fronteira,
gerando novas maneiras de sociabilidade. São analisadas na discussão sobre as iniciativas
de apoio, valorização e comercialização do artesanato Kaingang, as divergências entre os
conceitos de economia social e solidária:

A Revista RECMA, no seu editorial de janeiro 2001 intitulado A solidariedade


em questão, estabelece uma nítida diferença entre economia social e economia
solidária. Inicialmente, a solidariedade é problematizada. Etimologicamente, o
termo é uma deformação da palavra latina solidum que, entre os jurisconsultos
romanos, servia para designar a obrigação que pesava sobre os devedores
quando cada um era responsável pelo todo (in solidum). A solidariedade é um
fato antes de ser um valor e designa uma dependência recíproca. Esta concepção
faz da solidariedade uma realidade possível de constatar como a definia
Durkheim nas suas modalidades mecânica e orgânica (In:
http://www.uff.br/incubadoraecosol/ocs/ecosolv1.pdf).

A conclusão apresentada no editorial da revista aponta que as duas formas de


economia (solidária e social) podem complementar-se e apoiarem-se na direção do
fortalecimento de ambas. A associação dos conceitos com a teoria da dádiva de Mauss é
objeto das reflexões sobreas formas de comercialização da cestaria Kaingang. Sobre a teoria
da dádiva, Lanna (2000) defende que:

645
O estudo da dádiva permitiria à sociologia a superação relativa de
dualidades profundas do pensamento ocidental, entre espontaneidade e
obrigatoriedade, entre interesse e altruísmo, egoísmo e solidariedade,
entre outras. Este ponto é importante porque a conclusão do Ensaio irá
criticar a generalização da noção de interesse individual implícita na
sociedade burguesa e no pensamento liberal, que irão opor radicalmente
aquilo que a dádiva une (LANNA, 2000, p. 176).

As análises verificam que o modo de produção e comercialização Kaingang abrange


muito mais que questões puramente econômicas, expandindo-se para aspectos como
educação, lazer e turismo, ou seja, formas de uma racionalidade econômica que vai além
da busca de recurso monetário.

De outra parte, o solidarismo mostra-se capaz de converter-se no


elemento básico de uma nova racionalidade econômica, apta a sustentar
os empreendimentos através de resultados materiais efetivos e de ganhos
extra econômicos. Pesquisas empíricas vêm apontando que a
cooperação na gestão e no trabalho, no lugar de contrapor-se aos
imperativos de eficiência, atua como vetor de racionalização do processo
produtivo, com efeitos tangíveis e vantagens reais, comparativamente ao
trabalho individual e à cooperação, entre os assalariados, induzida pela
empresa capitalista (GAIGER et al., 1999; PEIXOTO, 2000).

Neste contexto de ação de fronteira, as incorporações de valores e símbolos


urbanos no modo de produção Kaingang promove a configuração de uma estética híbrida,
que se manifesta em diferentes aspectos da cestaria.
A ASSINDI, desde sua fundação, vem promovendo diferentes eventos, feiras,
palestras e produções (literárias, audiovisuais, artísticas, etc.) com o objetivo de difundir e
valorizar a arte e cultura indígena no Paraná. A entidade possui uma loja em sua sede e
participa mensalmente da Feira Organamix, na qual comercializa cestos, bolsas e fruteiras
produzidas pelos Kaingang. Em 2013 a entidade recebeu a encomenda de uma empresa
da região para mediar a produção de 2.000 bolsas feitas com fita plástica pelos artesãos
Kaingang. Constata-se que a produção Kaingang enquadra-se na perspectiva da hibridação
cultural.
Os estudos de hibridação cultural, de Canclini (2000) foram confrontados aos
dados levantados na pesquisa de campo, a fim de analisar as novas configurações estéticas
desenvolvidas na cestaria Kaingang. Foram investigadas duas situações distintas. A primeira
delas é observada em relação à cestaria Kaingang, que além das transformações pelo uso

646
de pigmentos adquiridos na cidade, como a anilina e a utilização da fita plástica, apresentou
uma mudança surpreendente, que motivou a criação do Coletivo Kókir e sua intervenção
nos objetos indígenas. No mês de março de 2016 alguns artesãos hospedados na ASSINDI
iniciaram a produção de fruteiras criadas a partir de suportes industrializados.
As críticas feitas pelos frankfurtianos à indústria cultural evidenciam como na
sociedade moderna a cultura transformou-se em uma grande força capaz de transmutar a
arte em qualquer mercadoria. O que representa uma das características da dominação da
técnica para os bens culturais na modernidade, adaptando as produções ao consumo de
massa. Segundo Adorno (1995) a indústria cultural atua por meio da dominação técnica
de maneira a tolher as consciências das massas, impedindo que indivíduos autônomos
possam agir conscientemente.

Se as massas são injustamente difamadas do alto como tais, é também a


própria indústria cultural que as transforma nas massas que ela depois
despreza, e impede de atingir a emancipação, para qual os próprios
homens estariam tão maduros quanto as forças produtivas da época o
permitiriam (ADORNO, 1995, p. 295).

No entanto, a concepção da arte e da cultura como ferramentas de reprodução do


sistema capitalista deve ser reavaliada, destacando-se, segundo Marcuse (1997), a
importância de compreender o sentido dialético da questão. Para o autor, a arte guarda um
potencial revolucionário, pois seria a única a guardar “(...) uma linguagem contestatória e
revolucionária nos tempos de hoje” (MARCUSE, 1997, p. 95).
Tendo em vista que a produção de arte indígena na atualidade, muitas vezes
apropria-se de tecnologias como a internet, o rádio, a televisão e o cinema, é importante
lembrar que, em lugar de transformar-se em mera mercadoria, tal produção reveste-se de
caráter crítico, incorporando mídias características da sociedade capitalista, mas com
sentido inverso.
Há que se compreender que existe também a apropriação da cestaria Kaingang,
por parte da cidade e da indústria cultural de forma a ressaltar uma pseudo superioridade
cultural urbana em detrimento da produção indígena. Isto acontece quando a cestaria é
recebida de maneira etnocêntrica e com preconceito, ou seja, quando não se reconhece
nela os valores culturais que expressam uma cosmovisão específica e carregada de
conteúdos simbólicos inerentes às comunidades indígenas.

647
TRAMA INFINITA

A existência de iniciativas de incorporação das novas tecnologias e da indústria


cultural a serviço dos povos indígenas prolifera no território nacional em projetos como
“Vídeo nas aldeias”, “Arco digital”, “Índios na visão dos índios” 366entre outros. Observa-se
que a contradição expressa nos elementos da fricção interétnica amplia o jogo polissêmico
das vozes que compõem a trama interpretativa gerada nesse contexto. Esta trama configura-
se por meio de caminhos cruzados, que são analisados por meio da hermenêutica de
profundidade.
A hermenêutica de profundidade (HP) consiste em um conjunto de instrumentos
teórico-metodológicos de interpretação e foi proposta por John B. Thompson (1998) para
a análise das formas simbólicas considerando sua inserção no contexto social. A HP visa
uma costura entre diferentes elementos de significação, construída com rigor a partir da
sistematização de conhecimentos correlacionados.
No catálogo “Sustento/Voracidade” a relação da produção da cestaria com a
cosmovisão do grupo é explicitada nos textos que o compõem, a fim de destacar sua
importância como marca de identidade e não apenas como mercadoria. Foram inseridas
no catálogo algumas informações coletadas nas entrevistas realizadas com os Kaingang na
pesquisa de campo. O catálogo alinhava a trama de vozes e sujeitos participantes do
processo: estudantes indígenas universitários, artesãos Kaingang, estudantes do curso de
Artes Visuais da Universidade Estadual de Maringá, diretor do Museu Paranaense,
Coletivo Kókir, presidente da ASSINDI e galerista da Farol Arte e ação (Galeria de arte
contemporânea).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises apontam para o diálogo intercultural, sendo possível concluir que as


transformações na cestaria Kaingang têm como ponto de partida os processos de interação
e fricção interétnica resultantes do contato com a cidade.
É possível concluir as análises ressaltando que as transformações na cestaria
Kaingang têm como ponto de partida os processos de interação e fricção interétnica
resultantes do contato com a cidade.

366
http://www.thydewa.org/work/indios-na-visao-dos-indios/

648
Destaca-se neste processo que a reconfiguração de identidades aponta para uma via
de mão dupla, na qual alteram-se as visões de um grupo sobre outro. Muito além das
mudanças na utilização da matéria-prima, observa-se a importância da resistência dos sinais
diacríticos que permanecem presentes, tais como os grafismos e o trançado Kaingang. Por
outro lado, a valorização destes sinais por meio de ações da ASSINDI e do Coletivo Kókir,
por meio de sua inserção em circuitos artísticos e eventos diversos, promove a
compreensão de seu valor cultural e estético.
O trabalho indígena de venda da cestaria na cidade, muitas vezes não é bem visto
pela população, por motivos diversos. O artesanato apesar de ser mercadoria, também é
marcador da identidade do grupo (ASSIS, 2006).
A cestaria Kaingang participa de um modo de produção estético que manifesta a
identidade cultural deste povo. A comercialização da cestaria indígena nas cidades as
transforma em mercadoria, contudo não rouba seu potencial simbólico enquanto objeto
que expressa valores da estética e cultura Kaingang.
O desfecho das investigações realizadas equipara a produção artesanal da cestaria
Kaingang com a elaboração teórica da pesquisa acadêmica, inserindo o fazer criativo e
interpretativo como trama e urdidura em ambos os processos. Os significados originados
destas criações apontam para um futuro menos sombrio para as populações indígenas.
As conclusões obtidas com esta pesquisa revelam que as transformações na cestaria
Kaingang da terra indígena Ivaí advindas da fricção interétnica estão relacionadas à
necessidade de contato, troca, comunicação e também subsistência do povo indígena.
O desfecho do trabalho aponta para análise da produção da cestaria Kaigang como
resultados da fricção interétnica que se traduz em uma relação de produção e de
exploração econômica que é imposta pela cultura branca na região metropolitana de
Maringá.
Este estudo conclui o fenômeno da fricção internétnica índio com o branco no
município de Maringá possui especificidades que se manifesta por meio de mecanismo
excludente, que coloca o índio na dependência dos recursos materiais disponíveis no
centro urbano.

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652
FRAGMENTOS ORAIS E ESCRITOS: PRIMEIRAS NOTAS PARA
UMA ETNOGRAFIA HISTÓRICA DO PROCESSO DE DISPOSIÇÃO
ESPACIAL TUPI

Vladimir BERTAPELI367

Resumo: Esta comunicação versa sobre as primeiras notas de uma etnografia histórica acerca do
processo de identidade dos Tupi e Tupi Guarani que vivem no litoral paulista e interior. Parte-se
de uma articulação entre a memória oral e os documentos encontrados nos acervos públicos e
particulares. Deste modo, partindo de uma crítica à etnonímia compósita Tupi, Guarani e Tupi
Guarani, trata de apontar os caminhos para uma reconstituição genealógica das relações entre
parentelas e grupos locais Tupi, Guarani e Tupi Guarani em suas múltiplas articulações identitárias
nuançadas no tempo e no espaço. Para isso, a reconstituição remonta ao final do século XIX,
referenciada ao alcance da memória oral Tupi e Tupi Guarani, por um lado e, por outro, aos
primeiros registros destes etnônimos nas fontes documentais disponíveis, e abrange o processo de
retomada territorial que culmina na primeira década do século XXI. Tem como marcador
temporal a memória oral dos Tupi e Tupi Guarani quanto ao processo de retomada e o momento
em que surgem os primeiros registros documentais relacionados ao uso dos mencionados
etnônimos.

Palavras-chave: Tupi. Tupi Guarani. História Indígena. Identidade. Território.

INTRODUÇÃO

Os etnônimos Tupi e Tupi Guarani, tal como os povos indígenas homônimos


utilizam, apresentam o desafio em apreender o processo secular de construção da
identidade destes indígenas e sua disposição espacial na costa meridional atlântica do
continente. Logo, procuro aqui lançar luz para um aspecto negligenciado tanto pelos
historiadores quanto pelos antropólogos acerca das narrativas e os primeiros registros
destes etnônimos nas fontes documentais disponíveis sobre a identidade Tupi e Tupi
Guarani, bem como o processo de retomada territorial destes indígenas que culmina na
primeira década do século XXI. Portanto, essa política promovida por tais indígenas insere-
se num fenômeno social maior, onde a identidade étnica é evidenciada muitos grupos que
ressurgem diante de nossos olhos. Como expressa Maria R. C. Almeida (2009, p. 208),
esses grupos ameríndios “[...] reconstroem suas próprias histórias e identidades, ao mesmo
tempo em que influenciam mudanças em nossa historiografia”.
Portanto, para se falar dos atuais Tupi e de suas relações históricas com os Guarani
e Tupi Guarani, referenciados à constituição de suas identidades étnicas, bem como às
dinâmicas de sua disposição espacial, faz-se necessária uma reconstituição etno-histórica,

367
Doutorando em Ciências Sociais; Unesp/Araraquara; CAPES;

653
recorrendo-se à memória oral, como também às fontes documentais disponíveis,
certamente fragmentárias, atinentes aos movimentos de dispersão e reaglutinação da
população em suas próprias formas de organização e sociabilidade.
Neste caso, a etnografia histórica tem um importante papel para uma pesquisa desta
natureza, que almeja compreender a história dos povos indígenas. Afinal, o gênero
etnográfico permite a interação do antropólogo na vida diária dos seus interlocutores. Pois,
segundo Rosaldo (1980), a importância que a perspectiva histórica tem para os estudos em
antropologia está no fato de que os povos nativos podem ser melhor compreendidos em
seu desenvolvimento através do tempo do que em um sistema de estruturas eternas.
A etnografia histórica tem aqui grande valia para se buscar às narrativas dos
txeramôes e txedjrays Tupi e Tupi Guarani, lembrando que tais narrativas estão ancoradas
na memória oral que, por sua vez, é mantida e repassada de maneira fragmentada pelos
seus detentores. Afinal, como indica Price (1983), o conhecimento do passado não deve
ser transmitido para qualquer um, uma vez que pode ser usado contra eles.
E não se pode deixar de mencionar que a etnografia histórica também se vale de
fontes documentais escritas. Segundo Comaroff e Comaroff (1992), os arquivos têm
despertado hoje o interesse dos antropólogos pelo fato de abrigar marcas e inscrições a
partir dos quais devem ser eles próprios interpretados. E Santilli (1994, p. 66) observa que
“[...] a tarefa da história indígena é buscar decifrar nas entrelinhas, nos silêncios do
documento, uma outra lógica cultural, que ali se esconde.” Price (1983) comenta que uma
melhor compreensão da história desses povos nativos pode surgir quando se observa
atentamente as interações entre as narrativas orais e os documentos escritos. Portanto, o
acervo da SPI-FUNAI, hoje sob os cuidados do Museu do Índio, como também os demais
arquivos públicos e particulares (municipais da região, o Arquivo Público de São Paulo e
bibliotecas) não podem ser deixados de lado pelo pesquisador que almeja realizar tal
empreitada.
Por fim, evidencio que não se pretende aqui submeter as fontes orais ao crivo dos
registros escritos. Pois, como ensinam Jan Vansina (1973) e Jack Goody (2012), a palavra
escrita não substitui a fala, assim como esta não substitui aquela, mas ambas podem
complementar umas às outras. Deste modo, procuro neste estudo seguir o que Oliveira
Filho (2012, p. 76) aponta: “[...] recuperar o processo histórico vivido por tal grupo, mostrar
como ele refabricou sua unidade e diferença face a outros grupos com as quais esteve e
está em interação”.

654
As próximas páginas que seguem serão dedicadas há alguns elementos que
considero como evidências que provavelmente levarão para os caminhos da reconstituição
histórica Tupi e Tupi Guarani.

A DIVERSIDADE DE ETNÔNIMOS

Nas crônicas coloniais sobre o Brasil dos séculos XVI e XVII sobressaem, além de
enaltecer aspectos biológicos e geográficos, as descrições relativas aos povos nativos que
aqui já habitavam. Embora estas não estejam isentas de impressões etnocêntricas, é possível
encontrar a descrição de uma significativa diversidade de povos vivendo ao longo do litoral,
como também no então considerado impenetrável e perigoso interior do continente.
Hans Staden ([1557] 2011), por exemplo, revela um cenário composto por índios
Caeté, Potiguara, Carijó, Tupiniquim e Tupinambá, também chamados pelos seus inimigos
de Tabajara. Já o calvinista Jean de Léry ([1578] 1980, p. 31), que também narrou sua
experiência em terras brasílicas, sobretudo quando esteve na Baía de Guanabara, cenário
onde foi erguida uma colônia francesa, a chamada França Antártica, afirma que os índios
eram denominados pelos termos designativos: Uetacá, Margaiá, Tupiniquim, Tupinambá
e Maracajá. E Pero de Magalhães Gândavo [1576] 2004, p. 133-164) afiança que os nativos
habitantes do espaço litorâneo, embora “[...] ainda que estejam divisos, e haja entre eles
diversos nomes de nações, todavia na semelhança, condição, costumes e ritos gentílicos
todos são um [...]”, já aqueles que habitavam o interior, “[...] outros índios doutra nação
diferente se acham nestas partes, ainda mais ferozes e de menos razão que estes. Chamam-
se aimorés, os quais andam por esta costa como salteadores, e habitam da capitania dos
Ilhéus até Porto Seguro, vieram ter sertão mais ou menos no ano de 55”.
Vislumbra-se nestes relatos uma profusão de nomes que designam os povos nativos
desta parte meridional das Américas, como também ainda temos as primeiras tentativas de
homogeneização desses povos em dois grandes grupos através do binômio “Tupi” e
“Tapuia”. Afinal, a tendência maior dos cronistas era acentuar as semelhanças, embora se
perceba que estes autores reconhecessem e apontavam as diferenças existentes entre os
grupos nativos. E se pode ainda enfatizar que os cronistas se apropriaram dos grupos Tupi
da região costeira a noção de que o mundo indígena se dividia em Tupi e Tapuia. Segundo
Monteiro (1994), os primeiros eram formados pelos Tupinambá, Termininó, Tabajara,
Tamoio, Tupiniquim, Carijó, etc., que falavam uma língua comum, embora existisse vários
dialetos, e praticavam costumes semelhantes. Já os segundos, os Tupi chamavam de

655
Tapuia, que significa “escravo”, em referência aos outros povos filiados à família linguística
jê e alguns de língua isolada.
E Graciella Chamorro (2008) adverte que o termo Tupi foi empregado por Hans
Staden ([1557] 2011) e Jean de Lery ([1578] 1980) para designar a língua falada pelos
Tupinambá do litoral brasileiro. A autora ainda menciona que Ulrich Schmidl (1567)
considerava que a fala dos “tupi” seria de gente das terras do rei de Portugal, que
pronunciam uma língua quase idêntica à falada pelos Carijó, grupo Guarani ocupante da
região onde os espanhóis fundaram Assunção. Depois disso, o termo desapareceu.
Quanto à origem dos Tupi e Guarani, o linguista Arion Dall’igna Rodrigues (1945,
p.335) evidencia que estes procedem da região localizada entre os rios Paraná e Paraguai,
onde hoje é o atual Paraguai, cujos descendentes, depois de diversas migrações, vieram a
constituir os grupos em questão que os portugueses e espanhóis, entre outros, encontraram
no período colonial. Segundo o autor, em época pré-colombiana, os proto-Tupi dirigiram-
se para o oriente, atravessaram o território que viria a serem os estados do Paraná e São
Paulo, e alcançaram a costa litorânea. E, pelo litoral, com o correr do tempo, os proto-
Tupi dividiram-se em vários grupos. Assim, já no século XVI, foram encontrados pelos
europeus os Tupinambá, Tupiniquim, Tabajara, Tamoio, Termiminó, Caeté, Maracajá,
etc. Já os proto-Guarani, que se mantiveram ao sul, dividiram-se em vários grupos, sendo
a sua maioria conhecida pelo nome Carijó (Kari’ó), estendendo-se desde o litoral até as
regiões paraguaias, pelo sul do trópico de Capricórnio. Assim, os grupos Tupi e Guarani
tomaram rumos diferentes, distinguindo-se em seus aspectos culturais e linguísticas.
Afora isso, é possível entrever nestes escritos o assombro dos cristãos ante aos
costumes dos grupos Tupi. Isto porque temas como profetismo, vingança, guerra e o ritual
antropofágico constantemente figuravam nas obras escritas por padres, soldados e tantos
outros atores sociais que se aventuravam nesta parte do continente americano. Não
obstante, tais costumes foram duramente combatidos pelos religiosos, como ainda foram
usados pelos colonos a efetivarem seus planos de dominação e exploração.
Então, a mão de obra indígena passou a ser recrutada por meio da compra de
cativos oriundos de guerras entre os grupos inimigos. Assim, em vez de serem sacrificados
nos rituais antropofágicos, os guerreiros subjugados eram vendidos aos portugueses que os
submetiam ao trabalho escravo. E as primeiras expedições em busca de índios com o
propósito de torná-los escravos, também conhecidas por “bandeiras de apresamento”,
atuaram nos arredores dos núcleos de São Vicente e da Vila de São Paulo de Piratininga;
depois, passaram a percorrer cada vez mais para o interior do continente – o que alargaria

656
as possessões portuguesas (MONTEIRO, 1992). Segundo Calixto (1905, 1924), a região
da vila de Nossa Senhora da Conceição de Itanhaém foi uma das primeiras a ser
“vasculhada” para o apresamento e escravização de índios.
As aldeias localizadas em Bertioga, São Vicente e outras que ficavam ao sul –
Paraná-mirim, Guarahú e Una da Aldeia, sendo esta última localizada na foz do Rio Ribeira
de Iguape – foram também arrasadas pelos luso-brasileiros. O padre Leonardo Nunes,
chamado pelos grupos Tupi de Abarebebê, assim que chegou nessa região, encontrou
índios escravizados por Pero Correia e pelo Capitão-mor Francisco de Moraes
(CALIXTO, 1905, 1924). Neste último caso, de acordo com Machado de Oliveira (1846,
p.230), a expedição que este militar empreendeu contra os grupos Tupi causou o
surgimento da aldeia que deu origem mais tarde ao Aldeamento São João Batista de
Peruíbe, bem como fez com que os Tupi “[...] amalgamando-se elles com uma fracção dos
Carijós, seus inimigos, que então dominavam e fruíam pacificamente todo o litoral que vai
do rio Conceição ao dos Patos [rio Biguaçu, em Santa Catarina], o commum perigo os
obrigou a darem as mãos.”
Ao ler o excerto acima transcrito, veio-me conjeturar acerca da possibilidade deste
episódio ser o primeiro registro que se tenha sobre a união entre os grupos Tupi e Guarani.
Logo, isto me leva a considerar que a origem dos atuais Tupi Guarani é antiga e foi causada
pelas expedições de apresamento que os portugueses atentavam contra os povos indígenas.
Os missionários, por sua vez, disputavam com os colonos o controle da força de
trabalho nativa. O jesuíta Manuel da Nóbrega, ao constatar que as pregações e conversões
itinerantes, feitas nas primeiras décadas da colonização, não surtiam o que esperava,
decidiu então criar aldeamentos cuja finalidade seria “civilizar” e levar a fé cristã aos nativos
do chamado Novo Mundo. Para isso, o inaciano elaborava, em 1557, o Plano Civilizador
ou Plano das Aldeias (MONTEIRO, 1994; LEITE, 2000).
A ênfase da atuação missionária voltada ao cerceamento das “correrias” e à
supressão da antropofagia, que os jesuítas buscaram impor através da renúncia à vingança
– que segundo Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro (2009) seria a principal instituição
tupi –, e as expedições de apresamento empreendidas pelos bandeirantes paulistas
incidiram drasticamente sobre os grupos Tupi. Em decorrência dessas mudanças,
sobretudo de forma mais aparente, ao menos à vista dos colonizadores, as celebrações
antropofágicas, como as expedições guerreiras de vingança, que passariam a ser
redirecionadas com a interveniência dos propósitos coloniais entre os povos nativos desde

657
a costa, acreditou-se que os Tupi, uma vez submetidos ao jugo colonial, estariam fadados
a extinção.
Sendo assim, após os aproximados duzentos anos de atividade, os aldeamentos
chegaram ao séc. XIX com um diminuto número de “índios aldeados”. O tenente-coronel
Arouche Rendon ([1823] 1979), logo ao assumir o cargo de Diretor Geral dos Índios na
província de São Paulo, revela que a redução dos nativos aldeados era uma consequência
dos maus tratos (o que favoreceu a fuga para as matas) e da miscigenação de índios com os
luso-brasileiros que viviam nos arredores desses estabelecimentos.

O DISCURSO DE EXTINÇÃO DOS TUPI

No Brasil oitocentista, intelectuais alocados no Instituto Histórico e Geográfico


Brasileiro (IHGB), que tinha o propósito de construir uma história oficial brasileira,
discutiam a possibilidade de tornar a figura do índio como símbolo nacional, viam o
indígena como fadado ao desaparecimento. Destes intelectuais, por exemplo, Von Martius
(1845, p.70), os ameríndios “[…] traziam consigo o gérmen do desaparecimento rápido.”
E Vanhargen ([1854] 1975, p. 215) afirmava que “[…] a grande quantidade de mestiços e
mamelucos vivendo em São Paulo vem em auxílio dos que cremos que o tipo índio
desapareceu, mais em virtude de cruzamentos sucessivos que de verdadeiro e cruel
extermínio.” Cabe notar, como resultante do escravagismo e missionamento, o uso dos
termos “mestiços” e “mamelucos” pelo eminente historiador denota sua firme convicção
de que, naquele período, já em decorrência do alto grau de miscigenação que marcava os
habitantes da província paulista, o tipo “índio puro” estaria fadado ao desaparecimento.
Estas breves remissões aos renomados autores do século XIX bastam para que se
constate o que se afirmava, sendo de modo recorrente nos registros documentais
disponíveis, acerca da iminente extinção dos Tupi. Naquele período, os principais cronistas
e historiadores afiançavam de modo categórico que restariam apenas pequenos grupos –
originários da união entre índios, negros e brancos – dispersos pelas matas litorâneas,
remanescentes dos antigos aldeamentos ou mesmo vivendo esparsamente em seus
arredores, mas que já não eram mais considerados como índios. Significativamente, ao
longo do referido século, em momentos sucessivos marcados pela relevância política na
elaboração da identidade nacional brasileira, se erige e enaltece imagens esmorecidas e
reificadas alusivas aos Tupi na literatura, na crônica política, nas artes plásticas, como
também na historiografia.

658
Conforme Maria R. C. de Almeida (2009), o processo de construção dos Estados
nacionais americanos no oitocentos tinha, dentre suas prerrogativas, o combate da
diversidade étnica que caracterizavam suas populações. Assim, o paradigma seguido pelo
Estado brasileiro, como também ocorreu em outros países latino-americanos, era
homogeneizar a nação em torno de um povo com língua e cultura comum. Neste sentido,
não causa surpresa em constatar que políticos e intelectuais, por meio de seus discursos,
objetivavam apagar qualquer vestígio da existência de inúmeras identidades indígenas.
Portanto, para alguns destes restava o passado, lembrados nos livros de história apenas
como meros coadjuvantes do processo de formação do povo brasileiro.
Deste modo, denota-se que o discurso de extinção dos grupos Tupi bem se prestou
para os propósitos de políticos, fazendeiros e colonos locais que visavam às terras onde
foram implantados os aldeamentos paulistas. Afinal, as novas frentes de colonização – a
cafeicultura, a implantação e ampliação da malha ferroviária e os núcleos coloniais que
serviam como reservatório de mão de obra imigrante empregada nas fazendas –, para
serem implantadas, precisavam de mais terras. Como aponta os estudos de Canabrava
(1950) e Ferreira (1990), o governo de São Paulo, por meio do seu Serviço de
Discriminação de Terras Públicas, e seguindo a Lei de Terras de 1850, inicia então o
processo de identificação das terras devolutas nos aldeamentos onde habitavam os Tupi,
vistos então como assimilados à população local.
Como veremos na próxima seção, tal concepção, com distintas conotações,
também se fez presente ao longo do século XX, quando novos deslocamentos (oguatá)
foram empreendidos pelos Guarani, concomitante a criação, em 1910, do Serviço de
Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais (SPILTN), que passou a
ser conhecido como Serviço de Proteção aos Índios (SPI).

O SPI NO LITORAL PAULISTA E A POLÍTICA DE CONTENÇÃO DOS


INDÍGENAS

Com o estabelecimento do SPI, o Estado brasileiro declarava que a finalidade desta


nova instituição seria proteger e integrar os índios à sociedade nacional por meio de
métodos pacíficos. Para isso, seguia o modelo consagrado pelo General Cândido Mariano
Rondon, seu primeiro presidente, quando esteve à frente da Comissão de Linhas
Telegráficas. Com este órgão indigenista, o Estado deveria garantir terras, como também
introduzir novas técnicas de produção e a prevenção de epidemias, uma vez que asseguraria
condições básicas de vida à população ameríndia atendida. Prenunciava ainda que tal

659
organização atuasse na pacificação de índios vistos como hostis, isto através dos núcleos de
atração; na constituição de povoações aos nativos já em caminho de hábitos mais
sedentários; e, por fim, à formação de centros agrícolas onde, já afeitos ao trabalho nos
moldes rurais, receberiam terras para se instalarem juntamente com a população rural
(GAGLIARDI, 1985; SOUSA LIMA, 1995; RIBEIRO, 1996).
O SPI procurava então disciplinar e controlar através da educação escolar, registros
e cadastramentos a circulação de ameríndios e dos seus territórios tradicionais, bem como
acabar com os conflitos que envolviam estes com os não-indígenas. Ademais, é importante
termos em mente que a constituição de reservas foi uma forma de concentrar e estatizar
riquezas (terras para a agricultura, pecuária, mineração, etc.) que a administração manteve
para exploração direta ou indireta, sempre com o discurso de beneficiar os indígenas
(GAGLIARDI, 1985; SOUZA LIMA, 1995).
Deste modo, em 1912, o SPI cria o Posto Indígena Araribá, em Avaí-SP, com o
intuito de abrigar em um mesmo espaço os Guarani que viviam no Oeste Paulista, em
Paranapanema, Itanhaém e Vale do Ribeira. Assim, acreditava-se que aqueles indígenas
estariam protegidos da ação de milícias armadas, também chamados de bugreiros. Mas
muitos deles foram vítimas da febre amarela. Consequentemente, os sobreviventes
abandonaram aquele espaço e se dispersaram pela região ou retornaram ao litoral (TIDEI
DE LIMA, 1978).
O SPI cogitava então instaurar um posto no Litoral Paulista. No ano de 1923,
algumas expedições foram enviadas às proximidades dos rios Preto, Branco e Arararú, com
o fim de encontrar e convencer os Tupi e Guarani que viviam nas diversas aldeias a segui-
los ao Bananal, local escolhido pelo Serviço para estabelecer um “posto de atração” e
reunir esses povos na costa paulista. Conforme as fontes documentais, inúmeras
dificuldades impediam os funcionários de executar tal missão. Dentre estas se destaca o
“[…] apêgo as antigas moradas e circunstâncias especiais da política interna de cada grupo
[…]”. Mas naquele ano, a despeito da diversidade linguística, social e cultural dos povos
habitantes na região costeira e do planalto, os servidores do órgão indigenista, imbuídos de
sua missão positivista humanitária, conseguiram instalar um “posto de atração” no Bananal
(BIBLIOTECA NACIONAL DO RIO DE JANEIRO. RELATÓRIO ANUAL DO SPI,
1923).
Em 1927, ao receber do governo paulista duzentos alqueires de terras nas
proximidades do Bananal, o SPI implanta um Posto Indígena. Mas Horta Barbosa (1928),
à frente da 5ª Inspetoria Regional do SPI, afiançava que apenas algumas famílias ali

660
permaneceram, enquanto outras optaram em rumar para distintas localidades no litoral.
Em entrevista ao jornal A Platéa (26/11/1930 apud BRASIL. FUNAI, 2011, p.147), Darcy
Bandeira de Mello, funcionário do Serviço, afirmava que “[...] entre os retirantes não houve
acordo sobre a instalação do novo acampamento, pelo qual dividiram-se em dois grupos,
permanecendo uns nas proximidades de Peruíbe, enquanto o outro viajou pela Praia
Grande”.
O P. I. Bananal permaneceu inativo até o ano de 1945. Mas as autoridades locais,
interessadas em concentrar os indígenas dispersos na região em um único espaço, uma vez
que procuravam desobstruir as terras litorâneas para seus projetos de expansão agrícola (a
bananicultura e o chá) e imobiliárias, exigiram a instalação de um Posto Indígena do SPI
no litoral. Assim, em 1945, o Posto foi então reaberto no Bananal (MUSEU DO ÍNDIO.
RELATÓRIO DO VEREADOR DE ITARIRI MILTON FRAGA MOREIRA AO SPI,
1945).
Portanto, estas foram as condições pelas quais encontraram os grupos Guarani que
seguiam a procura pela Terra sem Mal ou por qualquer outro motivo que explique os seus
deslocamentos sobre seus territórios tradicionais. Estas também foram as condições que
levaram tais povos a serem novamente confinados em reduzidos espaços pelo poder
público que, por sua vez, alegava que não seriam mais importunados por aqueles que
desejavam suas terras e também explorá-los.

O FUTURO INCERTO PARA OS GUARANI

Durante o período em que o SPI representava a política indigenista brasileira – que


praticamente perdurou ao longo do séc. XX, só chegando ao fim em 1967, quando o
Estado extingue tal instituição e cria em seu lugar a Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
–, políticos, militares e funcionários consideravam que os Guarani teriam um destino
semelhante ao que se afirmava sobre os Tupi no séc. XIX. Desta vez, este discurso fatalista
não mais teria uma conotação de cunho positivista, mas sim estaria calcado em aspectos
oriundos da antropologia culturalista norte americana, sobretudo na sua vertente que ficou
conhecida como “estudos de aculturação” que, entre os anos de 1940 e 1960, fortemente
influenciava a antropologia brasileira.

661
368Logo, os estudos etnológicos predominantes deste período têm muitas
semelhanças com o discurso oficial sobre o futuro destes e de outros povos indígenas. Pois,
ambas as estâncias tinham como certo a desagregação e o desaparecimento dos ameríndios.
E, conforme as palavras de Lima (2014), Darcy Ribeiro teve um papel proeminente em
adaptar a antropologia culturalista em voga na época para servir como balizador da ação
prática do SPI, em substituição das ideias positivistas de incorporação dos povos nativos à
sociedade nacional.
369No caso dos Guarani, Egon Schaden (1969) – que, ao partir de diferenças
culturais e dialetais que encontrou nos grupos por ele contatados, foi o responsável a
denominá-los pelos etnônimos Mbyá, Kaiowá e Nhandeva –, afirmava que estes indígenas
eram exemplos do processo de aculturação, uma vez que os considerava em franca
decadência, seja no aspecto referentes à organização familiar, territorial, econômica e
religiosa. Em meados do ano de 1946, Schaden (1962) encontrou na aldeia Bananal apenas
sete famílias, com um total de 40 pessoas, sendo estas por ele identificadas como “Guarani
Nhandeva” e “mestiços”. Segundo o autor, os Guarani Nhandeva são possíveis
descendentes daqueles grupos Guarani descritos por Nimuendaju (1987). No entanto, o
autor alude à inexistência dos remanescentes dos grupos Tupi vivendo na região.
Sob esta mesma perspectiva, Mauro Cherobim (1986, p.86) comenta que os
Guarani, para serem assimilados, seria preciso pressões aculturativas, isto é, “[…] o ‘sistema
cultural’ envolvente venha a absorver – ou assimilar – o envolvido. ” Quanto ao processo
de integração, a aculturação dos Guarani não chegaria ao seu fim, neste caso, à assimilação,
pois tal estágio implicaria não apenas na aceitação dos índios à sociedade nacional como
se não fossem mais índios, isentos de quaisquer estigmas, mas requer também dos próprios
nativos a renúncia de sua própria identidade. Além disso, este antropólogo via como
exemplo de aculturação os elementos simbólicos adotados pelos ameríndios da aldeia
Bananal, pois esta seria “[…] uma tentativa de retorno às tradições seria uma busca
compensatória para a descaracterização trazida pela aculturação.”
Além do discurso oficial, as págnias dos jornais também alimentaram a imagem de
que os indígenas do litoral paulista estariam em vias de extinção. O Estado de São Paulo,
numa matéria publicada em 23 de janeiro de 1979, com o título No Litoral Norte, índios
perdem identidade cultural, há um trecho em que se afirma que os indígenas do Litoral de
São Paulo: “Não se identificam mais com seu deus Tupã nem como o cristianismo que

368 Doutoranda; UNESP/Araraquara. Bolsista CAPES. Email: dossantos.amanda1@gmail.com


369 Industrialização e agricultura (1955). Publicado na Revista Econômica Brasileira, v. 6, n.4.

662
lhes foi ensinado. Não são brancos, não são índios, são algumas pessoas tentando
sobreviver com a venda de cestas, flechas e outros tipos de artesanatos índio. ”
(ARMAZÉM DA MEMÓRIA, O ESTADO DE SÃO PAULO, 1979, S.N.).
Em A Crítica, de 8 agosto de 1979, Álvaro Villas Boas, titular da 12ª Delegacia da
FUNAI, instalada em Bauru-SP, declarava que “[...] os índios de Peruíbe estiveram
abandonados quase meio século e, atualmente, grande parte da população da reserva é
formada por mestiços de terceira e até de quarta geração [...] que se intitulam índios mas
não falam o guarani e vivem perambulando por São Paulo, Itanhaém e outras cidades,
vendendo artesanato”. (ARMAZÉM DA MEMÓRIA. A CRÍTICA, 1979, S.N.).
E na Folha de Goiás, de 31 de maio de 1981, o assessor-chefe do Presidente da
FUNAI, o então Ivan Zononi Hausen, declara que os indígenas que vivem na costa
litorânea paulista “[...] vivem na miséria, degenerados pelo alcoolismo e pelas doenças [...]
não têm mais tradição ou alegria. Só o que os reúne são os ‘bailinhos’ nas noites de sábado,
as peladas quase todos as tardes, os radinhos de pilha e a televisão a bateria. Costumes
impostos pelos brancos” (ARMAZÉM DA MEMÓRIA, FOLHA DE GOIÁS, 1981,
S.N.).
Como se pode notar, os exemplos supracitados indicam um pessimismo quanto ao
destino destes povos ameríndios. Mas, ao falarmos em pessimismo, logo somos levados às
palavras de Sahlins (1997, p.52) que, ao questionar a expressão “pessimismo sentimental”
– termo este cunhado por Greenblatt para o que considerava como certo fim dos povos
indígenas ante o avanço capitalista –, afirmava que estes povos “[…] vêm tentando
incorporar o sistema mundial a uma ordem ainda mais abrangente: seu próprio sistema
mundo”.

A AFIRMAÇÃO IDENTITÁRIA DOS TUPI E TUPI GUARANI

Diante do que exibi até o presente momento, cabe agora ressaltar alguns dos vetores
constitutivos que levaram à formação da identidade dos Tupi e Tupi Guarani. Para isso,
faço alusão aos relatos dos txeramôes Guaíra e Domingos Mirĩ e da txedjray Nambi.
Iniciemos então com a afirmação de Guaíra, um dos principais líderes espirituais
entre os Tupi e Tupi Guarani, nascido e criado na aldeia Bananal, onde passou a maior
parte de sua vida, e atualmente reside na Aldeia Piaçaguera, que afirma que a origem do
termo “Tupi Guarani” vem dos casamentos que ocorreram entre as parentelas Tupi e
famílias Guarani de diversas procedências. Já Domingos Mirĩ, outro txeramôe que, com

663
seus 87 anos de idade, nasceu e passou parte de sua vida na aldeia Bananal, e hoje reside
na aldeia Piaçaguera, alega ser um Tupi Guarani. O seu pai era um Tupi nascido em tal
aldeia, sua mãe era branca e natural de Itanhaém, enquanto seu avô era um Guarani que
veio do Mato Grosso no início do século XX, e sua avó era uma Tupi, nascida e criada nos
arredores da aldeia Bananal. Por outro lado, Nambi, txedjray que vive na Aldeia Djakoaty,
próxima a cidade paulista de Miracatu, e uma das lideranças que outrora fundou a aldeia
Itaoca, situada no município de Mongaguá, explica que seus ascendentes são Tupi. Diz
ainda que o grupo que vivia na aldeia Bananal – aliás, ela nascera e passara parte de sua
vida em tal aldeia – identificava-se como Tupi, sendo o termo “Tupi Guarani” adotado
muito tempo depois a partir dos casamentos com os Guarani.
As palavras de Guaíra, Mirĩ e Nambi, cujos depoimentos obtive graças ao trabalho
de campo que realizei na Terra Indígena Piaçaguera, Bananal e Djakoaty, respectivamente
localizadas nas proximidades das cidades de Peruíbe e Miracatu, remetem a dois
importantes pontos: a existência de remanescentes dos grupos Tupi e as uniões destes com
os Guarani. Podemos fazer então um paralelo entre estas afirmações com os
deslocamentos que anteriormente vimos que os Guarani empreenderam à região costeira
e que foram registrados nas fontes etno-históricas.
Denota-se que os deslocamentos Guarani para o leste, registrados de modo
recorrente nas fontes documentais na virada do século XIX para o XX, resultaram numa
maior agregação aos remanescentes dos grupos Tupi que já habitavam esta faixa litorânea.
Mas devo relembrar que estas uniões entre grupos Tupi e Guarani são mais antigas, pois
datam do século XVI. Conforme uma colocação anterior acerca dos escritos de Machado
de Oliveira (1846), os grupos Tupi amalgamaram-se com os Guarani quando as expedições
de apresamento, lideradas pelo Capitão-mor Francisco de Moraes, empurraram aqueles
para os territórios mais ao sul do litoral, vindo a formar o aldeamento São João Batista de
Peruíbe.
Em decorrência, multiplicaram-se desde então as relações e, em especial, alianças
e afinidades entre indivíduos e grupos de proveniências diversas – que seus descendentes
hoje designam como misturas –, na formação de uma identidade compósita que levou à
constituição dos Tupi Guarani. Este termo surge como etnônimo quando algumas famílias
Tupi e Guarani, sobretudo aquelas encontradas na aldeia Bananal e em outras, passaram
a se identificar e a serem assim chamados por tal designação homônima (MAINARDI,
2015; BERTAPELI, 2015).

664
Outro elemento etnográfico que sobressai nestes depoimentos, dentre outros
txeramôes e txedjrays com quem conversei, é a afirmação de que são descendentes dos
grupos Tupi (Tupinambá e Tupiniquim) que viveram nos aldeamentos de São João Batista
de Peruíbe e Itariri. Portanto, fica claro que estas alegações desconstroem o discurso oficial
e daqueles autores do século XIX que, como vimos, atestavam a extinção dos grupos Tupi
no litoral, seja por genocídio, pela fuga, ou dispersão e miscigenação com a população luso-
brasileira. E, como demonstrarei adiante, este discurso foi utilizado ao longo do século
XIX para justificar o fim dos aldeamentos e a expropriação territorial destes povos.
370Esta breve menção a filiação étnica feita por ascendência, a criação de
etnônimos compósitos (Tupi Guarani), criada a partir da co-residência de indivíduos,
parentelas e grupos com filiações distintas, a retomada dos etnônimos dados como extintos
(Tupi), contextualizada mais amplamente à mobilização crescente dos povos indígenas
pelo reconhecimento oficial de direitos territoriais, apresenta desafios à pesquisa
antropológica e histórica quanto a apreensão e reconstituição da trajetória destes povos.
Mas muitas das pesquisas realizadas neste campo nas últimas décadas têm como
base a definição de Barth (2000, p. 31-32) para grupos étnicos, que considera a etnia como
fator constitutivo da “organização social”, onde a autoatribuição de uma categoria é “[…]
étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica, ou seja,
determinada possivelmente por sua origem e circunstâncias de conformação”.
De modo mais evidente, os dados aqui relacionados estão referenciados a um
processo de formulação de novas identidades (Tupi Guarani), e em particular, da
reinvenção de um etnônimo emblemático da construção da própria nacionalidade
brasileira (Tupi), que configura, tomado em maior profundidade temporal, no decorrer do
século XX, um movimento de territorialização.
Mas, a partir do final do século XX, temos alguns estudos que revelam a presença
dos Tupi e a constituição dos Tupi Guarani no litoral. Ladeira (2007, 2008), ao desenvolver
sua pesquisa com os Guarani Mbyá, indica a existência de indígenas vivendo ao sul da costa
litorânea que se identificam e são identificados como Tupi Guarani. Logo, isto indica a
existência de descendentes dos Tupi. E Macedo (2009), já na primeira metade do século
XXI, registra a presença destes ameríndios na T. I. Ribeirão Silveira.
Nos últimos anos, surgem pesquisas que tratam exclusivamente dos Tupi e Tupi
Guarani. Este é o caso dos estudos desenvolvidos por Mainardi (2010, 2015), Rodrigues

370 Feudalismo e propriedade fundiária (1989). Publicado em História e ideal: ensaios sobre Caio Prado Jr.,
Maria Ângela D’Incão (org.), Editora da Unesp/Brasiliense, 1989.

665
de Almeida (2011), Danaga (2012) e Bertapeli (2015). É de salientar que cada uma dessas
contribuições analisa as distinções étnicas que os Tupi e Tupi Guarani fazem para se
diferenciarem dos Guarani Mbyá e dos não indígenas; as reciprocidades e alianças com os
Guarani; a constituição do etnônimo Tupi Guarani por um grupo étnico homônimo que
forma a aldeia Tabaçu Rekó Ypy; e, por fim, a cosmologia e a concepção de território em
contexto de demarcação.
E outra informação pertinente destas pesquisas é a importância que se atribui à
aldeia Bananal na constituição de outras aldeias situadas na costa oceânica. Afinal, estes
estudos indicam que uma significativa parte destas aldeias se originou quando algumas
famílias indígenas que viviam na Bananal, sendo motivadas por divergências específicas,
saíram e estabeleceram outras aldeias em territórios tradicionais em diferentes momentos.
Aliás, estas aldeias estão ligadas pelas relações de parentescos, alianças políticas, etc.
Conforme Ladeira (2007), o território para os grupos os Tupi e Guarani seria formado
pelos inúmeros pontos de parada e pelas aldeias que interagem entre si através de relações
sociais, políticas e de parentesco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer da história de contato entre indígenas e não-indígenas no litoral de São


Paulo e em suas áreas adjacentes, como procurei demonstrar no presente texto, foram
inúmeras as tentativas de políticos, fazendeiros e intelectuais e servidores públicos em
apagar ou mesmo negar a identidade daqueles povos que ali viviam, seja através da
miscigenação, assimilação, extermínio, etc. Assim, negava-se a identidade ameríndia dos
descendentes dos Tupi e Guarani através do uso de termos designativos como “mestiços”,
“nem índios e nem brancos” e “aculturados”.
Mas muitos destes indígenas, que afirmam descenderem dos grupos Tupi e
Guarani que habitavam estes espaços geográficos muito antes do estabelecimento dos
primeiros povoados luso-brasileiros, se autodenominam, como também são assim
referenciados pelos Guarani Mbyá e outros povos indígenas, como Tupi e Tupi Guarani.
Consequentemente, isto incide sobre a luta pela retomada de suas terras.
Certamente, os trabalhos etnográficos contemporâneos que foram feitos na região
em destaque são importantes por explicitar o movimento de retomada das identidades
ameríndias. Mas existem lacunas nestes estudos acerca da presença dos Tupi e Tupi
Guarani na costa litorânea. Certamente, a primeira delas é que estes estudos enfatizam mais

666
os Tupi Guarani e pouco fazem referência aos Tupi. O segundo ponto é a carência de uma
análise correspondente ao processo histórico que levou ao ressurgimento dos Tupi e à
constituição dos Tupi Guarani. Sendo assim, considero que é importante atentarmos para
estes pontos não explorados pelos estudos anteriores.
Percebe-se nas fontes documentais escritas e orais aqui trabalhadas que a identidade
étnica sempre marcou as discussões referentes ao direito de acesso de grupos ameríndios
à terra. E isto se verifica tanto no discurso de políticos, intelectuais, elites agrárias e agentes
do Estado que procuravam negar e apagar a existência de muitos povos ameríndios, como,
em contrapartida, também está presente no discurso destes grupos indígenas que procuram
afirmar suas identidades com os supracitados propósitos.
Deste modo, a devida atenção a estes elementos podem consubstanciar estudos
relativos à disposição espacial, como também a reconstituição genealógica das relações
entre parentelas e grupos locais Tupi, Guarani e Tupi Guarani no decorrer do século XX.
Como outrora coloquei, o reaparecimento dos referidos termos designativos no discurso
destes indígenas, em especial do etnônimo Tupi, impõe ao antropólogo, historiador, assim
como outros interessados, a necessidade de revisar os estudos historiográficos e etnológicos
concernentes a estes povos de língua tupi-guarani.

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671
GT 04 – PENSAMENTO POLÍTICO E
SOCIAL, TEORIA POLÍTICA, CULTURA E
DEMOCRACIA

672
A QUESTÃO AGRÁRIA NA PERIFERIA: SOBRE A
INTERPRETAÇÃO DUALISTA DE IGNÁCIO RANGEL

Amanda Pavanello Alves dos SANTOS371

Resumo: Este trabalho tem ponto de partida na obra do economista Ignácio Rangel (1914 – 1994),
um intelectual que, como um intérprete do Brasil de uma corrente profundamente nacionalista e
pragmática, teve destaque nas principais instituições que discutiam a “revolução burguesa” na
periferia do capitalismo. É patente que dentro da gramática política desenvolvimentista havia vários
autores e várias estâncias do Estado que estavam disputando, através de suas diferentes visões de
mundo, as teses norteadoras das políticas de então. Rangel esteve muito próximo a núcleos
decisivos de governos nacional-desenvolvimentistas e enfrentou intelectualmente os cânones do
pensamento de sua época de maneira muito original: pertenceu à ANL, disputou teses no PC,
compôs o quadro do ISEB e da Assessoria Político-Econômica do Segundo Governo Vargas(1951-
1954), defendeu sua tese na CEPAL e foi funcionário do BNDE desde sua fundação. Destarte,
pretendemos apresentar uma das principais heterodoxias dentro dos temas basilares do debate
nacional: o tratamento que Rangel dá a questão agrária que, numa arquitetura teórica de correntes
de pensamento ligadas ao desenvolvimento brasileiro - no sentido da industrialização e superação
do atraso - cruza sua vida intelectual e sua agência pública com um dos períodos mais críticos da
história brasileira em processo de modernização. A questão de pesquisa aqui proposta, portanto,
consiste em identificar e analisar a interpretação dualista da questão agrária na obra e no
pensamento de Ignácio Rangel, bem como as permanências e rupturas no significado deste tema
na obra do referido autor.

Palavras-chave: Intérprete do Brasil. Nacionalismo. Questão agrária. Periferia.

A ARQUITETURA DA DUALIDADE

No complexo criado entre as teorias de pensamento que preveem linhagens,


correntes, performances, lances, entre outras classificações, encontramos dificuldade de
encaixar Ignácio Rangel. Um dos motivos é dado pelo fato de que, como economista,
utilizando-se assim desses argumentos, muitas vezes torna-se menos evidente perceber que,
por trás de suas análises de estrutura econômica, está uma questão de ontologia social.
Neste aspecto, as teses de Ignácio Rangel – principalmente quando este se debruça sobre
o problema da inflação brasileira - se configuram como uma maneira de entender o
fenômeno econômico na formação de um país em que a economia precede as demais
instituições.

371 O I PNRA foi um projeto apresentado pelo presidente do INCRA, José Gomes da Silva, durante o
Governo Sarney.

673
Nessa chave de interpretação, as demandas econômicas são, portanto, o eixo em
que se articulam as instituições e a agenda nacional tanto no momento desenvolvimentista,
em que esta torna-se a pauta básica da questão do planejamento, quanto na formação do
país pelos ditames e demandas da colonização.
Rangel não é o primeiro a apontar nessa direção da autonomia da economia como
definidora de uma nação e, a esse exemplo, figura como um clássico do pensamento
brasileiro a obra de Caio Prado Jr., História econômica do Brasil (1945). Entretanto,
Rangel constrói através de sua obra uma interpretação própria dessa formação: sua leitura
econômica e o conjunto de sua obra tiveram sobre o Brasil um caráter pragmático.
Desenvolvendo simultaneamente a função de intelectual e state maker, produziu uma
teoria social e se manteve constante na ação governamental. A partir deste primeiro
movimento de análise, retiramos de sua obra as impressões sobre sua interpretação do
Brasil e, nesta, o foco recai sobre a questão agrária, que se mostra de maneira muito
diferente do conjunto de interpretações nas quais se insere.
Embora o Rangel tenha escrito uma boa parte de sua obra utilizando-se de parte de
um repertório das análises marxistas, talvez não deva ser encarado apenas como
representante brasileiro dessa escola de pensamento. Na verdade, a gramática de suas
análises faz com que este autor esteja discutindo com dois campos intelectuais: i) o campo
estruturalista cepalino e ii) o campo da escola econômica neoclássica.
No primeiro, o campo cepalino, a concepção sobre o arranjo do tecido social é a
de uma dualidade: afirma que uma economia primário-exportadora é atrasada em relação
ao centro e que esta deve ser superada através dos direcionamentos do modelo de
industrialização dos polos produtivos da economia. Mesmo que, em primeiro momento,
o debate travado por Ignácio Rangel com este campo intelectual pareça o mesmo de Caio
Prado Jr., a atenção desses autores não converge totalmente.
Nessa tese pradiana a atenção se volta para a relação em que o polo dinâmico e o
polo não dinâmico não funcionam para a economia primário-exportadora, pois a dimensão
desta é tradicional e atrasada internamente e de largo avanço capitalista e moderno
externamente. Na obra de Ignácio Rangel, essa análise aparece verticalizada para a estrutura
produtiva do latifúndio - este salto teórico demarca uma forte oposição à ideia de dualidade.
Neste caso de referência à CEPAL e a Celso Furtado, outro pilar de discussão sobre
a crítica à dualidade está exposto no artigo de Oliveira (1972) que recusa a dualidade
cepalina através do argumento de não reconhecer uma relação de atrasado-moderno, mas

674
atentar-se para esta relação como um postulado desigual e acordado, de modo que o
moderno se nutre e precisa da relação do atraso a ser superado.
Enquanto no segundo campo, e também no segundo grande trabalho da obra de
Ignácio Rangel, está a discussão com a economia neoclássica de Eugênio Gudin e Roberto
Campos, na disputa decisiva do ciclo desenvolvimentista dos anos 1950 e 1960. Em A
inflação brasileira (1963) Ignácio Rangel traça sua crítica à interpretação específica dos
economistas monetaristas voltando, principalmente, para as resoluções do Plano Trienal -
em que os desígnios da política financeira ficaram sobre responsabilidade de Roberto
Campos.
É neste sentido em que se destaca a obra de Ignácio Rangel por seu peso e
reconhecimento intelectual. São essas as construções teóricas que reposicionaram o debate,
tanto ao pensar na relação inflacionária - sendo ela estrutural ou não estrutural, monetarista
ou não monetarista – como no conceito de dualidade, sendo o caso brasileiro um horizonte
desigual do estágio das configurações modernas e arcaicas.
As teorias dualistas, com efeito, haviam sido pensadas não apenas no contexto da
periferia, como também em outras chaves analíticas. Contudo, a periferia ganha luz nessa
abordagem pelo fundamento de que, apenas em países que não sejam do centro dominante
do sistema capitalista, o conceito de dualidade surge com essa relação de economia política
no plano teórico dos intelectuais e suas interpretações.
Através desse método de análise das forças que transformam as relações
econômicas (internas e externas), Rangel dialoga no contexto de seu tempo, apresentando
o lugar de suas ideias: o contexto do debate de economia política e de pensamento
econômico nas décadas de vigência da gramática do planejamento do período
desenvolvimentista.
Por uma prática historicista de análise que coloca no cerne a constelação de eventos
políticos e sociais, Ignácio Rangel procurava entender seu contexto histórico para tomar
decisões de ações almejando entregar, ao final, um projeto passível de utilização prática no
sentido em que tais transformações privilegiassem a classe trabalhadora tanto do campo e
da cidade (MALTA, 2014). Justamente na chave da pesquisa histórica aliada à formulação
teórica está o pressuposto que Rangel denomina de síntese da dualidade básica. Este
conceito é referência para se pensar a inflação na primeira fase de sua obra, e também, em
sua segunda fase, a privatização de serviços públicos, que mantêm relação entre o
desenvolvimento econômico e a tecnologia, bem como os princípios de transformação da
política estrutural da economia brasileira.

675
A dualidade básica, espinha dorsal do pensamento rangeliano, estrutura a
argumentação do autor e é apresentada como seu método de trabalho. Da mesma forma,
a questão agrária não surge como uma temática abordado por Ignácio Rangel, mas compõe
em transversalidade a obra do autor citando, por exemplo, uma de suas primeiras
publicações: uma discussão sobre as inter-relações de indústria e agricultura372, em
meados da década de 1950, bem como podemos recuperar o debate de um de seus últimos
textos: a configuração fundiária brasileira373, já na virada para os anos 1990.

CONCEITOS DA PROBLEMÁTICA AGRÁRIA NA OBRA RANGELIANA

A princípio, portanto, abriremos uma breve discussão sobre o horizonte e os limites


do agrário na primeira fase da obra rangeliana a partir de alguns conceitos que introduzirão
a análise para o desenvolvimento da questão agrária e, principalmente, do latifúndio, em
Dualidade básica da economia brasileira (1957). Os principais textos selecionados para a
construção do referido panorama, em ordem cronológica, são: Industrialização e
agricultura (1955); Industrialização e economia natural (1957); A questão agrária brasileira
(1962).
Em Industrialização e agricultura (1955), Ignácio Rangel se dispõe a explicar as
relações da crise agrária como causadores de uma crise urbana, em que o processo de
industrialização transferiu a mão de obra do campo para cidade, ou seja, para fora da
agricultura. Rangel argumenta que esse processo, embora imobilizasse recursos para
realizar-se, ao mesmo tempo criava novos recursos que reconfiguravam a estrutura social,
mas de maneira não planejada e, portanto, prejudicial ao pleno desenvolvimento de ambas
as frentes.
O descompasso causado pela falta de organização e impulsionamento da nova
estrutura moderna não substituiria a estrutura anterior, arcaica e, enquanto desabilitava o
desenvolvimento dos recursos da indústria, sofria com a vastidão de áreas improdutivas no
campo, gerando um aumento dos preços dos produtos primários e, por conseguinte, dos
preços do custo da manutenção industrial. Assim, também abalaria a configuração social

372 O Direito Romano tem como central característica a generalidade das normas jurídicas pelas ações dos
magistrados (civil law). Deste modo, não há possibilidade de interpretações individuais, apenas o “peso da
letra”.
373
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho, UNESP. Mestre em
Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP. Membro pesquisador do Laboratório
de Política, da UNESP FCLAR. Membro pesquisador do Grupo de Pesquisa Classes e Trabalho, da
676Email: cadutauil@hotmail.com
UNIFESP. Professor universitário em Ciência Política.
através da grande saída da população do campo em migração para a cidade que,
desamparada por uma economia instável, criaria áreas de crescimento subalternizadas em
relação à reprodução econômica e social dessas famílias.
Ainda nesse argumento, Ignácio Rangel compreende que as condições materiais já
estariam assentadas e que, a resolução desses problemas, e principalmente do problema
agrário, se daria através da decomposição de uma estrutura arcaica através da utilização e
implementação de inovações tecnológicas para o campo que reocupariam postos de
trabalho, valorizariam a terra e a mão de obra, reabsorveriam o contingente subalternizado
das cidades e assim, resolveriam a crise urbana.
No argumento de Industrialização e economia natural (1957), Rangel escreve sobre
a questão agrária e a dissolução do complexo rural no estágio prematuro da industrialização
brasileira. E, como explica Graziano da Silva (1988), para Rangel o conceito de complexo
rural é utilizado para designar o conjunto das atividades desenvolvidas no interior das
fazendas da época da colônia, assentadas em sua economia natural, com uma insipiente
divisão do trabalho.
Segue assim pela interpretação de que a iniciativa da substituição das importações
geraria um saldo também positivo para as exportações realizadas pela nossa economia por
conta da diversificação e técnica de que se empoderaria a nossa indústria. Logo, o fator do
desenvolvimento industrial transformaria o panorama da sociedade brasileira, que, ao
urbanizar-se, levaria consigo atividades não agrícolas, que eram realizadas por famílias
camponesas em sua parte ociosa de tempo de trabalho.
Nestas condições sociais Rangel indica que, ampliando o mercado interno com o
avanço de nossa industrialização, uma reforma agrária planejada não seria uma pauta de
destaque da política nacional. Uma vez que, por esse fator de desenvolvimento de mercado,
a terra seria uma variável da economia brasileira que se reformaria naturalmente na
reestruturação social.

A QUESTÃO AGRÁRIA NA DUALIDADE BÁSICA DA ECONOMIA


BRASILEIRA: O LATIFÚNDIO

À reforma agrária, uma questão muito debatida no contexto de publicação dos


textos de Ignácio Rangel, principalmente pela esquerda brasileira, o intelectual se
posicionava, no primeiro período de sua obra, de maneira pragmática. Para o autor, não
havia condições que possibilitassem a realização de uma reforma agrária depois do período

677
inicial da indústria brasileira – por volta dos anos 1930 e, uma vez que essa estrutura
permanecera inalterada, se modificariam as condições do trabalho na terra e na cidade.
Já na segunda parte de sua obra, Rangel passa a defender uma reforma agrária na
crítica à primeira versão de proposta ao I PNRA374 (I Plano Nacional de Reforma
Agrária). Aqui Rangel passa a defender que, se adequada fosse uma reforma agrária quanto
às condições estruturais econômicas, sua via deveria se dar pela expropriação da terra para
confrontar de fato o problema político que era a questão fundiária brasileira, mas se
opunha pela via da desapropriação fundiária - com o pagamento de indenizações da terra
e suas benfeitorias a valor de mercado pelo Estado aos ex-proprietários - como foi
apresentado na proposta e reforçado pela implementação do Plano.
Já na discussão que trava em A questão agrária brasileira (1962), Rangel classifica e
determina em dois grupos os entraves da problemática questão agrária nacional, são eles:
os problemas propriamente agrários e os impropriamente chamados de agrários. Para o
primeiro atribui a questão de superpopulação e superprodução, já para o segundo grupo
argumenta que suas debilidades, a escassez de bens agrícolas e a falta de mão de obra, têm
causas externas que impactam no agrário, mas não são originados nesse polo da dualidade.
O autor compreende que os problemas de superpopulação e superprodução não
eram possíveis de simples solução, aliás, estes necessitavam da mudança do conteúdo do
Estado brasileiro e a realização do desenvolvimento capitalista no Brasil. A superprodução
era, pois, justamente o excedente não absorvido de produtos no mercado pela indústria e
a superpopulação, na outra ponta, era o contingente de mão de obra não absorvido pelos
postos de trabalho – germinadores da crise urbana e efeitos da crise agrária.

O capitalismo, ao criar, com a divisão social do trabalho, as condições


para um rápido desenvolvimento da técnica agrícola fixa-lhe outra meta,
outro objetivo: ao invés do aumento da produtividade “da terra”, busca
preferencialmente o aumento vertical da produtividade do trabalho
(RANGEL, 1962, p. 50).

Para Rangel, os países subdesenvolvidos, quando se tratava do desenvolvimento da


agricultura, estavam sujeitos, desde sua gênese, aos desígnios dos países desenvolvidos em
relação a sua posição no mercado internacional - mercado capitalista. Deste modo era
primado um tipo de desenvolvimento no campo que contemplava a produtividade da terra

374
Doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos. Professor de Ciência Política e
Sociologia Jurídica pela Escola Paulista de Direito/SP. Email: rafaeltauil@hotmail.com

678
em detrimento do desenvolvimento da técnica agrícola, medida esta que ia diretamente à
contramão do que o autor considerava necessário para a resolução dos motivos geradores
da crise agrária e, por conseguinte da crise urbana brasileira.
Quanto aos problemas impropriamente classificados como agrários, Ignácio Rangel
considerava possível uma solução feita por meio de decisões políticas nacionais. O autor
entendia que o problema agrário brasileiro e sua solução eram essencialmente uma questão
política do Brasil e ressalta em sua obra que este não era uma necessidade da estrutura
econômica nacional, embora fosse um obstáculo para o desenvolvimento capitalista que se
expandia, o quanto fosse possível, sem buscar saída para os problemas dessa ordem.
Entre essas categorias que são todas interdependentes e inter-relacionas para a
compreensão do funcionamento da economia brasileira, este trabalho pretende falar sobre
a questão agrária em Dualidade básica da economia brasileira (1957), o que nos coloca a
frente de lidar com um específico conceito: o latifúndio – sua história, estrutura,
características, especificidades e função na economia e na política nacional.
Em outras obras o autor discorre sobre as questões relacionadas à crise urbana e
agrária e como a superprodução e superpopulação inferem sobre a problemática agrária,
assim como a questão ambiental e a possibilidade de escassez dos recursos, a
implementação tecnológica no campo, a necessidade ou não de uma reforma agrária e de
que tipo a mesma poderia ser feita. Embora estes e outros temas relacionados à
problemática agrária brasileira surjam, mesmo que sutilmente nos argumentos esboçados
pelo autor, o grande mote é a estrutura econômica do latifúndio e suas relações.
Rangel inicia sua argumentação sobre o caráter dual da economia brasileira
especificando ser essa uma lei que configura também todas as nossas instituições. O autor
compreende as leis universais da economia política de maneira a inspirar seu olhar sobre
a realidade nacional. O fato é que Rangel pretende, portanto, construir através da
diversidade de uma natureza econômica e em certa medida cultural e social do caso
brasileiro, um retrato mais fiel do que julga ser uma concepção ingênua de aplicar
postulados do campo da economia política.
Para isso Ignácio Rangel abre uma crítica aos dois grandes campos que vigoravam
em seu período como compreensão do pensamento científico da economia, o marxismo
e o keynesianismo de forma que estes o levavam a se inspirar como os clássicos que eram,
mas buscando ainda sim um lugar em que o caso brasileiro se encaixava:

679
Como a ciência conhecia somente uma economia política, aplicava-se à
pesquisa de um só complexo de leis - as leis dessa economia, e, em lua
de mel com as verdades recém-descobertas, considerava-as eternas e
universais. Foi o grande mérito de Mauá, suficiente para impô-lo como
sábio de invulgar estatura, o fato de se ter erguido acima dessa concepção
ingênua, ao nível da consciência de que nem tudo se podia explicar pelos
“dogmas” (ou leis) conhecidos em sua época. Isso é inquietação criadora,
e toda a posterior evolução da ciência a reivindica como tal (RANGEL,
p. 288).

O autor assume nesse texto a influência que Raul Prebisch teve sobre suas ideias, e
pontua que o argentino faz justamente o trabalho de confronto de uma produção própria
dos países que têm tal similaridade em sua formação que são os países da América Latina.

E Prebisch vai mais além, reivindicando o direito, para os economistas


latino-americanos, de pensarem por si mesmos e recusando-se a admitir
o “sentido de universalidade que frequentemente se pretende atribuir às
teorias formuladas nos grandes centros mundiais”. Retoma o bom
combate onde o deixou Mauá (RANGEL, 1957, p. 289).

Esse pensamento de Prebisch é uma força motriz da escola cepalina, sendo esta um
grande marco intelectual do período de formação acadêmica de Ignácio Rangel. Além de
a ideia do confrontamento das diferentes agendas centro-periferia outra influência dessa
escola na obra de Rangel é a ideia de um Estado forte capaz de planejar o desenvolvimento
nos países de capitalismo deletério.
Segundo o esquema teórico de Ignácio Rangel sobre como os problemas
encontrados nas economias capitalistas podem ser pensados, podemos considerar no plano
econômico uma linha curva imagética de muitas oscilações que representaria o movimento
da história. Quando a curva se encontrasse acima da linha média, o país estaria em fase de
crescimento econômico; quando na parte baixa da curva do momento histórico, a
representação é de uma crise econômica.
Quando nos encontramos abaixo da linha média - que Rangel chama de “ramo
descendente” - é necessário uma procura que reclame o equilíbrio econômico. Assim,
Ignácio Rangel aponta que tais como os estudos clássicos e neoclássicos, esta procura
independe do preço da mão de obra, ou seja, em um momento desse processo de tentativas
de reestabilização econômica o salário pago aos trabalhadores deixa de ser regulado pelas
condições desse mercado, uma vez que a “mercadoria” diminui.
Rangel demonstra que o enfrentamento desse impasse econômico se deu de duas
formas, uma pela via dos países comunistas e outra dos países capitalistas centrais: i) nos

680
países comunistas a massa dos salários pagos é igual ao produto nacional, deduzindo os
impostos e investimentos, que já são programados. Isso faz com que a oferta e a procura
permaneçam constantes e influentes sobre a determinação dos salários relativos, embora o
nível geral dos salários escape a sua ação; ii) nos países capitalistas avançados o método
anterior não tem possibilidade de ação, mas procura-se o mesmo resultado através de uma
criação excepcional de mão de obra – esta criação é feita através de uma programação de
gastos públicos, ou seja, estímulo do Estado aos investimentos privados pela baixa taxa de
juros.
Em ambos os casos Rangel percebe a intervenção consciente do homem na história
sendo o traço que garante o reequilíbrio das condições de produção e reprodução da vida
– o planejamento, que antes era feito dentro das pequenas instituições, agora passa a ser de
âmbito nacional com os necessários incentivos que, dado ao grande valor de seus gastos,
só pode ser feito através do Estado.
Nesse caso o autor não fala sobre a situação nacional, mas do aporte das relações
que se expressam através do comércio exterior e ecoam na economia nacional. Ao retratar
os movimentos das soluções possíveis para o problema das curvas descendentes da
economia capitalista, Rangel está lidando com os centros que tinham agência sobre estas:
alguns países comunistas que através da socialização dos meios de produção tinham outra
dinâmica interna e os países capitalistas, que gozavam de outra posição diferente a do Brasil
em suas decisões econômicas e políticas.
A economia agrária no Brasil é composta por vastas regiões, sendo assim na visão
do intelectual um absurdo a ideia de um problema fundiário brasileiro – diferentemente
como o caso do Japão e da Holanda, por exemplo, que têm poucas extensões de terras e,
por conta disso uma questão agrária muito distinta do nosso. Nestas vastas regiões da
economia agrária brasileira ocorrem em algumas parcelas da terra uma pequena produção
de mercadorias (próximo ao coeficiente da economia natural ou, economia de subsistência)
que estão, de certa maneira, interligadas com outras áreas da produção na terra, mas que
são estas de ordem capitalista nacional e que se inter-relacionam com a ordem capitalista
mundial.
Para Rangel é necessário compreender que a economia brasileira tem
simultaneamente um setor capitalista e um setor pré-capitalista e que, mesmo este primeiro,
tem em si elementos muito diferentes nas etapas de seu desenvolvimento econômico. O
autor argumenta que isto “como elemento do mercado mundial o Brasil é parte de um
sistema econômico avançado, representando assim um capitalismo que perdeu a

681
capacidade de reajustamento automático e que se acha no ramo descendente de sua curva
evolutiva” (RANGEL, 1957, p. 292).
Do lado interno das relações econômicas, seria justamente pela crise mundial do
capitalismo que se abriria a possibilidade do surgimento de um capitalismo nacional com
o determinante da oferta, onde aponta que o capitalismo nacional tem como norte de seu
desenvolvimento a substituição de importações, uma vez que esta instala e amplia o parque
industrial, inibe as importações e induz novas substituições a partir de uma estrutura
industrial já concebida e um mercado de consumo interno já criado.
Rangel percebe que uma economia como é a economia brasileira apresenta as
características de muitos dos momentos de evolução do processo histórico-econômico
humano e pretende assim investigar quais são as inter-relações dessas etapas, seus conflitos
e suas possíveis soluções, como diz abaixo:

A economia brasileira apresenta aspectos bem definidos de todas as


etapas do desenvolvimento da sociedade humana. Temos o comunismo
primitivo, nas tribos selvagens; certas formas mais ou menos
dissimuladas de escravidão, em algumas áreas retrógradas, onde, sob a
aparência de dívidas, se compram e vendem, não raro, os próprios
homens; o feudalismo, em diversas formas, um pouco por todo o país;
o capitalismo em todas as suas etapas: mercantil, industrial e financeiro.
Além de tudo isso, o capitalismo de Estado que, do ponto de vista
formal, pode ser confundido com o socialismo (RANGEL, 1957, p.
293).

O latifúndio brasileiro, embora Ignácio Rangel o credite em seu aspecto interno de


feudal é, em grande medida, diferente do feudalismo medieval europeu ou asiático. No
latifúndio brasileiro existem leis que o regem dentro da economia e que agem de forma
mista - para isso Ignácio Rangel diz que a compreensão do estudo do latifúndio brasileiro
deve bastar o conhecimento das leis que regem uma economia feudal e das que regem uma
economia capitalista.
Tais leis agem e modificam o conteúdo de tal planta produtiva, enquanto outras leis
também atuam indiretamente, mas não são condicionantes como estas. O latifúndio como
uma instituição capitalista é, em sua relação externa e comercial, é regido pelas leis
coerentes a esta e, embora seja uma empresa capitalista, em seu interior as relações de
produção e reprodução internas são fechadas e ensimesmadas e não ligadas ao mercado.
Como o latifúndio, a indústria e a escravidão também se desenvolveram no Brasil de forma
distinta a dos termos de sua origem. Mas, não menos importante para Rangel é que, para

682
compreender as peculiaridades tenha-se como referencial o estudo dos clássicos do centro
em dualidade com a periferia.
Para chegar ao estado da arte das relações de produção, o autor traça a história
brasileira pelo prisma das transições dos modos de produção demandados pelas relações
nacionais com o comércio exterior. A princípio traça o primeiro desempenho pela
transição da sociedade ameríndia colonizada para um sistema de trabalho na terra nos
moldes do escravismo, no qual, segundo Rangel, o período da colônia se ocupava da
estruturação dessa economia escravista “que, criando uma lavoura estável, criou igualmente
as condições de passagem para o regime feudal, onde a propriedade da terra é suficiente
para conferir ao seu detentor o comando supremo da riqueza móvel e do próprio homem”
(RANGEL, p. 296).
Essa condição que conferia à terra foi datada, uma vez que ela ganha, na obra do
autor, uma importância crescente de objeto corrente de compra e venda, ou seja, capital.
A história brasileira, no entanto, é uma história que se distingue da história europeia
pelo fato de que não é resultado das forças que agem internamente, mas sim pela
necessidade externa foi que nossa economia nasceu e se desenvolveu – uma economia
complementar e dependente colocada em uma situação reflexa aos desígnios das
economias centrais. Assim fazendas de escravos nasceram também pela necessidade do
comércio, sendo uma empresa mercantil:

Isso fazia do seu proprietário um personagem original, solicitado


simultaneamente por duas ordens de interesses diferentes. O senhor de
escravos brasileiro era ao mesmo tempo um dominus, no sentido
romano, e um comerciante, no sentido holandês do século XVII, ou um
industrial, no sentido inglês, dos séculos XVIII e XIX (RANGEL, 1957,
p. 296 – 297).

Isso significa que a fazenda de escravos estava sobre dois conjuntos de regras: as
regras do escravismo e, pela sua função de comércio externo, as do capitalismo. Tais leis
que governam as relações internas e externas da economia, deixando claro que esta
economia mista não é apenas concomitantemente afetada por tais ordens, mas que elas são
causadoras e efeitos das relações e expressões dessa estrutura interna e externamente.
Mudam-se os atores, mas a estrutura do latifúndio permanece a mesma: continua
tendo dentro de si uma relação feudal e, externamente, capitalista em seu modo de
comercializar com os mercados externos, com o mercado interno de uma indústria
prematura ou da indústria nacional em outros estágios de desenvolvimento. O que leva

683
Rangel a concluir que a economia brasileira se rege em todos os níveis por duas ordens de
leis que “imperam respectivamente no campo das relações internas de produção e das
relações externas de produção” (RANGEL, 1957, p. 298).
Logo, o latifúndio brasileiro é uma demanda do polo externo (o mercado
internacional que, no caso, está na figura de uma fábrica europeia). O polo externo, que é
a relação dominante, pressiona o polo interno (o próprio latifúndio). Em resposta às
demandas das economias centrais, as relações de produção mais fracas cedem e se
reconfiguram - o que pode significar alteração da planta produtiva, da mão de obra ou do
produto, por exemplo.
Contudo, a transformação de alguns fatores das relações econômicas (mesmo que
no polo mais fraco) gera uma readequação de estrutura, que causa impactos em outras
relações (políticas e sociais, por exemplo), compreendendo o estágio interdependente das
relações econômicas como reações encadeadas de eventos simultâneos.
Sobre essas reações encadeadas nas relações da dualidade econômica, cita a
exemplo a situação de vida dos trabalhadores do campo que não recebem salário: i) os
trabalhadores pressionam para pertencerem à categoria de trabalhadores assalariados e,
mudando as relações de trabalho no latifúndio, alteram sua estrutura; e ii) os trabalhadores
pressionam por salários e são deslocados do latifúndio, vão para a cidade e alteram esse
cenário.
Nesse sentido, Rangel expõe que todas as instituições brasileiras se transformam,
portanto, a partir das relações da dualidade básica, o que se manifesta também no direito
partir da estruturação de nosso Código Civil: uma vez que uma sociedade latifundiária
escravista estava sobre a égide do Direito Romano375, apresentava também um caráter
capitalista, este não era suficiente para sua legislação. O autor explica que, nas fazendas de
escravos, que concorriam no mercado mundial com as manufaturas europeias, culminaria
no direito comercial contemporâneo, sendo assim, era urgente a elaboração de um Código
Civil que regesse uma sociedade análoga a sua estrutura econômica.

O direito, como a economia, deve ser dúplice, e a esse resultado


chegamos pelo conflito entre um direito civil que tende a tudo imobilizar,
a semelhança da terra, e um direito comercial que tende a tudo
mobilizar, inclusive a própria terra. Ao lado desse direito privado,
tomando-lhes e transformando-lhes os institutos, abrem passagem,

O sentido da colonização é uma expressão criada e consagrada por Caio Prado Jr. no livro “A Formação
375

do Brasil Contemporâneo”, de 1942, para designar toda evolução da história brasileira, conforme
mostraremos adiante.
684
ramos novos da árvore, como direito trabalhista e o que poderíamos
chamar de direito comercial público, para reger nossas relações
econômicas com o mundo exterior (RANGEL, 1957, p. 300).

Na história da dualidade brasileira podemos perceber um movimento histórico


muito acelerado em relação às etapas do desenvolvimento capitalista mundial (comparação
à história europeia e à história asiática, como aponta Rangel): “O mercantilismo nos
descobriu, o industrialismo nos deu a independência e o capitalismo financeiro, a
república” (RANGEL, 1957, p. 302).
Rangel esboça as linhas dessa evolução, a partir da primeira, quando assinala que
(no polo externo) a economia feudal europeia se pôs em contato, através da expansão
ultramarina e do capital mercantil português, ao passo que a esta impactou (internamente)
o estágio da nossa economia primitiva ameríndia. Na segunda fase da história da dualidade
brasileira, a da economia mercantil de dominante manufatura entrou em contato com as
relações brasileiras consolidou-se internamente a economia escravista que se articulou à
economia mundial por conta do mercado de produtos produzidos no latifúndio escravista.
A economia capitalista industrial promovida com a revolução que se deu com os meios de
produção na Inglaterra passou a comercializar com o Brasil está posta na terceira fase desse
processo histórico em que, internamente a Abertura dos Portos e a Independência fizeram
surgir o capital mercantil nacional.
O capitalismo financeiro foi a quarta e última etapa disposta nessa linha do tempo.
Nessa fase, a relação internamente impactada foi a conversão de uma economia escravista
para uma economia latifundiária de monocultura que influiu na política e nas instituições:
na Abolição e na República, bem como, o surgimento de uma indústria e de um mercado
nacional para além das necessidades de exportação das demandas de suprimentos para as
indústrias do mercado mundial.
Para lidar com as correntes que buscam soluções para as crises do ponto de vista
de Rangel, é investigar a dinâmica das relações internas e das relações internas da dualidade
brasileira. As crises estruturais, a partir da constatação de sua existência, devem ser
criteriosamente examinadas para que as medidas cabíveis possam ser tomadas, por
exemplo: ao definir uma proposta de projeto para uma reforma em um setor estrutural
que não tenha mais a resposta esperada economicamente, ou seja, um setor que detém
capacidades ociosas é possível que a medida seja ineficiente por se tratar de uma crise
reflexa.

685
Um conceito muito caro ao autor é o de capacidades ociosas da economia nacional
- que para ele devem ser eliminadas - pois apenas dessa forma planejada o desenvolvimento
real de determinado setor pode se concretizar. Ao encontrar um setor retrógrado no
processo de desenvolvimento, o projeto para sua superação deve levar em conta a
economia em sua perspectiva indivisível. Com as interligações entre a agricultura, a
indústria e o comércio exterior sendo encadeadas, as alterações que não visem todos os
impactos nessas frentes, por mais revolucionária que possa parecer à primeira vista, é um
programa reacionário.
Ao traçar essa crítica, a inter-relação e a interdependência dos setores da economia
brasileira, os apresenta em três categorias, ou “três camadas claramente discerníveis”:

(a) A economia pré-capitalista, na qual predomina a produção direta para


autoconsumo, característica da chamada “lavoura de subsistência”, nos
quadros institucionais do latifúndio, economia que, em forma residual,
sobrevive ainda nas cidades, especialmente nas médias e pequenas, na
forma dos chamados “serviços domésticos”.
Um cômputo cuidadoso revelará que essa atividade estranha ao mercado
ocupa ainda a maior parte do tempo de trabalho nacional, em condições
de produtividade muito baixas.
(b) a economia de mercado capitalista, dominante na indústria, nos
serviços (transportes, comércio, governo) e na agricultura comercial,
especialmente a grande plantation voltada seja para o mercado externo,
seja para o interno, este é o setor mais dinâmico da economia nacional,
em torno do qual toda ela se ordena. Não obstante, ocupa uma parcela
relativamente pequena do tempo de trabalho nacional total. Representa
entre nós o capitalismo estilo século XIX.
(c) o comércio externo ou setor “resto do mundo”, isto é, aparelho que
põe em contato a economia nacional com o resto do mundo. Abrange o
comércio exterior propriamente dito e também certas atividades
especiais em que os fatores estrangeiros intervém como elemento
dominante (notadamente o capital estrangeiro). Em tempos essas
atividades consubstanciavam o emprego de uma técnica qualitativamente
diferente da que domina no setor da economia de mercado nacional.
Todo esse setor tende a revestir ou já reveste a forma jurídica de serviço
de utilidade pública. Aqui se emprega uma parcela mínima do tempo de
trabalho nacional (RANGEL, 1957, p. 306).

Essas três categorias formam, justapostas, conjuntos de dualidades que explicam os


processos resultantes dos arranjos econômicos no pensamento rangeliano. No primeiro
conjunto o setor A se relaciona ao setor B, ou seja, a economia pré-capitalista de produção
destinada ao autoconsumo e subsistência que está estruturada no latifúndio tende a
abandonar certas atividades manufatureiras da agricultura – estas não agrícolas – e passarem
a compor a mão de obra no quadro categorizado pelo setor B, em que a economia de

686
mercado capitalista se amplia no ramo da indústria e nos serviços em que estão inclusas as
malhas de transporte, comércio e governo.
Pela mudança da alocação da mão de obra do setor A para o setor de B, atentamos
para o fato de que, com isso se redistribuiu uma grande parcela do tempo gasto da
produção nacional para o setor B - que representava uma parcela pequena do mercado
nacional – alterando a configuração do modo de produção nacional. Esta transformação
aponta, segundo Rangel, para outro patamar de desenvolvimento do capitalismo ao
interferir no setor econômico que é ligado ao atraso e à produção de pré-capitalista em
direção a indústria e a agricultura comercial.
A seguinte dualidade, oposição entre os setores B e C, ou seja, o setor relacionado
à economia de mercado capitalista e o relacionado ao comércio externo, B indica uma
transformação resultante na substituição de importações. Esta dualidade é possibilitada
pelo aumento da mão de obra trazida do setor A para o B, que amplia a capacidade
produtiva da indústria e da agricultura capitalista e impulsiona o consumo dos produtos
produzidos no país por conta da diferença de seus preços reais (como isenção de taxas de
importação e maior oferta interna):

O motor primário do desenvolvimento está na crise que tem lugar no


campo desta última dualidade, isto é, entre os setores B e C. Essa crise
se manifesta por uma contração absoluta ou relativa da capacidade para
importar do país, provocando um esforço de substituição de importações
que, pelo fato de realizar-se por meio do setor B, isto é, em condições
capitalistas, pelas inversões a que induz, põe em marcha um processo de
desenvolvimento econômico (RANGEL, 1957, p. 306 – 307).

Em que pese, indústrias europeias, com quem mantínhamos as relações de venda


de matérias-primas, passaram a demandar um estímulo à reorganização da produção
interna das fazendas baseada em uma produção variada para autoconsumo e suprimento
industrial, logo pela demanda externa passamos a outra de dualidade econômica.

A essa mudança microeconômica correspondia,


macroeconomicamente, o que hoje chamaríamos de queda da
participação do setor “resto do mundo” na renda nacional, isto é,
redistribuição da atividade produtiva, menos para a exportação e mais
para o consumo interno. Havia, pois, um vigoroso movimento de
substituição de importações no âmbito da fazenda de escravos. Esta era
uma estrutura ideal para tal reestruturação e ainda se passariam várias
décadas antes que a história lhe propusesse problemas que ela não
poderia resolver (RANGEL, 1957, p. 311).

687
Entre os países industriais e os agrícolas houve certa divisão do trabalho
internacional a partir da consolidação do liberalismo econômico. A determinação deste
acordo se baseava na demanda dos países que estavam na posição periférica um aumento
de produção para o suprimento da indústria e ampliação do mercado. Este ramo
ascendente para as economias dos países agrícolas, como o caso brasileiro, resultou na
reestruturação de nosso complexo produtivo: a agricultura de exportação.
Na fase capitalista de montagem de parque industrial e remodelação da agricultura,
Ignácio Rangel frisa que pode parecer historicamente desnecessário recuperar a relevância
da Abertura dos Portos e da Independência, mas que “sua realização foi prova de singular
energia para um país pobre, sem mercado e cujo principal capital era ainda o próprio
escravo, cuja ampliação exigia igualmente fortes investimentos” (RANGEL, 1957, p.311).
O caráter da escravidão é diferente, em sua essência, do caráter do latifúndio, uma
vez que na escravidão o principal “capital” é o bem móvel por excelência, o escravo, e a
ele todos os outros são subordinados; quando na natureza do capital do latifúndio, esta é
senão o solo – capital irreprodutível e imóvel. A natureza das duas circulações de capital
diferem mesmo sendo ambas expressões capitalistas, e suas condições propiciam o
aparecimento de formas de organização social diferentes. O fortalecimento da estrutura do
latifúndio – que nessa dualidade alterou as instituições políticas “ao passo que a ausência
dessa circulação conduz ao exclusivismo regional que, entre nós, encontrou expressão no
federalismo” (RANGEL, 1957, p. 313).
A questão agrária, dessa forma, não apenas é condicionante da inserção da
economia brasileira no mercado internacional capitalista, nem apenas condicionante que
cria possibilidades para a ampliação de uma indústria pautada na substituição de
importações e no desenvolvimento de um parque industrial nacional – a dualidade na
questão agrária brasileira se expressa como a organização social das instituições políticas
regidas pelas conglomerações regionais dos núcleos de decisão que, nessa altura, se
expressa pelo federalismo.
Enquanto a Abertura dos Portos e a Independência realizaram meio círculo da
revolução da estrutura política brasileira apontada por Rangel, a Abolição e a instituição da
República fecharam a meia volta em superação ao regime colonial. Na primeira fase foram
fatores capazes de modificar as relações externas de produção, a estrutura do modo de
produção de maneira expressa externamente. Na segunda fase a Abolição e a República
alteraram as relações internas de nosso regime reconfigurando a outra ponta da dualidade.

688
Assim, Ignácio Rangel aponta que “Só em 1889, portanto, encerramos o ciclo iniciado em
1808, versão brasileira da revolução democrático-burguesa na Europa” (RANGEL, 1957,
p. 314).
A indústria europeia exigia que o suprimento de matérias primas se intensificasse
e, à medida que se desenvolvia, se aprofundava também a diversidade de produção de
alimentos para as cidades, mas, justamente nos países de etapa de industrialização
desenvolvida a agricultura declinava. Isso passou a exigir dos países agrícolas um tipo de
produção específica que não era compatível com a estrutura da fazenda de escravos, o que
deveria modificar a estrutura da produção da terra em virtude de uma demanda externa.
Tanto em quantidade de produção, quanto no tipo de produção no interior do latifúndio
haveria alguma readequação em relação ao mercado.
Com base neste exposto, Ignácio Rangel examina que no latifúndio, em primeiro
momento, a estrutura não se chocava com a escravidão para que a produção agrícola se
consolidasse e ampliasse em escala. Mas havia no Brasil uma população que não detinha
a mesma condição que a escravaria negra e, esses homens juridicamente livres que não
eram propriedades de outros homens também compunham o quadro mão de obra no
nacional que, a princípio, se vincula ao comércio, aos cargos públicos e a prematura
indústria.
Mas, com a extensão da demanda econômica em curva ascendente e a necessidade
do país aumentar o resultado da produção agrícola para o suprimento da demanda da
indústria europeia, esta mão de obra foi também compor os quadros do campo, que então
se estruturavam intensamente pelo modelo da monocultura de exportação.

A fazenda de escravos, com efeito, era uma economia muito mais


fechada que o latifúndio. Precisava atender, com usa própria produção,
a toda uma extensa gama de necessidades de seus membros, de tal sorte
que os excedentes elevados ao mercado eram inevitavelmente reduzidos.
Tal circunstância representava um obstáculo à especialização que, como
quase sempre, era condição par ao aumento da produtividade do
trabalho. Essa estrutura, embora fossem convenientes, do ponto de vista
do mercado europeu, nas primeiras etapas da revolução industrial,
gradualmente, se revelaria incompatível com ele. As necessidades do
comércio exterior, para o qual o hemiciclo abertura dos portos e
independência nos havia preparado, exigiam uma estrutura agrária mais
produtiva, mais dinâmica e mais mercantil – o que, nas condições
concretas queria dizer mais monoculturista. Essa nova estrutura era o
latifúndio (RANGEL, 1957, p. 316).

689
Retomado que o latifúndio não é uma instituição puramente feudal, uma vez que
tem uma face externa capitalista, assim como a escravidão brasileira que não era uma
instituição puramente escravista, percebemos que as relações internas se transformaram
historicamente muito mais rápido do que as relações externas. A história brasileira
envelhece em diferente ritmo da história mundial por conta de nossa situação de economia
periférica subordinada aos desígnios do polo dominante.
A função da terra deu-se de forma distinta do que poderíamos pensar de sua função
primeira natural – a agricultura diversificada de produtos para o mercado interno. Ao invés,
disso o latifúndio começou pela determinação do uso para a produção pecuária extensiva
– as primeiras regiões brasileiras a se estruturarem nesta configuração fundiária foram
algumas zonas do Nordeste no sertão árido e no Rio Grande do Sul muito antes das zonas
brasileiras do capital agrícola (RANGEL, 1957).
O latifúndio passou a se estender pelas outras regiões do Brasil devido ao comércio
externo, e a produção destinada à monocultura dada a substituição das comunidades de
produção local e diversificada. “A passagem da escravidão para o latifúndio é, portanto,
processo de criação de mercado” (RANGEL, 1957, p.316).
Esse processo de passagem da economia baseada na força de mão de obra da
escravidão, e a estrutura de mercado e produção de monocultura em demanda ao mercado
internacional pelo latifúndio, representou um processo de desenvolvimento das forças
produtivas por conta de tal especialização. A ampliação do mercado correspondeu ao
movimento de demanda exterior.
Uma importante circunstância apresentada na reestruturação do latifúndio é que,
com seu fechamento, reclusão interna e criação de certas realidades regionais diferentes
das demais, houve certo descompasso no desenvolvimento em alguns lugares do país.
Rangel explica que este foi o fato essencial para as grandes desigualdades presentes de
ponta a ponta no território nacional: o advento do latifúndio e a organização federalista.
Para este descompasso houve uma resposta no nível das instituições políticas:

A república era, pois, o ponto de convergência obrigatório tanto do


federalismo quanto do abolicionismo. O primeiro representava as
reivindicações econômicas do latifúndio – e das forças que resultariam
no capital industrial que se desenvolveria na base do mercado criado
pelo latifúndio e da mão de obra liberta das fazendas – e o segundo, as
reivindicações políticas (RANGEL, 1957, p. 322).

690
A estrutura fundiária brasileira nos colocou em um lugar que, no sistema do
mercado capitalista internacional, por sua vastidão, nos demandou, a princípio, por conta
do comércio mercantil, um tipo de estruturação agrária. Este era o latifúndio feudal
escravista, que sofreu alteração no nível das instituições – o latifúndio de trabalhadores
livres – para corresponder melhor às demandas da monocultura que supririam a indústria
externa. Este horizonte econômico nos colocou em uma organização no nível das
instituições que cobrava uma resposta que veio através da República: o problema da terra
foi, na gênese de nossas instituições, o motor da transformação das mesmas.
Esse comércio exterior brasileiro diferia na forma das tendências que ocorriam no
Brasil e, por conta de nossa função de complementaridade, desempenhávamos no
mercado um pilar necessário à economia capitalista em formas de produção que não
estavam ajustadas senão as necessidades dos países do centro.
Deste modo, nossa dualidade se expressa em dois processos não coincidentes no
mesmo tempo histórico: as economias dominantes são simultâneas às economias reflexas,
mas em funções totalmente distintas. Como a Abertura dos Portos e a Independência que
alteraram nossa estrutura externa, enquanto a Abolição e a República foram responsáveis
pela alteração de nossa estrutura interna.
A importância da observação do funcionamento da economia significa, para
Rangel, a possibilidade de averiguação dos elementos possíveis para elaborar um
diagnóstico e um prognóstico de desenvolvimento nacional. Assim, o autor verifica nas
relações internas brasileiras que o efeito da dissolução da forma de produção ligada à
subsistência, e o rápido desenvolvimento do mercado interno causaram descompasso e
desequilíbrio ao lançarem grandes massas de trabalhadores que, por sua vez, precisam
consumir produtos outras regiões do país (por não serem mais produzidos em variedade
nas áreas próximas pela substituição da estrutura da monocultura), sendo que estes antes
se satisfaziam produção local camponesa.
Outro sintoma é que este desenvolvimento acelerado exige que se aumente a
produtividade do trabalho nacional e, portanto, o investimento dos bens de produção de
maneira que essa mão de obra desvinculada pela dissolução da economia de subsistência
o seja de modo a satisfazer suas necessidades de consumo no mercado. O terceiro sintoma,
segundo Rangel a:

[...] rápida intensificação do processo de formação de capitais, graças à


elevação da taxa média de lucro resultante do aludido aumento da
produtividade do trabalhador, em sua passagem da economia natural

691
para a mercantil sem paralela elevação do nível de vida que, em alguns
casos, regride com a proletarização – como se verifica em consequência
da seca no Nordeste que, lançando ao mercado centenas de milhares de
trabalhadores miseráveis, detém o reajustamento dos salários nas regiões
que os recebem (RANGEL, 1957, p. 324).

Ou seja, o rápido desenvolvimento desse complexo da economia natural para uma


economia de mercado não necessariamente transforma qualitativamente o bem-estar do
trabalhador, seja no campo ou na cidade. Isso quando não ainda o submete, pela
necessidade do consumo dos produtos do mercado, com salário pago pelo trabalho
desempenhado a condições de vida mais desfavoráveis do que uma situação de
subsistência.
A origem da crise brasileira, assim como a origem de seu desenvolvimento, está no
comércio exterior, polo dominante de nossa dualidade, uma vez que servimos como
complemento agrário-produtor aos países capitalistas avançados. Historicamente estes
países desempenharam em sua indústria a aplicação dos recursos tecnológicos disponíveis
para a montagem de um parque industrial que, segundo Rangel, se encontra em uma fase
ultrapassada, uma vez que a tecnologia já atingiu o limite de disposição ilimitada de capital.
A etapa a que o autor aponta presente é a da reorganização da produção primária:

Isso quer dizer que os países capitalistas mais avançados carecem cada
vez menos de complementos como nós o somos, isto é, que perdemos
o lugar na economia mundial, lugar que, embora subalterno, nos bastou
para que alcançássemos nosso presente nível de desenvolvimento
(RANGEL, 1957, p. 326).

Essa situação nos coloca em uma posição permanente de exportadores de matérias-


primas para a indústria sendo, portanto, muito distante a ideia de que estaríamos em uma
etapa das etapas do processo evolutivo capitalista e que chegaríamos a um desenvolvimento
pleno de nosso potencial industrial. Para Ignácio Rangel, esse fator nos aprisiona a exportar
os mesmos produtos que, beneficiados pela intervenção fiscal, nos inseriram no mercado
internacional e dão continuidade a condição de importadores dos produtos industriais que
se destinem ao nosso mercado.
Desde a I Guerra Mundial, há sintomas do problema com o comércio exterior na
apresentação de sua decomposição. Na obra de Rangel este problema é apontado pela
atividade econômica de países, como no caso do Brasil, que não podiam manter condições
de transferência de sua capacidade de recursos de produção dedicados a exportação de

692
matérias-primas. Assim, implicava transferir para os importadores apenas parte dos custos
do setor dedicado à exportação. Rangel ressalta que:

[...] em virtude dessa transferência, os preços dos produtos


tradicionalmente importados – essencialmente industriais – subiram sem
cessar, o que nos permitia manter a exportação, não obstante a queda
ininterrupta dos preços reais dos nossos produtos – essencialmente
agroprimários no exterior (RANGEL, 1957, p. 339).

O barateamento dos preços dos produtos de exportação que, pela condição da


monocultura latifundiária haviam se tornado competitivos no mercado externo, era a maior
distinção da nova configuração econômica nacional (em relação ao latifúndio arcaico).
Neste período em curva ascendente, a economia nacional tinha saldo positivo em relação
aos custos dos produtos de exportação – fato este impulsionado, principalmente, pelo
auxílio do Estado na forma da ampliação, técnica e crédito para a produção. Esta curva,
quer dizer, este momento de crescimento econômico, beneficiava ambas as faces da
dualidade produtiva brasileira: a lavoura capitalista (monocultura de exportação) e os
interesses da indústria nacional.
A indústria nacional foi beneficiada pela interrupção do constante aumento de
preços dos bens de produção que, para a instalação de nosso parque industrial, precisavam
ser importados dos países da Europa. Estes preços passaram a baixar ininterruptamente,
uma vez que a intervenção do Estado agiu no sentido de desvalorizar internamente nossa
moeda em um ritmo mais acelerado do que as moedas das outras nações.
A isso houve intervenção estatal e controle do câmbio, que baixou preços de
equipamentos e materiais para indústrias, bem como os preços para produtos de consumo
similares aos da oferta da indústria nacional – o que garantiu mercado para a produção
nacional. A indústria nacional, que enfrentava imensa concorrência dos produtos
importados no mercado interno, aliou esse momento propício para investimento na planta
produtiva, à vantagem de custos mais baixos de matérias primas.
A intervenção do Estado no Brasil é um ponto importante a ser refletido, uma vez
em que não se atém apenas ao que já dito sobre a conservação das relações de comércio
exterior e o assentamento ao direito privado, nem apenas ao auxílio crescente para as
atividades voltadas ao comércio e à vida econômica interna do país. Rangel aponta que o
Estado tem, no Brasil, a função de intervir no mercado de gêneros alimentícios para que
assim que se impeça a alta dos seus preços, uma vez que isso resultaria em uma opressão

693
das massas urbanas sobre a indústria para aumentarem salários, diminuindo a possibilidade
de investimento e ampliação deste setor.
A produção da agricultura brasileira é retratada neste momento da obra de Rangel
como uma variável dispersa e de difícil controle através de estatização, portanto, a missão
de articular a produção de fazendas independentes seria fazer com que o mecanismo dos
preços. Ele argumenta que “a intervenção do Estado nesse setor só pode consistir na
utilização das próprias forças do mercado: a compra, o suprimento, o crédito. Passar além
é provocar forças contrárias, forças que acabarão por prevalecer” (RANGEL, 1957, p. 346).
A reação do produtor de plantar ou não plantar, em quais quantidades e o produto
específico do que plantar, pode ser um empreendimento de certo ajuste do Estado. Caso
haja uma intervenção para além dessas forças de mercado, Rangel aponta que é possível
depararmo-nos com queda de produção e, no caso de uma demanda de tabelamento dos
produtos, o aparecimento de interesses comerciais distintos dos agricultáveis (que se
especializam em forçar a alta de seus preços) e a consolidação de interesses dos produtores
convertidos em um oligopólio.
Nenhum período da história a economia interna do Brasil se pautou pelas mesmas
normas que a sua economia externa, isso quer dizer que o “estatismo” relacionado ao
comércio externo não é necessariamente consequencial ao fenômeno interno do mercado
brasileiro. Isso se mostra em Dualidade básica da economia brasileira (1957) em dois
mercados distintos que geram tremendo esforço para a adequação de suas estruturas de
preços, de esfera pública e privada, de atividades particulares e interesses nacionais. A
origem do “estatismo” no setor interno brasileiro está interligada, portanto, na produção
agrícola de um país que precisou reestruturar uma forma de produção para o mercado que
antes se pautava em pequenas e mínimas explorações.
Em sua obra, o autor salienta que um governo que tem como função o desempenho
de comerciante, pretende rapidamente estimular as exportações e reduzir a procura de
produtos do estrangeiro. Destarte, parece conveniente essa situação com o comércio
externo dominante, mas Rangel aponta que tal política é adequada apenas em um
momento de emergência, um artifício que, se não posto com um prazo de validade e
encarado como uma situação específica, tendo em vista esse pragmatismo, seria um
retrocesso - uma vez que se deveria retomar a linha de planejamento que tendia à
industrialização nacional.
Essa política prepara as condições que, do ponto de vista econômico, aumentam as
ofertas dos produtos de exportação devido ao excesso dos recursos da planta produtiva do

694
setor agrícola, o que indicaria uma diminuição da busca e do consumo dos produtos
importados por conta de seus preços elevados (RANGEL, 1957).
Ou seja, esta política emergencial que tinha como direcionamento o estímulo das
exportações por necessidade do suprimento de matérias-primas para as indústrias
internacionais, se for “bem conduzida” – o que para Rangel significa considerar a economia
nacional com todos os seus setores de maneira inter-relacionada e visando a superação do
papel de país agroexportador – geraria uma situação favorável para o desenvolvimento da
industrialização agora mais forte estruturalmente em sua retomada.
Esse cenário otimista era uma possibilidade para Rangel, que seria alcançada através
de planejamento dos investimentos nos setores ociosos da economia, tendo em perspectiva
estes como um conjunto inter-relacionado de recursos para o crescimento e
desenvolvimento nacional. Em outro cenário, o autor ressalta as debilidades que devem
ser consideradas para um diagnóstico mais específico do caso brasileiro em desequilíbrio:

(a) porque não é certo que o simples aumento das disponibilidades para
exportação, acompanhado da baixa de preços, conduza a um aumento
ponderável das disponibilidades de cambiais, a menos que exploremos
novos mercados, dada a considerável inelasticidade da demanda de
numerosos dos nossos produtos de exportação;
(b) porque tampouco é certo que a simples alta dos produtos de
importação resulte em séria redução da nossa demanda interna, em vista
da sua incompressibilidade, de muitos pontos de vista. Com efeito, se o
encarecimento pode reduzir a demanda de certos produtos suntuários,
a indústria continuará a reclamar bens de produção, e o próprio
encarecimento das “matérias-primas” importadas tende a intensificar os
esforços para a sua produção interna, o que, por sua vez, determina o
aumento da procura de bens de investimento, como parte do processo
de conversão da “indústria de aparafusamento” em autêntica indústria
nacional verticalmente integrada (RANGEL, 1957, p. 351).

Quando guiado por um planejamento cauteloso e determinado o tipo de


investimento possível a partir das variáveis econômicas a serem consideradas, Ignácio
Rangel mostra que os movimentos dos preços dos produtos podem ser por si só suficientes
para que se desloque o nosso esforço industrialista - de uma indústria leve para uma
indústria que possa produzir serviços de base - e se relacionar distintamente com a
produção de capital.
A partir desse ponto está o aumento da demanda dos bens de produção
importados, que Ignácio Rangel salienta que pode se desenvolver, por exemplo, como no
caso saturação das possibilidades de produção extensivas da terra e a intensificação da mão

695
de obra, o aumento da exportação dos produtos agrícolas brasileiros só poderia ser
realizado a partir da implementação de tecnologia e mecanização, o que, por fim, implicaria
em importação de bens de capital relacionados ao campo.
Essa reestruturação do campo, para a qual Rangel utiliza o conceito de “reforma”,
criam-se condições econômicas para uma possível retomada das posições abandonadas
relacionadas às atividades industriais brasileira e, ainda mais importante para o desentrave
da indústria nacional, as condições econômicas para o que considera as “forças políticas
necessárias”.
É neste momento que os industriais brasileiros, que anteriormente procuravam
soluções individuais para a superação dos obstáculos postos em seu campo produtivo, se
organizam e coletivamente pressionam recursos públicos que possibilitem e incentivem a
finalização do projeto de industrialização brasileira.
A agricultura neste cenário, expresso pelo latifúndio de monocultura verá, segundo
indica Rangel, que nem com a baixa de preços, incentivando o mercado internacional a
comprar seus produtos (incentivo do Estado Nacional, taxa cambial), pode ser garantia
plena de escoamento total das lavouras e, gerando tais perdas, deverá pressionar o mercado
interno no mesmo sentido que o farão os industriais.
Ao final de seu argumento, Rangel dá como prognóstico para os impasses do
desenvolvimento que os grupos industriais e agrários se compreendessem como
interligados economicamente, em sua a situação de dualidade e buscassem, conjuntamente,
construir perspectivas que pressionassem o Estado a garantir os interesses de
desenvolvimento do país.
Nesse sentido, os conflitos que se prolongariam entre os dois setores - agricultura
e indústria - e os esforços que atendiam interesses de um setor em detrimento do outro,
seriam os grandes entraves da política econômica brasileira. Para Rangel, este modo de
busca de mercado seria uma maneira de minar as potências reais da economia, como
também o tipo de situação que a chamada reforma estrutural da capacidade produtiva
brasileira despertou:

A reforma está longe de ser completa. O mecanismo criado pode sofrer


modificações e até ser substituído por outro, mas a orientação geral está
fixada. O Brasil modifica suas relações externas de produção,
exatamente como o fez em 1808, com a Abertura dos Portos. Cria um
aparelho destinado a tornar viáveis as suas relações com os demais
países, habilitando-se a conquistar uma posição mais cômoda. A essência
dessa reforma revolucionária é a emergência do Estado como

696
comerciante, condição indispensável para que o capitalismo se consolide
e se reforce no interior, na indústria, como na agricultura (RANGEL,
1957, p. 353).

Esse trecho sinaliza para uma ideia de que há uma capacidade interna de
transformação das relações externas ao qual somos complementares economicamente.
Embora subordinados à condição periférica, seria possível - e já se mostrou assim com a
readaptação da função do Estado, da indústria e da própria agricultura nacional – pela via
do planejamento econômico, agir de modo com que o polo interno da dualidade básica da
economia brasileira movimente a história conjuntamente e não apenas dependentemente
das relações externas que se realizam no polo externo.

CONCLUSÕES

A tradição que se abre nos anos de 1940, de intelectuais que debateram questões
importantes para o Brasil não são apenas leituras sobre a herança colonial, mas também
sobre os obstáculos do processo de transição para a etapa industrial e modernização da
sociedade brasileira. Discute-se as ferramentas que de fato foram implantadas no período
do projeto nacional-desenvolvimentista e que têm, portanto, características ímpares na
nossa trajetória, de sobrevalorização do Estado, muitas vezes em uma posição delicada em
relação à sociedade.
Deste modo, na obra rangeliana, a teoria da dualidade básica é a organização de
um movimento de história brasileira pensada através de uma série de categorias construídas
com o intuito de explicar os destinos do país. Essa teoria se propõe a discutir o
desenvolvimento dos modos de produção no Brasil desde a Abertura dos Portos.
Destarte a literatura divide a produção intelectual de Ignácio Rangel em dois
momentos decorrentes: (i) em que Rangel compreende a possibilidade do
desenvolvimento a partir da descoberta de onde este processo estava ocorrendo, apesar e
contra o entendimento da esquerda; (ii) trabalhando em diferentes postos dentro do
Estado, onde deslocou sua atenção para identificar os fatores que poderiam intensificar o
processo desenvolvimentista (BIELCHOWSKY: 1985; 1987; CASTRO: 1987).
Isso faz com que a interpretação histórica do que era o movimento da dualidade
dependa não exclusivamente dos movimentos de produção, do econômico e das
transformações estruturais, mas também das relações sociais e dos elementos políticos.

697
O conceito de dualidade não é uma novidade no debate intelectual, este existe há
muito para lidar com diversos temas relacionados não apenas à periferia, mas também em
relação ao centro. Pensando nesses termos, em relação à dinâmica do capitalismo
internacional, estes últimos dependentes economicamente dos primeiros. Porém, na
periferia a dualidade é um conceito utilizado na história de maneira distinta: ela marca um
contraponto entre as características de um sistema capitalista dominante em oposição a
uma economia reflexa a este de desenvolvimento deletério.
Além de não ser um conceito novo não é, tampouco, um conceito inédito a ser
trabalhado pelos intelectuais preocupados com as dinâmicas econômicas da periferia. A
própria CEPAL, e nela seus intelectuais como Raul Prebisch e Celso Furtado,
apresentaram também fortes ideias sobre a performance do conceito de dualidade, neste
eixo houve críticas aos trabalhos que lidaram com o tema como o de Francisco de Oliveira.
Ignácio Rangel traça uma nova interpretação e conclui que as diferenças existentes
no caso brasileiro são tidas pela condição de dualidade que, para o autor, está distribuída
em um conjunto de instituições e categorias, são essas: o latifúndio, a indústria, o comércio,
o capital, o trabalho, a economia nacional, o comércio exterior. O que o difere
principalmente das demais possibilidades de interpretação do conceito de dualidade é que
o Rangel compreende que cada uma dessas categorias um ponto de vista, ou, como ele
chama, uma “natureza” interna e externa.
A busca de Rangel foi guiada pelas soluções desenvolvimentistas pela divisão de
obstáculos ao crescimento econômico e capacidades ociosas - ou seja, as linhas de maior
resistência das forças produtivas. Estas caracterizam seu trabalho (cujas fases apresentam
continuidade e consequências diretas). As questões teóricas enfatizadas são problemas da
realidade econômica e política com os quais seus períodos se defrontam.
Verificamos nessa pesquisa que a questão agrária na obra rangeliana não é
puramente uma questão econômica, mas também uma questão social e política que tem
um peso fundamental na construção de seus argumentos teóricos e atravessa sua obra
desde seus primeiros textos até seus últimos. Na verdade, a questão agrária é um elemento
diferencial de Rangel na comparação dos marcos do pensamento de grande parte de seus
intérpretes coetâneos como, por exemplo, os pertencentes aos quadros do PCB, da escola
nacionalista isebiana e da corrente estruturalista cepalina.

698
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700
DUAS VERTENTES DO MARXISMO NA FORMAÇÃO NACIONAL
BRASILEIRA

Carlos Eduardo TAUIL376

Rafael Marchesan TAUIL377

INTRODUÇÃO

O trabalho aqui apresentado tem como proposta resgatar o pensamento e os


argumentos utilizados por Caio Prado Jr. e Ruy Mauro Marini para debater a questão
nacional. Os dois autores marxistas, tidos como alguns dos principais intérpretes do Brasil,
trataram de temas correlatos e fizeram análises do desenvolvimento brasileiro sob uma
mesma perspectiva e com diagnósticos em comum, porém divergiam em alguns focos de
análises e nos prognósticos dos desdobramentos que o Brasil devia empreender. Neste
sentido, pretendemos realizar uma análise crítica das afinidades e discordâncias de suas
teses principais e, para isso, nós dividiremos este artigo em três partes para além desta
pequena introdução. Na primeira parte, nós apresentaremos os argumentos e teses centrais
de Caio Prado Jr. Numa segunda parte, nós apresentaremos os argumentos e teses centrais
de Ruy Mauro Marini e, posteriormente, concluiremos o trabalho destacando
sumariamente as contradições e convergências de suas teses. Acreditamos que desta forma,
possamos apresentar ao leitor uma perspectiva sintética de como dois intérpretes do Brasil,
que partiam do mesmo pressuposto, puderam realizar trabalhos com perspectivas tão
próximas e tão distantes ao mesmo tempo.

CAIO PRADO JR.: O “PRÉ-CAPITALISMO” E A ESTRUTURA POLÍTICO


ECONÔMICA DO BRASIL

Tratar da questão nacional em Caio Prado Jr. é, ao mesmo tempo, uma tarefa
simples e complexa. Explico: encontrar este objeto de estudo na obra deste autor é uma
tarefa simples, tendo em vista que praticamente toda obra de Caio Prado Jr. perpassa esta

376
Caio Prado Jr. viajava constantemente pelo interior do Brasil. Além de viajar, Caio Prado Jr. mantinha
diários com detalhes de seus roteiros e impressões dos lugares pelos quais passava. Para maiores detalhes
destas viagens, consultar o livro de Paulo Teixeira Iumatti indicado na bibliografia ao final deste texto.
377
Vamos nos referir ao Partido Comunista Brasileiro como PC
701
questão e, justamente por isto, é também uma tarefa extremamente complexa, pois o autor
produz textos abordando essa questão por mais de 50 anos.
Como ponto de partida, nós procuraremos apresentar a biografia de Caio Prado
Jr., a fim de contextualizar sua relação com a política, com o marxismo e a história
brasileira. Desta forma, nós alcançaremos a interpretação da evolução histórica brasileira
sob o ponto de vista deste autor e encontraremos a questão nacional no cerne do sentido
da colonização378 que permeará boa parte de toda sua produção teórica. Após localizarmos
o objeto deste estudo na obra caiopradiana, nós buscaremos nos aprofundar na questão
nacional apresentando as nuances que o tema apresentou em Caio Prado Jr. e, por fim,
quais as possibilidades e perspectivas que o autor nos propõe para lidar com esta questão.
Caio Prado Jr. nasceu no seio de uma família muito poderosa no cenário político e
econômico brasileiro do século XIX. Seu avô paterno, Martinho da Silva Prado Jr., foi um
dos maiores exportadores de café do Brasil no final do século XIX. Em sua infância, o
autor foi beneficiado com a educação que se dava aos membros da oligarquia nacional.
Gozava de todos os privilégios da elite paulistana. Morava em bairro nobre da cidade de
São Paulo, passava férias nas fazendas da família no interior do estado e, por vezes, fazia
viagens a Europa. Em 1922 se formou no tradicional colégio São Luiz, localizado na
Avenida Paulista. Na adolescência assistiu a polêmica Semana de Arte Moderna de 1922
e entre os anos de 1924 e 1928 estudou na Faculdade de Direito Largo São Francisco, que
futuramente seria incorporada a Universidade de São Paulo – USP. E em 1926 o autor
participou do I Congresso de Estudantes de Direito, expondo um trabalho no qual já
apresentava sua tendência a explicar a realidade do país a partir das relações econômicas e
políticas.
No entanto, nenhum destes fatos seria decisivo para evidenciar a transformação
ideológica que o jovem herdeiro de uma das maiores fortunas brasileiras do inicio do
século 20 iria enfrentar. Sua inserção na política e seu desejo por compreender o Brasil
surgiram de forma quase natural (SECCO, 2008, p. 27). A única característica que levaria
a presumir qualquer relação de estudo/militância que o autor admitiria para sua vida é a de
que Caio Prado Jr. era um viajante por natureza. Ao longo de sua vida conheceu diversos
países e fez questão de conhecer o Brasil in loco, viajando por diversos estados do país379.
Esta ânsia em conhecer os fundamentos do desenvolvimento político e econômico

378
O PC brasileiro seguia as diretrizes do PC russo e adotava a tese de um passado feudal brasileiro, que para
Caio Prado Jr. não existiu.
379
A partir de agora vamos nos referir a Ruy Mauro Marini apenas como Marini
702
brasileiro conduziu o autor a um inédito projeto de interpretá-lo sob a perspectiva marxista,
conforme veremos adiante.
Esta permanente busca pela compreensão da formação nacional brasileira
conduziu Caio Prado Jr. a aderir ao Partido Comunista380 em 1931. Com a militância no
PC e sua proximidade com a política de fato, a produção do autor começa a ganhar
prestigio com a intelectualidade daquele período. Em 1942, Caio Prado Jr., publica sua
obra de maior prestígio “A Formação do Brasil Contemporâneo” e se torna,
definitivamente, um intelectual respeitado na academia brasileira. Logo após, em 1945,
publica “A História Econômica do Brasil” e consolida seu nome entre os maiores
pensadores da história brasileira. Posteriormente a esse período, o autor esteve recluso e
atento aos fatos políticos, mas mais ligados aos estudos, neste período publicou obras
relevantes como “Dialética do Conhecimento” de 1952, “Diretrizes para uma Política
Econômica Brasileira” de 1954 e “Fundamentos da Teoria Econômica” de 1957. Após
alguns anos distante da academia e militância voltou a escrever e participar efetivamente do
PC no período subsequente ao Golpe de 1964. Em 1966 escreve “A Revolução Brasileira”
proferindo duras críticas ao programa comunista brasileiro e propondo medidas para que
superarmos definitivamente a questão que permeou toda sua produção teórica: a herança
colonial e a autêntica formação nacional brasileira. Em 1977, o autor publica uma
compilação de artigos e novos textos em um livro chamado “A Questão nacional” e após
isto se recolhe definitivamente publicando pequenos livros e artigos até sua morte em 1990
aos 83 anos.
O princípio do pensamento marxista de Caio Prado Jr. nasce organicamente de sua
visão como historiador, e no encalço constante pela busca em compreender a formação
nacional brasileira. Como resultado, o autor trouxe as possibilidades de mudanças dentro
do processo histórico sob o ponto de vista marxista, isto é, a sua investigação concentrou-
se num objeto específico contextualizado em um todo mais vasto. Sua abordagem permitiu
interpelar quais os movimentos de construção do seu objeto - a “herança colonial” e
“formação nacional” - como tentativa de diagnosticar e resolver problemas materiais.
Portanto, o marxismo presente nas obras de Caio Prado Jr. não foi concebido a luz de uma
aliança com a burguesia para cumprir uma etapa capitalista cujo fim seria a revolução
socialista. O pensamento marxista de Caio Prado Jr. se apresentou pela necessidade em
abstrair os dogmas do PC para compreender e analisar a realidade brasileira. Logo, o autor

380
David Ricardo, junto com Adam Smith e Jean Baptiste Say, é tido com um dos pais da economia política
liberal ortodoxa. Escreveu sua principal obra “Princípios da Economia Política e Tributação” em 1817.

703
percebe e diverge do PC381 ponderando que a formação nacional emanou no próprio
nascimento do capitalismo europeu. Desde sua primeira obra “Evolução Política do
Brasil”, e de forma mais aprofundada em “Formação do Brasil Contemporâneo”, o autor
entendeu que formação histórica brasileira permeava a lógica capitalista inserida na
dinâmica dos acontecimentos internacionais (TAUIL, 2014, p. 70).
O objetivo de Caio Prado Jr. era entender o fato de que as formas de produção
instaladas no Brasil tinham como principal missão abastecer os mercados dos países
europeus com produtos de gênero primário - toda formação nacional brasileira obedecia
esta dinâmica. Desta forma, Caio Prado Jr., não formulou um método para aplicá-lo à
história brasileira, mas adaptou o método marxista e por seu intermédio buscou na
generalidade dos fatos históricos a compreensão da realidade específica brasileira.
A ousada contribuição de Caio Prado Jr. para a interpretação da realidade brasileira
se deu pelo fato de o autor primeiro situar a chegada dos portugueses em terras tupiniquins
incorporado no quadro geral do comércio europeu para depois buscar concluir como as
estruturas internas brasileiras funcionaram. Assim, seu objeto de estudo é o resultado de
uma investigação empírica contextualizado no materialismo histórico brasileiro.
Entender o contexto da chegada dos portugueses ao Brasil é de substancial
importância para o desenvolvimento do estudo de Caio Prado Jr., uma vez que os aspectos
oferecidos por estes acontecimentos vão nos qualificar na ambientação do caráter da
formação nacional brasileira pré-capitalista.

Em suma e no essencial, todos os grandes acontecimentos desta era, que


se convencionou com razão chamar dos “descobrimentos”, articulam-se
num conjunto que não é senão um capítulo da história do comércio
europeu. Tudo o que se passa são incidentes da imensa empresa
comercial a que se dedicam os países da Europa a partir do séc. XV, e
que lhes alargará o horizonte pelo oceano afora (PRADO JR., 2011, p.
19).

O desenvolvimento das grandes navegações ibéricas é resultado de uma nova


ordem que se consolidava na Europa, isto é, em meados do séc. XV o escoamento
comercial europeu - que passava pelas antigas rotas terrestres - carecia de novos percursos,
e coube aos países com largas costas oceânicas resolver este problema. O surto de

381
John Maynard Keynes (1883 - 1946) foi um economista inglês que fundou a escola heterodoxa econômica
responsável por revisar os postulados teóricos liberais como Smith, Ricardo e Say.

704
exploração dos oceanos não foi obra de outra origem senão do fruto de uma burguesia
ávida por oportunidades de aumentar seus lucros (PRADO JR., 2011, p. 18).
Caio Prado Jr., em sua primeira obra “Evolução Política do Brasil”, de 1933,
retratou a colonização brasileira sob pontos de vistas diferentes dos quais a história
brasileira apresentava tradicionalmente. Para ele, o caráter da nossa formação nacional
nasce no primeiro ato de colonização portuguesa, que reside justamente na forma como
foram distribuídas as terras brasileiras. Pois, a priori, era na vastidão do solo e nas riquezas
de suas superfícies que constituíam a riqueza desta colônia. Sobre isto, disse ele:

A colonização do Brasil constituiu um problema de difícil solução para


Portugal. Com sua população pouco superior a 1 milhão de habitantes
e suas demais conquistas ultramarinas da África e Ásia de que cuidar,
pouco lhe sobrava, em gente e cabedais, para dedicar ao ocasional
achado de Cabral (...) Resolveu-se o problema da colonização com a
criação das capitanias hereditárias (...) Entregando à iniciativa privada a
solução do caso, forrava-se a Coroa portuguesa do ônus, que
dificilmente suportaria, da ocupação efetiva da terra por conta própria
(PRADO JR., 2012, p. 15).

Desde a chegada dos primeiros portugueses ao solo brasileiro, o objetivo era claro:
extrair riquezas daqui para gerar riqueza ali. Os exploradores de Portugal vieram ao Brasil
com o intuito de encontrar produtos que pudessem ser comercializados na Europa. Desta
maneira, o objetivo era enviar todo produto extraído nas empresas aqui estabelecidas ao
continente europeu. Assim se configurou duas das características mais intrínsecas da
formação nacional sob a ótica caiopradiana: a concentração de terra em mãos de poucos
fidalgos (primeiros latifúndios brasileiros) e o fornecimento de matérias-primas ao
comércio internacional.
Para a agricultura em solos brasileiros se tornar lucrativa, o explorador português
não poderia plantar e colher pequenas quantidades de matéria-prima. Devido ao alto custo
de sua instalação em continente tão distante, manutenção destas instalações somada ao
gasto de envio dos produtos aqui produzidos para a Europa, a quantidade de matéria-prima
deveria ser imensa. A solução deste problema foi a monocultura em larga escala.
Para completar os elementos que formarão a estrutura da questão nacional em Caio
Prado Jr., temos que dar destaque ao “produto” que possibilitou todo o desenvolvimento
da nossa formação nacional: o escravo.
Com base na grande propriedade privada rural, uma produção quase em sua
totalidade voltada para o comércio europeu, a monocultura em larga escala e o escravo, o

705
arcabouço da formação nacional estava montado (PRADO JR., 2011, p. 25). Portanto, para
Caio Prado Jr., estes são os fundamentos da questão nacional que constavam no cerne de
seu principal conceito, o “sentido da colonização”.
Com uma formação econômica totalmente voltada para o comércio internacional,
o Brasil não teve “tempo” para se desenvolver internamente e o modelo que se deu a
formação nacional brasileira impôs ao país um déficit de distribuição de energia, precário
mercado consumidor interno, declínio constante do câmbio, deficiência no
desenvolvimento de novas técnicas/tecnologias de produção, debilidade no transporte de
mercadoria etc. Mesmo com o pouco desenvolvimento de algumas atividades industriais
após a I Guerra Mundial, o Brasil continuou servindo como fonte de produtos primários -
e alvo de especulação financeira - do mercado internacional. Dessa forma, quando Caio
Prado Jr. começou a analisar a formação nacional brasileira, durante a década de 1930, ele
identificou que o país continuava alternando poucos momentos de prosperidade, seguido
por momentos de estagnação e decadência de acordo com os acontecimentos
internacionais (PRADO JR., 2012, p. 288).
É sob esta perspectiva que Caio Prado Jr. nos apresenta, em seus escritos, a
formação nacional brasileira. Todo o desenvolvimento econômico, social, político e
cultural brasileiro decorreu de sua formação em torno da grande propriedade privada,
monocultura em larga escala, fornecimento de produtos primários para o mercado
internacional e da mão de obra escrava. Para Caio Prado Jr. qualquer elemento que fuja
deste quadro de formação nacional faz parte de questões de segunda importância.

RUY MAURO MARINI E A FORMAÇÃO NACIONAL PAUTADA PELA


SUPEREXPLORAÇÃO DO TRABALHO

Ruy Mauro Marini382 é um dos mais consagrados nomes da interpretação latino


americana fora do Brasil. Isto se deve ao momento em que esse autor inicia sua formação
acadêmica e de sua militância política. Conforme veremos mais a frente, este é dos grandes
hiatos que o separa de Caio Prado Jr., ou seja, a conjuntura e o tempo histórico que Marini
vai escrever e militar politicamente pode ser uma das principais categorias de diferenças
que vamos encontrar entre as obras destes dois autores.
Marini era mineiro de nascença, mas - diferentemente de Caio Prado Jr. que fez
toda sua produção intelectual e política no Estado de São Paulo, apesar de ter feito turismo

382
David Ricardo foi um dos fundadores, junto com Adam Smith, da escola clássica inglesa da economia
política.

706
por quase todo o Brasil - foi um cidadão que percorreu vários Estados brasileiros ou como
estudante, militante ou como acadêmico.
Em 1953, Marini se mudou para o Rio de Janeiro e ingressou na Faculdade de
Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vale salientar que o ano em que o
autor começa seus estudos acadêmicos é um período muito próximo ao da criação da
Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), em 1949 com o argentino
Raul Prebisch. Este adendo de contexto temporal se faz importante, pois veremos adiante
como as teses cepalinas influenciaram o pensamento de Marini.
Após desistir do curso de Direito e ingressar no curso de Administração Pública,
Marini começou a tomar seus primeiros contatos com a política e com o movimento
operário. Em 1963, o antropólogo Darcy Ribeiro convidou Marini a ingressar como
docente na Universidade Federal de Brasília e, neste momento, o autor conhece os
professores Theotonio dos Santos e Vânia Bambirra.
Uma das primeiras atividades que Marini realizou na Universidade Federal de
Brasília foi formar um grupo de estudo sobre “O Capital”, de Karl Marx, junto com os
professores que havia recém conhecido. O principal resultado deste grupo de estudo é que
estes professores criaram uma nova abordagem para a interpretação do Brasil e da América
Latina.
Segundo Theotonio dos Santos (2015, p. 25): “A Teoria da Dependência, que
surgiu na América Latina ns anos 1960, tentava explicar as novas características do
desenvolvimento socioeconômico da região, iniciado de fato entre 1930-1945”.
Não nos caberá neste espaço esmiuçar as diferenças entre as tantas Teorias da
Dependência que surgiram pós 1960. O importante é sabermos que Marini fez parte do
grupo que teorizou sobre o desenvolvimento do Brasil e América Latina sob um ponto de
vista marxista que explicaremos mais a frente. As categorias e concepções que este grupo
de professores elaborou ficaram conhecidas como Teoria Marxista da Dependência.
Marini trabalhou na Universidade Federal de Brasília por menos de dois anos.
Após o Golpe Militar, ocorrido em 1964, Marini se exilou no México de 1965 até 1971,
quando mudou-se para o Chile. Após a morte do presidente chileno, Salvador Allende, e
a tomada do poder pelo militar Augusto Pinochet, Marini voltou ao México a fim de
lecionar na Universidade Nacional Autônoma do México, onde formulou, em 1974, uma
de suas principais obras: “Dialética da Dependência”.
Por sua posição radical quanto o movimento revolucionário brasileiro e pela
apropriação da Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso pelo mainstream

707
acadêmico brasileiro, Marini enfrentou muitas dificuldades de voltar ao Brasil, mesmo
após o processo de Anistia iniciado em 1979. Em 1985 regressa ao país e fica
intercambiando sua produção acadêmica entre o Brasil e México. Esta alternância entre a
academia brasileira e mexicana se deu devido ao fato de que Marini não conseguiu
alcançar, em seu país, o prestígio que conquistara nas universidades mexicanas. Desta
forma, só retornou definitivamente ao Brasil em 1996 para, então, falecer em 1997 aos 65
anos de idade.
Conforme mencionamos acima, quando Marini iniciou seus estudos na Faculdade,
em 1953, as teorias cepalinas estavam no auge de sua teorização e prática. As políticas
desenvolvimentistas, como ficaram conhecidas tais teorias no Brasil, influenciaram todo o
debate acerca da formação, realização e proposição para o futuro da América Latina. As
críticas cepalinas às vantagens comparativas, de David Ricardo383, foram utilizadas também
por Marini em suas análises. Desta forma, para compreender os pressupostos analíticos da
formação nacional brasileira pela ótica mariniana, nós precisaremos realizar uma breve
análise das categorias de interpretação utilizadas pela CEPAL, pois tanto a escola cepalina
quanto a escola da Teoria Marxista da Dependência convergiam sobre diversos aspectos
da estrutura de desenvolvimento da economia latino-americana (MUNIZ, 2012, p. 64).
Em 1948, o Conselho Econômico e Social da ONU criou a Comissão Econômica
para América Latina e Caribe (CEPAL) e convidou o ex-diretor do Banco Central da
Argentina, Raul Prebisch, para atuar como consultor e apresentar um relatório sobre a
conjuntura socioeconômica em que a América Latina estava inserida. Em 1949, Raúl
Prebisch apresentou O Desenvolvimento Econômico da América Latina e Alguns de seus
Principais Problemas (texto que ficou conhecido como Manifesto da Cepal). Com este
documento, o argentino faz uma reavaliação sobre a transferência de diretrizes da
econômica clássica para o continente latino-americano.
Logo no início do Manifesto da Cepal, o argentino vai sinalizar sua orientação
interpretativa: “A realidade está destruindo na América Latina, aquele velho esquema da
divisão internacional do trabalho que, após haver adquirido grande vigor no século XIX,
seguiu prevalecendo, doutrinariamente, até bem pouco tempo” (PREBISCH, 1949, p. 47).
Filiado ao pensamento keynesiano384, Raul Prebisch entende que o progresso nos
países latino-americanos deveria ser pautado por uma reordenação do Estado, alterando o

383
O conceito de mais valia foi formulado por Karl Marx e está subdividida em mais valia absoluta e mais
valia relativa (MARX, 1984, p. 74)
384
PAOLILLO, L. é mestrando em Ciências Sociais pela UNESP/FCLAr, membro do Laboratório de
Política e Governo(UNESP/FCLAr). Agência de fomento: CAPES. Email: lucaspaolillo06@gmail.com.
708
padrão de políticas públicas, orientando-as para a composição de pólos industriais e
investimentos na infraestrutura, objetivando demonstrar que as exportações de matérias-
primas deveriam ser uma extensão do mercado interno, provendo ao mercado
internacional seu excedente produtivo.
A resignificação da condição de pobreza da América Latina, em Raúl Prebisch,
relaciona a localização do continente no ambiente de países periféricos na dinâmica
internacional, ao passo que os países centrais revitalizam um círculo vicioso em que o
movimento de atividades produtivas eterniza a concentração de riquezas na divisão
internacional do trabalho. Competia aos países periféricos a tarefa de se apropriar do
“local” em que estavam inseridos no funcionamento do capitalismo mundial e descobrirem
quais são as particularidades que deveriam ser exploradas com o objetivo de diminuir a
lacuna entre a periferia e os países centrais. A crítica de Prebisch se fundamentou no
deslocamento da ideologia ricardiana385 para contextos em que sua aplicabilidade não se
prova. A hipótese da vantagem comparativa, de David Ricardo, conserva o conceito de que
a especialização na produção de um determinado gênero por um país maximizará - através
do comércio internacional - o bem-estar de sua população.
Ao propagar que os países produtores de bens primários não precisariam se
industrializar, para se beneficiar do progresso tecnológico dos países centrais, a teoria
econômica ortodoxa não levou em consideração as especificidades de demanda e a
realidade histórica de cada região participante do comércio mundial. Neste sentido,
Prebisch escreveu:

A política do desenvolvimento tem que se basear numa interpretação


autêntica da realidade latino-americana. Nas teorias que recebemos e
continuamos a receber dos grandes centros, há com freqüência uma falsa
pretensão de universalidade. Toca-nos, essencialmente, a nós, homens
da periferia, contribuir para corrigir essas teorias e introduzir nelas os
elementos dinâmicos que requerem, para aproximar-se da nossa
realidade (PREBISCH, 1949, p. 21).

O Manifesto da Cepal deixou explícito que há um desenvolvimento desigual nas


relações do capitalismo internacional e, contrariamente do que anunciava a teoria da
vantagem comparativa, o efeito desta divisão internacional do trabalho era uma duradoura
e constante depreciação de preço dos produtos primários em relação aos industriais,

385
Pós-graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo. Bolsista CAPES/CNPQ.
Email: ffilho84.ff@gmail.com

709
fazendo com que os países fornecedores de matérias-primas se conservassem nas
condições de dependência das demandas internacionais dos países centrais, ou seja, as
relações centro-periferia estão centradas na deterioração dos termos de troca e na dinâmica
de seus processos de industrialização.
Para compreendermos a questão nacional em Marini é importante assimilarmos as
noções cepalinas da dicotomia centro-periferia e questão da deterioração dos termos de
troca, no entanto, logo no início do livro “Dialética da Dependência” o autor já demonstra
que partirá de pressupostos diferentes aos utilizados pela CEPAL, diz ele: “os estudiosos
de formação marxista recorrem e se desviam, simultaneamente, a outras perspectivas
metodológicas e teóricas; a consequencia necessária deste procedimento é a falta de rigor
conceitual e metodológico (...) que é a própria negação do marxismo” (MARINI, 1976, p.
8).
Para o autor, o que se caracterizou na formação do Brasil e na América Latina foi
um processo de organização sui generis de um capitalismo que precisa ser estudado em
suas especificidades. Desta forma, Marini começou a nos apresentar suas categorias de
análise:

O que haveria que se dizer é que, ainda quando se trata realmente de


um desenvolvimento insuficiente das relações capitalistas essa noção
refere-se a aspectos de uma realidade que pela sua estrutura global de
funcionamento, não poderá nunca se desenvolverem da mesma forma
como se desenvolveram as economias capitalistas chamadas avançadas.
Eis que, mais do que um pré-capitalismo, o que se tem na América
Latina é um capitalismo sui generis, que só ganha sentido se o
contemplarmos na perspectiva do sistema no seu conjunto, tanto a nível
nacional, como, principalmente, a nível internacional (MARINI, 1976,
p. 8).

Portanto, para Marini, é só a partir do estudo das especificidades da formação e do


caráter secundário que daí se desenvolve, é que poderemos compreender a natureza da
formação dependente do Brasil e da América Latina.
Assim como Caio Prado Jr., Marini chamou a atenção ao fato de que todo o
continente latino americano foi formado com sua economia voltada para à dinâmica da
economia internacional. Enquanto produtora de matérias primas e metais preciosos, a
América Latina foi fundamental no processo de acumulação primitiva de capital dos países
de centro, o que possibilitou todo o acumulo de riqueza necessária para o surgimento de
meios de produção com capacidade produtiva elevada e o desenvolvimento de novas

710
tecnologias (indústria moderna). Ou seja, o surgimento da indústria moderna não teria sido
possível sem o excedente de matérias primas e metais preciosos oriundos da América
Latina.
Os meios de produção capitalistas foram entendidos por Marini como um sistema
mundial hierarquizado, monopólico e desigual que produz e reproduz padrões nacionais
com diferentes formas de acumulação primitiva de capital. Esse conjunto de categorias cria
centros mundiais de acumulação central e regiões que se configuram como dependentes
nesse processo global de transferência de valor que cria um círculo vicioso no antagonismo
centro-preiferia. Ou seja, enquanto os centros tendem a desenvolver sua base tecnológica
e industrial, baseando sua produção na mais valia relativa386, os países dependentes
amparam seus padrões de acumulação na superexploração do trabalho (MARTINS, 2013,
p. 17).
Este é o ponto fundamental da diferença da interpretação sobre a formação das
estruturas da América Latina entre a CEPAL e Marini. Se para a CEPAL há uma
deterioração nos termos de troca dos produtos comercializados entre o centro e a periferia,
para Marini há uma deterioração nos termos de troca no valor trabalho entre o centro e
periferia. Para explicar essa transferência do valor trabalho, o autor se pautou pela análise
marxista do ciclo de realização do capital, isto é, o capital só se realiza plenamente
respeitando o ciclo de produção, circulação e consumo das mercadorias - de onde é
retirado o lucro capitalista produzido pela mais valia na fase de produção. Segundo Marini,
este ciclo não se realiza na América Latina, pois há um descolamento das fases do ciclo de
realização do capital e é isto que torna dependente a estrutura latino americana em relação
aos países desenvolvidos. Ou seja, na periferia, a produção não se destina ao consumo da
própria sociedade produtora, mas sim, ao consumo externo e, portanto, a realização do
lucro no exterior. Em outras palavras, a mais valia é retirada dos países periféricos para que
o lucro seja realizado nos países centrais.
Para Marini, a participação dos países periféricos no comércio internacional
contribuiu para que o cerne da acumulação na economia industrial se deslocasse da
produção de mais valia absoluta para mais valia relativa, enquanto o desenvolvimento das
economias da América Latina a acumulação observada se deu baseada na mais valia
absoluta, ou seja numa mais valia absoluta, ou seja, não há investimento no ganho de
produtividade dos trabalhadores latino americanos com o desenvolvimento de novas

386
Paulo Prado e duas reedições de Geraldo Ferraz (p. XIII, 1972).

711
tecnologias. O ganho de produtividade nos países da periferia está pautado na
superexploração dos trabalhadores (MARINI, 1976, p. 14). Desta forma, o autor
apresentou a concepção de que a exploração do trabalho se faz gradativamente na
reprodução das relações econômicas que permitem o círculo vicioso de reprodução da
pobreza e atraso das nações periféricas, ou seja, para Marini, a expansão do comércio
internacional é a base que sustenta a divisão internacional do trabalho entre o centro e
periferia.
Segundo Marini, as vantagens comparativas de David Ricardo, também criticadas
pela CEPAL, funcionaria a pleno emprego, caso o aumento de produtividade realizada nos
países centrais se traduzissem em uma queda de preços dos produtos industriais aos países
periféricos. No entanto, não é isto que acontece. O aumento de produtividade no valor
trabalho dos países centrais se traduz em aumento da remuneração dos empresários
capitalistas e o que seria a vantagem aos países da periferia, por possuírem produtos de
menor valor agregado, acaba se convertendo num déficit de valor, pois os produtos
industriais tendem a ter uma variação menor de preços do que os preços das matérias
primas.
É justamente por este desnível nos termos de troca de valor, em que o aumento de
produtividade do valor trabalho nos países centrais se convertem em aumento de
remuneração dos capitalistas e não e queda de preços dos produtos com maior valor
agregado, que faz com que os trabalhadores dos países da América Latina precisem
compensar com um aumento de produtividade baseada na superexploração de seu
trabalho aumentado sua jornada de trabalho e diminuindo o tempo necessário para a sua
reprodução enquanto trabalhador.

O efeito da troca desigual é - à medida que coloca obstáculos a sua plena


satisfação - o de exacerbar esse afã por lucro e aguçar, portanto, os
métodos de extração do trabalho excedente. Pois bem, os três
mecanismos identificados - a intensificação do trabalho, a prolongação
da jornada de trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário
ao operário para repor sua força de trabalho - configuram um modo de
produção fundado exclusivamente na maior exploração do trabalhador,
e não no desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Isso é
condizente com o baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas
na economia latino-americana, mas também com os tipos de atividades
que ali se realizam. De fato, mais que na indústria fabril, na qual o
aumento de trabalho implica pelo menos um maior gasto de matérias
primas, na indústria extrativa e na agricultura o efeito do aumento do
trabalho sobre os elementos do capital constante são muito menos
sensíveis, sendo possível pela simples ação do homem sobre a natureza,
aumentar a riqueza produzida sem um capital adicional. Entende-se

712
que, nessas circunstâncias, a atividade produtiva baseia-se sobretudo no
uso extensivo e intensivo da força do trabalho: isso permite baixar a
composição-valor do capital, o que, aliado à intensificação do grau de
exploração do trabalho, faz com que se elevem simultaneamente as
taxas de mais valia e lucro (MARINI, 1976, p. 28).

Rui Mauro Marini, por ter seus escritos e reflexões feitos à partir da década de
1960, influenciado pelo surto de industrialização brasileiro na década de 1950 e por
algumas categorias de interpretações cepalinas, conforme vimos acima, também via na
industrialização como solução da formação nacional, porém não numa forma de absorção
de uma indústria de segunda linha ou de tecnologias ultrapassadas, mas sim num
desenvolvimento doméstico das forças produtivas com o desenvolvimento de uma
burguesia nacional capaz de fazer frente ao processo revolucionário brasileiro rumo ao
socialismo.
É sob esta perspectiva, de uma análise mais econômica da composição do valor
trabalho, que Marini apresentou a formação da questão nacional brasileira. Mesmo com
uma análise pautada na conjuntura da América Latina, seus escritos deixavam claro que
suas interpretações valiam tanto para a América de colonização espanhola quanto para a
América de colonização portuguesa. Isso fica claro em diversos momentos quando o autor
trata da diferença entre indústria fabril - típica dos países centrais - e da indústria extrativa -
típica dos países dependentes.

CONCLUSÃO: UMA MESMA MATRIZ TEÓRICA PARA DIFERENTES


MOMENTOS HISTÓRICOS.

Caio Prado Jr. e Rui Mauro Marini foram dois formuladores de conceitos
fundamentais para a compreensão da formação brasileira. Se um formulou, e bem
desenvolveu, o conceito de sentido da colonização o outro também formulou, e bem
argumentou, sobre o conceito de superexploração.
Pretendemos, agora, sintetizar os diagnósticos e prognósticos dos dois autores sobre
a questão nacional a fim de explicitar, de maneira mais objetiva, as conexões, discordâncias
e, possíveis, contradições entre os dois autores.
É sob a perspectiva de tudo o que mostramos até agora que Caio Prado Jr. e Rui
Mauro Marino nos apresentaram, em seus escritos, a (de)formação nacional brasileira. Os
dois autores concordam que todo o desenvolvimento econômico, social, político e cultural
brasileiro decorreu de sua formação em torno da grande propriedade privada,

713
monocultura em larga escala, produção de matérias primas voltadas para o mercado
internacional mais a superexploração do trabalho da mão de obra escrava e do operariado
pós início da industrialização a partir da década de 1930.
Apesar desta concordância inicial sobre o processo de formação nacional, Caio
Prado Jr. e Marini possuíam enfoques diferentes e, portanto, seus prognósticos eram
diferentes.
Desta forma, para Caio Prado Jr., segundo suas categorias de análise que
demonstramos acima, o processo de formação da nação brasileira deveria passar por um
programa revolucionário, que deixaria para trás toda herança colonial da história brasileira.
Este programa estaria pautado, basicamente, por dois pressupostos (KAYSEL, 2011, p.
57):

1. Generalização de direitos sociais e trabalhistas no campo, o que


forçaria a descentralização da propriedade rural completando a
transição para o trabalho livre
2. Consolidação de um mercado interno, incluindo a totalidade dos
trabalhadores rurais, se convertendo no motor do desenvolvimento
nacional e na superação da vulnerabilidade do mercado
internacional.

No entanto, apesar de almejar por uma mudança radical nas relações internas e
externas da sociedade brasileira, Caio Prado Jr. entendeu que não havia condições para
uma ruptura com o modelo político econômico de seu tempo. Era preciso reavaliar quais
as novas tendências que se anunciavam à história brasileira para que se compreendessem
as deformidades nas relações estabelecidas interna e externamente pela sociedade
brasileira a fim de buscar alternativas que visassem o desenvolvimento nacional do país
(TAUIL, 2015, p. 110). Esta, talvez, seja uma das principais contradições entre Caio Prado
Jr. e Marini, pois este pressupunha a idéia de uma burguesia que poderia tomar a frente de
um processo revolucionário e essa discordância entre os dois pensadores gerou uma crítica
de Marini à Caio Prado Jr.
Em 1966, pouco depois do Golpe Militar de 1964, Caio Prado Jr. escreveu:

O termo “revolução” no sentido em que é ordinariamente usado,


“revolução” quer dizer o emprego da força e da violência para a
derrubada de governo e tomada do poder por algum grupo, categoria
social ou outra força qualquer na oposição. “Revolução” tem aí o sentido
que mais apropriadamente caberia ao termo “insurreição”. Mas

714
“revolução” tem também o significado de transformação do regime
político social que pode ser, e em regra tem sido, historicamente
desencadeada ou estimulada por insurreições. Mas que necessariamente
não o é. O significado próprio se concentra na transformação, e não no
processo imediato através de que se realiza.

E continua pouco adiante:

Revolução em seu sentido real e profundo, significa o processo histórico


assinalado por reformas e modificações econômicas, sociais e políticas
sucessivas que, concentradas em um período histórico relativamente
curto, vão dar em transformações estruturais da sociedade e, em especial,
das relações econômicas e do desequilíbrio recíproco das diferentes
classes sociais (...) Ou, mais precisamente, em que as instituições
políticas, econômicas e sociais se remodelam a fim de melhor se
ajustarem e melhor atenderem as necessidades generalizadas que antes
não encontravam devida satisfação (PRADO JR., 1978a, pp. 1-2).

E quanto a isso, Marini escreveu para Caio Prado Jr.:

Preocupado em propor um programa político para a revolução brasileira


e em identificar as forças sociais encarregadas de sua aplicação, Caio
Prado vai se chocar com as suas insuficiências de análise de classe, as
mesmas que o impediram de esclarecer a validade do caráter
democrático-burguês proposto pelo marxismo oficial para a revolução
brasileira.

E mais a frente, continua:

As inconseqüências de Prado Jr. quanto à caracterização da burguesia


brasileira debilitaram outros aspectos da sua análise, notadamente no
que se refere à integração econômica continental. O autor se esquece,
aparentemente, das vinculações que contrastou entre as empresas
nacionais e as empresas imperialistas e se limita a considerar a tendência
à integração regional como um movimento derivado exclusivamente dos
interesses dos grupos estrangeiros que operam na América Latina
(MARINI, 2012, p. 104).

Ou seja, para Caio Prado Jr. a solução da questão nacional estava numa
transformação radical de toda estrutura rural brasileira sem que para isso houvesse algum
tipo de insurreição e/ou ruptura com as relações capitalistas vigente naquele contexto
histórico brasileiro. Para Marini já era possível observar uma burguesia com interesses

715
nacionais que podiam fazer frente aos interesses imperialistas e, assim, encabeçar um
processo revolucionário no país.
Os trechos transcritos acima podem sintetizar nossa conclusão. Em suma:

1. Caio Prado Jr.: tem o auge de sua produção teórica entre as décadas de
1930, 1940 e 1950, anos em que a estrutura social brasileira ainda se
caracterizava por uma predominância pela população rural; seu enfoque no
sentido da colonização é a expressão máxima deste enfoque, pois o autor
concentra suas análises nas heranças colônias brasileiras bem como o
latifúndio, a venda de matérias primas para o exterior e a mão de obra
escrava; não havia uma burguesia nacional capaz de tomar frente no
processo revolucionário socialista no Brasil; sua proposta de superação da
herança colonial estava pautada num incremento do padrão de vida do
trabalhador rural que consequentemente o transformaria em consumidores
em potencial e, assim, incentivaria a produção doméstica destinada a nova
demanda criada.
2. Ruy Mauro Marini: tem o auge de sua produção teórica nas décadas de
1960 e 1970, anos em que a estrutura social brasileira já tinha sido
modificada de forma substantiva e a população urbana havia crescido a um
ritmo inédito até então e, com base nas políticas desenvolvimentistas
influenciadas pela CEPAL, já havia um parque industrial no Brasil; seu
enfoque superexploração do trabalho parte do pressuposto que há um
intercâmbio desigual no valor força trabalho em que a mais valia relativa das
industrias fabris, dos países centrais, não geravam vantagem comparativas
às industrias extrativas, dos países periféricos; ao identificar um parque
industrial no país e uma grande parcela de população urbana, o autor
sugeriu existir uma burguesia urbana capaz de encabeçar o processo
revolucionário brasileiro rumo ao socialismo.

Apesar de os dois autores terem influência marxista em suas teses, o momento


histórico vivido por Caio Prado Jr. e Marini fez com que os dois tivessem bases muito
parecidas para seus diagnósticos, mas com prognósticos muito diferentes da superação e
da forma de direcionar a superação dos problemas encontrados na formação nacional
brasileira.

716
REFERÊNCIAS

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718
SÉRGIO MILLIET E O MODERNISMO: UM RUMO EM DIREÇÃO
ÀS CIÊNCIAS SOCIAIS

Lucas Paolillo BARBOZA387

Resumo: O presente trabalho pretende examinar, sincrônica e diacronicamente, a relação entre a


revisão do modernismo proposta por Sérgio Milliet e a institucionalização das Ciências Sociais no
estado de São Paulo, acontecimentos que são indissociáveis da turbulenta conjuntura histórica e
política que permeou a relação do estado de São Paulo com o resto da república na primeira
metade do século XX.

Palavras-chave: Sérgio Milliet. Modernismo. Ciências Sociais. Pensamento social no Brasil.


Sociologia dos intelectuais.

INTRODUÇÃO

Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) foi um atuante, porém discreto,


intelectual público de seu tempo. A forma como a obra e a trajetória dele foram assimiladas
pela academia fizeram com que fosse reconhecido majoritariamente como um crítico de
arte com raízes fortes no movimento modernista de São Paulo, do qual exerceu
determinada importância e influência por conta de suas experiências no exterior, já que
elas serviam à demanda por renovação contida no movimento. No entanto, Milliet é
dotado de uma produção complexa, cujas atividades com as quais se envolveu em vida
impedem uma perspectiva catalográfica monolítica, caudatária da moderna divisão social
do trabalho intelectual. Esta perspectiva, promotora de uma institucionalização sistemática
do saber, parece ter desvalorizado sua obra, assim como ocorreu a outros homens de
cultura categorizados como “intérpretes” do Brasil, de forma que a recepção de suas
contribuições se tornasse prejudicada com o passar dos anos, sendo legada a uma espécie
de esquecimento.
É muito provável que este processo tenha se dado mais por conta da forma como
ele foi assimilado enquanto objeto de pesquisa, através de recortes determinados que
consolidaram leituras focalizadas em determinadas expressividades, do que por problemas

387
Gilberto Freyre dedica sua obra também para compreender a sexualidade da sinhá, ao olhar as relações
de sadismo e histeria na busca de fatores que levam senhoras a praticar atos violentos. Sobre o sadismo na
qual ele chama de “rancor sexual” em que desconta o ciúme do marido nas mucamas praticando nelas atos
violentos, como arrancar os olhos e servir em compoteiras, queimar partes dos seus corpos ou vendê-las para
velhos libertinos. O autor conclui que a histeria sádica das sinhás se dá obviamente pelo ciúme e acrescenta
em como estas são vistas pelos homens brancos – parte de acordo num casamento, fazendo com que estas
ainda na adolescência assumem compromissos e famílias 719 sem nunca ser desejada pelos seus maridos ou
outros homens, e que aos trinta anos chega a ser considerada velhas.
de ordem descritiva dos autores que o tomam como objeto, que costumam salientar sua
versatilidade. Como não são muitos os estudos que o abordam, esse processo pode ter feito
com que ficassem latentes perspectivas outras de sua obra, ainda não exploradas
devidamente, capazes de aferir suas contribuições com justiça a sua trajetória pessoal.
Soma-se a isso outro problema de ordem receptiva, já que a maioria dos seus livros não
tiveram novas prensagens ou mesmo uma devida assimilação, enquanto unidade, pela
crítica da comunidade acadêmica de forma minuciosa ou exclusiva. Exceção à regra são os
seus Diários Críticos (1944-1959) que, além de possuírem novas prensagens, se tornaram
referência para a compreensão e a análise da recepção de outros autores na primeira
metade do século XX, ainda que a perspectiva categorizada como “impressionista” de seus
escritos, método este na verdade inspirado em Montaigne, ofereça uma perspectiva para
que alguns pesquisadores os cataloguem como datados.
Além de tais atividades, vinculadas à crítica ou ao movimento modernista, sua
trajetória foi composta por outros eixos de atuação, como sua produção poética; ou a
confecção de artes plásticas; o engajamento público e partidário; a confecção de traduções;
a produção de textos relativos ao pensamento social e às ciências sociais; a prática docente
no ensino superior; e também a institucionalização e a administração de atividades voltadas
ao setor público (GONÇALVES, 1992).
Dito isso, o presente trabalho, que é parte de uma pesquisa mais abrangente sobre
o autor, pretende focar-se, de forma sincrônica e diacrônica, numa articulação entre a
demanda por renovações no pensamento expressa pelo modernismo, cuja revisão se fazia
imprescindível para Sérgio Milliet, e o desenvolvimento e a institucionalização das Ciências
Sociais em São Paulo, que foram vistas por ele, em um determinado momento, como
ferramentas adequadas para a revisão do movimento e para a realização de suas demandas.
Este recorte, que envolve sua relação com a política partidária e a institucionalização de
órgãos públicos, ainda não foi devidamente estudada de forma exclusiva pela produção
precedente.
Para que tais nexos sejam sugeridos e articulados, faz-se necessário compreender,
antes, as vicissitudes históricas, políticas e sociais dos conflitos e das transformações
públicas que marcaram o final da Primeira República no Brasil frente às demandas de
renovação e unificação nacional, as quais foram expressas, na prática, pelos atores e pela
conjuntura dos eventos notadamente conhecidos como a Revolução de 1930 e a Revolução
de 1932. Estes acontecimentos refletem uma tensão específica entre os interesses das elites

720
que se situam em torno do estado de São Paulo com os interesses dispostos pelo resto do
país.
Tendo em vista essa finalidade, o presente trabalho será separado em quatro eixos:
1) a apresentação das demandas por renovação e modernização que levaram a Primeira
República ao fim, suas relações com São Paulo e com a Semana de Arte Moderna; 2) a
apresentação do Partido Democrático, órgão de representação de classe que concatenou a
energia de setores descontentes da elite paulista e dos anseios modernistas em direção a
um objetivo comum; 3) a apresentação da dinâmica própria entre os modernistas e a elite
paulista, tendo em vista seus interesses e particularidades, e o papel desempenhado por
Sergio Milliet nessa relação; 4) a apresentação da especificidade contida na concepção de
Sérgio Milliet sobre as insuficiências do modernismo, tendo em vista um projeto possível
de cultura capaz de oferecer um caminho para superá-las, o que envolveria a promoção do
ensino superior e em especial das Ciências Sociais.

CONTEXTOS MODERNOS DE RENOVAÇÃO: NOVAS DEMANDAS


ESTÉTICAS, ECONÔMICAS E POLÍTICAS

O pensamento político e social, ou a ausência dele, que levou à constituição do


Brasil moderno, foi majoritariamente marcado pelo signo do atraso, dado o caráter
autoritário e refratário ao desenvolvimento das garantias individuais presentes
historicamente na estrutura da sociedade brasileira. Este caráter, que exprime um déficit
da experiência nacional com o ideário do liberalismo clássico, legou à formação da cultura
política nacional desafios no seu processo de modernização. Nos debates públicos do
período constituinte da modernidade no Brasil, isto é, entre o final do século XIX e o
início do século XX, exemplos dessa perspectiva em disputa estão presentes nas contendas
entre os reformistas liberais e os tradicionalistas, ao abordarem questões como a
permanência da Monarquia ou a constituição da República; a necessidade ou não de se
instituir o abolicionismo; ou também nas proposições acerca dos possíveis rumos
econômicos da ex-colônia a serem trilhados na administração pública. A aparente
simplicidade com a qual a palavra “atraso” foi invocada, no entanto, esconde uma relação
complexa de processos históricos nos quais o sentido geral desta proposição revela a
fragilidade de constituição do processo de encarar as especificidades da formação nacional
que, à época, foram reconhecidas por uma parcela das elites letradas capazes de perceber
esse descompasso, cujo grande relógio de ponto, a servir de referência para elas, foi dado

721
em comparação às grandes potências civilizatórias do continente Europeu (SCHWARZ,
1992).
Dito isso, evidencia-se a importância do precedente proporcionado pela Semana
de Arte Moderna de 1922 no pensamento político e social do país, cuja realização só foi
possível devido ao patrocínio de parte das elites ilustradas locais, em especial de Paulo
Prado (GONÇALVES, 2012). Os marcos do evento podem ser compreendidos como uma
forma de articulação e proposição de um pensamento moderno capaz de expressar um
ímpeto de renovação, ou mesmo uma denúncia dessa necessidade, frente aos costumes das
elites locais, notadamente em São Paulo, com o objetivo de que elas se ativessem às
especificidades próprias ao seu contexto e à sua constituição. Assim, o movimento pode
ser compreendido como expressivo e expressão da pavimentação de um perfil de ruptura
com o caminho já traçado pelos intelectuais abolicionistas e pelos “anatolianos”, orgânicos
a uma formação em geral mais voltada para a Europa, de forma a compor, como novo eixo
de pensamento, problemas relativos à nacionalidade e à cultura nacional (LAHUERTA,
2014).
Como a história demonstra, a Semana de Arte Moderna foi apenas um dos
acontecimentos que expressaram o surgimento de um desgaste do modelo promovido pela
Primeira República em 1922, ano paradigmático para a ruptura da ordem social e política
vigente. Além dela, fica patente a fundação, neste ano, do Partido Comunista do Brasil,
formado por Astrojildo Pereira e outros em Niterói no Rio de Janeiro, que se impôs como
um marco da tentativa pioneira de fundação de um partido de pretensões nacionais no
Brasil. Igualmente, o surgimento dos movimentos tenentistas que, iniciados pelo levante
do Forte de Copacabana, sinalizaram os anseios de representação das classes médias na
política e a sua bandeira de moralização, a qual foi uma forte demonstração da necessidade
de renovação política (ibid.).
Tais manifestações, responsáveis por demonstrarem o esgotamento da Primeira
República, dirigiam-se contra a ordem promovida pela oligarquia agroexportadora que, até
a década de vinte do novo século, havia promovido um esquema de alternância entre as
elites oligárquicas de Minas Gerais, representadas pelo Partido Republicano Mineiro, e de
São Paulo, representadas pelo Partido Republicano Paulista, que ditavam a tônica do que
seria a política nacional, sem haver uma oposição expressiva capaz de disputar as urnas e
o controle econômico da máquina pública. E, mesmo que ela houvesse, os vícios do
sistema eleitoral, resultantes do voto de cabresto e das constantes fraudes nas contagens de
votos, garantiam virtualmente a vitória para as frações oligárquicas apossadas do poder.

722
Essa perspectiva, caudatária do atraso, se dava ao mesmo tempo em que a bonança dos
ciclos do café estimulou um ritmo de modernização que vinha ao cabo da industrialização,
o que, aos poucos, ia rompendo com os sustentáculos que garantiam a própria ordem
oligárquica. Com o crescimento das cidades, o aumento demográfico e as novas
instituições, iniciava-se esse novo movimento que tornava obsoleta a organização pessoal,
pautada pelos acordos entre setores da mesma elite, a uma impessoalidade, consonante ao
surgimento e articulação política da moderna sociedade de classes (BARRIGUELLI, 1986;
BORGES, 1979).
Frente à intransigência fraudulenta dos donos do poder e a ausência de uma
inspiração radicalmente liberal, democrática e nacional nas suas atividades, as contradições
do já antigo novo regime eram promovidas, refletindo-se na incapacidade do Estado de
gerir os interesses gerais, republicanos, dos outros setores sociais sem expressão econômica
relevante na divisão internacional do trabalho no contexto nacional e sem
representatividade no Estado. Nessa época, as classes produtivas não tinham uma
perspectiva unificada de poder, sendo reféns de projetos atomizados de disputa do Estado
que eram representados por entidades patrimonialistas representantes dos interesses de
suas províncias. Soma-se a isso a perspectiva dos escândalos promovidos pelos seus
opositores, nas comunidades letradas, no que diz respeito à denúncia de suas práticas
questionáveis de manterem-se no poder (ibid.).
É nesse contexto que, em contraponto ao Partido Republicano Paulista, surgem em
São Paulo organizações responsáveis por proporcionar os vínculos aos quais Sérgio Milliet
seria orgânico, de forma a configurar algumas determinações influentes para a sua
concepção e possibilidade de intervenção pública, dada através da promoção do saber
sistematizado e do ensino superior na renovação da cultura local das elites, aos quais seriam
sua reivindicação para uma superação dos entraves encontrados no movimento
modernista. A organização em questão era o Partido Democrático e o grupo em torno do
jornal O Estado de S. Paulo.

O PARTIDO DEMOCRÁTICO E AS ELITES ILUSTRADAS PAULISTAS DA


COMUNHÃO PAULISTA

Ancorado por dissidências ilustradas da oligarquia cafeeira de São Paulo, o


fenômeno que reuniu as dissidências do PRP orbitou em torno do jornal O Estado de S.
Paulo, o qual ancorava uma elite que via a si mesma como ilustrada e irradiadora de sua
ilustração, e do Partido Democrático, que era uma plataforma de oposição liberal às elites

723
paulistas clássicas. Muitos de seus membros se entrecruzavam e estes grupos
assemelharam-se por concatenarem perfis e agenda relativamente comuns, cujos
fundamentos que propiciaram o surgimento dessa organização definem-se por abarcar
características importantes que marcaram profundamente o início do século XX: o período
limítrofe entre o final da belle époque e o início da sociedade de massas; a primeira e a
segunda guerras mundiais; e as mais graves crises que o capitalismo presenciou neste novo
século, expressas pela Revolução Bolchevique de 1917 e pela Crise da bolsa de valores de
1929 (CARDOSO, 1982).
Sabe-se que a institucionalização da imprensa é parte fundamental da constituição
da modernidade e parte igualmente fundamental na constituição de uma circulação da
esfera pública. Assim, distantes dos cargos eletivos do poder, este grupo detinha parte
substantiva da imprensa existente em São Paulo no início do século, com, ao menos, dois
jornais de circulação expressiva para os padrões da época a sua disposição: O Estado de S.
Paulo, voltado a uma perspectiva mais formativa, com interesses políticos menos explícitos,
e o Diário Nacional, voltado para a expressão direta dos dilemas políticos dos agremiados
do Partido Democrático. O “apartidarismo” proclamado pelo primeiro veículo revelava
um certo moralismo aristocrático decorrente do alijamento do poder político, expresso por
uma posição que se colocava “acima” dos interesses panfletários, cujo sentido seria
contribuir para uma missão civilizatória, ilustrada, para além das negociatas imediatistas, de
forma a imprimir e desvendar os rumos para grandes questões do país. A perspectiva
congregada nessa proposta está na raiz do legado posterior desses grupos para a promoção
da Universidade (BORGES, 1979).
Composto majoritariamente pelos altos membros das camadas médias e também
pela oligarquia dissidente, o Partido Democrático afirmou-se como aquele que realmente
seria capaz de constituir o liberalismo no Brasil pela via democrática. Para tanto, eles
levantaram como principal bandeira a promoção da modernização da máquina eleitoral.
Esta perspectiva era necessária para que, antes, eles pudessem assumir posições de
antagonismo, já que, pelo clientelismo e pelo patrimonialismo, estariam condenados a
perder as eleições para o PRP, uma vez que as regras do jogo estavam articuladas de forma
a predefinirem seus vencedores. Assim, assumindo-se como os verdadeiros porta-vozes das
garantias democráticas e liberais na política, o novo partido paulista opunha-se à forma
como se organizava a então atual ordem republicana, através de um argumento moralizante
e modernizante:

724
As bases do programa do partido serão: 1.º) Defender os princípios
democráticos e liberais consagrados na Constituição, tornando uma
realidade o governo do povo pelo povo. 2.º) Opor-se a qualquer revisão
constitucional que implique restrição às garantias e liberdades
individuais. 3.º) Pugnar pela reforma da lei eleitoral, no sentido de
garantir a verdade do voto, reclamando, para isso, o voto secreto
obrigatório e medidas asseguradoras do alistamento, do escrutínio, da
apuração e do reconhecimento. 4.º) Vindicar para a lavoura a influência
a que tem direito, por sua importância, na direção dos negócios públicos.
5.º) Suscitar e defender as medidas que interessem à questão social e,
particularmente, ao bem-estar das classes trabalhadoras
(BARRIGUELLI, 1986, p. 102).

Em um primeiro momento, enquanto o PRP ainda figurava como situação, os


membros do Partido Democrático aliaram-se com os insurgentes gaúchos e os tenentes em
prol das reformas que intentavam capitanear. Em 1927, foi ensaiado um movimento de
aliança nacional – ou seria federalista? – ao aliarem-se, sobretudo, às dissidências gaúchas.
Com isso, fundaram o Partido Democrático Nacional que também tinha uma organização
expressiva para além do Rio Grande do Sul e de São Paulo na Capital e em pequenas bases
no Nordeste. No entanto, a perspectiva liberal e conciliatória do partido, cuja propulsão
moderna era dependente da elite agroexportadora, não poderia se encaixar, neste primeiro
momento, ao autoritarismo tenentista e aos interesses econômicos regionais voltados ao
mercado interno. Sendo assim, com essa aliança decorrente destas vicissitudes, o partido
pretendia alcançar postos de destaque na política e assumir-se, com a queda do perrepismo,
como a verdadeira agremiação liberal de São Paulo (BARRIGUELLI, 1986; BORGES,
1979; CARDOSO, 1982).
Com a Revolução de 1930, a qual contou com o apoio do PD e dos antigos oligarcas
do Partido Republicano Mineiro, o Governo Provisório frustrou as perspectivas diretivas
da elite paulista ao nomear o tenente João Alberto para ser o interventor federal de São
Paulo, o que desencadeou uma crise política entre as oligarquias paulistas e o novo poder
federal. Quando o PD se viu alijado do poder, o partido muda o eixo de sua atuação,
aliando-se aos seus antigos adversários do PRP. Desta forma, ao isolar politicamente os
interesses da elite oligárquica ilustrada, Vargas acaba por unificar a burguesia agrária
cindida de São Paulo, a qual articulou-se na Frente Única Paulista e a Revolução de 1932:

(...) A Revolução de 32 assume o significado da recuperação dos


“verdadeiros ideais” democráticos da Revolução de 30, apesar desta
possibilidade ter sido aberta pela situação de compromisso com a
ditadura. Isto porque o compromisso é elaborado ideologicamente

725
como a vitória das campanhas do jornal pela “regeneração dos costumes
políticos da nacionalidade” e “efetiva instalação da democracia no Brasil
(significado que atribui à Revolução de 30) (CARDOSO, 1982, p. 155).

Diante do contrassenso presente na aliança com os seus antigos opositores, o grupo


em torno do Partido Democrático proclama-se coerente, já que o teria feito como
consequência de sua luta pela democracia, uma vez que consideravam o Governo
Provisório uma espécie de ditadura que frustrara seus planos de modernização. Frente às
dificuldades em costurar um acordo em torno dos interventores federais indicados para
São Paulo e levando-se em conta o clima de tensão social que, desde o tenentismo, orbitava
nas tentativas de consolidação do poder, o objetivo das tensões armadas da guerra civil fez
com que São Paulo pudesse voltar a ter parte de seus interesses representados na máquina
política. Além disso, a argumentação moralizante em torno da modernização, antes usada
contra o PRP, era agora mobilizada contra Vargas. Com isso, as bandeiras em torno de
uma regulamentação da situação política nacional e da necessidade em se promover uma
reforma política eram empunhadas pela oposição.
Com a derrota da insurgência paulista de 1932 e com o firmamento, em 1934, do
Governo Constitucional, cria-se, apesar dos traumas, uma possibilidade de acordo entre as
forças em torno do governo e da elite paulista, que conseguira chegar ao governo da região
São Paulo com a nomeação do interventor Armando de Salles Oliveira, um dos políticos
vinculados ao PD e um dos donos d’O Estado. Iniciou-se, em decorrência desse processo,
o período mais importante para o grupo reunido em torno do Partido Democrático e do
jornal O Estado de S. Paulo, que garantiu as bases para que pudesse ser realizada a revisão
do modernismo.

OS MODERNISTAS E O PARTIDO DEMOCRÁTICO

O desejo em direção à renovação anunciado pelo movimento modernista não


tardou a ser aproximado formalmente dos projetos políticos das elites ilustradas de São
Paulo. Miceli (1979), ao analisar o cenário da intelectualidade brasileira entre os anos vinte
e quarenta, revela o vínculo de dependência formado entre determinada parcela da
intelectualidade paulistana e as elites ilustradas, seja através de vinculações partidárias ou,
o que era mais raro naquele momento, como profissionais liberais. O argumento do autor
compreende que a possibilidade de atuação profissional desses atores se dava através de
“relações sociais” sujeitas às “demandas privadas” das classes dominantes. Essa hipótese

726
fornece elementos para que sejam compreendidos os vínculos que erigiram a Semana de
Arte Moderna e também o recorrente ingresso dos homens de letras na imprensa ou em
partidos na Primeira República.
Sérgio Milliet tornou-se em 1925 gerente do Diário Nacional, canal oficial do
Partido Democrático, ao qual havia se filiado e, em 1938, iniciou seu laço profissional
regular com o jornal O Estado de S. Paulo, do qual foi cronista até a sua morte em 1966,
tendo chegado a exercer cargos diretivos. O vínculo que ele cultivou, através de tais jornais,
com a elite ilustrada certamente foi favorecido na medida em que ele possuía uma relação
estreita, de ordem familiar, com Paulo Duarte, um influente articulador político do partido,
uma vez que se casou com a sua irmã. O relacionamento entre os dois é chave para
compreender a mobilidade social e os postos que Sérgio Milliet alcançaria ao longo de sua
história. É possível afirmar que a maioria das indicações profissionais relevantes de sua
biografia perpassassem esse “apadrinhamento” de Paulo Duarte. Mesmo o relacionamento
de Sérgio com os oligarcas liberais de São Paulo, como Júlio de Mesquita Filho, a quem
chamavam de Julinho, Fábio Prado e Armando de Salles Oliveira certamente provinham
do vínculo ativo de Paulo Duarte com o Partido Democrático (CARDOSO, 1982;
DUARTE, 1982; GONÇALVES, 1992).
No entanto, se Paulo Duarte serviu ao Sérgio Milliet, o contrário também foi
verdadeiro. Além de garantir-lhe contatos na Europa durante o seu exílio, motivado pelas
vicissitudes advindas da Revolução de 1932, o vínculo entre ambos deve ter servido para
que ele fosse um dos principais articuladores entre os quadros do partido e os intelectuais
da Semana de Arte Moderna. Este vínculo canalizou as ânsias mudancistas de 1922 ao
Partido Democrático ao mesmo tempo em que garantiu ao partido o prestígio intelectual
que tais personalidades trariam. Resultados mais concretos dessa aproximação podem ser
contemplados posteriormente durante a criação e gestão do Departamento de Cultura do
Município de São Paulo (1935), quando, respaldados pelo apoio político advindo da
comunhão paulista, os modernistas puderam aventurar-se com projetos relacionados à
execução de políticas públicas.
Ademais, é a partir dos vínculos criados por dentro do Partido Democrático, muito
embora nesse momento ele já estivesse extinto, entre os estrategistas políticos, os oligarcas
e os modernistas que virá a orientação para a crítica e a revisão do movimento insurgente
paulista contra a Revolução de 1930. De acordo com Sérgio Milliet, a consequência da
derrota sofrida na Revolução de 1932 foi paradigmática, já que ela “abriu os olhos de todos
revelando a nossa carência terrível de homens” (MILLIET, 1944, p. 241). Ou seja, com as

727
decepções de 1930 e 32, os setores ligados às elites paulistas ilustradas perceberam que a
mudança da administração política, em si, não constituía elementos suficientes para a
renovação que desejavam. Para que tais mudanças pudessem ser empreendidas, seria
necessário compreender os problemas e as especificidades locais, o que o modernismo já
havia alertado, e reforma-los através de uma nova cultura que imprimisse essa diretriz,
rascunhada pelo partido. Assim, este projeto de cultura, que deveria ser primeiro
promovido no estado de São Paulo, serviria de diretriz para uma política cultural no âmbito
nacional (BARBATO JUNIOR, 2004).
Com o objetivo de sanar essa lacuna, a aliança entre os intelectuais e as elites liberais
rumaria em direção às estratégias formativas, o que acarretou na criação e na direção de
três grandes projetos: a Escola Livre de Sociologia e Política (1933), a Universidade de São
Paulo (1934) e o Departamento de Cultura do Município (1935). Sérgio Milliet foi
elemento ativo nessas três empreitadas, atuado na primeira como professor no curso de
Introdução à Sociologia e tendo ocupado diversos cargos na sua administração como
tesoureiro e secretário; tendo sido secretário geral na segunda; e tendo exercido grande
influência na terceira, como chefe do setor de Divisão de Documentação Histórica e Social.
O desenrolar dessa perspectiva, inscrita em um projeto político claro que contava com a
emergência de Armando de Salles Oliveira à presidência da República através das eleições
de 1938 para se realizar completamente, abortadas devido ao golpe do Estado Novo em
1937, constituiu e ofereceu elementos essenciais que embasaram a necessária revisão do
modernismo (LAHUERTA, 2014).

A REVISÃO DO MODERNISMO DE SÉRGIO MILLIET

Com a proclamação do Estado Novo, novos interventores foram nomeados para


governarem os estados, o que acarretou na anulação de grande parte das conquistas
promovidas pela oligarquia paulista em 1932. Ao mesmo tempo, os partidos foram extintos
e o parlamento foi fechado, além de políticos e civis serem perseguidos. Mário de Andrade,
então diretor do Departamento de Cultura, é demitido do seu cargo e parte para o Rio de
Janeiro; Armando de Salles, Júlio de Mesquita Filho e Paulo Duarte são exilados. A
normalização da tonalidade autoritária de tais atitudes era facilitada pela conjuntura
internacional antecedente à Segunda Guerra que via figurar no poder chefes de Estado
totalitários como Hitler, Salazar e Mussolini. Sérgio, que não havia sido afastado do
Departamento de Cultura, tomou a decisão de continuar na instituição. De lá, presenciou

728
a paulatina diminuição do repasse de verbas promovido pelos novos governos do
interventor Adhemar de Barros e do prefeito Prestes Maia (DUARTE, 1982).
Anos depois, em um cenário no qual o Brasil e o mundo padeciam reféns do
autoritarismo ou da barbárie totalitária, comemorava-se em São Paulo os vinte anos da
Semana de Arte Moderna poucos meses antes da entrada do Brasil na Segunda Guerra
Mundial. A ocasião criou um clima propenso para que fossem feitos os balanços sobre o
impacto do evento na vida brasileira. Mário de Andrade que à época estava fisicamente
doente, encontrava-se propenso ao pessimismo. Durante sua conferência sobre o
movimento no Itamaraty (1942), ele fez uma revisão radical da atividade intelectual e
política da sua geração, identificando como o maior problema do modernismo a falta de
abordagem das questões sociais de seu tempo. Nesta crítica, Mário lamentou a
aproximação dos modernistas com a elite paulista. Ao invés disso, propunha outra
abordagem, tendo dito que se arrependia de não ter ido ao encontro das multidões
(LAHUERTA, 2014; MOTA, 1985). Ao prosseguir o depoimento, o autor de Macunaíma
reafirma o caráter crítico de Sérgio Milliet perante aos outros modernistas: “[...] Apenas
Sérgio Milliet punha um certo malestar no incêndio, com a sua serenidade equilibrada...”
(ANDRADE, 1974, p. 238).
Dois anos mais tarde, Milliet publicou suas ponderações acerca dos comentários
de Mário, nas quais comentou as incursões políticas e os projetos institucionais feitos pelos
modernistas com o fim de contrariar a tese de que não teriam se engajado em causas reais
e transformadoras:

(...) Não posso aceitar a generalização do autor de Macunaíma, porque


não faltou no grupo quem tivesse da realidade conhecimento mais
íntimo. Nem tudo era jeunesse dorée na redação da Klaxon onde o poeta
Caligari aparecia faminto, nem no apartamento de Oswald de Andrade
onde se reuniam os esmulambados com Frederico Rangel à frente. Nem
tudo era fácil para o grupo político que sonhava com 24 e já plantava os
alicerces de 30. Não foi a vida folgada, não foi a disponibilidade o erro
de 22: vida folgada e disponibilidade também existiram para inúmeros
mentores da revolução russa. Foi, isso sim, a ausência da universidade.
Não foi o afastamento da realidade, mas o desentendimento dela em
todo o seu complexo (MILLIET, 1981, p. 314-315).

A revisão de Sérgio Milliet opôs-se à de Mário de Andrade ao salientar que o


principal problema daquela geração não estava na aliança com as elites paulistas ilustradas
ou no distanciamento das questões de ordem popular, mas sim na ausência de uma
entidade de cultura formativa capaz de sistematizar o saber e oferecer experiências que os

729
atravessassem, daí uma preocupação com “a mentalidade é que se fazia imprescindível
mudar” (MILLIET, 1944, p. 242). As Ciências Sociais, em especial a Sociologia, foram
eleitas como a ferramenta capaz de proporcionar essa mudança de mentalidades. Por isso,
fazia-se importante a perspectiva da aliança dos modernistas com a elite paulista, uma vez
que ela seria capaz de promover tais transformações, indispensáveis a uma modernização
concreta na sociedade, de forma a elevar o quadro da cultura geral através da formação de
elites ilustradas e profissionais da cultura. Essa estratégia de realização revela uma
perspectiva política e democrática de atuação, pautada em alianças e consensos.
No entanto, essa concepção não é apenas fruto das vicissitudes da conjuntura da
época em São Paulo que ansiava por renovação. Ela também é indissociável da trajetória
de Sérgio Milliet, uma vez que ele reconhecia a importância que ter entrado em contato
com o pensamento social humanista, propagado na Suíça depois da Primeira Guerra
Mundial, e com o curso economia na Universidade de Genebra, que também abrangia
saberes sistematizados relacionados à também outras humanidades, tiveram em sua
formação. Muito embora não fosse um “homem sem profissão” endinheirado, como
Oswald de Andrade, as vicissitudes singulares que o levaram ao exterior fizeram com que
tivesse uma formação distinta de outros intelectuais da sua época, já que havia tomado
contato com conhecimentos de ordem sociológica. A influência em sua formação destes
saberes somados às suas experiências com a contracultura europeia fizeram com que ele
fosse um modernista dotado de uma especificidade singular.
Por conta dessa propriedade, Antonio Candido (1945) afirmou que ele apenas
havia sido bem compreendido na sua geração, composta pelo grupo reunido em torno da
revista Clima, o qual já era fruto do saber sistemático e crítico da Universidade. Ele, e
outros de seus companheiros, viam em Sérgio Milliet uma espécie de antecessor da
reflexão que procuravam proporcionar. Ele, por sua vez, não se furtava a promover uma
interlocução com as perspectivas das novas gerações, de forma a exercer determinada
influência sobre ela (LAHUERTA, 2014). Essa concepção de comportamento e de saber,
relacionado a uma faculdade de mediação cultural (ATIK, 1999; CANDIDO, 1981), fez
com que ele fosse caracterizado pelo Antonio Candido como um “homem-ponte” que
representava um elo entre as duas gerações:

É verdade que temos entre eles um precursor, que é, por isso mesmo,
aquêle de quem mais nos sentimos próximos e que mais próximo está
de nós. Tanto assim que só veio a se realizar e ser plenamente
compreendido na nossa geração. Falo de Sérgio Milliet: da sua

730
inteligência essencialmente analítica, da sua orientação sociológica, dos
estudos sociais que empreendeu. Sérgio Milliet foi, de todos os de Vinte
e Dois, aquêle que mais agudamente representou a crítica e as tendências
de sistematização intelectual. Por isso é como que uma ponte entre eles
e nós. E por isso o respeitamos tanto (CANDIDO, 1945, p. 35-36).

Como ficou patente no depoimento de Mário de Andrade sobre a “serenidade


equilibrada” de Sérgio Milliet, seu comportamento em relação aos outros modernistas
tinha por base mais o critério do que o diletantismo narcisista dos salões. Quando foi
apresentado aos modernistas que compunham o circuito literário paulistano, Sérgio era
saudado como “o supra-sumo da modernidade” (RAMOS, 1968), uma vez que havia
convivido com escritores expressivos radicados na Suíça e também lido o que existia de
mais moderno na literatura europeia de então. Talvez fosse essa a perspectiva, pautada
pelo bovarismo dos salões, que fazia com que Mário de Andrade se arrependesse ao
revisitar a Semana de Arte Moderna. No entanto, ela não sensibilizou Sérgio Milliet que,
anteriormente, já compreendia algumas insuficiências do movimento:

Para mim, além da falta de idéias comuns haveria na nossa geração um


excessivo amor às fórmulas. Ninguém tinha a coragem real de enfrentar
os problemas. Bem sentiam todos que a fórmula existente era fórmula e
era inexpressiva; mas não sabiam todos que os processos modernos,
também se tornariam fórmulas quando todos os adotassem como
padrões (MILLIET, 1944, p. 242).

INDICATIVOS DE CONCLUSÕES

É possível compreender que, ao menos entre os outros modernistas, Sérgio Milliet


esboçou uma revisão singular do modernismo, expressa em sua relação com a estruturação
do ensino superior, tendo em vista a promoção de uma renovação cultural no estado de
São Paulo através do ensino e da pesquisa em humanidades, em especial as Ciências
Sociais. Essa perspectiva é indissociável da demanda por renovações que as elites paulistas
ilustradas buscaram após a derrota manifesta pelos acontecimentos da Revolução de 1932.
Se, por um lado, essa estratégia revelou a submissão dos intentos intelectuais a um projeto
de poder, por outro ela oferece uma possibilidade, ainda que através de meios termos, em
garantir um rumo concreto para concretizá-las, a depender das articulações em torno das
disputas do poder público. Isto expressa, de certa forma, uma forma de pensamento
político inscrito na revisão do movimento modernista.

731
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. O Movimento modernista. In: Aspectos da literatura brasileira.


São Paulo: Martins Editora, 5a ed.,1974, p. 231-255.

ATIK, Maria Luiza. Sérgio Milliet: um mediador cultural. Todas as Letras (São Paulo),
São Paulo, v. 1, n.1, p. 43-52, 1999. (Artigo em periódico digital)

BARBATO JUNIOR, Roberto. Missionários de uma utopia nacional-popular: os


intelectuais e o Departamento de Cultura de São Paulo. São Paulo: Annablume/FAPESP,
2004.

BARRIGUELLI, José Claudio (org.). O pensamento político da classe dominante paulista


1873-1928. São Carlos, Arquivo de História Contemporânea/UFSCAr, 1986.

BORGES, Vavy Pacheco. Getúlio Vargas e a oligarquia paulista: história de uma esperança
e de muitos desenganos através dos jornais da oligarquia, 1926-1932. Editora Brasiliense:
São Paulo, 1979.

CANDIDO, Antonio. Depoimento. In: NEME, Mario (org.). Plataforma de uma geração.
Porto Alegre: Ed. do Globo, 1945, p. 29-40.

CANDIDO, Antonio. Sérgio Milliet, o crítico. In: MILLIET, Sérgio. Diário crítico, vol. I.
São Paulo: Martins/ Edusp, 1981, p. XI-XXX.

CARDOSO, Irene A universidade da comunhão paulista. São Paulo: Cortez, 1982.

DUARTE, Paulo (org.), Mário de Andrade por ele mesmo, 2. ed., São Paulo, Duas
Cidades, 1982.

GONÇALVES, Lisbeth. Sergio Milliet, crítico de arte. São Paulo: EDUSP, 1992.

LAHUERTA, Milton. Elitismo, autonomia, populismo: os intelectuais na transição dos


anos 1940. São Paulo: Andreato Comunicação e Cultura, 2014.

MICELI, Sergio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: DIFEL,
1979.

MILLIET, Sérgio. O meu depoimento. In: CAVALHEIRO, Edgar (org.). Testamento de


uma geração. Porto Alegre: Ed. do Globo, 1944, p. 239-243.

MILLIET, Sérgio. Diário Crítico. vol. 2, São Paulo, Martins, 1981, pg. 314-315.
MOTA, Carlos Guilherme. A ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 5.ed. São Paulo:
Editora Ática, 1985.

RAMOS, Péricles Eugênio. Sérgio Milliet e o Modernismo. Revista do Instituto de Estudos


Brasileiros, São Paulo, n. 5, p. 47-64, dec. 1968.

SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades. Outhwaite, 1996.

732
O PENSAMENTO “SEXUAL” BRASILEIRO: OS CAMINHOS
METODOLÓGICOS DE PRADO E FREYRE NA UTILIZAÇÃO DO
CONCEITO DE SEXUALIDADE EM SUAS OBRAS

Fernando FILHO388

Resumo: A proposta submetida ao evento é um recorte atual da pesquisa de mestrado “Pensamento


Sexual Brasileiro – como a sexualidade interpretou o Brasil nas obras de Paulo Prado e Gilberto
Freyre”. A proposta é discutir as teorias e metodologias presentes nos textos “Retrato do Brasil:
Ensaio sobre a tristeza brasileira” (1928) e “Casa Grande & Senzala: Formação da Família Patriarcal
Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal” (1933), propondo um diálogo entre os
marcadores raça, cultura e sexualidade nos discursos sobre a formação do Brasil. O itinerário
investigativo é similar ao que o antropólogo Roberto Young debate no seu livro “Desejo Colonial”
(2005) em que traça uma genealogia (aparecimento e refutação) do desejo na história do
pensamento racial. Para o autor é um pensamento criado pelas sociedades europeias no bojo das
teorias culturais que se ramifica nas suas colônias, possessões e dominações. Os conceitos de
gênero, raça e classes são fundidos e cruzados dentro de um “desejo colonial” em que fixação
patológica dissimulada pelo hibridismo, miscigenação e sexo transgressor marcam o pensamento
racial e cultural e a formação de distintas sociedades não europeias. Em se tratando das
investigações teóricas dos autores brasileiros, a proposta é destacar o marcador da sexualidade, bem
como desejo e sensualidade na metodologia e compreensão das ideias sobre o Brasil e formação
cultural brasileira imbricados com as teorias raciais e culturais presentes nestas obras. Para tanto,
será necessária uma revisão sobre as influências teóricos e metodológicas principais destes dois
autores, a saber Capistrano de Abreu e Franz Boas.

Palavras–chave: Sexualidade. Raça. Cultura. Metodologias. Interpretações do Brasil.

A proposta deste Resumo faz parte das indagações presente no atual projeto de
pesquisa “O Pensamento Sexual Brasileiro – como a sexualidade interpretou o Brasil nas
obras de Paulo Prado e Gilberto Freyre” na qual pretendo buscar as linhas investigativas e
metodológicas destes autores que tinham como proposta comum fazer uma interpretação
do que seria uma cultura ou caráter comum do Brasil. E identificar o marcador da
sexualidade como um possível recurso que estes interpretes estariam usando para formular
suas teorias. As respectivas obras “Casa Grande & Senzala” (1933) e “Retrato do Brasil –
Ensaio sobre a tristeza brasileira” (1928) são fundamentais para este recorte. E, mais ainda,
talvez uma proporção em pensar os vários Brasis através da sexualidade.
A escolha do marcador da sexualidade se fez a partir da percepção de que várias
obras que se dirigem a uma interpretação do Brasil, tem o tema racial como um dos eixos
principais ao explicar a formação das três raças brasileira (branca, indígena e negra). Em

388
Mestrando em Ciências Sociais pela UNESP/FCLAr, sob orientação do Prof. Dr. Dagoberto Fonseca.
Email: kayona@uol.com.br

733
tese, ao falar de uma formação do povo brasileiro, o contato destas três raças se dá também
pelas relações sexuais ou pelo desejo, e estas podem ser construídas de maneiras
consentidas ou perversas. Desta forma, se pensou em buscar através da historiografia e
sociologia brasileira, autores e autoras que trabalharam o tema da sexualidade ou desejo
como um elemento determinante e auxiliar na compreensão da formação cultural
brasileira, e incluímos aqui, as sexualidades como práticas culturais.
As obras recortadas nos apresentam duas interpretações distintas sobre o papel da
sexualidade na formação da sociedade brasileira, mostrando ideias que estão em diálogo
em posições opostas ou aproximadas. Em seus estudos, Prado quer mostrar que o
processo de mestiçagem que marcaram as sociedades colonial e imperial desenvolveu um
povo melancólico carregado de erotismo e ambição descontrolada, em que faz com que se
formam uma nação fadada ao fracasso. Na interpretação pessimista de Prado, a sexualidade
presente nas três raças fundantes contém características negativas (ingenuidade sensual
indígena, passividade infantil africana e a depravação erótica portuguesa) que
desembocaram num tipo de mestiço triste. A interpretação freyriana sobre a sexualidade
se constroem através da distinção entre raça e cultura, numa perspectiva relativista, em que
se entendia como características naturais de uma raça era nada mais do que produto do
meio cultural em que estas viviam e interagiam. Para Freyre, a construção da sexualidade
brasileira e a contribuição das três raças se faz através de como elas se relacionavam com
os sistemas econômicos, políticos e culturais da colônia.

UM POUCO SOBRE OS AUTORES

Paulista, filho mais velho do Conselheiro Antônio Prado, pertencente a uma família
tradicional de cafeicultores. Paulo Prado se formou na faculdade de Direito de São Paulo,
tendo em seguida conduzido negócios vinculados ao café e nos anos 30, participou do
governo Vargas, saindo logo em seguida por divergências políticas. Fundou a Revista Nova,
sendo redator ao lado de figuras como Monteiro Lobato, Mário de Andrade e Alcântara
Machado. Com uma trajetória, aliada com viagens que faziam constantemente para
Europa, alargando seu pensamento e o espólio cultural, Prado teve incentivo de seu tio
Eduardo Prado e Capistrano de Abreu, ambos historiadores, para escrever assim páginas
que dedicassem a contar uma história sobre São Paulo e o Brasil. De uma herança
tradicionalista e com visão modernista em vários pontos, o autor consegue idealizar a

734
Semana de Arte Moderna, na qual é conhecido pelo seu mecenato. Nas palavras de Mário
de Andrade, uma figura que trazia um caráter tradicional e aventureiro389 (PRADO, 1972)
Pernambucano, nascido em 1900, Gilberto de Melo Freyre, pertencente a ilustre
família deste estado, teve uma educação com professores particulares e colégios
secundários renomados. Se graduou na Universidade de Columbia (Estados Unidos) em
Ciências Liberais. Obteve grau de mestre na mesma universidade em Ciências Políticas,
Jurídicas e Sociais com a dissertação Vida social no Brasil nos meados do século XIX, sob
a orientação de Franz Boas – autor que o influenciou decisivamente na compreensão e
distinção entre raça e cultura e na redefinição e valorização da mestiçagem, importantes e
centrais para a interpretação que Casa Grande & Senzala faz sobre o Brasil. Freyre com
essa obra inaugura uma nova linhagem de pesquisas com rigor e métodos científicos na
compreensão dos fenômenos sociais.

A SEXUALIDADE MELANCÓLICA DE PAULO PRADO

A proposta de uma sexualidade melancólica defendida por Paulo Prado presente


em seu Retrato do Brasil tenta buscar uma interpretação das origens dos problemas do
Brasil em diversos campos (cultural, identitário e político), mostrando que estes se
originariam na época colonial, em que os sentimentos de luxúria e a ambição marcariam o
caráter formativo do brasileiro. Prado se aproxima da perspectiva de Nina Rodrigues, em
que a mistura com as “raças inferiores” acarretaria a decadência da raça branca. Para o
modernista, a mestiçagem é também um problema fundamental na formação brasileira,
porém com a diferença de que as três raças conteriam aspectos negativos que alimentariam
o tipo melancólico brasileiro, identificando uma psyché racial que marcaria a personalidade
racial do brasileiro:

(...) sem outro ideal, nem religioso, nem estético, sem nenhuma
preocupação política, artística, intelectual – criava-se pelo decurso dos
séculos uma raça triste. A melancolia dos abusos venéreos e a melancolia
dos que vivem numa ideia fixa do enriquecimento (...) são vincos fundos
da nossa psyché racial, paixões que não conhecem exceções no limitado
viver do homem, mas aqui se desenvolveram de uma origem patogênica
provocada sem dúvida pela ausência de sentimentos afetivos de ordem
superior (PRADO, [1928], 2006, p. 69-70).

389
Mestrando em antropologia social - PPGAS/UFSCar. FAPESP. E-mail: estevao.bchaves@gmail.com.

735
As pistas para compreensão metodológica de Retrato do Brasil foram lançadas na
sua obra anterior, Paulística (1925). Coletânea de ensaios publicados em vários periódicos
nacionais, em que o autor compõe uma série de interpretações sobre as origens e o caráter
cultural do paulista. Nestes textos, Prado constrói tipificações que constrói uma “raça
paulista” – o mameluco, o bandeirante, o aventureiro. Podemos dizer que o autor utilizará
a mesma estrutura narrativa destas coletâneas para escrever Retrato do Brasil.
Na construção destes textos, Paulo Prado precisa vestir uma roupagem de
historiador ao mesmo tempo em que esta emerge do seu metiê de mecenas e político. Para
isso, sua inspiração vem de Capistrano de Abreu, que o ajudará numa perspectiva histórica,
na qual não se pode compreender a história do Brasil, sem conhecer minuciosamente a
história de cada estado, além de textos, leis, fatos e anedotas que são parcelas que
constituem um todo, e, portanto, o exame analítico destas partes deve ser investigado para
ajudar na compreensão do passado (ibidem, p.3). Ao reconstruir esse passado, Prado
propõem que chegamos nas inspirações das forças vivas, principalmente aquelas que se
perderam e que podem explicar o presente, que em linhas gerais, não corresponderia com
o passado glorioso.
Para reconstrução do passado, o autor tem nitidez que os documentos são escassos
e para cobrir a lacuna cronológica dos acontecimentos, cabe o historiador recorrer a
subjetividade.

A poetização dêsse fatos, na ingenuidade dos cronistas e das lendas, é


que dá à aridez dos arquivos o sangue e a vida necessários à compreensão
da psicologia do passado, que não é somente a narração do que fizeram
os homens de uma época, mas também do que pensavam no momento
em que agiam (ibidem, p.13).

A força dos documentos e da subjetividade é carregada com muita força em Retrato


do Brasil. No último capítulo, Prado confessa que a obra em questão foi feita como se fosse
um quadro impressionista. Ele faz uma analogia entre estes dois tipos de produções, em
que as massas e volumes das cores e linhas de um quadro seriam compativelmente a
composição cronológica histórica factual do livro. Na medida que esta composição vai
desaparecendo na construção deste “quadro”, as emoções, aspectos e representações
mentais dos acontecimentos se sobressaíram e deverão através de um esforço investigativo
atingir a essência das coisas. Desta forma, Prado sintetiza a função do historiador:

736
Considerar a história não como uma ressurreição romântica, nem como
ciência conjetural, à alemã; mas como um conjunto de meras impressões,
procurando no fundo misterioso das forças conscientes ou instintivas, as
influências que dominaram, no correr dos tempos, os indivíduos e a
coletividade. É assim que o quadro – para continuar a imagem sugerida
– insistem em certas manchas, mais luminosas, ou extensas, para tornar
mais parecido o retrato (PRADO, 1972. p. 221).

Paulo Prado acreditava que a imaginação seria importante para a construção dos
fatos dos passados. Esta agiria a partir do espirito humano como importante ferramenta
para fazer os documentos falarem e se ligarem entre si. A imaginação tem a função de
preencher as lacunas e vazios numa cronologia histórica e cabe o historiador esta tarefa.
Essa proposta metodológica é aplicada em seus ensaios, como por exemplo, em O
Patriarca em que ao discorrer sobre a vida de João Ramalho – um dos primeiros homens
a povoar as terras de Piratininga no século XVI - Prado tem consciência que a história deste
fundador é recheada de mistérios e lendas em que até os próprios cronistas não chegam
em um acordo sobre sua chegada no Brasil: naufrago, degredado, judeu, excomungado,
analfabeto ou herói. Desta forma, com a ausência de documentos que comprovam a
verdadeira trajetória de João Ramalho, cabe então, ao historiador, preencher estas lacunas
com imaginação ou entrelaçada com outras narrativas “reais”, e neste caso, Prado
entrelaçou com a história fundadora das cidades de Santo André e São Paulo. O autor se
preocupa com a origem destas cidades, pois, no ensaio Caminho do mar, defende que o
isolamento destas cidades, sendo somente interligada por uma estrada ao litoral trouxe
consequências notáveis para os primeiros habitantes. Ele veste estes primeiros povoadores
num manto de bravura e resistência contra o elemento civilizador e catequese missionária.
Ao traçar a história do estado de São Paulo, Prado traz o modelo explicativo de
Capistrano de Abreu em que os fatos históricos são realocados numa linha com quatro
pontos cardeais. Este esquema de análise se baseia num gráfico com curva senóide em que
percorre diferentes épocas marcando grandeza, decadência e regeneração. Em outras
palavras: ascensão, clímax, decadência e regeneração. O esquema abaixo está ilustrado no
prefácio à segunda edição:

Clímax

Regeneração
A
Ascensão Decadência
interpretação do

737
Brasil proposto em Retrato do Brasil se faz também através dos pontos da linha proposto
por Capistrano. Podemos dizer que, Retrato é um alargamento das ideias do autor que
apontava em Paulística. Da mesma forma que para entender o presente do estado de São
Paulo, o autor precisou recorrer às origens da ocupação e assim delimitou um caráter
étnico paulista, para a compreensão do Brasil, necessitou fazer o mesmo caminho, ou seja,
buscar uma interpretação das origens dos problemas do Brasil em diversos campos
(cultural, identitário e político), em que estes se originariam na época colonial na qual a
luxúria e a ambição presentes no caráter formativo do brasileiro. Estes mesmos elementos
já estariam presentes na explicação sobre a constituição do povo paulista, porém, em
Retrato, adquirem um peso mais negativo.
Aqui podemos destacar que Prado ao defender a tese de “raça paulista” construída
pelo isolamento, traz as teorias de Moritz Wagner que se inspirou em Ratzel, teórico da
Antropogeografia. Prado, considera essa teoria como uma “lei biológica” que seria
fundamental na explicação e constituição étnica do tipo paulista, que se formou através das
novas condições geográficas que estes indivíduos estavam inseridos – o meio ambiente
como formador de uma raça ou etnia. São constituintes da “raça paulista”, o português
propenso a miscigenação, de caráter independente, temperamento rijo e imaginação
ardente; os cristãos novos que chegam para melhorar “as qualidades étnicas” do branco
português – com as virtudes da maleabilidade, tenacidade e vitalidade e preocupação com
enriquecimento; os índios, contribuem com os sentidos apurados e intensos na sua relação
com a natureza. Para Prado, os índios são dotados de uma impassividade e uma fatalidade
nômade e vagabunda, capazes de percorrer longos caminhos, empenhando esforças e
trabalho (PRADO, 1972, p. 28). Do cruzamento do índio nômade com o branco
aventureiro se origina uma “raça paulista”, ou mameluco (forte, rude e frondoso), uma
mestiçagem com características positivas.
Desta forma, o elemento da mestiçagem que foi fundamental e positivo na
formação do povo paulista, aparece como problema na formação do brasileiro. O contato
das três raças brasileiras (branca, indígena e negra) alimentariam o tipo melancólico
brasileiro, identificando uma psyché racial que marcaria a personalidade racial do
brasileiro. Cada uma destas raças, conteriam aspectos negativos, e a estrutura social e
ambiental brasileira incentiva o florescimento destas características. Além de luxúria e
ambição, a sexualidade aparece como elemento indispensável nesta formação:
Dividido em cinco capítulos (A Luxúria, A cobiça, A tristeza, O romantismo e Post-
Scriptum), a obra dá enfoque aos excessos sexuais e ambição desenfreada presentes nos

738
primeiros séculos da formação social brasileira. Estes capítulos obedecem a ordem
proposta pelo gráfico de Capistrano.
No primeiro capítulo, Prado constrói a tese de que o excesso sexual é incitado pelo
clima paradisíaco, a solidão do homem colono e a animalidade sensual da índia e da negra
que estimularia a “superexcitação” erótica do português. Neste capítulo, o autor dá uma
visão heroica para o movimento das “descobertas marítimas”, que ao mesmo tempo que
incutiu o espírito de liberdade nos homens daquela época também alargou as ambições
humanas, atraindo para os novos continentes, europeus em busca de riquezas fáceis. Neste
ensaio, o autor faz suas interpretações em bases das cartas jesuíticas e diários de viajantes,
costurando através da imaginação, os costumes destes primeiros navegantes e habitantes.
Em A cobiça, é mostrado que a ambição desenfreada dos colonos fez com que
estes saíssem em busca de ouros e pedras preciosas pelo interior do Brasil, construindo
laços sociais pautadas na lógica do enriquecimento fácil, subjugação dos corpos e almas dos
índios e negros, através da escravidão, estupros e poligamias. O enriquecimento que seria
o clímax da colônia brasileira, seria também o seu declínio. Neste capitulo, fica evidente
que Prado, através dos motivos que levariam ao clímax e declínio do povo paulista, também
os aplica numa perspectiva macro brasileira.
Os dois capítulos posteriores, “A tristeza” e “O Romantismo” mostram como as
práticas da cobiça e luxuria levaram a um povo acometido pela melancolia e um lirismo
pessimista que não conseguem desenvolver a precoce nação brasileira. Um esgotamento
físico e mental, que gera a incapacidade de construir uma sociedade pautada em valores
que não sejam somente “baixas paixões”. Nestes capítulos, o processo de miscigenação e
as teses antropogeográficas ganham contornos fortes, na qual, a primeira seria um vício
astênico que acentuando o que seria mais de ruim de cada raça geraria uma nação fadada
ao declínio, e a segunda, as condições ambientais, especialmente o clima explicaria o
temperamento de um povo.

No Brasil, o véu da tristeza se estende por todo o país, em todas as


latitudes, apesar do esplendor da Natureza, desde o caboclo, tão
mestiçado de índio da bacia amazônica e dos sertões calcinados do
Nordeste, até a impassibilidade soturna e amuada do Paulista e do
Mineiro. Destacam-se somente nesse fundo grisalha melancolia o
Gaúcho fronteiriço, mais espanholado, com um folclore cavalheiresco
levemente nuançado de saudade que o acompanha nas correrias
revolucionárias – e o Carioca, já produto de cidade grande e marítima,
em contato com o estrangeiro e entregue ao lazzaronismo do ambiente
(ibidem, p. 197).

739
Consciente que as forças construtivas do brasileiro, são imutáveis, a miscigenação e
a psique inspiradas no meio ambiente, Prado nas suas conclusões propõem uma revolução
que poderia apagar todas estas máculas, para desta forma, transformar o aparelho político-
econômico e a essência mental do brasileiro. Somente uma revolução seria capaz de apagar
os efeitos provocados pela miscigenação.
As teses utilizadas por Prado podem ser facilmente refutadas pelas atuais teorias
sociais, mas em se tratando da metodologia por ele elaborada e defendida em Paulística
são largamente aplicadas na construção de Retrato do Brasil: o uso de documentos
históricos, aplicação de diversas teorias – muitas conhecidas no século XIX, no reforço da
utilização da imaginação do historiador. Mesmo o autor trazendo novas visões para as
abordagens raciais, políticas e de povoamento do território brasileiro, podem facilmente
ser colocadas em questões, o próprio uso da imaginação se tornando um elemento de
verdade generalizante e não como mais uma possível interpretação – aqui devemos olhar
em que lugar e momento histórico, Prado constrói, fala e defende uma visão de Brasil,
para que desta maneira, que esta seria mais uma forma de representação de uma história
formativa do povo brasileiro e que as suas abordagens metodológicas não conseguem
preencher lacunas mas deixar de lado um Brasil que é diverso e múltiplo e não um espelho
ampliado da história de São Paulo.

GILBERTO FREYRE E A SEXUALIDADE COMO PRODUTO DE


ESTRUTURAS ECONÔMICOS - SOCIAIS

A segunda tarefa para este trabalho é buscar a base metodológica para explicação
de sexualidade em Casa Grande & Senzala. Diferente de Retrato do Brasil, a obra clássica
tem uma profundidade maior sobre as estruturas sociais, trazendo uma nova interpretação
sobre a formação sociocultural do povo brasileiro, na qual a metodologia se baseia em uma
vasta pesquisa empírica, recusa e debates de outras teses interpretativas e filiação a escola
relativista de Franz Boas.
Influenciado por Franz Boas, Freyre construiu uma tese em que a premissa
metodológica é discutir a formação racial brasileira, separando os conceitos de raça e
cultura como fundamental para afastar as teses eugenistas e deterministas muito em voga
no Brasil da passagem de século. Desta forma, no prefácio da obra, Freyre expõe que:

740
Foi o estudo de Antropologia sob a orientação do professor Boas que
primeiro me revelou o negro e o mulato no seu justo valor – separados
dos traços de raça os efeitos do ambiente da experiência cultural.
Aprendi a considerar fundamental a diferença entre raça e cultura; a
discriminar entre os efeitos de relações puramente genéticas e os de
influências sociais, de herança cultural e de meio. Neste critério de
diferenciação fundamental entre raça e cultura assenta todo o plano deste
ensaio (FREYRE, 1992 p. xlviii).

Mas antes de discutir um pouco sobre o livro trarei um pouco das premissas
metodológicas de Franz Boas, mesmo sendo um autor mais conhecido em suas teses do
que Capistrano de Abreu. Em As limitações do método comparativo, Boas refuta que os
estudos comparativos não são capazes de explicar as complexidades culturais de uma
determinada sociedade. A própria limitação deste método estar em achar que os mesmos
fenômenos sempre levam as mesmas causas – um grande sistema em que a humanidade
se desenvolveu em todos os lugares e as variações que ocorrem neste desenvolvimento não
passam de meros detalhes (BOAS, 2006, p. 32), e que, portanto, as interpretações advindas
deste método de análise são de caráter duvidoso desde que não consiga provas que todos
os fenômenos tenham a mesma origem. Para o autor, os desenvolvimentos históricos das
sociedades percorrem diversos caminhos (ibidem, p. 33) e desta maneira, o objetivo do
antropólogo é “investigar e descobrir os processos pelos quais certos estágios culturais se
desenvolveram” (idem, p. 33) – como foi o desenvolvimento histórico de cada cultura ou
crença. Denominada de método histórico, ele consegue atingir bases solidas e cientificas e
não se limitar a comparar os resultados do desenvolvimento das culturas. A habilidade
consiste em revelar os processos de desenvolvimento em um pequeno espaço geográfico,
e os resultados chegarem a três conclusões: as condições ambientais que criam ou
modificam os elementos culturais; quais os fatores psicológicos que atuam na construção
desta cultura, e por último, os impactos das conexões históricas sobre o desenvolvimento
das culturas (ibidem, p. 34).
Estes pressupostos metodológicos de Franz Boas, são aplicáveis na análise que ele
faz sobre a questão da mistura racial no Estados Unidos. Proferida em 1931, numa
conferência do encontro da Associação Americana para o Desenvolvimento da Ciência,
Raça e Progresso, elucida os problemas da desigualdade entre as raças não são fatores
oriundos da biologia, mas sim de marcadores sociais e econômicos:

Se desejarmos adotar uma atitude sensata, é necessário separar


claramente os aspectos biológicos e psicológicos das implicações sociais

741
e econômicas da questão. Mas ainda, a motivação daquilo que está
acontecendo precisa ser examinada, não do estrito podendo de nossas
condições presentes, mas de um ângulo mais amplo (ibidem, p.67).

Neste trecho fica nítido para Boas a execução do método histórico para
entendimento das raças. Durante o ensaio, ele vai destrinchando a questão anatômica e
fisiológica com o comportamento, pois, o último é marcado por fatores externos do que
por processos orgânicos do corpo humano – para o autor, independente da raça, pessoas
de uma determinada região tende a ter comportamentos semelhantes e as diferenças seriam
marcadas pelas condições sociais que estas raças então inseridas. As diferenças sociais
marcadas por fronteiras raciais estabelecem os conflitos raciais e antipatias entre as raças e
estas não são implantadas pela natureza, mas pelo grupo social na qual os indivíduos vivem.
Como discípulo da antropologia americana de Franz Boas, Freyre consegue em larga
medida trabalhar com os pressupostos metodológicos de seu mestre, em Casa Grande &
Senzala.
Para fazer uma interpretação cultural das relações sociais na formação da sociedade
brasileira, Freyre elege o sistema casa grande e senzala como representativo de um sistema
social, político e moral (familiar e sexual) - a síntese da formação sócio cultural brasileira,
o espaço que une todos num ritmo, numa mesma força (FREYRE, 1992, p. 315), ou seja,
um determinado espaço geográfico, dotados de tipos raciais em papéis sociais. E como
projeto intelectual quer afastar as teses biológicas para explicações culturais e
comportamentais das raças e tipos sociais, portanto para compreensão da formação racial
e cultural da sociedade brasileira é necessário trazer para análise as influências das técnicas
e produção econômica na estrutura social e moral da sociedade (ibidem, p.189) - no caso
a monocultura latifundiária, predominante no período colonial. As relações entre brancos
e as demais raças estão condicionadas por esse tipo de sistema, e não por características
inerentes a cada tipo racial.
Cada capítulo de Casa Grande & Senzala é evidenciado um tipo racial e são
destacados atributos na colaboração de cada um na formação “coletiva” do povo brasileiro,
através das trocas entre as três raças, e na medida que vai se construindo as teses,
desnaturaliza os “comportamentos raciais”.
A mulher índia não é tida como elemento passivo na relação “eram as primeiras a
se entregarem aos brancos, as mais ardentes, indo se esfregar nas pernas desses que
supunham deuses” (ibidem, p. 93). O autor ilustra que os primeiros séculos do Brasil era
um ambiente de intoxicação sexual, “o europeu saltava em terra escorregando em índia

742
nua” (idem. p. 93). O português colabora com o caráter “plastico” adquirido em contatos
anteriores ao “descobrimento” com os povos do norte da África, “sempre pendeu para o
contato vuluptoso com a mulher exótica” (ibidem, p. 189), aquele “que melhor
confraternizou com as raças inferiores” (idem, p.189). Diante deste cenário, as mulheres
índias com toda sua “exuberância sexual” e o português solitário e propenso a devassidão
sexual desembocou na prática de mestiçagem, servindo assim aos propósitos de
povoamento pretendido pela metrópole.
Mas, é sobre o contato entre o negro e o branco português, especificamente dentro
do “mundo” da casa grande, que Freyre traz melhor as contribuições da antropologia de
Boas e parece estar inspirado na leitura de Raça e Progresso, do autor americano.
Diferente, Prado, Freyre coloca o negro na posição do mais fraco sexualmente, e o que se
entendia com uma “raça” sexualmente aflorada, é mais uma das consequências do sistema
escravocrata e o patriarcado poligâmico do português na qual estavam submetidos. Freyre
tem um cuidado metodológico de separar o negro e escravo, em que o segundo não é
condição natural do primeiro:

Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do


brasileiro, é a ação do escravo, e não a do negro per si, que apreciamos
(...) Parece às vezes influência de raça o que é influência pura e simples
do escravo: do sistema social da escravidão. Da capacidade imensa deste
sistema rebaixar moralmente senhores e escravos (...) A escravidão
desenraizou o negro do seu meio social e de família, soltando-o entre
gente estranha e muitas vezes hostil. Dentro de tal ambiente, no contato
de forças tão dissolventes, seria absurdo esperar do escravo outro
comportamento senão imoral, de que tanto o acusam (...) Não há
escravidão sem depravação sexual. É da essência mesma do regime
(Ibidem, p. 315).

Portanto, o regime escravocrata induz a depravação sexual como prática cultural


entre os brancos e negros; a negra que servia de concubinagem para o senhor ou de
iniciadora nas primeiras relações sexuais do senhorzinho; na relação de agressão que a
sinhá tinha em relação as escravas por conta das práticas de concubinagem390ou quando esta
se servia sexualmente do negro escravo. Foram relações em que o consentimento e estupro
viviam numa tensa relação sobre aqueles que viviam no regime escravocrata. Portanto, ao
estudar a sexualidade na obra Casa grande & Senzala ajudará na compreensão de que esta

390
Majoritariamente, fala-se em Inglaterra, França e Estados Unidos, já que estes são os que possuem maior
tradição em pesquisas antropológicas.

743
não era simplesmente uma prática comum, e sim, que ela pode mostrar os meandros nas
relações raciais e as construções de corpo e família na sociedade brasileira.

A SEXUALIDADE BRASILEIRA EM INTERFACE COM OUTRAS CORRENTES

É cada vez mais promissor o diálogo entre o pensamento clássico brasileiro com
outras correntes teóricas canônicas ou não de outros países principalmente numa
perspectiva comparada. Trazer a discussão de uma interpretação da cultura brasileira
através da sexualidade é aproximar com métodos e teorias explicativas de teorias sexuais
na explicação da formação das sociedades e regimes de poder. Desta forma, trago para esta
pesquisa duas obras que podem ajudar nesta compreensão, mas dada profundidade de
cada umas delas ainda estou em processo de entendimento para possíveis diálogos,
afastamentos e rupturas em relação ao objeto principal. A saber História da Sexualidade I
de Michel Foucault e Desejo Colonial de Robert Young.
Em Desejo Colonial o objetivo é traçar uma genealogia (aparecimento e refutação)
do desejo na história do pensamento racial. Pensamento criado pelas sociedades europeias
no bojo das teorias culturais que se ramifica nas suas colônias, possessões e dominações.
Gênero, raça e classes são fundidos e cruzados dentro de um “desejo colonial” em que
fixação patológica dissimulada pelo hibridismo, miscigenação e sexo transgressor marcam
o pensamento racial e cultural e a formação de distintas sociedades não europeias. Durante
toda sua obra, Young constrói a tese de que o desejo e a sexualidade é parte fundante das
teorias raciais e ao citar Hyan, estabelece esta conexão na qual o sexo está no próprio
coração do racismo (HYAN apud YOUNG, 2005, p. 118). Já em História da Sexualidade
– A vontade do saber (1988) Foucault tem como interesse “fazer uma revista” do discurso
sobre o sexo, como eles se sustentam e a “vontade que os conduz” (Foucault, 1988, p. 14),
nas sociedades capitalistas europeias industrializadas.
Portanto é possível através das perspectivas de Young e Foucault fazer um paralelo
com as metodologias de Prado e Freyre e identificar a sexualidade como elemento
constituinte e fundamental na construção e formação social brasileira. Se para Young, a
sexualidade é parte da máquina desejante do colonialismo (Young, 2005, p. 119), portanto,
o objetivo se centra como esta fez parte dos projetos coloniais no Brasil e marcaram
profundamente a sociedade brasileira, e que estaria entrelaçada com as teorias raciais e
culturais defendidas e praticadas em solo brasileiro. Assim, como Foucault, identificar nas

744
obras dos autores brasileiros, como os discursos sobre sexualidade se sustentam em tensão,
rupturas e aproximações nas representações e visões de sociedade.

CONCLUSÕES

Por fim, a “sexualidade melancólica” de Paulo Prado e “sexualidade como


resultado do sistema econômico social da colônia” de Gilberto Freyre são fundamentais
para estes autores servindo para que construam as teses sobre miscigenação e caráter
cultural do povo brasileiro, contribuindo com duas tradições de pensamento que se
convergem em meados da década de 30. Compreender e interpretar estas tradições de
pensamento é mostrar as filiações teóricas destes autores nas ciências antropológica e
sociológica, então nascente no cenário brasileiro, sofrendo interferência das que vinha de
fora e construindo novas teorias sociais que vinha em diálogo com as perspectivas de uma
elite intelectual e política em construir uma identidade brasileira que poderia servir a
distintos projetos políticos. Também ao compreender estas matrizes teóricas é colocar em
evidências os projetos de representação sexual e de gênero que marcam os pensamentos e
práticas nas sociedades brasileiras.

REFERÊNCIAS

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Civilização Brasileira, 1976.

ARAÚJO, Ricardo Benzaquem de. Guerra e Paz: Casa Grande & Senzala e a obra de
Gilberto Freyre nos anos 30. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994.

BOAS, Franz. Antropologia Cultural: textos selecionados, apresentação e trad. Celso de


Castro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

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São Paulo, n. 68, p. 130-139, dez-fev, 2006.

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Thereza Costa Albuquerque e J.A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Edições Graal,
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FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime
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745
___________. Retrato do Brasil: ensaios sobre a tristeza brasileira. Coleção Documentos
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RODRIGUES, Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Rio de


Janeiro: Guanabara, 1894

SCHWARCZ, Lilia; BOTELHO, André. Pensamento Social Brasileiro, um campo vasto


ganhando forma. Lua Nova: Revista de cultura e política. CEDEC: São Paulo, n. 82, p. 11-
16, 2011.

___________. Simpósio: cinco questões sobre o pensamento social brasileiro. Lua Nova:
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___________. Um Enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. São Paulo: Cia das
Letras, 2009

YOUNG, Robert. Desejo Colonial: Hibridismo em Teoria, Cultura e Raça. Tradução:


Sérgio Medeiros. São Paulo: Perspectiva, 2005. – (Estudos, 2016/dirigida por J. Guinsburg.

746
CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENSAMENTO POLÍTICO DE
HANNAH ARENDT E O PENSAR DO NEGRO NO BRASIL

Osvaldo José da SILVA391

Resumo: O trabalho possui a perspectiva de traçar considerações sobre o pensamento político de


Hannah Arendt (1906 – 1975) e o pensar do negro no Brasil compreendido a partir de cientistas
sociais negros brasileiros. A compreensão do pensamento político de Arendt constitui peça-chave
na modernidade para o entendimento da construção do ódio racial. A forma como a autora
descreve a construção do fenômeno totalitário na política, é um viés plural de possibilidades para
a compreensão da gênese do racismo moderno. A liberdade como compreensão política da
experiência humana, inaugurada na dimensão da natalidade, revela, quando posta em cheque
contra a população negra, o grande compromisso da vontade humana instituída nas lutas de
libertação. Por sua vez o reconhecimento do pensar na dimensão afro-brasileira representa um
pressuposto original na construção de valores inerentes à condição humana da representação
política, exercício este de cidadania na busca do consenso quanto à superação do ódio racial
construído, bem como na desconstrução de formas hegemônicas de dominação cultural, política e
econômica da população negra. O fenômeno da escravidão racial contra a população negra africana
e brasileira, que teve como decorrência o preconceito racial contra os negros brasileiros na era
moderna constituiu um sistema de exclusão político, econômico e social contra a população negra,
que só pode ser revertido por meio de ações políticas a partir da identidade negra.

Palavras-chave: Negro. Política. Racismo. Resistência.

INTRODUÇÃO

O racismo pode destruir não só o mundo ocidental, mas toda a civilização


humana. Quando os russos se tornaram eslavos, quando os franceses assumiram
o papel de comandantes da mão de obra negra, quando os ingleses viraram
“homens brancos” do mesmo modo como, durante certo período, todos os
alemães viraram arianos, então essas mudanças significaram o fim do homem
ocidental. Pois, não importa o que digam os cientistas, a raça é do ponto de vista
político, não o começo da humanidade, mas o seu fim, não a origem dos povos,
mas o seu declínio, não o nascimento natural do homem, mas a sua morte
antinatural (ARENDT, 1989, p. 187).

Este artigo pressupõe uma provocação preliminar para uma dissertação de


mestrado em desenvolvimento, examinando o exercício do pensar da cientista política,
Hannah Arendt, comparado com o pensamento político de autores com vertentes do
pensamento negro, dentro os quais se destaca aqui: Clóvis Moura, Abdias Nascimento,
dentre outros a serem citados e referenciados mais adiante na dissertação.

391
O caso pequisado utiliza principalmente a França, a Inglaterra e o Estados Unidos como os países de
“centro”. A dissertação pesquisa o caso brasileiro, mas ele pode ser investigado nos demais países em que a
pesquisa de campo esteve presente.
747
Hannah Arendt (nasceu em 1906, Hannover, Alemanha – faleceu em 1975, Nova
York, Estados Unidos da América) é uma pensadora singular no quadro dos cientistas
políticos do século XX. O seu pensar político pressupõe que o homem comum, na sua
dimensão de mundo comum, percebe a política como uma obrigação incomum. Ao
observar o fenômeno totalitário racista pode-se analisar a estrutura social para indicar que
vivemos em um mundo desordenado quanto às considerações dos valores étnicos negros
retratados como inferiores pelo fator cor da pele ser negra, além disso, a superação do
preconceito racial requer dos homens ações políticas comuns.
A ideia do preconceito racial contra negros no Brasil advém da constatação e da
cristalização do sistema escravista contra a população negra africana, decorrente da
ideologia racial do período moderno, no qual o “Estado” hegemonicamente (Império
Conquistador Português) a e sociedade civil portuguesa desenvolveram o modelo
econômico de exploração do negro africano, traficado para o Brasil.
Ao longo da história econômica, política e social, tipificada em cada período da
história brasileira (Colônia, Império e República) o negro não foi reconhecido como um
cidadão livre e portador de igualdade de direitos, sobretudo o direito a ter direitos.

O IMPERIALISMO E A CONSTRUÇÃO DO RACISMO

A força devastadora do pensamento racista é objeto de estudo de Arendt em


diversas análises. O objeto desta análise é abordar o fundamento do pensamento racista a
partir da obra: Origens do Totalitarismo, especificamente na segunda parte intitulada:
Imperialismo. Para tanto, tem como tarefa elaborar uma análise do método compreensivo
de produção teórica metodológico da cientista política Arendt, que é constituído por
pesquisa de fundamentação bibliográfica, por meio de interpretação da narrativa construída
no texto: Imperialismo que compõe a segunda parte da obra “Origens do Totalitarismo”
da autora.

COMPREENSÃO DA EMANCIPAÇÃO POLÍTICA DA BURGUESIA

O percurso da narrativa compreensiva e do contexto histórico distinto produzido


pelo pensamento político da autora Arendt (1989) mostra que poucas vezes na história da
humanidade o fim de um período pode ser datado com tanta precisão como, no caso, a
era imperialista. Esse período compreendido entre os anos de 1884 a 1914 demarca o

748
término da corrida dos países europeus para a África, bem como o surgimento de
unificação nacional nos países da Europa.
Nesse sentido na primeira parte do segundo capítulo, Imperialismo, Arendt
(Origens do Totalitarismo, 1989) dedica-se a apresentar a estrutura do contexto histórico e
social no qual a emancipação política da classe social burguesa estabelece a formação de
novos atores políticos no cenário do interior da Europa, com proeminência econômica e
sem aspirar, num primeiro momento a proeminência do domínio político, visto que essa
classe social burguesa havia crescido dentro e junto do Estado-nação.
Assim, a consolidação do poder político da burguesia é realizada sem a criação de
um corpo político nas colônias africanas. Essa estratégia favoreceu um sistema econômico
de especulação em detrimento de um sistema de produção capitalista; especulação pautada
pela superprodução nos países imperialistas por excesso de poupança e dinheiro supérfluo.
A constatação irônica de Arendt (1989) é a de que este cenário gerou também homens
supérfluos.
Outro fator importante foi que o acúmulo ilimitado do poder do Estado
imperialista levou ao acúmulo ilimitado de capital, com lucros que qualquer povo jamais
poderia sonhar.

A exportação de dinheiro e o investimento no exterior não constituem,


por si, o imperialismo e não levam necessariamente expansão como
mecanismo político. Ao se contentar em investir “grande parte de sua
propriedade em terras estrangeiras” mesmo que essa tendência fosse
“contra todas as tradições passadas do nacionalismo” os donos do capital
supérfluo apenas confirmavam a sua alienação do corpo nacional, onde,
de qualquer modo, eram parasitas. Só tornaram a fazer parte da vida da
nação quando exigiram que o governo protegesse seus investimentos
(depois que a fase inicial de falcatruas lhes abriu os olhos para o possível
uso da política contra o risco do jogo). Nessa exigência, contudo,
seguiram as tradições estabelecidas da sociedade burguesa de sempre
considerar as instituições políticas exclusivamente como instrumento de
proteção da propriedade individual (ARENDT, 1989, p. 179).

A burguesia converteu força em direito e direito em conveniência, transformou o


comerciante em político, o que seria privado em público, a fraqueza em astúcia. Uma razão
de Estado com a necessidade de dar alguma segurança ao indivíduo conquistador.
Por sua vez, o monopólio da força estatal conformou obedientemente o burguês,
alimentando o poder com mais poder. A estrutura ilimitada do capital remete a estrutura
ilimitada de poder como ideologia do sucesso progressista de emancipação humana, como

749
o anjo da história, acarretando o imperialismo como estabilidade das leis econômicas.
Resta a dimensão sacrossanta do dinheiro e a riqueza do processo de ficar mais rico.

COMPREENSÃO: O PENSAMENTO RACIAL ANTES DO RACISMO

Ao abordar o item dois: O Pensamento Racial Antes do Racismo, na Parte II,


Imperialismo, da obra Origens do Totalitarismo, o foco da compreensão da metodologia
e da distinção Arendtiana é a linguagem por excelência. Não que este aspecto não esteja
contemplado na obra como um todo, ao contrário observa-se na descrição do pensamento
político de Arendt, um cuidado na construção e uso das palavras e conceitos muito
pertinentes a cada autor, fato, fenômeno ou cenário citado. A luz que se evidencia ao trazer
a questão da linguagem para este item, visa tornar explicito o processo de construção do
racismo, expresso por uma linguagem e elaborado por um modo de pensar construído
segundo a ideologia imperialista.
Há que se considerar que uma ideologia só se estabelece se a força extraordinária
de persuasão corresponder às experiências e aos desejos dos atores sociais envolvidos no
contexto político e social. Por vezes, cientistas traindo a ciência, realizaram o papel de
persuadir as massas com linguagem interpretativa segundo códigos específicos de
nomenclaturas criados pelos próprios cientistas, para legitimar o poder de interpretação
quanto ao significado das experiências e vivências das pessoas comuns.
A arma política da ideologia racial possui o caráter de se diferir de simples opinião
por apropriar-se da chave da história. E neste contexto a ideologia interpreta a história
como uma luta econômica de classes, que por sua vez também interpreta a história como
uma luta natural entre raças. A perversidade do racismo não é a de ser também apenas um
fenômeno a-nacional, mas seu uso tende a destruir a estrutura política da própria nação,
pela absorção da forma de pensar, falar e agir do homem moderno.
Ao compreender a insistência de Arendt (1989) em apontar o racismo na
modernidade como consequência da expansão imperialista, tendo como determinante os
países conquistadores europeus apropriando-se das estruturas das nações conquistadas no
continente africano; estrutura-se como resultante deste processo político de força e
violência a ideologia da raça superior colonizadora civilizada e mais adiantada quanto ao
progresso civilizatório, com a incumbência histórica de civilizar e colonizar a raça inferior
de africanos atrasados e primitivos.

750
COMPREENSÃO SOBRE RAÇA E BUROCRACIA

A compreensão do papel fundante do conceito e experiência de raça e da


burocracia na formação imperialista é interpretada por Arendt (1989) no cenário do
continente negro habitado por raça a ser conquistada, a partir do genocídio e extermínio
das tribos hotentotes pelos bôeres, a selvagem matança no Sudeste Africano Alemão, e a
dizimação da população do Congo. Força e violência aplicada por homens supérfluos,
aventureiros, ocos por dentro sem compaixão e sem lei, estabelecendo a corrida do ouro,
consagrando uma verdadeira burocracia do massacre pautada pelo racismo.
O objetivo da saga genocida é incorporar no mundo fantasma do continente
africano; mundo fantasma concebido pelo conquistador como movimento das sombras,
sombras são os habitantes incorpóreos do continente na visão europeia realizada pelos
eventos desencadeados pelos habitantes nativos em África. A conquista dos países
africanos, e dos denominados homens pré-históricos, os rejeitados que habitavam o mundo
selvagem dos negros, que criaram uma contra sociedade, entretanto sendo os únicos que
de fato trabalhavam. O racismo imperialista explora como ideia política os negros
inferiorizados, consolidando o preconceito racial contra o povo negro; assim como a raça
judia religiosa eleita para o mundo das crenças, a raça branca civilizadora é designada para
escravizar os negros.

O florescimento das lendas históricas e políticas terminaram de modo


bastante abrupto após o nascimento do cristianismo. A interpretação
cristã da história, desde os tempos de Adão até o Juízo Final, como uma
estrada única para a redenção e a salvação ofereceu a mais poderosa e
completa exploração lendária do destino humano (ARENDT, 1989, p.
239).

Este fato também é associado ao padrão onírico britânico como matadores de


dragão como identidade colonizadora, padrão este que moldou o homem inglês, desde
Cromer no Egito até Rhodes na África do Sul, para estes a expansão é tudo, no sentido de
transformar as terras conquistadas na África em meios não em fins.
A burocracia foi o mecanismo imperialista de exercício de poder, força, violência
e dominação, enquanto governo de peritos. A execução da política de expansão
imperialista garantiu à burocracia forma de governo por leis e decretos. No fundo, segundo
Arendt (1989) o Grande Jogo da colonização gerou a insignificância de viver sem razão,
como escravizados encadeados, onde o indivíduo não possui a decência de ser ele mesmo.

751
COMPREENSÃO - O IMPERIALISMO CONTINENTAL: OS MOVIMENTOS DE
UNIFICAÇÃO

Após a análise das imbricações entre raça e burocracia, Arendt (1989) desenvolve
a compreensão acerca da distinção histórica no cenário europeu, no qual a expansão
imperialista ultramarina desencadeou no contexto continental a expansão imperialista do
Estado-nação nos moldes e métodos de domínio semelhante de expansão na África.

Do ponto de vista sociológico, o Estado-nação era o corpo político das


classes camponesas europeias emancipadas – isto é, dos proprietários
rurais – e é por isso que os exércitos nacionais só puderam conservar sua
posição permanente nesses Estados enquanto constituíam a verdadeira
representação da classe rural, ou seja, até o fim do século XIX. “O
Exército”, como disse Marx, “era o ponto de honra dos fazendeiros:
transformados em senhores, o Exército os corporificava, defendendo no
exterior sua propriedade recém-adquirida. (...) O uniforme era a sua
roupa de gala, a guerra era a sua poesia; o seu lote de terra era a pátria,
e o patriotismo era a forma ideal da propriedade” O nacionalismo
ocidental, que culminou no recrutamento geral, foi produto de classes
firmemente enraizadas e emancipadas (ARENDT, 1989, p. 261).

O conflito latente entre Estado e a nação só é manifestado na modernidade na


medida em que a Revolução Francesa declara os Direitos do Homem, representada pela
luta de classes, desencadeada pela atomização dos indivíduos. Por sua vez reforçada pelo
positivismo progressista do século XIX inserindo o conceito metafísico do homem divino.
A compreensão social do método positivista nacionalista encerra em si mesma o
pré-requisito das ideologias raciais, separando o mundo da ordem interna contra o mundo
oposto e desordenado.
A esterilidade política do governo burocrático desencadeia a cultura do regime
totalitário como uma paixão irracional que incorpora nos movimentos e nos partidos,
colocando o apelo para as massas de partido acima dos partidos. E o monopólio político
de Estado desintegra o sistema de partidos europeus, provocando a ruína do Estado-nação.
O imperialismo continental, transformado em transcontinental estabelecerá
também as bases para a conquista colonizadora do Estado-nação europeu no continente
africano, pautado por administração burocrática e leis racistas, que como consequência
última inspirará como exemplo, na segunda metade do século XX, como forma de racismo
contra os negros o apartheid na África do Sul, e a Lei Jim Crown nos Estados Unidos.

752
COMPREENSÃO DO DECLÍNIO DO ESTADO-NAÇÃO E O FIM DOS
DIREITOS DO HOMEM

Para Arendt (1989) a melhor ilustração sobre a desintegração geral da vida é o ódio
universal vago e difuso de todos e de tudo, sem que ninguém pudesse ser responsabilizado
pela atmosfera de desintegração social. No ano de 1914 na Europa há a explosão do dia
seguinte do conflito deflagrado da primeira guerra mundial, houve uma reação em cadeia,
sem controle social pautada pela loucura e pelo desespero. Em cada evento tais como:
inflação elevada, desemprego, guerra civil, migrações e situações de homens e mulheres
apátridas como refugo da terra; se revelam que antes mesmo da disseminação da política
totalitária já havia um esqueleto de ódio político.
Os partidos políticos antítese dos próprios partidos descaracterizados pelo medo
são substituídos pelo movimento totalitário sob a bandeira de que o Estado é o povo. As
pessoas que passaram a serem consideradas refugos sociais são privadas de todos os
direitos, inclusive dos Direitos do Homem.

Agora todos estavam contra todos, e, mais ainda, contra os seus vizinhos
mais próximos – os eslovenos contra os thecos, os croatas contra os
sérvios, os ucranianos contra os poloneses. E isso não resultava do
conflito entre as nacionalidades e os povos formadores de Estados, ou
entre minorias e maiorias: os eslovacos não apenas sabotavam
constantemente o governo democrático de Praga como, ao mesmo
tempo, perseguiam a minoria húngara em seu próprio solo, enquanto
semelhante hostilidade contra o “povo estatal” por um lado, e entre si
mesmas, por outro, animava as minorias insatisfeitas da Polônia
(ARENDT, 1989, p. 301).

A constatação de Arendt (1989) remete a preocupação do teórico da política


Hobbes (1997), quanto à sua preocupação do homem no estado de natureza, e o estado
de permanente, conflito de todos contra todos. Neste caso, se está frente à fragmentação
do Estado nacional, “nação de minorias”, povos sem Estado, cenário em que se torna
impossível criar tratados de paz.
Valer menos que um cão sem pedigree era a sina de um apátrida, que corria entre
a naturalização e a desnaturalização, assimilação, fixação ou deportação em massa; o
apátrida era visto como uma anomalia social.

Enquanto a discussão do problema do refugiado girava em torno da


questão de como podia o refugiado tornar-se deportável novamente, o
campo de internamento tornava-se único substituto prático de uma

753
pátria. De fato os anos 30 esse era o único território que o mundo tinha
a oferecer aos apátridas (ARENDT, 1989, p. 317-318).

A lógica do campo de internação será aplicada no campo de concentração,


configurados na redução linguística das denominadas “minorias” apátridas, mantidos na
ilegalidade de refugiados, ou cidadãos de segunda classe, este fato revela o fim dos direitos
do homem. Frente ao quadro de perplexidade dos direitos do homem que antes eram
inalienáveis, irredutíveis e indeduzíveis de outros direitos ou leis, em que o próprio homem
seria a sua origem e seu objetivo último, agora não passa de um slogan reconfigurado como
imagem do período da colonização de Portugal e Espanha ultramarina europeia na
América Latina e Central, semelhanças processuais do ódio racial contra a população
negra, e a senzala como protótipo do campo de concentração.
No Brasil para Moura (1988) as consequências do pensamento racial quanto ao
escravismo contra a população negra e suas subsequentes formas de preconceito fez
emergir uma provocação no sentido de modernização das relações sociais.

O dinamismo da sociedade brasileira visto do ângulo de devir, teve a


grande contribuição do quilombola, dos escravos que se marginalizavam
do processo produtivo e se incorporavam às forças negativas do sistema.
Desta forma o escravo fugido ou ativamente rebelde desempenhava um
papel que lhe escapava completamente, mas que funcionava como fator
de dinamização da sociedade. As formas “extralegais” ou “patológicas”
de comportamento do escravo, segundo a sociologia acadêmica,
serviram para impulsionar a sociedade brasileira em direção a um estágio
superior de organização do trabalho. O quilombola era o elemento que,
como sujeito do próprio regime escravocrata, negava-o material e
socialmente, solapando o tipo de trabalho que existia e dinamizava a
estratificação social existente. Ao fazer isto, sem conscientização embora,
criava as premissas para a projeção de um regime novo no qual o
trabalho seria exercido pelo homem livre e que não mais simples
mercadoria, mas vendedor de uma: sua força de trabalho (MOURA,
1988, p. 269).

Retomando o fundamento Arendtiano pode-se compreender em diferentes


distinções a análise do pensamento racial. A primeira compreensão de distinção
fenomênica é introduzida na estrutura do contexto histórico, a partir da emancipação
política da burguesia apresentada na formação dessa mesma classe social dominante
burguesa que incorpora e apropria-se da exploração do trabalho como mecanismo
econômico para a produção do lucro e da riqueza financeira e produtiva.

754
A segunda distinção reflete a linguagem compreensiva, explicitando o pensamento
racial antes do racismo, contexto em que se permite compreender a arqueologia do
fenômeno e das ações da sociedade racista global; a terceira distinção é definida pela
compreensão de raça e burocracia, momento em que o “Grande Jogo” do exercício de
poder burocrático é manobrado a partir da violência, do extermínio e do genocídio de
grupos étnicos diferenciados pelo padrão ideologicamente construído pela classe social
dominante; na quarta distinção elabora-se a compreensão na perspectiva política da
construção do imperialismo continental, bem como dos movimentos de unificação do
Estado-nação; a quinta distinção compreende o declínio do Estado-nação e o fim dos
direitos do homem, com a subsequente construção dos regimes totalitários, a substituição
dos partidos e o fim dos direitos do homem com a consolidação do ódio racial.
O governo sobre as raças inferiores gestou no continente europeu o ressurgimento
da política e dos métodos imperialistas, os herdeiros do poder de consciência tribal
ampliada engendraram como carga do homem branco um sistema político opressor, e seu
efeito bumerangue desencadeou a desestruturação do Estado-nação europeia para a
abertura do abismo totalitário.
O governo das raças superiores de que trata a obra Arendtiana, Origens do
Totalitarismo, que compreende o imperialismo colonial europeu possui uma
correspondência com a qual se pode compreender a condição do negro escravizado no
Brasil.

A privação fundamental dos direitos humanos manifesta-se, primeiro e


acima de tudo, na privação de um lugar no mundo que torne a opinião
significativa e a ação eficaz. Algo mais fundamental do que a liberdade e
a justiça, que são os direitos do cidadão, está em jogo quando deixa de
ser natural que um homem pertença à comunidade em que nasceu, e
quando o não pertencer a ela não é um ato da sua livre escolha, ou
quando está numa situação em que, a não ser que cometa um crime,
receberá um tratamento independente do que ele faça ou deixe de fazer.
Esse extremo, e nada mais, é a situação dos que são privados dos seus
direitos humanos. São privados não do seu direito à liberdade, mas do
direito à ação; não do direito de pensarem o que quiserem, mas do
direito de opinarem. Privilégios (em alguns casos), injustiças (na maioria
das vezes), bênçãos ou ruinas lhe serão dados ao sabor do acaso e sem
qualquer relação com o que fazem, fizeram ou venham a fazer
(ARENDT, 1989, p. 330).

É neste sentido que podemos compreender o tráfico negreiro como o holocausto


contra a população negra afro-brasileira, ser traficado para uma terra estranha, privado de

755
liberdade cujo objeto final é ter a vida consumida pelo trabalho escravizado (o trabalho
liberta, dizia slogan nazista); as senzalas no Brasil como campo de internação, concentração
e extermínio, verdadeiras fábricas da morte, e a sua continuidade como favelas no século
XX e XXI; a banalidade do mal, nos suplícios e castigos contra o homem e a mulher negra,
sentenciados à morte sem sentido desencadeadora da apatia e do banzo (tristeza pela
incompreensão de ser condenado pelo sistema escravista); o ódio racial como um
sentimento racional elaborado a partir da ideologia racial em que o homem branco
europeu seria superior ao homem negro africano e afro-brasileiro; a condição de apátrida
do negro no Brasil.
Estar no Brasil, mas não ter direito a ter direitos; o navio negreiro, tumbeiros,
metáforas dos trens que transportavam os judeus para os campos de extermínios na
Europa; a riqueza inútil do homem branco supérfluo conquistador português; a sede de
castigo e vingança banal do senhor de escravista e dos feitores escravistas; bem como o
genocídio e o extermínio burocraticamente administrados pela supremacia racial branca
no Brasil.

Devemos compreender “democracia racial” como significado a metáfora


perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o
racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África
do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais de
governo, assim difuso e profundamente penetrante no tecido social,
psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país. Da
classificação grosseira dos negros como selvagens e inferiores, ao
enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de
erradicação da “mancha negra”; da operatividade do “sincretismo”
religioso à abolição legal da questão negra através da Lei de Segurança
Nacional e da omissão censitária – manipulando todos esses métodos e
recursos – a história não oficial do Brasil registra o longo e antigo
genocídio que se vem perpetrando contra o afro-brasileiro. Monstruosa
máquina ironicamente designada “democracia racial” que só concede
aos negros um único “privilégio”: aquele de se tornarem brancos, por
dentro e por fora. A palavra-senha desse imperialismo da brancura, e do
capitalismo que lhe é inerente, responde a apelidos bastardos como
assimilação, aculturação, miscigenação; mas sabemos que embaixo da
superfície teórica permanece intocada a crença na inferioridade do
africano e seus descendentes (NASCIMENTO, 2016, p. 111).

Certamente o conflito racial no Brasil na contemporaneidade apresenta aspectos


que hora aparece no ódio racial e na violência muda e silenciosa, ora este conflito mostra
a sua cara tornando explícito o ódio e a violência contra a população negra no Brasil na
forma do preconceito racial no exercício do viver em sociedade e nas relações de interação

756
social. Mais adiante essa dissertação apontará no pensar e na ação do afro-brasileiro,
reações ao preconceito racial motivada pelo fator cor da pele negra contra a população
afro-brasileira nos tempos atuais.

LIBERDADE E A LUTA PELA LIBERTAÇÃO AFRO-BRASILEIRA

O tráfico negreiro na sua expressão mais sórdida visou sequestrar a população negra
africana com o intuito de utilizar homens, mulheres e crianças negras no trabalho escravo
no Brasil, desde o século XVI até o século XIX.
Entretanto, o princípio da liberdade inerente aos indivíduos na ocupação do espaço
público fez emergir a luta por resistência e libertação da condição escravista adversa; mais
ainda, suscita a liberdade de pensar e agir politicamente para o estabelecimento da
cidadania e do direito a ter direitos.

O EVENTO DO TRÁFICO NEGREIRO E ESCRAVIDÃO DOS NEGROS

Dado que o evento do uso da liberdade no espaço público não foi um fato para o
cidadão e para a cidadã negros traficados para o Brasil durante o período colonial e
imperial na sociedade brasileira, restou aos negros no território brasileiro a luta pela
libertação. Na obra Entre o Passado e o Futuro, no capítulo 4, dedicado a uma reflexão
sobre: QUE É LIBERDADE, Arendt (1988) analisa como a liberdade deve estar presente
como condição humana para que os indivíduos possam atuar politicamente.

Em todas as questões práticas, e em especial nas políticas, temos a


liberdade humana como uma verdade evidente por si mesma, e é sobre
essa suposição axiomática que as leis são estabelecidas nas comunidades
humanas, que decisões são tomadas e que os juízos são feitos
(ARENDT, 1988, p. 189).

Para o sociólogo Moura (1989) referenciado a partir da obra: História do Negro


Brasileiro, a história tem início por volta do ano de 1549 quando o primeiro contingente
de negros africanos escravizados é desembarcado no litoral brasileiro em São Vicente.
Entretanto, como o tráfico não é um processo econômico e comercial regulamentar
e legal há múltiplas interpretações históricas sobre o início e registros de negros
desembarcados em terras brasileiras, como por exemplo, a afirmação na qual historiadores
apontam que:

757
Na nau Bretoa, para aqui enviada em 1511 por Fernando de Noronha
(traficante português de escravos) já se encontravam negros no seu
bordo. Essa presença, como vemos, confunde-se com a formação da
Colônia e, depois, do Império (MOURA, 1989, p. 8).

Distingue-se aqui a presença do negro no Brasil como escravo aleatoriamente


traficado, com a fase da exploração econômica de povoamento e colonização como política
econômica de exploração de terras e território com o trabalho escravizado dos negros.
A contabilidade sobre a quantidade de negros escravizados e traficados para o Brasil
também possui grande controvérsia entre os pesquisadores com relação ao número exato
de indivíduos traficados, relativizados segundo o método estrutural de pesquisa, tempo
histórico, dados disponíveis e fontes primarias da pesquisa. De acordo com o crescimento
da colônia brasileira atrelada a Portugal o fluxo demográfico aponta para um crescimento
exponencial de indivíduos negros escravizados assentados nas terras brasileiras.
Para fins didáticos da abordagem sobre a quantidade de negros traficados e do
evento histórico do tráfico negreiro para o Brasil, tendo em vista que o objeto de estudo é
a liberdade e a luta por libertação da escravidão, seguindo o referencial do sociólogo Moura
parte-se aqui da premissa quantitativa do quadro apresentado a seguir (MOURA, 1989,
p.10):

NÚMERO DE ESCRAVOS ENTRADOS NO BRASIL


(avaliação feita baseada em estatísticas aduaneiras)

Período Região Entradas anuais Total ano Total da importação


século XVI todo o Brasil - - 30.000
século XVII Brasil holandês 3.000 8.000 8.000

Pará 600
século XVIII Recife 5.000
Bahia 8.000
Rio de Janeiro 12.000 25.000 2.500.000

Século XIX Rio de Janeiro 20.000 50.000 1.500.000


(até 1850)
Durante o - - - 4.850.000
tráfico
Fonte: MENDONÇA, 1935.

Neste quadro apoiado em critérios estatístico aduaneiro citado por Moura (1989)

758
apresenta uma dimensão referencial de cálculos que variam se considerar o contrabando
de cinco milhões de negros, a de dez milhões de negros escravizados e transportados da
África continental para o Brasil, dependendo da fonte consultada. Entretanto, as
divergências quanto à quantidade da população negra africana traficada para o Brasil, não
elimina o evento auto evidente da escravização e do tráfico negreiro realizado pela nação
portuguesa para o território brasileiro entre os séculos XVI ao XIX.
Necessariamente não somente a nação portuguesa tinha os navios tumbeiros, mas
houve um processo vinculado à iniciativa privada no tráfico. O traficante não era agente
público, mas tinha o seu próprio negócio. Além disto, é importante frisar que nem todos
os traficantes eram portugueses ou brasileiros, mas de várias outras nações, inclusive norte-
americanos participaram do comércio atlântico como traficantes. O Estado português
apenas legaliza o processo comercial.
Os dados oficiais na história brasileira via de regra não são confiáveis, sobretudo,
do período histórico referente ao escravismo, período que o próprio Estado brasileiro fez
questão de destruir os dados e as informações disponíveis, com o objetivo de tentar apagar
as evidências do tráfico negreiro e do escravismo. Entretanto, a história do holocausto do
tráfico negreiro e do escravismo virou memória coletiva, pois ainda que se tentasse negá-
lo, a recuperação dos testemunhos oral, ou não, bem como registros paralelos dos
sobreviventes nos diversos momentos da história do período alimentaram e cristalizam
vivencias mesmo quando não possuem riquezas de detalhes.

LIBERDADE E TRABALHO ESCRAVO

A presença do negro africano no Brasil escravizado pela nação portuguesa e


traficado para o Brasil para o trabalho vilipendiado é o modelo estrutural que resultará em
pleno século XXI da nossa era, o modelo que subjuga o trabalho da população negra nos
tempos modernos no Brasil.
Enquanto força de trabalho escravizado no Brasil o indivíduo negro torna-se chave
para a compreensão do modo de exploração de trabalho muito bem definido por Marx
(s.d.) citado na obra Rebeliões na Senzala (MOURA, 1988, p. 17):

A força de trabalho nem sempre foi uma mercadoria. O trabalho nem


sempre foi trabalho assalariado, isto é, o trabalho livre. O escravo não
vendia a sua força de trabalho ao possuidor de escravos, assim como o
boi não vende o produto do seu trabalho ao camponês. O escravo é

759
vendido, com a sua força de trabalho, de uma vez para sempre a seu
proprietário. É uma mercadoria que pode passar de mãos de um
proprietário para as de outro. Ele mesmo é uma mercadoria, mas sua
força de trabalho não é sua mercadoria (MARX, s.d., p. 63).

O negro ao ser utilizado como trabalhador escravizado no Brasil, deste negro


africano é tirada a intrínseca característica humana dos indivíduos que é a liberdade. A
liberdade é a prática da experiência política do homem exercitada entre os homens no
plural. Considerado como se fosse um animal de carga a ser explorado no trabalho e na
vida, o indivíduo negro escravizado não realiza o fenômeno da ação da liberdade na sua
condição humana.
A comunidade dos homens é o espaço plural no qual a liberdade é exercida e
testemunhada por seus pares. Entretanto, mesmo desprovido da liberdade o indivíduo não
deixa de viver, mesmo na condição de escravo, visto que não sendo fenômeno da vontade
enquanto relacionada à política, a liberdade é uma qualidade abrigada na vontade humana
de ser livre, que quando negada move o indivíduo escravizado para ações de libertação.
Foi na verdade uma experiência de holocausto na qual o homem, mulher e crianças
negras, não tinham a dimensão de quando se abre a porta do inferno e abismo do terror,
em que a própria viagem já constitui um “trem” da morte.

O justiçamento do escravo era na maioria das vezes feito na própria


fazenda pelo seu senhor, havendo casos de negros enterrados vivos,
jogados em caldeirões de água ou azeite fervendo, castrados,
deformados, além dos castigos corriqueiros, como os aplicados com a
palmatória, o açoite, o vira-mundo, os anjinhos (também aplicados pelo
capitão-do-mato quando o escravo capturado negava-se a informar o
nome do seu dono) e muitas outras formas de se coagir o negligente ou
rebelde (MOURA, 1989, p. 18).

Instalados como animais em prisões denominadas senzalas, muito similar a um


campo de concentração; separados das ligações familiares e comunitárias; submetidos a
jornadas de trabalho intermináveis; com alimentação irregular das sobras dos alimentos
dos senhores escravista; largados a própria sorte com a missão de preparar a terra, plantar,
colher, manufaturar e embarcar mercadorias para a metrópole portuguesa e Europa.
Assim a ação laboral e isolada dos negros escravizados constitui o modelo
econômico produtivo de ocupar, povoar e colonizar submetidos aos castigos aterradores
dos administradores da produção e dos senhores escravistas, desenvolvendo
simultaneamente um sistema de exploração corrompido segundo os interesses do terror e

760
da violência, de quem distante usufruía das benesses produzidas, por escravizados
gerenciados por indivíduos portugueses instalados no Brasil com a função de explorar a
tudo e a todos, realizando o papel de sanguessuga portando nas mãos o chicote do diabo.

LIBERDADE E LIBERTAÇÃO

Ser livre e agir são uma coisa só, para que seja livre a ação deve ser livre de motivos
e de fins intencionados como um efeito previsível, a ação livre pressupõe liberdade antes
da ação. A ação livre não se encontra sob a direção do intelecto nem sob os ditames da
vontade, embora necessite de ambos para a execução de objetivos. A liberdade da ação
brota de princípios claros e manifestos e com visibilidade de realizações em atos concretos,
precedidos do juízo do intelecto e da vontade e mesmo quando estes perdem validade e se
exaurem com o tempo, os princípios que inspiraram a ação nada perde em vigor para
execução destas. A manifestação da liberdade e dos princípios é apontada por Arendt
(1988).

A liberdade ou seu contrário surgem no mundo sempre que tais


princípios são atualizados; o surgimento da liberdade, assim como a
manifestação de princípios. Coincide sempre como ato em realização.
Os homens são livres – diferentemente de possuir o dom da liberdade –
enquanto agem, nem antes, nem depois; pois ser livre e agir são uma
mesma coisa (ARENDT, 1988, p. 199).

Compreende-se, portanto, que não é a liberdade de criação que aparece, mas o ato
e a obra criada pela liberdade da ação política, neste contexto a ação política necessita do
testemunho, habilidade e prática de outros homens coletivamente, como por exemplo,
criação das instituições políticas que são produtos da ação dos homens deixando oculta a
liberdade da sua criação, a liberdade é anterior ao seu aparecimento.
A liberdade é a razão de ser da política não da necessidade, visto que a necessidade
obscurece o âmbito da política, e a ação política é um ato de liberdade. Cabe aqui uma
análise da contradição liberdade e necessidade nas próprias palavras de Arendt (1988).

Empregar o termo “político” no sentido da polis grega não é nem


arbitrário nem descabido. Não é apenas etimologicamente e nem
somente para os eruditos que o próprio termo, que em todas as línguas
europeias ainda deriva da organização historicamente ímpar da cidade-
estado grega. Na verdade, é difícil e até mesmo enganoso falar de política
e de seus princípios sem recorrer em alguma medida às experiências da

761
Antiguidade grega e romana, e isso pela simples razão de que nunca, seja
antes ou depois, os homens tiveram em tão alta consideração a atividade
política e atribuíram tamanha dignidade a seu âmbito. Quanto à relação
entre liberdade e política, existe a razão adicional de que somente as
comunidades políticas antigas foram fundadas com o propósito expresso
de servir aos livres – aqueles que não eram escravos, sujeitos a coerção
por outrem, nem trabalhadores sujeitados pelas necessidades da vida. Se
entendemos então o político no sentido da polis, sua finalidade ou raison
d’être seria estabelecer e manter em existência um espaço em que a
liberdade, enquanto virtuosismo, pudesse aparecer. É este o âmbito em
que a liberdade constitui uma realidade concreta, tangível em palavras
que podemos escutar, em feitos que podem ser vistos e em eventos que
são comentados, relembrados e transformados em estórias antes de
incorporarem por fim ao grande livro de história humana. Tudo o que
acontece nesse espaço de aparecimentos é político por definição, mesmo
quando não é um produto direto da ação (ARENDT, 1988, p. 201).

A escravidão da etnia negra africana e seus descendentes na formação social,


econômica e política do Brasil contradiz de forma peremptória a afirmação dos princípios
da liberdade para a ação política como condição humana inerente aos indivíduos livres.
Visto que os negros escravizados e na condição de apátrida no solo brasileiro e sem se quer
ser reconhecidos como humanos não podiam exercer a qualidade da liberdade enquanto
indivíduos.

LIBERDADE: CAMINHOS DO PENSAR E DO AGIR

A liberdade pública como manifestação da ação política não se confunde com a


reflexão, mas representa a possibilidade da reflexão. A ação do pensar de certa forma
paralisa a vontade, o querer e não querer, o fazer e o não fazer, não é só uma questão
interior, é uma ação política prática, portanto a liberdade política é consumada na
capacidade de fazer.
Ao analisar a tradição filosófica da Antiguidade Clássica e Moderna, acerca das
concepções de liberdade, passando por Santo Agostinho, Leibniz e Montesquieu,
Rousseau e ao equacionamento dado por Nietzsche alocando a vontade como inerente a
liberdade, Arendt (1988) constata a dimensão na qual a liberdade política transformou-se
em um problema filosófico quando esta se tornou sinônimo de livre arbítrio, para a autora
essa relação representa um desvio e coação da razão acerca da liberdade política, no
caminho oposto para a autora ser livre é simplesmente ser sem adjetivações.

Onde os homens aspiram a ser soberanos, como indivíduos ou como

762
grupos organizados, devem se submeter à opressão da vontade, seja esta
a vontade individual com a qual obrigo a mim mesmo, seja a “vontade
geral” de um grupo organizado. Se os homens desejam ser livres, é
precisamente à soberania que devem renunciar (ARENDT, 1988, p.
213).

A liberdade é vivenciada no processo da ação e aí deve estar articulada com a


política, a liberdade põe a ação em movimento, dá início a algo novo, é neste sentido que
a ação política é a expressão da liberdade. O homem é ao mesmo tempo início e
continuidade, herda e produz o novo, visto que pode começar algo, ser humano e ser livre
é uma única e mesma coisa, para tanto possui a qualidade da liberdade de começar a agir.
O pensar é simultâneo a liberdade para agir, a visibilidade da liberdade é a ação,
enquanto a fonte da liberdade estiver oculta, esta não é concreta, não é política, a
visibilidade da experiência da liberdade política é por sua vez manifesta e identificada na
ação a partir do diálogo e dos acordos entre os homens.
A qualidade do princípio da liberdade política impulsiona o negro para a busca da
cidadania, o pensar e o agir são reelaborados segundo este contexto histórico. Movimentos
políticos institucionais são criados, há uma nova articulação política pela possibilidade de
mobilidade territorial que fez o negro tornar manifesto a liberdade política com o
nascimento de novas ações públicas de luta e resistência, agora não mais para a libertação,
mas para o direito a ter direitos.

CONCLUSÃO

É imponderável apontar o caráter político e ideológico de tratamento e de


subvaloração dissimulada acerca do impacto social, da visibilidade e das reparações por
parte da sociedade globalizada, quando se reivindica reparações acerca da desestruturação
causada por parte do imperialismo europeu como explorador e destruidor dos laços
históricos e sociais das comunidades e das pessoas negras africanas e afro-brasileiras que
foram vilipendiadas de sua própria história enquanto autonomia para viver livremente e ser
donos do seu próprio tempo e espaço.
A mudança de cenário abriu também novas possibilidades para a produção de
novas ações inauguradoras de novas relações políticas, para tanto, o negro deverá
interromper os processos mecânicos e automáticos de concepção social, tais como a
naturalização do racismo na sociedade brasileira.
A construção da imagem da população afro-brasileira emoldurada por meio da

763
ideologia racista e escravista produziu a imagem de bárbaro e selvagem, raça inferior, até
mesmo não humano no contexto histórico e social da formação do Brasil. O afro-brasileiro
que era tido como sem capacidade de executar ações políticas contra o estatuto que o
oprimia, foi excluído do processo da abolição da escravidão como sujeito ativo. O
paradoxo estabelecido aponta para a redução do afro-brasileiro como objeto a ser
contemplado pelo processo de mudança social no qual estes eram os principais
interessados.
O debate acerca das reparações é essencial para a recuperação da equidade política
e social no mundo globalizado. O holocausto e o genocídio contra o povo judeu no século
XX, mostrou a face e a natureza de um crime contra a humanidade que foi praticado desde
o século XIX, também contra as pessoas de pele negra, com requinte de crueldade e
perversidade que necessita ser mais evidenciado, para que haja o alargamento das
discussões políticas de como reparar às comunidades negras do continente africano, bem
como dos afro-brasileiros que foi a maior deportação em massa de pessoas realizado pelo
sistema escravista em cinco séculos.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo – Anti-Semitismo, Imperialismo e


Totalitarismo; tradução Roberto Raposo – São Paulo (SP): Cia das Letras, 1989.

____________. Entre o Passado e o Futuro. 2. Ed. São Paulo, SP: Perspectiva, 1988.

____________. A Dignidade da Política: ensaios e conferências. Rio de Janeiro, RJ:


Relume Dumará, 1993.

MARX, Karl. O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann; tradução Leandro Konder 7. ed. Rio
de Janeiro (RJ): Paz e Terra, 2002.

MOURA, Clóvis. História do Negro Brasileiro. São Paulo (SP): Ática, 1989.

____________. Rebeliões na Senzala. 4 ed. Porto Alegre (RS): Mercado Aberto, 1988.

____________. Os Quilombos e a Rebelião Negra. 5 ed. São Paulo (SP): Brasiliense,


1986.

NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo


Mascarado. São Paulo (SP): Perspectivas, 2016.

764
CENTRO E PERIFERIA COMO CATEGORIAS DE ANÁLISE:
POSSIBILIDADES DO PENSAMENTO ANTROPOLÓGICO

Estêvão Barros CHAVES392

Resumo: Este trabalho pretende uma inserir-se num debate interdisciplinar entre a antropologia
brasileira e interpretações dadas em algumas metodologias usadas pela sociologia e ciência política
no chamado "Pensamento Social e Político Brasileiro". Tal movimento será realizado através de um
processo de aproximação de dois conceitos comuns às disciplinas, a saber, “centro” e “periferia”.
Tal movimento será realizado através de um processo de aproximação de dois conceitos comuns
a ambas as disciplinas, a saber, “centro” e “periferia”. Tal dualidade apresenta-se de duas maneiras
ao longo da teoria antropológica: se por um lado são tipologias práticas de uma teoria política, por
outro são epistemologias políticas dissidentes das teorias hegemônicas. Esta última, como se
buscará argumentar ao longo do trabalho, mesmo que potentes politicamente, deixam de lado
questões importantes ao pensamento antropológico, pois as categorias estão em operação, ou seja,
a concepção de que existem centros e periferias produz epistemologias políticas que concebem a
realidade a partir de tal dualidade. Produzir, no entanto, conhecimento a partir desta perspectiva é
diferente de compreender tais dualidades como conceitos que resultam de um processo sócio
institucional. Esta é a proposta deste trabalho. Utilizar as categorias de “centro” e “periferia” não
como realidade dada, mas como categorias anteriores ao resultado comparativo por incitarem, elas
mesmas, o uso de comparações. O movimento não está presente na produção de tais conceitos,
mas são esses conceitos que incitam o movimento. Assume-se que a assimilação dessas dualidades
no léxico conceitual da antropologia brasileira deve-se ao resultado de processos sociais e
influências teóricas específicas que resultam, após a busca por uma teoria antropológica brasileira
a partir de Darcy Ribeiro, na tentativa de Roberto Cardoso de Oliveira em refletir sobre o
Pensamento antropológico brasileiro. Assim, a questão central deste trabalho é responder como
foi possível que as categorias de “centro” e “periferia” fizessem parte da teoria antropológica
brasileira. Para tal abordagem, será necessário recorrer ao Pensamento Social e Político Brasileiro,
já que tal debate, incipiente na antropologia, encontra ali importantes reflexões teóricas pensadas a
partir da produção metodológica de dualidades analíticas.

Palavras-chave: Centro e periferia. Dualidade. Pensamento antropológico. Pensamento social e


político brasileiro.

INTRODUÇÃO

O uso de dualidades para pensar as relações internacionais entre Brasil e países


considerados metropolitanos (o que já conforma em si uma dualidade), não é recente. Se
a antropologia tem se apropriado de alguns destes conceitos nas últimas décadas, ela passa
a fazer parte de uma forte gama de reflexões teóricas realizadas não apenas no Brasil sobre
uma condição dependente na economia e na política.

392
Esta imagem foge do significado estrito dado pela teoria crítica, mas é interessante utilizá-la para sublinhar
a origem de algumas influências de Cardoso de Oliveira.

765
Este trabalho faz parte de reflexões obtidas através uma pesquisa de mestrado em
antropologia social e, portanto, é ainda incipiente em seus objetivos aqui propostos, já que
este é resultado de uma necessidade investigativa talvez maior que o próprio escopo
delimitado. A dissertação propõe-se a pensar a realidade política da antropologia brasileira
enquanto parte de uma estrutura disciplinar que, como propõem alguns autores, tende ao
universal. Entendendo tal realidade a partir da dualidade contida nas noções de “centro” e
“periferia” desenvolvida pela teoria brasileira em ciências sociais, pode-se observar uma
relação hierárquica entre a produção de conhecimento antropológico realizada no Brasil e
nas “metrópoles”. Tais noções (de “centro” e de “periferia”) só podem ser compreendidas
a partir de um sistema comparativo, onde o objeto de pesquisa é definido pela relação entre
dois ou mais elementos que viabilizam uma perspectiva analítica própria, marcada pela
diferença (seja quantitativa ou qualitativa) nas relações de poder entre elas. Tal movimento
comparativo é realizado há muito nas ciências sociais brasileiras, fortemente influenciada,
por exemplo, pela tradição cepalina (o que indica, no nosso caso, uma abertura
metodológica de compreensão dos fenômenos hierárquicos no cenário internacional, seja
na economia, na política, ou nas relações acadêmicas - se quisermos compreender tais áreas
como desvinculadas umas das outras). Assim, a pesquisa visa assimilar as noções de
“centro” e “periferia” nos moldes resumidos acima, tendo como objeto de análise a relação
entre a produção de conhecimento acadêmico entre o Brasil e países “desenvolvidos”,
como Estados Unidos, Inglaterra e França, observando como as relações acadêmicas
produzem uma geoantropologia (LEIRNER, 2014), ou uma geopolítica do conhecimento
disciplinar.
A pesquisa busca, para tanto, observar as relações estabelecidas pela bibliografia
utilizada por autores em periódicos da disciplina de grande circulação (como o Journal of
the Royal Anthropological Institute, o World Anthropology e a American Anthropologist),
buscando por dados quantitativos referentes ao uso da bibliografia brasileira por autores
estrangeiros (de “centro”), assim como no modo em que tal bibliografia é mobilizada, isto
é, se os autores brasileiros estão sendo utilizados “lá fora” como fonte de produção teórica
ou, quando são, (como apontam os dados obtidos até aqui) apenas como fonte de obtenção
de dados etnográficos. Associados aos dados quantitativos, tais periódicos permitem
observar também como se mobilizam autores brasileiros em diferentes frentes de pesquisa,
principalmente naquelas realizadas por estrangeiros com campo etnográfico em território
brasileiro.
Compreendendo tal abordagem como uma investigação da produção de

766
conhecimento antropológico dos “centros” sobre “nossa” própria produção, a pesquisa
proposta versa pelas relações acadêmicas num mesmo sistema de conhecimento. Tais
relações, como dito anteriormente, mostram um descompasso entre teoria e etnografia,
produção intelectual e obtenção de dados - o que será assimilado na dicotomia entre
“centro” e “periferia”. Para auxiliar tal abordagem epistemológica, também estão sendo
coletados dados sobre as relações acadêmicas internacionais pelos programas de pós-
graduação em antropologia em território nacional através dos anos, desde a implementação
de tais programas.
A produção teórica realizada no Brasil, no âmbito das ciências sociais, aponta para
esse descompasso entre a produção acadêmica nacional e internacional (MICELI, 1990.
A pesquisa realizada busca, no âmbito antropológico, evidenciar tal relação e, apesar de
fugir do escopo proposto, será realizado uma aproximação interessada a partir de algumas
semelhanças entre o caso pesquisado e pesquisas análogas em outras áreas de produção
científica na área social, como na crítica literária e no Pensamento Social e Político
Brasileiro. Tais apontamentos serão realizados a partir de uma análise histórica do
desenvolvimento das ciências sociais no Brasil. Como tal exercício já fora realizado por
diversos autores, será útil à pesquisa realizar tal recuperação com um recorte específico, a
saber, a partir da produção de conceitos duais que examinam as relações hierárquicas em
sistemas produtivos. Assim, a análise histórica das ciências sociais no Brasil permite
simultaneamente estabelecer as diversas relações acadêmicas entre brasileiros e
estrangeiros, assim como a construção por nossa teoria dos conceitos aqui utilizados na
investigação do objeto (“centro” e “periferia”).

APROXIMAÇÃO INTERESSADA

O movimento que aqui é chamado de aproximação interessada busca utilizar a


pesquisa realizada no âmbito antropológico num processo comparativo entre disciplinas
como primeiro apontamento em pesquisas futuras. A tendência de tal movimento é, sem
dúvida, a interdisciplinaridade que, apontada como uma necessidade emergente nas atuais
pesquisas em ciências sociais, carece de teorias completas a serem desenvolvidas
(CAVALCANTI, 2014). Este trabalho torna-se assim, e portanto, um primeiro esboço para
projetos futuros, visto que a delimitação do objeto proposto para a atual pesquisa
desenvolvida impossibilita o acesso a uma bibliografia extensa para além da teoria
antropológica.

767
Esse primeiro movimento, na verdade, resulta de uma demanda pontual da
dissertação desenvolvida, a saber, a recuperação histórica do desenvolvimento da
antropologia (e, como não é possível desvinculá-las por completo, das ciências sociais). Tal
bibliografia demonstrou-se completa, realizada por diferentes pesquisadores, de diferentes
áreas, instituições e nacionalidades. A história institucional, política e teórica das ciências
sociais fora recuperada ao longo dos anos por diferentes recortes; o que impeliu à pesquisa
a necessidade de tal abordagem por um recorte que, por assim dizer, não chovesse no
molhado. Assim, mesmo sendo parte de uma introdução ao objeto proposto, as condições
de pesquisa oferecem a possibilidade metodológica de pensar a história da antropologia a
partir da reconstituição histórica do desenvolvimento teórico de algumas dualidades e
dicotomias no interior do pensamento intelectual brasileiro. Ao realizar tal movimento,
também será respondido (ao menos é o que se espera) possíveis questionamentos quanto
ao uso das categorias de “centro” e “periferia” como instrumento de análise. O objetivo é
utilizar tal dualidade a partir de sua constituição no contexto brasileiro, como ferramenta
de análise das estruturas brasileiras.
Compreende-se que o uso de tais dualidades não congela uma imagem periférica
do Brasil, seja no âmbito econômico, institucional ou acadêmico. Se a teoria da
desenvolvida por Celso Furtado tem uma primeira coisa a dizer, antes de todas as outras,
é que a dependência é sempre relativa. É preciso sempre estabelecer o Outro para que se
possa realizar um processo comparativo que permita ver semelhanças, diferenças,
dependências… Assim, a condição “periférica” utilizada sempre acompanha as aspas,
indicando que essa condição é em relação a alguma coisa, que é o “centro”. No caso
estudado, a relação entre “centro” e “periferia” demonstra uma justaposição entre ciência
e objeto. Se, por um lado, a antropologia consolidou-se como o estudo de “grupos
periféricos”, sua teoria, por outro, sempre esteve nos “centros de produção científica”.
A fórmula era basicamente a mesma: antropólogos estadunidenses ou europeus a
realizar etnografias em países não-tradicionais, como Brasil, Índia, Japão, ou então em
áreas de interesse político (como foi o caso mesmo do Japão na pesquisa de Ruth
Benedict), no continente africano (podemos citar o Sudão do Sul como exemplo mais
claro).
A consolidação de relações acadêmicas-institucionais entre países como o Brasil e
aqueles do hemisfério norte393 têm mudado esse cenário desde seu início, nos anos 50, com

393
A noção de estilo fora utilizada por Cardoso de Oliveira através do desenvolvimento dado por G. G.
Granger no livro ‘Filosofia do estilo’.

768
uma tendência cada vez maior a discursos inclusivos no interior da disciplina. As teorias
que versam sobre tal perspectiva, assumem na antropologia uma ciência constituída de
múltipla colaboração, seja nativa, seja acadêmica. Tal modelo pensa a produção científica
no qual a disciplina se insere como ativa e propositiva, buscando as conexões entre diversos
contextos de produção antropológica como aliados na formação do conhecimento sobre
nós mesmos (LINS RIBEIRO, 2006). A questão aqui é outra. A possibilidade de pensar
toda a produção antropológica brasileira como uma área de produção científica e
intelectual torna-se atrativa quando observada sob o prisma do Pensamento Social
brasileiro, abrindo possibilidades teóricas e epistemológicas que permitem um interessante
diálogo interdisciplinar.
Tal recorte permite, por exemplo, separar a produção antropológica entre
teoria/prática, ou melhor, teoria/etnografia, e analisar como tal produção opera em diversos
contextos. A dissertação que compõe este trabalho opera em tal sentido, observando as
relações geopolíticas (LEIRNER, 2014; VIVEIROS DE CASTRO, 1999) dos contextos
de produção antropológica a partir justamente da separação entre teoria e etnografia. A
tese que corrobora tal investimento (e que vem se confirmando ao longo da pesquisa), é
que há uma relação assimétrica entre os contextos de produção de teorias da disciplina
entre o Brasil e os países onde tradicionalmente se faz ciência394.
As etnografias realizadas no Brasil (VIVEIROS DE CASTRO, 1999), ou talvez
ainda, in Brazil (PEIRANO, 1999), sempre estiveram presentes nas produções teóricas de
pesquisadores estrangeiros. Talvez por isso, para além do problema da língua já discutido
por Peirano, a tradição etnográfica tenha se mantido, mesmo com a inserção de
investimentos nos programas de pós-graduação brasileiros, assim como através de
fundações privadas como a fundação Ford (MICELI, 1990), para a internacionalização do
que se faz aqui. Os dados continuam a ser obtidos no Brasil, seja ainda através das
etnografias de pesquisadores estrangeiros, seja através de pesquisadores brasileiros que, nos
poucos casos em que são citados, são utilizados como bibliografia de consulta etnográfica -
geralmente sobre pesquisas que se referem a objetos de estudo localizados em território
nacional. Como dito há pouco, aliando a área de Pensamento às relações de produção aqui
expostas, é possível observá-las sob diferentes perspectivas; estas podem ser frutíferas para
o desenvolvimento da análise.
Essa aproximação foi de alguma importância, talvez metodologicamente em maior

394
“desenvolvimento” e “subdesenvolvimento”, “primeiro mundo” e “terceiro mundo”, etc.

769
nível, no desenvolvimento teórico de Roberto Cardoso de Oliveira. Assim como é a
tentativa da pesquisa aqui desenvolvida, o autor propõe-se a pensar a antropologia
enquanto produção científica e vinculada a relações geopolíticas e sociais (CARDOSO DE
OLIVEIRA, 1995). Em seu pensamento, a visão da antropologia como uma ciência
objetiva, estruturada a partir de paradigmas sucessivos em uma matriz disciplinar é afastada,
contrapondo-se a Kuhn, dando lugar a uma disciplina “multifacetada”395, que incita, resolve
ou desenvolve problemas diversos através de diversas teorias, simultaneamente. A relação
entre “centro” e “periferia” é colocada, mas fica subsumida na noção de estilo396
antropológico, utilizada por Cardoso de Oliveira. Nela, a relação entre “centro” e
“periferia” produz, através da diferença no desenvolvimento disciplinar no interior de seu
próprio contexto, “estilos” de se fazer antropologia. O desenvolvimento científico, seja
teórico tanto quanto o desenvolvimento metodológico de pesquisa de campo, molda-se a
partir de uma matriz disciplinar em comum, mas desenvolve “um modo de fazer” - o estilo
- próprio a cada país, devendo-se levar em conta sua tradição de pesquisa em teoria,
etnografia ou enquanto campo de pesquisa etnográfica (1995).
Apesar da dissertação afastar-se em muitos pontos da teoria utilizada por Cardoso
de Oliveira, sua contribuição não deve ser subestimada. Através dela é possível trilhar um
caminho talvez um pouco mais fácil até a interdisciplinaridade pretendida. A discussão
sobre o estatuto científico da produção antropológica brasileira frente aos países “do norte”
encontra seus análogos no desenvolvimento de Teoria Social e, mais ainda, permite
aproximar as discussões sobre “centro” e “periferia”, ou sobre as dualidades que compõem
a assimetria entre o que é produzido aqui e lá. De qualquer modo, Cardoso de Oliveira
abre essa possibilidade na antropologia brasileira ao discutir sobre o pensamento
antropológico. Sua importância aqui, para além da complexa discussão entre “centro” e
“periferia” como condicionantes no estabelecimento de múltiplas matrizes disciplinares, é
metodológica. O autor busca na estruturação da disciplina brasileira uma conformação na
produção internacional, buscando na consolidação de um “estilo antropológico” próprio
às especificidades da antropologia nacional.
Mesmo que a noção de estilo estabilize a assimetria entre “centros” e “periferias”,
condicionando a produção à tradição intelectual nacional, Roberto Cardoso de Oliveira
utiliza tais categorias para sublinhar a importância da teoria antropológica desenvolvida em

395
O pensamento selvagem é apenas o limiar do que poderia ser representado pela “periferia”, já que é
possível reconhecer sistemas de conhecimento diferentes, mesmo dentro dos métodos científicos.
396
Pensar o Outro só é possível a partir do Um, ou seja, a periferia sempre é estabelecida pelo centro, e não
o contrário. O que se pode fazer, afinal, é utilizar tal deslocamento como ferramenta política.
770
território nacional, inserindo uma bibliografia brasileira na discussão sobre o estatuto
científico da produção antropológica no mundo. Tal movimento demonstra uma tentativa
de aproximar teorias desenvolvidas no “centro” do debate internacional - o que configura,
ao menos na prática, matrizes disciplinares - e teorias da “periferia”, permitindo o diálogo
entre teorias divergentes e pouco realizadas. Dessa forma, o pensamento antropológico
brasileiro é elevado ao estatuto de teoria, articulando-se frente à mesma queixa dos colegas
brasileiros da área Pensamento Social e Político brasileiro (LYNCH, 2013), ou seja, a
diferença valorativa entre “pensamento” e “teoria”. Ora, se na antropologia e em
Pensamento desenvolvemos uma mesma crítica frente à produção internacional das
ciências sociais, torna-se quase essencial que o debate seja realizado numa base
interdisciplinar, que permita a troca de dados e informações, unindo na escrita a
insatisfação que surge da falta de diálogo dos pesquisadores “de lá” com a produção
intelectual desenvolvida aqui.

DELIMITAÇÕES DE UMA PESQUISA INTERDISCIPLINAR

A possibilidade de uma pesquisa que lida simultaneamente com uma miríade de


pesquisas brasileiras em diferentes áreas de conhecimento comporta em si vantagens em
comparação às pesquisas mais específicas, como múltiplas produções que, em
concorrência ou aglutinação, permitem diversas opções de abordagem teórico-
metodológica da realidade social estudada. É preciso, contudo, atentar-se para alguns
problemas de método ao utilizar tal artifício, como, por exemplo, a delimitação do objeto;
tal movimento exige do pesquisador um cuidado especial, pois a bibliografia utilizada, vasta
e com perspectivas diferentes sobre um mesmo objeto, deve corresponder às respostas (ou
às perguntas, pouco importa) que surgem no processo de investigação.
Outro problema na estruturação de um texto que busca interlocutores de outras
áreas de pensamento, é o ponto de partida. No caso deste texto, o ponto de partida (e que,
invariavelmente adequa-se à formação do pesquisador) é o antropológico. Resulta-se disso,
uma tendência de carregar os conceitos “de lá” para “cá”, replicando talvez o problema
existente de “centro” e “periferia”, ou, antes, levando-o para outro lugar. Reconhecer tal
condição pode ser útil, na medida em que a possibilidade de estabelecer de forma
consciente de onde se fala, permite também estabelecer para quem e como se fala. A
solução encontrada, mesmo que provisória, é estabelecer um diálogo interdisciplinar a
partir das bases antropológicas de investigação, ou seja, utilizando os métodos

771
antropológicos de investigação sobre um objeto de interesse antropológico para trabalhá-
los a partir de uma análise histórica interdisciplinar - o que resulta numa análise histórica
interdisciplinar de um objeto de investigação antropológica.
Para tanto, é necessária uma delimitação desse objeto (mesmo que faça parte de
uma iniciativa antropológica) que permita seu tratamento nos moldes da
interdisciplinaridade pretendida. Seria muito mais difícil se no tratamento desta pesquisa o
recorte fosse realizado a partir da ideia de “cultura”, por exemplo. Os conceitos de “centro”
e “periferia”, como amplamente tratados tanto pela bibliografia antropológica, quanto pela
bibliografia de Pensamento, permitem um maior diálogo entre as áreas, seja na utilização
análoga desses conceitos duais no interior das epistemologias desenvolvidas no interior nas
respectivas produções de conhecimento, seja na comparação de conceitos não-análogos,
como numa espécie de reconhecimento do “terreno conceitual” com o qual a pesquisa
lida.
Assim, delimitar as dualidades decorrentes397 da formada por “centro” e “periferia”
como objeto de investigação permite a consolidação de uma base teórica majoritariamente
brasileira a partir da área de Pensamento Social e Político Brasileiro, já que tais dualidades
estão amplamente representadas pelo desenvolvimento intelectual do pensamento
nacional. Permite também, de outro lado, um forte debate com a teoria antropológica
como um todo, não só a brasileira, já que a relação entre “centro” e “periferia” se sustenta
numa dupla relação entre antropólogos/nativos e antropólogos/antropólogos. Por um lado,
a teoria antropológica estabelece uma simetria ontológica entre sistemas de conhecimentos
diferentes - extinguindo assim, ao menos em discurso, uma dualidade hierárquica entre o
pensamento selvagem e o pensamento científico398. Por outro lado, a relação
antropólogos/antropólogos não possui a mesma atenção, ao menos do “centro”:
epistemologias de contestação do conhecimento produzido no “centro” são desenvolvidas
principalmente pelo sul como forma de diversificar uma literatura de área que separa-se
basicamente pela mesma relação de “centro” e “periferia” encontrada entre antropólogos/
nativos. Tal relação se replica em outro nível, talvez menos evidente na escrita
antropológica, onde ficam estabelecidos geograficamente os “centros” e as “periferias”,
num efeito de sobreposição das relações entre nativos e antropólogos da “periferia”. Se

397
Projeto de Iniciação Científica orientado pelo prof. Dr. Pedro Lima – professor adjunto da área de Ciência
Política do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL).
398
Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail:
mitchue.mateus@gmail.com.
772
antes os nativos eram colocados399 na posição periférica pelos antropólogos de “centro” pela
expansão colonial e pelo sentimento de superioridade (mais evidente conforme se regride
cronologicamente), agora a teoria exige um exercício de entendimento das relações sociais
nativas sem um ranço colonizador sobre elas. O problema central aqui torna-se a
sobreposição territorial da relação “periférica”, agora não mais na relação entre teoria e
prática, ou entre análise antropológica e etnografia, mas nas relações de produção do
conhecimento antropológico - e em como essas relações implicam num desenvolvimento
epistemológico específico - com interpretações ao Estado, por exemplo, que vinculados à
margem desconfiguram a linguagem e as pessoas de seu contexto (DAS; POOLE, 2008).
Se se realizar por um momento um deslocamento dos conceitos utilizados numa
base teórica que pensa o desenvolvimento científico, será possível realizar uma nova
separação que, sendo análoga à primeira, indica que alguns problemas de ordem
hierárquica permanecem no exercício de escrita. Ao diferenciar a produção de
conhecimento antropológico entre teórica e etnográfica, por exemplo, temos uma
representação interessante da dualidade entre “centro” e “periferia”. Isso, pois, a produção
etnográfica, que chamaremos de científica passa por um processo de desenvolvimento
diferente da produção teórica, que chamaremos de intelectual. Enquanto produção
científica, a antropologia tem buscado articular-se em contextos e bibliografias diferentes,
realizando pesquisas de campo, produzindo dados e realizando análises comparativas e,
ainda que existam dissonâncias entre o que se produz “aqui” e “lá” e como tais resultados
são ‘consumidos’, há alguma consideração (isso devido à conclusão decorrente da simetria
entre nativos e antropólogos). A produção intelectual, por sua vez, é dominada pela
bibliografia produzida nos “centros” antropológicos, localizados ao norte do hemisfério; o
debate teórico fica, quase exclusivamente, a cargo dos estrangeiros que, mesmo tendo
realizado pesquisa de campo em países que contam com uma forte produção
antropológica, como o Brasil, circunscrevem a análise num reduto teórico restrito a seus
pares, deixando de fora, de forma sistemática, pesquisas produzidas na mesma “periferia”
em que a etnografia se realiza.
Tendo em vista tais imbricações da produção antropológica brasileira, surge como
possibilidade política uma aproximação com outras disciplinas que têm, ao menos em
parte, refletido sobre a produção científica nas ciências sociais. Christian Lynch (2013), por
exemplo, detém-se na distinção no estatuto de “pensamento” e não de “teoria” na reflexão

399
Mestre em Ciência Política – UFSCar. Agência financiadora: Capes. E-mail: moacir.alencar@gmail.com

773
política brasileira. A percepção do cenário político da produção de conhecimento realizada
por Lynch aproxima-se em muito do que é percebido no cenário antropológico. Se há
alguma descontinuidade aqui e lá, será por motivos metodológicos, já que o objeto
investigado é o próprio cenário onde a crítica se produz. Assim, mesmo que estejamos
falando de uma mesma coisa, a abordagem adotada por Lynch aproxima-se de uma crítica
a uma teoria geral do conhecimento como fundamento para a superação de uma condição
periférica; a dissertação de onde este artigo é resultado, quer-se uma crítica da condição
periférica como meio de superação da tendência a uma teoria geral. A distinção é sutil, mas
exige esforços diferentes, o que faz sentido, visto que tratamos de duas áreas de
conhecimento distintas. Mesmo assim, a condição geo-epistemológica entre “centro” e
“periferia” na produção do conhecimento permanece a mesma aqui e lá, por razões que
ora se aproximam - como o período nacional-desenvolvimentista, que permitiu a expansão
da produção nacional científica e intelectual em saberes humanos e sociais - ora se afastam
- como a influência de um debate político entre teorias antropológicas dissidentes no Brasil.

CONCLUSÃO

A possibilidade metodológica de uma análise histórica dos conceitos de “centro” e


“periferia” no pensamento das ciências sociais, e na antropologia mais especificamente,
libera a possibilidade de compreensão no surgimento de dualidades na interpretação
nacional. Estas podem ser úteis à dissertação, na medida em que possibilita o diálogo
interdisciplinar e contextualiza o que está sendo chamado de “centro” e de “periferia”.
Aliado a isso, tal método de análise, voltado para o surgimento e a manutenção de
categorias duais, permite uma aproximação da bibliografia nacional, já que importantes
autores dedicaram sua obra justamente à análise de dualidades que compõem a identidade
nacional. Se de um lado a análise quantitativa busca um padrão que determinará se há uma
relação de “centros” e periferias” na produção antropológica mundial, a análise histórica
destas categorias permitirá que se reconheça as implicações de sua utilização, assim como
as condições acadêmicas (institucionais e políticas) na emergência de dualidades como
recurso teórico e metodológico na história das ciências sociais brasileira.
Em todo o caso, mesmo que o esforço despendido na atual pesquisa esteja em
descompasso com parte da produção em outras áreas das ciências sociais, ou mesmo na
antropologia, ela indica uma posição incômoda do Brasil frente a produção científica aqui
discutida. As categorias de “centro” e “periferia”, mais que conceitos analíticos úteis à

774
reflexão teórica, sublinham essa posição; tal dualidade indica ainda um uso político do
exercício antropológico, buscando analisar a conjuntura da produção antropológica
simultaneamente como produto de uma relação histórica e como produtor de relações
político-institucionais. O uso de dualidades, entretanto, é uma questão de método, o que
implica dizer que inúmeras abordagens sobre o tema podem ser realizadas. Em acordo
com Miceli:

[...] pode-se afirmar que os brasilianistas tendem a ser convertidos em


porta-vozes quase caricatos de uma postura historiográfica,
frequentemente reduzidos ao status instrumental de fontes secundárias
para fins estritos de documentação, jamais de lhes concedendo a honra
de integrar o panteão das sumidades teóricas e disciplinares em voga no
comércio intelectual de importação, buscando-se assim fazê-los ocupar
uma posição inferior no campo intelectual interno e bastante
desproporcional à sua contribuição efetiva ao desenvolvimento das
ciências sociais brasileiras (MICELI, 1990, p. 58 - grifos no original).

Ora, se tal conversão ocorre no âmbito de toda a ciência social brasileira, cabe a
nós, cientistas sociais brasileiros, compreender as implicações de tais relações,
identificando quali e quantitativamente a descontinuidade entre teoria e prática - ou, como
é o caso da antropologia, a teoria e a prática dessa mesma produção teórica. Concluo caber
a nós tal desenvolvimento de pesquisa para que, uma vez conhecendo os meandros da
intelectualidade da área, seja possível cobrar “de lá” o que, por vezes, se limita aos nativos
“de cá”. A utilização de tais categorias para analisar algum âmbito da realidade social, visa,
além de uma perspectiva politicamente engajada, uma superação destas mesmas categorias
(ARANTES, 1992); admitir tal assimetria, dê-se os nomes de “centro” e “periferia” ou não,
pode potencializar o que aqui é produzido; ou ao menos aproximar áreas de estudos
interdisciplinaridades em torno de um problema comum.

REFERÊNCIAS

ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética: na experiência intelectual brasileira.


Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

CAVALCANTI, J. S. B. Do campo e lugar da antropologia no contexto global. In: Os


rumos da antropologia no Brasil e no mundo. Recife, PE: Editora da UFPE, 2014.

CARDOSO DE OLIVEIRA. Roberto. Notas sobre uma estilística da antropologia. In:


Estilos de Antropologia. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.

775
DAS, Veena; POOLE, Deborah. El estado y sus márgenes. Etnografías comparadas.
Revista Académica de Relaciones Internacionales, núm. 8 junio de 2008,

KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo: Editora
Perspectiva S.A, 1997.

LEIRNER, P. O campo do “centro”, na “periferia” da antropologia. Revista de


Antropologia, São Paulo, v. 57 no 1, USP, 2014.

LINS RIBEIRO, G. Antropologias Mundiais: para um novo cenário global na


antropologia. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 21 nº 60, 2006.

MICELI, S. A desilusão americana: relações acadêmicas entre Brasil e Estados Unidos.


São Paulo: Sumaré, 1990.

PEIRANO, Mariza. Antropologia no Brasil (alteridade contextualizada). In: MICELI,


Sergio. O Que Ler nas Ciências Sociais Brasileira: Antropologia. São Paulo: ANPOCS,
1999.

VESSURI, Hebe. Estilos nacionais da antropologia? Reflexões a partir da sociologia da


ciência. In: Estilos de Antropologia. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1995.

VIVEIROS DE CASTRO, E. Etnologia brasileira. In: MICELI, Sergio. O Que Ler nas
Ciências Sociais Brasileira: Antropologia. São Paulo: ANPOCS, 1999.

776
“JUNHO FASCISTA” E “JUNHO AUTONOMISTA”:
INTERPRETAÇÕES SOBRE O SALDO E O SENTIDO DAS
MANIFESTAÇÕES DE JUNHO DE 2013400

Mateus Hajime Fiori SAWAMURA401

Resumo: Há pouco mais de quatro anos uma série de manifestações espalhadas pelo território
nacional brasileiro afetou a realidade do país e determinou a vida política nacional desde então. O
marco simbólico que data o início de junho é o dia 06, do mesmo mês, em São Paulo, pois desta
data em diante a represália policial e o posicionamento negativo da grande mídia foram gatilhos
para a mobilização geral da sociedade e de inúmeras pautas. A rua e a demonstração de indignação
foram repertórios comuns de Junho interpretados distintamente por diferentes atores. Nesse
sentido, duas questões centrais são levantadas por diversos autores: quais são o sentido e o saldo
de junho? Ou seja, para onde junho aponta e qual herança deixa ao cenário político brasileiro.
Assim como na “equação fascista” de Fabiano Santos, Marilena Chauí critica algumas visões
distorcidas das instituições políticas, presentes em junho. No entanto, Chauí, mas principalmente
autores como Marcos Nobre e Breno Bringel, entre outros, compreendem que Junho abre espaço
para novas formas de fazer política e deixa marcas que vão muito além do plano político-
institucional, marcas que incidem sobre os imaginários individuais e coletivos e sobre a
horizontalidade de novas formas de participação e mobilização. Tendo em vista tal diversidade de
interpretações a respeito das duas questões levantadas em Junho, nosso objetivo é – partindo das
categorias de um “Junho Fascista” e outro “Junho Autonomista”: 1) situar os autores em suas ideias
prévias e no debate de Junho de 2013; 2) contrastá-los entre si, a fim de melhor identificar as
categorias e 3) indicar possíveis permeabilidades entre autores e classificações, em busca de uma
compreensão mais densa do fenômeno, de suas causas e implicações. Para alcançar tais objetivos,
pretendemos 1) fazer uma descrição das manifestações de Junho comprometida com os objetivos
de pesquisa e 2) realizar uma análise bibliográfica dos conteúdos produzidos por esses autores.

Palavras-chave: Autonomismo. Fascismo. Junho de 2013. Interpretações de Junho. Manifestações.

INTRODUÇÃO

É inegável que as manifestações de junho de 2013 começaram com reivindicações


em torno da tarifa de ônibus. Permanece, contudo, não menos evidente que aquilo que
hoje se entende como Junho de 2013 transcende em muito a unidade de uma pauta
específica. O Movimento Passe Livre (MPL) – movimento fundado no ano de 2005, mas
que possui experiência militante que remonta a tempos anteriores – foi o ator central nas
ruas de São Paulo entre os dias 6 e 13. Muitos apontam a repressão policial que aconteceu
nesse momento inicial como responsável pela explosão do número de manifestações,
pautas e atores. São inúmeros os fatores apontados como catalisadores das manifestações,

400
Regalismo é uma doutrina que defende direito de interferência do chefe de Estado em assuntos internos
da Igreja Católica.
401
História da Igreja no Brasil, Primeira Época, p.200. Eduardo Hoornaert.
777
mas consideramos que Alonso e Mische (2015) apresentam mais cabalmente os gatilhos
que deram às manifestações de junho tamanha amplitude: ciclos de protestos globais
recentes; a realização de megaeventos no Brasil; enfraquecimento do governo PT entre
alguns setores sociais; o tipo de interação entre Estado e movimentos sociais que o governo
Dilma praticou; o “backfiring” da repressão policial no início dos protestos. Em
comparação às manifestações centradas em volta da tarifa, a partir das manifestações
ocorridas no dia 17, diversos autores apontam mudanças – além de numéricas – no perfil
dos manifestantes, no teor das pautas e no significado que as ruas pareciam afirmar.
Se pensarmos Junho de 2013 dessa maneira, ou seja, enquanto um acontecimento
– qual seja, as manifestações de rua que se estenderam Brasil afora, mobilizando milhões
de pessoas nas ruas de inúmeros municípios, captando a atenção da mídia nacional,
independente e internacional e a atividade das redes sociais, com seus posts e formas de
organização e convocação próprias –, já será possível ter noção da riqueza de elementos
passíveis de análise. No entanto, a capacidade narrativa disponível nesse intervalo temporal
é muito limitada. Pouco se pode dizer tomando esse acontecimento de maneira isolada.
Por isso podemos dizer – sem soar de maneira contraditória – que Junho de 2013
vai muito além dos 30 dias que demarcam o mês de junho, remetendo a outras
temporalidades e espacialidades, passado, presente ou futuro; local, nacional ou global.
Não foi um trovão que se projetou em meio ao céu limpo e aberto da realidade social e
política brasileira – conforme nos atenta Raquel Rolnik (2013) –, nem muito menos um
epifenômeno que não questionou a ordem e rapidamente caiu no vazio (SINGER, 2013).
Ou seja, não surgiu do nada, nem acabou com nada.
Vários autores se debruçaram sobre Junho de 2013 e, conforme descrevemos
anteriormente, eles não olham para Junho somente como um acontecimento, acrescentam-
lhe a dimensão processual para refletir sobre o contexto que a ele se subscreve, os motivos
que levaram a ele e os seus sentidos. E, se Junho foi marcado pela diversidade – de atores,
pautas, localidades, etc. – não é de surpreender que várias interpretações surgiriam para
buscar dar conta do fenômeno, ou então, para visualizar significados específicos, ou
desejados, das manifestações de junho de 2013. São várias e, por vezes, conflituosas, não
só porque Junho está historicamente muito próximo de nós, mas principalmente porque a
partir de Junho a polarização política volta a se expressar tendo como palco de embate as
ruas.
Breno Bringel (2015) e Jorge Chaloub (2016) expõem, cada um à sua maneira,
interpretações comumente encontradas a respeito de Junho. Bringel afirma haver duas, a

778
primeira distanciando 2013 de 2015, ao desconectar ambos fenômenos, ou ao conectá-los
de maneira negativa, dizendo que 2015 seria uma reação à 2013. Já a segunda, veria as
manifestações de junho como um epifenômeno. Chaloub enfatiza duas interpretações que
exageram o feitio das manifestações: “Junho, desse modo, ou assume a feição de uma caixa
de pandora, responsável por expor ao sol e fortalecer todas as mazelas pátrias, ou toma o
lugar de evento inédito e fundador, legítimo abre alas de um novo país que ainda não se
construiu, mas já se anuncia no horizonte” (CHALOUB, 2016).
A divisão apresentada por Chaloub nos parece um ponto de partida relevante para
a construção das chaves interpretativas desenvolvidas neste artigo, pois consideramos que
essas duas maneiras opostas de se pensar Junho encontram paralelo nas interpretações a
respeito de Junho de 2013.
Buscaremos pôr a prova tal distinção, situando os autores, expondo suas diferenças,
a complexidade das interpretações – que impede que estas sejam estanques em uma ou
outra chave –, bem como permeabilidades entre as duas chaves, demonstrando haver
elementos que as aproximam, para assim fornecer ferramentas para uma compreensão
mais densa do fenômeno, de suas causas e implicações.
Passaremos a seguir à construção das duas chaves, que chamaremos de Junho
Fascista e de Junho Autonomista. Por ora, basta ter em mente que a chave fascista se
aproxima de tendências antidemocráticas, enquanto a autonomista passa pelo
aprofundamento dos ideais democráticos de participação. Dois fatores serão centrais aqui:
sentido e saldo. Para onde Junho aponta e qual herança deixa ao cenário político brasileiro,
o que motiva as demonstrações de indignação e revolta – no longo e no curto prazo –, o
que nos mostra e ensina a respeito da realidade social e política, quais críticas promove e
quais possibilidades surgem, quais resultados alcançou na política institucional, na vida
política, no imaginário da sociedade e quais suas consequências para a democracia
brasileira.
As explicações sobre o sentido e o saldo, necessariamente, passam pela
apresentação de outros fatores, assim, ao auxílio desses, estarão presentes outros dois. Os
saldos da democratização, ou então o cenário político, vêm a dar suporte às interpretações,
pois a capacidade de apontar sentidos passa pela necessidade de tratar das condições
concretas ou latentes, disponíveis aos atores políticos, alcançadas em três décadas de
democracia. Os principais atores, tenham sido estes cultivados ou surgidos à revelia das
condições disponíveis, contribuem também para a exposição dos dois fatores centrais.

779
Nas duas seções seguintes, será possível encontrar os quatro fatores na visão dos
autores selecionados. Na terceira, trataremos de relacionar os autores entre si, a partir dos
dois fatores centrais bem como apontar as permeabilidades entre autores e chaves
interpretativas e as chaves entre si.
Cabe lembrar que não buscamos situar todos aqueles que produziram conteúdos
(substanciais) a respeito de Junho, nem é nosso intuito exaurir todo o debate em torno dos
sentidos e saldos, pois há muitas outras maneiras de interpretar este mesmo fenômeno.
Por exemplo, Wanderley Guilherme dos Santos (2013) não vê razão de ser nas
manifestações de junho, nem vislumbra qualquer possibilidade de resultados políticos.
Como já dissemos, Singer não acredita na duração de junho nos tempos futuros e pensa
que as manifestações, ao contrário de provocar politização ou polarização, tiveram seu
potencial conflitivo bloqueado, por um centro pós-material. E Marco Aurélio Nogueira
(2013) acredita que as manifestações são marcadas pela hipermodernidade, ao mesmo
tempo em que pedem por “Mais Estado”, em combate a qualquer concepção que
reivindique “Mais Mercado”. A escolha dos autores aos quais este trabalho devotará sua
atenção remete às suas proximidades com a distinção inicial esboçada por Chaloub, aos
conteúdos específicos por eles enfatizados e à centralidade das figuras intelectuais enquanto
vozes da esfera pública nacional. A seguir, trataremos respectivamente dos seguintes
autores: Fabiano Santos; Marilena Chauí; Leonardo Avritzer; Marcos Nobre; Paulo
Arantes e Breno Bringel.

JUNHO FASCISTA

Fascismo, aqui, possui um teor antidemocrático. Suspeita – ou até mesmo nega –


dos mecanismos democráticos, das instituições representativas e de sua eficiência social e
política. Assenta suas hesitações e tece suas críticas sobre discursos turvos, que descartam
as causas estruturais e outros problemas diretamente políticos da discussão a respeito do
mal-estar da vida política nacional, centrando-se em demonstrações violentas – agressão
aos manifestantes que levantavam bandeiras de partidos políticos – e em argumentos que
passam por um moralismo despolitizante, ou porque foca nas qualidades pessoais e
privadas como remédio para a corrupção, ou porque relaciona a incidência da corrupção
diretamente à postura do partido político governante. Um outro fator antidemocrático
reside no não-reconhecimento, na negação do “outro” a partir do qual a lógica fascista

780
opera, recusando o fato de que possam existir interesses, visões de mundo e opções
políticas divergentes da sua.
A partir de um breve balanço da transição democrática brasileira, Fabiano Santos
questiona a silhueta das manifestações do mês de junho de 2013. Segundo ele, o saldo da
transição é positivo tanto dos pontos de vista político, econômico e social, em eficiência
econômica e em coerência democrática.
Para ele, a grande proporção que as manifestações de junho de 2013 tomou,
enquanto fenômeno político, resulta da soma da repressão policial, inabilidade das
autoridades locais ao tratar a questão inicial das manifestações – contra o aumento no valor
dos passes de ônibus – e a potencialidade conflitiva inerente a essa manifestação. Santos se
surpreende ao constatar que num primeiro momento uma coalizão social espontânea havia
se formado, reunindo desde setores da esquerda radical até setores da direita radical.
Estariam todos reunidos por uma mesma emoção, a saber, sentir a euforia de protestar e
performar, sentir-se parte de um movimento de massas gigantesco.
A partir do momento em que a pauta inicial das manifestações foi atendida por São
Paulo e tantos outros governos estaduais e municipais, um outro embate ganhou
centralidade, em torno da disputa pelo significado das ruas. Segundo ele:

A palavra de ordem dos entusiastas das manifestações tornou-se então


não permitir que os fascistas dominassem a cena, não permitir que a
direita política prevalecesse na tradução do sentimento difuso de
insatisfação e inconformismo e canalização da nova energia societal
brasileira. Tarde demais: o estrago já estava feito. A equação fascista,
antes apenas recôndita nas mentes de segmentos da elite, leitores de
diários cariocas e paulistas, agora é clara e despudoradamente
verbalizada em nossa common parlance (SANTOS, 2013, p. 18).

Conforme expõe em nota, a “equação fascista” diz respeito à atitude política


autoritária, intolerante à pluralidade de opiniões e interesses existentes na sociedade,
operando segundo lógicas primitivas de não reconhecimento.
Segundo tal lógica, o problema central que assola toda a sociedade brasileira
residiria naquilo que é “político” – nos partidos políticos, nos políticos eleitos, em toda a
extensão dos poderes Executivo e Legislativo – em detrimento das ditas “instituições
‘formais’ de controle” (idem, p. 19), como o Judiciário e o Ministério Público, instituições
formadas por homens idôneos e de bem, mas que estariam material e institucionalmente
limitados no combate à corrupção.

781
Dado que a esmagadora maioria da população é pobre e ignorante,
beneficiária de rendas e serviços transferidos pelo governo, pela máquina
pública, corrupta em sua origem, o eleitor, na verdade, seria, em última
instância, cúmplice da engrenagem. Na equação fascista, em outras
palavras, o voto popular estaria na raiz mesma do nosso problema
político (SANTOS, 2013, p. 19).

Tal visão se torna fascista na medida em que, no limite dessa desconfiança para
com a política representativa, reside uma relação falsa entre renda e capacidade de escolher
representantes, entre massificação do voto e manipulação por parte dos políticos.
Assentada sobre uma relação simplista, que arbitrariamente atribui equivalência entre duas
variáveis, a “equação fascista” não reconhece práticas, opiniões e orientações político-
ideológicas divergentes da sua.
Santos considera que no julgamento do “Mensalão” o STF contribuiu para a
ascensão desse discurso fascista ao vocalizar esse discurso por meio da abordagem e
apresentação distorcida e vil que deram às instituições partidárias. Também pensa que a
resposta imediata que o governo deu às manifestações – convocar um plebiscito –
contribuiu para endossar a ideia de que o problema reside nas instituições representativas.
O “inferno urbano” e a forma de convocação e organização via redes sociais,
segundo Marilena Chauí, contribuíram para a amplitude das manifestações de junho de
2013. O inferno urbano, tanto no ponto de partida de junho, quando a pauta girava em
torno do transporte público, quanto em seu ponto de chegada, crítica e desconfiança nas
instituições políticas – no entanto, na forma de uma crítica fascista, como veremos mais
adiante –, foi o alvo da indignação e revolta dos manifestantes, que possuem condições de
vida degradantes, principalmente no caso das grandes cidades brasileiras, como é o caso
da cidade de São Paulo, foco de sua análise – exclusão; transporte individual inflacionado;
péssimas condições de transporte público; e domínio do interesse privado graças aos
partidos governantes, oligarquizados. As redes sociais, por sua vez, a partir de sua forma de
convocação transformaram as manifestações em um movimento de massas, levando
milhares de pessoas às ruas.
No entanto, a autora aponta problemas das redes sociais que facilitam que o
movimento de junho seja apropriado pela direita. Segundo ela, o protagonismo das redes
sociais produz nos manifestantes o “pensamento mágico”, em que uma estrutura técnico-
científica pré-estabelecida das redes, ao qual o usuário desconhece, dá a este a falsa
sensação de que basta um clique para provocar qualquer mudança. Assim, suas

782
manifestações assumem forma de evento, sem qualquer saldo organizativo ou concreto.
Por último, devido a essa estrutura das redes sociais, transpassam a sensação de
homogeneidade, sendo ofuscadas a diferença ideológica, a divisão social e a existência de
poderes tácitos, que levam os manifestantes à incompreensão do campo político-
econômico no qual se movem, impedindo a politização e a percepção da polarização,
necessárias para que a fagulha da “invenção democrática”, de uma nova práxis política,
esboçada em junho possa tomar forma.
Chauí afirma que esse discurso que nega as mediações institucionais é o mesmo
discurso ideológico dos meios de comunicação e da classe média. Esclarecendo, então, o
porquê da absorção do discurso da classe média pelas manifestações de junho de 2013,
Chauí explica que foi a velha classe média quem compôs predominantemente as
manifestações. Inclusive, ela aponta que as três abominações da classe média são visíveis
durante as manifestações do mês de junho:

É por isso que eu falo nas “três abominações” que definem essa classe
média: trata-se de uma abominação política, porque é fascista; uma
abominação ética, porque é violenta; e de uma abominação cognitiva,
pois ela é ignorante. Eu acho que muito do que as ruas mostraram no
Brasil inteiro foram essas três abominações (CHAUÍ, 2013b).

Confluindo aqui as discussões sobre o ponto de chegada de junho – crítica às


instituições políticas, mais especificamente crítica à corrupção e recusa dos partidos
políticos – e sobre os problemas das redes sociais, começa-se a entender o que Chauí
denota através do termo “fascista”.
A centralidade do uso das redes sociais acaba ocorrendo na forma do pensamento
mágico, recusando a mediação institucional, que demanda continuidade no tempo e
organização institucionalizada, para poder demandar e alcançar resultados democráticos,
fato que facilita a apropriação da manifestação pela direita. À maneira da classe média,
assentam sua recusa às instituições em lógicas abominosas. Pois nas manifestações não
lutaram por reforma política, nem muito menos indicavam as causas do mal-estar
institucional – a saber, a “estrutura autoritária da sociedade brasileira” e um “sistema
político-partidário montado sobre os casuísmos da ditadura” (CHAUÍ, 2013a, p. 5).
Também porque reproduziram a noção de que os partidos políticos são corruptos por
essência e bravejaram palavras de ordem que individualizam a questão da corrupção, ao
indicarem a índole individual como alternativa para a incidência de corrupção.

783
Na opinião da Marilena Chauí, uma verdadeira democracia, no molde de uma
república democrática, não pode prescindir da mediação institucional. Muitos discursos
que apareceram em junho – por exemplo, “meu partido é meu país” – remetem, na visão
de Chauí, aos discursos uma vez projetados pelo fascismo e nazismo, e se fundamentam
sobre críticas seletivas e distorcidas da política e de suas instituições, como vimos acima.
Por fim, a violência desferida contra manifestantes de esquerda, sob a égide “sem partidos”,
é outro elemento fascista, pois é de uma natureza na qual visa a eliminação do outro; em
outras palavras, não reconhece a legitimidade de manifestação e opinião do outro.
Para o cientista político Leonardo Avritzer, a democracia brasileira representou
grandes saltos qualitativos em relação ao período autoritário, porém, por volta de 2013,
começou a esboçar impasses no exercício da oposição, no presidencialismo de coalizão,
na participação social e no combate a corrupção. O ponto de partida das manifestações de
junho de 2013, na visão de Avritzer, reside no limite da participação social, que durante o
governo petista priorizou a participação institucionalizada, deixando de incluir alguns
setores da sociedade, como a classe média, e prescindindo da participação em áreas
importantes, como a infraestrutura.
Até o dia 17 de junho, observava-se uma fissura no campo da participação social,
ou seja, ela ainda era encabeçada por parte da esquerda que rompeu com o governo, bem
como fomentava um movimento de pluralização da mídia, dos atores e dos temas
(conservadores, progressistas, etc.), incitados pela tendência democratizante da rua. No
entanto, do dia 17 em diante – ainda que sob o estímulo da pluralização – a esquerda perde
o monopólio da participação social, dando passagem da pluralização para a polarização
que veio a dominar o cenário político dos anos posteriores.
É possível perceber essa ‘transição’ para a polarização nas principais pautas
levantadas pela classe média – pelos filhos desta –, principal ator nas manifestações de
junho de 2013:

Rompe-se uma interdição das manifestações de fundo conservador, que


não ocorriam desde 1964. Instala-se uma agenda ofensiva em relação ao
governo Dilma que não reflui mesmo após a eleição dela, em outubro
de 2014, e que é reforçada a partir de março de 2015. A agenda da
corrupção a partir de um corte conservador torna-se pauta dos setores
conservadores no país [...] (AVRITZER, 2016, p. 81).

Com o decorrer das semanas de junho essas duas pautas passam a ser centrais, a
crítica ao governo Dilma e a denúncia à corrupção vista por uma perspectiva despolitizada,

784
pois ignora as relações entre corrupção e estrutura do sistema político, atribuindo sua
incidência aos governos petistas (AVRITZER, 2016, p. 81). Isso se explica pela entrada de
setores conservadores nas manifestações, principalmente por setores da classe média
insatisfeitos por não encontrarem espaço na participação social institucionalizada, ou por
não estarem incluídos nas políticas progressistas de governo.
No entanto, antes de conceber a classe média como algo unitário, Avritzer aponta
para um processo de realinhamento social dentro da classe média, em que a nova classe
média mantém seu apoio às políticas distributivas e de inclusão social, enquanto a classe
média tradicional – tendo seu status, poderes econômico e social afetados por essas
mesmas políticas– passa a posicionar-se contra o governo e o sistema político –
desembocando, por vezes, na suspeição em relação à democracia. Esta última, segundo
Avritzer seria a principal protagonista da nova direita que, além de misturar elemento
clássicos e contemporâneos da direita, utiliza as ruas como elemento acessório, dando
mostras de intolerância política na medida em que ataca os direitos civis, a governabilidade
e a separação entre religião e Estado.

JUNHO AUTONOMISTA

A chave Autonomista remete à democracia em sua dimensão mais densa e


substancial. Estrutura-se a partir da noção de que as maneiras mais justas de fazer política
passam pela necessidade de ampliar o espaço de deliberação e participação social e política.
Nessa lógica, deve haver uma aproximação entre a dimensão política e a vida cotidiana dos
cidadãos, seja em vista da institucionalização, seja pela insurgência que participa
diretamente e de maneira não institucionalizada. Seu objetivo é, sempre, incluir a
pluralidade nas diversas esferas da política.
Para Marcos Nobre (2013), o traço comum das manifestações de junho de 2013
reside na rejeição ao peemedebismo, mais especificamente, ao conservadorismo e à
despolitização, fruto do distanciamento que o pemedebismo imprime na relação entre o
sistema político e a sociedade. No processo de redemocratização há duas dinâmicas
destoantes: inclusão cidadã e peemedebismo. Este último, impediu o pleno
desenvolvimento da primeira dinâmica, pois formou:

Uma juventude que cresceu vendo uma política de acordos de


bastidores, em que figuras políticas adversárias se acertam sempre em
um grande e único condomínio de poder, não tem modelos em que

785
basear uma posição própria, a não ser o da rejeição em bloco da política.
Quem nasceu da década de 1990 em diante, por exemplo, não assistiu a
qualquer polarização política real, mas somente a polarizações postiças,
de objetivos estritamente eleitorais. O peemedebismo minou a formação
política de toda uma geração (NOBRE, 2013, p. 12).

A novidade de junho consiste, então, na politização da sociedade brasileira, que


saiu às ruas reclamando por diversas pautas, nas vozes de diversos atores, expressando
indignação e aspirações vindas de todos os lados. Isso, na visão de Nobre, significa que, de
maneira inédita, as manifestações de junho, não mais simbolizam a transição democrática,
e sim o aprofundamento democrático, em outras palavras, não mais a mobilização por
pautas unificadas, agora sim, em nome, dos diversos interesses particulares presentes na
sociedade. Desta forma, o que se prefigura já em junho é a polarização da sociedade que,
devido à despolitização do peemedebismo, não possuía estruturação prévia e, devido à
blindagem do mesmo, acabou por ter de encontrar um locus de expressão nas ruas.
É importante frisar que, ao contrário de Avritzer, Nobre não atribui ao termo
“polarização” uma conotação pejorativa. Para ele a polarização não constitui um entrave
para a solução dos impasses da democracia brasileira, na verdade, demonstra que
caminhamos para um aprofundamento democrático.
Por fim, afirma que a pauta aglutinadora das manifestações de junho, que é a
rejeição ao sistema político, ou melhor, à política institucional, faz parte de um movimento
presente no Brasil e no mundo, no qual os indivíduos desejam tornar-se sujeitos políticos,
à despeito da passividade imposta pelo sistema político. Assim, para Nobre, passamos
agora pela necessidade de criar novos espaços de participação e deliberação que desafiem
as macroestruturas de um regime democrático e do Estado, das maneiras de produzir
decisão e consenso.
Para Paulo Arantes, junho de 2013 se levanta contra o consenso de “paz armada”,
que seria, em suas palavras, uma “doutrina constrainsurgente da Pacificação” em
andamento desde a transição pós-ditadura militar. Além de trazer as UPP’s (Unidade de
Polícia Pacificadora) como exemplo, apresenta um outro exemplo que pode nos ajudar a
compreender o que ele quer dizer com “paz armada”: a correspondência crescente entre
Democracia e Estado de Direito, em que ocorre a “gradativa submissão do político ao
ordenamento jurídico” (ARANTES, 2014, p. 454). A denúncia que ele faz aqui é a mesma
que indica o significado de Junho: “[...] Junho foi, antes de tudo, sobre isto: sobre como
somos governados, como nos governamos e como não queremos mais saber disso”. (idem,
p. 453).

786
O que está em discussão aqui é o fato de que as pessoas são, a todo momento,
controladas, conduzidas por agentes e procedimentos alheios, que as regulam à revelia das
mesmas, que recalcam suas tendências insurgentes, principalmente das massas populares,
atores principais das manifestações de junho de 2013. Arantes trata essa última tendência
como “cidadania insurgente”, que se faz ouvir de vez em quando, há muito na história
social brasileira por meio de outras revoltas populares – São Paulo, 1917, Fortaleza, 1935
– que giraram em torno da questão do direito à cidade, assim como Junho e a questão da
livre circulação urbana.
Junho de 2013, uma revolta popular, só conseguiu transbordar essa sua tendência
insurgente pois a massa que estava manifestando-se era socialmente marginal, pois sua
inserção era de caráter subalterno, de segunda mão. O desamparo e falta de discurso das
massas, fruto do caráter de sua inserção, significa que foram menos absorvidos pelas
políticas que surgem do consenso entre Democracia e Estado de Direito; somente assim
teria sido possível perceber a maneira e o grau em que nos governam.
Arantes nos diz que, se Junho foi sobre a forma como éramos governados, sobre
como o Estado trata de engolir toda forma de manifestação e reivindicação política e
transformá-la em gestão de política pública, em maneira de regular os cidadãos, então o
que as ruas indicam é a vontade em participar. O próprio sucesso da pauta inicial – redução
da tarifa das passagens de ônibus – indica que isso é possível, que a ação direta funciona,
que a participação institucionalizada – desenvolvida a partir do processo de transição – não
é a única forma possível de participação política.
O que vemos nas manifestações de junho de 2013, na visão de Breno Bringel, é a
manifestação geral e difusa de indignação. Nas suas palavras, vivenciamos no Brasil algo
presente pelo mundo todo, uma “geopolítica da indignação global”. Definida como um
estado de ânimo, essa indignação trabalha com temas como democracia, justiça social e
dignidade (BRINGEL, 2013, p. 46) e volta-se contra à sistema político e às formas de ação
e organização política existentes. Seus manifestantes:

[...] associam sua insatisfação a uma rejeição aos sistemas políticos, aos
partidos tradicionais e às formas convencionais de organização política
(inclusive a certos movimentos sociais e sindicais hierarquizados e ligados
ao aparelho estatal). Querem participar da vida política, mas não
encontram canais adequados. Para muitos deles, conselhos, fóruns e
espaços institucionalizados não são suficientes e mostraram seus limites
nos últimos anos (BRINGEL, 2013, p. 46).

787
Recusa as formas políticas vigentes porque a amplitude da participação social daí
decorrente e, por conseguinte, os saldos democráticos advindos dessas formas, não são
suficientemente ampliados, de forma a incluir setores, interesses, formas de vida, novos
direitos e direitos constitucionalmente previstos. E, por ser pouco ampliada, a participação
encontra-se canalizada por meios institucionais, assim, acaba por preocupar-se e incidir
mais sobre a política do que sobre a sociedade.
No entanto, o autor diz que a indignação no Brasil, ao contrário de outros países,
ainda é muito difusa. Para explicar isso ele apresenta a noção de “transbordamento
societário”, que marca o momento a partir do qual a mobilização transcende os
movimentos iniciais, que tinham como pauta a tarifa das passagens de ônibus, alcançando
outros setores da sociedade. Tal transbordamento leva a uma “confluência ambígua”, na
qual

[...] um amplo espectro da sociedade está mobilizado em torno de uma


indignação difusa, portando diferentes perspectivas e reivindicações, que
coexistiram no mesmo espaço físico e às vezes com um mesmo lema
(contra a corrupção ou contra o governo), embora com construções e
horizontes muito distanciados e em conflito (BRINGEL, 2015, p. 8).

Apesar dessas diferenças internas, Bringel atenta para uma novidade surgida com
junho: o início de um novo ciclo de ação coletiva que, por sua vez, carrega a configuração
de um novo ativismo. As ruas como palco dos conflitos é a característica básica desse ciclo
– manifestações de junho de 2013 e do ano de 2015 –, que possui a potencialidade de
alterar a relação entre Estado e sociedade, dissolvendo, inclusive, ciclos políticos de ação
antigos.

As mobilizações de 2013 e de 2015 estão associadas, no espaço, a uma


nova “geopolítica da indignação global” e, no tempo, a uma ruptura com
ciclos políticos, sujeitos, práticas e concepções prévias. Pode-se falar de
uma reconfiguração do ativismo no Brasil que afeta os atores, as práticas,
as formas de mediação, a expressividade e suas matrizes discursivas e
visões de mundo (BRINGEL, 2015, p. 14).

Os novos elementos da ação política que a partir daí tomam forma são responsáveis
por inúmeras mudanças no ativismo. Essa ação é definida como “viral, rizomática e difusa”
(BRINGEL, 2013, p. 45), ela abre mais espaço para os indivíduos, aproximando a
participação política da vida cotidiana, descentrando os sujeitos e organizações políticas –

788
o que, no entanto, pode limitar sua propagação no tempo e espaço e sua efetividade –,
expressividade e discursividade mais mediáticos e performáticos – o que, no entanto, pode
impedir o acúmulo social – e visões de mundo menos dogmáticas e mais libertárias. Essa
reconfiguração pode indicar melhoras substantivas em matéria de politização, uma vez que
a volta das ruas enquanto palco de conflitos sinaliza uma vontade de reinvenção da política,
possui caráter formativo e pedagógico na vida política dos indivíduos e “[...] expressam uma
ativação da cidadania e uma repolitização do social” (BRINGEL, 2013, p. 51).

SALDOS, SENTIDOS E PERMEABILIDADES

Os sentidos e saldos de Junho, em Fabiano dos Santos, são fascistas. O sentido


principal que fica das manifestações de junho reside naqueles que passam a dar as caras a
partir do momento em que a pauta inicial foi atendida. Daí em diante a “equação fascista”
venceu a disputa travada pelo significado das ruas, foi o seu discurso que imperou e se
propagou pela linguagem comum da população. Desta forma, o saldo produzido é fascista
– na mesma medida em que foi seu sentido – uma vez que com as manifestações os
fascismos emergem e passam a ser despudoradamente reproduzidos.
Ao contrário de Santos, na visão da Marilena Chauí Junho não é fascista per si. Em
seus textos ela afirma que o movimento de Junho passa pelo meio da esquerda e da direita,
que tentam apropriar-se de seu significado. No entanto, pelo fato de serem manifestações
organizadas pelas redes sociais – que, em sua opinião, facilitam a apropriação do
movimento pela direita – e por serem compostas predominantemente pela classe média
tradicional –antidemocrática e moralista, pois recusa a mediação institucional a partir de
críticas fascistas, e moralistas – seu sentido caminha na direção da chave “Fascista”. Ainda
que tenham indicado a possibilidade de construir uma nova práxis política – à maneira
lefortiana –, as manifestações não foram capazes de se voltar contra os trações autoritários
remanescentes na estrutura social e política brasileira.
A situação da interpretação do Leonardo Avritzer é um pouco mais delicada. Os
sentidos e saldos de Junho acabam tomando a feição da chave fascista. A classe média
tradicional, perfil central dos manifestantes, devido a motivos já citados acima, mobiliza
discursos de ataque à democracia, mais especificamente, aos avanços em matéria de
inclusão social, arduamente conquistados ao longo da democratização brasileira. Apesar
da emergência do conservadorismo e da direita, há outros dois saldos, imediatos a Junho,
que apontam para possibilidades de um aprofundamento democrático através de inflexões

789
na participação institucional. Em Junho, restabeleceu-se uma dinâmica de separação entre
mobilizações institucionais e não institucionais (AVRITZER, 2016, p. 15) e rompeu-se
com o monopólio do governo e da esquerda sobre a participação social, trazendo a
possibilidade de haver maior pluralização. Apesar de ter ocorrido a polarização, Junho
abriu a possibilidade para a pluralização, ou seja, para o fortalecimento da democracia,
podendo este ser alcançado se os governos ampliarem o escopo da participação social e
incluírem a classe média nas políticas progressistas. Algo a qual Chauí é veementemente
contra, uma vez que, segundo ela, criar programas que atendam a essa classe, implicam na
intensificação do consumo, da competição e do isolamento, reforçando o inferno urbano
(2013b).
No caso do Marcos Nobre, os sentidos de Junho são evidentemente autonomistas.
Não só recusou o bloqueio peemedebista, como também reinstitui a polarização da
sociedade por meio das ruas, consequentemente dando início a um processo de politização
da mesma. Uma politização que passa por um movimento, presente no Brasil e no mundo,
no qual a sociedade deseja cada vez mais tornar-se sujeito político, institucionalizando
novos espaços de participação e deliberação que vão além da relação vertical entre Estado
e sociedade. No entanto, seu saldo carece de institucionalização: até o momento somente
logrou desestabilizar o sistema político e fixar a ameaça cidadã, produto legítimo de Junho,
sensação instituída de que Junho pode voltar a qualquer momento.
A visão de Paulo Arantes a respeito de Junho é, inegavelmente, autonomista. A
“cidadania insurgente” a qual ele atribui o início, explosão e significado das manifestações,
representa a vontade e a capacidade popular de agir democraticamente por vias diretas,
sem a mediação do Estado e do sistema político, instituições alheias e reguladoras da
potência insurgente da massa popular. Agora, não podemos dizer que os saldos de Junho
são autonomistas, ou melhor, não podemos dizer que até o momento Junho realizou
grandes saldos. Nos anos posteriores a 2013, por meio de várias falas, Arantes indica a
existência de uma “polarização assimétrica” (2014b), em que temos de um lado uma direita
sem freios, cultivada e despertada pelos longos anos de lulismo – um pacto conservador
por excelência – e do outro lado, uma esquerda que contemporiza com o governo. Porém,
a potência insurgente de Junho ainda permanece; como o próprio título de um de seus
textos sugere, depois de junho a paz será total – uma ideia contra-intuitiva retirada de
Marcuse, em que se pretende dizer que estamos num estado de mobilização geral entre
forças desniveladas, mas que estão em movimento.

790
Breno Bringel, à maneira de Nobre, concebe os sentidos e os saldos de Junho como
autonomistas, no entanto, aponta mais saldos do que Nobre. Na sua visão, Junho se
inscreve dentro de um contexto mais amplo, dentro de uma “geopolítica da indignação
global”, em que tem espaço o surgimento de uma nova forma de ação política, um novo
ativismo. Mais enraizadas na vida cotidiana dos indivíduos, organizacionalmente horizontal
e libertária. No entanto, faltam caminhos que levem essa nova forma de ação à politização,
que não somente polarize a sociedade, mas que seja capaz de realizar na sociedade o
potencial de cidadania despertado em 2013.
Assim como Marcos Nobre e Bringel, Alonso e Mische atentam para o fato de que
os manifestantes mobilizarem um mesmo tema não significa que sejam motivados pelos
mesmos interesses, pelas mesmas visões de mundo, nem muito menos que sugerem as
mesmas alternativas. Elas foram muito bem-sucedidas na tarefa de localizar diferentes
repertórios nas manifestações de junho de 2013. Desta forma, é possível localizar
proximidades entre as chaves de interpretação “Fascista” e “Autonomista”, sem com isso
inferir que ambas são substancialmente, ou então secretamente, semelhantes.
Além da rua e da indignação geral como elementos comuns, as duas chaves
compartilham a crítica à mediação, aos partidos políticos e ao sistema político. Como vimos
claramente por meio de Santos e Chauí, a lógica fascista é avessa a mediação político-
institucional, fato que demonstra sua proximidade com ideias historicamente
antidemocráticas – autoritarismo, fascismo, nazismo. Ela vislumbra uma noção artificial de
unidade – à moda do mote “meu partido é o meu país” – que, no fundo, repele a
pluralidade de interesses e opções políticas, impedindo o reconhecimento e reforçando a
despolitização, da mesma maneira que a crítica aos partidos políticos e ao sistema político
operam segundo uma operação moralista, que não aponta as causas estruturais da
corrupção e dos déficits democráticos, centrando as críticas em qualidades próprias do
âmbito privado e transpondo-as ao âmbito público. Já a chave autonomista direciona sua
crítica aos limites que as instituições políticas tradicionais representam para a própria
democracia. Segundo sua lógica, os partidos políticos e os meios de participação social
existentes no sistema político são insuficientes, pois não aproximam, nem conectam a
sociedade e seus indivíduos à participação e decisão política. Pretende alargar o princípio
democrático de reconhecimento, inclusão e participação, seja por meio da “cidadania
insurgente”, seja na forma de uma nova ação política, ou seja, pela institucionalização de
novos meios de participação e deliberação.

791
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As duas chaves interpretativas aqui trabalhadas não são estanques. Primeiro, porque
como vimos na terceira seção, as próprias interpretações não o são: a relação entre os
sentidos e os saldos é complexa, podendo ser permeada por continuidades e novidades e,
até mesmo, por descontinuidades, inflexões e ambiguidades. Segundo, porque em Junho
há uma gramática comum disponível e passível de manipulação pelos diversos atores da
sociedade (TILLY, 1978, p. 8 apud BRINGEL; PLEYERS, 2015), o que implica em
admitir que, nem Junho, nem a realidade política posterior, são “unos”, e que, nem
poderiam o ser.
Assim, este trabalho contribui para uma melhor compreensão a respeito do que
aconteceu em Junho de 2013, pois o caminho de relacionar e contrastar distintas
interpretações a respeito de um mesmo acontecimento constitui uma forma fundamental
de compreender a densidade do mesmo, além de que fornece meios para compreender as
maneiras pelas quais a mobilização pensa a si mesma, já que as interpretações promovidas
por esses intelectuais também constituem uma semântica da própria luta pelo legado de
Junho, ou seja, também estão envolvidas na imediaticidade dos embates políticos.
Uma outra contribuição pode ser concebida a partir do momento em que temos
em conta a proximidade de Junho de 2013 e a dimensão dos problemas e embates políticos
posteriores, protagonizados desde as esferas político-institucionais, passando pelas diversas
esferas da sociedade, até a vida cotidiana. O acirramento que vivenciamos nas ruas, nas
urnas e nas redes sociais dão o tom da tensão pela qual a política brasileira passa, de forma
que as chaves interpretativas podem constituir meios de vislumbrar caminhos de
interpretação de um presente profundamente nebuloso, em que o sentido das mobilizações
parece pouco discernível até para os mais agudos filósofos, sociólogos e cientistas políticos.

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mundo. São Paulo: Boitempo, 2014.

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792
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793
PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA: LIBERALISMO, INTEGRALISMO
E COMUNISMO, SEGUNDO A VISÃO DE UMA DAS VERTENTES
DO CONSERVADORISMO CATÓLICO NA ERA VARGAS (1930-
1945)

Moacir Pereira ALENCAR JÚNIOR 402

Resumo: Plínio Corrêa de Oliveira (1908-1995) foi figura marcante no pensamento católico
brasileiro, tendo uma atuação muito ampla no cenário religioso e político do século XX. Apesar
de ganhar maior prestígio e ser reconhecido pela sua fase como líder da Sociedade Brasileira de
Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) a partir dos anos 1960, na juventude seu
pensamento católico e ação política já encontravam reverberação nos anos 1930 e 40, quando teve
participação como líder da Ação Católica Paulista e como Deputado Federal representando o
estado de São Paulo na Assembleia Constituinte de 1933/34, sendo eleito pela Liga Eleitoral
Católica, da qual foi um dos fundadores. Ele originou uma linha de pensamento conservadora que
iria se consolidar junto a uma expressiva vertente de intelectuais e pensadores católicos no Brasil e
no exterior, que ainda hoje, no século XXI, defendem sua prédica pautada numa vertente
conservadora com raízes no catolicismo tradicionalista. Durante o mestrado analisei sua ação
política e pensamento na Era Vargas, buscando ver como o pensador e intelectual agia em meio a
ebulição de eventos que ocorriam com o fim da Primeira República e com a Revolução de 1930,
que levava uma nova elite política ao poder, destacando eventos que abalavam o mundo neste
período, como a ocorrência da II Guerra Mundial. Os valores antiliberais e suas tendências
autoritárias/totalitárias colocavam em crise os valores defendidos pelas democracias liberais.
Comunistas, Integralistas, Liberais, Conservadores e Católicos estavam em disputa pelo seu espaço
na estrutura social brasileira. Este artigo tem como objetivo fazer uma breve descrição de parte do
estudo de minha dissertação, mostrando algumas nuances da construção deste pensamento
conservador de Plínio Corrêa de Oliveira e sua análise sobre as diferentes matizes ideológicas do
período perante o Catolicismo.

Palavras-chave: Era Vargas. Conservadorismo. Plínio Corrêa de Oliveira. Catolicismo.


Antiliberalismo.

IGREJA CATÓLICA E SUAS RAÍZES NO BRASIL

O clero apresentava certa ambiguidade em sua estrutura de atuação no Brasil


Colônia. A ideia de unidade Igreja/Estado se dava com a atuação dos sacerdotes em uma
espécie de burocracia paralela, financiada pelos cofres do governo geral. Esta burocracia
paralela desempenhou longas disputas contra o Estado pelo controle do poder político.
Sendo que a Companhia de Jesus (ordem dos jesuítas), possuíam de certa forma o

402 Estas cartas encíclicas do Papa Pio IX foram promulgadas em 1864. Quanta Cura foi um documento
papal enviado a todos os bispos do mundo católico, a fim de que esses mesmos bispos pudessem ter diante
de seus olhos todos os erros e doutrinas perniciosas que o Papa reprovava e condenava. Syllabus foi um
catálogo de 80 propostas errôneas, uma lista dos mais comuns erros do pensamento moderno (PAPA PIO
IX,1864 [1998]) Em suma, é a condenação da modernidade oficializada pelo Papa.
794
monopólio deste poder eclesiástico, tanto em Portugal como no Brasil (CARVALHO,
2008).
Apenas no ano de 1759, no caso luso-brasileiro, o Estado vence a Igreja com a
expulsão dos jesuítas, triunfando o regalismo , que já tinha sido reconhecido por Roma,
403

quando aceitou o Padroado. Portanto, “com a expulsão dos jesuítas houve uma crise geral
nos seminários, perdurando apenas alguns segmentos, assim mesmo com vida precária” . 404

Desta maneira, ao fim do século XVIII, o clero na colônia brasileira, era reconhecidamente
malformado e de costumes pouco acordes com a disciplina eclesiástica, com exceção de
uma minoria do alto clero, formada em Coimbra (CARVALHO, 2008, p. 182).
Já no fim do Século XVIII e início do Século XIX, a tônica geral dos membros
mais ilustrados do clero já era dada pelos ideais da Revolução Francesa e da Independência
Americana (princípios de liberdade política, democracia) – porém, o alto clero formado
em Coimbra não era atingido por estas perspectivas.
Para recompensar a coroa portuguesa por sua luta contra os mouros e por espalhar
o catolicismo pelo mundo, Roma lhe concedeu o padroado – direito para indicar bispos e
outros privilégios menores referentes à administração eclesiástica. Certos privilégios
assumiram relevante importância no Segundo Reinado brasileiro, sendo dois de grande
destaque: o direito de recurso ao governo em questões de disciplina eclesiástica e o direito
do placet, isto é, de censurar todos os documentos provenientes de Roma, inclusive
encíclicas. Neste contexto, o placet levará a Questão Religiosa, onde os bispos Dom Vital
e Dom Macedo Costa entram em choque com o Estado, na medida em que este não seguia
certas encíclicas aprovadas por Pio IX. Os dois bispos são punidos pelo Estado por seguir
os ideais ultramontanos das encíclicas Quanta Cura e Syllabus 405, sendo presos e suspensos
de suas atividades. Porém, com a saída do maçom Visconde de Rio Branco da Presidência

403
Jackson Figueiredo (1891-1928) foi líder da reação católica conservadora inspirada pelo pensamento
antirrevolucionário europeu do século XIX, fundador da revista A Ordem e do Centro Dom Vital,
instituições centrais na elaboração e na divulgação de sua prédica, em cuja direção o sucedeu Alceu Amoroso
Lima, após sua morte em 1928 (PINHEIRO FILHO, 2007, p. 36).
404 Segundo Joseph de Maistre “para se levar a cabo a Revolução Francesa foi necessário subverter a religião,
ultrajar a moral, violar todas as propriedades e cometer todos os gêneros de crimes” Joseph de Maistre.
Considerações sobre a França [1796]. (Paris, Complexe, 1988, p.132-133). Joseph de Maistre (1753-1821)
foi filósofo, escritor, advogado e diplomata. Era defensor de sociedades hierárquicas e do estado monárquico.
Ele defendia o retorno da Casa dos Bourbon ao trono francês e argumentava que o Papa deveria ter
autoridade máxima em questões temporais.
405 Visconde Luís de Bonald (1754-1840), autor da Teoria do poder político e religioso na sociedade
demonstrada pelo raciocínio e pela história (1796), 795se inscreve na linhagem antirrevolucionária e anti-
individualista. O visconde não apenas considera evidente a fundação religiosa das sociedades humanas, mas
pensa, sobretudo que ao procurar libertar-se de toda coerção para construir uma nova sociedade, os
revolucionários esquecem que a sociedade tem a primazia sobre o indivíduo. O indivíduo só existe por estar
firmemente inserido em uma rede complexa (grupos profissionais, família, nação) que lhe dá o existir como
ser social (LALLEMENT, 2008, p. 65).
do Conselho de Ministros, em 1875, e com a entrada de Duque de Caxias (muito católico),
o Imperador teve que anistiar os mesmos, já que Caxias decidiu que só assumiria a
Presidência do Conselho se houvesse a anistia dos bispos, além da suspensão dos interditos
dos mesmos, para voltarem à vida normal (CARVALHO, 2008b).
Ao longo da Primeira República, conforme destaca Miceli (1985), o processo de
“construção institucional” da Igreja Católica brasileira, se prende, de um lado, às novas
diretrizes e empreendimentos da Santa Sé durante a segunda metade do Século XIX, e de
outro lado, aos desafios organizacionais e condicionantes políticos que teve de enfrentar
no interior da sociedade brasileira.
As competências da fixação de normas e diretrizes de interesse para as atividades e
serviços eclesiásticos, assim como indicação e nomeação de prelados, além da criação de
dioceses e paróquias, deixava de ser competência do Imperador, e agora – na fase
republicana – passava a depender da alta hierarquia eclesiástica. Em meio a um sistema
político oligárquico, a tomada de decisões da Igreja exigiu cada vez mais amplas consultas
às lideranças leigas. Em vez de se restringir o processo decisório aos principais escalões da
hierarquia interna, os dignatários eclesiásticos buscaram ampliar o círculo de interlocutores
leigos, buscando desta maneira, barganhar as melhores condições de concessão de
subsídios de toda ordem por parte das autoridades públicas do novo regime (MICELI,
1985).

INTELECTUAIS PENSAM A AÇÃO DA IGREJA CATÓLICA NA SOCIEDADE


BRASILEIRA

A Revolução Russa, em 1917, vem a somar como algo que ameaça as bases do
catolicismo, trazendo as bandeiras do comunismo para o Brasil a partir da década de 1920.
A ocorrência destes fatos levará a instituição Igreja Católica a buscar reaver sua força dentro
da estrutura do Estado, e para isso investe toda a sua força na formação de uma elite
intelectual leiga, com o objetivo de promover uma reação católica no seio da sociedade
brasileira, seja na atuação direta na política, como no controle da vida moral. Esta elite
intelectual pensa no processo de recristianização da sociedade brasileira frente a
modernidade e ao progresso do mundo urbano, que passa a levar a secularização e ao
aumento do laicismo, que já preponderava na Carta Constitucional de 1891.
Neste contexto – no Brasil – começava a surgir com mais forma e conteúdo,
diferentes grupos de intelectuais católicos. Haveria, a partir de 1922, um “surto crescente
de expansão do catolicismo entre as elites intelectuais” que seria o maior da história, de

796
modo que “em qualquer momento anterior seria impossível apontar tal número de
católicos na primeira linha de pensadores, literatos, historiadores, professores, etc.”
(LIMA, 1967, p.1871).
Em 1921, com o apoio do Arcebispo coadjutor do Rio de Janeiro, Dom Sebastião
Leme, Jackson Figueiredo fundou no Rio de Janeiro o periódico A Ordem, e em 1922,
406

o Centro Dom Vital – próprio nome dava testemunho das posições de Jackson, que se
definiu abertamente como reacionário e ultramontano.
Segundo Villaça (2006), a meta de Jackson Figueiredo era a defesa da ordem e da
tradição, contra o revolucionarismo. A ação política de Jackson Figueiredo pode se resumir
nas palavras de Joseph de Maistre : “Não é a contrarrevolução o que se tem a fazer, mas
407

o contrário da revolução”.
Uma das influências que atuam sobre a construção intelectual de Plínio Corrêa de
Oliveira – que o leva a defesa incondicional da bandeira católica – além da formação
monarquista e ultramontana de uma parcela de sua família, remetem também as
perspectivas doutrinárias e ideológicas de Dom Vital e Jackson de Figueiredo, no Brasil;
assim como de alas do pensamento conservador contrarrevolucionário que se forma e se
consolida na Europa durante o Século XIX (nomes como Donoso Cortés, Bonald e
Veuillot).
Boa parte destes intelectuais católicos que atuarão no Brasil, segundo o sociólogo
Guerreiro Ramos, são bonaldianos408, apresentando uma interpretação conservadora da
doutrina cristã. Doutrinários por excelência, em suas obras existem escassas contribuições
ao entendimento concreto dos problemas das décadas de 1920 e 1930. Assim, apresentar-
se-iam como defensores da legalidade a todo preço, de mal definida “ordem”, bem como

406
Louis Veuillot (1813-1883) nasce na França. Ele foi jornalista e um dos grandes propagandistas e difusores
do pensamento ultramontano. Seu jornal L’Univers, de temática católica e de circulação diária, era conhecido
por criar polêmicas com as alas católicas moderadas.
407
O Estado Integral, nas palavras de Miguel Reale, era definido da seguinte forma: “o Estado é soberano,
está acima das classes, sendo superior a todas elas pela força de que deve dispor e pelos fins que deve
realizar”. Por isso que o modo de representação proposto pelo integralismo de Miguel Reale é o
corporativismo, pois “a corporação é o órgão estatal, onde se encontram os representantes dos empregadores
e dos empregados, ou melhor, dos trabalhadores da inteligência, do braço e do capital” Deste modo: “o todo
não deve absorver as partes (totalitarismo), mas integrar os valores comuns respeitando os valores específicos
e exclusivos (integralismo)”. O Estado Integral marcaria, assim, a reintegração (e reconciliação) do elemento
individual ao social, mostrando como indissolúvel a união entre ambos. Assim, no entender de Miguel Reale,
o Estado Integral é um Estado ético, porque se encontra 797 subordinado às “leis éticas”, isto é, a princípios que,
por um lado, impedem o Estado de, em seu alcance e ação, anular os indivíduos e suas personalidades, e por
outro, que o permitam agir sempre em defesa da Nação quando os interesses de alguns poucos grupos sociais
tentem se sobrepor aos da sociedade (RAMOS, 2008).
408
As tabelas com os números absolutos do survey organizado por Hélgio Trindade indicavam que entre os
dirigentes nacionais e regionais, 92% teriam filiação religiosa católica. Já entre os dirigentes locais e militantes
de base, a filiação religiosa católica caia para 61%, e 35% seriam protestantes.
da imprecisa tradição brasileira. Suas propostas reformistas da época referem-se a medidas
sobre a família, o ensino, os costumes, o corporativismo, o combate ao comunismo, a
recristianização do país. Considerando as revoluções políticas como fatores de
desagregação social, tiveram nula participação nos movimentos insurrecionais dos anos 20
e 30, que por princípio, tenderam a condenar (RAMOS, 1982).
Na visão do líder da reação católica Jackson Figueiredo, o tenentismo subverteria a
hierarquia no exército (instituição que deveria zelar por ela), sem contar que estas
mobilizações ameaçariam o equilíbrio entre as classes sociais. A mesma razão levaria
Jackson a reprovar as reivindicações operárias. As teses de Jackson Figueiredo estarão em
consonância com os movimentos políticos mais à direita nas primeiras décadas do Século
XX, que reagem contra tudo que for “revolucionário” (PINHEIRO FILHO, 2007).
É de vital importância destacar as origens e as circunstâncias sociais que levaram a
consolidação do pensamento conservador. Segundo Mannheim (1986), assim como um
estilo de arte não pode ser plenamente descrito sem se levar em conta a escola artística e o
grupo social que ele representa, também não podemos realmente entender mudanças em
um estilo de pensamento a não ser que estudemos os grupos sociais que são os portadores
destas mudanças. Sendo assim, de certa forma, a ligação entre os estilos de pensamento e
seus portadores não existem apenas nos momentos críticos da história ou nos momentos
de grandes crises sociais.
Dessa maneira, qualquer relevante estudo de estilos de pensamentos característicos
da primeira metade do Século XIX, começa, de fato, do momento em que a Revolução
Francesa operou como um agente de catálise em relação a diferentes tipos de ação política
e diferentes estilos de pensar. E será sobre a pressão ideológica da Revolução Francesa que
se desenvolverá um contramovimento intelectual que desenvolve suas premissas lógicas de
forma a mais extensa possível.
Conforme Mannheim:

Esse núcleo central, esse impulso em direção ao âmago do pensamento


conservador, está indubitavelmente relacionado com o que chamamos
de tradicionalismo. O conservadorismo, em certo sentido, surgiu do
tradicionalismo: de fato, ele é primordialmente nada mais do que o
tradicionalismo tornado consciente. Apesar disso, os dois não são
sinônimos, na medida em que o tradicionalismo só assume seus traços
especificamente conservadores quando ele se torna expressão de um
modo de vida e pensamento (que primeiro se desenvolveu em oposição
à atitude revolucionária) extremamente definido e consistentemente
mantido e quando ele funciona como tal, como um movimento

798
relativamente autônomo no processo social (MANNHEIM, 1986, p.
111).

Ou seja, o conservador pensa em termos do sistema como um meio de reação,


quando passa a se ver forçado a desenvolver um sistema com características próprias para
contrapor o progressismo, ou quando a marcha dos acontecimentos acaba por privar o
mesmo de qualquer influência sobre o presente imediato, sendo assim, obrigado a girar a
roda da história para trás, com o intuito de reconquistar sua influência. Mas segundo Nisbet
(1986), não foi somente contra a Revolução Francesa que os conservadores se revoltaram.
A perda do status também podia ser notada em toda Europa Ocidental, em vista das
mudanças econômicas, da secularização da moral e da centralização política:

Para homens tais como Burke e Bonald, a Revolução Francesa foi


apenas o auge do processo histórico de atomização social que remete à
origem de doutrinas tais como o nominalismo, a heterodoxia religiosa, o
racionalismo científico e à destruição daqueles grupos, instituições e
convicções intelectuais que foram fundamentais na Idade Média
(NISBET, 1986, p. 65).

O caso do conservadorismo católico no campo do pensamento político brasileiro,


em especial, tende a ter suas próprias peculiaridades frente a outras perspectivas
conservadoras, apesar de apresentar pontos de semelhanças em algumas premissas. Para
Rodrigues (2010), os pensadores Edmund Burke (conservador tradicionalista), De Bonald,
De Maistre e Donoso Cortés (conservadores contrarrevolucionários) serão os idealizadores
deste modelo de conservadorismo católico que será levado adiante no Brasil por Jackson
de Figueiredo, Alceu Amoroso Lima e outros intelectuais aglutinados a esse grupo católico,
caso no qual se enquadra Plínio Corrêa de Oliveira. Segundo Rodrigues:

Cada um desses pensadores faz isso por meio de escritos produzidos


diante de uma determinada conjuntura, os quais iriam servir de
sustentação à defesa da restauração da monarquia católica, à defesa da
autoridade pontifícia, aos privilégios da aristocracia, enfim, aos
privilégios da Igreja e, mais tarde, aos interesses de grupos, movimentos
e governos avessos à democracia. Tais pensadores criticavam os
princípios de liberdade, soberania popular, igualdade, além de, no caso
específico de Donoso Cortés, propor a ditadura do Estado para, em
casos excepcionais, conter o avança revolucionário popular
(RODRIGUES, 2010, p. 365).

799
PLÍNIO CORRÊA DE OLIVEIRA E O CATOLICISMO EM SUA VERTENTE
CONSERVADORA

A defesa dos valores da ordem e da moral defendida por Plínio buscava amparo
no pensamento de Louis Veuillot , pensador francês reconhecido no Século XIX, por ser
409

um dos grandes defensores do “pensamento católico ultramontano”.


Segundo Plínio Corrêa de Oliveira, um Estado jamais pode se colocar de forma
indiferente quando o assunto tratado é a Fé que emana e anima o ethos de uma nação.
Para ele:

Se o Estado fechar os olhos ao problema religioso, não poderá ele


proporcionar a felicidade à maioria, pois que, enquanto o Estado busca
um ideal independente de qualquer solução em matéria religiosa, não
pode atingir a felicidade ambicionada pela maioria, felicidade esta
subordinada, toda ela, a uma concepção religiosa ou irreligiosa qualquer.
Logo, o Estado agnóstico, indiferente, como o Brasil de hoje, não se
admite cientificamente. Admite-se, isto sim, o Estado protestante, judeu
ou ateu, tanto quanto o católico. O que não se compreende é o Estado
indiferente (OLIVEIRA, 1930).

O Estado teria vantagem em oficializar e amparar a Religião da maioria, porque


assim desenvolveria e defenderia a moralidade pública. Neste artigo citado, é evidente a
opção do pensador católico por um estado ultramontano, onde Estado e Igreja Católica
caminhassem juntos na construção social e cultural dos cidadãos.
Plínio Corrêa de Oliveira afirmava que o “catolicismo era uma religião e não uma
sociologia ou uma política”. No entanto, acidentalmente compreenderia também
princípios constitutivos da ciência política como de qualquer outra ciência social. A política
seria a “ciência prática” e como toda a ciência prática estaria subordinada a moral. A moral
embora fosse constituída por princípios acessíveis à simples razão natural (moral natural),
‘não poderia prescindir do Catolicismo’, pois a ‘lei divina de Cristo’ seria a confirmação e
a garantia da lei moral natural. Portanto, a subordinação da política à moral, implicaria,
pois, numa “subordinação da política à religião”. Resumindo, o campo da ciência e da ação
política próprio do Estado seria autônomo, mas “não independente em relação à Igreja”.

409 O ‘espírito revolucionário’, seria entendido como as correntes da extrema-esquerda, que teriam
certamente sua representação ao lado dos ‘demolidores de todos os matizes’, enviados pelas minorias de
alguns Estados, incluindo os deputados socialistas eleitos em São Paulo. Este grupo procuraria perturbar os
trabalhos, criar casos e forjar incidentes, impressionando pelo barulho, uma vez que não poderiam
impressionar pela força do número ou dos argumentos. Tudo indicaria que a influência deste grupo apenas
se tornaria ponderável se, em algumas de suas exigências, encontrassem a “indefectível benevolência dos
liberais lato sensu”. 800
Interessaria a esta, porque em qualquer parte onde o homem tratasse de regulamentar sua
ação, individual ou social, deveria respeitar ‘os princípios supremos da moralidade’
(OLIVEIRA, 1937a).
Para Plínio, a opção por um “État gendarme” (Estado policial) não seria algo
inteligente a ser adotado pelo Estado:

Cifrar-se o Estado à função simplesmente repressiva do policiamento é


um disparate. Ou o Estado trata de preservar a mentalidade pública dos
erros que a podem conduzir à rebelião e ao crime, ou ele será fatalmente
esmagado pelas ondas crescentes das revoluções e das imoralidades que
ele não poderá simplesmente coibir por via de repressão policial. Só um
cego não pode ver isto. E um cego que não queira ver (OLIVEIRA,
1938b).

Seria de interesse do Estado regulamentar a produção filosófica, científica e literária


visando elaborar um pensamento brasileiro. Logo, uma ditadura só interessaria aos
católicos como um “estado de coisas transitório”, em que um homem de pulso preparasse
o país a receber uma “ordem estável e normal”, fosse esta ordem qual fosse, ‘democrática,
corporativa ou qualquer outra’. Mas uma ditadura só deveria ocorrer quando o Brasil não
conseguisse mais por meios pacíficos, via “reformas orgânicas” e pela “manutenção da
Constituição” alcançar tais objetivos (OLIVEIRA, 1937b).
Plínio viria a fazer uma análise comparativa entre o liberalismo e o integralismo
perante o catolicismo, no caso brasileiro. Sua comparação nasce de um debate ocorrido
entre Plínio Barreto, liberal-democrático; e Miguel Reale, integralista. Plínio Corrêa de
Oliveira fazia questão de frisar que era um velho e assíduo leitor das obras/publicações de
Plínio Barreto, além de dizer que ele seria ‘um dos autores mais sorrateiramente
persuasivos que atuariam no Brasil’ naquele contexto. A análise comparativa que será feita
por Plínio Corrêa de Oliveira se origina a partir da crítica dirigida por Plínio Barreto à obra
que era lançada por Miguel Reale em 1934 – ‘O Estado Moderno: liberalismo, fascismo,
integralismo’ . 410

A análise de Plínio Corrêa de Oliveira começa destacando a seguinte crítica de


Plínio Barreto dirigida à obra de Miguel Reale:

410 Já o ‘espírito reacionário’, assim chamado por Plínio para acentuar sua oposição ao “espírito
revolucionário”, constaria principalmente de elementos eleitos pelo norte, e que encontrariam sua expressão
mais característica nos monarquistas integrais, desejosos de opor ao comunismo (que seria o “espírito de
revolução levado até os seus últimos desdobramentos”) o patrianovismo, isto é, o princípio da autoridade
adotado em todos os terrenos.
801
O meu cepticismo sobre as virtudes de regimes políticos absolutos, sobre
a possibilidade de encerrar os homens de uma nação no cárcere da
unidade mental e social, tira a sua seiva da observação desapaixonada do
que tem sido a humanidade na sua misteriosa peregrinação pela terra. Se
a Igreja Católica, que é mais admirável organização associativa e a mais
forte domesticadora de homens que o mundo jamais conheceu, não
conseguiu estabelecer, nem mesmo dentro de uma só nação, a unidade
de pensamento e de ação e integralizar o homem aos Evangelhos, que
são o mais famoso dos códigos morais, há de ser o Estado que consiga
integralizá-los aos seus postulados, que nem sempre se recomendam pela
moral e pela justiça? Se a ação integralizadora da Igreja falhou apesar da
autoridade divina em que se apoiou e de se dirigir ao que o homem tem
de mais belo e mais nobre, que é o sentimento, que é a espiritualidade,
a do Estado, que se inspira em um triste utilitarismo e só se alicerça nos
instintos mais grosseiros da humanidade, é que há de triunfar? Não se
pode afirmar que a dúvida seja destituída de fundamento. Não. Se a
Inquisição não pôde manter a Igreja ao abrigo das heresias, não serão as
tchekas que darão aos Estados a uniformidade de pensamento e a
subordinação integral dos indivíduos aos seus ditames. A razão humana
será sempre uma revoltada contra a razão do Estado. O não
conformismo é uma das leis da criatura humana (OLIVEIRA, 1934a).

Ao expor tal afirmação de Barreto, Plínio Corrêa de Oliveira começa sua análise
destacando que não haveria dúvida que o integralismo assumiria, perante o Catolicismo,
uma situação muito mais simpática do que o liberalismo. No fundo, porém, seria sempre
uma posição agnóstica que ditaria a norma de conduta de ambas as ideologias perante a
Igreja. E, enquanto o agnosticismo continuasse a servir de base para as concepções políticas
dos homens de Estado, não seria possível alicerçar no Brasil a civilização nova que ele teria
de produzir.
O liberalismo, segundo Plínio Corrêa de Oliveira, partiria do conceito de que,
sendo o conhecimento da verdade religiosa “inacessível ou de difícil acesso”, não poderia
o Estado transformar em causa sua a defesa de uma determinada Religião. O seu âmbito
natural seria tão somente o da consciência individual. E a questão religiosa, de problema
que interessaria à própria ordem pública, seria uma mera questão de ordem privada,
rebaixadas, consequentemente, as diversas igrejas, a simples instituições de caráter
particular. Já o integralismo, pelo contrário, reconheceria a Igreja Católica, ou as igrejas
como instituições que teriam direito a uma expressão político-social determinada,
elementos que seriam o dos mais ponderáveis, da vida social que o Estado integralista
deveria levar em consideração ao organizar-se. Daí surgiria um deslocamento novo, em
que a Igreja, da esfera de mera instituição de vida privada em que a pusera o liberalismo,
seria transferida para situação de instituição de caráter oficial. De modo que, ao contrário

802
do Estado liberal, o Estado integralista “afirmaria o espírito”. No entanto, ele não ousaria
romper de vez com “o pior dos preconceitos liberais”, que seria o “agnosticismo oficial”
(OLIVEIRA, 1934a).
As críticas que surgiam dirigidas ao Integralismo fariam referência a um dos
‘delicados aspectos da doutrina integralista’, que seria, para Plínio Corrêa de Oliveira, “seu
caráter interconfessional, que procuraria observar uma estrita norma de neutralidade, nas
suas relações com as diversas correntes religiosas existentes no País”. O chefe do
Departamento de Doutrina da AIB – Miguel Reale – fazia questão em frisar que não
haveria diferença entre o Deus que figuraria no lema integralista, de um Deus que figurasse
na doutrina espírita, protestante, etc. Tais afirmações de Reale faziam com que Plínio
Corrêa definisse o Integralismo como uma doutrina que não era católica nem anticatólica.
“Teísta”, “ela consideraria por um prisma de pretensa neutralidade todas as religiões”.
Plínio Corrêa de Oliveira fazia questão em dizer que “nunca compreendeu a
posição religiosa dos legionários do sigma”; uma vez que tradicionalistas como se
apresentavam, era de se imaginar que buscariam assegurar a primazia da Igreja Católica
sobre as demais correntes religiosas, às quais seriam apenas facultadas as liberdades de
cultos devidamente regulamentados. E se mostrava impressionado com as palavras de
“certos amigos integralistas” quando tratava desta questão sobre o papel do catolicismo no
integralismo:

Expondo esse modo de ver a muitos amigos integralistas, eles me têm


respondido que tal atitude alienaria necessariamente, dos integralistas, o
apoio dos protestantes, dos espíritas etc. E que uma corrente que dá seus
primeiros passos não pode prescindir de apoio algum, seja ele qual for,
desde que não venha de comunistas (OLIVEIRA, 1936a).

Como “corrente que não pudesse prescindir de apoio algum”, Plínio Corrêa de
Oliveira considerava que não seriam apenas motivos táticos, que conservariam ao
Integralismo seu caráter interconfessional, havendo, “na medula de seu pensamento, uma
tendência doutrinária má”, que, se não fosse corrigida a tempo, prejudicaria a fundo a AIB,
e mesmo o Brasil (OLIVEIRA, 1936a).
Com relação ao “caráter interconfessional do Integralismo” questionado por Plínio
Corrêa de Oliveira – merece destaque o avançado estudo sobre o integralismo feito por
Hélgio Trindade, que contou com um avançado survey que veio a analisar o contexto
sociológico individual dos integralistas. No que remete a religiosidade dos integralistas,

803
haveria uma diferença considerável da filiação religiosa dos ‘dirigentes nacionais e
regionais’ em comparação aos ‘dirigentes locais e aos militantes de base’. Destaca Trindade:

A quase totalidade dos militantes integralistas se proclama cristã; embora


o grupo majoritário seja de confissão católica, não se pode esquecer a
presença de um grupo considerável de protestantes dentre os integralistas
de base, em geral descendentes de imigrantes alemães no Rio Grande do
Sul e em Santa Catarina411 (TRINDADE, 1979, p. 146).

Plínio Corrêa de Oliveira dizia desaprovar a ação de Vicente Rao, então ministro
de Justiça de Getúlio Vargas, que visava para 1935, colocar o integralismo na mesma
classificação de “extremismos” junto ao comunismo (em meio a este cenário ocorreria a
ascensão da ANL – Aliança Nacional Libertadora – movimento encabeçado por Luís
Carlos Prestes).
Em sua perspectiva, “atar no mesmo pelourinho os seguidores de Marx e Plínio
Salgado não seria coeso”. O integralismo afirmaria Deus, a propriedade e a família; de
“modo que a mais negra acusação as ações do movimento não passariam de elogios róseos
perto do menor dos delitos comunistas”. Assim, Plínio Corrêa de Oliveira se solidarizaria
com os integralistas diante das medidas adotadas por Rao. Em suas palavras:

É com toda a solidariedade dos católicos, pois, que merece aplausos a


repressão ao comunismo, é com o meu mais formal protesto que se
coloca o integralismo ao lado daqueles quando é certo que nem sequer
podem ser articuladas contra eles as tropelias selvagens que foram o
preço do triunfo do fascio ou do hitlerismo (OLIVEIRA, 1934b).

Entretanto, Plínio Corrêa de Oliveira fazia questão de dizer “que seria clara sua
intenção de manter-se rigorosamente alheio a todo e qualquer partido ou ‘ação’ política”
(grifo do autor). Segundo ele, todo seu tempo e energia seriam voltados para os esforços
pela causa da Igreja Católica. Em suas palavras:

Não lutamos pela violência, não nos organizamos ‘tão fortemente como
o integralismo’ porque a Igreja não precisa dos homens mas os homens
é que precisam da Igreja. Afirmar o contrário é não ter fé, é não confiar

411
Professor adjunto de filosofia e sociologia da Universidade Estadual do Paraná – Unespar. O trabalho
apresentado é resultado parcial da pesquisa que vem sendo desenvolvida como estágio de pós-doutorado no
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Paraná – UFPR, com orientação da
Profa. Dra. Maria Tarcisa Silva Bega. sandiabo@yahoo.com.br
804
nos meios sobrenaturais que constituem a força própria da Igreja e não
conhecer o que seja a Igreja. A nossa confiança não está no integralismo
nem em qualquer outra organização humana, mas só na Igreja de Nosso
Senhor Jesus Cristo. Autênticos soldados da cruzada iniciada por
Jackson de Figueiredo, ainda estamos em que o mundo de hoje está, tão
perdido que só uma ação puramente católica o poderá evitar
(OLIVEIRA, 1935).

O integralismo – via AIB (Ação Integralista Brasileira) - moldado sobre o fascismo,


com suas adaptações nacionais colheria uma parcela da herança da direita nacionalista da
década de 1920. Segundo os integralistas, o liberalismo levaria ao caminho do anarquismo,
entregando a sociedade a si mesma. Sendo a “liberal democracia” - para os integralistas –
algo originado para depreciar o regime do voto e dos partidos, e ainda por cima promoveria
o domínio do país pelo capitalismo internacional (a influência estrangeira seria um mal de
morte para os integralistas). A figura central do movimento seria Plínio Salgado (FAORO,
2001, p.834).
No caso brasileiro, Plínio Corrêa de Oliveira considerava que os católicos deveriam
negar a qualquer partido “o monopólio da ação anticomunista”. E por mais iminente que
fosse o perigo comunista no Brasil, ele não seria de molde a obrigar os católicos a uma
atitude em que fossem forçados praticamente a abdicar de suas convicções para “abrigar-
se à sombra protetora de uma entidade messiânica” (numa referência crítica ao
Integralismo e a Plínio Salgado) (OLIVEIRA, 1937a).
Plínio Corrêa de Oliveira ressaltava que: “No Brasil, a divisão entre os integralistas
e os burgueses dos partidos liberais abriria uma deplorável brecha na frente anticomunista.
E, portanto, seria gravemente antipatriótico qualquer investida integralista contra o atual
governo”. Em sua análise, em meio aos partidos liberal-democráticos, as três grandes
correntes intelectuais que empolgariam o Brasil seriam: “o Catolicismo, o Comunismo e o
Integralismo”. Na apreciação dos fatos da época, os católicos não seriam guiados por
nenhum secreto pendor pela democracia ou pelo Estado forte (OLIVEIRA, 1936b).
Um grande número de liberais, de acordo com Plínio, se inclinaria para o
socialismo, que ofereceria às suas tendências igualitárias um derivativo cômodo. Outros
liberais, impressionados com as últimas e fortes críticas contra as teses liberais, fariam
concessões às correntes da direita, dispostos a pactuar com algumas reformas moderadas,
contanto que continuassem intactos os valores da liberdade, igualdade e fraternidade.
Plínio qualificava as tendências liberais como de ‘centro’ naquele contexto, enxergando os

805
extremos ardorosos e combativos do período no “espírito revolucionário” e no “espírito 412

reacionário” . Assim sendo, segundo Plínio, os católicos deveriam ora apoiar os liberais
413

(entendida a palavra com as restrições impostas pelo espírito católico), ora os


“reacionários”, desde que uns e outros prometessem seu apoio aos postulados católicos.
De modo geral, a ideia de uma ordem pública/social e de um estado forte se mistura
a um discurso liberal entre os intelectuais que vivenciam a década de 1930. Portanto, em
especial, a década de 1930, seria marcada fortemente no pensamento político brasileiro
por uma corrente autoritária, merecendo destaque para uma palavra: “Estado”, que
carregaria em si o sentido de “fortalecimento do poder público”. A consolidação e a
legitimidade desta palavra-chave no terreno político era o objetivo intelectual desse grupo
de pensadores. Haveria a delimitação de um espaço político para a implantação de
determinado modelo – Segundo Bolívar Lamounier:

[…] espécie de liberalismo aguado, que consistia em atenuar e cegar o


gume de algumas premissas do pensamento liberal clássico e em realizar
a mesma operação de atenuação e de obliteração do gume que possuía
o pensamento fascista no Brasil (LAMOUNIER, 1982, p. 550).

Para Mello Franco (1965), o Brasil que viveu o período que precede o Estado Novo
era uma nação onde predominou uma radicalização de caráter mais teórico – era a
doutrinação ora de comunistas e ora de integralistas, em meio a um governo que não
apresentaria qualquer diretriz teórica ou coerência doutrinária.
Já ao fim dos anos 1930, e início dos anos 1940, enquanto o mundo se via numa
guerra sem precedentes, Plínio Corrêa de Oliveira considerava que certos setores da
opinião mundial e algumas agências telegráficas vinculariam a característica do totalitarismo
com a forma de governo dirigida pelos “Srs. Hitler e Mussolini”, e que, portanto, a mesma
organização, “sem ter a sua testa esses dois políticos, já não seria tratada como totalitária”.
A definição da Igreja sobre totalitarismo seria “clara e irretorquível”. De acordo com Plínio:

É totalitário todo e qualquer regime, com toda e qualquer dominação,


governado por um, alguns, ou muitos homens, no qual o Estado

412
A questão para Ortega y Gasset era se distanciar dos significados conceituais do pensamento marxista e
tomar o conceito em outros sentidos, quer dizer, usá-los a partir de um expediente filosófico próprio.
413
A palavra destino é bastante recorrente no texto orteguiano. A palavra é usada no viés de que existem
condições que a natureza humana encontra-se condenada, ou seja, ninguém muda a família, o país em que
nasceu, pois esse é o seu destino, ou seja, sua condição definida enquanto destino. Destino também é usada
como vocação, quer dizer, o que se deseja, o que se busca e o que se define como aquilo que deve ser. Por
isso, a palavra é tomada em sentido filosófico. 806
pretenda invadir esferas que não lhe são próprias, atentando assim contra
os direitos da Igreja, da família, e das pessoas, incluindo o direito de
propriedade com toda a extensão que o Direito Natural lhe confere
(OLIVEIRA, 1943a).

Portanto, em última análise, esta seria a razão pela qual a Igreja condenava o
nazismo. E esta a mesma razão pela qual a Igreja também condenava o comunismo. Plínio
enfatizaria que “Totalitarismo e comunismo” eram termos que se equivaliam, qualquer que
fosse a roupagem que este totalitarismo se revestisse. Um estado totalitário, conforme
mostra Arendt (1990), busca destruir as tradições sociais, legais e políticas. Na educação
totalitária não se busca insuflar convicções, mas destruir a capacidade de adquiri-las. O
aparelho do Estado torna os homens dominados em todos os aspectos (regime totalitário
exige poder ilimitado). Anula divergências políticas da direita e da esquerda. O bom senso
treinado no sentimento utilitário é impotente contra esse “supersentido ideológico”
(domínio do homem sobre o mundo). As opiniões se tornam inócuas, arbitrárias e
destituídas de crítica. Neste cenário, o meio se transforma no fim, e a capacidade de agir é
aniquilada, uma vez que o livre consentimento seria um obstáculo ao domínio total.
Com relação ao nazismo e ao comunismo, Plínio afirmava em vários artigos em O
Legionário que a identidade do substratum ideológico do nazismo e do comunismo
apresentaria uma “solidariedade ideológica”. A essência destas doutrinas seria a mesma.
Ambas teriam um “mesmo pensamento central”, que seria “o Estado como fonte de todos
os direitos”. Em suas palavras:

(…) o homem não tem nenhum direito que lhe seja inerente, o que
equivale dizer que o homem não tem nenhum conteúdo que lhe seja
substancial e especificamente próprio, não tem realidade por si, mas é
um mero acidente da coletividade e, por conseqüência, do Estado. Esta
é a ideia central e dominante do nazismo e do comunismo, ideia
predileta de todos os mestres (…) de Marx a Durkheim. As diferenças
que se possam notar são acidentais, acessórias, versam apenas sobre
minúcias (OLIVEIRA, 1939).

Desde a assinatura do Pacto Ribbentrop-Molotov, de agosto de 1939 – que


consagrava a não agressão entre alemães e russos, assinado uma semana antes da invasão
da Polônia [evento que inicia a II Guerra] – Plínio passava a alinhar as ações alemãs e
russas no mesmo espectro. O marxismo ‘calcaria aos pés toda dignidade humana’ –
“pregaria a luta das classes”; “o ódio ao superior”; “a revolta”; “e a felicidade efêmera no
gozo da matéria”. O século XX sofreria de “duas grandes heresias”. Uma seria o

807
“comunismo”, herdado do século XIX; a outra seria a “idolatria pagã do Estado”, que
encontrava no “nazismo sua expressão mais completa”. Contra estes inimigos, os católicos
deveriam empregar o melhor de sua argúcia, procurando atentamente, nos documentos
pontifícios contra o ‘liberalismo’, contra o ‘modernismo’, contra o ‘socialismo’, contra o
‘comunismo’, contra o ‘nazismo’ e contra o ‘fascismo’ a condenação dos princípios
fundamentais de todos estes ‘erros’ (OLIVEIRA, 1938a).
Para Plínio Corrêa de Oliveira, estava sendo posto em jogo a Doutrina Católica.
Para ele, muitos julgavam a Igreja tão ameaçada, que se “sentiam inclinados a concessões
doutrinárias perante os atuais dominadores do mundo”, numa referência as máquinas de
guerra nazista [alemã] e comunista [soviética]. Conforme Plínio, a doutrina católica deveria
ser tratada como um “conjunto de verdades”, e se nesse conjunto, uma só verdade fosse
adulterada, a doutrina católica já não seria ela mesma. Ao se referir a Doutrina Católica
afirmaria:

[…] Assim, tentar acomodá-la, adaptá-la, ajeitá-la, é trabalhar para que


Ela perca sua identidade consigo mesma: em outros termos, é tentar
matá-la. E achar que o apostolado não é possível sem essa adaptação é
achar que a Igreja só pode vencer morrendo! (OLIVEIRA, 1941).

Sua crítica se dirige a intelectuais como o francês Jacques Maritain – idealizador do


Humanismo Integral – e no caso brasileiro, Alceu Amoroso Lima, que passava a se tornar
o fidelíssimo interprete de seu pensamento.
Jacques Maritain, em 1943, quando tratou do nazismo e do comunismo, afirmaria
que o primeiro seria a “última etapa de uma reação implacável contra o princípio
democrático e contra o princípio cristão em conjunto”, e o segundo seria a “última etapa
da destruição interna do princípio democrático, devido à rejeição do princípio cristão”. Ele
reconheceria que o comunismo seria um sistema econômico “e uma filosofia de vida
fundada sobre uma rejeição coerente e absoluta de transcendência divina, uma ascética, e
uma mística do materialismo revolucionário integral”. Todavia o comunismo apresentaria
uma “linha de movimento de emancipação do homem no ponto de convergência
histórica”, apesar de certos erros. E a nova situação da guerra, com a União Soviética se
unindo aos países aliados poderia promover uma restauração geral deste pensamento,
reintegrando-o a democracia. Isto seria possível junto daqueles que tivessem um
“sentimento de dignidade da pessoa”, que se “inclinaria ao comunismo mediante a revolta

808
contra as injustiças sociais”. Mas isto não se aplicaria aos “ortodoxos marxistas e nem aos
disciplinados do Partido Comunista” (MARITAIN, 1957).
Plínio Corrêa de Oliveira consideraria tal leitura como de um equívoco sem
precedentes, e que a main tendue sendo praticada no seio da Igreja, faria com que toda a
doutrina da mesma ficasse exposta a uma ideologia que sempre defendeu o materialismo
e uma rejeição clara da transcendência divina.
Em artigo publicado em O Legionário, também em 1943, Plínio afirmava que não
se devia dar o menor crédito à sinceridade com que o governo russo dissolvia a III
Internacional. Stálin escreveu a Harold King, representante especial da Reuters em
Moscou, uma carta em que procurava, mais pormenorizadamente, explicar o seu gesto. O
primeiro argumento alegado por Stálin — destacava Plínio — seria que a propaganda
anticomunista de Berlim perderia o ‘leitmotiv’ de que a União Soviética procurava intervir
na vida interna dos outros países, a fim de os bolchevizar. Stálin também afirmava a
necessidade de evitar as antipatias, que recaiam sobre os partidos comunistas do mundo
inteiro, pelo fato de sua obediência a um poder estranho, ou seja, a III Internacional. Plínio
analisaria isso como “expediente tático” de Stálin, adotado no interesse da “expansão do
partido comunista em cada país”. Stálin também afirmava em tal carta, que a dissolução da
III Internacional facilitaria a formação da frente única antifascista no mundo inteiro, o que
seria indispensável para o esmagamento do ‘eixo’. Stálin encerrava a carta com as seguintes
palavras: “facilita o trabalho dos patriotas em todos os países, unindo-os na luta contra a
ameaça de domínio do mundo pelo hitlerismo, assim abrindo caminho para uma futura
organização de nações, baseada na igualdade”. Para Plínio, a propaganda bolchevista
“retomaria livre curso com o fim da guerra”, sendo um erro crer na restauração geral do
pensamento da União Soviética (OLIVEIRA, 1943b). No último ano da Era Vargas (1945),
já se apresentava uma fase efetiva de transição para uma nova ordem política, onde o clima
político nacional estava inteiramente tomado pela sucessão de Vargas e pela realização de
eleições, ou seja, pelo término da experiência estado-novista.
“A nossa organização política” — declara Francisco Campos (um dos ideólogos do
Estado Novo) em março de 1945:

[...] foi modelada sob a influência de ideias que não resistiram ao test da
luta. Mudou, a datar de dois anos para cá, a fisionomia política do
mundo. As ideias democráticas, que até o começo da guerra pareciam
condenadas à derrota e que eram por esta antecipadamente
responsabilizadas, resistiram galhardamente à ordália da guerra. Fizeram
a sua prova e não apenas de maneira indireta; as nações aliadas deram a

809
esta guerra um sentido definido. Elas transformaram esta guerra em uma
guerra ideológica e a vitória não pode deixar de ser uma vitória ideológica
(FAORO, 2001, p. 844).

Plínio Corrêa de Oliveira — em meio ao desfecho da Era Vargas e o pós-II Guerra


Mundial — militaria de forma combativa, defendendo a bandeira anticomunista, e
criticando a ideia de democracia que se formatava no cenário político nacional, por
apresentar um “subsentido comunista”, já que o comunismo não seria julgado e
considerado “totalitário” tal qual o nazismo e o fascismo. Em setembro de 1945, Plínio
Corrêa de Oliveira daria entrevista à Folha da Manhã, onde defendia uma ampla
articulação nacional em defesa dos princípios católicos contra a expansão comunista.
Afirmava Plínio que “a luta dos católicos contra o comunismo nunca foi meramente
negativa”. A meta seria “refazer toda a civilização cristã, abalada em seus mais profundos
alicerces, pela impiedade contemporânea”. A civilização cristã seria uma decorrência dos
princípios evangélicos, e a razão de combater o comunismo não seria puramente negativa,
“não é apenas o anticomunismo, mas a realização de uma grande tarefa positiva”. Afirmou
Plínio a Folha da Manhã:

Um dos aspectos mais salientes da civilização cristã, é a justa cooperação


do capital e do trabalho, de acordo com os princípios traçados pela Santa
Sé. A Igreja tem desenvolvido, nos últimos séculos, um grande esforço
para resolver os problemas sociais e é prova disto a infinidade de obras
e estabelecimentos de toda a ordem, que no mundo inteiro se erguem
sob sua autoridade ou sua inspiração em favor dos desprotegidos. É
evidente que, sendo embora o fim próprio e direto dessas obras a
realização do bem que lhes é próprio, elas constituem acidentalmente
um poderoso meio de combate ao comunismo, difundindo os princípios
cristãos, aplacando o ódio entre as classes sociais, e resolvendo dentro
do limite de suas possibilidades, os problemas econômicos (OLIVEIRA,
1945).

CONCLUSÕES

Plínio Corrêa de Oliveira deixava claro sua escolha por uma Igreja Católica que
defendesse os valores tradicionais, fazendo uma crítica contundente ao “liberalismo
anacrônico” e ao “laicismo e agnosticismo desdenhoso e artificial” que teria marcado o
Século XX no país. Plínio defendia o “renascimento religioso” a partir da “ortodoxia da
doutrina e da pureza de vida”, deixando clara sua crítica ao “laicismo formalista”, e
enaltecendo a defesa das perspectivas ultramontanas, fazendo inclusive reverência a dois

810
dos ícones do pensamento ultramontano brasileiro nos séculos XIX e XX: respectivamente
Dom Vital e Jackson Figueiredo.
Este artigo teve como objetivo fazer uma breve análise da complexa teia de relações
que um intelectual viveria nos anos 1930 e 1940, quando variados eventos ocorriam
simultaneamente na estrutura social tanto na escala nacional como internacional. Plínio
Corrêa de Oliveira foi peça-chave na construção e na consolidação do pensamento
conservador tendo como inspiração o catolicismo. Sua ação política foi construída na arena
dos fatos e dos eventos do momento, onde integralistas, liberais, católicos e comunistas
buscavam seu destaque e relevância no jogo político e social de então. Como um defensor
inabalável da causa do catolicismo ele lutou de forma incessante pela garantia dos direitos
dos católicos e daquilo que ele considerava ser a verdadeira doutrina, mostrando o que
seria na sua perspectiva as incongruências do liberalismo, comunismo e integralismo, se
posicionando em meio as adversidades da secularização e da modernidade que poria em
situação crítica os valores tradicionalistas por ele defendidos. Isto o faz um pensador
conservador que não pode deixar de ser debatido e analisado no pensamento político
brasileiro. Sua prédica ainda é levada adiante no século XXI e tem força de reverberação.

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Legionário, edição nº174 (1935).

__________. Na expectativa – artigo publicado em 23 de agosto de 1936 – O Legionário,


edição nº206 (1936a).

__________. O Barrete Frígio, perante a Cruz, o sigma e a bandeira vermelha – artigo


publicado em 25 de outubro de 1936 – O Legionário, edição nº215 (1936b).

__________. Posição do “Legionário” em face da política brasileira – A renovação pela


qual pugnamos deve atingir a Nação inteira, desde a alma de seus filhos até os fundamentos
de suas instituições – artigo publicado em 10 de outubro de 1937 – O Legionário, edição
nº265 (1937a).

__________. Nem ditaduras nem aventuras – artigo publicado em 24 de outubro de 1937


– O Legionário, nº267 (1937b).

__________. No século das heresias políticas – artigo publicado em 29 de maio de 1938 –


O Legionário, edição nº298 (1938a).

__________. O Estado Pedagogo – artigo publicado em 10 de julho de 1938 – O


Legionário, edição nº304 (1938b).

812
__________. Os recentes acontecimentos proporcionaram uma confirmação sensacional
às previsões desta folha – artigo publicado em 27 de agosto de 1939 – O Legionário, edição
nº363 (1939).

__________. Nós também – artigo publicado em 13 de abril de 1941 – O Legionário,


edição nº448 (1941).

__________. ‘7 dias em revista’ – artigo publicado em 3 de janeiro de 1943 – O Legionário,


edição nº543 (1943a).

__________. ‘7 dias em revista’ – artigo publicado em 6 de junho de 1943 – O Legionário,


edição nº565 (1943b).

__________. Ampla articulação em defesa dos princípios católicos: declarações feitas a


“Folha da Manhã” pelo Sr. Plínio Corrêa de Oliveira, ex-presidente da Ação Católica – 13
de setembro de 1945 (1945).

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813
HIPERDEMOCRACIA: UM DEBATE CONCEITUAL EM TORNO
DO PENSAMENTO ORTEGUIANO

Antonio Charles Santiago ALMEIDA414

Resumo: Pretende-se debater o conceito de hiperdemocracia no pensamento político do autor


espanhol José Ortega y Gasset. Para tanto, à luz das obras Espanha Invertebrada e A Rebelião das
massas, intenta-se discutir o que se denomina de massa e de minoria, bem como a tipificação de
homem-massa e de homem-minoria no expediente orteguiano. Todavia, faz-se premente
considerar, antes mesmo do debate conceitual em torno do pensamento orteguiano, uma distinção
entre o pensamento de Karl Marx do pensamento de Ortega y Gasset, uma vez que é muito
recorrente, por parte de leitores desinformados, a leitura dos conceitos orteguianos com as lentes
do marxismo. Uma vez fazendo esta distinção, busca-se a clarificação dos conceitos de massa e de
minoria, bem como da tipologia de homem, homem-massa e homem-minoria para, a partir disso,
definir o que se compreende como hiperdemocracia e sua ação, na sociedade contemporânea, de
decadência, noutros termos, de rebelião contra os valores de civilização nobre. E por nobreza, no
sentido orteguiano, quer dizer, justamente, vitalismo, vocação e aventura circunstancial.

Palavras-chave: Massa. Minoria. Circunstância.

INTRODUÇÃO

José Ortega y Gasset nasceu no dia 9 de maio de 1883 em Madrid, Espanha, e


morreu em seu país e na mesma cidade no dia 18 de outubro de 1955. Este pensador
espanhol destacou-se como grande intelectual de sua época e promoveu uma nova
compreensão de política e de filosofia na Espanha e, por conseguinte, na Europa. Julían
Marías (1959), pensador, também, espanhol, adverte, em sua obra História da Filosofia,
que o pensamento orteguiano não se reduz à circunstância espanhola, pelo contrário,
invade a Europa e promove um debate em torno da política e da filosofia. Ainda segundo
Julían Marías (1959), a ação filosófica de Ortega y Gasset fez com que florescesse uma nova
escola de filosofia em Madrid à qual estão vinculados grandes nomes do pensamento
espanhol, entre os quais se destacam Manoel García Morente e José Ferrater Mora.
Ortega y Gasset era filho de família tradicional e desde a infância recebera uma
educação especial, por isso, logo cedo, tomou contato com a cultura clássica. Aos 15 anos
de idade, assistiu ao apogeu da geração de 1898, que, entre outras coisas, refletia sobre as
crises sociais e políticas de sua época. De 1898 a 1902, cursou Licenciatura em Filosofia e
Letras na Universidade de Madrid e se doutorou em 1904 com a tese Os Terrores do ano
mil.

414
O texto é traduzido direto do original, isto é, do espanhol.

814
Em 1902 Ortega y Gasset inicia sua atividade de escritor. Sua colaboração em
jornais e revistas da época e suas conferências e livros provocam um furor na sociedade
espanhola, sobretudo, em razão de sua postura demarcada e polêmica frente aos
problemas de seu tempo. Decerto que Ortega y Gasset procurou compreender a sociedade
espanhola conforme as circunstâncias históricas e culturais que motivaram a geração de sua
época, ou seja, a conhecida geração de 1898, em que a maior influência vem de Dom
Miguel Unamuno, um dos expoentes deste movimento de significação histórica e literária.
Ortega y Gasset não ficou indiferente às discussões filosóficas de seu tempo, pelo
contrário, as superou e lhes imprimiu um caráter particular, onde, com o abandono do
idealismo germânico que aprendera nas lições com os neokantianos – período que ficara
na Alemanha fazendo filosofia com Paul Natorp e outros pensadores de grande
notoriedade, desenvolveu a filosofia raciovitalista, ou seja, a contribuição filosófica que
acrescentara ao universo acadêmico fora justamente o raciovitalismo – vida como razão
última –, segundo a qual, a realidade não possui vida independente do homem, o que
existe, segundo o autor, é justamente uma simultaneidade do homem com a realidade
circunstancial.
Esta vida como razão última distancia-se do realismo e do idealismo acadêmico,
que eram temas recorrentes e capitais no século XIX, especialmente, nas universidades
europeias. A nova abordagem orteguiana propõe a superação dessas formas de análises e
acrescenta a vida como projeto vital, ou seja, não se pode falar de realidade ou mesmo de
ideia se não observarmos, diz ele, a vida como algo que deve ser construída com base na
liberdade do indivíduo - nas suas circunstâncias. Esta alternativa de superação do modelo
vigente de sua época instituiu sérias crises na sociedade, pois a discussão girava em torno
da razão iluminista e, de repente, a proposta seria subordinar a razão à vitalidade, pois a
realidade não tem vida própria sem a presença do homem na condição de ser
circunstancial. Nesse sentido, observando de outra maneira, com Ortega y Gasset há um
rompimento com a tradição filosófica contemporânea, isto é, torna-se perceptível, para o
homem espanhol, uma filosofia que sujeita à razão a vida humana e, por isso, a razão torna-
se refém da vitalidade. Esta epistemologia desagrada os intelectuais de seu tempo, que não
conseguiam conceber o conhecimento fora do prisma realista e idealista.
Por certo que, para Ortega y Gasset, o homem não tem natureza, mas história. Não
significa apenas que a historicidade do homem se dê no aparecer e desaparecer no tempo
e do tempo, pois assim também são os animais. A questão é que, tanto o homem, quanto
o tempo, segundo este filósofo, são históricos, isto é, o homem, no decorrer da história,

815
edifica sua vida biográfica e circunstancial. No limite da discussão, observamos que o
presente é resultado do passado e que o futuro será reflexo do presente. Quando se trata
da história, o autor faz por meio da vida humana, que se movimenta na circunstância e
como algo biográfico, em que a história é uma construção humana.

NOÇÕES DE POLÍTICA NO PENSAMENTO FILOSÓFICO DE ORTEGA Y


GASSET

Ortega y Gasset não era um militante político, mas um pensador político. É na obra
A Rebelião das Massas (1987) que o autor discute o que considera capital na vida política:
a rebelião das massas contra as minorias seletas. Inicialmente escrita, a partir de 1926, em
forma de artigos para um jornal madrileno, em 1930, o autor seleciona os textos que
considera importantes e publica a obra A Rebelião das Massas, uma espécie de resgate
teórico no que concerne à vida política. Os artigos se orientam pela análise da presença
ostensiva das massas no cenário urbano da Espanha e também da Europa. Segundo o
pensador Julían Marías (1991, p. 220), quando a obra fora publicada em inglês, o jornal
Atlantic Monthly anunciou aos seus leitores: “O que o Contrato Social de Rousseau foi
para o século XVIII e O Capital de Karl Marx para o século XIX, deverá ser A Rebelião
das Massas do senhor Ortega y Gasset para o século XX”.
No debate em torno da política, Ortega y Gasset, no primeiro capítulo desta obra,
compreende a sociedade segundo duas categorias: minorias e massas e acrescenta que não
se trata de uma divisão de classes sociais, mas de categorias de homens. Tais conceitos
apresentam-se com maior dificuldade de compreensão por parte dos leitores que os tomam
quase sempre numa perspectiva marxista. Asseverou Julián Marías (1991, p. 222): “O
pensamento de Ortega y Gasset é sistemático, embora seus escritos não sejam; eu comparo
a um iceberg, e que só é visível a décima parte e a outra só é possível enxerga-lo
mergulhando fundo”.
Julían Marías advoga em favor de outro argumento, segundo o qual é preciso um
aprofundamento das leituras de Ortega y Gasset, pois suas análises carecem de uma
observação histórica e cultural em que se encontrava o autor. Também, ainda de acordo
com esse pensador, os conceitos de minorias e massas não podem ser tomados na mesma
perspectiva que tomou Karl Marx quando observou a história e identificou a divisão social
entre burgueses e proletários conforme a relação de produção que se delineava no seio da
sociedade industrial. Ortega y Gasset utiliza tais conceitos para definir tipos humanos que
se associam nas diferentes esferas da sociedade. Logo, eles traçam discussões totalmente

816
distintas e, por isso, não pode ser pensado à luz da discussão marxista. A importância de
compreender os conceitos de “minorias” e “massas” é para esclarecer que o pensador
espanhol não era marxista e, também, para apontar uma visão dinâmica no que diz respeito
à conceituação política e filosófica nos escritos orteguianos e sua relevância para o
desenvolvimento da reflexão cultural da sociedade contemporânea.
A discussão gira em torno do fenômeno que é perceptível aos olhos humanos e
que é tema recorrente nos séculos XIX e XX, por isso afirma Ortega y Gasset (1987, p.
43): “As cidades estão cheias de gente. As casas, cheias de inquilinos. Os hotéis, cheios de
hospedes. Os trens, cheios de passageiros”. O pensador espanhol observa a presença da
massa na sociedade e denuncia a compleição desordenada de um público não qualificado
para participar das praças e lugares preferenciais de um grupo específico. Para os
pensadores da teoria elitista, a exemplo de Gustave Le Bom (1980), o inchaço social é
oriundo de uma massa amorfa que, sem qualquer condição de participação, resolveu
interferir na realidade circunstancial de forma violenta e arbitrária.
Para discutir a noção de massa, Ortega y Gasset subverte a ordem conceitual e
acrescenta um novo entendimento para o conceito de massa e para o de minoria. Contudo
não significa que o autor espanhol faça a discussão de forma inovadora, pois na sua
juventude assistiu no meio intelectual ao debate da teoria da sociedade de massa.
Consideramos que Ortega y Gasset segue, no primeiro momento, o expediente dos
teóricos elitistas conhecidos como teóricos da sociedade de massa.
A noção de política em Ortega y Gasset é tomada em sentido filosófico e, conforme
adverte o próprio autor, a questão é conceitual e não estritamente política. Por essa razão,
observa o filósofo (1987, p. 41) “para compreensão desse fato formidável convém,
naturalmente, que se evite dar um significado exclusiva ou primariamente político às
palavras ‘rebelião’, ‘massas’, ‘poderio social’, etc.”.
Diante do exposto, não se deve fazer qualquer relação entre o pensamento de
Ortega y Gasset com o pensamento de Karl Marx, enfaticamente no que diz respeito aos
conceitos de minorias e massas. Mesmo porque o próprio autor era enfático no seguinte
ponto – “não sou e não me pretendo marxista”415. Logo, Ortega y Gasset trabalha, no que

415
Há uma forte dose da Filosofia nietzschiana. Não só no que diz respeito à noção de nobreza, mas também
no sentido da perspectiva, para Ortega y Gasset, semelhante ao pensamento do filósofo Nietzsche; o
perspectivismo é a forma que o homem singular tem de ver e fazer o mundo, isto é, não se trata de uma
observação do mundo, mas de uma construção de mundo. Nobreza, no viés proposto por Ortega y Gasset,
representa exigência e obrigação, pois ser nobre não significa apenas ter direitos e privilégios. Para corroborar
essa concepção, o pensador espanhol (1987, p. 97) faz817uso da colocação de Goethe, de que “viver à vontade
é de plebeu: o nobre aspira à ordem e à lei”. O nobre deve viver esforçando-se cotidianamente para
concerne à tipificação de massas e minorias, com a noção de qualitativo, e não
simplesmente de quantitativo. O conceito de massa é qualitativo e visual, e não deve ser
pensado fora dessa perspectiva. Não se trata de observar a massa como aglomerado de
pessoas que não dispõem dos mecanismos de controle sobre questões econômicas e
sociais. A massa representa do indivíduo ao coletivo, e não tem qualidade específica, sendo,
portanto, genérico aos demais homens ou grupos de homens. Adverte Ortega y Gasset
(1987, p. 44):

[...] desse modo converte-se o que era apenas quantidade – a multidão –


em uma determinação qualitativa; é a qualidade comum, é o monstrengo
social, é o homem enquanto não diferenciado dos outros homens, mas
que representa um tipo genérico.

Há uma literatura muita específica que trata da conceituação do termo em pauta –


massa. No cenário político é bastante comum recorrer aos entendimentos marxiano e
marxista para pensar ou repensar essa conceituação. Entretanto, é preciso fazer uma
diferenciação desses autores com relação ao filósofo Ortega y Gasset, pois o mesmo não
fala de massa enquanto multidão, aglomerado, mas de uma maneira muito específica de
ser, e por isso, é dentro dessa massa que se encontra o homem-massa. A preocupação
orteguiana era refletir, no seu tempo presente, o fato que para ele parecia formidável, a
saber, o crescimento desse fenômeno denominado de ‘pensamento massa’, ou seja, desse
homem-massa. Nas palavras do próprio Ortega y Gasset (1987, p. 41):

[...] há um fato que, seja para o bem ou para o mal, é o mais importante
na vida pública europeia do momento. Esse fato é o advento das massas
ao pleno poderio social. Como as massas, por definição, não devem e
nem podem dirigir sua própria existência, e muito menos reger a
sociedade, a Europa enfrenta atualmente a crise mais grave que possa ser
enfrentada por povos, nações ou cultura.

Nesse sentido, para o autor espanhol, a massa sabe que é massa, tem plena
consciência disso, mas não se importa com esse fato; pelo contrário, ascende aos lugares
que não lhe cabe, ou seja, nos dizeres de Ortega y Gasset (1987, p. 42), “o que vemos, que
nos surpreende tanto? Vemos a multidão, como tal, de posse dos locais e utensílios criados
pela civilização”. Esta é a inquietação orteguiana, quer dizer, as massas, do homem singular

transformar as circunstâncias e, como privilégio, não deve esperar riquezas, favores, mas conquistas cotidianas
(Cf. ALMEIDA, Conceitos políticos em Ortega y Gasset, 2007, p.73).

818
ao seu coletivo, participando da vida pública, tomando decisões importantes no cenário
político e, acima de tudo, decidindo e definindo os rumos da vida pública, noutros termos
agindo de forma hiperdemocrática.

TIPOLOGIAS DE HOMEM NO PENSAMENTO ORTEGUIANO

Na obra Meditações de Quixote, publicada em 1914, o autor faz referência à


simultaneidade entre homem e circunstância, ou seja, a condição de homem encontra-se
imbricada com a sua realidade, mas adverte que não é a circunstância que determina o
caráter do homem; pelo contrário, a configuração de um homem salutar é oriunda da
reflexão e ação em torno da circunstância. Em outras palavras, na ontologia orteguiana
(1967, p. 130), “eu sou eu e minha circunstância”. Todavia, tal conceituação não é tão
simples, pois compreende uma temática no entorno do pensamento orteguiano. A autora
portuguesa, a professora Margarida Amoedo, estudiosa do pensamento de Ortega y Gasset,
faz a seguinte colocação (2002, p. 225), “praticamente todos os autores que estudam o
pensador espanhol concedem, de uma ou de outra maneira, ao tema da circunstância um
lugar de relevo que se deve a uma razão ainda mais profunda do que em muitos deles se
explicita”. Segundo a professora Margarida Amoedo, é muito comum que leitores não
especializados tomem a conceituação de circunstância como algo bastante simples, mas,
ainda de acordo com a professora, essa temática é, para os estudiosos, imprescindível para
compreensão de boa parte da teorização política do filósofo espanhol, ou seja, a
conceituação de circunstância está imbricada com a concepção de política, especialmente
com relação à tipologia de homem.
É certo que a discussão de circunstância é problemática e abre margem para
diversas interpretações. Assim, eis a assertiva a seguir de Ortega y Gasset (1987, p. 93):

[...] em princípio somos aquilo que nosso mundo nos convida a ser, e as
partes fundamentais de nossa alma são imprimidas nela de acordo com
o perfil de seu contorno, como se fosse um molde. Naturalmente: viver
não é mais do que lidar com o mundo. (1987, p. 93).

Essa passagem abre espaço para uma série de interpretações; primeiramente, para
uma espécie de destino, ou seja, o homem é condicionado pelo mundo e não consegue se
desprender desse mundo. Dessa forma, numa leitura rápida, é possível configurar Ortega
y Gasset como um autor fatalista; em outras palavras, defensor de uma ordem que se

819
reproduz de forma espontânea e que se determina de fora para dentro. Por essa razão,
tem-se a asseveração orteguiana, apresentada acima, “somos aquilo que o nosso mundo
nos convida a ser”. Por isso, faz-se premente levar em consideração o cuidado levantado
pela professora Margarida Amoedo (2002), quando assina que o conceito de circunstância
tem um lugar de relevo na filosofia orteguiana.
De volta à assertiva de Ortega y Gasset, uma leitura mais precisa e abastecida com
o espírito do existencialismo filosófico pode-se chegar, com relação à citação orteguiana
supramencionada, a outras conclusões: “Viver não é mais do que lidar com o mundo”.
Este é o mundo circunstancial que compreende desde a existência singular até o seu
entorno. E entorno são as possibilidades e as perspectivas disponíveis para essa existência
singular, onde cada sujeito se encontra. Assim, lidar com o mundo é uma lida pessoal e
dramática, quer dizer, para Ortega y Gasset, dito na obra Adão no Paraíso, a vida é esse
drama humano, (2000, p. 34) “Adão no paraíso é a vida simples e pura, é o débil suporte
do problema infinito da vida”. Não se pode atribuir fatalismo e destino ao pensamento
orteguiano, pois a questão é filosófica e, por isso, reclama do leitor uma compreensão
dinâmica e acurada dos conceitos que se relacionam entre si na formulação de um
expediente sociofilosófico, ou seja, na formulação de um novo existencialismo.
Consoante à discussão, Adão, cada homem em sua singularidade, vive com o
mundo, o seu mundo. E, por conseguinte, precisa lidar com ele, fazer escolhas e seguir a
brevidade da vida, no sentido de acolher os resultados de suas escolhas. E, numa
perspectiva orteguiana, esse Adão é o novo homem existencialista, o ser no mundo com
um mundo pessoal, um mundo intransferível, e a função dessa existência é viver nesse
mundo, lidar com esse mundo – uma espécie de relação cotidiana entre existência e
circunstância. Para Ortega y Gasset (1987, p. 78), pioneiro de um novo existencialismo
circunstancial, “viver é sentir-se fatalmente forçado a exercer a liberdade, a decidir o que
vamos ser neste mundo. Não há um momento de descanso para nossa atividade de decisão.
Inclusive quando, desesperados, nos abandonamos à sorte, decidimos não decidir”.
De acordo com esse existencialismo circunstancial de Ortega y Gasset, o homem é
um sujeito de ação, de decisão, e não deixa de ser responsável direto pela sua condição
existencial. Entretanto, a circunstância, lugar de possibilidades e perspectivas, pressiona-o
cotidianamente no sentido de fazer dessa existência uma biografia; em outras palavras,
homem e circunstância vivendo e se desenvolvendo simultaneamente. Por isso a condição
de ser homem é atrelada diretamente à condição circunstancial. Dessa maneira, mesmo
havendo a liberdade do ser existente, ele, o homem, limita-se às perspectivas e

820
possibilidades de seu entorno. Nesse sentido, assegura Ortega y Gasset (1987, p. 150), “a
rigor, a rebelião do arcanjo lúcifer não teria sido menos grave se em vez de procurar ser
Deus – o que não era seu destino – tivesse procurado ser o mais insignificante dos anjos,
que tampouco era”.
Conforme a citação apresentada acima, é possível que se compreenda, a partir de
Ortega y Gasset, a palavra “destino416” como vocação, quer dizer, vocação como escolha a
partir das possibilidades e das perspectivas. Assim sendo, o homem é um ser nobre, um
novo Adão, mas que, diante da circunstância, escolhe ou não essa dimensão de nobreza,
pois é de sua natureza a liberdade, ou como queira, o direito de fazer escolhas e tomar
decisões. Entretanto, baseando-se na metáfora exposta na citação acima, segundo Ortega y
Gasset (1987, p. 150), “Lúcifer não conhecia as suas possibilidades e perspectivas, pois
aventurou-se em algo que fugia de seu entorno, de sua condição real e existente. Ele, o anjo
de luz, arriscou-se numa luta inglória e por isso fracassou”, quer dizer, de acordo com o
pensamento orteguiano, ao homem compete conhecer a sua circunstância, reconhecer a
sua vocação e vivê-la radicalmente, ou seja, ariscar-se no que existe como possibilidade e
perspectiva para realizar-se como ser existencial.
Nesse sentido, para Ortega y Gasset, essa relação entre existência e seu entorno
passa a vigorar como noção de perspectiva política, isto é, do eu que é independente da
realidade, mas que não vive sem uma relação direta com a circunstância-mundo. E
circunstância é pensada e comparada com habitação, isto é, morada, realidade em que se
encontra o sujeito e, por consequência, a circunstância não é sujeito em si, todavia algo fora
dele, ligado a ele, que pode, dependendo das escolhas, determinar ou ser determinada.
Nas palavras de Ortega y Gasset (1987, p. 77):

[...] a vida, que é antes de tudo o que podemos ser, vida possível, também
é, por esse mesmo fato, decidir entre as possibilidades o que de fato
vamos ser. Circunstância e decisão são dois elementos essenciais de que
se compõe a vida. A circunstância – as possibilidades – é o que nos é
dado e imposto em nossa vida (1987, p. 77).

O projeto iniciado na obra Meditações de Quixote é de compreensão do homem


com o seu entorno; em outras palavras, com a sua circunstância. Essa relação se traduz em

Na obra A Rebelião das Massas, o autor faz uma provocação a esse nivelamento. De acordo com o autor,
416

Ortega y Gasset, (1987, p.56), “vivemos uma época de nivelações: nivelam-se as fortunas, nivela-se a cultura
entre as diferentes classes sociais, nivelam-se os sexos. Pois bem: nivelam-se os continentes”. Uma espécie de
nivelamento do indivíduo – uma mordaz crítica ao modelo de sociedade em que se igualam os tipos humanos
sem a percepção de que são diferentes em pensamento e ação.
821
salvamento da realidade social e política, outrossim, da situação educacional em que se
encontrava a Espanha de sua época. Entretanto, a discussão, no sentido político, não se
esgota na obra Meditações de Quixote, e ganha novos contornos nas obras seguintes como
Espanha Invertebrada e A Rebelião das Massas.
Na obra Espanha Invertebrada, Ortega y Gasset desenvolve a discussão que
começou na obra Meditações de Quixote, a conceituação de minorias e de massas. E de
forma muito singular é na segunda parte da obra mencionada, que se intitula de A ausência
dos melhores, que se inicia a reflexão em volta do problema denominado de A Rebelião
das Massas, que, em 1936, tornar-se-á livro. Por isso, assegura Ortega y Gasset (1959, p.
88), “hoje não há homem na Espanha”.417 A citação é uma crítica ao modelo de homem
que se forma nas escolas espanholas e, conforme o autor, falta ideal de nobreza418, grandeza
e entusiasmo para com a formação do homem espanhol. O que existe é, de acordo com
Ortega y Gasset, um nivelamento419 dos indivíduos em que todos ou quase todos são
formados pelo sentimento da massa, isto é, do esvaziamento da singularidade; da
irresponsabilidade e da falta de compromisso para com os destinos de uma Espanha grande
e nobre. Por conta isso, a metáfora: “Invertebraram a Espanha”.
A Espanha, em concordância com Ortega y Gasset, vive a sua invertebração, ou
seja, o império brutal das massas determina os destinos do povo espanhol. Para Ortega y
Gasset (1959, p. 95), “uma nação é uma massa humana organizada, estruturada por uma
minoria de indivíduos seletos”. Mas a Espanha, ainda segundo o autor, destoa desse ideal
e vive em função das massas, ou melhor, as massas assumiram os destinos de seu país e
imprimiram o ritmo civilizacional.

417
Problema no sentido de corrupção, desorganização, desarticulação política e conservadorismo.
418
No capítulo doze da obra A Rebelião das Massas o autor faz a seguinte reflexão: A barbárie da
especialização. Para Ortega y Gasset (1987, p. 144), “pois bem: acontece que o homem de ciência atual é o
protótipo do homem-massa. E não por causalidade, nem por defeito unilateral de cada homem de ciência,
mas porque a própria ciência – raiz da civilização – converte-o automaticamente em homem-massa, isto é,
faz dele um primitivo, um bárbaro moderno.” A dissertação de mestrado defendida no ano de 2007,
intitulada de Conceitos Políticos na obra de Ortega y Gasset, faz uma análise interna da obra e comenta cada
capítulo, e o autor da dissertação adverte: “no entanto, o agente da ciência foi reduzido a uma capacidade
ínfima de compreensão, ou seja, o homem se recolhe ao dado científico e não consegue perceber nada que
se encontra ao seu redor. Nesse sentido, assegura-nos Ortega y Gasset: ‘é um homem que, de tudo o que
deve saber para ser um personagem discreto, conhece apenas uma determinada ciência, e mesmo dessa
ciência só conhece bem a pequena parte de que ele é um ativo pesquisador”. Cf. ALMEIDA, Antonio
Charles Santiago. Os conceitos Políticos em Ortega y822
Gasset, 2009. 108 f. Dissertação (mestrado em Ciências
Sociais) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP.
419
Numa nota de rodapé, o filósofo espanhol Ortega y Gasset (1987, p. 95), no texto A Rebelião das Massas,
diz que: “é intelectualmente massa aquele que, diante de qualquer problema, contenta-se em pensar no que
já tem pacificamente em sua cabeça. É egrégio o que, ao contrário, desconsidera o que se encontra em sua
mente sem esforço prévio, e só aceita como digno dele o que ainda está acima dele e exige uma nova
caminhada para alcançá-lo”. Essa discussão já fora efetivada em momentos anteriores e serve para reafirmar
que massa não pode ser reduzida a ideia de povo ou multidão apenas.
Essa realidade em que se encontrava o autor espanhol fez dele um pensador de sua
circunstância, quer dizer, a circunstância da Espanha se fez como problema filosófico e
político a Ortega y Gasset. E, à vista disso, sua produção teórica foi destinada à
compreensão e transformação dessa realidade circunstancial.
A produção teórica de Ortega y Gasset se encontrava nos jornais, revistas e
conferências, tudo isso direcionado para um público espanhol. O filósofo espanhol atinava
constantemente para o fato de que o problema dorsal da Espanha era muito mais do que
um problema de política, quer dizer, segundo Ortega y Gasset, (1959, p. 96), “quando o
que está mal em um país é a política, pode-se dizer que nada se encontra muito mal. Este
mal é ligeiro e transitório, posso garantir que o corpo social se regulará a si mesmo um dia
ou outro”.
A provocação era sempre no sentido de inquietar o homem, o Adão despossuído
de seu drama humano, isto é, da vida como razão última. Sabe-se que a realidade política
era, no tempo de Ortega y Gasset, um grande problema420, mas essa era, para o filósofo
espanhol, uma questão secundária, pois a raiz disso, dessa realidade política, encontrava-se
na massa como legitimadora dessa problematicidade e, além de tudo, num governo
tipicamente de massa. Dessa maneira, segundo Ortega y Gasset (1959, p. 96), “assim,
quando em uma nação a massa se nega a ser massa, isto é, a seguir a minoria diretora, a
nação se desfaz, a sociedade se desmembra, e sobrevém o caos social, a invertebração
histórica”.
A reflexão acima é certamente pavorosa e, para alguns leitores, conservadora, uma
vez que as massas devem assumir, segundo Ortega y Gasset, a sua condição de massa e
seguir uma minoria diretora. Para o referido autor, a invertebração é, especificadamente,
o deslocamento das massas no cenário público. Assim, as massas não deixaram de ser
massas, mas avançaram na acepção de comandar e operar os destinos da Espanha, quando,
em concordância com o seu papel de massa, era seguir a minoria diretora. O resultado é,
para Ortega y Gasset, a invertebração política, ou seja, a sociedade se desfará com a
barbárie do cotidiano, com a vulgaridade política e com o desmantelamento das instituições
públicas, tendo em vista que as massas deslocaram-se da função que exerciam.

420
Adão é a figura perfeita do homem novo. O eu no mundo. Ortega y Gasset publica, em 1910, uma obra
denominada de Adão no Paraíso. E apresenta, pela primeira vez, o conceito de vida atrelado ao drama. Adão
representa, segundo o autor, o homem novo. Este, segundo o autor, não compreende o drama da vida, pois
se perde no cenário paradisíaco. Não compreende a dimensão do esforço e do sacrifício, pois tudo já é dado
em seu entorno. A metáfora é prefeita para que Ortega y Gasset reflita sobre o homem novo que se apresenta
no seio da sociedade contemporânea. 823
Não é sem razão que sobrevêm, para o autor supracitado, as críticas no que
concerne à sua teorização política. O universo acadêmico é, quase sempre evocado, no que
tange às conceituações de minorias e massas, pelo expediente marxista. E Ortega y Gasset
articula uma discussão de obediência das massas para com as minorias e, como se não
bastasse, fala de uma atitude de rebeldia das massas e de não aceitação de sua condição de
ser massa. Por isso, dito anteriormente, advém, para o filósofo espanhol, o título de filósofo
elitista e de conservador.
Certamente que a afirmação acima é, sem dúvida alguma, provocativa. A citação
faz parte do segundo momento da obra Espanha Invertebrada, no capítulo Império das
massas. É bom lembrar que, para esse autor, o problema espanhol ultrapassa a política na
medida em que a própria noção de política é secundária, ou seja, ela, a política, é fruto de
um modelo de homem que se tornou peça capital da engrenagem da vida humana, o
homem-massa.
No passado, para Ortega y Gasset, o homem-massa respeitava os limites da vida,
subordinava-se às instâncias superiores e, agora, na sociedade contemporânea, rebelou-se,
como bem esclarece o filósofo Ortega y Gasset (1987, p. 94), “viver é não ter limites algum,
portanto, é abandonar-se tranquilamente a si mesmo. Praticamente nada é impossível, nada
é perigoso e, em princípio, ninguém é superior a ninguém”.
O homem-massa, de posse de um nivelamento filosófico, igualou-se aos homens
de moral nobre, tornou-se senhor de si mesmo e, como se não bastasse, dos destinos da
própria sociedade. A vida tornou-se vulgar, tendo em vista que perdeu a magnitude do
mistério, do drama, da aventura, da singularidade e da nobreza.
Essa é a condição vulgar de vida que executa o homem-massa, porque a sociedade
contemporânea, por meio de suas possibilidades circunstanciais, oferece plena liberdade
para a nova modalidade de vida que opera o homem-massa. Ortega y Gasset (1987, p. 14)
aponta, da seguinte maneira, a presença do homem-massa na sociedade contemporânea:

[...] um homem feito de pressa, montado simplesmente sobre poucas e


pobres abstrações e que, por isso, é idêntico de um extremo ao outro da
Europa. A ele se deve o triste aspecto de asfixiante monotonia que a vida
vai tomando em todo o continente. Esse homem-massa é o homem
previamente esvaziado de sua própria história, sem entranhas de passado
e, por isso mesmo, dócil a todas as disciplinas chamadas irracionais
(1987, p. 14).

824
Este homem, que corresponde não só ao homem da multidão, mas também ao
burguês, ao técnico, ao especialista421 e a tantos outros que não compreendem a dimensão
dramática da vida, é o responsável direto pela decadência da civilização contemporânea.
Isso porque, para Ortega y Gasset (1987, p. 91), “nas agitações provocadas pela escassez as
massas populares costumam procurar pão, e o meio que empregam costuma ser o destruir
as padarias”. A metáfora orteguiana ajuda a compreender o que representa o homem-
massa para a sociedade contemporânea. A falta de criticidade, de organização política e,
principalmente, a ausência de comprometimento com a realidade depõem contra essa
espécie de homem, configurando-o como homem-massa; em outras palavras, despossuído
de singularidade e de competência422 para com os problemas do cotidiano.
No reverso da discussão tipológica, encontra-se o homem-especial. Ortega y Gasset
(1987, p. 45) o define assim:

[...] quando se fala de minorias especiais, a habitual má-fé costuma


distorcer o sentido dessa expressão, fingindo ignorar que o homem-
especial não é o petulante, que se julga superior aos outros, mas o que
exige mais de si mesmo que a maioria, ainda que não consiga atingir essas
exigências superiores (1987, p. 45).

Pois bem, a minoria, ou ainda, o homem-especial, é, no entendimento orteguiano,


aquele que compreende a vida como drama, isto é, esforça-se como um novo Adão,
homem novo que se aventura na vida, mas com responsabilidade, sacrifício e dedicação
aos ideais de grandeza, de nobreza e de cultura. Decerto que o conceito orteguiano de
homem-especial, semelhante a muitos outros conceitos do autor, recebe críticas de um
público não especializado e, por conta disso, o conceito de homem-especial é tomado,
quase sempre, no sentido marxista. Ou seja, é muito comum que leitores, que não
conhecem a fundo o encadeamento dos textos orteguianos, façam relações entre o homem-
especial de Ortega y Gasset com o conceito marxista de burguês; isso porque os conceitos
de homem-especial, nobreza e minoria seleta são remetidos por leitores desavisados, em
algum momento, a uma literatura marxista; todavia, conforme dito anteriormente, não se
trata disso e, nem de longe, é possível qualquer relação nesse viés.

421
Doutorando em Ciência Política pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade
Federal de São Carlos, com pesquisa financiada pela CAPES. E-mail: renato_7ri@yahoo.com.br.
422
A política externa brasileira, até a formulação da Política Externa Independente em 1961, se concentrava
sobretudo nas relações com os Estados Unidos, insistindo na estratégia delineada pelo Barão de Rio Branco
(chanceler brasileiro entre 1902 e 1912). O paradigma americanista partia da percepção da ascensão dos
Estados Unidos à liderança do sistema internacional e propunha o alinhamento pragmático brasileiro às
825 globalista.
posições desse país. A PEI inaugura o chamado paradigma
O homem-especial é, indubitavelmente, um nobre no sentido orteguiano. E nobre
não implica na questão hereditária; ao contrário, nobre é o sujeito que exige de si, que se
esforça cotidianamente para ser diferente e especial. Assim sendo, adverte Ortega y Gasset:
(1987, p. 96)

[...] é irritante a degeneração sofrida por uma palavra tão inspiradora


como ‘nobreza’, no vocabulário usual. Porque o fato de significar para
muitos ‘nobreza de sangue’, hereditária, a transforma em algo parecido
com os direitos comuns, em qualidade estática e passiva, que se recebe
e transmite como uma coisa inerte. Mas o sentido próprio, etymo do
vocábulo ‘nobreza’, é essencialmente dinâmico. Nobre significa o
‘conhecido’, entenda-se o conhecido por todo mundo, o famoso, que se
fez conhecer por sobressair da massa anônima. [...] Nobre, portanto,
equivale a corajoso ou excelente.

O expediente conceitual orteguiano é provocativo e suscita aprofundamento no viés


de estabelecer relações entre si, isto é, de compreender os conceitos dentro de uma
literatura específica, bem como de um estilo bastante próprio de teorização. Por essa razão,
o homem-especial, intitulado de nobre, deve ser o conhecido e o extraordinário no que diz
respeito a sua condição singular de aventurar-se na vida, na excelência das ações e, acima
de tudo, na sua capacidade de interferir nas circunstâncias de forma positiva, ou seja,
transformando-a em benefício do que é egrégio.
Assim, o nobre, no entendimento orteguiano, não pode ser pensado,
exclusivamente, pelas condições econômica, social e política; ao contrário, pode ser tudo
isso, mas a discussão é para além disso, quer dizer, segundo Ortega y Gasset (1987, p. 96),
“o nobre originário se obriga a si mesmo, e o nobre hereditário é obrigado pela herança”.
Não se pode pensar o homem-especial como o burguês, ainda que o burguês ou o
proletário possam e devam ser esse tipo específico de homem. Entretanto, não é verdade
que o homem-especial é simplesmente o burguês; afinal, é dito pelo filósofo espanhol,
especial o homem que se obriga a si mesmo. Essa obrigação é, no sentido filosófico, a
vocação de nobreza de que todos os homens dispõem, mas que nem todos assumem como
parte de sua vida circunstancial
E para desmistificar qualquer tentativa de elitismo no pensamento orteguiano, com
relação ao conceito de nobreza, alerta Ortega y Gasset (1987, p. 96), “os chineses, mais
lógicos, invertem a ordem da transmissão, e não é o pai quem enobrece o filho, mas é o
filho que, ao conseguir a nobreza, a transmite para seus antepassados, fazendo sobressair
sua estirpe humilde através de seu esforço”. Não resta dúvida de que a discussão orteguiana

826
ultrapassa, do ponto de vista conceitual, o elitismo de uma classe no entendimento de fazer
defesa das hereditariedades com relação à nobreza. Por conseguinte, qualquer tentativa de
aproximar esse tipo específico de homem, o homem-especial, com o homem burguês, no
sentido marxista, é infrutífera.
Há um capítulo na obra A Rebelião das Massas, que se intitula Vida Nobre e Vida
Vulgar, ou esforço e inércia. No âmago do referido capítulo, o autor relaciona a vida nobre
ao esforço, sacrifício e vitalidade para com a circunstância. Adverte Ortega y Gasset (1987,
p. 95):

[...] já o homem-especial ou excelente está constituído por uma íntima


necessidade de apelar por si mesmo para uma norma além dele, superior
a ele, a cujo serviço se coloca espontaneamente. [...] Ao contrário do que
se costuma pensar, é a criatura de seleção, e não a massa, que vive em
servidão essencial. Sua vida não tem sabor se não está a serviço de algo
transcendente. Por isso não vê a necessidade de servir como opressão.
Quando esta, por acaso, lhe falta, sente-se inquieto e inventa novas
normas mais difíceis, mais exigentes, que o oprimam. Isso é a vida como
disciplina - a vida nobre.

A circunstância, realidade em que cada sujeito se encontra, pressiona e apresenta-


se como sacrifício para todos os indivíduos. Entretanto, somente o homem--especial sente-
se inteiramente forçado a interferir e modificá-la na acepção de vocação. Concatenado à
discussão, esse homem não é outra coisa senão uma existência condicionada para a
grandeza de uma vida nobre. E vida no sentido amplo, quer dizer, vida social, vida política
e vida pública. E essa ação singular não é e não pode ser tomada como opressão, e sim
como ação, serviço e disciplina para com os ideais de sua existência circunstancial.
Por certo que a preocupação de Ortega y Gasset é muito maior em conceituar e
definir nos jornais, revistas e conferências a tipologia de homem-massa e, por isso, quando
aparece a tipologia de homem-especial, é sempre numa tentativa de contraponto, ou seja,
apresentar o reverso desse homem genérico. A intenção orteguiana é de se fazer denúncias
desse fenômeno denominado de massa, ou melhor, a rebelião das massas. Não obstante,
mesmo com espaços ínfimos com relação ao homem-especial, é possível, no interior do
expediente orteguiano, caracterizar esse tipo especial de homem. Em outras palavras,
existe, no itinerário orteguiano, a formalização do que se contrapõe a essa modalidade
vulgar de homem, a saber, o homem-especial.

827
HIPERDEMOCRACIA: A INTERVENÇÃO VIOLENTA DAS MASSAS

O conceito de homem-massa acha-se associado ao conceito do novo Adão423. Uma


figura do paraíso, onde o mundo é perfeito, a vida é perfeita e não se pode mais falar de
sacrifício, esforço e nobreza. Agora, tudo é possível. Quer dizer, a alma vulgar atingiu o
seu estado de êxtase. Assim esclarece Ortega y Gasset (1987, p. 102): “Já o homem
medíocre de nossos dias, o novo Adão, nem pensa em duvidar de sua própria plenitude.
Sua confiança em si é como a de Adão, paradisíaca”. Para elucidar este problema, Ortega
y Gasset recorre a uma diferença que considera eterna entre o tolo e o perspicaz: o primeiro
não desconfia de si mesmo, é uma espécie de animal aprisionado em seu casulo de
ignorância letárgica. O autor recorre à definição do filósofo Anatole France (1987, p. 103-
104): “Um néscio é muito mais funesto que um malvado. Porque o malvado descansa de
vez em quando; o néscio, jamais”. Não significa, segundo Ortega y Gasset, que o homem-
massa seja um perfeito idiota. Não é isso, ele consegue pensar, mas um pensamento
determinado.
É nessa perspectiva, de massa fechada em si mesma, que o filósofo Ortega y Gasset
(1987, p. 103) afirma: “Consagra a coleção de tópicos, preconceitos, pedaços de ideias ou,
simplesmente, palavras vazias que ao acaso foi amontoando em seu interior, e, com uma
audácia que só se explica pela ignorância, quer impô-los em qualquer lugar”. Isso provoca
um deslocamento de paradigmas, isto é, no passado, as massas viviam às margens do
processo político e cultural. Hoje, com o advento do que se considera moderno, o homem-
massa se percebe como homem de ideia e, por isso, pode rejeitar e suplantar as decisões
de uma minoria especial. Decerto que, para este autor, no passado as massas possuíam
crenças, costumes, mas nunca pensaram em dispor de ideia ou de pensamento.

É a partir desta concepção que Ortega y Gasset reconhece que o homem-massa de


hoje executa um repertório diferenciado do homem-massa do passado, já que as condições
são outras e, ainda, este homem acredita que pode pensar por conta própria e, também,
participar da vida pública. Já se apresentou anteriormente que o problema não é sua
participação, mas a forma de sua participação. É possível que a massa participe da
sociedade, entretanto o seu papel não pode ser o principal na sociedade, pensa o autor,
mas, o secundário, o de coadjuvante, a menos que consiga migrar para o estado de
minoria e assumir o caráter de pensar a sua circunstância e agir de acordo com os desejos

423
A fundamentação teórica da Política Externa Independente de San Tiago Dantas encontra-se
principalmente no Prefácio do autor no livro “Política Externa Independente”, que reúne os documentos e
pronunciamentos do Ministério das Relações Exteriores sob sua gestão (11 de setembro de 1961 a 25 de junho
de 1962). Cfr.: DANTAS, 2011.
828
de nobreza e grandeza, características essenciais das minorias autênticas.
Para Ortega y Gasset (1987), ainda será reconstruída a gênese do seu tempo
presente pelos homens da ciência. Neste momento, todos verão que, a partir de 1900, os
sindicalistas, realistas franceses e todos que postularam a participação das massas nos
espaços públicos edificaram na sociedade moderna a denominada “ação direta”. Por certo,
compreenderão o que se apresenta agora – a presença da massa em todos os lugares da
sociedade agindo de forma indolente. No presente momento histórico, segundo o autor, a
discussão encontra-se arrefecida. Isto é, não se percebe ou não se quer perceber o
fenômeno visual que se abre aos olhos, a rebelião das massas e sua consequente ação direta.
O processo da ação direta, entendido por Ortega y Gasset, é, ao mesmo tempo,
uma ação violenta. Mesmo sabendo que no passado a violência sempre tenha existido, é
na contemporaneidade que esta, por meio da ação direta, se sustenta como razão última.
Assim, adverte o filósofo de Madrid (1987, p. 87): “A civilização não é outra coisa senão a
tentativa de reduzir a força à última ratio”. Mas é na vertente contrária que caminham as
massas. Quer dizer, por meio da ação direta, as massas invertem a ordem e interpõem a
violência como causa final de sua ação. Vale ressaltar, segundo o pensador espanhol, que
no passado havia também a ação direta das massas na esfera pública, mas era casual e
ocasional. No momento presente, tornou-se, na visão do autor, uma prerrogativa
peremptória.
Com essa reflexão, Ortega y Gasset retoma a ideia de civilização e acrescenta que
não é possível pensá-la fora dos moldes da convivência singular e coletiva, ela nasce da
vontade do indivíduo que é, antes de tudo, egrégio. Por isso, afirma (1987, p. 108): “Somos
incivis e bárbaros na medida em que não contamos com os demais”. De certa forma, não
é possível, na perspectiva orteguiana, pensar o novo Adão dissociado da dimensão de
violência e de barbaridade.
E para contrapor à ação da violência e da barbárie das massas, Ortega y Gasset
apresenta a democracia liberal como garantia e desenvolvimento da civilização, que,
segundo o autor, pensa o homem em suas dimensões sociais e políticas na sociedade. E
por liberalismo, o pensador espanhol nos convida a pensar da seguinte forma (1987, p.
108): “O liberalismo – é conveniente que se recorde – é a suprema generosidade: é o
direito que a maioria outorga à minoria e é, portanto, o grito mais nobre que já soou no
planeta”. A democracia liberal é, para o pensador espanhol, a grande construção da
humanidade. O homem novo que vilipendiou a civilização, acreditando em seus desejos
pervertidos, desprezou o liberalismo autêntico.

829
Ortega y Gasset apresenta, na obra A Rebelião das Massas, sua decepção para com
a sociedade moderna, por ter despertado o tônus vital de um tipo gregário de homem que,
agora, controla os destinos da Espanha e, por conseguinte da Europa e, ainda, inverte a
ordem política, ou seja: se no passado a minoria era legitimada por uma maioria, agora a
maioria não legitima a política, pelo contrário, ela executa a política e os destinos da
sociedade. E como se não bastasse, as massas não desejam conviver com o diferente, ela
destrói tudo que não é ela. Observando a questão do ponto de vista da democracia liberal,
faz-se necessário considerar que, para Ortega y Gasset, esta concepção difere da
hiperdemocracia. Por democracia liberal, o filósofo espanhol denomina o modelo de
política capaz de restaurar o passado, pensar o presente e desenhar o futuro que se espera
de uma grande nação. A hiperdemocracia suplantou a democracia liberal e trouxe para o
seio da sociedade o caos e a barbárie, isto é, as massas atuam sem lei e o fazem por meio
de seus desejos que são, quase sempre, toscos e vulgares. Essa vulgaridade apresentada
pelo autor é uma denúncia ao modelo de democracia que assegurava a participação das
massas no processo político e social e, ainda, uma crítica aos teóricos iluministas que
defendiam a participação das massas no cenário político. Nesse sentido, afirma Ortega y
Gasset 91987, p. 46): “[...] creio que as inovações políticas dos anos mais recentes não
significam outra coisa senão o império político das massas.
Ortega y Gasset não era radicalmente contrário à participação das massas no
processo social e político, mas, segundo ele, as massas não querem assumir a
responsabilidade de suas decisões; elas participam, mas não sabem por que participam, e
isso gera um prejuízo no amadurecimento da política e da sociedade. É a isso que o autor
denomina de hiperdemocracia, ou seja, uma garantia de liberdade no processo de escolha
para quem não sabe escolher. Vejamos o que assegura o pensador espanhol (1987, p. 78):

Não se pode dizer que era isso que acontecia na época da democracia,
do sufrágio universal. No sufrágio universal não são as massas que
decidem; seu papel consiste em aderir à decisão de uma ou outra
minoria. Estas apresentavam seus “programas” – vocábulo excelente. Os
programas eram, efetivamente, programas de vida coletiva. Neles se
convidava a massa a aceitar um projeto de decisão.

As massas internalizaram a discussão de liberdade, tão apregoada no século XVIII,


e inverteram a noção de democracia. As massas avançaram, construíram seus caminhos e
desrespeitaram as minorias dirigentes. Já não há mais projetos para que elas sigam, pois

830
não precisam de projetos, elas simplesmente existem. Elas estão no mundo e mandam no
mundo. A denúncia, que faz Ortega y Gasset, é extremamente emblemática: primeiro, as
massas invertem o conceito de democracia e o transformam em hiperdemocracia. Isto é,
elas não se dão por satisfeitas com a representação política, elas querem se representar;
segundo, elas dominaram o poder público e, de imediato, implantaram novos valores. A
denúncia, que faz Ortega y Gasset, é extremamente emblemática: primeiro, as massas
invertem o conceito de democracia e o transformam em hiperdemocracia. Isto é, elas não
se dão por satisfeitas com a representação política, elas querem se representar; segundo,
elas dominaram o poder público e, de imediato, implantaram novos valores, valores
decadentes.

CONCLUSÕES

A obra A Rebelião das Massas figura como a mais importante do autor no que se
refere ao pensamento político. Ortega y Gasset perfaz um caminho que é totalmente
independente do pensamento marxista. É nesta obra que o autor sistematiza os conceitos
de minorias e massas e estabelece uma relação aprofundada entre eles por meio de fatos
históricos que transcorreram ao logo dos tempos. No ímpeto dos problemas sociais e
políticos da Espanha, Ortega y Gasset compreende a sociedade em duas categorias e passa
a denominá-las de minorias e massas. Segundo ele, as minorias que deveriam se organizar
para a liderança da sociedade não o fazem e, por isso, as massas se insubordinam contra
instâncias superiores. As minorias não administram a esfera pública e passam a viver em
função de seu mundo pessoal e particular. Quer dizer, perdem a dimensão do que é
público e se fecham no mundo privado.
A insubordinação das massas representa a configuração de uma sociedade violenta,
pois, quando não há singularidade e reflexão dos indivíduos que compõem o espaço
público e ainda a disposição de um regime democrático que garanta a vontade da maioria
nas decisões políticas, o resultado é, sem dúvida, na perspectiva orteguiana, a violência e a
barbárie. É importante esclarecer que, para Ortega y Gasset, não existe um regime, na
sociedade moderna, democrático; pelo contrário o que há é precisamente uma
hiperdemocracia. Nessa medida, a massa, que não dispõe de singularidade, começa a
participar de forma demasiada da vida pública e a interferir de forma arbitrária e sem
responsabilidade. A arbitrariedade origina-se de sua participação desordenada em razão
do insuflo de lideranças carismáticas.
Concluída a análise, chegamos à conclusão de que Ortega y Gasset desloca o

831
conceito de minorias e massas, pensado à luz da teoria marxista, e lhe atribui significados
diferenciados. A teoria política orteguiana faculta, por meio de sua dinâmica conceitual,
pensar a realidade sócio-política por meio de outro prisma, que é o aprofundamento
conceitual. Quer dizer, o conceito de massa não está vinculado à multidão, pelo contrário,
massa é o indivíduo que não pensa e não consegue interferir de forma positiva em sua
realidade circunstancial, sendo desde o indivíduo ao seu coletivo. E em relação à minoria,
não se trata da elite burguesa, tampouco do intelectual de seu tempo. Por minoria, o autor
compreende o homem especial que consegue se angustiar e construir um tônus vital para
sua circunstância.
Para Ortega y Gasset, é preciso primeiro pensar o homem e sua história e, depois,
compreender o homem e sua circunstância, para, posteriormente, enfrentá-los. Não é
possível resolver os problemas do presente sem ao menos pensar o passado, pois este é
gerador daquele, e, depois, compreender a circunstância em que se encontra o homem e,
subsequentemente, saber quem é este homem que povoa a sociedade contemporânea.
Questões desse tipo são fundamentais para que se compreendam os problemas sociais e
políticos de nossa época. Esta visão orteguiana aponta para uma dinâmica estrutural de
sociedade. Vemos que o homem é livre e escolhe o seu caminho, e sua escolha não é
determinada pelas circunstâncias, mesmo que chegando ao mundo já encontre um espaço
humanizado e construído. A riqueza teórica orteguiana é justamente fornecer ao homem a
possibilidade de compreender a tensão que existe entre homem e mundo e
consequentemente – mesmo parecendo paradoxal – a harmonia de um não viver sem o
outro. Afirma Ortega y Gasset (1967, p. 52: “Eu sou eu e minha circunstância, se não salvo
a ela, não salvo também a mim”.

REFERÊNCIAS

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CARVALHO, José Maurício de. Lições de Ortega sobre a vida humana: Ética e Filosofia
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832
___________. Contribuição Contemporânea à História da Filosofia Brasileira. Londrina:
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2002.

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LE BOM, G., A Psychologia das Multidões. Bibliotheca D'Educação Nacional, Lisboa


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LAVEDÁN, Maria Isabel Ferreiro. La docilidad de las masas en la teoria social de Ortega
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São Paulo: Martins Fontes, 1987.

___________. Adão no paraíso e outros ensaios de estética. São Paulo, Cortez Editora,
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___________. España Invertebrada. Madrid: Revista de Occidente en Alianza Editorial,
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1967.

KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Ortega y Gasset e a aventura da razão. São Paulo:


Moderna, 1994.

833
DO INTEGRALISMO AO DESENVOLVIMENTISMO
REFORMISTA: PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES À TRAJETÓRIA
POLÍTICA E INTELECTUAL DE SAN TIAGO DANTAS

Renato Ferreira RIBEIRO424

Resumo: Este trabalho apresenta os primeiros resultados e reflexões decorrentes de pesquisa sobre a
trajetória política e intelectual de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, compreendendo o
período de 1929 a 1964. Dantas foi um destacado intelectual e importante ator político durante todo
o período que vai da Revolução de 1930 até a instauração do regime militar em 1964. Sua obra e
ação estão profundamente entrelaçadas com esse rico contexto da história brasileira marcado pela
construção do Estado nacional centralizado e pela transformação do Brasil em uma sociedade
urbano-industrial. A partir do exame de sua obra teórica e de publicista e analista em periódicos,
pretende-se investigar o giro político-ideológico do autor – inicialmente caracterizado por uma posição
autoritário-conservadora (adesão ao Integralismo em seus anos de formação) para outra de caráter
democrático-progressista (identificada com o desenvolvimentismo reformista).

Palavras-chave: San Tiago Dantas. Integralismo. Corporativismo. Reformismo. Trabalhismo.


Desenvolvimentismo.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem a intenção de analisar a produção intelectual e a trajetória política


do jurista, político e intelectual Francisco Clementino de San Tiago Dantas, no período de
1929 a 1964. Muito lembrado por sua atuação como Ministro das Relações Exteriores durante
a fase parlamentarista do governo de João Goulart (1961-1962), Dantas foi responsável pelo
aprofundamento da Política Externa Independente (PEI) iniciada na gestão do chanceler
Afonso Arinos durante o governo de Jânio Quadros. Radicalizando a política exterior para
o desenvolvimento praticada na década anterior por Getúlio Vargas e Juscelino
Kubistchek, a PEI pretendia alcançar uma posição soberana e independente no conflito
bipolar para o Brasil a partir do aprofundamento de seu processo de desenvolvimento
econômico e significou uma ruptura com a tradição americanista praticada desde o início
do século XX pelo Estado brasileiro425. Além de Dantas ter contribuído com a elaboração de
um corpo coeso de ideias que fundamentou a PEI426, consolidando a nova atitude externa
brasileira de independência em relação aos blocos capitalista e socialista, em sua gestão o

424
Para o ex-chanceler Celso Amorim, “Poucos nomes da história de nossa política externa são tão unânimes
como o de Francisco Clementino de San Tiago Dantas” (LESSA; HOLLANDA, 2009, p.7).
425
Sobre o integralismo no Brasil, ver Trindade (1979), Chasin (1978), Araújo (1987), Cavalari (1999).
426
A expressão “desenvolvimentismo reformista” é utilizada por Bielschowsky (1988, p. 428) para designar a
parcela de atores e intelectuais desenvolvimentistas que passaram a defender políticas distributivistas,
principalmente através das Reformas de Base, no início
834da década de 1960.
Brasil reatou relações diplomáticas com a União Soviética e opôs-se à aplicação de sanções a
Cuba pela Organização dos Estados Americanos na Conferência de Punta del Este de 1962.
Por sua participação na construção e consolidação da PEI, a memória do chanceler San Tiago
Dantas permanece atual, sendo considerado um dos maiores nomes da história da Política
Externa Brasileira427 e figurando como um dos principais símbolos da construção da tradição
institucional do Itamaraty.
No entanto, para além de sua passagem pelo Ministério das Relações Exteriores, sua
atuação política e intelectual no cenário nacional entre as décadas de 1930 e 1960 tem sido
pouco estudada. Dantas foi um destacado intelectual e importante ator político durante todo
o período que vai da Revolução de 1930 até a instauração do regime militar em 1964,
passando pelos vários momentos e ajustes políticos do governo Vargas (revolucionário,
provisório, constitucional e autoritário), pela redemocratização de 1945, pela luta pelo
desenvolvimento industrial planejado dos anos de 1950 e 1960 e pela agudização do conflito
político no contexto pré-golpe. Dantas vivenciou estes eventos e sobre eles procurou intervir
seja por meio do debate ideológico, seja através de sua atuação política. Sua obra e ação estão
profundamente entrelaçadas com esse rico contexto da história brasileira marcado pela
construção do Estado nacional centralizado e pela transformação do Brasil em uma sociedade
urbano-industrial, sendo curioso notar que seu ingresso na política se deu pela adesão ao
Integralismo – movimento político de extrema direita e de inspiração fascista surgido em
1932428 –, passando, posteriormente, para o campo democrático e adotando uma posição
progressista que poderíamos chamar de desenvolvimentismo reformista429 no fim de sua
trajetória.
Entendendo, portanto, que San Tiago Dantas foi uma figura com capacidade de
refletir e interagir com o contexto de sua época, analisando e influenciando – na sua
condição de intelectual e homem público – a política nacional entre 1930 e 1964, este
trabalho tem como objetivo apresentar em linhas gerais a trajetória política e intelectual do

427
Sobre o debate intelectual do período, conferir Cruz Costa (1956), De Lorenzo; Costa (1997), Luz (1969),
Saes (1973), Carone (1969, 1974, 1979).
428
O corporativismo moderno, expresso em autores como Charles Maurras e Mihail Manoilesco, nas
Encíclicas Papais de 1881 (Rerum Novarum) e de 1930 (Quadragésimo Ano) e na doutrina e na prática
fascista, reconhece as modernas formas de trabalho e se afasta do liberalismo e do marxismo, propondo a
articulação social via mundo do trabalho e em bases coletivas amplas e abstratas (como nação, povo, Estado).
429
Dentre os principais intelectuais antiliberais e autoritários do período estão Alberto Torres, Oliveira
Vianna, Pontes de Miranda, Azevedo Amaral, Francisco 835 Campos, Alceu Amoroso Lima e Plínio Salgado.
Para uma análise sobre o autoritarismo e o corporativismo do período, conferir Mercadante (1965), Santos
(1978), Lamounier (1983), Vieira (1981), Fausto (2001).
autor, resgatando sua relevância e as principais ideias defendidas em cada uma de suas
fases.
Para esta pesquisa, realizou-se levantamento, coleta e sistematização da obra completa
de San Tiago Dantas, entre os anos de 1929 e 1964, o que permitiu a identificação e a
formulação de problemas e questões. Foram reunidos livros, artigos de jornais, discursos,
entrevistas, correspondências, textos de baixa circulação e outros documentos de sua autoria,
coletados a partir de visitas ao Acervo San Tiago Dantas, fundo pertencente ao Arquivo
Nacional com cerca de 6.500 documentos, e de obras publicadas. Através da investigação
realizada até o momento, pôde-se vislumbrar um panorama da evolução de seu pensamento
político e notar, como problema de pesquisa, a tensão entre o San Tiago Dantas integralista e
o San Tiago Dantas desenvolvimentista reformista.

FASES E METAMORFOSES

Nascido em 30 de outubro de 1911, no Rio de Janeiro, San Tiago Dantas entrou para
a Faculdade Nacional de Direito em 1928. Ali iniciaria sua vida política, inserindo-se no
vigoroso debate intelectual que se desenvolvia no Brasil e na capital federal desde pelo menos
o início da década de 1920. A expansão das classes sociais características de sociedades
urbano-industriais modernas, notadamente os industriais, o operariado e as classes médias
(MELLO; NOVAIS, 1998; FAUSTO, 1997; CARONE, 1969, 1974), a crescente
urbanização e os impactos da 1ª Guerra Mundial fizeram emergir na sociedade brasileira
novos projetos políticos, estéticos e econômicos que divergiam do liberalismo, do ultra
federalismo e da crença na vocação econômica agrícola (hegemonia do modelo primário-
exportador) predominantes até então. O ambiente intelectual de origem de San Tiago Dantas
foi marcado pelo despertar do nacionalismo, pela revolução estética dos modernistas, pela
renovação espiritual da direita católica, pela substituição do anarquismo pelo comunismo na
organização operária e pelo fortalecimento de uma ideologia industrialista, sendo que, tanto à
esquerda quanto à direita, predominava uma forte crítica à democracia liberal e ao liberalismo
econômico430, bem como a tentativa de “criar um pensamento nacional autônomo para
solucionar os problemas brasileiros, sem recorrer aos modelos estrangeiros” (TRINDADE,
1979, p. 19). Assim como na Europa, o antiliberalismo resultou em propostas autoritárias de

430
A pesquisa preliminar indica influência principalmente de Alceu Amoroso Lima, Oliveira Vianna, Pontes
de Miranda, Alfredo Rocco (jurista fascista) e Maurice Barrès (nacionalista francês).

836
organização do Estado e em soluções corporativistas para harmonizar o conflito de classes431,
que se tornaram hegemônicas no Brasil até o fim da 2ª Guerra Mundial e forneceram as bases
ideológicas para o governo e a ditadura de Getúlio Vargas (1930-1945), para movimentos
como o Integralismo e para a organização sindical432.
Na universidade, entre 1928 e 1932, Dantas integrou o Centro Acadêmico de Estudos
Jurídicos (CAJU), grupo político e de estudos que viria a fornecer alguns dos principais
quadros do integralismo do Rio de Janeiro na década de 1930, influenciado pelos autores da
renovação católica e antiliberais, bem como pelo fascismo italiano433. Nesse momento, San
Tiago Dantas surgiu como a principal liderança intelectual dos cajuanos434, o que lhe rendeu
prestígio político que extrapolou os muros da universidade.
Com a vitória da Revolução de 1930, foi designado, aos vinte anos, por Osvaldo
Aranha – um dos principais líderes do movimento revolucionário –, para ser um dos
redatores-chefes do jornal A Razão, órgão de difusão de ideias antiliberais e conservadoras de
São Paulo, dividindo essa função com Plínio Salgado, futuro chefe do movimento integralista
brasileiro. Após alguns meses de participação no jornal, retornando ao Rio de Janeiro, Dantas
tornou-se, em janeiro de 1932, oficial de Gabinete de Francisco Campos, Ministro da
Educação de Vargas e importante intelectual autoritário. Nesse mesmo ano foi nomeado para
a Cátedra Interina de Legislação e Economia Política da Faculdade Nacional de Arquitetura,
dando início à sua promissora carreira como professor e jurista, e filiou-se à Ação Integralista
Brasileira. Foi um militante ativo do movimento, tendo colaborado na elaboração de sua
doutrina teórica através principalmente da publicação de artigos em jornais, como A
Offensiva435 e outras publicações do período.
Nota-se no pensamento político do autor, nessa fase de militância estudantil e
integralista (1929-1937), a crítica ao individualismo e à democracia parlamentar liberal, bem
como o anticomunismo e a defesa de um Estado autoritário organizado de acordo com a
representação corporativista (DANTAS, 1936). O diagnóstico que Dantas apresentava sobre

431
Segundo o relato do escritor Octavio de Faria, “em dois pontos, se me recordo bem, não havia a mais leve
discrepância entre nós [membros do CAJU]: a lúcida rejeição de qualquer ideologia de base marxista e a
mais absoluta admiração pela inteligência de San Tiago Dantas. Jurávamos por ela (...) todos rezavam pela
mesma cartilha ‘Santiaguesca’” (DUTRA, 2014, p. 184).
432
Periódico doutrinário e prescritivo da AIB, lançado na cidade do Rio de Janeiro em 17 de maio de 1934
e extinto em 19 de março de 1938.
433
Movimento armado de membros integralistas contra o Estado Novo ocorrido em maio de 1938.
434
Em 1939, tornou-se Professor de Instituições de Direito Civil e Comercial da então Faculdade de Ciências
Econômicas e Administrativas e, em 1940, passou no concurso de Catedrático de Direito Civil da Faculdade
Nacional de Direito da Universidade do Brasil. 837
435
Os quatro principais partidos políticos do período 1945-1964 foram o Partido Social Democrático (PSD),
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), União Democrática Nacional (UDN) e Partido Comunista Brasileiro
(PCB).
a República Velha era de um liberalismo que servia ao exercício de poder das oligarquias
regionais em detrimento dos interesses nacionais. A sua leitura inicial sobre a Revolução de
30 segue nesse mesmo sentido: para ele, a Aliança Liberal representava nada mais que a
substituição daquelas elites por outras frações oligárquicas. Apenas com a aproximação a
Osvaldo Aranha e, sobretudo, a Francisco Campos, Dantas mudaria de opinião, colaborando
no novo regime.
A pesquisa preliminar realizada indica que constituía preocupação central do autor
compreender e fornecer soluções políticas para as grandes questões que se apresentavam na
década de 30 à sociedade brasileira: a ascensão das classes médias, o fenômeno proletário, o
capitalismo industrial. Em sua opinião, a democracia liberal havia se provado ineficaz para
solucioná-las e, por outro lado, urgia o estabelecimento de um contraponto eficaz ao
movimento comunista, que já havia sido bem-sucedido em entender essas mudanças e
oferecer suas fórmulas. Admirador declarado do fascismo italiano (pois em sua opinião era a
experiência prática que teria conseguido melhor responder às grandes questões de seu
tempo), chegou a elaborar um esboço da organização de um Partido Fascista Brasileiro, que
não saiu do papel. Para o caso brasileiro, Dantas considerava que uma verdadeira revolução
seria a substituição da ordem oligárquica-liberal por uma ordem autoritária sob o comando
de um chefe forte que fosse capaz de articular um projeto nacional e oferecer resistência ao
comunismo internacional (DANTAS, 1931). A adoção de políticas e instituições
corporativistas, como a representação de interesses de acordo com corporações profissionais
de trabalhadores e patrões em lugar do igualitarismo democrático característico das
democracias parlamentares, oferecia uma fórmula muito superior tanto à fórmula liberal
quanto a comunista, apostando na conciliação das classes sociais e na harmonia social, ao invés
de fomentar o conflito.

A democracia orgânica, com a participação real das corporações


profissionais, será, a nosso ver, a solução para os erros do atual Legislativo.
Neste caso, o voto será dado aos homens competentes, legítimos e
autorizados representantes de sua classe na Assembleia (DANTAS apud
CHRISTOFOLETTI, 2010, p. 135).

Pode-se, portanto, compreender estes anos de formação pelo relacionamento


intelectual e político desenvolvido por Dantas com o pensamento político antiliberal e o
Integralismo (primeira matriz teórica de sua obra/ação). Importante notar também que através
de sua ação política, Dantas procurou os meios de implementação desse ideário: na política

838
estudantil de uma das mais importantes Faculdades de Direito do Brasil; na ocupação de
cargos na estrutura estatal varguista, em proximidade com alguns de seus principais líderes,
em especial Francisco Campos; e na militância integralista. Dava início, assim, à sua longa
trajetória como intelectual e homem público, que não só procurava refletir sobre os problemas
nacionais, como buscava o poder, como forma de dar vazão aos projetos políticos que
formulava.
Ao longo da década de 30, Dantas foi se afastando do movimento integralista,
principalmente por discordar da crescente identificação dos movimentos de direita com o
nazismo e por não apoiar o Levante Integralista de 1938436, ao mesmo tempo em que
consolidava sua carreira na área jurídica437. Com o início da 2ª Guerra Mundial em 1939 e o
envolvimento brasileiro no conflito em agosto de 1942 ao lado dos Aliados (sem ignorar a
ambivalência do governo Vargas em sua relação com os países do Eixo), aumentam na
sociedade brasileira, na mesma proporção em que a guerra se aproxima do fim, as pressões
internas contra os excessos do Estado Novo. Há um declínio da ideologia autoritária
predominante até então, surgindo pressões pela democratização do sistema político (FICO,
2000, p. 170). Neste cenário, em 1942, Dantas rompe definitivamente com o Integralismo,
defendendo que membros e ex-membros abandonem o apoio à direita e ao nazifascismo e
que se engajem em um movimento de união nacional que incorpore todos os espectros
políticos, inclusive os comunistas:

É preciso que a mocidade brasileira que se engajou no movimento


integralista, num espírito de puro e ardente patriotismo, não objetivando
outra coisa senão a justiça social, a preservação da família, das tradições
espiritualistas do nosso povo, e a consolidação da nossa independência,
tanto econômica quanto política, rompa corajosa e resolutamente com os
seus compromissos ideológicos com a direita [...] (DANTAS apud
DUTRA, 2016, p. 490).

Em 1945, Dantas converte-se definitivamente ao campo democrático e soma-se às


vozes que pressionavam pelo fim da ditadura varguista e pela realização de eleições. Do ponto
de vista da trajetória e formulações intelectuais do autor, o período entre 1938 e 1945

436
O trabalhismo foi, ao lado do comunismo, uma das principais formas de expressão política da classe
trabalhadora no século XX no Brasil, expresso através dos ideólogos e dos programas do PTB. Seus
principais teóricos foram Alberto Pasqualini, Lucio Bittencourt, Fernando Ferrari e San Tiago Dantas.
437
Esta comunicação é uma adaptação de um tópico da minha pesquisa de pós-doutorado intitulada Forças
do Mal: os Prejuízos “raciais” da figura do judeu na Produção Integralista de Gustavo Barroso (1933-1937),
texto já entregue ao supervisor, em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Social, sob
839 cicerojoaofilho@gmail.com
supervisão do Prof. Dr. Marcos Silva. E-mail de contato:
caracteriza-se pela ideia de crise intelectual e rotação teórico-política. Acompanha, dessa
forma, um período de modificações ainda mais intensas da sociedade brasileira que vai se
inaugurar com o fim do Estado Novo, em 1945. Além da forte presença do pensamento
democrático no pós-guerra, radicalizou-se o debate ideológico que vinha avançando desde o
fim do século XIX sobre qual setor da economia reuniria as condições de modernizar o país:
o modelo agrário-exportador ou o modelo industrial (LUZ, 1969; BIELSCHOWSKY, 1988;
CEPÊDA, 2010). Diante das sucessivas crises do setor mercantil (a crise e a Revolução de
1930 são um reflexo da perda de capacidades do setor) e do fortalecimento gradual da
indústria nacional, este segmento consegue reunir o consenso social necessário para converter
“o projeto industrial em questão nacional e acionar o Estado em sua defesa” (CEPÊDA, 2010,
p. 115). As transformações das estruturas econômicas (propiciadas pela implantação das
indústrias de base durante o Estado Novo) e sociais são também acompanhadas por
transformações nas formas de sociabilidade do povo brasileiro, principalmente no que diz
respeito à construção de identidades políticas, organizadas sobretudo em torno do conflito
capital-trabalho que caracterizam a sociabilidade moderna (MELLO; NOVAIS, 1998). Com
a Constituição de 1946, os brasileiros tiveram seus direitos políticos e sociais reconhecidos, o
sistema partidário passou a ser organizado obrigatoriamente de forma nacional, surgindo pela
primeira vez partidos com programas ideológicos definidos438 e identificados com o eleitorado
(FERREIRA, 2010; LAVAREDA, 1991). Os anos entre 1946 e 1964 apresentam como
grande novidade a incorporação das massas na política brasileira em um ambiente
democrático, propiciando uma inédita efervescência da sociedade civil e culminando em
inúmeras lutas sociais e na elaboração de projetos políticos nacionais (FERREIRA; REIS
FILHO, 2007).
Em meio a este contexto de mudança e de seu afastamento do projeto autoritário e
integralista dos anos 30, Dantas dedicou-se à advocacia, à docência e à produção jurídica.
Assumiu uma posição heterodoxa (FARIA, 2016), defendendo a necessidade do Direito e
das fórmulas jurídicas serem capazes de captar e expressar os rumos da evolução social. Dessa
forma, para Dantas, a emergência das massas, principal fato social nas sociedades latino-
americanas, deveria ser traduzida na substituição da propriedade privada pelo trabalho como
núcleo central do Direito Moderno (DANTAS, 2001). Nota-se, nesse momento, o início de
elaboração de um novo pensamento político adequado às suas novas concepções não-
autoritárias. Agora adepto da democracia, permanecia, no entanto, a preocupação de Dantas

438
Pós-doutorando pela FFLCH/USP.

840
em oferecer soluções ao que considerava as grandes questões de seu tempo, dentre as quais a
questão operária e a inclusão das massas.
A partir sobretudo da década de 1950, sindicalistas, estudantes, intelectuais, militares,
parcelas da Igreja, a fração industrial da burguesia e grupos de parlamentares uniram-se em
torno de um programa comum de desenvolvimento econômico centrado na industrialização
e com fortes tons nacionalistas: o nacional-desenvolvimentismo (BIELSCHOWSKY, 1988).
Nesse período, Dantas aproximou-se gradativamente do campo nacional-desenvolvimentista,
defendendo um projeto de desenvolvimento industrial para o Brasil que levasse à superação
do subdesenvolvimento e a uma melhor distribuição da renda nacional entre as diferentes
classes sociais. Dantas elabora nesse momento uma interpretação mais refinada sobre a
sociedade brasileira, considerando que existia um vácuo de liderança gerado pela crise da
tradicional classe dirigente brasileira. Passou então a enxergar nas massas populares a principal
força que viria a ocupar essa posição de liderança, embora tenha continuado a declarar-se
contrário ao comunismo até o fim de sua trajetória:

A expansão brasileira numa quadra cuja característica mais saliente é o


declínio da classe dirigente em sua capacidade específica de resolver
problemas, fala melhor do que qualquer outro argumento em favor da
ascensão qualitativa da classe dirigida, isto é, das massas populares. [...] Uma
população melhorando continuamente e pelo seu próprio esforço de nível
de vida [...] constitui hoje, no balanço da crise brasileira, a contrapartida de
uma classe dirigente pouco realista, mal informada sobre os problemas e
discretamente empenhada em resolvê-los. (DANTAS, 1955, p. 23-24).

Sua atuação política ao longo das décadas de 1940 a 1960 focou-se principalmente a
arena da política exterior. Fez parte da equipe de brasileiros da Missão Abbink (1948-1949),
representou o Brasil na IVª Reunião de Chanceleres Americanos (1951), integrou a Comissão
Mista Brasil-Estados Unidos (1951-1953), desempenhou importante papel no
estabelecimento do Acordo Militar com os EUA (1952), foi delegado no 2º Congresso
Interamericano de Jurisconsultos (1953) e integrou a comissão brasileira à Vª Reunião de
Chanceleres Americanos (1959). Em todos esses episódios, procurou obter o compromisso
das nações desenvolvidas ocidentais, sobretudo dos Estados Unidos, em financiar o processo
de desenvolvimento econômico brasileiro, sob o argumento de que o combate ao
subdesenvolvimento seria o meio mais eficaz de evitar focos de agitação social e a infiltração
comunista, bem como de preservar a democracia e garantir a aderência do país ao bloco
ocidental-democrático no contexto da Guerra Fria (RIBEIRO, 2016). Em 1955, San Tiago
Dantas filiou-se ao Partido Trabalhista Brasileiro, aproximando-se do grupo de João Goulart

841
e tornando-se um importante ideólogo do trabalhismo petebista439. Seu trabalhismo, de
caráter democrático e moderado, se contraporia, sobretudo com a polarização do contexto
pré-golpe militar, à ação de grupos intrapartidários mais radicais, ligados principalmente à
liderança de Leonel Brizola (ONOFRE, 2012). Em 1957, torna-se dono e editor do “Jornal
do Commercio”, onde escreve diariamente sobre política nacional, relações internacionais,
desenvolvimento econômico, entre outros assuntos, divulgando o seu desenvolvimentismo e
trabalhismo.
Em 1958, Dantas elege-se Deputado Federal, dando início à sua fase de maior
protagonismo político. Se os governos de Getúlio Vargas (1951-1954) e Juscelino Kubistchek
(1956-1960) foram marcados pelo otimismo e pela crença no progresso e na modernização
que a industrialização traria, no final da década de 1950 a sensação de desilusão com as
promessas não cumpridas do desenvolvimentismo levaram ao recrudescimento da luta social
e à crescente polarização ideológica no Brasil. O bloco desenvolvimentista formado por uma
grande aliança de classes cinde-se. Formam-se então, segundo Bielschowsky (1988), três
posições: conservadora, reformista e revolucionária. Os setores nacionalistas e populares
passam a demandar reformas de caráter distributivo, bem como continuam a insistir na ampla
intervenção estatal e no controle do capital estrangeiro. Dantas se posiciona dentro do grupo
desenvolvimentista reformista, defendendo e capitaneando diversos projetos políticos nessa
direção.
Exercendo a vice-liderança do bloco parlamentar PTB-PSD, em 30 de março de
1959, em seu primeiro discurso no plenário da Câmara dos Deputados em nome do PTB,
San Tiago Dantas propôs o programa das chamadas Reformas de Base, o qual se torna desde
esse momento uma das bandeiras centrais dos movimentos nacionalistas e populares. Em
agosto de 1961, já uma reconhecida liderança política e intelectual, Dantas foi nomeado, pelo
presidente Jânio Quadros (UDN), embaixador do Brasil na ONU, embora não tenha
assumido o cargo devido à renúncia de Quadros. No governo parlamentarista de João Goulart
(PTB), em 11 de setembro de 1961, tornou-se Ministro das Relações Exteriores, contribuindo
para a formulação e implementação da PEI, que propunha uma inserção internacional
autônoma do Brasil em relação aos blocos político-militares da Guerra Fria, a obtenção dos
insumos para o desenvolvimento nacional na arena externa e a defesa do desarmamento, da
descolonização e da não-ingerência nos assuntos internos dos países. Deixou o Itamaraty em
25 de junho de 1962. Durante sua gestão, os episódios do reatamento das relações

439
VASCONCELOS, Gilberto. Ideologia Curupira. São Paulo: Brasiliense, 1979. p.69

842
diplomáticas com a União Soviética e da defesa da não-intervenção em Cuba geraram grande
repercussão interna e reações contrárias dos setores conservadores, o que provavelmente
levou à rejeição de seu nome para o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, para o
qual havia sido designado após a renúncia de Tancredo Neves, em 1962. A polarização do
debate nacional contaminava-se cada vez mais pelo quadro ideológico da Guerra Fria,
reforçando os extremismos de direita e esquerda.
Com o retorno do presidencialismo, Dantas foi nomeado Ministro da Fazenda, tendo
sido responsável, juntamente com Celso Furtado (Ministro do Planejamento), pela tentativa
de implantação do Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social. Afastado da
política desde junho de 1963, por causa de um câncer no pulmão, Dantas, já bastante doente,
passou a trabalhar pela articulação de uma frente política de centro-esquerda de apoio às
reformas de base e ao governo João Goulart, a Frente Progressista pelas Reformas de Base.
A proposta, no entanto, não recebeu o apoio da esquerda radical (organizada principalmente
na Frente de Mobilização Popular e liderada por Leonel Brizola), que a considerou
demasiado moderada. No contexto de extrema polarização política pré-golpe, Goulart se vê
obrigado a assumir o programa da esquerda mais radical, ao mesmo tempo em que os setores
de direita preparam o golpe militar de abril de 1964. Em 6 de setembro de 1964, Dantas
morre. Em um de seus últimos discursos, o autor tenta resumir em duas afirmações as bases
sobre a quais se assentou toda sua conduta pública:

a) a certeza de que a sobrevivência da democracia e da liberdade, no mundo


moderno, depende de nossa capacidade de estendermos a todo o povo, e
não de forma potencial, mas efetiva, os benefícios, hoje reservados a uma
classe dominante, dessa liberdade e da própria civilização;
b) a certeza de que a continuidade da civilização, com o seu resultado final
que é a reconciliação dos homens, depende da nossa capacidade de
preservar a paz, substituindo a competição militar entre os povos por
técnicas cada vez mais estáveis de cooperação e de convivência, e
caminhando para uma integração econômica que nivele as oportunidades,
com a rápida eliminação dos resíduos do imperialismo e das rivalidades
nacionais (DANTAS, 1963).

NOVOS PROBLEMAS E HIPÓTESES

Pode-se considerar, pelo que foi exposto, que nas décadas de 1940 a 1960, após a
militância integralista e o período de crise e reposicionamento intelectual, Dantas realizaria a
inflexão política de seu pensamento e sua ação: da postulação de um modelo de Estado
autoritário que deveria regular o conflito de classes através de políticas corporativistas para a

843
firme defesa de um projeto de desenvolvimento nacional autônomo que, sob bases
democráticas, levasse à substituição da classe dirigente tradicional pelas massas. É importante
notar neste momento o triplo efeito de suas ideias políticas: no debate intelectual, no contexto
político-partidário e institucional, e, por último na condição de state maker no apoio a ousados
planos de transformação social: as Reformas de Base, a Política Externa Independente e o
Plano Trienal.
Realizadas essas primeiras aproximações ao pensamento e à atuação de San Tiago
Dantas ao longo de sua vida pública, pode-se avançar na elaboração de novas questões de
pesquisa e de hipóteses de trabalho. A questão central que o nosso trabalho futuro pretende
desenvolver assenta-se na perspectiva de compreender as causas e processo da mudança
ideológica do autor no rompimento com o integralismo e aproximação com o campo
desenvolvimentista reformista. Considerando que em cada uma das fases (integralista e
desenvolvimentista reformista) Dantas apresenta interpretações e projetos políticos
divergentes, quer-se responder de que forma se deu a passagem de uma posição autoritária-
conservadora para outra democrática-progressista. Pergunta-se sobre o quê mudou em seu
pensamento e ação: o seu diagnóstico dos problemas de fundo da sociedade brasileira, a sua
filiação teórica, as suas experiências políticas consolidadas ou a assimilação de novos
problemas e questões incapazes de serem resolvidas no marco teórico-ideológico anterior?
Neste procedimento de investigação pretende-se: a) mapear em cada fase (incluindo
o período de crise e mudança de perspectiva ideológica) sua filiação teórica, a agenda de
problemas, os diálogos intelectuais e os nexos entre todos estes aspectos com uma visão de
mundo consolidada e base de um receituário político; b) investigar os elementos explicativos
da “mudança” e as permanências conceituais e ideológicas no fluxo de transformações de sua
produção intelectual e ação política no período recortado, pautados no seguinte leque de
problemas: nacionalismo, relação Estado-Sociedade, natureza e resolução do conflito político,
classes sociais e problema nacional, individualismo e corporativismo, relação entre contextos
interno e internacional.
Como hipótese inicial, parte-se da afirmação da existência de algum grau de coerência
e continuidade entre as fases do autor que permite entender o conjunto de sua produção,
tanto na fase integralista quanto na desenvolvimentista reformista, em suas formulações
teóricas e projetos políticos. Com base nas pesquisas e análise efetuadas até este momento do
trabalho, é possível apontar duas linhas de continuidade na elaboração teórica de Dantas no
período: a permanência, explícita ou mais de fundo, da visão organicista da sociedade, avessa
ao individualismo (e, por extensão, ao liberalismo) e ao comunismo; e a permanência do tema

844
da luta de classes como elemento inexorável da vida social moderna e as formas de seu arranjo
em uma alternativa "não comunista", de cunho nacionalista e coletivo. A preocupação de
Dantas em compreender intelectualmente a emergência da classe trabalhadora e em postular
propostas para sua incorporação, de modo harmonioso, na política nacional está presente no
conjunto de sua trajetória, passível de ser investigado como "elo de ligação" entre o momento
integralista e a fase desenvolvimentista reformista. Da mesma maneira, a inclinação pela
concepção "orgânica" de sociedade (presente no contexto nas vertentes do Integralismo, nas
correntes do pensamento católico, em parte expressiva do projeto tenentista ou em autores
como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e Francisco Campos, entre outros) também pode ser
investigada como elemento permanente de uma concepção explicativa sobre a formação
social e seu corolário nas formas institucionais e políticas. O balanço entre inclinação
autoritária versus postura democrático-progressista ocorre, por sua vez, no período 1938-
1945, momento fundamental para compreensão do processo de mudança substancial em seu
pensamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através desses breves apontamentos sobre as diferentes fases de San Tiago


Dantas, obtém-se um panorama mais geral sobre a evolução da ação e das ideias políticas
do autor. É provável que o pouco interesse pela figura de San Tiago Dantas decorra das
posições assumidas pela direita e pela esquerda no contexto de alta polarização política que
antecedeu o golpe militar de 1964 e continuou após ele. A ligação de Dantas com a PEI,
principalmente após defender a não-intervenção em Cuba no episódio da Crise dos Mísseis
de 1962, levou os setores conservadores a estigmatizarem o autor como sendo um radical-
comunista. Por outro lado, Dantas assumiu uma posição conciliatória e moderada dentro
da esquerda, em contraposição à radicalização que outros grupos adotaram naquele
contexto, sendo por isso também marginalizado pela tradição de esquerda no pós-golpe.
Diante desse quadro de distorções e esquecimento, justifica-se a recuperação da trajetória
e das ideias de San Tiago Dantas. Espera-se que o presente trabalho contribua para esse
propósito, facilitando a elaboração de novas hipóteses de pesquisa que procurem
aprofundar o conhecimento sobre suas contribuições à história nacional e à teoria política
brasileira para além de seu papel como ministro durante a Política Externa Independente.

845
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848
GT 05 – PENSAMENTO POLÍTICO E
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DEMOCRACIA

849
MALDADE DEMOCRÁTICA, A CORROSÃO DA “RAÇA” JUDIA:
POR UM ESTADO FORTE, O BRASIL DOS ANOS 1930 PENSADO
PELO INTEGRALISTA GUSTAVO BARROSO440

Cícero João da COSTA FILHO441

Resumo: O projeto de Brasil pensado por Gustavo Barroso é extremamente complexo e


minucioso, um projeto baseado na renovação espiritual (os regimes autoritários são por excelência
regimes espirituais para o autor), no combate ao materialismo judaico, responsável pela série dos
males nacionais. Antissemita e integralista, Barroso simpatiza com os estados fortes porque estes
não oferecem nenhuma possibilidade de conflito no plano real das coisas, trata-se de um projeto
político e ideológico por demais esquemático. O integralismo é o movimento político que pode
salvar o Brasil da divisão, não esquecendo o passado do país, em meio a seus inúmeros problemas
sociais e especificamente de políticos que só se mantinham a nível dos interesses regionais. O Brasil
pensado pelo camisa verde passa inevitavelmente pela eliminação do que é atribuído ao judeu, não
merecendo uma leitura apurada com relação as criações judaicas, como por exemplo, o
comunismo e as características a este atribuída, dentre estas a ideia de ser o judeu um ser rico e
inclinado a anarquia, usando da covardia para chegar ao poder. Assim, o liberalismo dissolvente, o
materialismo, o marxismo, o comunismo, eram tenazmente combatidos por Barroso. Ainda que
Barroso afirmasse que o integralismo não se tratava de um movimento político, mas sim cristão,
exigindo todos os esforços e coragem do camisa verde, a formação do Brasil só se tornaria uma
realidade diante da eliminação das construções judaicas. O Brasil forte pensado pelo integralista é
o encontro entre o estado e a nação, em que a totalidade, a reunião, a soma, a coletividade,
prevalece em detrimento ao particular, responsável pelos inúmeros problemas causados pelos
partidos políticos, como por exemplo: a corrupção, o abastardamento, a primazia do regional sobre
o nacional, o tartufismo, tais elementos produtos da democracia liberal. Instrumento renovador
para a formação do novo Brasil, o espírito é a ferramenta de um complexo pensamento que tem
por objetivo a formação do Brasil à imagem e semelhança dos estados fortes. A defesa aos regimes
de Mussolini e Hitler se dá por serem regimes que evitam a presença e os males do judaísmo
internacional. Nazismo e Fascismo são movimentos de defesa a democracia, sendo o judeu, o
responsável pela destruição de toda e qualquer sociedade, diga-se de passagem, de uma sociedade
cristã.

Palavras-chave: Gustavo Barroso. Brasil. Integralismo. Estado Forte. Fascismo.

Analisar o antissemitismo de Gustavo Barroso é um tema complexo e problemático


porque no Brasil, raça sempre foi uma discussão que rendeu controvérsias, infelizmente
legitimadas pelo conhecimento “científico”. Isso porque foi no seio do integralismo
(Gustavo Barroso assumiu posicionamento declarado de hostilidade ao judeu) que surgiu
o antissemitismo, divulgando o catastrófico imaginário da figura do judeu, um verdadeiro
veneno, algo que a todo custo precisava ser combatido.

440
BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo,
1919-1945. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999.
441
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Em Guarda contra o “Perigo Vermelho”: o anticomunismo no Brasil (1917-
1964). São Paulo: Perspectiva; FAPESP, 2002.
850
A figura do judeu fora estereotipada como algo diabólico que merecia ser evitada a
todo custo. Passada a era do “racismo científico”, predominante nas três últimas décadas
do século XIX divulgadas pelas ideias do Determinismo, do Evolucionismo e do
Positivismo, veremos na década de 1930, o recrudescimento de tradicionais leituras
apelando para questões que de uma forma ou de outra reabilitavam a temática das raças,
num Brasil que recebia imigrantes e suas ideias de “esquerda” na conformação da vindoura
nação brasileira.
Negando um Brasil arcaico e rural em nome de um Brasil moderno, intelectuais
como Francisco Campos, Oliveira Viana, Azevedo Amaral, Alberto Torres, Renato Kell,
etc, pensaram um Estado forte, em que o cidadão brasileiro se amoldasse cada vez mais ao
Estado defendido por estes intelectuais e políticos. Grosso modo e de maneira breve,
existiria o “encontro” entre nação e estado, neste Brasil avesso às ideais democráticas.
Instrumentalizada nos vários momentos de formação nacional, trabalhando com a ideia de
uma cultura homogênea, a discussão das raças formadoras do país entrava em cena.
Um cenário fértil gerou grupos de intelectuais que proclamavam o conhecimento
do país com seus respectivos projetos de nação, verdadeiras chaves históricas, como a
formação dos grupos Anta e Pau Brasil, passando pela ideologia integralista, com as versões
de Plínio e Barroso, guardada as devidas proposições com o modelo de estado pensado
por Francisco Campos, Alberto Torres, Alberto Torres, dentre outros. É nesse cenário de
formação de um novo estado nacional brasileiro que emerge a figura do judeu, que ao
olhar das elites era possuidor de uma imagem trágica, vindo do leste europeu trazia consigo
ideias subversivas.
Rotulado como não apto ao trabalho agrícola (o que muito preocupava alguns
setores importantes mesmo após 1930), uma maioria de refugiados pobres entravam no
país sob o olhar vigilante da elite brasileira. Assim, a ideia racial de um povo que não
assimila somada a anarquia inata da raça judaica dá sentido a preocupação do Estado
brasileiro ante a presença dessa “raça indesejável”. Como de praxe no pensamento social
brasileiro, Barroso deu continuidade a um pensamento conservador, elitista, xenófobo e
racista. Gilberto Vasconcelos aponta que

[...] Os camisas-verdes não estavam apenas convictos de terem fisgado


nossa essência coletiva; eles viam em sua doutrina a última expressão do
caráter nacional, um fruto do “idealismo das três raças” (Gustavo
Barroso), o resultado das “energias profundas da raça”, diria Plínio
Salgado. Essa fantasmagoria, como já assinalei, não é típica dos
intelectuais brasileiros. O integralismo é uma doutrina puramente

851
mimética, não resta a menor dúvida. Isso não exclui entretanto, o fato de
ter abeberado de uma tradição intelectual no Brasil. A preocupação com
a psicologia de nosso povo, nos discursos liberais dos anos 30, antecipa
em muitos aspectos a retórica dos camisas verdes”442.

Fugindo a leitura que Vasconcelos elabora sobre o discurso literário do integralismo


e a realidade histórica em que este surge, Barroso avista a alma nacional, esta é o encontro
cordial das três raças. Da cordialidade dessas emerge a importância que o escritor atribui
ao negro, elemento integrador de seu projeto de nação. O reconhecimento do negro como
fator integrador é para o Camisa Verde, estratégia de seu forte nacionalismo, racista e
excludente, em meio as diferenças de posições ideológicas não só de intelectuais
integralistas, como de diversos intelectuais afinados com essa ou com aquela vertente
ideológica, contribuindo cada um a sua maneira com suas visões de Brasil.
A xenofobia de Barroso dilui-se em seu nacionalismo que passa pela cordialidade
das raças, na importância do negro, mas que acima de tudo possui traços da trágica
linguagem do III Reich. A simpatia aos regimes totalitários encapou a ideologia de homens
ligados a pequena burguesia que apelavam para a força do espírito como nos lembra Edgar
Carone.
De teor autoritário, este Estado é antidemocrático porque combate as
manifestações dos movimentos de esquerda, dentre estas o comunismo (ainda que no
Brasil várias fossem as tendências e as divergências em torno da ideologia de Marx), que
atribuía ao judeu a responsabilidade pelo Bolchevismo na Rússia e em outras partes do
mundo, sendo um movimento ligado a figura do judeu. É neste cenário que a temática
racial é mais uma vez reabilitada em nome da brasilidade, de uma nova nação, diferente
do Brasil de outrora, governado pelas elites agrárias com inúmeros problemas típicos de
um país de mente conservadora. No calor da hora era realidade o temor do comunismo,
imigrantes italianos traziam em suas mãos reivindicações socialistas e anarquistas, que se
tornaria ao estado mais tarde quando de seus direitos políticos como futuros empregados.
A figura do imigrante é vigiada por um estado que diz qual a melhor raça do novo Brasil e
qual a “maneira racial” viabilizadora da nova nação brasileira.
Essa brasilidade exigia tanto o conhecimento do país como a existência de uma raça
brasileira, o que era elemento delicado num país mestiço. Todas as questões de ordem
política se confundiam com os problemas brasileiros, e como tal, suscita a discussão sobre

442
SHOR, Marcos. Qual antissemitismo? Relativizando a questão judaica no Brasil dos anos 30. In:
PANDOLFI, Lúcia. (Org) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro:FGV, 1999. p.234

852
uma “raça brasileira”. Uma vez que se desenrolam projetos de Brasis se cria
“automaticamente” o não brasileiro, o inimigo, aquele que coloca a formação deste em
xeque. Assim é que se cria o italiano trabalhador e o judeu parasita, estereótipos surgidos
quando se buscava o “Brasil real”. Nessa ótica, alguns grupos de imigrantes se
transformaram em problema nacional, com a alternativa de serem assimilados ou
formarem uma raça única em função da ideologia do branqueamento. Mais do que força
de trabalho, estes agricultores traziam seus ideais comunistas, socialistas, e em menor
número, anarquistas .
443

A Eugenia, nascida na década de 1920, iria ser instrumento de fundamental


importância na formação do novo Brasil, apontando projetos políticos os mais díspares,
como o Comunismo, o Anarquismo ou o fortalecimento do Estado, daí sugiria um
movimento de extrema-direita, como foi o caso do Integralismo, com particularidades dos
regimes de Hitler e Mussolini. Em meio a este estado de coisas as ideias anarquistas chegam
ao Brasil pelos imigrantes italianos na década de 1920, aumentando ainda mais a hidra, a
serpente, que se concretizou sob a crueldade do Stalinismo, urgindo das classes
reacionárias uma verdadeira cruzada de combate a este pensamento “diabólico”. 444

Antidemocrata, avesso a anarquia do número, Barroso se vale de Alberto Torres e


Miguel Reale (discorda deste, mas é defensor de um estado corporativista), se apoia nos
clássicos Aristóteles, Platão, São Tomás de Aquino e é guiado pela palavra cristã pregada
pelas encíclicas em seu projeto de Brasil. Barroso não formulou uma Teoria de Estado,
caso de Miguel Reale, propunha um estado ordenado a partir da influência política da
igreja, que tem como célula principal a família. No plano político Barroso é defensor de
um estado corporativista. Este estado corporativista é a alternativa política para evitar o
controle da economia pelo judeu, que invade o público a partir do privado.
Em Barroso a economia deve ser regida pelo estado garantindo a propriedade
privada, um dos traços mais importantes de sua defesa ao corporativismo. O
antissemitismo de Barroso deriva desse momento de indefinição política num país frouxo
politicamente, sem ideologia ou projeto político, que chegaria aos anos 1930 urgindo
modernidade numa estrutura agrária. A discussão que cria o judeu como indesejável é parte
do complexo emaranhado político e econômico justificado pela formação do Brasil

443
HOBSBAWM, Eric. Nação e nacionalismo. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e
realidade. Rio de Janeiro: Paz & terra, 1990.
444
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Antissemitismo na Era Vargas (1930-1945). 3º. Ed. São Paulo:
Perspectiva, 2001.
853
industrial, rejeitando em tese seres que por sua raça colocava em risco a formação deste
Brasil.
A concepção racial de Barroso é parte dessa complexa conjuntura social e política
que tem o judeu como responsável por uma infinidade de males, em função de seus traços
malévolos pondo em risco toda e qualquer sociedade. Tratava-se de uma raça indesejável
por conta da potencialidade subversiva evidenciada nos movimentos de esquerda como o
comunismo, ganhado mais força após a Revolução de 1917 e no Brasil após a intentona
comunista de 1935.
Criador da liberal democracia materializada na Revolução Francesa, toda a carga
do mal é dissipada no mundo por esta contrariar ao Brasil sonhado por Barroso, uma
sociedade regida pelo Trono e o Altar, regida pelo princípio de autoridade. Como já
mencionamos desde a chegada do branco europeu todos os povos não brancos foram
vítimas do olhar intolerante e preconceituoso por parte do Estado brasileiro, para mais
tarde, sofrer o duro golpe da crença na inferioridade biológica dos seres humanos ditada
pelo fórum da ciência. Tudo isso, no bojo maior do amplo quadro do que se considerava
científico, acionando recursos científicos da Craniometria e Frenologia, respaldando o mito
da superioridade inata entre as “raças”.
Nessa ótica, as transformações políticas, econômicas e sociais, em seu conjunto
eram consequência do atraso de seres biologicamente inferiores que habitavam um meio
inóspito. Nosso maior pecado era o pecado de uma raça que tendia se degenerar. A
sociedade, diga-se de passagem, era espelho do que era a raça, ao calor das intempéries do
meio. A luz das teorias do Darwinismo Social, do Determinismo e do Evolucionismo,
forjava-se qual a raça adequada para superar o atraso do país e prover a modernidade deste.
Homens como Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Nina Rodrigues, defendiam de maneira
sutil a eliminação destas sub-raças para o adiantamento do país, por meio da fusão racial
onde predominaria a raça mais forte.
A discussão envolvendo a formação do novo Brasil, moderno, urbano e industrial,
passava pela questão da melhor raça, capaz de gerir este Brasil não mais de economia rural,
dependente do capital externo, e acima de tudo, formado por índios, negros e mestiços.
Esta era a visão do explorador, do intelectual perdido nos tantos ismos do cientificismo
europeu e do liberalismo americano. Nossa história foi criada por uma elite católica,
branca, enriquecida, conservadora, com um projeto político tipicamente ilustrado-
excludente, combatente dos ritos e das tradições de negros, mestiços e de uma população
desassistida. Uma indagação se faz necessária: em que momento de nossa história o judeu

854
se transforma em perigo, merecendo atenção aos olhos do estado brasileiro? Porque
apenas em 1920, o judeu é perseguido oficialmente por ser capaz de colocar o ideológico
processo de formação nacional em risco? Porque este é considerado raça indesejável,
quando sabemos que judeus vieram para o Brasil ao longo de nossa história?
Para Marcos Shor:

[...] Nos anos 20 e 30, grande parte dos intelectuais brasileiros atribuiu a
si a vocação de organizadores da nação. Havia uma ênfase na análise da
realidade nacional, no sentido de não apenas buscar as raízes do Brasil,
mas também apontar caminhos que, por meio da razão, do progresso e
da integração, inserissem o país no processo civilizatório.
Embora fosse um tema marginal na ensaística, nas grandes sínteses
elaboradas nos anos 30 o significado da presença judaica no Brasil foi
objeto de reflexão em pelo menos três tipos de produção intelectual. A
primeira linha de reflexão, influenciada fortemente pelas idéias anti-
semitas correntes na Europa, seria representada por Gustavo Barroso.
Sua visão totalitária, identificada com a ideologia nazista, creditava aos
judeus, pelo suposto peso de seu poder econômico e, principalmente,
político, uma série de percalços que a humanidade e especialmente o
Brasil estariam vivendo naquele momento445.

A Questão Judaica atendia retoricamente a superação dos problemas brasileiros.


Com bem mostrou Luizetto analisando as falas dos parlamentares de São Paulo quando
do projeto imigrantista de 1934, a recepção das ideias evolutivas e darwinistas não explica
a realidade das coisas, porque estas mais não eram do que uma transfiguração da realidade,
evidenciando seu caráter instrumental pelas elites brasileiras. Tão ou mais importante que
recuperar o pensamento de uma figura como Barroso, mostrando a indefinição e a
turbulência do momento nos mais variados campos, é elucidar o sentido de seu
antissemitismo. O Brasil dos anos 20 não alterou sua estrutura agrária, não houve ruptura
com tradicionais setores influentes do estado nacional, sem falar que data das bases
nacionais a confusão entre o público e o privado num estado sem uma estrutura rígida
politicamente.
Se o Integralismo mostrou ser uma alternativa política atraindo setores médios de
nossa sociedade conquistando milhões de adeptos, a indefinição política continuou a
existir. Abordar este período clarifica entendermos porque o judeu era aos olhos da elite
considerados indesejáveis, por não ter tradição com o trabalho agrícola, comercializando,
e assim competindo com setores urbanos ligados a setores tradicionais ligados a agricultura.

445
BARROSO, Gustavo. Judaísmo, Maçonaria e Comunismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1937.

855
O que houve nos debates sobre imigração que formularam projetos imigrantistas foi a
instrumentalização de teorias datadas de 1870 que advogava a superioridade racial.
Lembremos que assim como na Europa, o que houve no Brasil foi a utilização do
conceito de raça como arma política, ainda que seja discutível a temporalidade das ideias
“cientificas” a luz de sua época. A partir de 1920 e 1930 veríamos a recuperação de
argumentos biológicos que apontavam determinadas raças com baixa capacidade moral e
propícia a desordem e a vadiagem. O antissemitismo não se dá por acaso, é parte de um
velho discurso que busca o trabalhador ideal em momentos de crise, em que o diferente
era prejudicial à formação nacional. Na Europa, Hannah Arendt analisou minuciosamente
a instrumentalização antissemita na transição dos estados nacionais para a chegada da “era
nacionalista”, se transformando em arma política.
Questão antiga que faz reportar aos tempos bíblicos é que no século XIX vimos
resplandecer na Europa ocidental o antissemitismo moderno, influenciado pelos fortes
nacionalismos , sobretudo na Prússia de Guilherme II. Mas é a partir de fins do século
446

XIX que as elites defendem um discurso acabado sobre o judaísmo, exemplificado no caso
Dreyfus (1894), tendo nos Protocolos dos Sábios de Sião (divulgado inicialmente em 1897,
em russo), documento originalmente forjado e traduzido no Brasil por Barroso, em 1936.
Tucci Carneiro recuperando de maneira breve as discussões em torno das ideias do
racismo científico pontua a retomada dos velhos atributos raciais materializados na Era
Vargas, “enraizada na mentalidade brasileira”. 447

Não é nossa intenção elaborar uma história do judeu no Brasil, mas salientar a
instrumentalização de um discurso que é antes de tudo racial, ainda que não declarado ou
assumido, com posturas contraditórias – algo inerente à confecção narrativa – de uma figura
extremamente afinada com setores tradicionais, que chegou a ocupar cargos
importantíssimos, como por exemplo, ter sido presidente por vinte anos da Academia
Brasileira de Letras e ter inspirado a criação do Museu Nacional. Como continuidade em
nossa História, o argumento em torno da raça compunha os discursos políticos de nossos
intelectuais, sendo sempre reabilitados por nossas elites em momentos de crise política e
econômica, que criava a necessidade de nação. Como sempre a temática racial formava-se
unida ao futuro da nação brasileira, afirmava Gustavo Barroso que:

446
LUIZETTO, Flavio V. Os constituintes em face da imigração: estudo sobre o preconceito e a
discriminação racial e étnica na constituição de 1934. Dissertação de mestrado, FFLCH, USP, 1975. p. 91
447
AANC., Vol. XII, p. 121 (Xavier de Oliveira). Apud. LUIZETTO, Flávio V. Ibidem. p. 86
856
[...] entre nós o anti-semitismo, não pode provir dum sentimento racista,
porque o brasileiro é eminentemente contrário a qualquer racismo:
porém, desse sentido exatamente anti-racista. O que traz o mundo nos
sobressaltos contínuos atuais, minado pelo revolucionarismo e pelo
terrorismo, é simplesmente o racismo judaico. O judeu não se mistura
com outros povos, mantêm através dos séculos a pureza de sua raça, e
dentro, das outras nações, alicerçados nesse racismo, conserva a sua
nacionalidade, feito um estado dentro do Estado448.

Ainda que Barroso negue que sua ojeriza ao judeu tenha ligação racial, o que vemos
em sua obra é o desfilar de uma “história de incriminação do judeu como mal, portador
de traços maquiavélicos”, uma linguagem tipicamente racista, própria do regime nazista
que tinha o judeu como o grande responsável pela decadência da Alemanha. Escrevendo
de forma impiedosa, Barroso desfila seus conceitos sobre o judeu, semelhante à máquina
mortífera do nazismo em seu projeto de eliminação, verme, bactérias, micróbios,
carrapatos, camarilhas de ladrões, rebotalho dos guetos, assassinos, lama humana, que
quando em contato com a sociedade os fazia decair.
O judeu obstava o desenvolvimento do país, por isso o ódio do integralista ao “povo
de Israel”, atribuindo a este uma série de elementos pejorativos. Ainda que o integralista
negue seu racismo, em nome de um nacionalismo totalitário, dosado com o forte apelo a
Deus, a esperança pelo regime integral/espiritual era à base de seu projeto nacional. Em
algumas passagens de sua obra o escritor afirmava que seu antissemitismo nada tinha de
racial, era moral ou religioso. Mas, analisando as obras de Barroso, vemos o ódio desfilar
do começo ao fim, o judeu é condenado por ser responsável pelas desgraças do mundo.
Faz-se necessário uma verdadeira batalha antijudaica! Comunista, o judeu tirava proveito
da luta de classes preparando o mundo para uma sociedade sem classes, o que representava
a chegada de um regime satânico.
Barroso é um intelectual antissemita convicto na malevolência do judeu, não sem
razão que diversas vezes em sua obra tratou de justificar sua hostilidade ao povo de Israel.
Se o antissemitismo foi tema secundário no projeto da AIB, tendo conquistado milhares
de adeptos devido ao seu “simplismo de pensamento” como escreve Hélgio Trindade,
instrumentalizado pelo escritor cearense para se contrapor ao líder Plínio Salgado, estamos
interessados na natureza antissemita do líder dos camisas verdes. Chega a ser enfadonha,
pobre e repetitiva, a fala de Barroso no que diz respeito à figura do judeu que acaba se
tornando uma obra panfletária, no qual tenta convencer pela repetição, como escreve

448
AANC., Vol. VI,p.349. Apud. LUIZETTO, Flávio. Ibidem. p. 82.

857
Cytrinowicz o antissemitismo é o tema principal de sua obra. Não faltam passagens nas
obras integralistas de Barroso onde se presencia passagens de ódio ao judeu.
Nosso intuito é apontar a concepção de Barroso sobre a figura do judeu,
demonstrando seu pensamento conservador, católico, e acima de tudo, racista. A
hostilidade ou a construção da figura do judeu como malevolente foi à mesma logica que
permeou a percepção contra amarelos e mongóis nas últimas décadas do século XIX, a
razão era a mesma, qual seja: a resistência do imigrante ao trabalho na lavoura. Na
passagem do trabalho escravo para o livre, a construção do trabalhador ideal estava imersa
na lógica daquele sujeito novo, que poderia colocar a ordem em risco, logo se
transformando num problema nacional oferecendo riscos ao Estado. O problema não
estava em nenhum momento relacionado com a imigração, mas sim com a falta da garantia
das antigas elites cafeeiras que enviesavam seus discursos políticos em verdadeiras questões
de raça,

[...] A parcela da população trabalhadora composta por imigrantes ou


seus descendentes frustrava a expectativa que havia em torno da
imigração na medida em que, ao invés de se conformarem em seres
agentes de riqueza agrícola tradicional e de enriquecimento particular
dos fazendeiros, os imigrantes ao procurarem romper os laços de
dependência à fazenda, tornavam-se pequenos proprietários (no campo
ou na cidade) ou mesmo engajavam-se como assalariados fora do mundo
rural, transformando-se assim, em agentes da prosperidade de outros
setores não agrícolas449.

Se o judeu não aparecia como o imigrante indesejável, mas sim o japonês, Luizetto
apontou as contradições dos próprios políticos em seus discursos. Segundo o autor, a tônica
da política imigratória está associada a uma situação nova, que colocava em xeque a
reprodução do capital na estrutura agrária das antigas elites, particularidade presente já na
origem da emenda 1619. Tudo que não seja a garantia dessa ordem, trata-se de uma
situação nova e dar o tom das políticas imigratórias. É nesse universo que levanta a voz de
um Xavier de Oliveira e que logo nos faz entender a figura do judeu como indesejável, este
“mostrava-se preocupado com o fato do Brasil continuar a brindar com o título de cidadão
brasileiro, anarquistas, comunistas, e proxenetas de todas as procedências, que aqui
chegando disponham de 100.000 para as agências de naturalização que há por aí fora” . 450

Vale a pena trazer a fala de Teotônio Monteiro de Barroso, deputado por São Paulo,

449
Ibidem. p.85
450
Ibidem. p.82

858
“Temos necessidade, antes, do imigrante que vá lavrar a terra do que de outro que vai
ensinar o comércio e a falência as zonas onde antigamente não se conhecia isso,
“Precisamos do imigrante que vá cuidar da lavoura e não do que vá abrir casa de
quinquilharias, de joias, artigos para automóveis e outros de igual fundo, exclusivamente
voluptuário” .
451

Em nenhum momento o problema se dava por conta da nacionalidade do


migrante, mas sim de um sujeito que por si só representava o novo, uma vez não ser o
velho trabalhador metido na lavoura com pouca oportunidade de se livrar do trabalho
escravo. Os discursos imigratórios são antes de tudo discursos nacionais que colocam o
crescimento do país em primeiro lugar, quando na verdade interessa a deputados classistas
como Artur Neiva (BA), Edgar Teixeira Leite (PE), Alberto Augusto Diniz (nomeado por
Artur Bernardes governador “em comissão para o Acre”), José Thomas da Cunha
Vasconcelos (Prefeito de Pernambuco), Miguel Couto (RJ), Pacheco e Silva (SP), Monteiro
de Barroso (SP), que para além de seus domínios locais ou regionais, eram políticos que
estendiam seus poderes fora de seus estados e somavam suas fortunas junto a firmas
comerciais. A real situação se dava por esta razão,

[...] Em face das condições desfavoráveis que afastavam a agricultura de


exportação, na época em que se reunia a Constituinte e, vivendo, por
isso, um momento de incerteza quanto ao futuro do seu mundo rural,
para os grupos agrários as situações relatadas, que de resto não eram
absolutamente novas, mas que não eram percebidas como perigosas,
foram estigmatizadas como a antítese de tudo aquilo que se esperava da
imigração, franca e, também, dissimuladamente a estas condições
novas452 (grifo do autor).

Utilizada para endossar um complexo e ideológico processo político aos interesses


das elites, a temática racial era dilatada e se misturava a problemas de ordem nacional
tornando o discurso dessa elite invisível. Não duraria muito para que logo a “questão social”
fosse alçada a “questão policial”. Num primeiro momento a raça amarela fora preterida
por razões de ordem biológica baseada na inferioridade inata, agora era o judeu que era
visto como ameaça, por ser parasita, usurário, subversivo, etc, colocando em risco a
formação do país. Temerosa em perder seu espaço na ordem vindoura lembre que o pano
de fundo era a ordem política e econômica, donde “a hábil construção ideológica efetuada

451
CARNEIRO, Maria L. T. Cidadão do Mundo: O Brasil Diante do Holocausto e dos Judeus Refugiados
do Nazifascismo (1933-1948). São Paulo. Perspectiva: FAPESP, 2010. p.55
452
Ibidem. p. 52
859
pelos grupos agrários que produziram a imagem dos industriais como elementos
parasitários, operando indústrias artificiais graças ao protecionismo, responsáveis pela alta
do custo de vida, imagem enraizada profundamente nas classes médias daquela época”. 453

Construída pela alta cúpula do estado brasileiro, no caso, a Elite Rio Branco,
poucos foram os homens que tiveram a preocupação humanitário em tempos de guerra
com o judeu. O que se viu foi um verdadeiro grupo de “intelectuais antissemitas”
respaldando um ser que tinha hostilidade ao trabalho agrícola tendo por inclinação a
tendência ao comércio logo se dirigindo as cidades, colocando a segurança nacional do país
em risco. Raros foram os ministros que tiveram a preocupação humanitária para com os
israelitas, pelo contrário, recuperando velhos preconceitos houve a “modernização do
mito”, como escreve Tucci Carneiro. Sobre a circular 1.127, parte da política imigratória
que tem início já em 1931, segundo a historiadora “os judeus, segundo o Ministério das
Relações Exteriores, eram elementos que permaneciam, de preferência, nos grandes
centros urbanos, e que dificilmente se adaptavam ao trabalho no campo. Segundo Accioly,
a corrente imigratória que nos convém é aquela que de destina a lavoura, daí o nosso
empenho em manter a referida circular”. Com relação à Accioly, integrante da Secretaria
454

das Relações Exteriores, conclui a autora, “os judeus transformariam o Brasil na pátria de
Israel, fato que nem na Palestina eles haviam conseguido”. 455

Gustavo Barroso corrobora a ideia de um judeu que não se adapta ao trabalho


agrícola, “os judeus, para poderem entrar em território nacional, hão de comprometer-se,
como os demais imigrantes, ao destino das terras. A que não consultam de todo em todo
os interesses coletivos”. 456Sob o pano ideológico de ser o Brasil uma nação hospitaleira, foi
sob a “máscara do nacionalismo” que se velhos estereótipos foram reabilitados mostrando
a cara de um estado branco, conservador e racista. O cerceamento do estado se dava nas
frentes racial, religiosa e social, tudo em nome da presença de imigrantes que participassem
do desenvolvimento do país, o judeu dificultava este crescimento. Lembremos a imagem
da figura do judeu após a Intentona Comunista de 1935, a constituição de 1934 que
restringia a entrada de imigrantes no território nacional e a lei de segurança nacional. É
preciso reconhecer que o autoritarismo do estado brasileiro não surge quando o judeu
torna-se aos olhos do estado um “perigo”, a intolerância do estado brasileiro sempre trouxe

453
BARROSO, Gustavo. Judaísmo, Maçonaria e Comunismo. Op. Cit. p. 144
454
BARROSO, Gustavo. Judaísmo, Maçonaria e Comunismo. Op. Cit. p. 134
455
Ibidem. p. 9
456
CYTRYNOWICZ, Roney. O antissemitismo e integralismo nos textos de Gustavo Barroso na década de
1930.Dissertação de mestrado. São Paulo: FFLCH, 1992. p.109
860
o ódio, fosse com relação ao “perigo amarelo”, ao “perigo vermelho” ou ao “perigo
semita”. Nosso estado sempre alimentou ó ódio das raças para engendrar políticas públicas
e a política maior, aquela que aponta o culpado pelos problemas do país. A cúpula liderada
por Oswaldo Aranha, sem nenhuma preocupação humanitária criou um imigrante católico
e apto ao trabalho agrícola.
Sempre que os problemas nacionais estavam em jogo, o que é de foro particular ou
de interesse de um reduzido grupo acabava se transformando em “questão nacional”,
segundo Lúcia Lippi. Não iremos encontrar nos livros de Barroso alusão a algum teórico
defensor da hierarquia racial assimilados pela geração de Sílvio Romero e Nina Rodrigues.
O escritor combate qualquer forma de racismo, nesse prisma seu posicionamento ainda
que seja de simpatia ao regime de Hitler e Mussolini se dá por oposição ao racismo judaico.
Barroso pensa o Brasil como vários escritores brasileiros, quando traz a democracia das
três raças (branco, negro e índio), em seu projeto de nação. Mas sabemos que se trata de
uma concepção romântica, posto que pautada a partir do olhar científico onde se pensa o
mundo do homem superior e branco, que tem a evolução e a ideia de uma história linear
como princípio e mais que isso, é o branco que figura no topo da pirâmide, por isso, vemos
sempre a presença do evolucionismo e do racismo nesses projetos de construção nacional.
Especificamente no que tange ao viés racial, Barroso combate o racismo judaico,
evitando assim qualquer responsabilidade no combate aos herdeiros de Davi. Conforme o
escritor, o problema é do judeu que não se mistura, não se preocupa com os problemas
do país onde se encontra. Outro fator importante é que este não se prende ao trabalho
agrícola, logo que tem condições migra para a cidade iniciando sua vida em pequenos
negócios. O antissemitismo do escritor cearense está sempre no plano religioso, moral,
mas nunca racial, pois “o anti-judaísmo moderno não é um movimento para matar ou
perseguir os judeus. É um movimento para ensinar aos cristãos o que eles são, o que eles
querem e que valem. Esclarecido e consciente do perigo, o cristão defender-se-á por si
mesmo do parasita, não se deixando mas enganar”. 457

Alertava sempre ao seu leitor do perigo judaico, ao passo que raríssimas vezes
associava a imagem negativa do judeu a raça. Sobre A Questão Judaica afirmava que
“esquecem esses indivíduos que o racismo germânico não é unicamente um pretexto para
a campanha anti-judaica e sim uma verdadeira doutrina que se eleva mais alto. Não haveria
exagero mesmo em dizer que esse racismo é uma verdadeira filosofia sobre a qual se

457
BARROSO, Gustavo. Integralismo e Catolicismo. Rio de Janeiro: Editora ABC, 1937. p. 51

861
alicerça uma nova concepção de vida” . Prefaciando o livro de J. Cabral, A Questão
458

Judaica, Barroso contradiz o que escreveu em Judaísmo, Maçonaria e Comunismo quando


afirmava “que o racismo alemão não é uma verdadeira doutrina que se eleva mais alto. Não
haveria mesmo exagero em afirmar que esse racismo merece as honras de uma filosofia,
sobre a qual se alicerça nova concepção da vida social e novo sentimento da vida moral”.
459

Se o racismo alemão não é uma verdadeira doutrina que se eleva mais alto, é digno
de análise saber que racismo é este que merece as honras de uma filosofia! Ainda que a
temática antissemita tenha ficado em segundo plano nas discussões da AIB (de acordo com
Hélgio Trindade a questão antissemita figurou como última questão nas discussões do
movimento e foi utilizada por Barroso como estratégia política para rivalizar o líder Plínio
Salgado), o que nos interessa é a postura antissemita do escritor cearense. Trata-se de um
escritor racista que por sua formação católica assimilou o tenebroso imaginário sobre o
judeu construído pela igreja. O discurso de Barroso é o mesmo discurso empregado pelas
elites católicas brasileiras (Alceu Amoro Lima, Tenório de Albuquerque, Pe. Cabral, Arno
Butle), compactuados por profissionais liberais, médicos, advogados, eugenistas,
professores, intelectuais, uma elite economicamente estável.
Vimos o movimento dúbio, como nos lembra Natalia Reis, sobre Barroso: ao
mesmo tempo em que o escritor nega seu racismo baseado no racismo alemão de Hitler
jogando-o para um plano maior, irremediavelmente o defende, em defesa do integralismo.
Se o integralismo requer um Estado onde a moral fundamente a Política, o judeu está
eliminado desse projeto, por ser agente das democracias liberais, defensor ou mesmo
criador de ideias dissolventes. Somente apelando para o regime integral, Barroso por sua
convicção numa Teoria das Raças, elabora sua visão de Brasil. O judeu está presente em
tudo, quando o escritor não descreve fatos políticos ligados a este, remete aos Protocolos
alertando para os males do judaísmo, sempre recorrendo ao mito da conspiração judaica.
Se não há um acontecimento em que o responsável seja o judeu, o mal já existe e está
provado diante dos Protocolos. Cabe a nação ou ao povo brasileiro ficar alerta em defesa
desses agentes do mal, do terror, prejudiciais ao desenvolvimento do país.
Num país que em nenhum momento de sua história presenciou abertamente um
verdadeiro ódio de raças, vivendo em comunhão sob as graças da Igreja católica, jamais a

458
Ibidem. p. 79
GOMES, Ângela de Castro. Autoritarismo e corporativismo no Brasil: o legado de Vargas . Revista USP,
459

São Paulo, nº. 65, p. 105-119, março/maio 2005.


862
postura radical de Barroso seria aceita. Seria muito difícil o escritor não oscilar posturas e
falas, admitir um ódio aberto ao povo de Israel. Mas, Gustavo Barroso, a nosso ver, tem
uma postura extremamente racista com relação ao judeu, em seus textos presenciamos
inúmeras passagens que deixam este preconceito racial evidente. A base racista do escritor
deriva de sua visão cristã, responsável pela imagem malévola criada pela igreja, divulgadora
da tenebrosa imagem de um sujeito que ia desde o assassinato de Cristo até ser uma figura
“meio homem meio animal”, com cornos e identificado com o demônio.
Para além do bem ou do mal, em nenhum momento desconsideramos a grande
contribuição de Barroso no campo da Museologia, do Folclore e da Literatura regional.
Estamos recuperando este importante escritor num momento tenso da história do país,
marcada por reivindicações sociais e pela chegada ao poder de forma violenta de um líder
político que prometia acabar com a república dos coronéis. Em algumas de suas obras,
Barroso alude ao líder racista Leon de Poncis, em defesa de uma ordem hierárquica
anterior a Revolução Francesa que provocou a liberal democracia, o individualismo, o
comunismo (tais movimentos eram representação do satanismo das forças secretas), por
isto tenazmente combatido.
A Revolução Francesa, assim como se dera com o bolchevismo, fora perpetrado
por judeus, pedreiros livres. Barroso é um antidemocrata, após a escolástica o mundo viveu
um verdadeiro caos. O renascimento e a figura de Lutero representam a decadência e o
caos desse mundo moderno. O mundo para Barroso é dos tempos medievais, sem choque
entre as classes, regido pelo poder da Igreja, onde os valores cristãos como o sentimento,
a alteridade, a ajuda mútua, é base desse antigo regime. Como integralista resguardava-se
no sentimento e na obediência a Deus, expunha passagens e mais passagens de encíclicas,
chamando atenção para as mazelas do capital, que cada vez mais tornava o homem mais
distante de si, tornando este cada vez mais mercadoria.

[...] A abolição das ordens e hierarquias escravizou os homens ao bruto


império das necessidades coletivas. A morte da espiritualidade e da fé
escravizou-os a matéria. O industrialismo soviético ou capitalista tornou-
se simples máquinas de trabalho e reprodução e seus senhores nominais
e humanos desapareceram para dar lugar a senhores anônimos e
desumanos. O valor do homem pela perda de sua pessoa criatura de
deus, baixou de qualitativo a quantitativo. No seu livro “Le Monde sans
âme” Daniel Ross compara Catão, vendendo os escravos envelhecidos,
como ferramenta velha, com Ford, despedindo escanecidos operários,

863
porque estavam enferrujados...A grande liberdade maçônica-judaica do
mundo de hoje é a liberdade de morrer de fome460.

Um verdadeiro caos social, moral, político se instalou com a derrocada da ordem


hierárquica reinante na idade média. Barroso está preso ao mundo regido por Deus, bem
dividido, sem antagonismos, funcionando de maneira harmônica, que começou a ser
contestado com a filosofia renascentista.

[...] O comunismo encarniça-se contra a crença no Criador, no Ser


Supremo, em Deus porque dele vem, em última análise, o sopro
misterioso que tangeu desde os primeiros passos, na senda áspera e
ascendente de sua evolução, a humanidade inteira. Somente Deus pode
dar um fundamento moral, duradouro, estável á autoridade do Estado,
a autoridade do chefe de família e ao direito de possuir. A sociedade tem
de repousar sobre verdades eternas461.

O marxismo vai de encontro a todo este mundo perfeito, atacando a expropriação


por parte do capitalista, a ética, e acima de tudo a exploração de uma classe por outra, mas
como tal não passava de uma falsa promessa que escravizava ainda mais o proletário só
reforçando a questão social. A raiz de toda a concepção pejorativa de Barroso sobre a figura
do judeu é proveniente do regime liberal, no qual, o marxismo seria só mais um filho dessa
filosofia caduca, burguesa, materialista, responsável por todo o caos mundial.
Portanto, a concepção racial de Barroso é parte dessa complexa conjuntura social
e política que tem o judeu como responsável por uma infinidade de males, por conta de
sua participação em todos os movimentos liberais que vai de encontro à ordem natural das
coisas, representa anarquia, quebrando os lineamentos sociais. Num momento de
formação da nossa “brasilidade” nada mais incômodo do que aceitar a chegada de seres
desorganizadores, quebrando com a noção de pátria. Raça indesejável, com tendência a
anarquia, a destruição a toda e qualquer sociedade de base cristã, o judeu não se misturava,
este era um dos principais argumentos para a criminalização deste.
Altas figuras do estado brasileiro (diplomatas, intelectuais, médicos, cientistas
eugenistas, alguns tenentes, figuras importantes da igreja) deram vazão a essa visão
preconceituosa, racista e intolerante na conformação do Brasil dos anos 1930. Nessa nova
arquitetura moderna vemos surgir o integralismo brasileiro (uma novidade em termos de
462

460
TRINDADE, Hélgio. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. 2º. Ed. São Paulo: Difel, 1979.
461
CARNEIRO, M. L. T. O antissemitismo na Era Vargas (1930-1945). Op. Cit
462
Doutorando em Ciências Sociais; Unesp/Araraquara; CAPES; fidelisrp@gmail.com.

864
números, o primeiro movimento de massas no Brasil), segundo Barroso chegando a
463

possuir cerca de um milhão de simpatizantes. Era na verdade a empreitada dos camisas


verdes em busca do Brasil regenerado dos males do passado, do presente e da elaboração
do futuro, futuro este de um país criado não para servir ao comércio internacional, mero
reprodutor de ideias alienígenas e escravo do capitalismo internacional, mas sim ter sua
economia nacional, sua língua e sua cultura própria como anotava Plínio Salgado.
Construída sob um pensamento conservador, que considerou o povo incapaz de
lidar com uma experiência democrática, o modelo de Estado que acabou vingando foi o
modelo de estado de homens como Alberto Torres, Francisco Campos (homens que mais
tarde fariam parte do estado varguista), incorporando neste nacionalismo o viés xenofóbico,
em que o judeu transforma-se em perigo, sendo o principal inimigo da nação, conforme
escrevia Barroso. Não é gratuita a preocupação do Estado com a “melhor raça” (uma
464

discussão já presente nas falas de parlamentares da Assembleia de São Paulo nas três
últimas décadas do século XIX, diante da abolição da escravatura) em que o imaginário
judeu é bastante amplo, indo do parasita que se preocupa apenas em lucrar, como também
tendo uma capacidade enorme de infiltração.
O judeu criou a liberal democracia, responsável pelo socialismo, meio natural para
o comunismo, o que para Barroso era o império dos instintos, o verdadeiro satanás, o anti-
cristo. Presente desde a crucificação de Cristo, o judaísmo (denominação de Barroso) se
abrigava nas mais variadas ordens secretas, dentre estas, a mais importante, na maçonaria.
A força do judaísmo era tanta, conforme Barroso, que o mundo havia caído nas mãos deste
escravizando a humanidade e não restavam dúvidas, tudo era senão o desenrolar do que
estava escrito nos Protocolos dos Sábios de Sião.
O judeu é responsável por todo o caos mundial pondo em desordem o mundo
regido pelo princípio de autoridade, do Trono e do Altar, sob as agitações amorais de
filósofos ligados a maçonaria, sob a nefasta imagem de um sujeito que se envolvia nas
atividades mais danosas como o tráfico (de armas, de mulheres e de drogas), dominando
o cinema, a imprensa e dissipando cada vez mais a “filosofia” do mal. O judeu destruía as
bases da sociedade cristã formada sob a hierarquia e a autoridade do trono e do altar,
acabando por derrubar os impérios católicos. Na verdade, Barroso separa dois mundos,

463
Todos os dados referentes às eleições de 1958 e de 1960, explorados ao longo de todo o artigo, foram
retirados e analisados em consultas ao site do Tribunal Superior Eleitoral. Acesso em:
http://bd.camara.leg.br, 11 de set. de 2017.
464
Mestrando em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), bolsista da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: jeanlucasmf@gmail.com.
865
de modo que o “mundo” do judeu é malévolo, criando um modelo de sociedade (a
ocidental, branca e católica), em oposição à da cultura semítica que teve o judeu como
elemento significativo. As sociedades devem se resguardar dessa filosofia dissolvente que a
todo custo tendem a dominar o mundo, estava mais que comprovada o perigo judaico!
Uma verdadeira campanha antissemita é montada por Barroso, em nome da
integridade do país. O integralista em seus trabalhos constrói uma verdadeira história
antissemita, que desde a crucificação de Cristo passando pelos idos medievais minaram a
harmonia da sociedade medieval, até a explosão da revolução Francesa, deixando fora de
dúvida à força dos adoradores do Bezerro de Ouro. Todos os problemas nacionais das
décadas de 1920 e 1930 incidirá sob o judeu conspirador, parasita, açambarcador, sem
pátria, que opera em nome da “mão oculta”; instala-se oficialmente a “Questão Judaica”.
É o momento em que oficialmente o estado brasileiro se impõe sobre a presença desses
verdadeiros seres do mal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na década de 1920, em face de uma conjuntura incerta do país, reforçada com a


descrença das democracias liberais e a possível ameaça comunista, corporificada ainda mais
com a vinda de imigrantes italianos com suas ideias socialistas e anárquicas, mais uma vez
a elite arregimentou a problemática racial para gestação deste novo Brasil. O temor
comunista que ganhou força com a Revolução de 1917 orquestrada pelo “judaísmo
internacional”, a expulsão de judeus para várias partes do mundo, a agitação política que
acirrava cada vez mais a posição ideológica do país, somada ao imaginário negativo do
Judeu ao longo da história, só contribuiu para aumentar um discurso intolerante por parte
da elite brasileira, e assim tornar o judeu uma “raça indesejável”, algo a ser combatido, por
se tratar de um micróbio, bactéria, verme ou parasita, que dissolvia as sociedades, dentre
tantos outros traços na ótica de Gustavo Barroso.
A nação forte e sadia exigia sangues fortes, a ciência eugênica tragou toda uma
discussão bastante conhecida que teve amparo científico desde a época de Lombroso.
Lembremos antes de tudo que a questão racial, e de modo específico, a visão que nossas
elites possuem do judeu, de maneira mais acesa a partir de 1920 é senão motivada por
questões políticas. Não bastasse a imagem de um judeu irreal, se tratou de um judeu
enriquecido responsável por dificultar o Brasil da Era Vargas. Afora esse quadro houve
flexibilidade nas circulares secretas e a questão racial de um povo malévolo logo se esvanece

866
quando se trata de pessoas que possam contribuir para o crescimento econômico do país.
Com a descrença das democracias liberais, viríamos fervilhar ideologias que combatiam o
estado, até aquelas que defendiam o fortalecimento deste. Tanto existiam ideias
provenientes do marxismo leninista como ideias que pregavam a abolição do estado e
dentre essas opções políticas, vemos surgir em 1932, o movimento integralista.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Gustavo. Integralismo e Catolicismo. Rio de Janeiro: Editora ABC, 1937.

__________. Judaísmo, maçonaria e comunismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1937.

BERTONHA, João Fábio. Fascismo, nazismo, integralismo. São Paulo: Ática, 2001.

__________. Entre Mussolini e Plínio Salgado: o Fascismo italiano, o Integralismo e o


problema dos descendentes de italianos no Brasil. Revista Brasileira de História. São
Paulo, v. 21, nº 40, p. 85-105 2001.

CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Cidadão do mundo: o Brasil durante o Holocausto e dos
judeus refugiados do nazifascismo (1933-1948). São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2010.

__________. O antissemitismo na Era Vargas (1930-1945). 3º Ed. São Paulo: Perspectiva,


2001.

CYTRYNOWICZ, Roney. Integralismo e Anti-semitismo nos Textos de Gustavo Barroso


na década de 30. Dissertação de Mestrado. São Paulo: FFLCH, 1992.

HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e realidade. Rio
de Janeiro: Paz & terra, 1990.

TRINDADE, Hégio Henrique. Integralismo: o fascismo brasileiro na década de 30. 2.º


Ed. São Paulo: Difel, 1979.

VASCONCELLOS, Gilberto. A ideologia curupira: a análise do discurso integralista. São


Paulo: Brasiliense, 1979.

867
A MOVIMENTAÇÃO POLÍTICO-PARTIDÁRIA NA ELEIÇÃO PARA
O EXECUTIVO NACIONAL EM 1960

Thiago FIDELIS465

Resumo: O presente artigo tem como objetivo apresentar e problematizar as movimentações


político-partidárias para a composição das chapas que concorreram aos cargos de presidente e vice-
presidente na eleição nacional de 1960. Mantendo um padrão já visto nos pleitos anteriores após o
processo de democratização, em 1945, as definições foram pautadas em imensas indefinições das
principais agremiações do país, sendo que essas também mantiveram o comportamento das outras
disputas, com intensa falta de coesão e estruturação em torno de uma única chapa. O PSD, partido
do atual presidente, Juscelino Kubitschek, não conseguiu consolidar um nome de seus quadros,
mesmo tendo um político bastante popular a frente do mandato. Para manter a aliança com o PTB,
a agremiação lançou a candidatura do ministro da Guerra, o militar Henrique Lott, tendo
novamente João Goulart como candidato à vice. A UDN, principal partido opositor no contexto,
também não possuía um nome popular dentro de seus membros e apoiou a candidatura de Jânio
Quadros, ex-governador de São Paulo, que já tinha sua candidatura lançada por vários pequenos
partidos, gozando de grande popularidade e demonstrava ser a realidade mais próxima para a UDN
chegar ao poder. Além disso, o PSP lançou a candidatura de seu principal nome, o ex-governador
de São Paulo, Ademar de Barros. No entanto, grupos dentro desses partidos não concordaram
com as decisões majoritárias e buscaram articular-se de outras formas, apoiando outros candidatos
ou fazendo campanhas contra os próprios nomes de suas siglas. Assim, nessa perspectiva, será feita
a análise das movimentações político-partidários até a votação em 03 de outubro, bem como os
primeiros desdobramentos após o resultado da apuração.

Palavras-chave: Eleições 1960. Jânio Quadros. João Goulart.

INTRODUÇÃO

O final do governo de Juscelino Kubitschek (JK) foi marcado por um misto de


euforia e desconfiança, uma vez que o desenvolvimento das bases industriais e a construção
da nova capital, Brasília, inaugurada em 1960, denotava uma forte base para uma
propaganda ufanística, estruturada no slogan de campanha do presidente, os “50 anos em
5” (BENEVIDES, 1976, p. 252-256).
Por outro lado, o país passava por uma intensa dificuldade financeira causada,
sobretudo, pelo alto investimento feito pelo governo para a construção da nova capital, que
levou ao rompimento com o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o estremecimento
das relações com os EUA, tendo em vista que o país estadunidense pregava a austeridade
para uma possível ajuda. Tal proposta, rechaçada por JK, foi vista como uma tentativa de
interferência na soberania nacional (MONIZ BANDEIRA, 2007, p. 540-543), sendo que

465
Dados disponíveis para os órgãos partidários a partir de 1999 e, para os filiados, a partir de 2002.

868
os dois países viveram em uma situação bastante complexa no fim do mandato do político
mineiro.
Desde 1958, com as eleições estaduais, o cenário para a disputa do Executivo
nacional ganhara muita força. Do lado do governo, não havia um nome certo para a
situação, sendo que ninguém conseguia projetar-se para a disputa e, pela movimentação,
não existia grande esforço por parte do presidente para tal. As movimentações estaduais
delimitariam o xadrez para a disputa da presidência, sendo que cada vez mais postulantes
surgiam para tal.
No entanto, uma disputa em especial tornou-se crucial para determinar os rumos
da eleição para a presidência e da reorganização partidária, que fora a eleição em São
Paulo. Completando o mandato, o governador Jânio Quadros ainda gozava de grande
popularidade, tendo como principal bandeira de divulgação de sua administração a
reorganização econômica da unidade federativa. O político possuía uma carreira
meteórica, tendo sido eleito vereador em São Paulo, em 1947, deputado estadual em 1950
e prefeito da capital paulista em 1953, ambos pelo Partido Democrático Cristão (PDC).
No ano seguinte, foi eleito governador pelo Partido Trabalhista Nacional (PTN) e, em
1955, foi um dos nomes considerados para disputar a sucessão de Café Filho. No entanto,
abriu mão da candidatura e coordenou a de Juarez Távora, buscando derrotar seu principal
concorrente no Estado, o ex-governador e então candidato a presidente, Ademar de Barros
(CHAIA, 1991, p. 130-131).
Esse, novamente, colocava-se como candidato declarado ao Executivo, já dois anos
antes. Derrotado por Jânio em 1954, perdera a presidência em 1955 e, dois anos depois,
foi eleito prefeito de São Paulo, pelo Partido Social Progressista (PSP). Era candidato
novamente ao governo e, independente de vencer ou não, já projetava a disputa para 1960,
a âmbito nacional (SAMPAIO, 1982, p. 92-93). O político já governara o estado paulista,
por duas vezes: como interventor no Estado Novo, de 1938 a 1941 e depois eleito, de 1947
a 1951.
No entanto, no momento seu principal oponente era, de fato, Jânio. Embora
formalmente ligado ao PTN, o governador paulista não possuía vínculo partidário de fato,
sendo cortejado por todas as grandes agremiações do período: as seções paulistas do
Partido Social Democrático (PSD), da União Democrática Nacional (UDN) e do Partido
Trabalhista Brasileiro (PTB), as três maiores agremiações brasileiras do período,
disputavam o apoio de Quadros, uma vez que esses grupos, curiosamente, eram bastante
fracos em solo paulista e não conseguiam mobilizar-se nessa região.

869
Outros partidos e seções estaduais também estavam observando os passos de Jânio,
sendo que a seção paranaense do PTB acabou, por fim, lançando seu nome como
candidato a deputado federal, como forma de medir sua popularidade fora do reduto
paulista, procurando viabilizá-lo como candidato a presidência (QUELER, 2008, p. 75). Já
em solo paulista, Jânio apoiou a candidatura de seu secretário da Fazenda, Carvalho Pinto,
para sua sucessão. Esse, que não tinha disputado nenhum cargo e era considerado um
quadro técnico dentro da política, ganhara fama exatamente pelo controle financeiro do
governo (também fora responsável pela base econômica da breve passagem de Jânio pela
prefeitura), sendo chamado pelo governador de “ditador de finanças” (CHAIA, 1991, p.
125).
Um nome que também já se projetava para a presidência, mesmo disputando a
eleição estadual, foi Juracy Magalhães. Senador pelo estado da Bahia, presidia a UDN
desde 1957 e era candidato ao governo do Estado, cargo o qual ocupara como interventor,
de 1931 a 1937. Embora procurasse estruturar sua candidatura ao Executivo estadual,
mobilizava-se para indicar seu nome à nível nacional, uma vez que sua agremiação não
possuía um candidato já definido e, em seus cálculos, a vitória nesse pleito significaria seu
fortalecimento para a disputa a nível nacional (BENEVIDES, 1981, p. 105-106).
Após a votação, a apuração demonstrou resultados favoráveis à Jânio e Juracy. O
primeiro viu seu candidato ser eleito, derrotando novamente Ademar de Barros. Esse
sofrera um revés duplo, uma vez que não conquistar o Executivo estadual era,
praticamente, uma garantia de que também não conseguiria vencer a disputa presidencial.
Além disso, mesmo tendo ido poucas vezes ao Paraná e não ter feito uma campanha
efetiva, o governador paulista foi o candidato mais votado nessa unidade federativa,
demonstrando que sua popularidade não se limitava a São Paulo.
Na Bahia, Juracy Magalhães foi eleito com quase 50% dos votos, demonstrando
forte influência em sua unidade federativa. No entanto, seu candidato a vice, o economista
Rômulo de Almeida, perdeu a eleição para o deputado estadual Orlando Moscoso, do
Partido Republicano (PR). Ainda assim, tal aspecto não era visto como um problema, uma
vez que, em São Paulo, Jânio havia rompido com seu vice-governador, Porfírio da Paz.
Esse foi novamente candidato a vice na chapa de Ademar e foi eleito, aproveitando que a
coligação que dera base para a candidatura de Carvalho Pinto possuía dois nomes ao cargo:
o Partido Socialista Brasileiro (PSB) lançou ao cargo o deputado estadual Cid Franco,

870
enquanto que o PDC lançara o deputado federal Queiroz Filho, que ficaram em segundo
e terceiro lugar na eleição, respectivamente466.
No início do ano de 1959, as movimentações para a sucessão de JK continuavam
intensas, assim como a finalização para a construção de Brasília. No mês de abril, na sede
da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), em São Paulo, foi fundado o Movimento
Popular Jânio Quadros (MPJQ), grupo com membros de vários partidos e matizes políticas
que defendiam o lançamento, imediato, da candidatura de Jânio à presidência (CHAIA,
1991, p. 157-158). Assim, em 20 de abril, com a fundação oficial do grupo, o nome do
então deputado federal foi indicado, oficialmente, ao pleito. O PTN fora o primeiro
partido que sancionara seu nome, já indicando que a sucessão, de fato, começara.
Tanto o PSD quanto o PTB não possuíam nomes, em suas bases, para a
candidatura. Os pessedistas, embora com a avaliação positiva do governo de JK, ainda não
se recuperaram das feridas abertas no processo eleitoral anterior, quando seções estaduais
se voltaram contra seu candidato, ocorrendo dissidências e expulsões, com intervenções
em diretórios como o de Pernambuco, cujo ex-governador Etelvino Lins chegou a ser
lançado como candidato pela UDN, abrindo mão pouco depois para apoiar Juarez Távora.
Assim, não havia um consenso dentro da agremiação que, seguindo a tipologia de
Hippolito (1985), estava dividido, basicamente, entre duas tendências: as chamadas velhas
raposas, políticos mais tradicionais (cuja maioria não vira com bons olhos a candidatura de
JK) e que tendiam a aproximar-se de nomes mais conservadores, enquanto que a Ala Moça
indicava uma espécie de renovação (vários desses nomes deram suporte ao presidente e
estiveram em seu ministério), sendo políticos mais progressistas e próximos do PTB e de
busca por mudanças sociais significativas.
Os trabalhistas também estavam bastante divididos nesse contexto, tendo ainda as
fortes reminiscências de 1955. Além das imensas divisões estaduais (ainda em voga por
conta da eleição de 1958), seus representantes cindiram-se na campanha eleitoral, sendo
que a ala majoritária apoiou João Goulart (mais conhecido como Jango), presidente do
partido. No entanto, uma ala composta, sobretudo, de membros ligados ao trabalhismo
enquanto ideia (e não como representantes de sindicatos e outros grupos) não
concordavam com as medidas desse político, sendo que lançaram, como concorrente do
próprio mandatário de sua legenda, o deputado federal Danton Coelho, como vice de
Ademar de Barros (D’ARAÚJO, 1996, p. 106-111).

Os status “vigente” e “não vigente” são os termos utilizados pelo próprio TSE para se referir à existência
466

(ou ao fim) dos órgãos partidários nos municípios.

871
Nesse processo eleitoral, esse grupo caminhava para lançar novamente João
Goulart como vice, já que esse se mantinha como o principal nome de proeminência no
partido. No entanto, os mesmos reveses de 1955 estavam presentes: além de uma ala do
partido não concordar com seu nome, as raposas do PSD e vários militares não viam com
bons olhos o lançamento de sua candidatura. Quando foi eleito como vice de JK, foi
apontado como a principal motivação para uma movimentação, por parte da UDN e de
vários setores militares, para impedir sua posse e do próprio político mineiro, por conta de
suas supostas atividades de cunho comunista e da manutenção do legado de Getúlio
Vargas, considerado um mal a ser combatido por muitos dentro da política nacional
(FERREIRA, 2011, p. 209).
Por fim, em meados de 1959, o único nome que parecia ser o de consenso era o
de Jânio Quadros. Ademar e Jango já se postavam como candidatos também, mas
encontravam resistências entre seus próprios correligionários. No caso do ex-interventor
paulista, muitos membros do PSP não acreditariam que ele teria condições de ser eleito,
embora ele possuísse um amplo domínio sobre a agremiação e não teve grande dificuldade
para viabilizar sua indicação (SAMPAIO, 1982, p. 95-96).
Tanto o PSD e o PTB não mantinham garantias de continuar a parceria eleitoral,
pois careciam de um nome para encabeçar a chapa e já apresentavam um amplo desgaste,
principalmente por vários desencontros ocorridos durante o governo de JK
(BENEVIDES, 1976). Já a UDN ainda estava dividida, pois o nome de Juracy Magalhães
não empolgava muito e uma ala do partido, tendo como principal nome o do deputado
federal Carlos Lacerda, defendia a adesão da agremiação ao nome do ex-governador
paulista, considerado como a principal chance dos udenistas ocuparem o poder (já
realizado, sem grande sucesso, durante parte do mandato de Dutra e do breve governo de
Café Filho).
Em meados de 1959, membros da Ala Moça do PSD aproveitaram a alta
popularidade do militar Henrique Lott e lançaram seu nome a presidência, compondo
chapa novamente com Jango como vice. Embora nunca tivesse disputado uma eleição, o
candidato possuía alto capital político por ter sido o principal organizador do movimento
conhecido como Contragolpe preventivo ou Movimento 11 de novembro, uma vez que,
após deixar o Ministério da Guerra por divergir de uma decisão do presidente em
exercício, Carlos Luz, resolveu liderar parte do Exército que via nesse ato uma senha para
um possível golpe de Estado, já que Luz era ligado aos membros da UDN e do Exército
que falavam, abertamente, em evitar a posse de JK e Jango. Assim, em 11 de novembro de

872
1955, tendo Lott à frente desses militares, Carlos Luz foi deposto e Nereu Ramos,
presidente do Senado, foi empossado no cargo, governando até a posse dos eleitos, em 31
de janeiro de 1956 (SKIDMORE, 1976, p. 194-196).
Lott continuou como ministro da Guerra de Nereu e de JK durante todo seu
mandato, mantendo o Exército sob sua ordem, embora várias movimentações contrárias
ocorressem, sendo as de maior destaque as revoltas de Jacareacanga e Aragarças
(BENEVIDES, 1976, p. 161-164) quando, em momentos distintos, militares voltaram-se
contra o governo instituído. No entanto, foram contidos e, a partir dessa perspectiva, a
figura de Lott ficou ainda mais forte e intensa, podendo ter um apelo eleitoral construído
a partir desse ponto.
Em fins de 1959, após muitas idas e vindas, em convenção da UDN, a agremiação
decidiu quem apoiaria na disputa. A escolha ficaria entre um quadro genuíno mas pouco
popular nacionalmente e um político fora do partido mas em ascensão e bastante popular.
Em 1955 a UDN tivera a mesma crise, embora ficara entre dois quadros de fora do partido,
o ex-governador Etelvino Lins (dissidente do PSD) e o militar Juarez Távora. O partido
escolheu o primeiro mas, após várias seções estaduais e várias personalidades do partido
declararem apoio ao militar (como foi o caso do ex-presidente do partido, Odilon Braga),
a candidatura esvaiu-se e a agremiação ficou com o ex-ministro (BENEVIDES, 1981, p.
94-96).
Após intensa confusão entre os pares udenistas, Jânio Quadros resolveu renunciar
à sua candidatura. Embora já contando com apoio do PDC e do PSB, o ex-governador
sabia que precisava de um partido forte para conseguir um impulso à sua candidatura, a
nível nacional. No entanto, após disputas e desencontros ocasionados na convenção, o
então deputado federal resolveu usar uma tática já usual nas suas candidaturas à prefeito e
à governador, declarando que retirar-se-ia da disputa por não possuir maioria ou por estar
causando desordens (CHAIA, 1991, p. 162).
No entanto, logo foi convencido a voltar à disputa e, tendo Carlos Lacerda como
seu principal cabo eleitoral na convenção udenista (embora o deputado federal não fosse
muito simpático a sua imagem), Jânio foi escolhido como candidato da UDN, sendo
referenciado para a disputa. Como forma de conciliação, aceitou a indicação do vice, sendo
o ex-governador de Minas Gerais, Milton Campos, o escolhido (que também fora
candidato a vice em 1955, compondo chapa com Juarez Távora).
Assim, o ano de 1960 começara com os nomes já postos, embora sem grande
unanimidade entre seus próprios pares: Jânio Quadros e Milton Campos

873
(PTN/PDC/PSB/UDN); Henrique Lott e João Goulart (PSD/PTB); Ademar de Barros
(PSP).
Como em 1955, o nome do vice de Ademar seria decidido apenas próximo a
eleição e como um dissidente do PTB. Se na eleição passada o papel coube a Danton
Coelho, nessa o nome indicado foi o de Fernando Ferrari, deputado federal gaúcho que
fazia intensa oposição a João Goulart dentro do PTB (D’ARAÚJO, 1996, p. 125). Assim,
o quadro inicial da candidatura possuíra Ademar de Barros praticamente sozinho, sendo
que a presença de Ferrari foi importante em momentos posteriores a esse.

O PROCESSO ELEITORAL E AS DISPUTAS PARTIDÁRIAS E REGIONAIS

O desenrolar da disputa indicou, como nas edições anteriores, os descompassos e


desencontros entre grupos dentro dos próprios partidos, bem como as diferentes visões de
determinadas seções estaduais. No caso da candidatura de Jânio Quadros, a UDN
continuava com problemas de unidade, uma vez que alguns grupos mais conservadores
(ligados ao presidente da agremiação) ainda resistiam a participar efetivamente da
campanha. Já os políticos mais novos do partido (que passariam a ser conhecidos como
Bossa Nova, em contraponto ao grupo dos mais tradicionais e conservadores, chamados
de Chapa Branca, além dos mais próximos de Lacerda, conhecidos como Banda de
Música), viam com bons olhos a associação do partido à um político novo, com métodos
distintos e que trazia uma nova forma de governo para o país, principalmente após suas
realizações em São Paulo (BENEVIDES, 1981, p. 115).
Já a candidatura de Lott era defendida pelos setores mais progressistas do PSD, que
desafiara os mais velhos ao insistirem com o ministro da Guerra na candidatura. Esses, ao
terem suas pretensões derrotadas, viam-se muito mais próximos às tendências de Jânio,
que defendiam uma política de austeridade e de reorganização econômica do que das
próprias demandas de seu candidato, bastante identificado com as perspectivas
nacionalistas e ligado à Frente Parlamentar Nacionalista (FPN), com medidas consideradas
bastante ostensivas para a época.
Além disso, as eleições estaduais também evidenciavam composições que
poderiam influenciar na disputa nacional. Em especial, duas regiões, com representantes
bastante atuantes em ambos os partidos, estavam com disputas bastante renhidas: em Minas
Gerais, o PSD estava no poder com Bias Fortes e lançara para sua sucessão, com forte
influência de Juscelino, o ex-ministro da Justiça de Vargas e atual Secretário de Finanças

874
do estado, Tancredo Neves. Como contraponto, a UDN lançou o nome do deputado
federal Magalhães Pinto, tentando congregar todas as forças de oposição contra JK e o atual
governador.
Com a mudança de capital, o antigo Distrito Federal foi transformado no estado da
Guanabara, tendo sua primeira eleição para governo e para uma Assembleia Constituinte.
Para o Executivo, a UDN resolveu lançar o nome de Carlos Lacerda, que via nesse
processo sua chance de fortalecer seu nome para a eleição de 1965, sucedendo o
presidente que seria eleito (MENDONÇA, 2002, p. 242-243). PSD e PTB não se uniram
nessa unidade federativa, sendo que o primeiro lançou o ex-prefeito do Rio de Janeiro e
deputado federal Mendes de Morais, e o segundo estruturou a campanha do deputado
federal Sérgio Magalhães.
Por fim, a nível nacional, Ademar de Barros contava com pouco apoio em outras
unidades federativas, embora buscasse contar com as dissidências do PTB e até com nomes
insatisfeitos do PSD e da UDN, que não viam prognósticos favoráveis nos candidatos
escolhidos por seus partidos e, por conta disso, não chegaram a apoiar publicamente mas
faziam algumas movimentações, no sentido de transferir votos para o candidato do PSP.
Dentro dessa conjuntura, desde 1959 um movimento não oficial, mas bastante
presente, passou a tomar conta de vários locais do país. Lembrando a eleição de 1950,
quando inúmeras seções do PSD abandonaram a candidatura de Cristiano Machado e
aderiram ao nome de Getúlio Vargas (nascendo daí a expressão “cristianizar” para o
abandono do candidato pelos seus próprios correligionários), novamente vários setores do
PSD e do PTB repetiram a movimentação, sendo acompanhados por elementos da
própria UDN. Toda essa mobilização girava em torno do grupo formado e intitulado como
Movimento Jan-Jan, que visualizavam a eleição de Jânio para presidente e João Goulart
para vice (SKIDMORE, 1976, p. 235).
De todos os candidatos, esses dois nomes eram os mais populares da disputa.
Principalmente no caso de Jânio Quadros, sua movimentação anterior causava curiosidade
e angariara votos em São Paulo, reduto no qual se mostrou ainda bastante forte após seu
governo. Além disso, sua movimentação em outros estados trazia entusiasmo, com seus
comícios sendo bastante concorridos (CHAIA, 1991, p. 172). Já no tocante a João Goulart,
sua proximidade com os sindicatos e com vários grupos trabalhistas e de cunho
nacionalistas mantinham sua popularidade em alta, sendo um nome muito querido entre
vários grupos de trabalhadores urbanos, sobretudo, em São Paulo e no Rio de Janeiro
(FERREIRA, 2011, p. 211-212). Mesmo desagradando a vários grupos conservadores e à

875
parte do Exército, ainda era um nome de forte apelo popular, mantendo o PTB sob seu
poder e evidenciando grande influência no cenário nacional.
Portanto, nota-se uma participação bastante pragmática de vários grupos no certame
eleitoral. Embora fosse um nome bastante influente em Minas Gerais, Milton Campos não
possuía o mesmo carisma dos outros dois candidatos e, mesmo senador e com poder
consolidado em seu estado, possuía pouco alcance a nível nacional. Já Lott, visivelmente
constrangido em seus comícios, tinha cada vez mais dificuldades em estabelecer conexão
com o eleitorado, principalmente àqueles que apoiavam a figura de seu candidato à vice.
As baixas expectativas que rondavam os eventos da chapa PSD e PTB reforçavam ainda
mais a opção pela dobradinha “inusitada”. A baixa participação de JK no processo também
reforçava o desapreço por Lott, uma vez que o presidente estaria com o propósito de
desidratar seu candidato, tendo em vista fortalecer seu próprio nome para a eleição de
1965 (BENEVIDES, 1976, p. 126), sendo que seria melhor ter um candidato da oposição
no cargo do que alguém indicado por ele mesmo.
No dia 03 de outubro, quase 13 milhões de pessoas foram às urnas eleitorais para
a escolha do presidente e de governadores em 11 unidades federativas. Após os primeiros
dias de apuração, a disputa mantinha-se polarizada, com Jânio na dianteira para presidente
e João Goulart como vice. No primeiro caso, Lott não chegou a constituir uma real ameaça,
em nenhum momento, na contagem dos votos. Já para vice-presidente, assim como em
1955, Milton Campos sempre esteve próximo, tendo números muito próximos do político
gaúcho. Por fim, Jânio Quadros e João Goulart foram eleitos. O ex-governador paulista
teve cerca de 48% dos votos válidos, contra 32% de Lott e 20% de Ademar. Já em relação
à disputa para a vice-presidência, Jango conquistou 42% dos sufrágios, sendo acompanhado
por 39% de Milton Campos e 19% de Fernando Ferrari. Fazendo um rápido mapeamento
por regiões, podemos dividir o resultado eleitoral da seguinte forma:

TABELA 1 – PORCENTAGEM DOS VOTOS PARA PRESIDENTE, POR


UNIDADE FEDERATIVA

Estado (ordem por Número Total de Jânio Quadros – Henrique Lott - Ademar de Barros -
população) Votos Válidos Porcentagem Porcentagem Porcentagem
SP 2.885.441 (100%) 1.588.593 (55%) 441.755 (15%) 855.093 (30%)
MG 1.555.594 (100%) 692.044 (44%) 679.951 (44%) 183.599 (12%)
RS 1.187.791 (100%) 541.031 (46%) 431.497 (36%) 214.963 (18%)
GB 956.766 (100%) 418.813 (44%) 287.830 (30%) 250.117 (26%)
PR 655.907 (100%) 369.737 (56%) 122.360 (19%) 163.810 (25%)

876
RJ 641.847 (100%) 245.655 (38%) 249.707 (39%) 146.485 (23%)
BA 535.745 (100%) 255.530 (48%) 232.391 (43%) 47.824 (9%)
SC 489.889 (100%) 226.070 (46%) 221.813 (45%) 41.706 (9%)
PE 445.973 (100%) 226.211 (51%) 185.136 (42%) 34.626 (7%)
CE 401. 158 (100%) 189.372 (47%) 184.118 (46%) 27.668 (7%)
GO 274.436 (100%) 125.427 (46%) 126.671 (46%) 22.338 (8%)
PB 266.482 (100%) 143.408 (54%) 104.725 (39%) 18.349 (7%)
PA 210.510 (100%) 102.175 (49%) 90.261 (43%) 18.074 (8%)
MA 210.285 (100%) 56.727 (27%) 81.102 (39%) 72.456 (34%)
RN 207.965 (100%) 96.598 (46%) 95.721 (46%) 15.646 (8%)
ES 180. 410 (100%) 88.900 (49%) 59.805 (33%) 31.705 (18%)
MT 143.377 (100%) 77.531 (54%) 58.448 (40%) 7.398 (6%)
PI 122.013 (100%) 53.172 (44%) 61.061 (50%) 7.780 (6%)
AL 112.014 (100%) 53.835 (48%) 32.253 (29%) 25.926 (23%)
SE 90.562 (100%) 42.337 (47%) 45.341 (50%) 2.844 (3%)
AM 58.338 (100%) 23.812 (41%) 32.324 (55%) 2.202 (4%)
BR 19.931 (100%) 7.518 (38%) 10.444 (52%) 1.813 (10%)
AC 10.615 (100%) 5.496 (52%) 4.336 (41%) 783 (7%)
AP 6.921 (100%) 2.845 (41%) 3.971 (57%) 105 (2%)
RO 5.282 (100%) 1.240 (23%) 1.741 (33%) 2.301 (44%)
RB 4.061 (100%) 1.906 (47%) 2.057 (50%) 98 (3%)
Total 11.679.157 (100%) 5.636.623 (48%) 3.846.825 (33%) 2.195.709 (19%)

TABELA 2 – PORCENTAGEM DOS VOTOS PARA PRESIDENTE, POR


UNIDADE FEDERATIVA

Estado (ordem por Número Total de João Goulart - Milton Campos - Fernando Ferrari -
população) Votos Válidos Porcentagem Porcentagem Porcentagem
SP 2.710.346 (100%) 940.638 (35%) 1.414.907 (52%) 454.801 (13%)
MG 1.460.112 (100%) 660.337 (45%) 667.573 (46%) 132.202 (9%)
RS 1.173.836 (100%) 472.902 (40%) 143.509 (12%) 557.425 (48%)
GB 761.811 (100%) 243.044 (32%) 307.057 (40%) 211.710 (28%)
RJ 628.745 (100%) 272.434 (43%) 223.203 (35%) 133.208 (22%)
PR 547.159 (100%) 219.006 (40%) 194.670 (36%) 133.483 (24%)
BA 517.011 (100%) 232.135 (45%) 217.141 (42%) 67.735 (13%)
SC 468.939 (100%) 235.557 (50%) 174.509 (37%) 58.873 (13%)
PE 434.253 (100%) 182.496 (42%) 184.450 (42%) 67.307 (16%)
CE 393.847 (100%) 199.026 (51%) 163.888 (42%) 30.933 (7%)
GO 253.856 (100%) 130.786 (52%) 94.392 (37%) 28.678 (11%)
PB 252.649 (100%) 122.471 (48%) 103.909 (41%) 26.269 (11%)
RN 202.079 (100%) 96.325 (48%) 83.466 (41%) 22.290 (11%)

877
MA 200.006 (100%) 102. 267 (51%) 35.773 (18%) 61.966 (31%)
PA 196.988 (100%) 94.609 (48%) 56.268 (29%) 46.111 (23%)
ES 172.481 (100%) 71.186 (41%) 56.374 (33%) 34.921 (26%)
MT 135.100 (100%) 59.497 (44%) 60.679 (45%) 14.924 (11%)
PI 120.071 (100%) 62.110 (52%) 34.720 (29%) 10.637 (19%)
AL 103.806 (100%) 46,275 (45%) 30.009 (29%) 18.522 (26%)
SE 89.093 (100%) 45.866 (52%) 40.153 (45%) 3.074 (3%)
AM 55.546 (100%) 32. 451 (58%) 8.821 (16%) 14.274 (26%)
BR 18.617 (100%) 10,134 (54%) 5.686 (31%) 2.797 (15%)
AC 10.095 (100%) 6.360 (63%) 572 (6%) 1.163 (31%)
AP 6.715 (100%) 5.158 (77%) 620 (9%) 937 (14%)
RO 4.976 (100%) 2.096 (42%) 754 (15%) 2.126 (43%)
RB 3.974 (100%) 1.844 (46%) 1.114 (28%) 1.016 (26%)
TOTAL 10.922.111 (100%) 4.547.010 (42%) 4.237.719 (39%) 2.137.382 (19%)

Analisando as tabelas acima, é possível identificar alguns padrões em relação ao


comportamento eleitoral dessas regiões. Na votação para presidente, Jânio obteve maioria
em 9 dos 10 estados mais populosos do país (perdendo, por uma pequena margem, no
Rio de Janeiro). A maior diferença conquistada foi em São Paulo, unidade federativa com
o maior colégio eleitoral e no qual o candidato vencedor confirmou ter grande força,
obtendo cerca de 55% dos votos, quase o dobro de Ademar e o quádruplo de Lott, que
teve apenas 15% dos votos (seu pior desempenho, em porcentagem, em todas as unidades
federativas).
Em geral, Quadros venceu em 16 das 26 regiões, sendo que Lott levou a melhor
em 9 partes do país e Ademar foi mais votado apenas no território de Rondônia, não
ficando em último local apenas no Paraná (ficando a frente do militar) e no Maranhão (a
frente de Jânio). O candidato militar foi mais sufragado, praticamente, em regiões do
centro-norte, com um número menor de eleitores do que no centro-sul.
Já para vice-presidente, levando em conta os dez estados mais populosos, Jango
venceu em 5 regiões, tendo 4 conquistas para Milton Campos e uma de Fernando Ferrari.
Nas duas unidades federativas mais populosas, o ex-presidente da UDN conseguiu
sufrágios expressivos, principalmente em São Paulo, onde conseguiu quase 500.000 votos
a mais que seu concorrente central. No entanto, em Minas Gerais a diferença foi muito
pequena, acompanhando também a situação para presidente (a diferença de Jânio para
Lott foi de apenas pouco mais de 12.000 votos). Por fim, no Rio Grande do Sul, Fernando
Ferrari obteve uma vitória expressiva sobre o presidente do PTB, indicando que a

878
articulação política nessa unidade federativa não era, necessariamente, favorável ao atual
vice-presidente.
Em compensação, nas outras 16 regiões, Jango teve vitória expressiva em 14 delas,
perdendo apenas na região do Mato Grosso para Milton Campos e em Rondônia para
Fernando Ferrari. Diferentemente do pleito para presidente, no qual o desempenho de
Jânio foi superior nos grandes centros de votação, Jango conseguiu sua vitória exatamente
nos locais mais afastados, indicando uma estrutura de campanha mais organizada nas
regiões mais distantes das regiões mais populosas.
Do ponto de vista das eleições estaduais, é importante também acompanhar os
resultados finais para os governos:
TABELA 3 – RESULTADO DA ELEIÇÃO NO EXECUTIVO – PORCENTAGEM

ESTADO VENCEDOR – PORCENTAGEM SEGUNDO LUGAR –


PORCENTAGEM
MG Magalhães Pinto (UDN): 46% Tancredo Neves (PSD): 41%

GB Carlos Lacerda (UDN): 37% Sérgio Magalhães (PTB): 35%

PR Ney Braga (PDC): 38% Nelson Maculan (PTB): 34%

SC Celso Ramos (PSD): 51% Irineu Bornhausen (UDN): 49%

GO Mauro Borges (PSD): 52% José Fleury (UDN): 48%

MT Fernando Corrêa da Costa (UDN): 46% Filinto Muller (PSD): 38%

PB Pedro Gondim (PSB): 55% Janduhy Carneiro (PSD): 45%

PA Aurélio Carmo (PSD): 55% Aldebaro Klautau (PSP): 25%

MA Newton Belo (PSD): 63% Clodomir Millet (PSP): 37%

RN Aluizio Alves (PSD): 55% Djalma Marinho (UDN): 45%

AL Luiz Cavalcanti (UDN): 34% Abrãao Moura (PSP): 32%

Observando o resultado por estados e a dinâmica das campanhas postas, é possível


também estabelecer algumas relações importantes. Em Minas Gerais, Magalhães Pinto
conseguiu a vitória agregando as forças de oposição a Bias Fortes e ao próprio JK,
derrotando um dos principais nomes ligados ao ex-governador e à Vargas, Tancredo
Neves. No entanto, a margem de diferença foi relativamente pequena, sendo que tal
aspecto ficou ainda mais claro na votação para o Executivo Nacional, uma vez que Jânio e
Milton Campos venceram por margens ainda menores, indicando uma forte polarização

879
política no estado. Já na Guanabara, a relação entre a votação não seguiu um padrão
específico. Lacerda consolidou seu amplo capital político ao vencer a eleição, derrotando
o PTB e o PSD que não se coligaram, seguindo caminhos distintos das seções nacionais.
Jânio e Milton também venceram na região, mas com resultados distintos: o candidato a
vice-presidente também conseguiu uma margem mínima de vantagem sobre Jango; já Jânio
conseguiu uma ampla votação, conquistando cerca de 130.000 votos a mais que Lott.
Nos outros estados, é possível apontar as seguintes diferenças em relação aos
resultados:
 Paraná (PR): a disputa também foi bastante renhida, sendo que a diferença entre
os primeiros colocados foi apenas de 4%, tendo a vitória do deputado federal Ney
Braga (que apoiou Jânio e Milton Campos). Para a presidência, Jânio conseguiu
uma ampla vantagem sobre Ademar de Barros (mais de 200.000 votos), sendo que
Lott foi muito pouco sufragado. Já no caso da vice-presidência, Jango venceu Milton
Campos também por uma pequena margem, evidenciando que o voto não seguiu
o mesmo padrão e que, no estado onde viveu parte da infância e no qual exercia
mandato de deputado federal, Jânio Quadros possuía uma imensa popularidade.
 Santa Catarina (SC): a diferença de votos foi de 2%, tendo a vitória Celso Ramos
(que apoiava Lott e Jango, além de ser irmão do ex-presidente Nereu Ramos,
falecido dois anos antes). No entanto, esse padrão não se fez notar em nenhum dos
cargos: para a presidência a diferença também foi mínima (1%), mas a vitória foi de
Jânio Quadros; já para vice, Jango venceu por uma ampla vantagem (13%),
evidenciando grande popularidade no estado.
 Goiás (GO): A eleição também foi amplamente disputada, sendo que o deputado
federal Mauro Borges venceu por uma diferença de 4%, apoiando Lott e Jango.
Ambos os candidatos venceram, embora com margens distintas: enquanto o
candidato a presidente teve menos de 1% de vantagem sobre Jânio, o vice-
presidente venceu Milton Campos com ampla margem (15%), evidenciando
também alta popularidade no estado.
 Mato Grosso (MT): Embora não muito extensa, a vitória do ex-governador e
senador Fernando Corrêa da Costa teve uma vantagem um pouco maior, algo em
torno de 8%. Apoiando Jânio e Milton Campos, ambos venceram também no
estado, mas de maneiras distintas: Jânio (que nasceu nessa unidade federativa, mas
vivendo por lá pouco tempo) teve uma diferença maior, beirando os 14% sobre

880
Lott; já a vitória do candidato a vice-presidente foi por uma margem muito menor
(cerca de 1%).
 Paraíba (PB): O candidato vencedor, o vice-governador Pedro Gondim, obteve
10% de vantagem, apoiando Jânio Quadros e Milton Campos. Na votação para a
presidência, a margem foi um pouco maior (o ex-governador paulista venceu por
15% sobre Lott); já para a vice-presidência, a diferença também foi menor mas a
favor de Jango, que venceu com 7% de vantagem.
 Pará (PA): Nesse estado, o chefe da polícia estadual, Aurélio Carmo teve uma
ampla vitória, conseguindo mais de 50% contra 2 outros candidatos, apoiando Lott
e Jango. Esse conseguiu uma vitória parecida com a do futuro governador, atingindo
quase 50% dos votos. No entanto, essa lógica não foi seguida para presidente, sendo
que Jânio foi mais sufragado que o candidato militar por uma pequena diferença
(6%).
 Maranhão (MA): Nesse caso, os três principais partidos se uniram sob a
candidatura do deputado federal Newton Belo, que conseguiu mais de 60% dos
votos. No entanto, os candidatos da UDN tiveram baixo apelo nessa unidade
federativa, sendo que ambos ficaram em último nas disputas: Jânio Quadros ficou
12% atrás de Lott, e Milton Campos ficou mais de 30% aquém de João Goulart,
que teve mais de 50% dos sufrágios.
 Alagoas (AL): em uma eleição com vários candidatos e com os partidos
fragmentados, o deputado federal Luiz Cavalcanti foi eleito com apenas 2% de
vantagem, apoiando Jânio e Milton Campos. O candidato ligado a Lott e Jango, o
também deputado federal Ary Pitombo, não conseguiu expressiva votação, embora
esse padrão não foi seguido, sobretudo para vice, sendo que o político do PTB
venceu com ampla vantagem (16%) sobre o candidato a vice na UDN. No entanto,
para a presidência, a vitória foi de Jânio e por uma margem ainda maior, atingindo
quase 50% dos votos.

CONCLUSÃO

Excetuando o Rio Grande do Norte, cujos padrões foram mantidos em todos os


resultados, as unidades federativas apresentaram desvios significativos ao traçar os dados,
indicando que o caráter do voto, de fato, não seguiu o padrão estipulado pelos partidos e
coligações. Além disso, as seções estaduais das agremiações não seguiam, necessariamente,

881
a orientação nacional, sendo uma das características mais intensas das disputas eleitorais
brasileiras desde 1945.
Embora não dispormos de dados para fazer uma base comparativa com os outros
pleitos, é possível indicar, a partir dessa microanálise, que a questão personalista era
bastante intensa, apresentando resultados bastante díspares nessas unidades federativas. O
próprio resultado final, com a eleição de Jânio Quadros e João Goulart (fato incentivado
por correligionários dos dois lados, sendo que ambos ganharam, juntos, em 12 regiões
brasileiras), é bastante elucidativo da dinâmica eleitoral no país, cuja personalidade
apresenta-se como mais importante do que as ideias ou possíveis ideologias dos partidos
em si.
Dentro da dinâmica partidária, é importante observar que tais movimentações não
indicam enfraquecimento ou ausência de sentido nos atos dessas agremiações. Pelo
contrário, partindo da perspectiva adotada por Souza (1990), as divisões indicam disputas
internas que demonstram a importância que esses grupos possuíam. Como toda estrutura
extensa e que agrega subgrupos com perspectivas distintas, os conflitos são praticamente
certos, não indicando um erro nem um sinal de fraqueza, necessariamente.
No entanto, do ponto de vista do voto em si, o cruzamento desses dados indica um
alto personalismo por parte do eleitorado. A própria ascensão de Jânio Quadros é o
melhor exemplo disso, uma vez que o presidente eleito não possuía uma identificação
partidária. Mas a sua proximidade com a UDN não fora gratuita, uma vez que vários
elementos defendidos pelo partido (principalmente o moralismo público e a organização
da economia) eram também comuns a Jânio. E, como uma espécie de contraponto, João
Goulart chegou novamente ao cargo, com perspectivas distintas do ex-governador paulista
mas, em compensação, com uma forte identificação partidária, chegando a causar
incômodo à vários grupos (inclusive com subgrupos dentro de sua própria agremiação) que
não viam com bons olhos essa aproximação. Por fim, esse processo eleitoral indicou uma
situação até então inédita, com duas pessoas que iriam compor um governo com
perspectivas políticas distintas, escolhidas de maneira democrática. Nesse ponto, teve início
o governo de Jânio Quadros, primeiro presidente empossado em Brasília e que, de certa
forma, confirmava sua ascensão meteórica na escala política (e que, pouco tempo depois,
sofreria também uma ampla queda, quase que irreversível).

882
REFERÊNCIAS

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SOUZA, Maria C. C. Estado e partidos políticos no Brasil: 1930-1964. 3 ed. São Paulo :
Alfa-Ômega, 1990 (Biblioteca Alfa-Ômega de Ciências Sociais. Série 1, v. 3).

883
ORGANIZAÇÃO PARTIDÁRIA NOS MUNICÍPIOS PAULISTAS
(1999-2015)

Jean Lucas Macedo FERNANDES467

Resumo: O objetivo do artigo é realizar um estudo da organização dos partidos no estado de São
Paulo, a partir de duas variáveis, em nível municipal: registro de órgãos partidários (estabelecimento
por meio de Comissões Provisórias ou Diretórios) e número de filiados. Os partidos selecionados
foram: Democratas (DEM), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), Partido Progressista (PP), Partido Popular Socialista (PPS),
Partido da República (PR), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Essas
agremiações, além de possuírem longa trajetória dentro do sistema partidário brasileiro, cobrem
todo o espectro ideológico – o que nos fornece um panorama da estrutura organizacional dos
partidos tanto à esquerda quanto à direita. Na primeira parte do trabalho, é feito um mapeamento
dos órgãos, de 1999 a 2015, com o objetivo de identificar como os partidos se estruturam no estado
e quais as mudanças que ocorreram no período. Já para a dimensão dos filiados, foi realizado um
levantamento dos membros das agremiações na última década (2002-2015). Conclui-se que os
partidos se organizam de maneira distinta entre si no contexto paulista - alguns com maior grau de
estruturação e dispersão pelos municípios paulistas, em relação a outros. Os partidos com maior
penetração territorial são, principalmente, PT e PSDB. Outros vêm perdendo força organizacional
no estado (casos do PP e do PMDB). De modo geral, os partidos têm aumentado sua presença
formal em São Paulo, porém com predomínio maior das Comissões Provisórias, em comparação
aos Diretórios. A principal hipótese explicativa é a de que se trata de uma estratégia das lideranças,
a fim de influenciarem mais diretamente nos processos decisórios locais de seus respectivos
partidos. Os dados para esta pesquisa foram obtidos junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e
ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo (TRE-SP).

Palavras-chave: Organização partidária. Partidos políticos. São Paulo.

INTRODUÇÃO

Pretende-se compreender a dispersão territorial dos partidos políticos pelos


municípios do estado de São Paulo, entre 1999 e 2015. Os partidos selecionados foram:
Democratas (DEM), Partido Democrático Trabalhista (PDT), Partido do Movimento
Democrático Brasileiro (PMDB), Partido Progressista (PP), Partido Popular Socialista
(PPS), Partido da República (PR), Partido Socialista Brasileiro (PSB), Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB), Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB). Essas agremiações, além de possuírem longa trajetória no sistema
partidário, cobrem todo o espectro ideológico (POWER; ZUCCO JR., 2011) –
fornecendo-nos um panorama das organizações tanto à esquerda quanto à direita.

467
Esta taxa foi obtida através da soma do total de filiados de cada um dos dez partidos, em cada região, divido
pelo total de eleitores desses mesmos dez partidos, por região.

884
Para trabalhar a organização partidária, optou-se por uma divisão em dois blocos:
1) órgãos partidários (Diretórios e Comissões Provisórias); e 2) filiados468. São duas variáveis
importantes para se mensurar a presença dos partidos no nível local (BRAGA,
RODRIGUES-SILVEIRA; BORGES, 2012). A questão dos órgãos e da filiação
partidárias tem recebido pouca atenção empírica na literatura brasileira (BRAGA;
PIMENTEL JR., 2013). Saber mais a respeito das organizações dos partidos nos ajuda a
esclarecer suas estratégias de atuação e a maneira como o sistema partidário tem se
conformado. Isto vale especialmente para os municípios, que apenas recentemente têm
voltado a ganhar atenção nos debates (ROCHA; KERBAUY, 2014) e, portanto, ainda
carecem de estudos exploratórios sobre suas dinâmicas partidárias. Ao relacionar partidos
políticos e nível municipal, chamamos atenção para a importância dessas estruturas nas
atividades locais.
O terreno político-partidário paulista abriga representação de todas as agremiações
do sistema partidário, além de um contexto de alta competição eleitoral e nacionalização
das disputas (MENEGUELLO; BIZZARRO NETO, 2012). Sendo assim, ao
debruçarmos sobre São Paulo, conseguimos não apenas estudar a organização dos mais
variados partidos, cobrindo todo o continuum ideológico, mas também observar que
estratégias eles adotam, em um cenário heterogêneo e competitivo. Os dados da tabela 2
ajudam a ilustrar este ponto, ao observarmos as disparidades entre os perfis
socioeconômicos das Regiões Administrativas. Há diversos contextos, com taxas
relativamente diferentes de analfabetismo, características da população economicamente
ativa e urbanização. Desde os anos 1980, regiões como Santos, São Paulo e Ribeirão Preto
tem se mantido como as mais urbanizadas. Já Registro, Presidente Prudente e São José do
Rio Preto são as menos urbanizadas, além de terem as maiores taxas de população
empregada nas atividades agrícolas.

TABELA 2. PERFIL SOCIOECONÔMICO: REGIÕES ADMINISTRATIVAS DE


SÃO PAULO (%) (1980 E 2010)

1980 2010
Taxa
Pop. PEA PEA PEA Pop. Taxa PEA PEA PEA
Região Adm. Analf.
Urb. Agr. Ind. Serv. Urb. Analf. Agr. Ind. Serv.
(1991)
Santos 98,23 11,35 4,52 32,28 63,21 99,51 7,37 0,53 7,82 91,64
São Paulo 87,18 12,89 5,93 48,28 43,16 95,63 8,13 2,53 29,52 68,07

468
O caso do PTB é o único onde não foi possível estabelecer um único órgão partidário por ano e por
município.

885
Ribeirão Preto 74,84 14,13 44,47 23,54 31,98 90,8 9,78 16,38 28,3 55,33
Barretos 69,84 16,03 51,97 12,88 35,3 91,3 10,7 31,87 18,22 49,91
Campinas 68,99 13,55 32,06 33,9 34,62 86,96 8,74 12,2 34,48 53,32
Central 68,77 15,6 43,12 26,31 30,58 90,88 10,71 20,27 26,38 53,35
Franca 66,83 15,36 51,24 17,64 31,12 88,6 10,53 23,41 26,39 50,2
São José dos
65,79 15,76 30,6 27,5 41,91 78,88 10,11 10,07 18,29 71,64
Campos
Bauru 60,05 16,31 51,62 17,55 30,83 85,58 10,89 26,88 26,95 46,86
Araçatuba 59,21 18,27 55,32 15,73 28,95 84,11 12,68 19,68 25,4 55,5
Sorocaba 54,64 16,57 48,2 20,36 31,43 73,31 11,3 20,18 24,17 56,56
Marília 54,12 18,45 59,9 12,3 27,8 84,74 12,34 28,94 20,23 50,83
S. José do Rio
53,31 18,36 60,61 12,15 27,24 84,05 13,18 22,04 20,89 57,51
Preto
Presidente
53,27 19,62 58,97 11,76 29,27 81,76 14,06 16,7 18,04 65,6
Prudente
Registro 49,02 19,84 48,27 16,64 36,09 67,67 12,57 22,49 7,49 71,63
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados dos Censos demográficos de 1980 e 2010. As porcentagens
obtidas são as médias dos municípios que compõem cada região administrativa do estado

Em geral, as regiões vêm apresentando crescente evolução no setor de serviços, ao


passo que a população empregada na indústria vem em segundo lugar, acompanhando
tendências identificadas pela literatura (DEDECCA et. al., 2010). Em relação às
transformações econômicas, as regiões mais próximas à capital são as que mais se
beneficiam. Inicia-se, pois, um processo de “guerra” entre os municípios pela atração de
investimentos, tornando a capital uma espécie de “gestora” do interior paulista –
alimentado por diferentes lógicas de produção e instalação industrial.
Em termos metodológicos, cabe observar que os órgãos partidários não
permanecem os mesmos ao longo do ano. De acordo com o TSE, os partidos podem
atualizar seus registros, mantendo a mesma estrutura de Comissão ou Diretório, ou alterá-
la de um para outro. Entre 2008 e 2012, este estudo selecionou a estrutura organizacional
que mais predominou ao longo do ano, em termos de total de dias, de modo a gerar um
único dado para cada município e partido. Após a geração destes dados, foram feitas as
devidas separações, por partido, dos órgãos partidários que cada um apresenta nos
municípios do estado. Para o período entre 1999 e 2007, alguns partidos registraram dois
órgãos diferentes para o mesmo ano – e a informação do dado não permitiu identificar
qual estrutura predominou. Na atualização para o ano de 2015, foram selecionados apenas
os órgãos partidários com o status de “vigentes469” – ou seja, que estão formalmente em

469
Para mais informações, ver Braga (2008, pp. 464-465). O PT também apresenta estrutura semelhante no
estado.

886
funcionamento no município. Assim, podemos precisar melhor como de fato os partidos
têm se estruturado.
Sobre os filiados, os dados também foram obtidos junto ao TSE, que os
disponibiliza a partir de 2002. O grau de penetração dos partidos, aqui, foi calculado por
meio da taxa de filiados, que indica a porcentagem de filiados que estão nas respectivas
regiões e municípios470. Através deste indicador, foi possível mensurar a presença partidária
local nos municípios paulistas no que tange a uma das dimensões de seus vínculos com o
eleitorado. Com isso, poderemos observar a proporção de filiados que está presente em
cada uma das regiões.
O texto se encontra estruturado em cinco partes. Na sequência, faremos uma breve
revisão da literatura recente, articulando a questão organizativa dos partidos com a
perspectiva sob a qual se pretende analisá-los. A terceira seção explora os dados de órgãos
partidários, por partido, relacionando a trajetória de cada agremiação no estado com as
informações coletadas – traça-se, assim, um histórico dessas legendas em São Paulo. A
quarta seção se encarrega de olhar para a dimensão dos filiados, trazendo a evolução de
seus quantitativos. Por fim, a conclusão sintetiza os achados da pesquisa e reforça o
argumento em torno da centralidade das estruturas partidárias para os processos decisórios
locais.

DISCUSSÕES RECENTES SOBRE ORGANIZAÇÃO PARTIDÁRIA

Os dois formatos de organização partidária que se tem no Brasil são os Diretórios


e as Comissões Provisórias. Os Diretórios possuem maior “força” organizativa, pois são
unidades mais complexas e exigem a realização de uma convenção municipal para sua
homologação. Já as Comissões Provisórias se instituem por iniciativa da direção estatal do
partido e possuem um tempo delimitado de duração, que é de 90 dias (BRAGA;
PIMENTEL JR., 2013) – e tendem a ser mais fluidas e dependentes das lideranças locais.
As Comissões são um recurso normativo utilizado pelas lideranças partidárias e que
permitem a elas um absoluto controle sobre a formação das listas (GUARNIERI, 2011).
Como diferencia Braga (2008, p. 460): “os órgãos mais frágeis são as comissões provisórias
porque são totalmente dependentes dos Diretórios”. Comparativamente, os Diretórios
exigem maior participação dos membros filiados, e constituem o tipo mais

470
Doutorando em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara - Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Contato: alexandre.sociais@hotmail.com

887
institucionalizado e democrático de organização partidária (BRAGA; RODRIGUES-
SILVEIRA; BORGES, 2012). Há, ainda, as comissões interventoras, utilizadas pelo
Diretório Estadual como forma de controle e alteração da configuração do partido nos
municípios. A existência desta ou daquela estrutura, dadas as suas características distintas,
tende a produzir variações nos perfis e nas atuações dos partidos.
A maneira como um partido está organizado pode afetar sua identidade perante o
eleitorado e influencia na criação de laços partidários (KINZO, 2005; SPECK; BRAGA;
COSTA, 2015). Um exemplo dessas diferenças organizativas são o peso e o tamanho da
participação atribuídos aos filiados nas tomadas de decisão internas, que variam entre as
agremiações. Focando especificamente no caso de São Paulo, nota-se o mesmo aspecto: a
estrutura organizacional local dos partidos é diversa (BRAGA, 2008; BRAGA; SPECK,
2014), trazendo reflexos para a participação intrapartidária.
A literatura em torno da identificação partidária e adesão formal aos partidos tem
apontado uma diminuição dos vínculos entre eleitorado e agremiações, tanto no Brasil
quanto no mundo (SCARROW, 1996; MAIR; VAN BIEZEN, 2001; KINZO, 2005).
Neste contexto, Speck, Braga e Costa (2015) identificam dois conjuntos de motivações e
práticas político-partidárias, entre o eleitorado brasileiro. Existe uma parte significativa dos
filiados que apresenta convicções políticas claras e que se filiam aos partidos através de suas
redes associativas, interpessoais e familiares – são, predominantemente, os filiados a
partidos de esquerda. Por outro lado, há um universo de filiados relativamente
desconhecido que se mobiliza afetiva e profissionalmente, mas não se vincula a ideologias.
Tais filiados atuam no âmbito partidário, mas apenas durante as eleições e associados a
lideranças específicas.
Speck (2013) também chama a atenção para esta relação estreita entre o calendário
eleitoral e as filiações partidárias. O autor encontra que a motivação principal dos filiados,
no caso das filiações realizadas pelos diretórios municipais, é participar do processo
eleitoral – seja como candidatos ou apoiando outras candidaturas no processo interno de
seleção. Nesse sentido, o grande motor da filiação partidária no Brasil seria o calendário
eleitoral:

A filiação partidária parece ser o primeiro passo para preparação dos


potenciais candidatos para a disputa intrapartidária pela nomeação dos
candidatos. Os potenciais candidatos são o motor atrás das novas
filiações, seja porque ainda não são filiados ou mudam de um partido
para outro, seja porque trazem novos filiados para os partidos para firmar

888
a sua posição para uma possível disputa na nomeação como candidatos
do partido (SPECK, 2013, p. 58).

Além deste impacto do calendário eleitoral sobre a dinâmica das filiações em nível
local, Speck (2013) encontra, também, que as filiações são determinantes importantes para
o sucesso eleitoral dos partidos. Uma hipótese lançada pelo autor é a de que “a eficiência
dos candidatos na mobilização de filiados se reflete também em maior eficiência durante a
organização da campanha eleitoral” (SPECK, 2013, p. 58). Sendo assim, uma linha
argumentativa possível seria a de que a filiação e a estruturação dos partidos são duas
dimensões que andam juntas, inclusive nos municípios. Ambas se traduziriam, então, em
organizações partidárias mais ou menos estruturadas e que, no limite, impactariam na
capacidade de os partidos se apresentarem (ou não) perante o eleitorado. É esta perspectiva
que procuraremos evidenciar neste trabalho.
No que concerne à participação dos filiados, a existência de uma organização
partidária estruturada é determinante. Segundo Braga (2008) e Braga e Speck (2014), no
caso paulista, PT, PSDB e PMDB são as agremiações que possuem “vida partidária” mais
intensa. Em pesquisa recente com os delegados de PT e PSDB, Meneguello, Amaral e
Bizzarro Neto (2014) chegaram à mesma conclusão: ambas as agremiações desempenham
“satisfatoriamente as funções de agregação e representação de interesses, além de
manterem níveis razoáveis de atividade fora dos períodos eleitorais” (p. 15). Ainda que
marcados por diferenças ideológicas e de origem, PT e PSDB se destacam em termos de
envolvimento e mobilização das bases filiadas. Entre os demais partidos, que também são
aqueles com organização mais dependente de Comissões Provisórias, foi observada uma
baixa atividade partidária, bem como um maior controle de poucas lideranças sobre todos
os processos decisórios. Nesse sentido, quanto maior for a “solidez organizacional”, mais
fortes são os vínculos entre candidatos e organizações locais, bem como mais intensas são
as atividades partidárias.
Porém, Guarnieri (2011) traz outra visão sobre a “força” das organizações
partidárias, levando em consideração o controle das lideranças sobre os processos
decisórios internos, com destaque para a participação nas eleições. Para o autor, os partidos
mais organizados, com estruturas menos centralizadas e mais poliárquicas, não são
necessariamente os mais coesos, e partidos com arranjos monocráticos tendem a ampliar
o espaço de atuação e poder das lideranças. Ele procura contrapor, assim, a visão dual que
coloca partidos de massa organizados e disciplinados contra partidos pouco

889
institucionalizados e fragmentados, assentados em vínculos personalistas. É necessário,
portanto, termos em vista a maneira como se opera o controle intrapartidário. Entende-se
que os arranjos mais ou menos centralizadores adotados pelos partidos são derivados dos
mecanismos de controle e estratégias disponíveis para suas lideranças, interferindo no
modo como se estruturam localmente.
O estudo sobre as organizações partidárias contribui para a compreensão de
diversos aspectos das agremiações. As estruturas organizacionais são cruciais para a
conformação dos partidos e a orientação do sistema partidário. Este debate em torno das
estruturas partidárias é relevante para a própria noção do que é um partido “forte” ou
“fraco”, que está sujeita a mudanças, quando levamos em consideração essas variáveis. O
estudo das organizações partidárias não se refere apenas à construção de tendências de suas
estruturações, mas também à própria maneira como elas concebem suas transformações,
tanto na arena organizacional quanto eleitoral. Espera-se contribuir nesse sentido para o
caso de São Paulo, trazendo a dinâmica partidária organizacional na última década.
O levantamento da dispersão dos partidos busca identificar suas estratégias
organizativas. Focaremos o argumento na questão das diferentes estratégias das lideranças,
em termos de maior ou menor controle sobre a máquina partidária – na linha de Guarnieri
(2011) e Ribeiro (2013). Ou seja, a “força” ou “fraqueza” das agremiações está associada a
suas distintas formas de atuação intrapartidária. Se os partidos sofrem mudanças na esfera
local, isso demonstra que suas estruturas organizacionais são relevantes e que importam
para as mobilizações estratégicas de suas lideranças. Alterar a composição de Diretório
para Comissão, ou vice-versa, pode indicar não somente a “força” ou “fraqueza” do partido,
mas também sua capacidade de influenciar os processos decisórios locais.

DISTRIBUIÇÃO DOS ÓRGÃOS PARTIDÁRIOS ENTRE OS PARTIDOS

Os partidos foram agrupados de dois em dois, através de critérios como a trajetória


histórica, o tamanho das legendas no estado de São Paulo e suas bases sociais. Estes
agrupamentos seguindo alguns critérios facilitam, também, a explicação dos dados.

DEM E PR

Ambos os partidos se organizam em São Paulo quase exclusivamente sob a forma


de Comissões Provisórias – o DEM, até 2003, apresentou um número considerável de

890
Diretórios (Gráficos 1 e 2). O PR em nível nacional apresenta o mesmo perfil, com elevada
predominância das Comissões - mais de 99%, dentre o total de órgãos registrados (BRAGA
E PIMENTEL JR., 2013).
Kinzo (1993), no início dos anos 1990, já pontuava a dificuldade do Partido da
Frente Liberal (PFL - sigla que foi substituída por DEM em 2007) em dispersar
organizacionalmente pelo estado. Este processo foi dificultado pela forte presença de
competidores em faixa ideológica semelhante – casos do malufismo, janismo, quercismo e
do Partido Liberal (PL). O DEM é um partido com alta capacidade de organização, mas
esta é anulada pelos dirigentes, que buscam nas comissões provisórias uma estratégia de
ampliação da rede organizacional, relacionada ao controle direto das lideranças sobre as
decisões internas (GUARNIERI, 2011). Para Guarnieri (2011), o DEM se classificaria
como um partido oligárquico, onde poucos grupos controlam parte considerável das
tomadas de decisões, mas facilitam a coordenação interna, aumentando sua coesão e
estabilidade. O DEM é uma agremiação que busca estratégias que não passam pelos
Diretórios. Entre 1999 e 2003, o partido esteve presente em quase todos os municípios,
sobretudo com Diretório. A partir de 2004, por conta da crise vivida em âmbito nacional
(RIBEIRO, 2014), a formação do partido no estado decaiu, voltando a crescer a partir de
2008, quase totalmente com Comissões Provisórias.

Gráfico 1 - Diretórios e Comissões Provisórias do DEM no Estado de São


Paulo (1999-2015)
850
650
450
250
50
-150
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
CP 196 283 287 291 424 432 435 438 132 602 626 639 637 641 631
DIR 410 358 340 340 221 3 0 1 0 1 1 1 0 0 0
Fontes: TSE e TRE-SP.

Sobre o PR, desde o seu surgimento nos anos 1980, como PL, o partido já não se
firmava como ator relevante dentro das disputas eleitorais, mesmo no Rio de Janeiro e em
São Paulo, suas bases originais (KINZO, 1993). Para a série histórica aqui analisada, o PR
se fez presente em uma média de 74,6% dos municípios, valor superior apenas a do PDT
(63,1%) e do PSB (74,4%), alcançando seu melhor resultado em 2011, quando se registrou
em 536 municípios (83% do total).

891
Na divisão por regiões administrativas, as únicas em que o DEM se manteve
constantemente presente em todos os municípios são do interior: Registro e Franca. O
único Diretório existente era na capital, mas foi desfeito em 2011. Desde, 2008, o DEM
vem preenchendo espaços onde não se organizava, sobretudo no interior (Marília,
Sorocaba e Bauru). Já o PR cresceu em regiões como São José do Rio Preto, Campinas e
Barretos (2008-2011). Em 2015, reduziu sua representatividade, caindo de 536 para 437
órgãos. Esta diminuição se deu principalmente nas regiões de Sorocaba e Campinas. Há
também uma perda de órgãos em Presidente Prudente, Ribeirão Preto e São José do Rio
Preto.

Gráfico 2 - Diretórios e Comissões Provisórias do PR em São Paulo


(2008-2015)
800
600
400
200
0
2008 2009 2010 2011 2012 2015
Diretórios 0 0 0 0 0 0
C. Provisórias 445 466 484 536 480 437

Fontes: TSE e TRE-SP. Não foi possível obter os dados do PR (até então PL e PRONA), entre 1999 e 2007.

PDT E PTB

Criados no contexto de disputa pela herança trabalhista do antigo PTB (1945-


1965), PDT e PTB se aproximam por conta de suas origens no campo do trabalhismo.
Enquanto o primeiro era a agremiação que menos se representou formalmente no estado,
dentre aquelas estudadas, o segundo alterou radicalmente sua composição nos municípios
paulistas.
O PDT conseguiu representação em boa parte dos municípios até 2007, perdendo
terreno em 2008 (Gráficos 3 e 4). A partir de 2010, o partido cresceu significativamente,
passando a se organizar em 487 municípios (75,4% do estado). Este crescimento é
acompanhado de um aumento no número de Diretórios, que praticamente triplica entre
2008 e 2010: de 54 para 161. Esta mudança é observada principalmente em regiões do
interior (Araçatuba, Sorocaba, Campinas e Marília). Em 2011 e 2012, o número de
Diretórios continua se ampliando, chegando a 183 e 181, respectivamente. No entanto, em

892
2015 os Diretórios caem para 42. As Comissões Provisórias, por sua vez, foram
responsáveis pela maior penetração do PDT no estado, ao longo de toda a série histórica.
Atualmente, o partido se encontra em 39% dos municípios.
Historicamente, o PDT é uma agremiação que teve pouca expressão em São Paulo,
tendo seu espaço ocupado por legendas como o PT e o PMDB (KINZO, 1993). A
estratégia do partido, em meados dos anos 1980, foi implantar Diretórios em quase todos
os municípios e atrair políticos como Adhemar de Barros Filho, herdeiro político de
Adhemar de Barros e uma ex-liderança forte no estado. Entretanto, segundo a análise de
Kinzo (1993), trata-se de uma legenda que ainda assim teve dificuldades em penetrar
organizacional e eleitoralmente no estado. Os dados mais recentes mostram que o partido
novamente tem voltado a crescer.

Gráfico 3 - Diretórios e Comissões Provisórias do PDT em São Paulo


(2000-2015)

800
600
400
200
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
CP 552 586 561 580 588 594 512 478 143 182 326 351 347 210
DIR 0 0 32 16 8 7 76 82 54 109 161 183 181 42
Fonte: TSE e TRE-SP.

Já o PTB, que também acompanha este padrão de bases frágeis no estado


(MENEGUELLO; BIZZARRO NETO, 2012), adotou estratégias diversas de estruturação
organizacional ao longo do tempo. Em 2005, o partido passou por várias mudanças em
nível local, resultando em mais de 200 municípios com organização mista – Diretórios e
Comissões predominaram, no mesmo ano471. Seguiram-se anos de crise organizacional,
com uma queda significativa da penetração do partido no estado e um aumento posterior
das Comissões Provisórias. Em 2011, houve uma inversão na forma organizativa do
partido: foram destituídos todos os 479 diretórios então existentes e substituídos por
comissões, que se estabeleceram em 644 municípios. No ano de 2012, 61 diretórios foram
refundados em diversas regiões do estado – os maiores números são das regiões de São

471
Dissertação defendida no programa de pós-graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras (Campus de Araraquara). Disponível em:
<http://hdl.handle.net/11449/126518>.
893
José do Rio Preto, Marília e São Paulo. Em 2015, este quadro se mantém semelhante. O
crescimento organizacional do PDT se deu em direção ao interior ao longo dos anos.
Contudo, nos municípios localizados mais próximos ao centro do estado, a organização
pedetista ainda era inexistente em 2012, e a petebista muda radicalmente o quadro que
apresentava em 2008. As estruturas do PDT se encontram espalhadas pelo estado de forma
heterogênea, o que também acontece como PTB, mesmo com a destituição dos diretórios
em 2011.

Gráfico 4 - Diretórios e Comissões Provisórias do PTB em São Paulo (1999-


2015)
850
750
650
550
450
350
250
150
50
-50
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
CP 172 205 214 203 640 642 628 27 561 117 135 166 644 584 569
DIR 83 193 413 425 0 0 228 108 0 506 510 479 0 61 60
Fontes: TSE e TRE-SP.

PMDB E PP

Os dados dos Gráficos 5 e 6 evidenciam a força organizacional local do PMDB, uma


herança do antigo MDB (SADEK, 1989). Acompanham, também, o quadro nacional do
partido, onde detém a mais extensa rede (BRAGA; PIMENTEL JR., 2013). O caso do PP
paulista é semelhante, pois era uma legenda forte e de bases populistas ligadas à liderança
de Paulo Maluf, principal articulador do partido a nível estadual e nacional, desde a
redemocratização (KINZO, 1993).
No PMDB, os diretórios apresentavam quedas sucessivas desde 2009, contexto em
que detinha a organização mais extensa do estado (BRAGA, 2008), até 2012 - quando
chega a 317 diretórios no total. Entretanto, Bizzarro Neto (2013) demonstra que a
organização do partido como um todo não diminui, apesar de sua perda de
competitividade no estado – principalmente após a morte de seu principal líder, Orestes

894
Quércia, em 2010. O PMDB se encontrava em 403 municípios em 2000 (62,5%), todos
como Diretório. A partir de 2003, algumas reestruturações foram feitas, com a adoção de
Comissões Interventoras e a ampliação dos Diretórios. O partido alcança 86,8% dos
municípios em 2008, porcentagem que se eleva para 100% em 2011 – juntamente ao PSDB
neste mesmo ano e ao PTB em 2012, são as três agremiações que registraram organização
partidária em todos os municípios do estado em algum momento do recorte temporal aqui
proposto. Em 2012, o PMDB deixa de organizar apenas em 2 municípios: Bom Jesus dos
Perdões e Itapevi. Em quatro anos, o número de Comissões Provisórias aumentou 10
vezes, passando de 32 em 2008 para 326, em 2012, ao passo que os diretórios deixaram
de ser a maior marca organizacional do partido. Isso somente volta a acontecer em 2015.

Gráfico 5 - Diretórios, Comissões Interventoras e Provisórias do PMDB


em São Paulo (2000-2015)
800
600
400
200
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
INTERV 0 0 0 20 8 8 3 2 0 0 0 0 0 0
CP 0 30 51 116 98 85 48 118 32 53 103 242 326 256
DIR 403 460 590 478 533 119 309 278 529 584 498 403 317 346
Fontes: TSE e TRE-SP.

O aumento sucessivo das comissões peemedebistas até 2012 acompanha uma


estratégia nacional do partido, diagnosticada por Braga, Veiga e Miríade (2009): a criação
de comissões provisórias e interventoras como um mecanismo para garantir seu controle
sobre os processos de recrutamento e seleção de candidatos. Nesse sentido, a seção paulista
do PMDB adotou o mesmo plano. De acordo com Bizzarro Neto (2014), após a morte de
Quércia, seu principal grupo de oposição, ligado a Michel Temer, procurou minar as bases
de apoio ao quercismo. Para tal, lançaram mão do mecanismo de dissolução dos diretórios
do partido no estado, ampliando as comissões provisórias e o poder de intervenção das
novas lideranças. O objetivo era não apenas controlar a seleção de candidatos, mas também
consolidar este novo grupo político. Os dados de 2015 parecem apontar para essa nova
estratégia, pois há diminuição das comissões (256) e novo aumento dos diretórios (346) –
registrando presença partidária em cerca de 93% do estado. Nota-se, pois, que o partido
continua a ser um dos mais bem organizados no estado, junto ao PT e ao PSDB.

895
Já o PP se configurou exclusivamente com Comissões Provisórias até 2006,
ocupando uma parcela significativa dos municípios paulistas. Entre 2008 e 2009, registrou-
se crescimento dos Diretórios, que passam de 253 para 339 – os maiores acréscimos são
nas regiões de Campinas, Sorocaba e São Paulo. O crescimento nos registros se mantém
ao longo dos anos, mas a partir de 2010 os diretórios passam a se reduzir vis a vis às
comissões, que chegam a 519 em 2012 – ano em que o partido marca a maior presença no
estado (89,8% dos municípios). Para 2015, nota-se um aumento nos diretórios e uma
“quebra” na estruturação das comissões: 232 são provisórias e 221, interventoras –
indicando que o partido tem sofrido transformações significativas no estado.

Gráfico 6 - Diretórios e Comissões Provisórias do PP em São Paulo


(2008-2015)
800
600
400
200
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
INTERV 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 221
CP 183 420 602 598 600 578 525 367 135 167 241 404 519 232
DIR 1 0 0 0 0 0 0 83 253 339 297 162 61 112
Fontes: TSE e TRE-SP.

Em relação ao perfil interno do PP, é um caso semelhante ao PMDB: uma


agremiação de perfil organizacional monocrático (GUARNIERI, 2011), cujo controle
interno é bastante centralizado, conforme identificou Braga (2008) até 2006. Os dados
atualizados confirmam esta tendência. A queda na influência política e eleitoral do
malufismo é uma das causas que ajudam a explicar essa mudança. Sobre a presença
organizacional, o crescimento do partido se dá tanto em regiões mais industrializadas e
próximas da capital (São Paulo e Campinas), quanto do interior (São José do Rio Preto e
Marília). É um crescimento, pois, que ocorre de forma heterogênea, sem ligação a um perfil
específico de região.
Em geral, PP e PMDB, duas legendas tradicionalmente enraizadas no estado,
apontam uma mesma direção: continuam fortemente presentes, mas com estruturas
monocráticas de decisão – ou seja, as Comissões Provisórias e Interventoras. Em ambos os
casos, uma hipótese possível, que poderia ser desdobrada em estudos posteriores, se
associa à intervenção das lideranças estaduais e nacionais nas tomadas de decisão locais,
indicando uma estratégia organizativa alternativa.

896
PPS E PSB

Partidos de bases fortes no Nordeste (FLEISCHER, 2002), PSB e PPS


apresentaram estruturas diversificadas em São Paulo (Gráficos 7 e 8). Ambos seguiram
com aumento nas comissões provisórias, ao passo que os diretórios foram se reduzindo –
no caso do PSB, as comissões também se reduzem em 2015. Para o PPS, nota-se que os
Diretórios predominaram até 2008, quando o partido passou a substituí-los por Comissões
Provisórias.

Gráfico 7 - Diretórios e Comissões Provisórias do PPS em São Paulo


(2000-2015)
800
600
400
200
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
INTERV 1 2 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0
CP 113 152 154 350 221 210 212 253 302 320 349 396 445 453
DIR 372 378 417 268 393 375 372 335 192 215 225 198 110 94
Fontes: TSE e TRE-SP.

Gráfico 8 - Diretórios e Comissões Provisórias do PSB em São Paulo


(1999-2015)
800
600
400
200
0
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
CP 79 95 194 73 279 230 228 245 365 288 304 343 370 554 345
DIR 145 181 194 154 172 194 208 199 107 132 131 146 119 16 13
Fontes: TSE e TRE-SP.

Para o PSB, a direção foi a mesma, com as comissões se espalhando pelo estado,
sobretudo no litoral santista – região onde há presença de figuras políticas importantes
como Márcio França, atual vice-governador do estado e presidente da sessão paulista do
PSB. O “pico” no número de diretórios se deu em 2005, quando o partido registrou 208
órgãos. Entretanto, em 2015 a queda se tornou evidente, quando o PSB passou a contar
com apenas 13 diretórios. Isso pode estar relacionado à guinada do partido ao centro, que
vem ocorrendo desde a quebra da aliança com o PT, nas eleições de 2012. Com a morte

897
de Eduardo Campos, o partido passou a se coligar, com maior frequência, com partidos
do centro e da centro-direita. Esta mudança se mostrou bem-sucedida em São Paulo,
fazendo com que o partido alcançasse um novo status no cenário político-partidário.

PSDB E PT

Juntamente ao PMDB, PT e PSDB são os partidos mais bem estruturados no


estado, no que se refere à proporção de Diretórios (Gráficos 9 e 10). Em São Paulo,
especificamente, o PSDB inverte os dados de Guarnieri (2011) e Ribeiro (2013), que o
indicam como uma agremiação que apresenta um índice considerável de Comissões
Provisórias, a nível nacional. Para o PT, os dados para São Paulo corroboram com o
quadro nacional apresentado pelos autores. PSDB e PT são os únicos partidos que
registraram queda no número de comissões ao longo do tempo e aumento nos Diretórios
até 2012, o que aponta para uma estratégia organizacional inversa aos demais partidos no
estado. Ainda que, em 2015, as Comissões voltem a crescer em detrimento dos Diretórios,
ambos os partidos continuam a ser os únicos casos – junto ao PMDB – de agremiações
com presenças mais consistentes de Diretórios.
Desde 2000, ambos vem aumentando a penetração territorial nos municípios
estado, chegando em 2012 a 100%, para o PSDB, e 99,4%, para o PT. A extensa e forte
matriz organizativa do PT no estado de São Paulo vem se consolidando desde os anos 1980
(KINZO, 1993) e já havia sido evidenciada através de dados sobre organização levantados
por Braga (2008). Para o PSDB, esse quadro também se deve em grande medida a sua
origem, projeto capitaneado por importantes lideranças paulistas nos anos 1980 (ROMA,
2002).

Gráfico 9 - Diretórios, Comissões Interventoras e Provisórias do PSDB


em São Paulo (2000-2015)
800
600
400
200
0
2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
INTERV 2 2 0 0 20 14 7 16 0 0 0 0 0 0
CP 27 79 56 108 72 71 89 133 121 126 148 88 76 162
DIR 376 442 482 344 552 518 522 506 516 516 447 555 569 480
Fontes: TSE e TRE-SP.

898
Outro fator que atua sobre esta maior inserção peessedebista é o fato de o partido
governar o estado há duas décadas. A ocupação de espaços de poder e cargos, bem como
o uso de outros recursos de autoridade formal – todos viabilizados pelas sucessivas vitórias
eleitorais conquistadas – fortaleceram a sua organização (KERBAUY; ASSUMPÇÃO,
2012). Braga (2008) mostra que, desde os anos 1990, o partido vem crescendo, tanto em
termos de órgãos quanto de filiados. A autora aponta também para uma particularidade
organizacional dos peessedebistas: a existência de uma estrutura montada em
macrorregiões472. Trata-se de um mecanismo que garante aos seus líderes o controle e
direcionamento das ações do partido quanto à seleção de candidatos aos Legislativos e às
disputadas intrapartidárias.
Por fim, as eleições municipais também atuam no sentido de recrudescimento da
sigla, pois se trata de contextos onde o PSDB tem forte presença (BRAGA; SPECK, 2014).
As regiões em que o partido mais cresceu nos últimos anos, em número de diretórios,
foram Campinas e São José do Rio Preto, as mesmas que registraram decréscimos
significativos nas comissões, assim como Araçatuba. Uma particularidade do PSDB, em
relação ao PT, foi a adoção de Comissões Interventoras em alguns municípios, entre 2000
e 2007.

Gráfico 10 - Diretórios e Comissões Provisórias do PT no estado de São


Paulo (1999-2015)
800
600
400
200
0
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
CP 117 141 180 197 314 323 322 235 224 155 161 154 172 88 162
DIR 245 263 261 339 306 301 302 388 402 440 452 470 468 554 404
Fontes: TSE e TRE-SP.

Seguindo a tendência do PSDB, as comissões provisórias deram lugar aos diretórios


no PT nos últimos anos, principalmente nas regiões de Campinas e Araçatuba. Para além
dessas duas regiões, uma observação mais geral é a de que os diretórios cresceram em todo
o estado. Isso se deu inclusive em regiões que não registraram nenhuma comissão

472
Disponível em < http://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado>. Acesso em 07 de jul de 2016.

899
provisória no período – Registro, Central e Santos, localidades em que o partido conseguiu
se estabelecer com diretórios em todos os municípios (2012). Este crescimento dos
Diretórios se deu no interior, indicando que a força organizativa do partido não está
atrelada apenas às regiões mais populosas e urbanizadas.

UMA ANÁLISE GERAL DOS ÓRGÃOS PARTIDÁRIOS NO ESTADO DE SÃO


PAULO (1999-2015)

Observou-se um aumento contínuo da presença dos partidos no estado, revertido


em 2015 (Gráfico 11). De todo modo, a tendência observada desde 2000 se mantém: o
número de Diretórios vem diminuindo e as Comissões permanecem preponderantes.
Uma explicação para isso é que “a dissolução de diretórios e executivas pelos órgãos
hierarquicamente superiores se tornou uma prática extensamente utilizada pelas cúpulas
dos principais partidos, que substituem as instâncias por comissões provisórias locais ou
estaduais compostas exclusivamente por membros indicados a partir de cima” (RIBEIRO,
2013, p. 252).
Nesse sentido, e acompanhando a tendência verificada pelo autor, a expansão das
comissões, provisórias e interventoras, indica uma estratégia alternativa de estruturação dos
partidos. As lideranças têm priorizado a formação de canais de intervenção mais diretos
entre as instâncias superiores e os órgãos locais, como uma maneira de atuar com maior
presença nos processos decisórios internos. Ou seja, os partidos a nível local têm grande
importância, na medida em que há investimento em suas expansões pelos seus respectivos
líderes, seja por conta de estratégias intrapartidárias ou visando à competição eleitoral.
Os únicos partidos que conseguiram preservar a preponderância dos diretórios em
suas estruturas foram PT e PSDB. PT, PSDB, DEM e PMDB apresentam elevados índices
de representatividade, o que é um indicativo de suas forças organizacionais em municípios
paulistas. Ainda que a estratégia de organização de alguns deles tenha se alterado ao longo
do tempo, com a diminuição dos diretórios vis-à-vis o aumento das comissões - casos do
PTB e PMDB - pode-se dizer que se tratam das agremiações mais presentes no estado.
Todos os demais partidos obtiveram aumento nas suas inserções organizativas no estado.
Contudo, a presença dessas agremiações é bem menor, se comparada ao grupo dos outros
quatro partidos.

900
Gráfico 11 - Total de Diretórios e Comissões Provisórias no Estado de São
Paulo (1999-2015) - números absolutos
5000
4000
3000
2000
1000
0
1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2015
DIR 883 2147 2488 2779 1805 1984 1757 1975 1793 2623 2857 2724 2088 1869 1551
CP 564 1599 2142 2188 3409 3206 3151 2331 2631 2340 2540 2953 3840 4060 3455
Fontes: TSE e TRE-SP.

A FILIAÇÃO PARTIDÁRIA EM SÃO PAULO (2002-2012)

Outra variável que contribui para o entendimento acerca da organização dos


partidos é a filiação. Katz e Mair (1993) trataram a questão dos filiados enquanto uma das
faces de uma agremiação (party on the ground), responsável pelos trabalhos de base de
seus membros. Esta face partidária faz a conexão da agremiação com a sociedade civil. No
Brasil, o estudo sobre as filiações partidárias tem recebido pouca atenção. Speck (2013)
identifica dois motivos principais para isso. Por um lado, a desconfiança quanto à validade
e veracidade dos dados; por outro, as dúvidas quanto à relevância de suas informações. De
acordo com o autor,

A validade dos dados é questionada porque os registros dos partidos


incluiriam pessoas que já faleceram ou mudaram de domicilio. Há
também dúvidas quanto às filiações. Muitas novas filiações se dariam à
revelia dos próprios filiados, fazendo uso falso de documentos como
identidade e título eleitoral de cidadãos. Os dados estariam atrasados,
inflados e, no limite, falsificados. A dúvida quanto à relevância da filiação
se refere ao significado da filiação para os filiados, os partidos e o seu
impacto sobre o processo político. Com exceção de alguns partidos (neste
contexto referências ao PT são frequentes) os filiados não entrariam por
afinidade programática com as propostas das legendas, não pagariam
anuidades e não participariam da vida partidária. A filiação seria uma mera
formalidade, desprovida de significado ou consequências mais profundas
(SPECK, 2013, p. 38).

Não ignorando estas questões, consideramos que é importante analisarmos estes


dados, por dois motivos. Primeiramente, é uma forma de contribuir para o debate acerca
dos significados da filiação partidária no Brasil e das relações entre sociedade civil e as
esferas representativas. Além disso, dados sobre filiação são mais um indicador para

901
pensarmos a estruturação dos partidos em nível local. Assim, um primeiro panorama das
bases de filiados em São Paulo ao longo do tempo é apresentado na Tabela 2.

TABELA 2 – NÚMERO DE MEMBROS FILIADOS NO ESTADO DE SÃO


PAULO (2002 – 2012)

DEM PDT PMDB PP PPS PR PSB PSDB PT PTB


2002 115.619 125.440 574.210 252.396 62.461 113.079 71.152 216.035 202.401 251.415
2004 129.279 134.247 515.677 230.781 79.251 149.363 76.705 230.605 241.367 256.364
2006 126.033 130.154 490.593 217.276 79.724 135.610 72.183 229.794 274.842 251.415
2008 98.770 134.809 467.310 213.634 81.507 143.559 88.244 255.247 284.206 277.714
2010 126.885 149.986 517.417 226.962 87.850 144.089 102.270 280.742 350.826 318.258
2012 126.300 155.885 524.073 230.421 92.669 147.788 111.256 276.987 378.186 324.001
Fonte: TSE.

É notória a perda de filiados no PMDB, que entre 2002 e 2008 diminui em mais
de 100 mil o número de membros. De acordo com Braga (2008), este enxugamento do
quadro é acompanhado de uma tendência de queda na participação interna, deixando para
trás o legado de intensa atividade partidária que marcou a sessão paulista da agremiação até
fins dos anos 1980 (SADEK, 1989; BIZZARRO NETO, 2013). PT e PSDB são os
partidos que mais cresceram, reforçando o peso e a presença que ambos possuem no
estado e a capacidade de articulação das bases, sobretudo em eleições. No que concerne à
seleção de candidatos, Braga, Veiga e Miríade (2009) destacam os dois partidos como mais
abertos à participação dos filiados nas convenções – no caso do PT, com valorização mais
ampla da democracia interna.
Destaca-se, também, o crescimento do PTB, que à exceção de 2006, aumentou
constantemente seu contingente de membros. Além de retomar a expansão via Diretórios,
invertendo a pulverização de comissões que predominou em 2011, o partido vem atuando
também na frente de filiados, o que corrobora para o argumento acerca da ampliação de
seu desenvolvimento interno no estado. Por fim, o DEM foi o partido que mais oscilou;
ainda assim, chega ao final da série histórica com saldo positivo no número de filiações.
Já o partido que mais perdeu membros foi o PP, refletindo o desgaste sofrido pelo
partido ao longo do tempo, somado à perda de força eleitoral de seu principal dirigente,
Paulo Maluf. Além disso, o dado corrobora com a tendência à baixa participação popular
dentro do partido, apontada por Braga, Veiga e Miríade (2009) e Guarnieri (2011) como
fruto do total controle da seleção de candidatos e do acesso à lista partidária pelos líderes
pepistas. Outro dado que chama a atenção é o crescimento do PR, em contraposição ao

902
enfraquecimento que a agremiação tem sofrido em termos de órgãos partidários
registrados. Dinâmicas distintas de estruturação parecem atuar sobre o partido, com
enxugamento de suas estruturas formais, por um lado, e aumento nas suas bases de filiados,
por outro. PPS e PSB registraram uma adição importante de membros nos anos 2000 – o
que indica estratégias alinhadas de desenvolvimento organizacional de ambos em São
Paulo, tanto pela linha das estruturas formais quanto pela base de filiados.
A seguir, distribuímos os filiados pelas regiões administrativas, de modo a identificar
em quais localidades as agremiações concentram sua militância e se organizam com mais
robustez. Traçamos uma linha evolutiva de 2002 a 2012, apresentando os dados do início
e do fim da série histórica, visto que não foram observadas grandes oscilações nos dados
ao longo dos pleitos de 2004 a 2010 (Tabelas 3 e 4). Destacamos as regiões que
apresentaram taxas de filiação superiores a 5%, dentre o total dos eleitores.
As regiões de São Paulo e Campinas são as que mais concentram filiados, de todos
os dez partidos estudados. Juntas, as duas somam mais de 50% do contingente de filiados,
em média. Isso se deve, em grande medida, ao fato de que são as regiões mais populosas
e urbanizadas do estado, ou seja, são os locais onde os partidos encontram mais recursos
e condições de se desenvolverem organizacionalmente. O caso mais emblemático é o PT,
cuja porcentagem de filiados registrada na região de São Paulo cresceu durante todo o
período; somada à porcentagem de filiados em Campinas, o partido chega a 2012
registrando mais de 70% de seus membros nas duas regiões. Assim, o perfil urbano e
industrial do partido, conectado a movimentos e sindicatos, como já apontado pela
literatura (Meneguello, 1989), é corroborado pelos dados abaixo.

TABELA 3 – DISTRIBUIÇÃO DOS FILIADOS PELAS REGIÕES


ADMINISTRATIVAS (2002)

Região Administrativa Total_Fil (% ) DEM (% ) PDT (% ) PMDB (% ) PP (% ) PPS (% ) PR (% ) PSB (% ) PSDB (% ) PT (% ) PTB (% )
Registro 0,93 1,99 0,82 0,71 1,05 1,14 0,95 1,03 1,07 0,62 0,88
Santos 4,61 5,29 5,66 3,66 3,61 4,23 3,75 10,33 7,41 4,45 3,51
São José dos Campos 6,69 5,48 7,32 6,84 7,96 5,54 7,09 8,27 7,19 5,74 5,35
Sorocaba 6,71 11,08 6,82 6,14 6,38 8,03 6,41 4,62 8,21 4,32 7,33
Campinas 13,48 17,52 14,24 14,19 10,50 16,67 15,58 12,27 12,04 12,20 13,54
Ribeirão Preto 3,07 4,25 2,23 3,06 2,52 4,92 3,17 2,68 3,03 3,42 2,90
Bauru 3,15 4,29 3,79 2,72 4,37 2,57 2,66 2,49 3,74 1,95 3,06
São José do Rio Preto 5,29 6,68 4,56 5,51 5,69 6,95 5,05 4,42 5,58 3,08 5,62
Araçatuba 3,44 4,81 3,23 3,73 4,43 3,81 2,72 1,30 3,42 1,94 3,30
Presidente Prudente 3,06 4,68 2,65 2,77 3,46 2,94 2,68 1,52 3,96 1,92 3,56
Marília 2,92 4,80 3,05 2,44 3,71 2,19 2,75 1,51 3,47 1,53 3,62
Central 2,58 4,15 2,54 2,01 3,13 4,56 2,52 1,97 2,36 2,23 2,83
Barretos 1,90 1,55 2,15 2,61 2,01 1,72 1,51 0,96 1,60 0,86 1,80
Franca 2,13 2,98 1,45 2,53 2,74 2,75 1,51 1,16 1,64 1,65 1,79
São Paulo 40,01 20,46 39,47 41,09 38,45 32,00 41,65 45,44 35,29 54,09 40,91
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100

903
TABELA 4 – DISTRIBUIÇÃO DOS FILIADOS PELAS REGIÕES
ADMINISTRATIVAS (2012)

Região Administrativa Total_Fil (% ) DEM (% ) PDT (% ) PMDB (% ) PP (% ) PPS (% ) PR (% ) PSB (% ) PSDB (% ) PT (% ) PTB (% )
Registro 0,85 1,00 0,97 0,77 0,75 0,91 1,23 1,64 0,95 0,61 0,67
Santos 5,11 5,56 4,88 3,42 3,88 6,18 5,07 10,24 8,30 3,88 5,32
São José dos Campos 6,36 7,26 6,37 7,22 7,99 6,23 6,80 6,61 7,52 3,93 5,07
Sorocaba 6,49 8,77 6,99 6,53 6,15 8,03 7,70 4,31 8,98 3,80 6,34
Campinas 13,02 17,90 15,12 12,08 11,82 16,40 15,39 15,88 13,16 9,81 13,13
Ribeirão Preto 3,01 5,46 2,29 3,28 2,41 4,71 3,03 2,34 3,22 2,57 2,47
Bauru 2,97 4,63 3,29 2,35 4,80 2,99 2,71 2,17 3,78 1,74 2,99
São José do Rio Preto 5,30 7,17 5,32 5,99 6,16 6,89 5,22 4,76 5,63 3,13 4,86
Araçatuba 2,70 4,18 2,48 3,00 3,33 3,11 2,96 1,62 2,84 1,46 2,79
Presidente Prudente 2,92 3,46 2,74 2,70 3,20 3,48 3,11 2,57 4,26 1,78 2,99
Marília 3,07 6,80 2,89 2,61 3,82 2,46 2,88 2,34 3,95 1,64 3,32
Central 2,78 4,21 2,34 2,51 3,65 4,51 2,46 2,02 2,59 2,43 2,72
Barretos 1,68 1,94 1,89 2,46 1,90 1,58 1,29 1,28 1,63 0,68 1,60
Franca 2,09 3,57 1,48 2,54 2,37 3,12 1,49 1,92 2,32 1,25 1,66
São Paulo 41,64 18,09 40,95 42,54 37,77 29,42 38,68 40,30 30,86 61,27 44,06
Total 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100 100
Fontes das Tabelas 3 e 4: Elaboração própria a partir de dados do TSE e do IBGE.

Outras regiões que se destacam são Sorocaba, São José do Rio Preto e São José
dos Campos, para praticamente todos os partidos. A exceção é Santos, que no comparativo
com as demais regiões acima mencionadas, se destaca em relação aos filiados do PSB e
PSDB. Ao longo dos dez anos analisados, as alterações nas distribuições dos filiados pelas
regiões administrativas foram quase nulas, indicando uma grande estabilidade no
recrutamento de bases e na dinâmica dos partidos em termos de membros e militância.
Por fim, nota-se que a distribuição dos filiados pelo território estadual é bastante desigual,
assim como no quadro nacional (BRAGA; PIMENTEL JR., 2013).
Os resultados gerais do estudo das filiações partidárias demonstraram que há
grande estabilidade na distribuição dos membros pelas regiões do estado de São Paulo, na
última década. É um indicativo de que os padrões de recrutamento não têm sofrido muitas
alterações ao longo do tempo. Por outro lado, é notório o crescimento no contingente de
filiados na maioria dos partidos – à exceção de PP e PMDB.
Mair e Van Biezen (2001), levando em consideração o fato de que as mudanças
sociais alteraram as relações existentes entre partidos e seus membros, constatam que a
conexão entre ambos diminuiu. Nossos dados sugerem um aumento no quantitativo das
bases, mas não mostram se isso foi capaz de gerar um ganho qualitativo. Speck, Braga e
Costa (2015) procuraram preencher esta lacuna, analisando os graus de identificação e
proximidade do eleitorado com os partidos, através de surveys. Os autores encontraram
que, de modo geral, a probabilidade de filiação e de engajamento nas mais diferentes
formas de ativismo político.

904
Assim como Scarrow (1996), acreditamos que as bases de filiados não estão fadadas
ao término. A autora enfoca no trabalho estratégico dos líderes partidários, que promovem
mudanças organizativas levando em consideração os filiados e seus papeis desempenhados,
e o contexto da política local. Os dados aqui apresentados apontam para esta relação entre
mudanças na organização e número de filiados, na medida em que há diferenças
importantes não apenas entre os partidos, mas dentro de cada um deles ao longo dos anos.
Meneguello, Amaral e Bizzarro Neto (2014) argumentam que as atividades
partidárias ocorrem em momentos para além do eleitoral. Com a dinâmica de crescimento
do filiados em quase todos os partidos, pode-se apontar no sentido de que, de fato, há
mobilização das bases. Já Speck (2013) indica que o recrutamento de filiados se dá em
momentos específicos e, sobretudo, nas eleições. Há, portanto, importantes lacunas a
serem preenchidas nos estudos sobre filiação partidária, principalmente no que diz respeito
às atividades desenvolvidas no interior das agremiações e o peso que elas possuem (ou não)
nas tomadas de decisão internas.

CONCLUSÕES GERAIS

Cinco partidos se destacam no estado, em termos organizacionais: DEM, com


comissões em quase todos os municípios; PTB, cuja mudança recente é a recuperação dos
diretórios destituídos em 2011; PMDB, que tem reduzido seus diretórios ao longo dos
anos e ampliado o papel das comissões; PT e PSDB, os únicos casos em que se registra
uma expansão dos diretórios em detrimento das comissões. Estes três últimos partidos são
os mesmos que, a nível nacional, se estruturam de maneira mais ampliada (BRAGA;
PIMENTEL JR., 2013). O PSDB, a nível local, ganha representação maior em Diretório,
o que está associado à forte presença e sucesso do partido nas eleições paulistas, bem como
ao controle do governo do estado há duas décadas (KERBAUY; ASSUMPÇÃO, 2012).
Cinco partidos registram menos órgãos no estado: PP, que vem diminuindo a cada
ano os seus diretórios e ampliando as comissões; PDT, ainda que venha crescendo e
mantendo relativamente estável o número de seus diretórios; PR, com registro exclusivo
de comissões e com o menor número dentre todos os partidos estudados; PPS e PSB, que
têm crescido sob a forma de comissões. À exceção do PP, que detém historicamente
grande presença no estado, os outros quatro partidos sempre tiveram dificuldades em se
estabelecer no estado, e vêm adotando diferentes modelos de organização como forma de
se assentarem localmente.

905
Entre 1999 e 2012, registrou-se crescimento no número de órgãos partidários no
estado. Todavia, deve-se ponderar sobre qual modelo de estruturação tem sido adotado –
ou seja, o predomínio das Comissões Provisórias. Este achado reforça o argumento de que
as estruturas formais dos partidos são importantes para os seus funcionamentos e atuações
a nível local. PT e PSDB apresentaram crescimento organizacional tanto com os órgãos
partidários quanto com os filiados, evidenciando a forte capacidade de se projetarem
dentro da política paulista. PSB e PPS também registraram aumento em ambas as variáveis,
com expansão maior das comissões provisórias, sinalizando outro tipo de estratégia - mais
centralizadora e monocrática. PP e PMDB são os únicos casos em que perderam membros
de 2002 para 2012. O mesmo vale para os órgãos partidários, visto que ambos diminuíram
a quantidade de diretórios, ainda que mantenham um elevado número de comissões.
Partidos que durante os anos 1980 e 1990 possuíam grande força política no estado, PP e
PMDB chegam à última década com novas estratégias em suas estruturas organizacionais.
Os dados demonstram que os partidos têm ampliado suas representações no estado
de modos distintos entre si. São Paulo é um locus importante para a atuação das
agremiações e o desenvolvimento de suas dinâmicas. Prova disso são as constantes
modificações a que são submetidos os órgãos partidários localmente, levando a casos como
o do PTB em 2011, ou a arranjos direcionados unilateralmente – como o DEM e o PR,
assentados exclusivamente sob Comissões Provisórias. Assim, os partidos em nível local se
tornam estruturas centrais para as estratégias de suas lideranças. De forma ampliada,
Epstein (1993) aponta para a existência de incentivos fortes (strong incentives) entre as
lideranças partidárias, algo que não se encontraria nos demais membros da agremiação. O
que os dados aqui indicam é a conformação desses incentivos e, consequentemente, a
formação de estratégias também para o nível local. Sobre os filiados, Scarrow (1996) chama
atenção para a relação entre tais estratégias e a articulação das bases. Contudo, acreditamos
que este argumento é válido também para o arranjo dos órgãos partidários. Dissolver um
tipo de órgão e ampliar o outro, mobilizar filiados e expandir suas organizações são ações
com vistas a dinamizar suas estruturas internas, considerando tanto suas variáveis
endógenas quanto exógenas.
A partir da articulação desses dois eixos, os partidos se transformam e se adaptam
aos contextos políticos. Essa postura busca não apenas a sobrevivência política das
agremiações, mas também a estabilidade organizativa. Para Panebianco (2005, p. 65), a
mudança organizativa é importante para que as elites partidárias controlem as chamadas
“zonas de incerteza” (âmbitos de imprevisibilidade organizativa) e façam valer seus

906
interesses. Nesse sentido, os órgãos locais são mecanismos importantes para as estratégias
das lideranças políticas, permitindo que atuem sobre os processos decisórios locais.
Para além da dimensão estratégica, a perspectiva de Panebianco (2005) sugere outra
explicação possível para as mudanças organizacionais dos partidos em São Paulo. Um dos
dilemas organizativos (conflitos internos e externos) pelos quais as agremiações passam é o
da adaptação ao ambiente versus o predomínio sobre ele. Ou seja, as organizações teriam
uma tendência a se adaptar passivamente ao ambiente em que se inserem, ou a dominá-
los e, então, transformá-los. Indo além da dicotomia, o autor sugere que essas organizações
podem alternar momentos de adaptação e de dominação dos ambientes, a depender dos
contextos. Então, ao instituírem Comissão ou Diretório, as lideranças levam em conta as
dinâmicas internas do partido e também outras arenas em que ele se insere. Afinal, os
partidos atuam em diferentes frentes, evidenciando faces com objetivos também diferentes
(KATZ; MAIR, 1993).
Mais do que entrar em uma discussão conceitual sobre os quão “fortes” ou “fracos”
esses partidos são, o exercício feito foi compreender o papel das estruturas locais, dentro
do contexto paulista. Esta “proatividade partidária” em São Paulo demonstra que os
partidos conseguiram reagir ao ambiente volátil e competitivo do estado
(MENEGUELLO; BIZZARRO NETO, 2012), tornando-se mais dinâmicos e adotando
mecanismos de sobrevivência diversos, dentro do sistema político e dos arranjos
institucionais possíveis.

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909
A PRÁTICA ESCAPA À REGRA: UM ESTUDO SOBRE
MEDIAÇÕES, TRAJETÓRIAS E POLÍTICAS NO COTIDIANO

Alexandre Aparecido dos SANTOS473

Resumo: Neste trabalho apresentamos a proposta de construção de uma análise de cunho


antropológico sobre as relações entre os campos da mídia e da política, a partir de uma etnografia
das práticas discursivas dos agentes que, enquanto eleitores e consumidores dos bens simbólicos
produzidos pelos dispositivos do campo midiático nacional, conferem materialidade a estas
relações. Esta proposta se justifica pelo grande número de trabalhos que, ao refletirem sobre a
relação entre mídia e política, encaram os possíveis efeitos dos discursos midiáticos sobre os agentes
políticos de uma maneira uniforme, deixando assim de olhar para o ponto aqui proposto: o
discurso político do eleitor. Por isso, nosso objetivo central será o de identificar quais disposições
estão presentes neste discurso, em um movimento que visa entender se, as práticas políticas de
eleitores que não dominam as regras de funcionamento do campo político nacional escapariam ou
não às agendas políticas apresentadas pelos dispositivos do campo midiático. Neste sentido
propomos realizar, a partir de um olhar relacional sobre as homologias contemporaneas entre
poder e discurso, orientado repectivamente pelos pensamentos de Pierre Bourdieu e Michel
Foucault, uma etnografia junto ao eleitorado do município de Américo Brasiliense – cidade
perpassada por três importantes centros econômicos e políticos do interior paulista: Araraquara,
São Carlos e Ribeirão Preto – em uma perspectiva analítica que, partindo das práticas políticas
cotidianas e considerando as mediações entre os conteúdos midiáticos e as trajetórias de seus
agentes consumidores, espera encontrar um caminho possivel para entender a agência dos eleitores
brasileiros, diante das relações estabelecidas entre o campo da mídia e o da política no país.

Palavras-chave: Antropologia política. Economia simbólica. Mediações culturais. Trajetórias.

INTRODUÇÃO

Esta proposta de pesquisa surge como desdobramento dos estudos que


desenvolvemos sobre as homologias existentes entre o campo político e o campo midiático
no país, primeiramente com o trabalho de conclusão de curso intitulado Discurso e poder
na contemporaneidade: o mercado simbólico da informação e a eleição de 2010, e depois
com a pesquisa de mestrado intitulada A produção de informação como uma questão de
poder na disputa eleitoral de 2010. 474

No trabalho de monografia, analisamos a produção discursiva da revista Veja –


maior semanário nacional em circulação no ano estudado – sobre a eleição de 2010. Como
um dos resultados, encontramos a possibilidade de questionar sobre como e em que

473
Tendo em vista que estudei, trabalhei e resido neste municio.
Por doxa entendemos: “[...] aquilo sobre o que todos os agentes estão de acordo. Bourdieu adota o conceito
474

tanto na forma platônica — o oposto ao cientificamente estabelecido —, como na forma de Husserl (1950) de
crença (que inclui a suposição, a conjectura e a certeza). A doxa contempla tudo aquilo que é admitido como
“sendo assim mesmo”: os sistemas de classificação, o que é interessante ou não, o que é demandado ou não”
(BOURDIEU, 1984, p. 82) (THIRY-CHERQUES,910 2006, p. 37).
medida os regimes de verdade vinculados pela revista evidenciariam uma tentativa de
construção de sentido dentro da disputa eleitoral. Em razão deste questionamento, nossa
pesquisa de mestrado teve como um de seus objetivos a busca por entender a amplitude e
os limites da atuação dos dispositivos (AGAMBEN, 2005) midiáticos junto à estruturação
do cenário político do país.
Em nossa dissertação, apoiados pela teoria dos campos sociais proposta por
Bourdieu (2002) e por uma perspectiva de análise do discurso construída por Michel
Foucault, tendo em vista a ênfase no tratamento que o pensador francês deu para as
potencialidades e particularidades do discurso (GREGOLIN, 2008), analisamos a
produção discursiva de dois dispositivos do campo midiático nacional, as revistas Veja e
Carta Capital, na tentativa de compreender a dinâmica própria ao campo midiático
nacional e como e em que medida essa dinâmica, via circulação de informações sobre
partidos e candidatos, estabeleceria ou não, efeitos de poder sobre a formação de uma
possível opinião pública durante um processo de disputa eleitoral, tendo em vista que:

O surgimento e desenvolvimento de uma nova modalidade de


comunicação, aqui nomeada de midiática, e a conformação de uma
sociabilidade estruturada e ambientada pela mídia recolocam em intensa
evidência a temática do relacionamento entre política e comunicação, e,
em especial, da interação entre mídia e eleições, pois eles resignificam
em profundidade os termos envolvidos na relação, alterando de modo
significativo as configurações dos processos eleitorais (RUBIM, 2001, p.
169).

E como um dos resultados deste segundo momento de estudos, podemos apontar


a importância de se buscar compreender, na esfera do cotidiano, a efetividade dos efeitos
de poder gerados pelo mercado simbólico da informação (SANTOS, 2015b), expressão
com a qual buscamos denominar, a partir da produção e da veiculação de regimes de
verdades pelos dispositivos midiáticos e da relação de reciprocidade existente entre estes e
seus consumidores, as relações estabelecidas entre o campo midiático nacional e os demais
campos sociais, mais especificamente, o campo político.
Este resultado em especifico nos remeteu a alguns questionamentos sobre as
relações entre o campo da mídia e o da política a partir da produção e circulação de
informações, principalmente quando pensamos sobre o papel destas informações em
relação aos agentes que as legitimam, uma vez que estes agentes em sua maioria não
conhecem as regras de funcionamento do campo político nacional, mas são eleitores
dentro de um processo que é responsável por organizar este mesmo campo.

911
Esta inquietação, advinda dos resultados da dissertação, nos remete a uma questão
que diz respeito à eficácia simbólica (BOURDIEU, 2002) das informações produzidas e
veiculadas pela mídia sobre a prática dos agentes que as legitimam. Dessa maneira quando
pensamos a relação entre mídia e política no país, podemos questionar até que ponto os
efeitos de poder provenientes dos discursos midiáticos se concretizam nos discursos
políticos de seus consumidores, mais precisamente, dos agentes que em relação ao campo
político nacional atuam apenas como eleitores.
O questionamento acima apresentado se faz possível na medida em que, em nossos
estudos, a relação entre os campos da política e o da mídia é entendida como parte de um
sistema de economia simbólica (BOURDIEU, 2001), condição essa que coloca o agente
consumidor em um papel crucial junto aos processos de legitimação e de deslegitimação
dos bens que circulam neste sistema, na medida em que este agente seria o responsável
por conferir materialidade às trocas que configuram e estruturam essa economia.
Dentro deste novo questionamento, a prática discursiva deste agente consumidor
dos discursos midiáticos sobre as dinâmicas e questões do campo político, ganha grande
importância enquanto objetivação de uma prática política cotidiana, quando ao tentar
construir um melhor entendimento acerca das relações entre o campo da mídia e o da
política contemporaneamente assumimos ser:

Preciso desviar-se de ‘a política’, para distinguir uma forma rara, um


bibelô político de época cujos arabescos inesperados constituem a chave
do enigma. Dito de outra maneira é preciso desviar os olhos dos objetos
naturais, para perceber uma certa prática, muito bem datada, que os
objetivou sob um aspecto datado como ela, pois é por isso que existe o
que chamei acima, usando uma expressão popular, de ‘parte oculta do
iceberg’ por que esquecemos a prática para não mais ver senão os objetos
que a reificam a nossos olhos (VEYNE, 1982, p. 154).

Diante disso, esta proposta de pesquisa tem como pretensão contribuir para as
reflexões sobre as relações entre mídia e política no país, propondo olhar para esta relação
a partir de um novo ponto: os discursos políticos do cotidiano. Discursos estes que serão
entendidos como uma prática política que é construída cotidianamente sem se levar em
conta as regras legitimadas pelo campo político nacional.
A ideia de pensar a relação entre estes campos a partir das práticas dos agentes
consumidores dos bens provenientes do mercado simbólico da informação ganha
importância quando entendemos que:

912
O campo político é o lugar em que se geram, na concorrência entre os
agentes que nele se acham envolvidos, produtos políticos, problemas,
programas, análises, comentários, conceitos. Acontecimentos entre os
quais os cidadãos comuns, reduzidos ao estatuto de “consumidores”,
devem escolher, com possibilidades de mal-entendido tanto maiores
quanto mais afastados estão do lugar da produção (BOURDIEU, 2002,
p. 164).

Em nossos estudos anteriores (SANTOS, 2016, 2015a, 2015b, 2014) sobre as


relações entre mídia e política, nos deparamos com uma escassez de estudos cujo objetivo
seria o de compreender o fazer político de agentes que não dominam as regras de
funcionamento destes campos, mas que, enquanto consumidores dos bens provenientes
do mercado simbólico da informação e eleitores, dotam de sentido a relação entre os
mesmos.
Para elucidar melhor a ideia de que agentes que não dominam as regras legitimadas
pelos campos da política e da mídia não fazem parte das preocupações de grande parte dos
estudos sobre as relações entre o campo político e o campo midiático nacional, destacamos
junto à bibliografia consultada dois trabalhos de balanço teórico: O “estado da arte” dos
estudos sobre mídia e eleições presidenciais de 1989 a 2002, de Colling (2007) e Os meios
de comunicação e a prática política, de Miguel (2002).
Em seu estado da arte, Colling (2007) deixa claro que os trabalhos que buscaram
entender as relações entre mídia e política analisando um contexto de cinco pleitos
eleitorais, apresentam, em sua maioria, conclusões que:

Não são justificadas e/ou comprovadas empiricamente, mas funcionam


como um chavão interpretativo que reduz o fenômeno a uma simples
equação matemática. Com isso, as pesquisas perdem a possibilidade de
aprofundar a compreensão do fenômeno e a investigar outras questões
que ainda não foram respondidas, ou melhor, sequer formuladas. [..] Os
trabalhos com explicações simplificadoras, de um modo geral, são os
mesmos que abrigam conceitos generalizantes ou até equivocados.
Detectamos na pesquisa que este tipo de problema ficou mais evidente
no uso do conceito de espetáculo (amplo a ponto de tudo virar e ser
espetáculo) e na equivocada leitura sobre a “teoria” do agenda-setting
(explicada apenas através da hipótese de que a mídia agenda o receptor).
(COLLING, 2007, p 43).

Já no trabalho de Miguel (2002), segundo o qual os dispositivos midiáticos seriam


“agentes políticos plenos e, com a força de sua influência, reorganizaram todo o jogo
político” (MIGUEL, 2002, p. 180), encontramos um balanço sobre as possibilidades e os

913
limites das propostas de análises até então realizadas no que diz respeito às relações entre
os campos da política e da mídia no país. Nesse balanço, temos que um dos principais
limites destas propostas seria “julgar que os efeitos da mídia sobre os agentes políticos são
uniformes” (MIGUEL, 2002, p. 180).
Os apontamentos de Colling (2007) e Miguel (2002) destacam a relevância e a
justificativa de nossa proposta de pesquisa, uma vez que entendemos como uma
contribuição para possíveis avanços em relação aos limites teóricos por eles apresentados,
a ideia de incluir na análise da relação entre mídia e política um terceiro elemento: a prática
política cotidiana dos agentes consumidores dos bens veiculados pelo mercado simbólico
da informação.
Nossa justificativa melhor se fundamenta quando levamos em consideração os
apontamentos de Colling (2007), na medida em que, segundo o autor, os estudos nacionais
sobre mídia e política, quase sempre, apresentam “um mesmo discurso crítico, muitas
vezes simplista e redutor que, de um modo geral, poderia ser assim resumido: a mídia
despolitiza e espetaculariza as eleições, age sempre intencionalmente e manipula e agenda
o receptor” (COLLING, 2007, p. 43).
Nesse sentido, apresentamos como hipótese de trabalho, distanciando-nos de
propostas que encaram ou pensam a prática política cotidiana como o resultado de uma
manipulação ou um mero reflexo de agendas apresentadas em um processo de
espetacularização do político promovido pelos dispositivos midiáticos no país, a ideia de
que os discursos políticos do cotidiano expressariam uma agência (BOURDIEU, 2011),
pensada enquanto resultado de uma relação dialética entre a trajetória de cada agente e o
lugar social em que este se encontra.
Por isso nesta pesquisa buscar-se-á construir uma análise sobre as relações entre
mídia e política no país a partir de uma etnografia dos discursos políticos cotidianos
produzidos por agentes profanos (BOURDIEU, 2011b) em relação ao campo político
nacional, ou seja, agentes que não dominam as regras de funcionamento legitimadas por
este campo. Para tanto, temos claro que uma pesquisa etnográfica tem “como objetivo
central elaborar um modelo de compreensão de um objeto social qualquer (linguagem,
magia, política, etc.), o qual, mesmo produzido em e para um contexto particular, possa
funcionar como matriz de inteligibilidade em e para outros contextos” (GOLDMAN, 2006,
p. 28).
A centralidade da análise aqui proposta recairia, nesse sentido, sobre as práticas
políticas de agentes eleitores que seriam leigos em relação ao campo político nacional

914
(BOURDIEU, 2011b) e consumidores dos produtos simbólicos gerados pelo campo
midiático sobre este mesmo campo político. Fato pelo qual enfrentaremos, para construção
de nossa pesquisa, a necessidade teórica de:

Encarar as práticas nativas (discursivas ou não discursivas) sobre os


processos políticos dominantes como verdadeiras teorias politicas
produzidas por observadores suficientemente deslocados em relação ao
objeto para produzir visões realmente alternativas, e usar práticas e
teorias como guias para a análise antropológica. (GOLDMAN, 2006, p.
37).

Tendo em vista os objetivos apresentados e orientados por nossa hipótese de


trabalho, assumimos como pressuposto teórico-metodológico para a realização desta
pesquisa o que Arruti, Montero e Pompa (2012) apresentam como proposta para uma
antropologia do político. Segundo estes:

A noção ampliada de política utilizada pelos estudos do grupo


encabeçado por Moacir Palmeira nos ajuda a caminhar nessa direção.
Ao enfatizar menos o sistema político do que outros domínios da vida
social tais como a vida comunitária, a família, as redes sociais, as
identidades étnicas, etc. – ela nos ajuda a explicitar e delimitar melhor o
campo de observações que será objeto da antropologia do político que
aqui propomos, sem que seja preciso lançar mão da ideia de sistema.
Com efeito, tomado neste contexto de observação específico, a ênfase
nos atores nos permitirá uma abordagem antropológica que economiza
o esforço de procurar produzir grandes modelos teórico-estruturais
sobre nossos sistemas políticos ou sistemas normativos. A antropologia
do político que estamos propondo busca, ao contrário, construir uma
abordagem mais restrita que nos permita compreender, a partir da
interação dos agentes em suas redes familiares, sociais e institucionais, os
mecanismos de produção de consensos em torno dos modos de
representação e apresentação das diferenças (ARRUTI; MONTERO;
POMPA, 2012, p. 25).

Dentro desta perspectiva teórica podemos melhor fundamentar nossa proposta de


análise das práticas políticas cotidianas, uma vez que essa perspectiva teórica tem como
foco:

O modo como os agentes mediadores ritualizam e negociam as


categorias portadoras de identidades para a ação na esfera pública,
propondo, desta forma, uma articulação entre cultura e política. Por
meio do acompanhamento das trajetórias dos agentes a análise
antropológica deve ser capaz de percorrer as mutações nos processos de
significação e de legitimação que se realizam nas apropriações cada vez
mais generalizantes de sentido ao longo desse arco que vai do ator, mais

915
localizado, ao agente político com maior capacidade de representar
(ARRUTI; MONTERO; POMPA, 2012, p. 32).

A ideia de uma antropologia do político nos permite fundamentar teoricamente a


proposta de pensar as relações entre mídia e política a partir das práticas políticas dos
agentes consumidores dos bens simbólicos provenientes do mercado simbólico da
informação. Agentes estes que, enquanto integrantes de uma economia simbólica,
exerceriam uma agência (BOURDIEU, 2011) que pode ser pensada como um momento
particular de negociação simbólica, o que nos possibilitaria problematizar a existência de
uma mediação particular entre as esferas da produção das informações (os meios de
comunicação), da recepção e da prática (os agentes consumidores).
O que propomos é realizar uma etnografia que possibilite a construção de um
entendimento, dentre tantos outros possíveis, sobre práticas políticas cotidianas destes
agentes consumidores, a partir da análise de um sistema de disposições, dentro de uma
perspectiva teórica em que:

A palavra disposição parece particularmente apropriada para exprimir o


que recobre o conceito de habitus (definido como sistema de
disposições): com efeito, ele exprime, em primeiro lugar, o resultado de
uma ação organizadora, apresentando então um sentido próximo ao de
palavras tais como estrutura; designa, por outro lado, uma maneira de
ser, um estado habitual (em particular do corpo) e, em particular, uma
predisposição, uma tendência, uma propensão ou uma inclinação.
(BOURDIEU, 2013, p. 53).

E sendo nossa proposta fundamentada na ideia de uma antropologia do político tal


qual apresentada por Arruti, Montero e Pompa (2012), temos que metodologicamente a
mesma aponta:

Para uma análise interessada, de um lado, nas categorias nativas pensadas


como terminologias que expressam seus modos de percepção das regras
e das relações sociais; e, de outro, os princípios lógicos e práticos das
ações simbólico-rituais, responsáveis pelos agenciamentos das categorias
sociais de visão e divisão do mundo, que disputam o controle do modo
de perceber as distinções e relações de status e seus efeitos de poder. Em
ambos os casos, ao fazer das interações sociais e simbólicas o objeto de
observação empírica, essa antropologia enfatiza o agente, sem o qual
nossa teoria da mediação não seria possível (ARRUTI; MONTERO;
POMPA, 2012, p. 28).

916
No limite propomos operar uma mudança de olhar, na busca por melhor entender
as relações entre o campo da política e o campo da mídia em nossa contemporaneidade,
encarando as práticas políticas cotidianas como ponto de partida para esse entendimento,
e não como o ponto final da relação entre estes campos.
Este modo de olhar para as relações entre mídia e política se fundamenta na ideia
de uma economia simbólica tal qual pensada por Bourdieu (1996). Principalmente na
lógica da reciprocidade, a qual, segundo ele:

Quando esquecemos que quem dá e quem recebe estão preparados e


inclinados, por todo um trabalho de socialização, a entrar sem intenção
nem cálculo de lucro na troca generosa, cuja lógica se impõe a eles
objetivamente podemos concluir que a dádiva gratuita não existe, ou que
é impossível, já que só podemos imaginar os dois agentes como
calculistas, tendo como projeto subjetivo fazer o que fazem
objetivamente, de acordo com o modelo lévi-straussiano, isto é, uma
troca que obedece a lógica da reciprocidade (BOURDIEU, 1996, p.
161).

É valido lembrar que em uma economia simbólica possuir um bem não é suficiente
para se colocar dentro de um mercado; para isso se faz necessário possuir um bem legítimo,
ou seja, se faz necessário deter um bem simbólico que seja conhecido e reconhecido pelos
agentes localizados dentro desse mercado.
Esta condição da legitimação dos bens simbólicos nos remete para a questão da
mediação simbólica e, sobre esta questão, podemos dizer com Arruti, Montero e Pompa
(2012) que:

Diferentemente de um entendimento mais sociológico da ideia de


mediação, que sublinha a capacidade de certos agentes em intermediar
interesses dos grupos que representam junto ao estado, nosso uso do
conceito se move em direção à definição de um campo de relações
simultaneamente prático e discursivo no qual são propostas
comparações, traduções e a codificação de sistemas de diferenças, que
resultam em variadas modalidades de pertencimentos (ARRUTI;
MONTERO; POMPA, 2012, p. 27).

O OBJETIVO

De forma geral, em uma tentativa de melhor entender se as práticas políticas dos


agentes tidos por profanos em relação ao campo político nacional escapariam ou não às

917
agendas políticas apresentadas pelos dispositivos do campo midiático, nossa proposta é
construir um conhecimento relacional sobre as potencialidades e os limites dos efeitos de
poder estabelecidos pelos dispositivos midiáticos junto aos contextos políticos no país, a
partir da análise de algumas particularidades do que chamamos de práticas políticas
cotidianas.
Em síntese nosso objetivo principal seria entender até que ponto as práticas
discursivas sobre questões políticas produzidas no dia a dia por agentes leigos ao
funcionamento do campo político nacional escapariam ou não às demandas apresentadas
pelos dispositivos midiáticos. Por objetivos auxiliares temos: 1º). Identificar e analisar quais
as disposições, predisposições ou tendências estão presentes nas práticas políticas daqueles
agentes que não conhecem as regras próprias ao funcionamento e a reprodução do campo
político nacional. 2º). Entender os limites da eficácia simbólica (BOURDIEU, 2002) dos
efeitos de poder provenientes dos discursos veiculados pelos dispositivos midiáticos na
organização do contexto político nacional. 3º). Entender a prática política cotidiana como
uma agência, ou seja, como um momento particular de negociação simbólica entre as
informações consumidas e as disposições antes já adquiridas. 4º). Contribuir para o debate
sobre as relações entre o campo da mídia e o da política na contemporaneidade.

O CAMPO

Por se tratar de uma investigação qualitativa, temos como primeiro desafio


encontrar uma maneira de olhar empiricamente para essa diversidade de pertencimentos
possíveis dentro deste imenso grupo de agentes profanos em relação ao campo político, ou
seja, agentes que não conhecem e não dominam as regras de funcionamento próprias ao
campo político nacional, que aqui provisoriamente nomearemos eleitorado.
Assim, reconhecendo a impossibilidade de dar conta empiricamente de toda essa
diversidade, apresentamos um recorte local dentro de um quadro nacional: o eleitorado
do município de Américo Brasiliense – cidade localizada entre três grandes pólos
universitários do interior paulista: Araraquara, São Carlos e Ribeirão Preto, cidade na qual
nasci, estudei, trabalhei e atualmente resido –. Este município apresenta um eleitorado
composto por 27. 128 mil pessoas das quais apenas 1.911 possuem filiação partidária475, ou
seja, apenas 7% deste eleitorado não contemplam o grupo de agentes dos quais tentaremos

475
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia levylisboaneto@hotmail.com

918
entender as práticas, uma vez que conhecem minimamente as regras de funcionamento do
campo político nacional.
A escolha do município de Américo Brasiliense como campo em nossa pesquisa
não se deu de forma aleatória, antes sim foi uma escolha metodológica. Tendo em vista o
que para Bourdieu (2008) pesquisas de cunho etnográfico, deveriam ser construídas
sempre a partir de uma forma de comunicação “não-violenta”, segundo ele:

A proximidade social e a familiaridade asseguram efetivamente duas das


condições principais de uma comunicação "não violenta". De um lado,
quando o interrogador está socialmente muito próximo daquele que ele
interroga, ele lhe dá, por sua permutabilidade com ele, garantias contra
a ameaça de ver suas razões subjetivas reduzidas a causas objetivas; suas
escolhas vividas como livres, reduzidas aos determinismos objetivos
revelados pela análise. Por outro lado, encontra-se também assegurado
neste caso um acordo imediato e continuamente confirmado sobre os
pressupostos concernentes aos conteúdos e às formas da comunicação:
esse acordo se afirma na emissão apropriada, sempre difícil de ser
produzida de maneira consciente e intencional, de todos os sinais não
verbais, coordenados com os sinais verbais, que indicam quer como tal
o qual enunciado deve ser interpretado, quer como ele foi interpretado
pelo interlocutor (BOURDIEU, 2008, p. 697).

Com o objetivo de alcançar uma multiplicidade de trajetórias que nos proporcione


contato com uma diversidade de pertencimentos políticos e tendo por base os dados
estatísticos do perfil do eleitorado brasileiro extraído do cadastro nacional de eleitores
disponibilizado pelo Tribunal Superior Eleitoral, apresentamos como recorte empírico,
junto ao eleitorado do município de Américo Brasiliense, cinco grupos etários: a) 16 – 24
anos; b) 25 – 34 anos; c) 35 – 44 anos; d) 45 – 59 anos; e) 60 – 69 anos.
De forma sintetizada nosso trabalho de campo se dividira em três momentos
distintos, porém interdependentes. No primeiro e terceiro destes momentos realizaremos
entrevistas que serão devidamente transcritas e analisadas conforme metodologia
apropriada. No segundo momento em especifico, realizaremos uma pesquisa junto aos
dispositivos do campo midiático, identificados em nosso primeiro momento de campo,
para essa etapa a princípio nos valeremos da proposta de análise do discurso construída a
partir dos apontamentos de Michel Foucault.
Mais especificamente no momento inicial do trabalho de campo, buscaremos uma
primeira aproximação com agentes dos grupos etários acima descritos, agentes estes que
serão apresentados por uma rede de contatos composta por agentes conhecidos 476, com o

476
Mídia entendida como meio, canal, para a comunicação.

919
objetivo de realizar por meio de entrevistas, um levantamento sobre o capital econômico,
cultural e social dos mesmos (por exemplo: renda familiar, local de moradia, escolaridade
dos pais, percurso escolar, religião, acesso às mídias informativas, entre outras), tendo por
intuito construir um entendimento prévio sobre a trajetória de cada um dos agentes
entrevistados.
Durante este primeiro momento, a partir de uma amostragem qualitativa
intencionalmente construída, em que construiremos em conjunto com os agentes, a
trajetória social dos mesmos, será possível identificar os dispositivos midiáticos mais
utilizados por estes. Feito isso, em fase posterior, será possível a realização de uma análise
sobre a produção discursiva dos dispositivos do campo midiático no que diz respeito a
informações que retratam o contexto político nacional contemporâneo.
A concepção de análise do discurso pela qual optamos e a partir da qual iremos
operacionalizar nossa investigação neste momento de nosso campo, ancora-se em três
conceitos que segundo Gregolin (2008) seriam centrais na teoria discursiva de Foucault: o
documento histórico, o enunciado e a formação discursiva. Inicialmente comentaremos o
conceito de documento histórico. Este é importante a nossos objetivos de análise em
decorrência do posicionamento que ele nos permite tomar em relação aos discursos que
serão investigados.

Um mesmo fato histórico pode ser contado de diferentes pontos de


vistas, porque o autor do texto histórico – como na literatura, ou no texto
científico – é apenas, e sempre, efeito construído pelo discurso.
Conforme De Certeau (1974), como em qualquer outro tipo de texto,
na história tudo começa com o trabalho de por a parte, de reunir, de
transformar em ‘documentos’ certos objetos distribuídos de outro modo
(GREGOLIN, 2008, p. 110).

Quando propomos analisar o discurso midiático como uma espécie de documento


histórico, o fazemos com dois objetivos claros. O primeiro deles é entender o discurso
midiático como “um agenciamento de signos, que, ao produzir ‘efeitos de verdade’, levam
uma sociedade a interpretar-se e compreender-se através dessa interpretação”
(GREGOLIN, 2008, p.111). O segundo conceito que tomamos como fundamental para
realizar a análise aqui proposta é o de enunciado, sobretudo pelo fato de que segundo
Foucault (1997) esse conceito encontra-se atrelado à ideia de algo que pode ser tomado
como:

920
Um elemento último, indecomponível, suscetível de ser isolado em si
mesmo e capaz de entrar em um jogo de relações com outros elementos
semelhantes a ele, como um ponto sem superfície, mas que pode ser
demarcado em planos de repartição e em formas específicas de
agrupamentos, como um grão que aparece em uma superfície de um
tecido, de que é elemento constituinte, como um átomo do discurso
(FOUCAULT, 1997, p. 90).

Em nossa proposta o conceito de enunciado ganha importância pelo lugar que ele
ocupa nas dinâmicas da teoria discursiva propostas por Foucault. Trata-se de um conceito
que não permite uma descrição acabada, uma vez que “ele não é em si mesmo uma
unidade, mas sim uma função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis
e que faz com que apareçam, conteúdos concretos no tempo e no espaço” (FOUCAULT,
1997, p. 99).
A noção de materialidade discursiva, que é operacionalizada e estabelecida pela
função dinâmica atribuída ao enunciado em um discurso, nos permite apontar e tentar
descrever a importância da noção de formação discursiva em nosso estudo. Recorremos a
esta noção por entendermos que mediante ela Foucault buscou representar um domínio
de estruturas e de unidades de discursos possíveis, acionadas e atualizas pelos enunciados.
Para o pensador francês, em todo o:

Caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados,


semelhante sistemas de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir
uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação
discursiva – evitando, assim, palavras demasiado carregadas de condições
e consequências, inadequadas, aliás, para designar semelhante dispersão,
tais como ‘ciência’, ou ‘ideologia’, ou ‘teoria’, ou ‘domínio de
objetividade’ (FOUCAULT, 1997, p. 43).

Neste segundo momento de nossa análise também refletiremos sobre possíveis


homologias entre os campos da mídia e da política em nosso país, uma vez que, ao
disputarem a condição de produtores da doxa477 sobre as relações políticas, podemos dizer
que os dispositivos midiáticos estariam em uma forma de “luta pelo poder propriamente
simbólico de fazer ver e fazer crer, de predizer e de prescrever, de dar a conhecer e de

477
Podemos compreender a fetichização da mercadoria por meio de um exemplo bem simples: o consumidor
compra um carro ou uma roupa não pelas qualidades da mercadoria, mas principalmente pelo valor
simbólico, pelo status que pode ser associado a esse carro ou a essa roupa. No jornal, a ideologia é veiculada
de forma mais clara do que nas demais mercadorias. (SILVEIRA, 2004, p.69).
921
fazer reconhecer” (BOURDIEU, 2000, p. 174) e que cumpririam uma função em relação
às disputas por poder próprias ao campo da política, colocando-se assim “enquanto
instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento”
(BOURDIEU, 2002, p. 11).
Esta função é política, pois remete à produção de sentido objetivo de mundo e,
quando exercida pelos meios de comunicação, nos permite refletir sobre o caráter
estruturante da própria informação, ou seja, ela permite questionar como e de que maneira
a informação midiática se coloca como formadora de sentido, sobretudo quando tomamos
por pressuposto que a informação, entendida enquanto discurso produzido e veiculado
pelos meios de comunicação.
Já em um terceiro momento de nosso campo, apresentaremos as temáticas
políticas, identificadas como mais recorrentes junto à produção discursiva dos dispositivos
midiáticos analisados, para que os agentes de nossa pesquisa se posicionem em relação às
mesmas. Acreditamos que o fato de residir a anos no município de Américo Brasiliense
tornará possível uma maior proximidade social e uma familiaridade com os costumes dos
agentes entrevistados, condição pela qual esperamos poder estabelecer junto a estes
agentes:

Uma situação de comunicação completamente excepcional, livre dos


constrangimentos, principalmente temporais, que pesam sobre a maior
parte das trocas cotidianas e abrindo-lhe alternativas que o incitam ou o
autorizam a exprimir mal-estares, faltas ou necessidades que ele descobre
exprimindo-os, o pesquisador contribui para criar as condições de
aparecimento de um discurso extraordinário, que poderia nunca ter dito
e que, todavia, já estava lá esperando suas condições de atualização
(BOURDIEU, 2008, p. 704).

Nesta perspectiva, tomaremos os discursos dos agentes como uma forma de


objetivação de sua prática política e, na busca por estabelecer um entendimento dentre
muitos possíveis acerca das disposições pelas quais esta prática é construída, estes
posicionamentos serão transcritos e analisados, a exemplo do que antes fora realizado junto
à produção discursiva midiática.

A ANÁLISE

Em nossa proposta de análise os discursos dos agentes serão entendidos como uma
forma de objetivação de uma prática política cotidiana que estaria inserida em um mercado

922
das crenças, ou seja, estes discursos, assim como os discursos midiáticos sobre questões do
campo político, seriam bens simbólicos em circulação. É pensando nesta circulação de
bens simbólicos que tentaremos olhar para a relação entre o campo midiático e o campo
da política a partir das práticas discursivas cotidianas dos agentes consumidores de bens
provenientes do mercado simbólico da informação, encarando essas práticas como ponto
de partida e não como ponto de chegada para um entendimento acerca da relação entre
estes campos. Por isso podemos dizer que:

O tipo de análise que estamos propondo coloca no centro de sua atenção


o problema da agência. Toda interconexão de diversidades exige um
trabalho de significação promovido por agentes em relação.
Tomaremos, pois, o agente no sentido a ele dado por Bourdieu,
enquanto um produto resultante da relação entre uma posição social e
uma visão de mundo. Descrever a posição de um agente é parte do
problema e não um ponto de partida posto que ele se define através de
uma trajetória cujo percurso deve ser interrogado. Por outro lado,
compreender os interesses ligados à posição social ajuda a compreender
os modos de apropriação dos enunciados. Nesse sentido, a noção de
agente corporifica posições de mediação que resultam do cruzamento,
no espaço social e em um determinado tempo, de um tipo particular de
trajetórias com uma série de enunciados (ARRUTI, MONTERO e
POMPA, 2012, p. 29).

Dessa forma o conceito de trajetória, aqui entendido como uma “série de posições
sucessivamente ocupadas por um mesmo agente (ou um mesmo grupo), em um espaço
que é ele próprio um devir, estando sujeito a transformações incessantes” (BOURDIEU,
2011, p. 81), ganha grande relevância por permitir ressaltar os movimentos e as
transformações vivenciados por cada agente até que este ocupe o lugar social em que se
encontra.
A relevância do conceito de trajetória em nossa proposta de pesquisa é dada pelo
fato da noção de prática social ser pensada como uma relação dialética entre o lugar social
e as disposições do habitus de cada agente, lembrando que “uma das funções da noção de
habitus é a de dar conta da unidade de estilo que vincula as práticas e os bens de um agente
singular ou de uma classe de agentes [...]” (BOURDIEU, 1996, p. 21). E é justamente está
noção de prática que nos permite demarcar um distanciamento teórico em relação a
análises como as descritas por Colling (2007) e por Miguel (2002), análises em que as
práticas políticas dos agentes no campo político nacional aparecem de maneira
uniformizada.

923
Por isso, em um momento final da proposta de pesquisa até aqui apresentada, a
partir da análise dos dados construídos no trabalho de campo acima descrito, esperamos
poder refletir sobre as diferenças, as proximidades e os distanciamentos existentes entre os
discursos midiáticos sobre política, a trajetória social de cada agente da pesquisa e os
discursos destes em relação aos temas políticos discutidos.
Por fim, esperamos assim construir um conhecimento relacional que nos permita
entender quais as bases de produção e de sustentação dos discursos políticos do cotidiano
e, de alguma forma, responder de que maneira e até que ponto a prática política cotidiana
escaparia ou não às agendas políticas apresentadas pelo mercado simbólico da informação
no país.

CONSIDERAÇÕES

Como fruto da reflexão aqui apresentada seguem alguns apontamentos com o


intuito de contribuir para discussão sobre as relações entre mídia e política no Brasil
contemporâneo. Assim diante das dinâmicas entre um possível mercado simbólico da
informação e as disputas por poder no campo político nacional, apontamos para uma
construção de sentido dentro das disputas do campo político, decorrente dos regimes de
poder estabelecidos pela circulação dos bens simbólicos do mercado da informação.
Neste sentido, nossa contribuição para ampliação da discussão sobre as possíveis
agências dos meios de comunicação em relação à construção da realidade sociopolítica
nacional se fundamenta na possibilidade de se problematizar como e até em que medida
os discursos produzidos e veiculados pelo mercado simbólico da informação se colocariam
como possíveis formatadores da opinião pública em relação às disputas por poder próprias
ao campo político, como por exemplo, um contexto de disputa eleitoral.
Esta possibilidade remete a um questionamento mais complexo, e um pouco mais
original, que diz respeito à eficácia simbólica (BOURDIEU, 2002) destes discursos
informativos produzidos e veiculados pelo mercado simbólico da informação sobre a
prática dos agentes que os legitimam. No limite, para além de colocar em questão a
potencialidade dos efeitos de poder provenientes destes discursos informativos, o
importante aqui seria destacar a capacidade de produção de sentido que pode estar contida
na prática dos consumidores dos bens simbólicos do mercado da informação.
Dessa maneira, para debates futuros sobre as relações entre mídia e política no país,
deixamos a seguinte questão: até que ponto os efeitos de poder provenientes dos discursos

924
midiáticos sobre política se concretizam nas práticas políticas de seus consumidores, mais
precisamente, dos agentes que em relação ao campo político nacional atuam apenas como
eleitores.

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927
RESULTADOS E EFEITOS DA ATUAÇÃO DA IMPRENSA
BURGUESA SOBRE OS PARTIDOS POLÍTICOS NO BRASIL

Levy LISBOA NETO478

Resumo: A imprensa, enquanto subproduto da mídia, apresenta-se em condições de ser um dos


elementos a interferir na compreensão dos cidadãos sobre as instituições políticas, bem como
influenciar o comportamento, de maneira específica, dos partidos políticos, posto que ela se tornou
uma das principais instituições sociais a ter ascendência no processo de socialização do indivíduo.
Por isso, há necessidade de contextualizar e pesquisar as intercorrências dessa relação, cujas causas
e efeitos parecem atingir sobremaneira a operacionalização do sistema político com um todo, dado
o protagonismo ainda exercido pelos partidos sobre a representação política na democracia. Em
outros termos, o modo com o qual a imprensa age seria capaz de repercutir e influenciar o modus
operandi dos partidos. Dessa forma, buscamos entender parcela da relação entre imprensa e
partidos de forma a enumerar alguns pontos capazes de influenciar e alterar procedimentos,
sobretudo aqueles oriundos da imprensa sobre os partidos políticos e não o contrário. Tal
perspectiva se desenvolve a partir de uma leitura da imprensa ancorada no modo capitalista de
produção. Neste caso específico, vamos nos deter e estabelecer como parâmetro e substrato
analíticos a condição da notícia e/ou informação – obtida por meio dos meios de comunicação de
massas e de seus porta-vozes da imprensa – como mercadoria. Neste ponto, publicizamos
(repercutimos) uma relação cada vez mais sobressalente na contemporaneidade, a da imprensa
com os partidos e a política em geral, a qual, para alguns autores, já ganha status de centralidade
nas discussões de âmbito institucional. Não obstante, inserido no bojo desse debate emerge, de
forma paralela, a possibilidade de se levantar algumas interpretações relativas à suposta crise da
representação política conferida em larga medida aos partidos.

Palavras-chave: Capitalismo. Imprensa. Partidos Políticos.

INTRODUÇÃO

A imprensa, enquanto subproduto da mídia479, apresenta-se em condições de ser


um dos elementos a interferir na compreensão dos cidadãos sobre as instituições políticas,
bem como influenciar o comportamento, de maneira específica, dos partidos políticos,
posto que ela se tornou uma das principais instituições sociais a ter ascendência no processo

478
Na obra de Marx, sobretudo em O Capital, a análise da esfera política se dá a partir das determinações
econômicas da produção capitalista.
479
A perspectiva marxista aponta a democracia sendo engolida pela divisão de classes e pela exploração do
trabalho. Enquanto no nível da circulação simples de mercadoria, a democracia reinaria sem maiores
transtornos, ao contrário, daria margem à liberdade e à igualdade entre os produtores de mercadorias. Neste
momento, as classes estão encobertas e o ideário burguês escamoteado. A questão democrática vai começar
a ter problemas em O Capital quando do início da esfera da produção, diretamente ligada ao conceito de
mais-valia. Neste ponto e momento é que emerge o antagonismo entre a classe que cria valor e a outra que
se apropria desse valor. Trata-se do antagonismo que protagoniza a esfera da produção, onde prevalecem
relações coercitivas de trabalho, isto é, de exploração.928
É o momento negativo no qual a liberdade e a igualdade
que reinavam num primeiro momento são superados dialeticamente e se convertem no seu contrário direto.
A liberdade e a igualdade deram lugar ao que Marx denomina de “despotismo de fábrica”, ou seja, na
exploração da classe trabalhadora, na não-liberdade e não-igualdade. (MARX, 1996; MOURA, 1999;
PRADO, 2009).
de socialização do indivíduo. Por isso, há necessidade de contextualizar e pesquisar as
intercorrências dessa relação, cujas causas e efeitos parecem atingir sobremaneira a
operacionalização do sistema político com um todo, dado o protagonismo ainda exercido
pelos partidos sobre a representação política na democracia. Em outros termos, o modo
com o qual a imprensa age seria capaz de repercutir e influenciar o modus operandi dos
partidos.
Dessa forma, buscamos entender parcela da relação entre imprensa e partidos de
forma a enumerar alguns pontos capazes de influenciar e alterar procedimentos, sobretudo
aqueles oriundos da imprensa sobre os partidos políticos e não o contrário. Tal perspectiva
se desenvolve a partir de uma leitura da imprensa ancorada no modo capitalista de
produção. Neste caso específico, vamos nos deter e estabelecer como parâmetro e
substrato analíticos a condição da notícia e/ou informação – obtida por meio dos meios de
comunicação de massas e de seus porta-vozes da imprensa – como mercadoria.
Neste ponto, publicizamos (repercutimos) uma relação cada vez mais sobressalente
na contemporaneidade, a da imprensa com os partidos e a política em geral, a qual, para
alguns autores, já ganha status de centralidade nas discussões de âmbito institucional. Não
obstante, inserido no bojo desse debate emerge, de forma paralela, a possibilidade de se
levantar algumas interpretações relativas à suposta crise da representação política conferida
em larga medida aos partidos. Isto é, até que ponto o modo de atuação da imprensa e, por
conseguinte, da mídia, atingem os partidos na capacidade de representação? Por exemplo,
questionamos como as denúncias de corrupção veiculadas quase diariamente na imprensa
e nos meios de comunicação de massa têm condições de afetar a confiança da população
nas instituições e, de forma geral, no sistema político como um todo.
Para tanto, desenvolvemos um debate teórico de caráter e conteúdo
argumentativos, a fim de propor e levantar uma discussão que permita conjugar análises da
imprensa com a política. Perspectiva esta que pode nos mostrar alguns dos possíveis
motivos (causas) da crise de representação e da baixa confiança depositada aos partidos
pela população, como atestam e afiançam pesquisas na área. (VASQUEZ, 2010; MOISÉS,
2008; MOISÉS; CARNEIRO, 2008). Assim, partimos de alguns pressupostos analíticos
já estabelecidos e conformados, como a linha teórica orientadora do trabalho, bem como
o cenário, nada alvissareiro, colhido dos números em torno da confiança dada pela
população aos partidos políticos.

929
A INFORMAÇÃO TRANSFORMADA EM NOTÍCIA E ESTA EM MERCADORIA

Se vamos entender as divulgações de notícias como mercadoria, o primeiro ponto


que nos chama atenção é de deixar claro quem são os donos da notícia, quem tem a
chancela “oficial” de veiculá-la e divulgá-la, sobretudo numa sociedade dividida em classes.
Quem faz este papel são as empresas jornalísticas, ou melhor, seus donos, ou seja, os
burgueses, os donos dos meios de produção no sistema capitalista. Assim, começamos a
delinear o âmbito inaugural da notícia, esta atrelada às empresas de comunicação, que em
primeira instância a entendem como um meio de gerar lucro através da venda de uma
mercadoria (informação e opinião). Podemos entender esse movimento, dito capitalista,
de acordo com a compreensão feita por Moura (1999, p. 77) sobre a principal propositura
analítico-conceitual contida em O Capital de Karl Marx:

É precisamente a partir dessa inflexão discursiva, que gira da fórmula


geral do capital para o processo de trabalho, de onde Marx fará seu
discurso arrancar para a construção da complexa trama conceitual, que
lhe permitirá explicar e criticar o funcionamento da socialidade
burguesa. Assim, em linhas muito gerais, num primeiro momento de sua
argumentação, Marx parte da problematização da riqueza capitalista,
para chegar à forma mais concisa de descrevê-la, do ponto de vista
imediato de qualquer observador respaldado na evidência empírica,
capturando o próprio movimento dessa riqueza, através da fórmula geral
do capital: Dinheiro-Mercadoria-Dinheiro incrementado (D-M-D.). Por
esta via é que Marx demonstra que o acréscimo de dinheiro, o DD,
obtido ao final do processo, não é uma evidência inquestionável, como
são levados a crer os indivíduos sociais sob a égide do capitalismo, mas
é o verdadeiro problema a ser dilucidado. O mistério do DD não pode
ser tergiversado. O enigma só é decifrado através da exposição das
formas da mais-valia. Mediante este conceito, que explicita o movimento
de expropriação de trabalho não remunerado, Marx pode, finalmente,
desvendar o mistério do processo de valorização. Partindo da
pressuposição, apenas provisória, não convém esquecer, do intercâmbio
de equivalentes, Marx sustenta haver uma mercadoria tão especial que
seu consumo produtivo teria a propriedade singular de produzir um
valor maior que o empregado em sua própria produção (MOURA,
1999, p. 77).

O capitalismo concentra-se nessa operação de ordem econômica, dominada pelos


mais fortes, os possuidores de riqueza, àqueles que transformam dinheiro em capital. Dessa
forma, caracteriza-se seu viés econômico, mas, como veremos, não desgarrado da
perspectiva política, esta observada por meio do conteúdo veiculado com direcionamento
e apelo fortemente ligado à classe dominante, que por sua vez prega a manutenção do

930
status quo. Mais do que se percebe e compreende-se da imprensa num primeiro momento,
sem maior atenção, o pesquisador Marcondes Filho (1986, p. 12) ao aprofundar a análise
vai caracterizá-la como uma instituição suporte do capitalismo à medida que é um meio de
manipulação ideológica de grupos de poder social e uma forma de poder político. Neste
âmbito há um encadeamento processual da informação transformada em notícia e esta em
mercadoria.
Antes de discorrermos sobre o conteúdo da notícia, vamos compreender sua
transformação em mercadoria a partir do entendimento proposto por Silveira (2004, p.
67), segundo o qual no jornalismo feito sob o modo capitalista de produção, as notícias são
mercadorias, com valor de uso e valor de troca. Como aprendemos com Karl Marx (1996)
valor de uso porque supre um carecimento humano, neste caso, a necessidade
historicamente determinada de obter informações. E valor de troca sob a ótica do dono do
jornal (empresa de comunicação), que ao vender as suas notícias na forma de jornal, está
realizando o valor de troca da mercadoria notícia e realizando o capital investido,
transformando-o em mais capital que é acumulado pelo capitalista.
Com isso, colocamos o econômico num primeiro plano, mas não desgarrado do
campo político. Como já descrito, o jornal também veicula ideologia, o que significa de
forma mais generalista um atrelamento à fetichização da mercadoria480. Esta fetichização da
mercadoria acontece de maneira menos visível na veiculação de ideologia em relação às
mercadorias comuns. Nos jornais, na divulgação de notícias, esta veiculação de ideologia
fica mais evidente. Outro empecilho que potencializa a distância do ideal liberal proposto
em torno da veiculação de notícias pode ser extraído do seguinte entendimento:

O jornal atua em dois mercados simultaneamente: no mercado da venda


de notícia e no mercado da venda de espaço publicitário – esse é o
momento em que o jornal funciona como veículo de divulgação e venda
de outras mercadorias. É aí que surge o primeiro empecilho para que
haja uma imprensa totalmente independente sob o capitalismo: há uma
preocupação de que o espaço redacional do jornal tenha um conteúdo
afinado com o espaço publicitário. Esse é um dos fatores – não o único

480
Exemplo clássico (debatido há décadas) a respeito dessa manipulação e enviesamento político-ideológico
pode ser extraído da diferença de abordagem veiculada na imprensa relativa às ações desenvolvidas por
movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Movimento dos
Trabalhadores Sem Teto (MTST) quando estes entram em propriedades privadas. Qual seria o termo mais
adequado para explicar e compreender as ações desses movimentos: ocupação ou invasão? Via de regra, a
imprensa “opta” pela invasão, incentivando uma leitura negativa dos movimentos perante o receptor da
notícia, atuando assim em perfeita harmonia ao ideário burguês. Outro exemplo é a adoção por parte dos
órgãos de imprensa dos manuais de redação e estilo, dotados de normalizações técnicas produzidas com o
931
objetivo de engessar o potencial crítico e a “periculosidade” da notícia. (MARCONDES FILHO, 1986, p.
39).
– que impedem que a imprensa trate os fatos sociais de forma crítica e
faça com que o receptor da notícia reflita sobre esses fatos (SILVEIRA,
2004, p .70).

Neste ponto, há um distanciamento dos ideais liberais que apregoam uma imprensa
com ações de caráteres livre e objetivo, com a proposta de representar todos os setores da
sociedade. Fazer valer tais ideais, ao mesmo tempo em que vende a notícia e o espaço
publicitário, nos parecem perspectivas incompatíveis. É na trilha desse sentido que o
discurso liberal vai apoiar-se e insistir-se, de modo a sustentar a notícia na aparência do
valor de uso, como canal imprescindível da liberdade de opinião e expressão e algo
genuíno, imune a interferências. Seria diferente das mercadorias comuns. Porém parece
se tratar de uma perspectiva abstrata, de fundo político, sem respaldo empírico.
Na outra ponta, do lado crítico, a produção de notícias escancara um cenário
“quase” performático (quando sensacionalista e arquitetada com determinados fins), que
evidencia interferências maiores de caráteres maquiador e manipulador. Desvirtua-se de
sua suposta essência, a de informar o cidadão em sua completude sem interferências
ideológicas e pessoais. Nesta direção, conforme pressupostos liberais estatuídos
discursivamente, como qualquer outra mercadoria, a notícia apresenta-se conformada,
exclusivamente, ao valor de uso. Em relação a este ponto, Marcondes Filho (1986, p. 29)
é taxativo: “Semelhante às outras mercadorias, também no jornalismo o valor de uso não
se vende enquanto tal, mas como aparência de valor de uso”.
Esse discurso, envolto nas supostas “virtudes e atributos” (aparência) do valor de
uso, caminha no sentido de proporcionar o aumento das vendas, da valorização da
mercadoria e da acumulação de capital (SILVEIRA, 2004, p. 71). Engendra-se um discurso
liberal que defende a notícia necessária para a obtenção de informações críveis e
verossímeis. Em outros termos, trata-se da exploração da aparência de valor de uso da
notícia. Mas, como veremos, o discurso liberal não se sustenta aos fatos, o que não quer
dizer que não tenha necessariamente um valor de uso intrínseco à notícia. A não ser que
existam construções de notícias fabricadas, imaginativas e totalmente desvinculadas da
realidade, do contrário, para que seja veiculada e processada ela existe baseada num fato
concreto. Neste caso, a notícia tem valor de uso, mesmo que seja descontextualizada e
manipulada, pois se apresenta amparada num fato concreto, o que torna complicada sua
manipulação de maneira completa. Aí se consubstancia a contradição da mercadoria, ela
teria dupla face, como enfatiza Moura (1999, p. 78):

932
Aí se urdem as premissas de toda a trama conceitual posterior e não por
outra razão conferiu Marx tanta importância à redação dessa parte da
obra. É aqui que ele expõe a contradição básica da mercadoria: ter uma
existência fáustica, dupla; sob a forma natural, enquanto objeto prático
útil, e sob a forma valor, enquanto objeto social; e seu contraponto na
contradição entre trabalho concreto, produtor de valores de uso, e
trabalho abstrato, conteúdo, substância do valor (MOURA, 1999, p. 78).

Outrossim, para entender a notícia, partimos do critério segundo o qual ela só existe
se baseada num fato concreto, existente, de outra maneira não seria considerada notícia.
Entre valor de uso e valor troca emerge a seguinte ponderação basilar: “[...] mesmo na flor
da idade dos negócios, o valor de troca não arrastou o valor de uso como mero apêndice,
mas também o desenvolveu como um pressuposto de própria existência” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 150).
Tal assertiva dá margem à contradição, se pensarmos no caso específico da notícia,
na medida em que o valor de troca possui fundamentação e respaldo no valor de uso, ou
seja, mesmo que arquitetada, sensacionalista, enviesada, manipulada, sobra espaço, mesmo
mínimo, para o questionamento e um entendimento diferente daquele que foi direcionado.
Assim, não há descontextualização e manipulação totais, completas, porém tais
direcionamentos afetam sobremaneira a compreensão da realidade por parte dos
receptores da notícia. Não obstante Pierre Bourdieu apud Dines (1996, p. 41) adverte
sobre aquilo que nos parece evidente: “os jornalistas podem impor ao conjunto da
sociedade seus princípios de visão de mundo, sua problemática, seu ponto de vista”. Por
isso a sublevação contestatória oriunda deste trabalho: qual o efeito dessa emersão
jornalística na conduta dos partidos políticos?

OS MACROMOMENTOS DEFINIDORES DAS CARACTERÍSTICAS DA


IMPRENSA BURGUESA E SUA REPERCUSSÃO SOBRE A DEMOCRACIA

Antes de chegarmos às técnicas usadas pela imprensa burguesa para


descontextualizar e manipular a notícia buscamos alguns elementos históricos capazes de
servir como alicerce de análise e compreensão sobre os caminhos da notícia e seus
interesses, sejam eles subliminares ou explícitos. O substrato da imprensa ligado a seu
nascedouro remete à lógica capitalista, dado a filiação empresarial do jornalismo, que por
sua vez (enquanto empresa) visa o lucro e por isso está atrelado até a medula ao modo
capitalista de produção. Marcondes Filho (1986, p. 56) fornece um Resumo do traslado da

933
imprensa pela história, de modo a desnudar os interesses inscritos em cada período de sua
existência. A rota proposta pelo autor mostra uma adequação do jornalismo (imprensa) às
necessidades prementes do capitalismo, conforme seus interesses específicos, estes
relacionados com cada período histórico.
Digamos que o autor divide este traslado da imprensa em três grandes momentos:
logo no início, em meados do século XVII, a proposta que sobressai é a de gerar
informações com o objetivo de suprir os mercados com informações, além de fazer pulsar
as localidades onde o comércio tinha vida e/ou era ativo. A ideia principal consistia na
divulgação de dados e informações econômicas para os interessados em comercializar
mercadorias; num segundo instante, já aportada no século XIX, o jornalismo vai se firmar
numa linha denominada literária e política, responsável em produzir conteúdo justaposto
às novas exigências, dado que o capitalismo já era hegemônico na economia e buscava a
hegemonia política, daí a necessidade de repercutir o ideário burguês; a terceira linha
iniciada no século XX irá trilhar a perspectiva da compatibilidade e conciliação de aumento
de lucro por meio da incorporação tecnológica à atividade jornalístico-empresarial, cuja
denominação síntese será conhecida como imprensa de massas (MARCONDES FILHO,
1986, p. 56).
Na esteira desse entendimento histórico nos chama atenção a interpretação
desenvolvida por Silveira (2004, p. 73-4) a respeito das marcas e características impressas
pela imprensa no decorrer de sua trajetória. Frise-se que foi à posteriori que a imprensa
ficou atrelada à classe dominante, pois logo no início, quando da sua criação, ela não foi
uma iniciativa da nobreza feudal. Porém, no decorrer de sua constituição, a justaposição a
todo ideário burguês é patente:

Os jornais políticos-literários do século XIX começam a perder força –


nesse período a burguesia já controla o Estado e é dominante na
sociedade. Ainda no campo econômico, a imprensa ganha importância
porque, através da publicidade, ela se torna um poderoso meio de
divulgação das mercadorias, contribuindo para a venda das mesmas,
trabalhando segundo a lógica da acumulação capitalista. É a fase em que
o capitalismo passa a ser monopolista, com os grandes grupos
monopolizando os mercados nacionais e partindo para o mercado
internacional. As empresas jornalísticas também tendem à concentração
e à formação de monopólios. Politicamente isso se mostra importante
para a construção do projeto burguês de dominação. Inviabilizando
economicamente projetos de comunicação que possam abrir espaço
para outras classes sociais, a burguesia garante também o monopólio da
versão e da opinião no interior da sociedade (SILVEIRA, 2004, p. 73-
4).

934
Essa perspectiva histórica aponta para o avanço do jornalismo em consonância às
práticas capitalistas, deixando bastante evidente a vertente classista da imprensa. Cenário
facilitado e potencializado pelas empresas jornalísticas que, como expresso, vão se inserir
nesta lógica de concentração e formação de monopólios. Concentração e formação de
monopólios significam diminuição das fontes de informação e a perspectiva de vigorar de
forma uníssona ao pensamento único, o monopólio de opiniões dominantes, que abriria
mão da pluralidade de informações e debates. Tal fato seria “[...] um risco para a
possibilidade de uma democracia social e até mesmo para a democracia burguesa, cujo
caráter é formal” (SILVEIRA, 2004, p. 97).
Quando nos reportamos a este debate sobre o papel da imprensa na
operacionalização da democracia, estamos dialogando e ampliando o escopo analítico dos
pesquisadores políticos e sociais em torno de uma discussão que ganha terreno no universo
acadêmico, a importância das instituições na configuração do quadro sociopolítico. Na
esteira desta tendência e amparado em pesquisas contemporâneas que descrevem a
importância das instituições na organização sociopolítica, José Serra (1993) coloca “o
político” num nível decisivo: não raro a democracia política é condição para conquistar a
democracia social e econômica. A indagação pertinente deveria, segundo Serra (1993, p.
22), ser invertida, em vez de procurar “quais são as condições sociais e econômicas da
democracia política” para “quais são as condições políticas para alcançar-se a democracia
social e econômica?”.
Com isso, faz emergir o potencial definidor do quadro político pelas instituições na
configuração e organização dos sistemas de governo. Até então, a maior parte dos
estudiosos, como Karl Marx481, entendiam “os aspectos institucionais como superestruturas,
ou seja, elementos da realidade social condicionados por outros, mais decisivos que eles
na hierarquia causal”, sustenta Cintra (2007, p. 36). As instituições políticas e jurídicas
devem ser o amplificador, e não o silenciador, das virtualidades da política democrática em
todos os níveis. Mas as instituições e formas jurídicas não devem ser apenas meios de
garantir a democracia, sob o ângulo da participação ampliada e da representação mais
autêntica dos cidadãos. É preciso, também, que afiancem maior governabilidade, pois falha
a democracia que não demonstrar capacidade governativa (SERRA, 1993, p. 22).

481
A noção de centralidade tem sido aplicada na Ciências Sociais igualmente a pessoas, instituições e idéias-
valores. Ela implica na existência de se oposto, vale dizer, o periférico, o marginal, o excluído, mas, ao mesmo
tempo, admite gradações de proximidade e afastamento. Pessoas, instituições e idéias-valores podem ser mais
ou menos centrais. (LIMA, 2009, p.19).
935
Porém, cabe aqui uma afirmação menos institucionalista de caráter peremptório:
“as instituições da democracia não operam em um vazio sociológico, mas, sim, sob certas
condições que afetam seu desempenho” (PRZEWORSKI apud ANASTASIA et al., 2004,
p. 11). Na contramão da posição expressa por Serra (1993) existem os autores ligados à
tendência interpretativa de considerar os aspectos sociais e econômicos acima dos
políticos482.

Ao buscarmos compreender o conceito de democracia em O Capital,


pensamos ser necessária uma análise da esfera política a partir das
determinações econômicas da produção capitalista, evidenciando que a
própria constituição organizativa da política está em relação direta com a
base econômica que regulamenta a produção capitalista. Assim, como os
interesses políticos são sempre fundados em interesses econômicos a
própria organização política e a democracia são também determinadas
pelas relações econômicas. Para Marx uma compreensão mais exata e
minuciosa de categorias determinantes da superestrutura política é
inseparável de uma investigação precisa sobre a base econômica
(PRADO, 2009).

Neste caso, temos, como apontam Przeworski e Limongi (1995), duas teorias
distintas postadas no âmbito das discussões sobre a conquista, manutenção e consolidação
da democracia: a primeira, chamada teoria da modernização, a qual “postula que a
emergência da democracia é endógena ao processo de desenvolvimento econômico”
(ANASTASIA et al., 2004, p. 10); a segunda, de caráter oposto, entende o processo
democrático sob uma perspectiva exógena, sem relação com o processo de
desenvolvimento econômico (ANASTASIA et al., 2004, p. 10). De acordo com Cerroni
(1982), a questão é mútua.

[...] se a democracia política sem a transformação social asfixia-se e se


volatiliza em utopia, uma transformação profunda e radical das relações
políticas, arrisca-se a gerar formas políticas autoritárias, limitativas das
liberdades modernas (...) o problema que se coloca é o da necessária
integração da democracia política com a democracia social e,
reciprocamente, da democracia social com a democracia política.
(CERRONI, 1982, p. 60).

Neste parêntese que fazemos em relação à democracia, descrevemos a posição


liberal vinculada diretamente ao conceito proposto pelo cientista político italiano Norberto

482
Mestranda em Ciência Política na Universidade Federal do Pará (PPGCP/UFPA). Contato:
nataliaseabra@hotmail.com.

936
Bobbio (1992), em O Futuro da Democracia – em defesa das regras do jogo. O conceito
de democracia defendido por Bobbio (1992) aporta-se em alguns pressupostos básicos,
como a noção de transparência e visibilidade na tentativa de se contrapor (diferenciar) ao
poder autocrático. A democracia, então, transitaria envolta a um governo cujo poder é
visível e, mais ainda, um governo estatuído no poder público em público. Nestes termos
Lima (2004, p. 50) explica a perspectiva defendida por Bobbio (1992):

É preciso lembrar que há dois significados básicos para a palavra público.


No primeiro, em oposição ao que é privado, público refere-se à coisa
publica, ao Estado; no segundo, em oposição ao que é secreto, público
refere-se ao que é manifesto, evidente, visível. Pode-se dizer, portanto,
que a democracia é – em tese – o regime do poder visível da coisa
pública. Dessa forma, a política, nas democracias, seria a atividade
pública (visível) relativa às coisas públicas (do Estado) (LIMA, 2004, p.
50).

Dessa forma, podemos inferir que o modo de atuação da imprensa atinge a


democracia em seu âmago, pois tem condições de interferir não apenas na seleção da
informação que será pública, como também na forma e no conteúdo do que será
divulgado. Este modo de atuação repercute sobre os preceitos liberais quanto marxistas,
este último afetado pela relação desigual (de exploração) entre o patrão e o proletário
dentro da empresa jornalística. Na lógica da construção e veiculação da notícia a perspectiva
do proletário é marginalizada, oprimida, desde a obtenção da mais valia pelo patrão. Ponto
este tido como nevrálgico, o cerne explicativo das relações de produção capitalistas, isto é,
a emergência do conceito de mais-valia (ALTHUSSER apud MOURA, 1999, p.77). Por
esse motivo elencamos a seguir algumas das principais técnicas usadas pela imprensa
(burgueses) para manipular e descontextualizar a notícia.

BREVE ABORDAGEM SOBRE ALGUMAS DAS PRINCIPAIS TÉCNICAS DE


MANIPULAÇÃO USADAS PELA IMPRENSA BURGUESA

Quando abordamos a relação do patrão com o empregado na confecção da notícia


dentro da lógica empresarial que subsiste na imprensa, estamos nos referindo a contextos
e cenários determinados por variáveis econômicas e políticas bem delineadas e articuladas,
por mais que uma suplante a outra em importância. Para compor e transigir sem maiores
percalços (sem criar fricção), os campos econômico e político precisam de uma linha de
atuação retilínea capaz de distanciá-los de possíveis colisões. Daí a emergência de algumas
técnicas de manipulação usadas pela imprensa (jornalismo), entre outras, capazes de

937
mitigar possíveis choques e divergências. Na esteira desse entendimento, Silveira (2004, p.
75) esclarece a condição da imprensa como um instrumento da burguesia para consolidar
a hegemonia na sociedade.
“Para realizar essa instrumentalização, a burguesia utiliza-se de alguns métodos cujo
objetivo é evitar que o público leitor ou a audiência do rádio e da TV desenvolvam uma
leitura crítica da realidade e dos fatos”. (SILVEIRA, 2004, p. 75). O intuito seria manter o
público (população) subserviente ao modo capitalista de produção. Diante desta análise
extraímos duas citações em condições de explicar algumas das possibilidades facultadas à
imprensa na construção e veiculação da notícia capazes de atingir a opinião e a mentalidade
das pessoas sobre os fatos483.

A forma como uma reportagem é editada, o título da reportagem, a


legenda da foto, a foto escolhida pelo editor, o enfoque dado pelo
repórter (e que pode ser mudado na edição), a posição da reportagem
na página – se ela vai abrir uma página, ficando mais visível para os
leitores ou se a notícia ficará escondida num canto ou no pé da página –
são formas de mostrar ao leitor a importância que o jornal e seus editores
deram àquela informação. Por outras palavras, uma informação pode ser
subdimensionada ou superdimensionada, conforme os interesses que
estiverem em jogo no momento. (SILVEIRA, 2004, p. 77).

Atuar no jornalismo é uma opção ideológica, ou seja, definir o que vai


sair, como com que destaque e com que favorecimento, corresponde a
um ato de seleção e exclusão. Esse processo é realizado segundo diversos
critérios, que tornam o jornal um veículo de reprodução parcial da
realidade. Definir a notícia, escolher a angulação, a manchete, a posição
na página simplesmente não dá-la é um ato de decisão consciente dos
próprios jornalistas (MARCONDES FILHO, 1986, p. 12).

No discurso dos grandes veículos de comunicação sobressai a questão e o intuito


de se noticiar com objetividade, um dos principais assuntos discutidos nos cursos de
jornalismo nas universidades. Essa perspectiva cravada no suposto caráter objetivo da
notícia alia-se ao discurso burguês na tentativa de esconder a manipulação dos fatos e
supervalorizar a aparência de valor de uso da informação. Assim tentam (discurso burguês)
estimular uma leitura neutra da imprensa na sociedade, apenas como transmissora da
realidade. O jornalista e professor universitário da PUC-SP, José Arbex Júnior, vai definir
esse entendimento da seguinte forma: “o fato é sempre visto como um objeto fixo no tempo

483
Mestrando em Ciência Política na Universidade Federal do Pará (PPGCP/UFPA) e Bolsista da CAPES.
Atualmente trabalha com eleições, sendo alienação eleitoral (votos brancos, Votos Nulos e Abstenções) o
tema da sua dissertação. Contato: acrisio.victorino@gmail.com ou acrisio@ufpa.br.
938
e no espaço, uma coisa unitária, como um bloco de argila, encerrado em si mesmo, jamais
afetado pelo olho do observador” (ARBEX, 2001, p. 105).
Outras técnicas também sobressaem no âmbito da confecção da notícia, como são
os casos da fragmentação da realidade, da personificação, do maniqueísmo, do
subdimensionamento (ignorar) ou superdimensionamento (valorizar) (SILVEIRA, 2004).
Na quase totalidade das vezes tais técnicas são inseridas na divulgação das notícias de modo
a simplificar as contradições e a complexidade da sociedade, destituindo-a de qualquer
sentido crítico em condições de abrir alguma brecha para o questionamento do modo
capitalista de produção ou de promover um entendimento mais profundo sobre os fatos
sociais. Sem nos estender e explicar cada ponto (técnica), vamos citar o exemplo da
personificação, cujo substrato histórico está circunscrito à política brasileira, como uma de
suas características mais marcantes. Vide uma das críticas mais antigas à organização dos
partidos políticos brasileiros, a inapetência da construção de um processo de
institucionalização duradouro capaz de suprimir os caráteres personalista e individualista
prevalecentes até os dias correntes.
Ao tratarmos da personalização como técnica de manipulação, discorremos
diretamente sobre como o tema da corrupção é tratado pela ampla maioria dos órgãos de
imprensa no Brasil. Isto acontece sem o menor cuidado, destituído de interpretações e
compreensões sociológicas, filosóficas e históricas, aliás, elas “quase” não existem. Dessa
maneira, há um vácuo analítico proposital que se submete à perspectiva nominal, isto é, à
personalização. A corrupção é travestida na figura de pessoas, as quais são identificadas
como sinônimos e responsáveis. Nestes termos, é difícil, tal como divulgado nas últimas
décadas, dissociar os nomes de políticos como Paulo Maluf e Fernando Collor de
escândalos de corrupção. Conforme esta perspectiva analítica, Paulo Maluf, Fernando
Collor e tantos outros seriam os bodes expiatórios do modo capitalista de produção dentro
da lógica burguesa orientadora das ações da imprensa.
Não obstante, constata-se “as determinações histórico-estruturais dos fenômenos,
como responsáveis pelas ocorrências no que se refere à economia e à política, são
desprezados pela visão burguesa” (SILVEIRA, 2004, p. 87). A crítica ou a maquiagem da
notícia fica restrita ao âmbito das pessoas (personalização) distanciando-se de um
questionamento maior à classe dominante. A notícia nunca dá margem à contestação da
classe dominante formando uma barreira difícil de ser transposta. Assim, ao adotar esta
postura, a imprensa foge do comportamento ético, pois direciona a notícia conforme seus

939
interesses promovendo a apatia política, dado que a resolução dos problemas ficaria a cargo
das pessoas.

A personalização da notícia conduz, assim, tanto ao endeusamento


quanto à execração individualizada dos agentes sociais, mantendo seus
verdadeiros suportes, as classes e agrupamentos estruturais maiores,
totalmente distantes dos fatos e de suas implicações. A política torna-se
o espaço das idiossincrasias pessoais, das causações subjetivas, dos
humores deste ou daquele político que age soberanamente na vida
política. A participação e a ação do receptor resumem-se em esperar
pelas atitudes do político e torcer para que ele se lembre dos
desfavorecidos (MARCONDES FILHO, 1986, p. 46).

A imprensa, nestes termos, escamoteia as múltiplas vertentes da notícia (sua


decantada pluralidade), privilegiando umas em detrimento de outras, mais críticas e
questionadoras quanto aos fundamentos do modo capitalista de produção, a exemplo do
que fazem com a questão da corrupção, cujo direcionamento aporta-se na personificação
do problema e não em uma abordagem de caráter mais completo capaz de unir as
determinações histórico-estruturais na construção e veiculação da notícia.

A IMPRENSA BURGUESA DITANDO VALORES E A OPINIÃO DOS


CIDADÃOS SOBRE OS PARTIDOS E OS POLÍTICOS BRASILEIROS

Na esteira dessas compreensões levantamos alguns aspectos do modo de atuação


da imprensa com o propósito de discutir seus possíveis efeitos sobre a organização e
operacionalização dos partidos políticos como da política em geral – perspectiva justaposta
na forma com a qual o receptor da notícia recebe o conteúdo expresso e divulgado pela
imprensa -, tendo em vista a crescente e notória emergência da mídia (imprensa) no
processo de socialização. “A socialização é um processo contínuo que vai da infância à
velhice e é através dele que o indivíduo internaliza a cultura de seu grupo e interioriza as
normas sociais” (LIMA, 2009, p. 20). Nesse contexto, a imprensa vem ganhando terreno
ao mesmo tempo em que instituições sociais como a igreja, a escola e a família vão
perdendo espaço (LIMA, 2009; MILLS, 1962).
É neste âmbito que inserimos a imprensa, como uma instituição que vem
angariando espaço na construção da sociabilidade contemporânea, cujo substrato aparece
na defesa do ideário burguês. Ela, na trilha das teses liberais expressas por Lima (2009, p.

940
19) entre mídia e política, “ocupa uma posição de centralidade484 nas sociedades
contemporâneas permeando diferentes processos e esferas da atividade humana, em
particular, a esfera da política”. Em consonância às teses que entendem a mídia num
patamar central nas sociedades contemporâneas, a imprensa (como subproduto da mídia
e sua principal âncora informativa sobre política) estaria “exercendo várias das funções
tradicionais atribuídas aos partidos políticos”, entre elas, a construção da agenda pública, a
geração e transmissão de informações políticas, a fiscalização das ações dos governos, o
exercício da crítica às políticas públicas, a canalização das demandas da população, entre
outras (LIMA, 2009, p. 22).
Dessa forma, em relação à confiança institucional, a ciência política respalda-se em
duas teorias capazes de explicá-la e compreendê-la: a cultura política e o
neoinstitucionalismo. Assim, existem duas maneiras de entender o tema da confiança
institucional, uma ligada aos aspectos valorativos e outra postada em aspectos pragmáticos.

Em síntese, para a abordagem culturalista a confiança institucional é


compreendida como um fenômeno relacional que depende do contexto
sócio-cultural, das experiências de socialização dos cidadãos e do grau de
confiança interpessoal dos mesmos, sendo a primeira apenas uma
conseqüência desta última. Por sua vez, este contexto sócio-cultural pode
mudar ao longo do tempo, como decorrência de transformações
geracionais ou por processos de modernização econômica e social, que
afetariam as orientações políticas transmitidas nos processos de
socialização. Para a teoria do Neo-Institucionalismo, por sua vez, a
confiança institucional é compreendida como um produto endógeno do
contexto político, decorrente principalmente da performance das
instituições. Assim, mais que a simples aceitação, a complacência ou a
obediência cega as instituições democráticas, transmitidas por uma
cultura política presente nos processos de socialização, a confiança
institucional envolveria a compreensão que os cidadãos fazem do
desempenho prático das instituições, avaliando a forma como estas
desempenham suas respectivas funções. Em outras palavras, a confiança
institucional é um fenômeno relacional, produto da experiência direta
ou indireta dos cidadãos com as instituições – independente dos valores
políticos -, que envolve por um lado, o conhecimento – ainda que
limitado – dos deveres e papeis que estas últimas devem cumprir -
estabelecidos previamente por leis e de conhecimento público -, e por
outro lado, a avaliação racional sobre o desempenho das mesmas,
segundo as expectativas dos cidadãos. É importante lembrar, que a
avaliação do desempenho das instituições vai além dos critérios
exclusivamente econômicos, materiais e abrange critérios que avaliam
também a sua conduta ética, ao tratamento universal, justo, imparcial e
respeitoso (VÁSQUEZ, 2010, p.67-8).

484
Doutor em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – IUPERJ,
professor da Universidade Federal do Pará e Universidade da Amazônia. Contato: carlossouza@ufpa.br.

941
Nestes termos, o tema da corrupção se apresenta de forma constante, quase
ininterrupta no noticiário, moldando e interferindo, até certa maneira, na compreensão do
cidadão sobre os desvios de conduta oriundos da esfera política, seja no plano culturalista
ou neoinstitucionalista. Seguindo esta perspectiva analítica veiculamos a seguir, neste
trabalho, alguns dos principais resultados encontrados nas pesquisas que abordam a
temática da confiança institucional e de como o entendimento da população sobre a
corrupção pode influenciar neste cenário.
De acordo com a pesquisa A Desconfiança dos Cidadãos nas Instituições
Democráticas, de Moisés e Meneguello (2006) (Banco de Dados do Centro de Estudos de
Opinião Pública – CESOP/UNICAMP), o resultado sobre a confiança dos cidadãos
referentes aos partidos políticos foi o seguinte: 80,6 % dos entrevistados responderam ter
pouca ou nenhuma confiança; 19,0% diziam sentir muita ou alguma confiança e 0,4% não
responderam ou não sabiam nada sobre o assunto (VÁSQUEZ, 2010, p. 90). Quanto à
percepção da corrupção no Brasil, a pergunta feita reportava-se aos últimos cinco anos, isto
é, qual era o entendimento do cidadão entre os anos de 2001 a 2006 acerca de um possível
aumento, diminuição ou estagnação da corrupção: 83,2% dos entrevistados acreditaram,
naquela altura, que a corrupção havia aumentado, 07,1% disseram ter diminuída, para
08,5% ficou estável e 1,1% não sabia ou não respondeu (VÁSZQUEZ, 2010, p. 93).
Acerca do comportamento dos políticos e governantes frente a situações de
corrupção política no Brasil, os resultados auferidos indicaram os seguintes números para
a pergunta, qual parcela (entre os políticos e governantes) superfatura obras públicas e
desvia dinheiro para o patrimônio pessoal ou familiar do político: Todos: 31,4%; Maioria:
57,4%; Minoria: 09,8%; Nenhum: 0,2; Não Sabem ou Não responderam: 01,2%. Outro
questionamento realizado foi indagar se mudar de partido em troca dinheiro ou cargo,
emprego para familiares ou pessoas conhecidas seria uma prática comum para Todos
32,1%, Maioria 56,7%, Minoria 09,3%, Nenhum 0,5% e Não Sabem ou Não responderam
01,3%. A terceira pergunta direcionada ao comportamento dos políticos e governantes diz
respeito a usar caixa dois em campanhas eleitorais. Entre os entrevistados, 38,9% disseram
que Todos fazem uso desse expediente, 49,3% apontaram a Maioria, 09,5% a Minoria,
0,9% entendem que Nenhum e 01,4% Não sabem ou Não responderam sobre fazer uso
de caixa dois pelos políticos (VÁSQUEZ, 2010, p. 97).
Em relação à percepção da ocorrência da corrupção entre os políticos no Brasil
foram entrevistados pessoas de forma científica pelo Eseb/CESOP/UNICAMP (2002) e

942
divulgadas por Vásquez (2010, p.97). Para 52,5% dos cidadãos entrevistados, a corrupção
entre os políticos acontece o Tempo Todo; 30,2% disseram acontecer Na Maior Parte do
Tempo; 15,6% diziam acontecer de Vez em Quando e 01,7% apontaram a inexistência de
corrupção entre os políticos (VÁSQUEZ, 2010, p. 97). Inequivocamente, os índices
apontam para um desgaste dos partidos e dos políticos e governantes perante a opinião dos
cidadãos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando elencamos alguns pressupostos que subsidiam a forma de atuação da


imprensa burguesa tomamos contato com um cenário contraditório e paradoxal, no qual
ao invés de informar e facultar a ampliação do debate público em torno dos fatos sociais
mais relevantes e impactantes para o ordenamento e organização da sociedade, observamos
a notícia arquitetada de modo a restringir e parcelar a realidade, conforme os interesses da
classe dominante. Subliminarmente, o propagado discurso liberal, adepto contumaz de
uma imprensa livre e plural, deixa de cumprir suas promessas. Assim a retórica supera os
fatos, gerando efeitos “concretos” na esfera política.
Desde a formação nas universidades, os alunos do curso de jornalismo são
contemplados com um repertório teórico e prático, traduzido e sistematizado em técnicas,
normas e procedimentos com o fim de moldar e padronizar a conduta dos profissionais da
área, de modo a circunscrevê-los (domesticá-los) segundo preceitos pétreos vinculados aos
interesses da classe dominante, a burguesia. Portanto, a amarra burguesa, obviamente
concernente ao modo capitalista de produção, é estabelecida antes mesmo da confecção
da notícia (para além de uma perspectiva centrada na condição classista). Ao chegar às
redações dos jornais, os jornalistas já estão aptos a repercutir o ideário burguês com a maior
naturalidade, sem sobressaltos.
A objetividade, a fragmentação da realidade, a personificação, o maniqueísmo, o
subdimensionamento e o superdimensionamento da notícia, além dos imperativos das
normas técnicas, como o lide enxuto, saltam como características indissociáveis da
imprensa burguesa, cujos efeitos parecem atingir a percepção do cidadão sobre os partidos
políticos e os políticos e governantes em geral, sobretudo se potencializado na perspectiva
teórica da cultura política (culturalista), a qual defende “que a confiança nas instituições por
parte dos cidadãos advém dos processos de socialização” (VÁSQUEZ, 2010, p. 65).

943
Nesse contexto, as técnicas de manipulação aliada à necessidade de venda da notícia
enquanto mercadoria, tragada na ânsia pelo lucro, este avistado em ações de caráter
sensacionalista e denuncista patentes, apagam e deformam o suposto interesse público (da
notícia), incentivando, por meio da defesa dos interesses burgueses, a desmobilização e
apatia políticas, de modo a preservar e jamais questionar as possíveis contradições do modo
capitalista de produção na direção dos acontecimentos e fatos sociais. Não obstante, os
partidos políticos conjuntamente aos políticos acabam sofrendo os efeitos deste
posicionamento classista, uma vez que não há qualquer interesse por parte dos burgueses
em constituir uma sociedade politizada de perfis crítico, reflexivo e participativo. Pelo
contrário, este movimento da imprensa contribui para esvaziar o poder de instituições
político-sociais dotadas de forças com perspectivas contra hegemônicas ao modo capitalista
de produção.
Porém, ressaltamos enfaticamente que este trabalho é apenas o primeiro passo
(caráter incipiente) no sentido de entender e levantar questões sobre os possíveis efeitos do
modo de atuação da imprensa burguesa no comportamento e na representação dos
partidos políticos no Brasil. Doravante, o trabalho assenta-se e direciona-se mais num plano
questionador (analítico-reflexivo) do que em perspectivas conclusivas. Para tanto,
precisamos de mais elementos teóricos e empíricos para suprir as perscrutações cientificas
inerentes à temática em tela.
.
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VÁSQUEZ, Rodrigo Alonso. Confiança Institucional e Corrupção Política no Brasil pós-


1985. Campinas: Unicamp, 2010.

945
OS VOTOS INVÁLIDOS SEGUNDO AS CARACTERÍSTICAS
SOCIODEMOGRÁFICAS E ECONÔMICAS DOS MUNICÍPIOS
BRASILEIROS

Natália Seabra dos SANTOS485

Acrísio Pereira VICTORINO486

Carlos Augusto da Silva SOUZA487

Resumo: Este artigo tem como objetivo principal averiguar o comportamento dos votos inválidos
no Brasil a partir das dimensões, social, demográfica e econômica do eleitorado brasileiro.
Buscamos deste modo analisar a quantidade de votos inválidos nas eleições presidenciais de 2014
fazendo um relação as características socioeconômicas dos municípios brasileiros. Os dados
eleitorais foram coletados no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e os sociodemográficos e
econômicos no Atlas do Desenvolvimento Humano do PNUD (Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento), inseridos no SPSS oferecendo, desta forma, condições para análise dos
condicionantes dos votos inválidos. Partimos da evidência, de que os municípios com menor
padrão de desenvolvimento apresentam maiores níveis de votos inválidos.

Palavras-chaves: Eleições Presidenciais. Votos Inválidos. Social. Demográfica. Econômica.

INTRODUÇÃO

Por exercer uma influência direta na formação dos governos, o voto é a forma mais
recorrente da participação política nas democracias modernas e emergentes, fazendo com
que o comportamento eleitoral seja frequentemente objeto de estudos na área da ciência
política (FREIRE, 2002). No Brasil, assim como nos demais países em que vigora o voto
obrigatório, a literatura tem indicado que há uma tendência de se enxergar o voto inválido
como “não-participação”, protesto ou insatisfação do eleitor com o processo político
(PEREA, 1999; FREIRE, 2002; BORBA, 2008; NICOLAU, 2004; SILVA, 2013).
No Brasil, mesmo com a adoção do voto obrigatório, o eleitor tem a opção de
anular ou votar em branco. No caso da anulação, o eleitor digita na urna eletrônica um

485
Conforme Downs (1999), somente em contexto de estabilidade política é que se pode realizar cálculos de
custos e benefícios.
486
Novamente, resgatando a experiência de mesário nas eleições desse que vos escreve, é possível conjuntura
que partes das anulações se dão por erro de digitação. Não foram poucas as vezes que eleitores saíram da
cabine de votação sem ter concluído o processo, comumente, esses alegaram que já tinham votado nos seus
candidatos. Também não foram raras as vezes em que a urna deu a indicação sonora do encerramento da
votação e o eleitor continuou digitando. Quando indagado
946 de que sua votação havia encerrado, o eleitor
reagiu afirmando que ainda não havia votado em todos os seus candidatos.
487
http://www.tse.jus.br/
número que não corresponde a nenhum candidato inscrito naquele distrito e o voto em
branco, corresponde aquele eleitor que simplesmente aperta a tecla “branco” presente na
urna eletrônica. Os votos inválidos seriam, então, o somatório dos votos brancos com os
votos nulos e são assim determinados, porque não são computados para efeito de
determinação dos candidatos vencedores.
Pesquisas preocupadas em entender as causalidades dos votos inválidos tem sido
levado a cabo nas atuais reflexões sobre a política brasileira. Nas últimas décadas do seculo
XX, o debate ganhou força e centralidade, se destacando nas agendas de pesquisa na área
da ciência política e da sociologia política. Alguns estudos, além dos votos inválidos,
agregam também a variável abstenção, que refere-se aquela parcela do eleitorado que,
mesmo estando inscrito como eleitor de determinado distrito, simplesmente não
comparece às urnas no dia da eleição. A inclusão das abstenções com os votos inválidos
designaria a chamada “alienação eleitoral” de acordo com Santos (1987), assim designada
por estabelecer uma situação em que o eleitor não participa do processo político,
considerando-a lato sensu, temos estudos eleitorais focados na participação eleitoral, assim
como na não participação eleitoral (LIMA JUNIOR, 1990; CASTRO, 1992; FREIRE,
2001; BOHN, 2004; COSTA, 2007; BORBA, 2008; FIGUEIREDO, 2008; JUNIOR,
2009; BAQUEIRO, 2010; NICOLAU, 2012; SILVA, 2014; RIBEIRO, 2015;
VICTORINO, 2016), dentre outros estudos.
Apesar dos diferentes focos sobre o mesmo fenómeno, todos atores são unanimes
em afirmar que o comportamento eleitoral não obedece uma única dimensão, dai que é
necessário tem em conta outras dimensões, com vista a ter uma visão mais ampla sobre a
casualidade deste fenómeno, pois o que leve o eleitor a invalidar seus votos não é o mesmo
que o leva a não comparecer (LIMA JÚNIOR, 1990, 1993). Entretanto, não se pode
atribuir a mesma casualidade de determinado comportamento eleitoral nas democracias
ocidentais, como sendo as mesmas nas democracias emergentes concretamente as das
terceiras ondas de democratização (América Latina e Africa) (FORNOS, 2004;
VICTORINO, 2016).
O trabalho procurará dar uma contribuição ao entendimento de um dos maiores
"dramas" da atual experiência democrática brasileira: o alto contingente de votos anulados
e deixados em branco pelos eleitores. De acordo com Nicolau (2004), o país era campeão
mundial de votos anulados (nas eleições para a Câmara dos Deputados de 1990, a taxa foi
de 43%). O fato de que um segmento do eleitorado vota de forma inválida é uma das
justificativas para a realização da pesquisa do comportamento eleitoral, porém, a

947
identificação exata dos fatores que influenciam na ocorrência de votos brancos e nulos
tendem a apresentar algumas unanimidades.
Em larga medida, os votos anulados eram fruto de uma combinação ruim entre
eleitores com baixa escolaridade média e uma das cédulas eleitorais mais complexas do
mundo. As urnas eletrônicas foram usadas pela primeira vez em 1996. Portanto, a
investigação sobre o voto inválido pode nos possibilitar compreender questões importantes
sobre a qualidade da democracia (em especial, a relação do eleitorado com as instituições
políticas) e, mais especificamente, da relação do eleitor com o voto e com sua
obrigatoriedade. Sua relevância se expressa, primeiro, no fato de que, apesar do voto ser
obrigatório, as taxas são significativas (NICOLAU, 2004).
Assim, o artigo está organizado da seguinte forma: além da parte introdutória,
reservamos a segunda parte para uma breve apresentação do debate sobre a casualidade
da alienação eleitoral. A terceira parte faz menção as opções metodológicas, na quarta
parte, apresentamos o comparecimento eleitoral nas eleições presidenciais no Brasil. Por
fim, são apresentados e analisados nossos dados empíricos.

DEBATE EM TORNO DA CASUALIDADE DA ALIENAÇÃO ELEITORAL

Para Santos (1987), as três categorias que compõem a alienação eleitoral (abstenção,
votos nulos e brancos), comungam da mesma base causal: a falta de credibilidade e as
incertezas atribuídas aos processos macro políticos em vigência no exato contexto da
eleição em análise. Esse cenário, marcado por incertezas, não permite cálculos seguros
acerca dos retornos da participação eleitoral488, cabendo à alienação, a opção mais “ótima”.
Como dedução lógica, a alienação pode ser concebida como reprovação da conjuntura
política e das principais instituições que estão envolvidas no jogo político. Quanto maior é
a taxa de alienação, maior é a reprovação.
A atribuição a mesma casualidade para as três modalidades de comportamento
eleitoral que fazem parte da alienação eleitoral, passou por enormes olhares críticos por
parte dos politólogos brasileiro. [.....] no entanto, que a interpretação do comportamento
eleitoral alienado, na medida em que agrega manifestações eleitorais diferentes, esteja
equivocada do ponto de vista dos fatores determinantes da alienação. Ou seja, o que leva
o eleitor a se abster não é exatamente o que leva o eleitor a votar em branco ou a anular o
voto (LIMA JÚNIOR, 1993, p. 101). De acordo com o autor, é necessário desagregar a

488
http://www.ibge.gov.br/

948
alienação eleitoral, analisando cada modalidade de comportamento eleitoral
separadamente.
Portanto, as abstenções estariam relacionados com fatores ecológicos como
dimensão territorial, condições de infraestrutura e grau de urbanização do município que
impõem uma certa dificuldade no deslocamento dos eleitores as urnas. Enquanto fatores
de natureza socioeconômico de natureza individual (baixos índice de escolaridade,
principalmente), estaria relacionado com a abstenção, votos brancos e nulos (LIMA
JÚNIOR, 1993).
Assim, o autor qualificou as contribuições de Santos (1987), refinando a
compreensão do fenômeno e alertando para,

[...] a desigualdade relativa no acesso ao voto. Há barreiras de natureza


física e social que, evidenciando a desigualdade reinante no país, devem
ser eliminadas, sob pena de continuarmos a conviver com cidadãos de
primeira e de segunda categoria. Levar o sufrágio universal às últimas
consequências como se fez com a permissão do voto do analfabeto é
apenas o primeiro passo. A eliminação dessas barreiras é condição para
o aperfeiçoamento das instituições democráticas (LIMA JÚNIOR, 1993,
p. 1).

No entanto, apesar das motivações que cada fenômeno constitui, o alienamento


eleitoral seja oposto entre si (votos nulos genericamente são relacionados a protesto, votos
em brancos, ao desinteresse e abstenções, a rejeição aos candidatos ou ao comodismo), o
impacto causado pelo comportamento eleitoral sob o distanciamento da legitimidade do
sistema representativo é idêntico para as três formas avançadas de ação (RAMOS, 2009).
Em torno deste debate sobre votos válidos e alienação eleitoral, podemos aferir que
o voto válido refere-se à efetiva escolha dos representantes pelos eleitores, e a alienação
eleitoral por sua vez significa a falta da escolha dos representantes, sendo que toda ação
social é sujeita a uma intenção, então se torna fundamental observar o comportamento do
eleitorado alienado (votação por meio de voto branco, nulo e abstenção) ligado ao
comportamento político (apatia e protesto) e, por conseguinte às possíveis motivações
(alienação, satisfação ou insatisfação política) que são dimensões subjetivas do processo
político (RAMOS, 2009).
Estudos lavado acabo por Nicolau (2002, 2003), refutam a ideia de que o voto
branco e nulo são frutos exclusivos de uma atitude de protesto, para este autor uma boa
parte das anulações são decorrentes do perfil específico do eleitorado com baixa renda e
escolaridade, o que faz com que esse eleitor tenha uma certa dificuldade na

949
operacionalização do voto na urna eletrônica, anulando-o em decorrência de erro de
digitação e não de ação deliberada como no caso de protesto. Contudo, podemos afirmar
que os autores alegam que as variáveis ligadas a idade, renda e condições ecológicas estão
diretamente ligadas a abstenção eleitoral, enquanto, a escolarização, as questões técnicas e
de regras institucionais estão ligadas a participação materializada através do voto branco e
nulo.
Em torno da necessidade de desagregação dos diferentes comportamentos
eleitorais que compõem a alienação eleitoral, Borba (2008), procurou testar algumas
variáveis, partindo de uma pesquisa pós-eleitoral, do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB
2002), e chegou a seguinte conclusões: I - Abstenção: inversamente relacionada à renda e
à escolaridade, quanto maiores forem a renda e a escolaridade do eleitor, menores são as
chances de ele se abster. Quanto às variáveis atitudinais, os dados apontam que a decisão
de se abster está pouco relacionada “[...] à forma como o cidadão percebe a política e suas
instituições (nenhuma associação significativa)” (p. 151). II- Voto branco e nulo: obedecem
outra lógica. Eleitores mais insatisfeitos com o funcionamento das instituições políticas
apresentaram maior inclinação pela opção branco/nulo. Assim como aqueles eleitores que
“[...] nutrem um alto sentimento de eficácia política subjetiva também são menos propensos
a anular ou votar em branco” (p. 151).
Dessa forma, Borba (2008) apontou a plausibilidade das explicações racionalistas
e/ou sociológicas para o fenômeno da alienação, concebendo-a na sua forma desagregada,
além de dar ênfase à dimensão da cultura política. Segundo o autor,

[...] apesar da limitação dos instrumentos e testes utilizados, apontam


para a importância da dimensão da cultura política na compreensão dos
fenômenos da alienação, principalmente se considerarmos sua expressão
nos votos brancos e nulos. Reconhece-se, porém, que uma melhor
interpretação do fenômeno, exigiria ampliar bases de dados e técnicas de
análise [...] (BORBA, 2008, p. 152-153)

Na mesma lógica, Silva (2013), testou diversas em torno da casualidade da alienação


eleitoral e chegou as seguintes conclusões: 1) os determinantes das abstenções não são os
mesmos do voto inválido; 2) em relação às abstenções, o autor apontou a existência de
barreiras “[...] oriundas da própria estrutura social marcadamente desigual no país, criando
obstáculos sociais que pesam no momento decisório de se dirigir às urnas” Silva (2013, p.
131); e por fim, 3) o autor reafirma a necessidade de se matizar a tese do protesto, já que

950
parte das anulações estão associadas a baixos indicadores de escolaridade489, conforme os
dados agregados indicaram.
Contudo, podemos afirmar que os autores alegam que as variáveis ligadas a idade,
renda e condições ecológicas estão diretamente ligadas a abstenção eleitoral, enquanto, a
escolarização, as questões técnicas e de regras institucionais estão ligadas a participação
materializada através do voto branco e nulo.

QUESTÕES METODOLÓGICAS

Os procedimentos metodológicos utilizados neste artigo consistiram na coleta de


dados eleitorais no site do Tribunal Superior Eleitoral490 nas últimas eleições ao nível
presidencial, optou-se trabalhar com o cargo político máximo do pais, pelo fato que o
executivo é o centro de gravidade do sistema político brasileiro, assumindo assim o poder
central na agenda dentro do congresso bem como o imaginário social do eleitor.
Procuramos selecionar algumas variáveis apontadas pela literatura como relevante na
explicação desse fenómeno, estes dados foram colhidos juntos a base de dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística491.
Optamos em trabalhar apenas com votos brancos e nulos, excluindo assim as
abstenções para este caso, isto deve-se ao fato que os números das abstenções nem sempre
representam o real numero dos eleitores abstencionistas, devido desatualização do cadastro
eleitoral do TSE, tendo em conta que esse processo é realizado durante um longo período
antes do processo eleitoral, isto leva com que não seja possível remover aqueles eleitores
que tenham perdido a vida ao longo desse processo bem como aqueles que por algum
motivo tiveram que mudar de residência depois do fecho do cadastro eleitoral.
Para ilustrar o desnível em relação a desatualização dos cadastros, comparou-se os
resultados eleitorais de 2006 e 2014 no âmbito do comparecimento eleitoral e abstenção
como podemos observar na tabela 1. Observa-se que o estado do Pará (PA) apresentou
redução em -1,2% no comparecimento eleitoral, assim como o estado do Ceará (CE) que
reduziu o comparecimento em -2,7%, o estado da Paraíba (PB) com redução em -2,2%,
porém a maior redução no comparecimento eleitoral ocorreu no estado do Rio de Janeiro

489
Mestre em Comunicação Midiática – Unesp Bauru, Bacharel e Licenciada em Ciências Sociais – Unesp
Araraquara. jmarquescarvalho@hotmail.com
490
Informações retiradas do site EBC http://www.ebc.com.br/institucional/governanca-corporativa/conselho-
de-administracao-consad
491
Esse e outros motivos para a alteração da Lei 11.652, pode ser consultado no seguinte link: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Exm/Exm-MP-744-16.pdf
951 >
(RJ) com -5,3%, enquanto as abstenções aumentaram em 28,4% no estado do RJ. A maior
variação percentual negativa de abstenções ocorreu no estado do Amapá (AP) com redução
de -39,7%.

TABELA 1: COMPARAÇÃO DO PERCENTUAL DE COMPARECIMENTO


ELEITORAL E ABSTENÇÃO NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NOS ANOS
2006 E 2014 NO BRASIL

Comparecimento (%) Abstenção (%)


UF Variação (%) Variação (%)
2006 2014 2006 2014
AC 72,2 82,7 14,4 27,8 17,3 -37,6
AM 70,5 80,5 14,2 29,5 19,5 -33,9
AP 82,7 89,6 8,3 17,3 10,4 -39,7
PA 79,9 78,9 -1,2 20,1 21,1 4,9
RO 75,3 78,6 4,4 24,7 21,4 -13,5
RR 81 87,6 8,1 19 12,4 -34,5
TO 78,2 80,4 2,9 21,8 19,6 -10,2
AL 79,7 80,8 1,4 20,3 19,2 -5,6
BA 76,6 76,8 0,3 23,4 23,2 -0,9
CE 82,1 79,9 -2,7 17,9 20,1 12,6
MA 76,7 76,4 -0,4 23,3 23,6 1,3
PB 84,2 82,4 -2,2 15,8 17,6 11,5
PE 80,2 83,5 4,1 19,8 16,5 -16,4
PI 80,7 81,1 0,5 19,3 18,9 -2,3
RN 83,8 83,2 -0,8 16,2 16,8 3,9
SE 84 85,3 1,6 16 14,7 -8,4
DF 86,1 88,3 2,6 13,9 11,7 -16
GO 81,9 81,2 -0,9 18,1 18,8 3,9
MS 81,4 79,5 -2,3 18,6 20,5 10,3
MT 78,1 77,1 -1,4 21,9 22,9 4,8
ES 81,7 81,1 -0,7 18,3 18,9 3
MG 81,4 80 -1,8 18,6 20 7,9
RJ 84,3 79,9 -5,3 15,7 20,1 28,4
SP 83,5 80,5 -3,7 16,5 19,5 18,5
PR 83,4 83,1 -0,3 16,6 16,9 1,6
RS 85,7 83,2 -2,9 14,3 16,8 17,7
SC 85,6 83,6 -2,3 14,4 16,4 13,5
Fonte: TSE, elaborado pelo autor 2017.
OBS: O % de Variação é igual ao Δ%= 100.[(AT /AN) -1]; onde AT(Valor Atual) e AN(Valor Anterior).

As variáveis critérios do estudo são os votos brancos e votos nulos, chamados votos
inválidos, para cada um dos 5.575 municípios brasileiros. Foram incluídas na análise
variáveis de nível sociodemográfica e econômica como variáveis previsoras. Sendo, número
de residentes total do município, número de residentes homens, nº de residentes mulheres,
área total (km²), Índice de Desenvolvimento Humano Municipal - IDHM (2010), IDHM
Renda (2010), IDHM Longevidade (2010), IDHM Educação (2010), PIB per capita,
percentual de indivíduos ocupados com nível de escolaridade superior completo com

952
idade de 18 anos ou mais (2010), tamanho do eleitorado apto a votar, tamanho do
eleitorado feminino e eleitorado masculino. Os dados sobre extensão territorial e
densidade eleitoral de cada município brasileiro foram extraídos do Anuário Estatístico do
IBGE de 2010.
Os dados foram submetidos à análise de Regressão pelo Método dos Mínimos
Quadrados e para identificação e descrição dos dados, foi empregada análise descritiva,
sendo informados os valores absolutos e relativos dos resultados obtidos, bem como a
obtenção de medidas de tendência central e dispersão quando pertinente. O nível de
significância adotado foi p < 0,05. Tais análises foram executadas por meio do software
SPSS 20.0.

COMPARECIMENTO ELEITORAL NO BRASIL NAS ELEICOES


PRESIDENCIAIS DE 2014

Em relação ao comparecimento eleitoral entre as regiões brasileiras estão


sumarizadas na tabela 2, a seguir, revelando percentuais elevados e uma média de
participação de 80,7 % no país. A tabela 2 apresenta uma comparação do percentual de
comparecimento eleitoral e abstenção nos anos 2006 e 2014, nas eleições presidenciais no
Brasil. Observa-se que na região Norte ocorreu um aumento de 2,5% no comparecimento
eleitoral, enquanto as abstenções reduziram em 9,1%. A maior variação percentual de
comparecimento eleitoral ocorreu na região Sudeste com redução de 3,3%, além disso,
esta região também apresentou a maior variação percentual de abstenções com aumento
de 15,9%.

TABELA 2: COMPARAÇÃO DO PERCENTUAL DE COMPARECIMENTO


ELEITORAL E ABSTENÇÃO NAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS NOS ANOS
2006 E 2014 NO BRASIL

Comparecimento Abstenção
Região/UF Variação (%) Variação (%)
2006 2014 2006 2014
Norte 78,2 80,2 2,5 21,8 19,8 -9,1
Nordeste 80,1 80,0 -0,1 19,9 20,0 0,5
Centro Oeste 81,7 81,3 -0,4 18,3 18,7 2,0
Sudeste 83,0 80,3 -3,3 17,0 19,7 15,9
Sul 84,7 83,3 -1,7 15,3 16,7 9,3
Brasil 82,0 80,7 -1,6 18,0 19,3 7,3
Fonte: TSE, elaborado pelo autor 2017.
OBS: O % de Variação é igual ao Δ%= 100.[(AT /AN) -1]; onde AT(Valor Atual) e AN(Valor Anterior).

953
A figura 1 mostra que em média o comparecimento é significativamente superior
na região sudeste do país (µ = 24.766). Observa-se que a região Sul apresentou a menor
média de comparecimento eleitoral nas eleições presidenciais do ano 2014.

Gráfico de Intervalos de COMPARECIMENTO versus REGIÃO


IC de 95% para a Média

26000
24765.8
COMPARECIMENTO ELEITORAL

24000

22000

20000

18000
17502.9
16000
15829.4
14000 13584.9
13192.3
12000

10000
Centro Oeste Nordeste Norte Sudeste Sul
REGIÃO
O desvio padrão combinado foi usado para calcular os intervalos.

Figura 1: Média do comparecimento eleitoral nas eleições presidenciais do ano 2014 no Brasil, por Região
Fonte: TSE, elaborado pelo autor 2017.
Teste T de Student para comparação de médias.
P-Valor <0.0001**
NS
** Valores Altamente significativos; *Valores Significativos; Valores Não Significativos.

A figura 2 aponta que a região sudeste apresenta a maior diferença média de


comparecimento quando comparada com a região Norte, de forma que a região Sudeste
apresentou média de comparecimento (µ = 5.878.37) superior à média de comparecimento
da região Norte, esta foi a maior diferença observada.

Figura 2: Média do comparecimento eleitoral nas eleições presidenciais do ano 2014 no Brasil, por Região.

954
As figuras 1 e 2 mostram que as regiões brasileiras diferem significativamente no
que refere ao percentual de comparecimento eleitoral, de forma que a região Sudeste
apresentou a maior média de comparecimento eleitoral nas eleições presidenciais de 2014,
quando comparada com a média de comparecimento eleitoral da região norte, uma
diferença de 5.878,37 ≈ 5.878 votos

DETERMINANTES DOS VOTOS BRANCOS E NULOS

Apresentada a variável que neste estudo assume o posto de variável dependente


(votos inválidos), a serem explicadas, passa-se para a identificação dos melhores preditores,
a elas. O primeiro passo foi fazer um teste de correlação binária, R de Pearson, com as
possíveis variáveis independentes e a dependente, para testar a existência de relação entre
elas.
Observa-se na tabela 3 que, com exceção da variável Área total (km²) (p>0.05),
todas as variáveis mostraram-se altamente correlacionadas (p<0.05) com a variável votos
inválidos (variável resposta). Algumas variáveis como, quantidade de residente total,
residentes masculinos e femininos, apresentaram valor do (r) acima de 70%, o que indica
que estas variáveis têm correlação positiva perfeita com os votos inválidos. No caso dos
demais indicadores, a correlação não se mostrou forte, porém positiva e significativa
(p<0.05), ou seja, à medida que o indicador aumenta, aumenta também a quantidade de
votos inválidos nos municípios, como mostra a tabela 3.
TABELA 3: TESTE DE CORRELAÇÃO DE PEARSON ENTRE AS VARIÁVEIS
DEPENDENTES VS INDEPENDENTE

Variáveis Independentes ↑r ↓p-valor Variáveis Independentes ↑r ↓p-valor


0.982 0.117
Residente Total IDHM Educação (2010)
0.000** 0.000**
0.981 0.069
Residentes Masculinos PIB per capita
0.000** 0.000**
0.983 Percentual de Ocupados com Nível 0.217
Residentes Femininos
0.000** Superior, maior de 18 anos 0.000**
0.000 0.366
Área total (km²) Eleitorado Apto
0.992ns 0.000**
0.118 0.369
IDHM (2010) Eleitorado Feminino
0.000** 0.000**
0.126 0.363
IDHM Renda (2010) Eleitorado Masculino
0.000** 0.000**
IDHM Longevidade 0.070
(2010) 0.000**
Fonte: TSE (2014) e IBGE (2010), elaborado pelo autor 2017.
Teste de Correlação de Pearson.

955
Variáveis Independentes ↑r ↓p-valor Variáveis Independentes ↑r ↓p-valor
↑ Grau de Correlação (r).
↓ Nível de significância (p<0.05).
NS
** Valores Altamente significativos; *Valores Significativos; Valores Não Significativos.

Para avaliar o grau de associação entres as nossas variáveis critérios e previsoras,


optamos pelo modelo estatístico descrito nessa fórmula:
𝑌𝑖 = 𝛽0 + 𝛽1 𝑋1 + 𝛽2 𝑋2 + ⋯ + 𝛽𝑘 𝑋𝑘 + 𝜀

É chamado de modelo de regressão linear múltipla com k variáveis preditoras. Os


parâmetros β1 (i = 1 a k) são chamados de coeficientes de regressão parciais. O εi
corresponde ao erro que está associado a distância entre o valor observado Yi e o
correspondente ponto na curva para o mesmo nível i de X. Uma vez obtida estas
estimativas, podemos escrever a equação estimada.
A equação de regressão é: Votos Inválidos = - 2.803 - 0.582 Residentes Homens +
0.670 Residentes Mulheres + 49.155 IDHM (2010) -19.464 IDHM Renda (2010) -18.013
IDHM Educação (2010) + 0.006 PIB per capita - 156 percentual dos ocupados com nível
superior de escolaridade, maior de 18 anos – 0.196 Eleitorado Feminino + 0.225
Eleitorado Masculino.
A tabela 4 mostra os coeficientes, erro padrão, valor do teste T e significância das
variáveis preditoras que compõem o modelo de regressão múltipla. O parâmetro β0
corresponde ao intercepto do plano com o eixo z. Se x = (x1, x2) = (0, 0) o parâmetro β0
fornece a resposta média nesse ponto. Caso contrário, não é possível interpretar o
parâmetro β0. O parâmetro β1 indica uma mudança na resposta média a cada unidade de
mudança em x1, quando as demais variáveis são mantidas fixas. De forma semelhante é a
interpretação para os demais parâmetros.
Usando os dados das eleições presidências de 2014 e uma rotina de Regressão
Múltipla computadorizada – como a que se encontra no software SPSS 20.0, os resultados
obtidos são apresentados na tabela 2. Verifica-se na tabela 2 que a constante (β0 = -2803,4)
do modelo é negativa, ou seja, quando Xi é igualado a zero, cada município brasileiro reduz
o valor médio de votos brancos e nulos (votos inválidos) em -1433.4 votos. As variáveis,
Área total (km²) (X3) (p>0.05) e IDHM Longevidade (2010) (X6) (p>0.05) não influenciam
significativamente na quantidade de votos inválidos. Observa-se que o aumento de
indivíduos residentes do sexo masculino reduz em -0.582 a quantidade de votos brancos e
nulos (votos inválidos) nas eleições presidenciais nos municípios brasileiros, enquanto o
aumento de indivíduos residentes do sexo feminino aumenta em 0,670 a quantidade de

956
votos inválidos nas eleições, ou seja, o aumento de votos inválidos ocorre na população
feminina.
Quando se trata da variável IDHM (2010) (X4), verifica-se que o aumento de uma
unidade nesta variável implica em um aumento médio de 49.155 votos brancos e nulos nas
eleições presidenciais no Brasil. Enquanto o aumento do IDHM Renda (2010) (X5) implica
na redução média de votos inválidos em -19.464, de forma semelhante ocorre com a
variável IDHM Educação (2010) (X7) que seu aumento implica na redução média de -
18.013 votos inválidos.
O aumento do PIB per capita (X8) implica no aumento médio de votos inválidos
em 0.006 para cada município brasileiro. O aumento de uma unidade no percentual de
indivíduos ocupados com nível superior e maior de 18 anos (X9) prevê a redução média de
votos inválidos em -156.67 ≈ 157 votos. Com relação a esta variável, que inclui o aumento
da idade, juntamente com o nível de escolaridade, podemos observar o estudo de Silva et
al. (2015) que verificou que a idade produz um efeito significativo e negativo, de modo que
quanto maior o número de anos de vida do indivíduo, menor a probabilidade de que seu
voto seja branco ou nulo, reduzindo as chances em 1,7% a cada ano de idade. Nesse
sentido, o resultado coaduna com os argumentos de autores como Dalton (2013), que
afirma que a inserção na vida adulta (por conta de alterações como a condição de estudante
a trabalhador e a constituição de família) está relacionada a repertórios de participação
política convencionais. Ainda que a variável se relacione ao comparecimento eleitoral, o
entendimento é de que o maior envolvimento em meios tradicionais de engajamento
político interfere, em alguma medida, na decisão do voto
O aumento do eleitorado, por sexo, nas eleições presidenciais no Brasil, implica na
redução média de votos inválidos em -0,196 entre o eleitorado feminino e aumento médio
de votos inválidos em 0,225 entre o eleitorado masculino. Todas as variáveis influenciam
significativamente (p<0.05) na variável Y (votos inválidos), exceto Área total (km²) (X3) e
IDHM Longevidade (2010) (X6), pois o p-valor é maior do que 0.05.

TABELA 4: COEFICIENTES, ERRO PADRÃO, VALOR DO TESTE T E


SIGNIFICÂNCIA DAS VARIÁVEIS PREDITORAS QUE COMPÕEM O
MODELO DE REGRESSÃO MÚLTIPLA

Coeficientesa
Coeficientes não Coeficientes
Modelo padronizados Padronizados t Sig(1).
B EP B
1 (Constant) -2.803 785,193 -3,570 ,000**

957
Coeficientesa
Coeficientes não Coeficientes
Modelo padronizados Padronizados t Sig(1).
B EP B
Qtd de Residentes Homens -0,582 ,020 -3,576 -28,867 ,000**
Qtd de Residentes Mulheres 0,670 ,018 4,582 36,843 ,000**
Área total (km²) -0,008 ,006 -,003 -1,216 ,224ns
IDHM (2010) 49.155 21812,689 ,226 2,254 ,024*
IDHM Renda (2010) -19.464 7626,894 -,100 -2,552 ,011*
IDHM Longevidade (2010) -7.608 5980,558 -,022 -1,272 ,203ns
IDHM Educação (2010) -18.013 8789,509 -,107 -2,049 ,040*
PIB per capita 0,006 ,002 ,008 3,389 ,001**
% dos ocupados com nível
-156 14,375 -,036 -10,899 ,000**
Superior e maior de 18 anos
Qtd Eleitorado Feminino -0,196 ,024 -1,063 -8,327 ,000**
Qtd Eleitorado Masculino 0,225 ,028 1,037 8,149 ,000**
a. Variável Dependente: Votos Inválidos.
Fonte: Dados resultantes da pesquisa (2017).
(1)
Teste T (p-valor <0.05).
** Valores Altamente significativos; *Valores Significativos; NS Valores Não Significativos.
2
Coeficiente de determinação do modelo (R = 98,2%).
B: Coeficiente Beta; EP: Erro Padrão.

Para Schmoloff (2009) a crise política na Europa está vinculada aos partidos
políticos, já na América Latina deriva muito mais de problemas sociais. Diante desse
contexto Elkins (2000) fez um importante estudo, onde dividiu o eleitor por tipologias, e
chegou a uma imprescindível conclusão: O grau de escolaridade influi demasiadamente
nos níveis de participação política.
De forma semelhante ao resultado encontrado em nossa pesquisa, Power e Garand
(2006), ao realizarem um estudo sobre o comportamento dos votos brancos e nulos em
países europeus, Estados Unidos e Austrália, mostraram que fatores sociodemográficos
como, taxa de alfabetização e nível de educação da população estão significativamente
associados com menores níveis de voto inválido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados do modelo de previsão nos apontam que os fatores IDHM renda,


IDHM educação e percentual de ocupados com idade superior a 18 anos de idade estão
relacionados com os níveis mais baixos de votos inválidos, de modo que, quanto mais
elevados estes indicadores forem, menores serão as taxas de votos inválidos nas eleições
presidenciais no Brasil. Além disso, a taxa de votos inválidos aumenta em conformidade
com o aumento do eleitorado masculino e diminui com o aumento do eleitorado feminino.

958
A previsão do modelo para o nível de votos inválidos é negativa quando diante do
aumento das variáveis independentes, quantidade de residentes homens, IDHM Renda
(2010), IDHM Educação (2010), percentual de ocupados com idade superior a 18 anos de
idade e quantidade do eleitorado feminino.
Os resultados da nossa pesquisa acabam corroborando com a tese de que os votos
inválidos estão ligado com o perfil do eleitorado, bem com as características sociais,
económica e demográfica de uma determinada região (NICOLAU, 2004, BORBA, 2008,
SILVA, 2014). Dessa forma, os dados parecem indicar que há uma maior possibilidade de
ocorrência de votos inválidos numa determinada eleição estão associadas a baixos
indicadores de escolaridade, idade, tamanho da área do colégio eleitoral, sexo e renda do
eleitorado.

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960
GT 06 – ESTADO, SOCIEDADE,
POLÍTICAS PÚBLICAS E INSTITUIÇÕES
POLÍTICAS

961
O FIM DO CONSELHO CURADOR: UMA ANÁLISE SOBRE A
EXTINÇÃO DA PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL E AS
MUDANÇAS NA ESTRUTURA DA EBC

Juliana Marques de Carvalho CAMARGO492

Resumo: A Empresa Brasil de Comunicação (EBC) foi criada em 2007, no governo do então
presidente Luis Inácio Lula da Silva, após anos, com a confirmação do impeachment da presidenta
Dilma Rousseff e início do governo Michel Temer, a EBC teve sua estrutura alterada por meio de
uma medida provisória, convertida na Lei 13.417 de 2017. Essas mudanças foram muito criticadas,
por setores que reivindicavam a existência de um diálogo por parte do governo para a
implementação dessas alterações. A extinção do conselho curador recebeu várias críticas, ele
possuía amplas atribuições e era tido como um canal de participação de representantes da
sociedade civil na definição da produção, programação e distribuição de conteúdo, permitindo
assim uma certa autonomia da EBC em relação ao governo federal. Com a extinção do Conselho
Curador, a EBC passa a ser administrada por um Conselho de Administração e por uma diretoria
Executiva. Neste sentido, o presente artigo tem por objetivo, levando em conta o momento de
criação da EBC e o contexto atual, analisar a partir da diminuição da interferência da sociedade
civil na sua administração com o fim do Conselho Curador a situação da EBC diante dessas
mudanças. Não perdendo de vista que o Conselho Curador foi o responsável por várias ações entre
as quais recomendar e cobrar a diversidade de gênero, raça, orientação sexual e acessibilidade em
todos os conteúdos e também a promoção de audiências públicas para o debate de diferentes
temas, como produção independente e regional. A reflexão sobre o futuro da EBC e
consequentemente do futuro da comunicação pública é necessária diante deste contexto de
mudanças e incertezas.

Palavras-chave: Comunicação Pública. Conselho Curador. EBC.

INTRODUÇÃO

A realização do I Fórum de TV Pública colocou novamente em pauta o papel dos


veículos públicos de comunicação, visto que um sistema público fortalecido é uma das
condições para ocorrer a democratização dos meios de comunicação.
A criação pelo governo da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), em 2007,
pretendendo instituir, pela primeira vez no país, um sistema público de TV independente
da tutela governamental e um modelo de gestão mais democrático (SILVA; GOBBI,
2010), deu-se como marco diferenciando de tudo aquilo que havia sido proposto
anteriormente em relação à televisão pública.
A EBC é responsável pela administração dos quatro canais federais que fazem parte
da TV Brasil, que passaram a ter sua transmissão unificada a partir de 2 de dezembro de

492 o
Lei 11.652 Art. 5 : Fica, o Poder Executivo, autorizado a criar a empresa pública denominada Empresa
Brasil de Comunicação S.A. - EBC, vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República.
962
2007. Desse modo, no país somente com a criação da EBC, que o sistema público de
comunicação despontou gerando diversos debates sobre a função a ser desempenhada por
esta nova rede.
A lei n° 11.652/2008 instituiu os princípios dos serviços de radiodifusão pública e
os seus objetivos, entre os quais, art 3° inciso I “oferecer mecanismos para debate público
acerca de temas de relevância nacional e internacional”; inciso II “desenvolver a
consciência crítica do cidadão, mediante programação educativa, artística, cultural,
informativa, científica e promotora de cidadania; inciso III “fomentar a construção da
cidadania, a consolidação da democracia e a participação na sociedade, garantindo o direito
à informação, à livre expressão do pensamento, à criação e à comunicação”; além de
permitir ao Poder Executivo constituir a EBC (BRASIL, 2008).
Depois de anos em vigor, a Lei 11.652 é alterada quando o Presidente Michel
Temer assume o governo com o impeachment da então Presidenta Dilma Rousseff. Assim,
em março de 2017 passa a vigorar a Lei 13.417, que realiza diversas mudanças na estrutura
da EBC. Neste sentido o presente artigo tem como objetivo analisar essas mudanças,
principalmente do ponto de vista do fim do Conselho Curador, que se constituía como um
órgão o qual possibilitava, por meio de seus membros de diferentes setores da sociedade
civil, um canal de participação. Para tanto o presente artigo abordará primeiramente o
contexto de criação da Empresa Brasil de Comunicação; a seguir as alterações na gestão da
EBC a partir da nova lei de 2017 e, por último, o que representou o fim do Conselho
Curador, uma das mudanças mais criticadas pelos estudiosos do assunto.

A CRIAÇÃO DA EMPRESA BRASIL DE COMUNICAÇÃO

A criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), com a missão de implantar


e gerir o sistema público de comunicação previsto no artigo 223 da Constituição Federal
(MELEIRO; MENDONÇA, 2009), se deu num contexto de discussões sobre a
importância de uma televisão de caráter público. Diante das transformações vindas a partir
da digitalização, eram constantes as diversas mobilizações da sociedade civil que ocorreram
com o propósito de debater o modelo de televisão desejado.
Neste cenário, a EBC foi criada por meio da Medida Provisória 398, publicada pelo
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 10 de Outubro de 2007. A nova empresa, além
de ser fruto da reorganização de emissoras de rádio e televisão que são de domínio da
União, constituía-se como espinha dorsal do sistema público de comunicação (BURINI,

963
2010; MIOLA, 2009). A EBC tem sua origem na fusão de duas empresas com filosofias
distintas, a ACERP (Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto) e a Radiobrás
(Empresa Brasileira de Radiodifusão).
A ACERP foi instituída como uma associação em 1998, no governo do Presidente
Fernando Henrique Cardoso, e faziam parte da sua composição as seguintes emissoras:
TVE Brasil (Rio de Janeiro); TVE (Maranhão); TV Escola (TV por satélite); e também a
Rádio MEC 800 (Rio de Janeiro); a Rádio MEC 800 (Brasília); a Rádio MEC 98,9 FM (Rio
de Janeiro); e a Rádio MEC (rádio por satélite).
A Radiobrás teve sua criação por meio da Lei 6.301 de 1975, e segundo Jambeiro
(2001), seus principais objetivos eram estabelecer e operar emissoras de rádio e TV;
explorar os serviços de radiodifusão do governo federal; transmitir os programas
educacionais feitos pelo Ministério da Educação; e produzir os seus próprios programas
de entretenimento e notícias.
A criação da EBC se deu de forma efetiva através da publicação, em 25 de outubro
de 2007, do decreto n°6.246/2007. O documento foi assinado pelo então presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, pelo Ministro da Fazenda, Guido Mantega, pelo Ministro do
Planejamento, Paulo Bernardo Silva e também pelo Ministro da Comunicação, Franklin
Martins. De acordo com este decreto, deveriam ser transferidas à nova empresa verbas
orçamentárias em torno de 20 milhões reais para a constituição do capital inicial. Além
disso, em conformidade com o artigo 1°, a EBC seria uma empresa pública federal
vinculada à Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, entretanto, tal
vínculo foi questionado por diferentes setores.
Segundo Bucci (2010), a EBC é bem mais avançada como entidade de
comunicação pública se comparada com as outras duas que lhe deram origem. Contudo,
ainda está submetida ao poder estatal.

A EBC está vinculada à Secretaria de Comunicação Social da


Presidência da República (SECOM), cujo ministro conserva a
prerrogativa de indicar o presidente do conselho de administração, que,
como vimos, é o órgão superior de direção da estatal. Esse vínculo
institucional com a presidência da República vai à contramão das
melhores práticas da comunicação pública, conforme a tradição
europeia, segundo a qual as emissoras públicas devem ter afinidade com
a área da cultura e não com os órgãos encarregados de promover a
imagem do presidente da República (BUCCI, 2010, p. 13-14).

964
A Secom era responsável pela gestão da imagem da presidência da República,
gerenciava a publicidade do governo e cuidava de sua assessoria, portanto, sua meta era
difundir uma imagem positiva tanto do presidente como do governo, caracterizando o
comprometimento mais com uma comunicação de governo do que pública. Diante disto,
Bucci (2010) afirma:

O vínculo da EBC com a Secom, portanto, não poderia ser mais


impróprio, uma vez que este órgão não tem nada a ver com cultura em
sentido amplo ou com a atividade jornalística em sentido estrito.
Dedicado à assessoria de imprensa, não deveria supervisionar uma
empresa pública encarregada de informar com objetividade e isenção
(BUCCI, 2010, p. 14).

A EBC se constituiu como uma sucessora das antigas estruturas de comunicação


do governo e se tornou responsável por gerir três canais de televisão: a TV Brasil, criada
para ser uma emissora pública com alcance por todo território nacional; a NBR, canal do
Governo Federal, dedicado ao acompanhamento de suas ações; e a TV Brasil Canal
Integración, canal internacional lançado com o objetivo de alcançar o público sul-
americano. No rádio, a EBC opera oito estações, entre as quais estão: Rádio Nacional AM
de Brasília, Radio Nacional FM de Brasília, Rádio Nacional AM do Rio de Janeiro, Rádio
MEC AM do Rio de Janeiro, Rádio MEC AM de Brasília, Rádio MEC FM do Rio de
Janeiro, Rádio Nacional do Alto Solimões e Rádio Nacional da Amazônia.
A EBC é gestora da TV Brasil cuja inauguração foi realizada no dia 02 de dezembro
de 2007, simultaneamente com o Sistema Brasileiro de Televisão Digital. Esta nova TV foi
lançada com o slogan “você escolhe, você programa, você assiste” e sua existência foi
acompanhada por expectativas, principalmente na possibilidade de mudança do panorama
comunicacional do país, devido à elaboração e desenvolvimento de outra forma jornalística
e à nova oferta de produtos midiáticos distintos do que era oferecido pelas mídias
hegemônicas.
A legislação estabelecia que os recursos da EBC fossem provenientes de: dotações
orçamentárias; doações, legados, subvenções e outros recursos que lhe forem destinados
por pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado; de apoio cultural de entidades
de direito público e de direito privado, sob a forma de patrocínio de programas, eventos e
projetos; de publicidade institucional de entidades de direito público e de direito privado,
proibindo a veiculação de anúncios publicitários (BRASIL, 2008).

965
A EBC teve sua estrutura alterada pela lei 13.417 de 2017, modificando aquilo que
tinha sido estabelecido pela lei 11.652 de 7 de abril de 2008. Algumas dessas mudanças
geraram muitas críticas por parte daqueles que defendem a existência de uma comunicação
pública no Brasil. Além disso, aliados deste novo governo que tomou posse com o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff defendiam abertamente o fim da EBC, com a
justificativa de que a empresa representa um desperdício de dinheiro e seria um cabide de
empregos do PT. Tendo como perspectiva este panorama, a seguir abordaremos as
transformações que ocorreram a partir das modificações na lei 11.652 de 2008, as quais
vêm gerando muitas críticas de setores que defendem a necessidade de discutir as
mudanças com a sociedade como um todo, além disso, uma das principais mudanças
advindas com a Lei de 2017, é o fim do Conselho Curador, que também será abordado
em outro tópico deste trabalho.

AS ALTERAÇÕES NA ESTRUTURA DA EBC: DA LEI 11.652 DE 2008 PARA A


LEI 13.417 DE 2017

A lei 11.652 de 7 de abril de 2008, instituiu os princípios e finalidades dos serviços


de radiodifusão pública, além de autorizar o Poder Executivo de constituir a Empresa
Brasil de Comunicação.
Segundo o seu Art. 12, a EBC deveria ser administrada por um Conselho de
Administração, uma Diretoria Executiva, um Conselho Fiscal e um Conselho Curador. A
Diretoria Executiva seria o órgão de deliberação colegiada responsável pela administração
e gestão da EBC. O diretor-presidente é nomeado pelo Presidente da República e o
mandato de quatro anos lhe garante autonomia administrativa e independência diante de
eventuais pressões governamentais.
O Conselho de Administração também tem a indicação realizada pelo Presidente
da República, e é o órgão “de orientação e direção superior da EBC” (BRASIL, 2008),
tendo como função: orientar seus negócios, respeitando as atribuições do Conselho
Curador; escolher e demitir os membros da Diretoria Executiva; aprovar o regimento
interno da EBC; fiscalizar a atuação dos Diretores; aprovar o plano estratégico e demais
planejamentos da empresa para dispêndio de investimentos; entre outras (VALENTE,
2009, p. 145). A sua composição está prevista na Lei 11.652 da seguinte forma: um
Presidente, indicado pelo Ministro de Estado Chefe da Secretaria de Comunicação Social
da Presidência da República; um Diretor-Presidente da Diretoria Executiva; um
Conselheiro, indicado pelo Ministro de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão;

966
um Conselheiro indicado pelo Ministro de Estado das Comunicações; e um Conselheiro,
indicado conforme o Estatuto.
Assim, como o de Administração, o Conselho Fiscal também tem seus
componentes designados pelo Presidente da República, e é composto por três membros e
seus respectivos suplentes, sendo que um deles é representante do Tesouro Nacional.
Compete ao Conselho Fiscal, de acordo com o Art. 24 do Decreto 6.689 de 2008:
fiscalizar os atos dos administradores e verificar o cumprimento dos seus deveres legais e
estatutários; acompanhar a gestão financeira e patrimonial da EBC; e fiscalizar a execução
orçamentária, podendo examinar livros e documentos, bem como requisitar informações;
opinar sobre o relatório anual de administração, fazendo constar do seu parecer as
informações complementares que julgar necessárias ou úteis à deliberação da Assembleia
geral; denunciar aos órgãos de administração – e se estes não tomarem providências
necessárias para a proteção de interesses da EBC – à assembleia geral, os erros, fraudes,
crimes ou ilícitos de que tomar conhecimento; e sugerir providencias, entre outras
competências.
Até o ano de 2016 a EBC seguia a configuração acima, com o afastamento da
presidenta Dilma Rousseff em maio de 2016, devido a abertura do processo de
impeachment, o então presidente interino Michel Temer um mês após tomar posse,
iniciou diversas mudanças na estrutura da EBC, quando o mesmo se confirmou no cargo,
com o aceite do impeachment da presidenta Dilma Rousseff, a estrutura da EBC foi
mudada a partir de uma medida provisória (n° 744, de 01 setembro de 2016), a qual foi
convertida na Lei 13.417 de 1° de março de 2017, alterando assim a lei 11.652 de 2008.
A primeira alteração com a Lei 13.417 é que a EBC deixou de ser vinculada a
Secretaria de Comunicação da Presidência da República, pois esta foi extinta, passando a
ser vinculada a Casa Civil da Presidência da República. De acordo com esta nova lei, a
EBC será administrada por um Conselho de Administração, uma Diretoria Executiva, e
sua composição contará com um Conselho Fiscal e um Comitê Editorial e de Programação
(BRASIL, 2017), este último substituindo o Conselho Curador. O diretor-presidente que
antes teria mandato de quatro anos, evitando pressões governamentais, agora pode ser
exonerado pelo Presidente da República a qualquer tempo, segundo alegou-se, a alteração
do artigo 19 da Lei de 2008 foi realizada que para que ficasse mais claro que a autoridade
do diretor-presidente pode ser exonerado pelo presidente da república. Ainda de acordo
com o art 19 da nova Lei, a diretoria executiva será composta por um diretor-presidente,

967
um diretor geral e quatro diretores, anteriormente eram seis diretores que poderiam ser e
eleitos e destituídos pelo Conselho de Administração.
Assim como a diretoria executiva o Conselho de Administração - CONSAD passa
a ter uma nova composição, sua atribuição, entre outras, é fixar as diretrizes gerais do
negócio, administrar situações de conflitos de interesses ou de divergências de opiniões,
além de aprovar o regimento interno da empresa493. A indicação dos seus membros passa
a ser realizada da seguinte forma: um Presidente, indicado pelo Ministro chefe da Casa
Civil; um Diretor-presidente da Diretoria Executiva; um membro indicado pelo Ministro
da Educação; um membro indicado pelo Ministro da Cultura, um membro indicado pelo
Ministro do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão; um membro indicado pelo
Ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações; um membro representante
dos empregados da EBC, escolhido conforme o estatuto e, por fim, dois membros
independentes.
O Conselho Fiscal – COFIS, é o órgão de fiscalização, em sua estrutura não ocorreu
modificações, sua função ainda é fiscalizar os administradores, verificar se os seus deveres
legais e estatutários estão sendo cumpridos, realizar o acompanhamento da gestão
financeira e patrimonial da EBC, opinar sobre o relatório anual da administração e
fiscalizar sua execução orçamentária. A sua composição é de três membros, todos
designados pelo Presidente de República, sendo que um desses membros deve ser um
representante do tesouro nacional, nesta perspectiva observamos que a estrutura do
COFIS, continua a mesma estabelecida pela lei 11.652 de 2008, um dos poucos que
manteve sua formação.
Uma das grandes críticas à Lei 13.417, é que a mesma extinguiu o Conselho
Curador da EBC, órgão de natureza consultiva e deliberativa, composto por membros da
sociedade civil, a fim de aumentar a participação da mesma na programação e na gestão da
EBC, como observaremos a seguir o fim do Conselho Curador representa o fim de uma
instância de participação da sociedade civil na empresa.

A EXTINÇÃO DO CONSELHO CURADOR

A Lei 11.652 estabelecia que em sua estrutura a EBC, deveria contar com um
Conselho Curador, órgão de natureza deliberativa, composto por vinte e dois membros 15

493
Mestra em Sociologia (UFG) patrifilos@gmail.com

968
representantes da sociedade civil, 4 representantes do governo federal, 2 representantes do
congresso nacional e 1 representante dos trabalhadores da EBC, que eram designados pelo
Presidente da República.
Os titulares do Conselho deveriam ser escolhidos entre os brasileiros natos ou os
naturalizados há mais de dez anos, de reputação ilibada e reconhecido espírito público.
Somente o representante dos trabalhadores da EBC era eleito através de voto secreto e
direto, pelos integrantes do quadro permanente da empresa.
Os representantes da sociedade civil eram designados pelo Presidente da
República, segundo os critérios de diversidade cultural e pluralidade de experiências
profissionais, sendo que cada uma das regiões do Brasil deveria ser representada por um
conselheiro. Os mandatos dos conselheiros variavam entre dois e quatro anos, sendo o
primeiro período aplicado aos membros dos trabalhadores e o segundo aos representantes
da sociedade civil e congresso.
Segundo o Art. 17 da Lei 11.652, competia ao Conselho Curador:

I - deliberar sobre as diretrizes educativas, artísticas, culturais e


informativas integrantes da política de comunicação propostas pela
Diretoria Executiva da EBC;
II - zelar pelo cumprimento dos princípios e objetivos previstos nesta Lei;
III - opinar sobre matérias relacionadas ao cumprimento dos princípios
e objetivos previstos nesta Lei;
IV - deliberar sobre a linha editorial de produção e programação
proposta pela Diretoria Executiva da EBC e manifestar-se sobre sua
aplicação prática;
V - encaminhar ao Conselho de Comunicação Social as deliberações
tomadas em cada reunião;
VI - deliberar, pela maioria absoluta de seus membros, quanto à
imputação de voto de desconfiança aos membros da Diretoria Executiva,
no que diz respeito ao cumprimento dos princípios e objetivos desta Lei;
e
VII - eleger o seu Presidente, dentre seus membros (BRASIL, 2008).

O Conselho possuía amplas atribuições, especialmente ao que se refere à grade de


programação. Contudo, o fato dos Conselheiros serem majoritariamente indicados pelo
Presidente da República levantava várias críticas devido à impossibilidade da sociedade civil
exercer maior influência nesse processo. Apesar das críticas, a existência deste conselho
era importante, pois segundo Miola (2009), os conselhos fazem parte da estrutura das
empresas públicas de radiodifusão e pretendem reunir agentes do Estado e representantes
da sociedade selecionados de forma específica.

969
Com a Lei 13.417, o Conselho Curador é substituído por um Comitê Editorial e
de Programação, o qual se constitui como um órgão técnico de participação
institucionalizada, de natureza deliberativa e consultiva, integrado por onze membros,
indicados por entidades representativas da sociedade, por meio de uma lista tríplice,
designados pelo presidente da República (BRASIL, 2017). De acordo com o artigo 17 da
referida lei, compete ao Comitê Editorial e de Programação:

I- (VETADO)
II- (VETADO)
III- Propor a ampliação de espaço, no âmbito da programação, para
pautas sobre o papel e a importância da mídia pública no contexto
brasileiro;
IV- (VETADO)
V- Formular mecanismo que permita a aferição permanente sobre a
tipificação da audiência da EBC, mediante a construção de indicadores
e métricas consentâneos com a natureza e os objetivos da radiodifusão
pública, considerando as peculiaridades da recepção dos sinais e as
diferenças regionais;
VI- Elaborar e aprovar seu regimento interno e eleger seu Presidente;
VII- Revogado (BRASIL, 2017)

Nota-se que a maioria dos artigos presentes em 2008, foram vetados ou revogados
em 2017, as modificações, tornaram o órgão muito mais técnico, pois anteriormente o
Conselho Curador poderia deliberar tanto sobre a linha editorial de produção e
programação quanto observar o cumprimento dos dispositivos da Lei pela Diretoria
Executiva, ou seja, havia uma fiscalização por parte do Conselho Curador sobre os
cumprimentos daquilo que estava previsto em Lei, com as alterações a função do Comitê
se restringe a construção de indicadores para aferir a audiência e sugestão de pautas que
discutam sobre a importância da mídia pública no contexto brasileiro, portanto, não há
mais uma observância dos cumprimentos da Lei, nem a realização do voto de desconfiança
a Diretoria Executiva. O motivo dado para o fim do Conselho Curador seria dar eficiência
à EBC, ou seja, a necessidade de agilizar as decisões, já que a este órgão caberia realizar
uma deliberação antes de tomar qualquer decisão.494
A composição do Comitê Editorial e de Programação, será realizada entre os
brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos, de reputação ilibada, espírito
público e, notório saber na área de comunicação social, fator este que não era um

494
Nessa perspectiva Lubambo e Miranda citam a obra de Putman (1993).

970
determinante na lei anterior. Segundo o § 1º da lei 13.417, os titulares do Comitê devem
ser escolhidos do seguinte modo:

I- Um representante de emissoras públicas de rádio e televisão


II- Um representante dos cursos superiores de Comunicação Social;
III- Um representante de setor audiovisual independente;
IV- Um representante dos veículos legislativos de comunicação;
V- Um representante da comunidade cultural;
VI- Um representante da comunidade cientifica e tecnológica;
VII- Um representante de entidades de defesa dos direitos de crianças
e adolescentes;
VIII- Um representante de entidades de defesa dos direitos humanos e
minorias;
IX- Um representante de entidades da sociedade civil de defesa do
direito à Comunicação;
X- Um representante dos cursos superiores de educação;
XI- Um representante dos empregados da EBC (BRASIL, 2017).

Por meio desses membros deve ser representada cada uma das regiões do Brasil, o
mandato será de dois anos, não sendo permitida a recondução e o Comitê deverá se reunir
a cada mês ou sempre que for convocado pelo seu Presidente ou por dois terços de seus
membros.
A composição acima difere da composição do Conselho Curador, no qual estava
presente a representação dos mais variados setores da sociedade, como podemos notar na
composição dos membros que participavam do Conselho Curador, antes de sua extinção,
havia jornalistas, articulador de movimentos sociais, produtor de conteúdos, professores
universitários, pesquisadores, militantes de diferentes causas, cineasta, representante da
liderança indígena, músico, representantes dos trabalhadores da EBC, do congresso
nacional e governo federal também compunham o Conselho Curador. A extinção deste
órgão, de acordo com a moção de repúdio divulgada pelo próprio Conselho Curador, tira
a autonomia do EBC com relação ao governo federal, autonomia esta, que mesmo com a
existência do Conselho era questionada por alguns pesquisadores que viam na indicação
dos membros do Conselho pelo Presidente da República, um grande problema.
Segundo Leal Filho (1997) “a forma de escolha dos membros dos conselhos e o
tipo de financiamento que elas [- as empresas-] recebem é que acaba por determinar a
influência do governo sobre as emissoras” (LEAL FILHO, 1997, p. 20). No caso da EBC,
o Presidente da República é o responsável por indicar os membros do conselho, o que não
permite uma atuação de setores da sociedade civil nesse processo de escolha.

971
Para Valente (2009b), a possibilidade de participação da sociedade civil é bastante
pequena, permitida somente através do Conselho Curador. Sendo assim, considerando o
desenho institucional, o autor detecta dois problemas centrais neste organismo. O primeiro
é a indicação dos membros ser feita pelo Presidente da República, o que “condiciona o
acesso das classes dominadas ao aparelho à permissão da força hegemônica no Executivo
Federal” (VALENTE, 2009b, p.148). Para o autor, esta arquitetura é uma barreira à
incidência, do que ele chama de grupos dominados, na participação de escolha dos
membros do conselho, uma vez que a mesma está remetida ao governo federal, um espaço
de acesso ainda mais limitado. O segundo ponto ressaltado por Valente (2009b), é o fato
das atribuições do conselho não dizerem respeito ao conjunto das atividades da empresa,
mas somente, de maneira genérica aos seus princípios e objetivos e aos conteúdos
produzidos por ela. Isto faz com que o órgão não tenha a prerrogativa de influir em
questões estratégicas referentes ao modelo de financiamento e aos canais de distribuição.
O autor Murilo César Ramos (2012), ao realizar uma análise sobre o modelo
institucional da EBC ainda sob vigência da Lei 11.652, aponta que é preciso ir fundo na
letra da lei que apresenta não só virtudes, mas também vícios, que, embora ressaltados
como poucos, para o autor podem representar significativa ameaça ao exercício presente e
futuro da autonomia pela empresa. Um dos vícios apontados por Ramos (2012) é a
vinculação, política e administrativa, da EBC com a Secom (Secretaria de Comunicação
Social da Presidência da República).

O principal vício normativo da EBC é, no meu entendimento, aquele


expresso no Artigo 5° da Lei495, que a vincula à Secretaria de
Comunicação Social da Presidência da República. Afinal, trata-se do
órgão responsável pela comunicação de governo, pela relação do
governo com a imprensa e demais instituições de comunicação, dentre
elas as agências de publicidade que mediam as verbas de propaganda
governamentais. Essa vinculação administrativa, e não hierárquica, seria
mais lógica, e politicamente mais adequada, caso se desse com o
Ministério da Cultura, ou com o Ministério das Comunicações
(RAMOS, 2012, p. 18).

O autor também ressalta a existência do Conselho Curador, segundo ele, uma


virtude inegável da Lei. Contudo, é insuficiente para assegurar a autonomia política,
administrativa e financeira da EBC. Para Murilo (2012), Franklin Martins, enquanto

495
Segundo Lubambo e Miranda, Andrade (2002) e Bonfim e Silva (2003), são representantes dessa
abordagem.

972
ocupou o cargo de Ministro-Chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da
República, esteve muito mais preocupado em assegurar as prerrogativas públicas da
empresa do que as vinculações normativas com o governo e ameaças potenciais à
autonomia da empresa.

Mas, este é o vício maior, aqui analisado, que pode se constituir em


ameaça futura à autonomia da EBC e, por consequência, ao seu existir
como empresa prestadora de serviço público, não comercial, de rádio e
televisão. O vício de, graças aos enunciados dúbios ou equivocados da
lei de criação da EBC, sua autonomia depender menos da força inata do
modelo institucional adotado e mais do arbítrio de quem eventualmente
ocupe a Presidência da República e a sua Secretaria de Comunicação
Social (RAMOS, 2012, p. 21).

Os vícios citados por Murilo César Ramos em 2012, são justamente os mesmos
que permitiram as mudanças na estrutura da EBC, ou seja, a sua vinculação a órgãos do
governo prejudica sua autonomia, além disso, as alterações em sua lei provocaram uma
série de mudanças que não foram discutidas com aqueles que compunham os seus quadros
e muito menos com a sociedade. Apesar das críticas ao Conselho Curador, ele foi extinto,
representando uma diminuição da participação da sociedade civil, em um canal que já era
estreito, portanto, ao invés de ocorrer o fortalecimento e controle destas instâncias já
existentes, observamos o desmonte de uma estrutura que estava se consolidando, gerando
assim, novas questões e dúvidas quanto ao futuro da EBC.

CONCLUSÃO

A Empresa Brasil de Comunicação foi criada em 2007 para dar início a instituição
de um sistema público de comunicação no Brasil, sua estrutura, estabelecida pela lei 11.652
contava com diversos órgãos, entre eles um Conselho Curador, que apesar das críticas foi
pensado como um órgão da natureza deliberativa e consultiva, contendo em sua estrutura
representantes dos diferentes setores da sociedade civil. Cabia ao mesmo fiscalizar o
cumprimento daquilo que estava previsto em lei e que garantiria o caráter público e
autonomia da EBC perante o governo federal, não permitindo ingerências do mesmo em
sua programação.
Com a posse definitiva do Presidente Michel Temer, a EBC passou por um
processo de mudanças, que alguns denominaram de desmonte, já que se extinguiu o
conselho curador, substituído por um Comitê Editorial e de Programação, o qual também

973
teve suas atribuições modificadas, a justificativa para essa mudança foi que o fim do
Conselho possibilitaria tomada de decisões de uma forma mais rápida. As alterações
realizadas não foram discutidas amplamente, nem com os funcionários da EBC, com o
Conselho Curador e muito menos com a sociedade.
A EBC atualmente sofre com a diminuição do repasse de verbas, jornalistas foram
demitidos abruptamente, muitos defendem o seu fim por acreditarem que a empresa
representa o desperdício de dinheiro. Contudo, este argumento é muito raso para que esta
medida seja tomada, no atual contexto a EBC se encontra ameaçada, acabar com ela
significa também, colocar fim a possibilidade de que haja uma alternativa as emissoras
comerciais e, consequentemente, a existência de uma pluralidade de vozes, tão necessária
a uma democracia e possível através de um sistema público de comunicação fortalecido,
assim, é necessário lutar para que aquilo que foi construído seja preservado, aprimorado e
consolidado perante a sociedade como um todo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n° 11.652 de 07 de abril 2008. Institui os princípios e objetivos dos serviços
de rádiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo e autoriza o Poder Executivo a
constituir a Empresa Brasil de Comunicação. Diário Oficial da União, 08 abr. 2008.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-
2010/2008/Lei/L11652.htm>. Acesso em: 01 ago. 2017.

__________. Lei n° 13.417 de 1° de março de 2017. Altera a Lei n°11.652, de 7 de abril


de 2008, que “institui os princípios e objetivos dos serviços de radiodifusão pública
explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a entidades de sua administração
indireta; autoriza o Poder Executivo a constituir a Empresa Brasil de Comunicação; altera
a Lei n°5.070, de 7 de julho de 1966; e dá outras providencias”, para dispor sobre a
prestação dos serviços de radiodifusão pública e organização da EBC. Diário Oficial da
União, 2 de mar de 2017. Disponível em: < www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-
2018/2017/lei/L13417.htm>

__________. Lei n° 6.301 de 15 de dezembro de 1975. Institui política de exploração de


serviço de radiodifusão de emissoras oficiais, autoriza o Poder Executivo a constituir a
Empresa Brasileira de Radiodifusão - RADIOBRÁS, e dá outras providências. Diário
Oficial da União, 16 dez. 1975. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6301.htm . Acesso em 10 jun. 2017.

__________. Decreto n° 6.246 de 24 de outubro de 2007. Cria a Empresa Brasil de


Comunicação - EBC, aprova seu Estatuto e dá outras providências. Diário Oficial da
União, 25 out. 2007. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2007/Decreto/D6246.htm . Acesso em 21 jun. 2017.

__________. Decreto n° 6.689 de 11 de dezembro de 2008. Aprova o Estatuto Social da


Empresa Brasil de Comunicação S.A. - EBC e revoga o art. 4o do Decreto no 6.246, de 24

974
de outubro de 2007. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-
2010/2008/Decreto/D6689.htm> . Acesso em 16 jul. 2017.

___________. Medida Provisória nº 744 de 1 de setembro de 2016. Não mais vigente:


Altera a Lei n°11.652, de 7 de abril de 2008, que “institui os princípios e objetivos dos
serviços de radiodifusão pública explorados pelo Poder Executivo ou outorgados a
entidades de sua administração indireta; autoriza o Poder Executivo a constituir a
Empresa Brasil de Comunicação. Diário Oficial da União, 2 set. 2016. Disponível em:
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Mpv/mpv744.htm

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975
AMPLIAÇÃO DO DEMOS NA PÓLIS: A AÇÃO DO ESTADO NOS
CONSELHOS MUNICIPAIS DE SAÚDE DE GOIÂNIA E DE
APARECIDA DE GOIÂNIA

Patrícia Gomes de MACEDO496

Resumo: A temática dos conselhos se inscreve num amplo debate acerca das potencialidades e
limites da democracia participativa, em especial na vertente deliberativa, e da coexistência das
práticas de representação e participação. Tal debate é marcado por ceticismos e otimismos sobre
os efeitos democratizantes dos conselhos, entendidos como instrumentos de participação direta na
elaboração, execução e fiscalização das políticas públicas. A literatura aponta que a efetividade dos
processos participativos está estreitamente relacionada ao comprometimento político do
governante com a democratização da gestão pública. Orientados pela abordagem qualitativa dos
processos sociais, procuramos compreender a ação do Estado, particularizado nas gestões dos
municípios de Goiânia e Aparecida de Goiânia, diante das modificações implementadas em seus
monopólios sobre os meios de administração através dos arranjos participativos, neste caso os
conselhos municipais de saúde, identificando o tipo de relação estabelecida entre as dinâmicas das
duas instâncias no que tange à partilha de poder. Ao estabelecer uma comparação entre as ações
ideais e as ações praticadas pelos secretários de saúde dos municípios estudados notamos que, em
geral, as ações mostraram uma tendência contrária a democratização do poder decisório. Com base
no que foi verificado nos discursos dos conselheiros municipais de saúde e nas observações
participantes, conseguimos definir a ação do Estado como uma ação concentradora de poder
motivada por uma concepção política verticalizada.

Palavras-chave: Ação do Estado. Conselhos Municipais de Saúde. Partilha de Poder.

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado da dissertação de mestrado de mesmo título e tem


como propósito divulgar os resultados da pesquisa realizada. A temática dos conselhos se
inscreve num amplo debate acerca das potencialidades e limites da democracia
participativa, em especial na vertente deliberativa, e da coexistência das práticas de
representação e participação. Tal debate é marcado por ceticismos e otimismos sobre os
efeitos democratizantes dos conselhos, entendidos como instrumentos de participação
direta na elaboração, execução e fiscalização das políticas públicas.
No Brasil, com a promulgação da Constituição de 1988, foram criados espaços
institucionalizados de participação que possuem sua existência vinculada à exigência da
legislação (federal, estadual e municipal) como, por exemplo, os conselhos gestores e os
planos diretores. Os conselhos gestores, existentes pelo país, envolvem práticas de
participação direta na gestão das políticas públicas nas áreas da saúde, educação, dos
direitos das crianças e dos adolescentes, na questão da mulher, da cultura, da habitação,

496
Para mais detalhes, Evans (1993) e (1996).

976
etc. No entanto, a prática política tem demonstrado que apesar do caráter democrático de
mecanismos de ampliação da participação popular, como é o caso dos conselhos gestores,
nem sempre a implementação destes resulta em democratização da gestão pública.
A literatura aponta que a efetividade dos processos participativos está estreitamente
relacionada ao comprometimento político do governante com a democratização da gestão
pública (AVRITZER, 2008). Nesse sentido, a vontade política do gestor municipal é uma
variável importante para aferir a efetividade dos conselhos. Argumenta-se que a vontade
política do governante, compreendida como elemento norteador de sua ação, é fortemente
influenciada por seu posicionamento político-ideológico. Entretanto, esta é uma questão
pouco explorada nas análises sobre os processos participativos.
Com base em tais considerações, este estudo se propôs a investigar a ação do
Estado, particularizado na instância municipal, no que tange à partilha de seu poder
deliberativo. Buscamos caracterizar e compreender o tipo de relação estabelecida entre
Estado e os conselhos municipais de saúde de Goiânia e Aparecida de Goiânia, bem como
as variáveis que interferem nessa relação.

CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS

O estudo realizado orientou-se pela abordagem qualitativa dos processos sociais.


Ao utilizar como fontes privilegiadas de investigação as expressões e respostas dos agentes
políticos, discorrendo sobre sua própria ação e sobre o contexto de produção dessa ação,
com o objetivo de designar o sentido da ação política do Estado desenvolvida numa
realidade de mudança institucional que por definição é plural e compartilhada, como o são
os conselhos gestores, a pesquisa viu-se remetida a um campo de existência social
constituído de significados subjetivos do qual tradicionalmente se ocupam os métodos e
técnicas das ciências sociais compreensivas. Minayo (2002) define essa tradição, fundada
em Weber e que atualmente encorpa diferentes tendências interpretativas, ilustradas entre
outras pelas elaborações de Moscovici (“representações sociais”) e de Bourdieu
(“estruturação”), destacando nela o propósito de capturar “o universo de significados,
motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à
operacionalização de variáveis” (MINAYO, 2002, p. 21-22).
Procurou-se compreender a ação do Estado, particularizado nas gestões dos
municípios de Goiânia e Aparecida de Goiânia, diante das modificações implementadas

977
em seu monopólio sobre os meios de administração através dos arranjos participativos,
neste caso os conselhos municipais de saúde, identificando o tipo de relação estabelecida
entre as dinâmicas das duas instâncias no que tange à partilha de poder, assim como
caracterizar e propor uma compreensão das variáveis que interferem nessa relação.
Para tanto, adotou-se a perspectiva teórico-metodológica da sociologia
compreensiva de Max Weber, no intuito de entender os processos participativos como
ação social, tratando-os em seu percurso e seus efeitos. Cientes da complexidade da
realidade a qual buscamos analisar a partir de um determinado ponto de vista, isto é, o da
democratização.
A abordagem compreensiva de Weber tem como unidade interpretativa a ação
social do indivíduo, entendido como portador de conduta significativa. Buscou-se
compreender a ação através do sentido subjetivo que o sujeito lhe atribui. Assim, nem toda
ação é alvo de compreensão sociológica, mas apenas as que estão orientadas por um
sentido subjetivo.
De acordo com Weber (2002), o sentido de uma ação também pode significar a
compreensão explicativa, isto é, o que se compreende pelos motivos, o sentido que o
sujeito tinha em mente ao agir de certo modo naquele momento e naquela situação.
“Explicação” é a apreensão da conexão de sentido a que pertence uma ação compreensível
de maneira atual segundo seu sentido subjetivamente visado.
Embora Weber não defina claramente o que entende por “sentido” e por
“compreensão”, ele apresenta o conceito de “motivo”, que permite esclarecer a relação
entre esses dois conceitos. Para Weber (2002, p. 08): “Denominamos ‘motivo’ uma
conexão de sentido que para o próprio agente ou para o observador constitui a ‘razão’ de
um comportamento quanto ao seu sentido”.
De tal modo, o ‘motivo’ é o alicerce da ação, isto é, a causa da ação. O motivo
aponta para o fim almejado pelo agente. Assim, ao procurar compreender a ação do Estado
em relação aos Conselhos Municipais de Saúde de Goiânia e de Aparecida de Goiânia,
procura-se reconstruir o motivo dessa ação e, deste modo, identificar o seu fim.
O método compreensivo admite captar o sentido subjetivo das ações do Estado,
possibilitando duas alternativas de consideração interpretativa das ações, as de sentido de
fato e as do sentido construído como tipo ideal (WEBER, 2000).
A literatura sobre os conselhos classifica-os a partir da sua “existência efetiva”, da
regularidade de funcionamento e da capacidade de fazer valer suas decisões (poder de
sanção), formando condições que possibilitaram à pesquisa caracterizar o “sentido de fato”

978
dos Conselhos Municipais de Saúde dos Municípios de Goiânia e de Aparecida de
Goiânia.
Quanto ao “sentido como tipo ideal”, os critérios estabelecidos de classificação da
relação do Estado com os Conselhos de Saúde nos dois municípios, no sentido de
democratização da gestão pública de saúde foram: a) o Conselho possuir verba própria
para sua atuação; b) o Conselho manter relações com o secretário de Saúde ou com o
prefeito; c) a presença do secretário municipal de saúde ou do prefeito nas reuniões e
eventos do Conselho; d) o fácil acesso às informações da secretaria municipal de saúde; e)
a elaboração conjunta dos projetos de saúde do município; f) e o Conselho possuir boa
estrutura física e de pessoal administrativo próprio para desempenhar suas funções.
Adotou-se como uma das técnicas de investigação dos conteúdos e dinâmicas de
funcionamento dos dois conselhos a análise documental das atas das reuniões, resoluções
e dos regimentos internos dessas entidades. O objetivo foi, além de verificar as
regularidades das reuniões, a realização de conferências temáticas e os temas que estiveram
em maior evidência, principalmente de construir referências para caracterizar a atuação
política dos conselheiros representantes do Estado nesta nova esfera de institucionalidade
da democracia brasileira.
A observação passiva foi outra técnica utilizada no acompanhamento da estrutura
de funcionamento dos dois Conselhos bem como na percepção das condições e processos
de tomada de decisões nas reuniões plenárias e de diretorias. Por fim, com o objetivo de
captar o sentido que os conselheiros municipais de saúde conferem à sua ação, empregou-
se nos contatos mantidos a técnica de entrevista semiestruturada.

CONSELHOS MUNICIPAIS DE POLÍTICAS: BREVE SÍNTESE DAS


EXPERIÊNCIAS NO BRASIL PÓS-1988

O potencial democratizador dos conselhos de políticas é, sem dúvida, uma das


razões de sua popularidade no campo da produção acadêmica, seja no sentido de endossá-
lo, seja no sentido de contestá-lo. Desde o início da década de 1980, a temática da
ampliação da participação dos segmentos sociais na formulação de políticas públicas
influencia grande parte da produção intelectual comprometida com o avanço das
conquistas populares na construção da democracia.
Com o propósito de resgatar a trajetória enveredada pela agenda de pesquisas com
foco na participação popular e nas políticas públicas, Lubambo e Miranda (2007)
investigam a ênfase conferida aos elementos determinantes (cultura política / inovações

979
institucionais) e ao estímulo da participação da sociedade em experiências descentralizantes
a partir de 1980.
As conquistas dos movimentos sociais na melhoria e na oferta de serviços coletivos
e na maior participação nos processos decisórios junto aos órgãos de governo foram
entendidas pela literatura como o reconhecimento das lideranças e organismos populares
como a criação de novas formas de representação em âmbito local e em certo espaço de
influência dos movimentos sociais na definição de prioridades em relação à elaboração das
políticas públicas (LUBAMBO; MIRANDA, 2007).
No fim dos anos 1980, a perspectiva analítica centra-se no processo de transição
democrática balizada por um tipo de “otimismo republicano”, isto é, o pressuposto de que
por si só a democracia é virtuosa e responsável por resultados benéficos para a maioria da
população. Associado a este pressuposto estava a crença de que uma nova
institucionalidade, marcada pela ampliação da participação popular, era condição
necessária e suficiente para a superação do legado de injustiças sociais no país. Entretanto,
empiricamente tal pressuposto não se sustenta.
A despeito dos traços de otimismo, nesse momento já se identificam
constrangimentos e obstáculos à virtuosidade da democracia, expressos, sobretudo pelas
possibilidades ampliadas de cooptação das novas organizações por parte do estado, bem
como de uma interlocução orientada para minimizar demandas e insatisfações, marcadas
por tentativas de solução a partir de interesses e opções governamentais e não, exatamente,
coletivos ou públicos. Contudo, o descompasso, mais tarde, entre a emergente agenda de
reformas institucionais e a agenda das reformas sociais, colocadas em segundo plano, gerou
um arrefecimento nas expectativas postas no processo de democratização (LUBAMBO;
MIRANDA, 2007, p. 01-02).
Em meio aos obstáculos à virtuosidade da democracia, identificados acima por
Lubambo e Miranda, ganha destaque no debate durante a década de 1990 a atuação das
ONGs como instituições de mediação de interesses coletivos entre a sociedade civil e os
grupos de poder (privados e governamentais). A agenda de pesquisas começa a investigar
a contribuição das ONGs em diversos níveis, mas especialmente junto aos governos locais.
Em seguida, o debate centrou-se no processo de descentralização, evidenciando as
transformações institucionais, viabilizadas pela Constituição de 1988, com foco na
redefinição política dos níveis locais na estrutura federativa e seus impactos sobre a
delimitação da esfera pública e a governabilidade no país.

980
Num primeiro momento, a literatura superestimou os benefícios advindos da
descentralização. Mas outros estudos, como o de Arretche (1997), baseados em
abordagens mais analíticas e menos normativas, começaram a relativizar o consenso de
então, mostrando a descentralização como um processo heterogêneo e nem sempre
positivo para a democratização política.
No entanto, cabe ressaltar que as discussões sobre a descentralização reverberaram
na criação e disseminação de novas arenas de mediação de interesses da população junto
à burocracia estatal. A literatura passou a estudar a atuação e o impacto dos novos
mecanismos de participação social na gestão municipal (as comissões temáticas, os
conselhos setoriais, o orçamento participativo, etc.).
Conforme Tendler, citado por Lubambo e Miranda (2007), as pesquisas
acadêmicas foram densamente influenciadas pelo reavivamento dos estudos sobre cultura
política e pelos conceitos de capital social e cultura cívica. Mas nem todos os autores se
entusiasmaram com “o desenvolvimento pelas coisas em âmbito local”.
Nessa contraposição, Tendler assinala que, embora associações cívicas e outras
ONGs fossem frequentemente atores relevantes nos exemplos estudados, em muitos casos,
essa relevância foi viabilizada por uma ação prévia do governo. Ou seja, o governo permitiu
e criou condições de modo que a participação das entidades não-governamentais se
efetivasse. O segundo aspecto discutido por Tendler é que os limites entre o público e o
privado se mostraram muito tênues, para os membros dessas associações, que
compartilham ideias e mantêm ligações estreitas com a burocracia do governo local
(TENDLER apud LUBAMBO; MIRANDA, 2007, p. 05).
As autoras não discutem as críticas proposta por Tendler sobre as dinâmicas de
interação entre governo e organizações da sociedade civil em âmbito local, talvez porque,
naquele momento, tais críticas destoassem do entusiástico discurso hegemônico.
De volta ao discurso predominante, os temas do associativismo, da gestão
participativa e especialmente do orçamento participativo ganham destaque na literatura até
os anos 2000. A partir daí o orçamento participativo divide a atenção dos estudiosos com
os conselhos setoriais municipais. Os estudos realizados no pós-2000 são marcados pela
interpretação institucionalista, na qual as variáveis político-institucionais são utilizadas para
explicar os diferentes padrões das experiências participativas (LUBAMBO; MIRANDA,
2007).

981
Estas estudiosas centram a análise realizada nas hipóteses e explicações mais usuais
da literatura sobre os fatores determinantes ao estímulo à participação da sociedade em
instâncias deliberativas.
Inicialmente, alguns autores associam a pré-existência de uma herança política à
possibilidade de construção de capital social e de desenvolvimento de uma dada região497.
Esta abordagem atribui o fracasso de algumas experiências de conselhos de políticas a
fatores culturais498 (autoritarismo, ausência de organização social e resistência à participação
tanto da sociedade quanto do governo). Noutra perspectiva há a corrente teórica dos que
rejeitam o determinismo histórico-cultural e apostam nas inovações institucionais499 para
superar a herança cultural. A estrutura institucional é pensada como determinante para
fomentar a cooperação entre Estado e sociedade e também para estimular a participação.
A efetividade ou não das experiências participativas é compreendida como o resultado da
organização da sociedade civil e/ou dos incentivos criados pelos governos ao fomento dos
meios de participação. Embora o formato institucional seja considerado pelos seguidores
da abordagem neoinstitucionalista como determinante ao incentivo da participação, não
existe entre eles consenso sobre a correlação entre mudança institucional e
empoderamento.
Segundo Lubambo e Miranda (2007), entre os neoinstitucionalistas existe o
problema de explicar teoricamente o papel da herança histórica sobre as instituições e a
ação dos atores sociais. E mesmo que seus autores admitam a importância da mudança
institucional, tal mudança, ainda mais se direcionada ao empoderamento, mostra-se um
processo demorado e dispendioso.
Ou seja, embora haja condições de se induzir, por meio de mudanças no desenho
institucional, uma trajetória de empoderamento numa determinada sociedade não só
demanda tempo para consolidar-se, quanto supõe certos pré-requisitos (inclusive históricos
e de capital social) para a “largada” no curto prazo e para a consolidação em perspectiva
mais longa, sobretudo em regiões que vivenciam um desenvolvimento tardio (LUBAMBO;
MIRANDA, 2007, p. 08).
A relação entre inovações institucionais e empoderamento se fundamenta na
concepção de que os incentivos à “participação e ao empoderamento são valiosos em si

497
Por governança as autoras entendem o conjunto de condições para o exercício do governo.
498
O conceito de prestação de contas, segundo Lubambo e Miranda (2007), diz respeito a uma relação vertical
entre governantes e cidadãos através de eleições, e também a relação horizontal entre os poderes constituídos
ou instituições formais e entre atores institucionais no âmbito do Estado.
499
http://www.jornaldaimprensa.com.br/Editorias/1204/Secretariado-de-Iris-tem-perfil-jovem
982
mesmo, independentemente de seu impacto sobre a eficiência e a eficácia das políticas
públicas” (LUBAMBO; MIRANDA, 2007, p. 07) e também nos efeitos que o
empoderamento produz na sociedade (redução da apropriação privada de recursos
públicos e a redução da corrupção).
Essas duas dimensões devem ser vistas de modo articulado, bem como as relações
entre empoderamento e governança500. Lubambo e Miranda supõem que “uma estrutura
apropriada de governança é aquela que reúne características institucionais que criam
incentivos para o empoderamento. ” (2007, p. 08). Nessa perspectiva, um mecanismo
institucional de governança deve garantir meios de prestação de contas verticais e
horizontais501, que envolvam a participação social em diversos níveis e dimensões. No
entanto:

[...] a efetividade dos mecanismos de prestação de contas horizontal não


depende apenas do desenho e da capacidade institucional adequada,
mas também da ação coletiva que lhes dê legitimidade e aumente sua
eficácia. Significa dizer, captando elementos analíticos para a questão
inicial apresentada, que embora não possa substituir a ação coletiva, o
desenho institucional apropriado reduz os custos da mesma. Por outro
lado, o empoderamento de atores sociais permitiria potencializar a ação
coletiva, levando à mudança institucional e legal. Ou seja, as estratégias
de empoderamento operam diretamente sobre os atores, expandindo
suas capacidades de barganhar e de se organizar para eleger prioridades
nas políticas públicas ou em inovações institucionais. Por sua vez, os
arranjos institucionais participativos alteram os custos relativos de
organização e de obtenção de informações, reduzindo-os e aumentando
o poder de barganha e de controle dos grupos mais vulneráveis. Na
realidade, um canal de participação novo que é introduzido em virtude
da ação coletiva bem-sucedida se constitui ele próprio um forte incentivo
para a organização (LUBAMBO; MIRANDA, 2007, p. 08).

De tal modo, o debate público no Brasil está focado em formas de gestão


descentralizadas (consultivas e/ou deliberativas) como estímulo do desempenho dos
governos. Ainda que a descentralização do poder decisório seja concebida pela literatura
como benéfica, não está certo que ela seja indispensável ao bom desempenho do governo.
Lubambo e Miranda questionam em que medida as experiências de
descentralização decisória, via mudanças institucionais, se vinculam ao empoderamento da
sociedade local. O empoderamento é limitado por elementos que compõem a “herança

500
http://www.portal730.com.br/noticias/politica/16983-prefeito-paulo-garcia-anuncia-mudancas-no-
secretariado.html
501
http://meduardosantana.wordpress.com/2011/01/26/elias-rassi-neto-secretario-municipal-de-saude-de-
goiania-no-governo-de-paulo-garcia/
983
cívica desfavorável”, isto é, resistência da sociedade à participação; reduzida credibilidade
e comprometimento do Estado; ausência de experiências locais de associativismo e às
resistências em reformar as estruturas e o funcionamento das burocracias estatais. Além
desses elementos complicadores do processo de empoderamento, há também os
problemas que dizem respeito à representação e participação popular:
Há limites contidos na representação e na participação popular intermediada por
associações de qualquer espécie, sobretudo por aquelas oriundas de mudanças
institucionais, como os modelos programáticos com nítida orientação governamental.
Além disso, independentemente da discussão sobre a eficácia dessas tais
instituições/associações, a participação/representação da população, requer uma nova
engenharia institucional também por parte do Estado, ainda despreparado, na maioria dos
casos para enfrentar os problemas mais simples da ação coletiva. (LUBAMBO;
MIRANDA, 2007, p. 09).
Diante disso, Lubambo e Miranda (2007, p. 11) indagam: “a quem de fato favorece
a abertura de novos canais entre a sociedade e o poder político local e o empoderamento
resultante dessas estratégias”. Ao que afirmam que os problemas dos processos
participativos são de duas ordens: aqueles relativos à ação coletiva e os que se referem ao
controle social dos cidadãos a burocracia pública ou aos governantes.
Os problemas da ação coletiva dizem respeito à capacidade organizacional (custos
da mobilização e da participação) dos grupos marginalizados potencializados por fatores
como custos de oportunidade, custos de organização, baixo nível de informação e baixo
poder de negociação. Assim,

As possibilidades de essas instituições responderem aos grupos pobres e


excluídos são reduzidas, em virtude da combinação dos fatores citados
(altos custos de oportunidade da participação, baixos níveis de
informação) e da assimetria de relações políticas que tornam esses grupos
particularmente vulneráveis ao clientelismo e cooptação (LUBAMBO;
MIRANDA, 2007, p. 12-13).

Aliadas a essas questões estão os problemas do controle social das ações dos agentes
públicos e dos governantes. O desafio é a distribuição assimétrica da informação entre os
“não-governantes” e os governantes e gestores, o que diz respeito aos níveis de
transparência da ação pública.
Esse problema é reproduzido internamente nas instituições governamentais na
relação entre governantes e burocracias, como também em relação aos representantes

984
populares. Muitas vezes, as entidades da sociedade civil, ONGs e associações do
movimento popular adquirem assento em instâncias participativas, replicando o problema
do controle social sobre suas ações. A rigor, a associação da capacidade de decisão
desenvolvida na sociedade à instituição de estruturas de deliberação participativas, no
âmbito do governo, definiria distintos níveis de empoderamento, nos quais incidem,
diferentemente, problemas de ação coletiva e de controle social. (LUBAMBO;
MIRANDA, 2007, p. 13).
Nesta linha de argumentação tem-se, portanto, que os elementos do desenho
institucional possuem os componentes importantes para a efetividade dos processos
participativos, propiciando a paulatina consolidação de empoderamento na sociedade.

ESTADO E SOCIEDADE CIVIL: CONFLITOS E PARTILHA DE PROJETOS


POLÍTICOS

A literatura sobre os conselhos municipais de política no Brasil tem pontuado


alguns elementos nas relações entre Estado e sociedade civil que se mostram recorrentes
no debate sobre os processos de democratização. A resistência por parte do Estado em
compartilhar o poder decisório, a transformação do poder deliberativo dos conselhos em
função consultiva, a falta de recursos (estrutura física e materiais), o despreparo da
burocracia estatal e a presença de institucionalidades paralelas são alguns dos elementos
que Dagnino (2000) aponta como limites à atuação dos conselhos. Do mesmo modo,
Pessanha, Campagnac e Matos (2006), apontam como entrave a capacidade do Estado de
esvaziar os conselhos. Os meios comuns para tanto são: a tomada de atitudes dos
governantes por fora dos conselhos e também o fato de não cumprirem as decisões
tomadas nestes espaços.
Para Dagnino, as relações que se estabelecem entre Estado e sociedade são sempre
tensas e permeadas pelo conflito, mesmo que variando a natureza e os graus dos conflitos.
Em suas conclusões a autora apresenta que “essa tensão deve-se à maior ou menor
aproximação, similaridade, coincidência, entre os diferentes projetos políticos que
subjazem às relações entre Estado e sociedade” (DAGNINO, 2002, p. 80).
A autora contesta as interpretações que baseiam a distinção entre Estado e
sociedade em determinações estruturais e reduzem a relação de oposição a premissa que
considera a sociedade civil como ‘polo de virtude’ e o Estado como ‘encarnação do mal’
(DAGNINO, 2000). Para além desse maniqueísmo, a autora procura evidenciar a
complexidade de tendências e sentidos que permeiam as relações na esfera política.

985
Segundo Dagnino, a noção de projeto político pode servir de variável explicativa
para melhor interpretar as relações entre Estado e sociedade civil. Em suas palavras:

Os conflitos que permeiam essas relações não podem, portanto, ser


simplesmente reduzidas a diferenças nas respectivas ‘lógicas de atuação’,
derivadas de características estruturais distintas, do Estado e da sociedade
civil. O que não significa dizer que a clivagem estrutural entre Estado e
sociedade civil não é suficiente para entender as suas relações e deve ser
combinada com outras clivagens que não necessariamente coincidem
com ela, mas a atravessam (DAGNINO, 2000, p. 281).

O foco mais acentuado dos conflitos remete à partilha efetiva de poder. De um


lado, a sociedade civil reivindicando participação efetiva nas tomadas de decisões. De
outro, o Executivo resistindo em compartilhar o seu poder exclusivo sobre as políticas
públicas. Dagnino (2000) descreve alguns desses mecanismos que bloqueiam a efetiva
partilha de poder nos espaços participativos (como os conselhos) e apresenta elementos
que dificultam a participação igualitária nos espaços públicos, em especial, a
desqualificação técnica e política dos representantes da sociedade civil. A autora afirma que
em vista da novidade desses espaços, novos desafios se impõem tanto ao Estado quanto
para a sociedade civil, como por exemplo, o reconhecimento dos diferentes interesses, a
capacidade de negociação (sem perda de autonomia), a construção do interesse público e
a participação efetiva na formulação das políticas públicas que venham a expressar esse
interesse.
De volta à noção de projeto político, Dagnino apresenta três subtipos em que há
atuação conjunta entre Estado e sociedade civil: os projetos políticos compartilhados, as
complementaridades e as parcerias. Na ideia de compartilhamento de projetos políticos
participativos e democratizantes, seu argumento destaca a existência de indivíduos em
“posições-chave” no interior do aparato estatal que podem se comprometer
individualmente com projetos participativos ou então serem hostis à participação,
inviabilizando o funcionamento dos espaços participativos.
No primeiro caso é possível pensar em um compartilhamento individual de
projetos, a despeito das eventuais concepções dominantes no Estado, já que a burocracia
estatal de carreira não está necessariamente subordinada a essas concepções. No segundo
caso, típico dos espaços públicos de constituição obrigatória, como os Conselhos Gestores,
trata-se do confronto entre projetos distinto. A definição ampla de projeto político que
estamos utilizando aqui definitivamente inclui as visões elitistas da política (e da

986
democracia) que permeiam nosso universo cultural, bem como a crença do predomínio
de uma razão tecnocrática que, em última instância, é antitética em relação à expansão dos
espaços públicos e à participação da sociedade civil (DAGNINO, 2000, p. 288).
O segundo subtipo é o do compartilhamento de um projeto político, por
complementaridade ou instrumental. Este é marcado pela confluência “perversa” entre o
projeto participatório dos anos 1980 e o projeto de Estado mínimo, enfaticamente
descentralizador. Segundo a autora, a perversidade decorre da condição de que “ambos os
projetos requerem uma sociedade civil ativa e propositiva”. Tal questão centraliza o debate
que visa avaliar as experiências de atuação conjunta entre movimentos sociais, lideranças
comunitárias e do Estado (DAGNINO, 2000).
O terceiro subtipo é o compartilhamento de projetos políticos através de parcerias.
Relaciona-se a áreas específicas em que o Estado não possui qualificação suficiente para
lidar com os desafios setoriais em questão (AIDS, movimento feminista, movimento negro,
etc.). Nesta proposição, o compartilhamento de projeto político possui caráter instrumental
por parte do poder estatal.
A tipologia proposta por Dagnino foi de grande valia para o objetivo da pesquisa,
isto é, de investigar a ação do Estado, particularizado na instância municipal, diante das
modificações implementadas em seu monopólio sobre os meios de administração pelos
novos arranjos administrativos, identificando o tipo de relação estabelecida entre as
dinâmicas das duas instâncias (Estado e sociedade) no que tange à partilha de poder, assim
como de caracterizar e propor uma compreensão das variáveis que interferem nessa
relação. A fonte através da qual, se investigou o Estado sobre o tema em questão foi
composta pelos conselheiros representantes do governo e da sociedade nos conselhos de
políticas da saúde de Goiânia e Aparecida de Goiânia.
A noção de projeto político e seus subtipos, mas especialmente de “indivíduos em
posições-chave” dentro dos conselhos, contribuiu para a compreensão das relações
estabelecidas entre Estado e sociedade nessas instâncias. Partiu-se da premissa de que o
Estado, na figura do gestor municipal, pode vir a desempenhar um papel preponderante
na efetividade dos conselhos, isto é, ele é um “indivíduo em posição-chave”. Assim, o
comprometimento político desse indivíduo com a democratização da gestão pública se
traduz em ações com potencial para afetar a efetividade das decisões e, no limite,
condicionar a natureza democratizadora dos conselhos. O comprometimento político com
uma causa ou crença que motiva suas ações em prol desta causa é o que se considera como

987
“vontade política” do gestor, isto é, as motivações de ordem valorativa que condicionam
sua ação.
Sugeriu-se que a vontade política do governante se relaciona com seu
posicionamento político-ideológico. Essa variável tem sido mencionada por pesquisadores
dos conselhos de diferentes linhas, entre eles Avritzer (2008).
Os três arranjos participativos de maior capilaridade no cenário posterior a 1988, o
Orçamento Participativo, os Planos Diretores e os Conselhos de Política, podem ser
diferenciados conforme três variáveis: iniciativa de proposição do desenho, organização da
sociedade civil na área em questão e vontade política do governo em implementar a
participação (AVRITZER, 2008).
As instituições participativas variam em sua capacidade de democratizar o governo
e, dentre as variáveis acima, o contexto de organização da sociedade civil e a presença de
atores no apoio aos processos participativos (AVRITZER, 2008).
Para demonstrar o peso da variável ‘contexto de organização da sociedade civil’,
no sentido de promover a efetividade deliberativa dos conselhos, o autor analisa os casos
dos conselhos de saúde de Belo Horizonte, Porto Alegre, São Paulo e Salvador.
Avritzer (2008) afirma que os conselhos de Belo Horizonte e de Porto Alegre são
exemplos de êxito ou de efetividade deliberativa. O conselho de saúde de Belo Horizonte
é um dos mais antigos do país, assim como o movimento de saúde da cidade. Ele destaca
a eleição de um representante da sociedade civil para a presidência do conselho como o
episódio mais importante envolvendo o conselho de saúde. No conselho de saúde de Porto
Alegre, Avritzer (2008) assinala a singularidade de não se considerar os prestadores de
serviços como parte da sociedade civil. Em síntese, esses dois casos repetem o êxito do
orçamento participativo em duas cidades que possuem sociedades civis fortes.
Mas, o que de fato interessa ao autor são as experiências nos conselhos de saúde
de São Paulo e de Salvador, em razão de, diferentemente das duas anteriores, ambas
lidarem com a oposição da sociedade política e com sociedade civil fraca.
No primeiro mandato do conselho de saúde de São Paulo, em junho de 1989
durante o governo de Luiza Erundina, pelo PT, não se verificaram conflitos fundamentais
entre os representantes do Estado e da sociedade civil. Já nos mandatos subsequentes, os
conflitos se manifestaram principalmente em duas situações de tensão política: na tentativa
de privatização do sistema municipal de saúde e nas investidas por parte da administração
municipal na composição da representação da sociedade civil no conselho (AVRITZER,
2008). O autor explica que:

988
[...] nos casos em que as organizações da sociedade civil são fortes, é
possível, através da sanção estabelecida pela lei e pelas formas de
organização dos movimentos populares em questão, resistir a uma
tentativa do governo de retirar poder da instância participativa. Dessa
forma, os desenhos de partilha se diferenciam dos desenhos de
participação “de baixo para cima” (orçamento participativo) devido a sua
maior independência do sistema político (AVRITZER, 2008, p. 55).

No caso do conselho de saúde de Salvador, as particularidades se dão em sua


composição. A representação da sociedade civil no conselho é constituída pela
Arquidiocese de Salvador, pela Associação Comercial e algumas associações ligadas a
questões raciais. O pesquisador afirma que essa composição afeta a expressão da sociedade
civil no conselho, bem como sua capacidade deliberativa.
Em uma pesquisa comparativa sobre a capacidade deliberativa dos conselhos de
saúde, o conselho de Salvador se destacou como tendo como principal deliberação o envio
de documentos ao governo. Pode-se, então, dizer que este é um caso diferenciado no qual
a fraqueza da sociedade civil e a hostilidade do sistema político leva a um conselho
inefetivo. O que diferencia o caso de Salvador do caso de São Paulo é a fraqueza da
sociedade civil (AVRITZER, 2008, p. 55).
De tal modo, considerou-se que a orientação político-ideológica do gestor público
pode nortear a vontade política do governante e conduzir a ações favoráveis ao sucesso das
práticas participativas, em especial, no caso, dos conselhos municipais.

A AÇÃO DO ESTADO NOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE SAÚDE DE


GOIÂNIA E DE APARECIDA DE GOIÂNIA

Argumentamos que o Estado possui um papel preponderante para a efetividade


dos conselhos municipais. Com isso não pretendemos concluir que a ação do Estado seja
a única responsável na definição da natureza política dos conselhos municipais, em
particular dos conselhos municipais de saúde, mas ressaltar sua centralidade devido ao
grande impacto que sua condução provoca nos processos de democratização dos espaços
públicos.
Diante disso, estabelecemos uma classificação ideal de ações que corresponderiam
ao desempenho de um gestor comprometido com a democratização dos espaços públicos
de deliberação, isto é, dos Conselhos Municipais de Saúde de Goiânia e de Aparecida de
Goiânia. Essa classificação constitui o parâmetro a partir do qual lidamos analiticamente

989
com as ações do Estado materializadas nos gestores municipais de saúde dos municípios
aqui estudados. No quadro abaixo demonstramos o comparativo entre as ações dos
gestores comprometidos com a democratização das decisões políticas com as ações das
Secretarias Municipais de Saúde de Goiânia e de Aparecida de Goiânia, relatadas nos
depoimentos dos conselheiros, na observação descritiva e nas atas das reuniões dos
conselhos.

QUADRO 1: COMPARATIVO DAS RELAÇÕES DAS SECRETARIAS


MUNICIPAIS DE SAÚDE COM OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE SAÚDE
DE GOIÂNIA E DE APARECIDA DE GOIÂNIA

ITENS AÇÕES IDEAIS AÇÕES DA SMS AÇÕES DA SMSAPG

Garantir estrutura Garantiu uma estrutura Não garantiu uma estrutura


Estrutura física
física adequada física adequada física adequada
Pessoal Garantir pessoal Possui pessoal administrativo
Falta secretário executivo
administrativo administrativo inadequado
Orçamento Garantir autonomia
Não possui verba própria Não possui verba própria
próprio orçamentária.
Controle das informações
Livre acesso às Demora no repasse de
com destinação de apenas
Informações informações da informações, tentativa de
20% das mesmas para
secretária sonegação
apreciação do CMSAPG
Os projetos são
Elaboração conjunta Os projetos são
Política Municipal encaminhados prontos
da Política Municipal encaminhados prontos para
de saúde para apreciação do
de Saúde. apreciação do Conselho
Conselho
Homologar as
Resistência em homologar Demora a homologar as
deliberações do
Deliberações as decisões do Conselho decisões do Conselho
conselho
Relação conflituosa e tensa.
Relação conflituosa e tensa.
Divergência de concepções
Divergência de concepções
Relação entre a políticas.
Relação de políticas
secretaria e o Ausência dos
cooperação Ausência dos representantes
conselho representantes titulares do
titulares do governo nas
governo nas reuniões e
reuniões do Conselho
eventos do Conselho
Fonte: Quadro elaborado pela autora.

As ações ideais propostas acima constituem o resultado do esforço para instituir


um tipo puro que viabilize alcançar determinados traços da realidade, mas que, conforme
Weber, não possuem correspondente na realidade (WEBER, 1979). Nesse caso,
procurou-se realçar ações que corresponderiam ao esperado de um gestor comprometido
com a democratização da gestão de saúde.
Ao estabelecer uma comparação entre as ações ideais e as práticas dos secretários
de saúde nos municípios, estudados notamos que, de um modo geral, suas ações mostram

990
uma tendência contrária a democratização do poder decisório. Nos itens avaliados, as ações
dos gestores dos dois municípios parecem limitar o poder deliberativo e fiscalizador do
CMSG e do CMSAPG, ao ponto de desvalorizar e reduzir suas atribuições relativas ao seu
papel consultivo previsto em lei.
Fernandes e Bonfim (2005) argumentam, baseando-se em autores do pensamento
clássico brasileiro (Oliveira Vianna e Vitor Nunes Leal), que a vida política municipal
sempre foi dotada de um caráter vertical nas relações entre governantes e governados.
Embora os autores adotem uma postura mais otimista em relação a democratização da
gestão municipal, atitudes como a omissão e o controle de informações e a resistência em
acatar as deliberações dos Conselhos são constantemente reiteradas nos estudos sobre os
processos participativos (DAGNINO, 2002; MOREIRA; ESCOREL, 2009; PESSANHA;
CAMPAGNAC; MATOS, 2006).
Diante do exposto, como qualificar a ação do Estado nos municípios de Goiânia e
de Aparecida de Goiânia? Nos discursos dos conselheiros e nas observações realizadas nas
reuniões e no seminário, é possível reiterar aqui o pressuposto de definir a ação do Estado
como uma ação concentradora de poder. Embora amparados por leis federais, estaduais e
municipais que garantem sua legitimidade, o CMSG e o CMSAPG têm enfrentado
obstáculos na democratização da gestão municipal que são impostos por suas respectivas
secretarias.
Entretanto, uma vez caracterizada a ação do Estado é necessário verificar suas
motivações, haja vista que nossa hipótese sustenta que a orientação político-ideológica do
gestor público pode nortear sua vontade política e, consequentemente, conduzir ações
favoráveis ou desfavoráveis ao sucesso das práticas participativas.

AS MOTIVAÇÕES PARA A AÇÃO DO ESTADO NOS MUNICÍPIOS DE


GOIÂNIA E DE APARECIDA DE GOIÂNIA

Ponderamos que a vontade política do governante está estreitamente vinculada ao


seu posicionamento político-ideológico. Por “vontade política” entendemos o
comprometimento político com uma causa ou crença que motiva suas ações em prol desta
causa, ou seja, as motivações de ordem valorativa que condicionam sua ação.
Diante disso, realizamos uma caracterização do gestor municipal em Goiânia e em
Aparecida de Goiânia, no intuito de identificar suas orientações político-ideológicas e,
assim, compreender as motivações para suas ações.

991
Ao assumir a segunda gestão da prefeitura da cidade de Goiânia (2009-2012), o
então prefeito, Iris Rezende (PMDB), nomeou o médico Paulo Rassi para a pasta da
Secretaria Municipal de Saúde, sendo que na época da nomeação o médico era presidente
do Sindicato dos Hospitais do Estado de Goiás502.
A família Rassi foi uma das pioneiras na área da saúde privada no Estado de Goiás.
No ano de 1944, Alberto Rassi fundou a Casa de Saúde Dr. Rassi. Os irmãos Rassi
construíram ainda o Hospital Geral de Goiânia e o Hospital São Salvador que leva o nome
de Alberto Rassi.
Em abril de 2010, Iris Rezende deixou o governo de Goiânia para disputar a eleição
para Governador do Estado de Goiás. Assumiu a prefeitura da capital o médico Paulo
Garcia (PT), que promoveu mudanças na equipe do governo. Paulo Rassi deixou a SMS e
o secretário municipal de saúde nomeado foi Elias Rassi503, médico e professor assistente
da Universidade Federal de Goiás. Elias Rassi já ocupou anteriormente o cargo de
secretário de saúde 504 no mandato de Nion Albernaz (PSDB), de 1997 a 2000.
Em Aparecida de Goiânia, o prefeito Maguito Vilela (PMDB) nomeou o médico
Cairo Louzada como Secretário Municipal de Saúde. Louzada permaneceu por poucos
meses na secretaria, pois precisou se afastar para tratar de um câncer que o levou a óbito.
O médico Rafael Nakamura ocupou interinamente o cargo de secretário municipal de
saúde durante o afastamento do titular e pouco tempo depois, em junho de 2010 foi
empossado505como titular da pasta.
Tanto a cidade de Goiânia quanto a de Aparecida de Goiânia, durante o decorrer
deste estudo, conviveram com prefeitos do PMDB. Em Aparecida de Goiânia, o governo
peemedebista corresponde a todo o período da pesquisa e em Goiânia, o governo do
partido citado se estendeu até março de 2010. O PMDB é classificado ideologicamente,
pela literatura, como um partido de centro ou de centro direita.
Em Goiás, a imagem do PMDB sempre esteve associada à de um de seus principais
líderes, Iris Rezende. A história política de Iris Rezende Machado data do final dos anos

502
http://www.vitoria87fm.com.br/v1/index.php?option=com_content&view=article&id=666:maguito-
empossa-rafael-nakamura-na-secretaria-de-saude-de-aparecida-&catid=3:noticias
503
Mestre em Serviço Social pela PUC-Rio. Especialista em Assistência Social e Direitos Humanos – PUC-
Rio. Professor Auxiliar da Universidade Castelo Branco (UCB)
504
Segundo o Instituto de Estudos Socioeconômicos - INESC
505
Prova disso é a existência ainda sob o primeiro governo Vargas de dois grandes movimentos políticos, de
um lado a ANL (Aliança Nacional Libertadora) e a AIB (Ação Integralista Brasileira), a primeira tinha como
liderança Luís Carlos Prestes e a segunda, de clara orientação
992 fascista era dirigida por Plínio Salgado, ambos
movimentos eran compostos por camadas médias urbanas e possuiam simpatizantes nas forças armadas.
50. Segundo Cunha (2008), ao longo desse período, Iris forjou-se como um político
centralizador, reproduzindo práticas políticas de caráter tradicionalistas. Iris Rezende
“construiu um estilo próprio de fazer política, que mescla a visão de que o Estado é
fomentador do processo de desenvolvimento econômico, mas também a de um Estado
ausente da economia quando a iniciativa privada pode ser mais competente que o Poder
Público” (CUNHA, 2008, p. 38).
Diante do exposto podemos considerar que a vontade política de Iris Rezende se
fundamenta numa concepção verticalizada do poder político, na qual cabe ao governante
decidir e aos governados acatar. Nessa visão política, práticas como o clientelismo político,
o autoritarismo administrativo, o controle das informações e a concentração de poder são
recorrentes.
Assim, o presente estudo sobre a relação da SMS e da SMSAPG, respectivamente
com o CMSG e com o CMSAPG, no que diz respeito à divisão do poder decisório, nos
permitiu identificar o tipo de ação praticada pelo Estado quanto à democratização da gestão
municipal no setor da saúde em Goiânia e em Aparecida de Goiânia. Verificamos que nos
dois municípios a ação do Estado pode ser qualificada como uma ação concentradora de
poder motivada por uma concepção política verticalizada.
Diante disso, nota-se que o processo de ampliação do demos na polis é marcado
por ambuiguidades. Embora, os conselhos sejam considerados novidades institucionais
acabam por reproduzir práticas políticas tradicionais. A baixa rotatividade entre os
conselheiros pode converter-se numa espécie de elitização do cargo. Assim como, o
controle das informações e a demora no repasse de documento são problemas que podem
ser relacionados à burocracia. De modo que, elitismo e burocracia, temas que perpassam
a prática democrática na concepção weberiana, nos levariam a endossar a impossibilidade
de governar por parte do demos.
Ainda no campo da ambiguidade. Os conselhos “são instrumentos de expressão,
representação e participação da população”, inseridos na esfera pública e vinculados ao
poder executivo, conforme define Gohn (2001). Nesse sentido, possuem um duplo caráter,
são instâncias de fiscalização das políticas empreendidas pelo poder executivo e ao mesmo
tempo são por ele mantidos, no que se refere a estrutura física e orçamento. São autônomos
para fiscalizar a política de saúde, mas são também dependentes dos recursos financeiros
e do repasse de informações por parte do poder executivo. Como demonstrado nesse
estudo, a dependência dos conselhos de saúde de Goiânia e de Aparecida em relação ao
executivo municipal foi um dos elementos responsáveis pela ineficiência de sua atuação.

993
Questão que nos leva a indagar, até que ponto, o vínculo institucional favorece ou não a
democratização das esferas deliberativas.
Tais questões parecem evidenciar os limites relativos à democracia participativa,
uma vez que, os conselhos representam o esforço de conjugar representação e participação,
isto é, de ampliar a participação social dentro das esferas de deliberação política.
No entanto, também é possível vislumbrar nesse estudo as potencialidades da
democracia participativa. Em primeiro lugar, seu papel educativo essa é a principal função
da participação numa democracia participativa. É pelo processo participativo que se
desenvolvem as habilidades necessárias à prática democrática. Nas reuniões, plenárias,
seminários, os conselheiros vão aprendendo as dinâmicas de funcionamento das
instituições públicas, a desenvolver argumentos e a tomar decisões políticas.
Em segundo lugar, o desenvolvimento da criatividade dos atores sociais a
efetividade das experiências participativas, no nível local resultaram da realocação de
saberes e práticas sociais à esfera administrativa. Nesse sentido, a experiência do CMSAPG
tem muito a contribuir. A possibilidade de acionar o Ministério Público em caso de
problemas na prestação de contas da secretaria municipal de saúde expressa uma
alternativa criativa de assegurar a efetiva fiscalização das políticas de saúde do município.
Outro exemplo de criatividade foi a sugestão de eleição para o cargo de secretário e saúde,
assim, o cargo seria ocupado por pessoas capacitadas para exercê-lo. A criatividade dos
atores sociais emerge das necessidades e das constatações do cotidiano de sua prática
política e podem representar grandes avanços na democratização das esferas de poder.
Em suma, o processo de ampliação do demos na polis é complexo e assinalado por
limites e potencialidades. Àqueles que defendem a democracia representativa sobressaem
os seus limites, já àqueles que defendem a democracia participativa sobressaem suas
potencialidades. Duas faces de uma mesma moeda, a Democracia real como pobre
aproximação do ideal democrático.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo realizado procurou refletir sobre um aspecto cada vez mais presente na
compreensão das relações ente Estado e sociedade. Pesquisamos cenários formados por
processos participativos na gestão pública do setor de saúde, nos municípios de Goiânia e
de Aparecida de Goiânia, assinalando desafios encontrados pelos conselheiros municipais
de saúde no processo de democratização da gestão local.

994
A partir da identificação dos elementos que matizaram as relações entre as
secretarias de saúde e seus respectivos conselhos, buscamos qualificar a ação do Estado
bem como as motivações que vieram a configurar a “vontade política” do gestor como um
fator relevante para a compreensão dessa nova forma política, instaurada no Brasil a partir
da Constituição de 1988.
Nas duas experiências conselhistas, consideramos a ação do gestor como ação
essencialmente concentradora do poder. A falta de estrutura física e de pessoal
administrativo adequados, a falta de verba orçamentária própria, o controle das
informações, o encaminhamento de projetos acabados para mera apreciação do conselho,
a resistência em homologar suas deliberações, a ausência dos representantes titulares e do
secretário de saúde nas reuniões e eventos realizados pelo conselho exemplificam as
dificuldades para que a “partilha de poder” aconteça como componente democratizador
das políticas públicas, tendo por referência os conselhos municipais. Assim, pudemos
perceber que as motivações que orientam as ações dos gestores estudados são norteadas
por uma concepção vertical do poder, no qual a participação se dá através da seleção dos
líderes políticos, nos termos de Weber, e não no processo de elaboração, execução e
fiscalização das políticas públicas.
A mera existência de arenas de participação no interior do Estado não é condição
suficiente para a democratização dos espaços de decisão política. O processo de ampliação
do demos na polis é complexo e envolve uma série de componentes políticas (projetos
políticos divergentes) e de condições (uma sociedade civil forte e atuante) para a sua
efetivação como argumenta Dagnino. A “vontade política” do dirigente político pode
contribuir para elucidar um desses elementos que desafiam as novas instâncias de
participação a criarem mecanismos de superação de tais obstáculos (denúncias no
Ministério Público, não aprovação dos relatórios de gestão, etc.), constituindo-se em área
ainda carente de estudos a respeito.

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fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: UnB, 2000, 3ª ed., vol. 1, p. 3-35.

996
OS CONSELHOS GESTORES NO BRASIL ATUAL:
CONSIDERAÇÕES SOBRE O SEU FUNCIONAMENTO

Henrique Mendes dos SANTOS506

Resumo: A constituição de 1988 conseguiu após ampla mobilização da sociedade brasileira colocar
no bojo institucional pela primeira vez uma preocupação maior com o desenvolvimento das
políticas públicas, estabelecendo com clareza as responsabilidades de cada ente federativo, a origem
e principalmente o destino dos recursos. Apenas para citar alguns exemplos, é fruto deste contexto
histórico a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), do Estatuto da Criança e Adolescente e
da Assistência Social enquanto política pública e responsabilidade do Estado brasileiro, também
são fruto da carta de 1988 os conselhos gestores. Pensados enquanto instâncias que mesclam
participantes do Estado e Sociedade Civil, estes órgãos têm por objetivo o acompanhamento e a
fiscalização das políticas públicas brasileiras, apresentando-se enquanto veículos importantes de
vocalização e controle democrático. Estas instâncias obtiveram exponencial crescimento com os
governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), e alguma estabilidade com a gestão de Dilma
Rousseff (2011-2016), todavia no atual contexto temos a impressão de que estes órgãos estão
relegados ao ocaso, cumprindo a triste tarefa de cumpridores de ordens do executivo, esvaziados
que estão da participação popular, compreendemos porém que este quadro não está descolado do
cenário político atual, desta forma nos cabe analisar : estes espaços chegaram ao fim tal qual parece
ter chegado a democracia brasileira ? Há possibilidade de resgate de suas funções democratizantes?
Assim, nos dedicamos neste ensaio a pensar sobre estas questões partindo das tensões existentes
na atual conjuntura brasileira, cuja complexidade parece aumentar com o passar dos dias e o
desenrolar dos fatos.

Palavras–Chave: Conselhos. Democracia. Participação.

INTRODUÇÃO

Por algum tempo na história recente brasileira, nos gabávamos de finalmente


termos conquistado a tão sonhada democracia, as instituições marchavam rumo ao pleno
funcionamento, tínhamos uma expressa divisão dos poderes, eleições periódicas e após
1994, presidentes que conseguiam cumprir seus mandatos.
A constituição de 1988 que conseguiu após ampla mobilização da sociedade
brasileira, colocar no bojo institucional pela primeira vez uma preocupação maior com o
desenvolvimento de políticas sociais, estabelecendo com clareza as responsabilidades de
cada ente federativo , a origem e principalmente o destino dos recursos foi um marco desta
época. Apenas para citar alguns exemplos, é fruto deste contexto histórico a construção do
Sistema Único de Saúde (SUS), do Estatuto da Criança e Adolescente e da Assistência
Social enquanto política pública e responsabilidade do Estado brasileiro, também são fruto
da carta de 1988 os conselhos gestores de políticas públicas.

506
Segundo CARVALHO (2012)

997
Pensados enquanto instâncias que mesclam participantes do Estado e Sociedade
Civil, os conselhos gestores tem por objetivo o acompanhamento e a fiscalização das
políticas públicas brasileiras, apresentando-se enquanto veículos importantes de
vocalização e controle democrático.
Estas instâncias inauguradas no início da década de 90, obtiveram exponencial
crescimento com os governos de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010), e alguma
estabilidade com a gestão de Dilma Rousseff (2011-2016). Todavia, no atual contexto
temos a impressão de que estes espaços estão relegados ao ocaso, cumprindo a triste tarefa
de cumpridores de ordens do executivo, esvaziados que estão da participação popular,
desta forma nos cabe analisar: estes espaços chegaram ao fim tal qual parece ter chegado a
democracia brasileira? Há possibilidade de resgate de suas funções democratizantes? Nos
dedicamos neste ensaio a pensar sobre estas questões partindo das tensões existentes na
atual conjuntura brasileira, cuja complexidade parece aumentar com o passar dos dias e o
desenrolar dos fatos.

CONSELHOS GESTORES E A INSTITUCIONALIDADE BRASILEIRA

“Meu partido é um coração partido, e as ilusões foram todas perdidas”, esta letra é
trecho da música ideologia, fruto do álbum do cantor Cazuza e que leva o mesmo nome.
Lançado em 01 de janeiro de 1988, trazia consigo já naquele contexto histórico a narrativa
de um poeta que descrente do contexto político buscava por algo que permitisse sentido
para a sua vida, ou para ser mais preciso, uma grande e verdadeira razão para viver.
A história brasileira no período da constituição da nova república em 1985 parecia
caminhar no sentido contrário, havia no ar uma esperança de novos dias, de maior
liberdade e de maior possibilidade de controle e acompanhamento das ações do Estado
por parte da Sociedade Civil. Marchávamos depois de vinte anos rumo a construção de
uma sociedade efetivamente democrática.
Na esteira deste desejo por democracia alguns importantes mecanismos de controle
social foram instaurados, em 1989 na gestão de Olivio Dutra (Partido dos Trabalhadores),
foi instaurado em Porto Alegre o orçamento participativo, considerava-se que a democracia
representativa não conseguia cumprir com todas as suas determinações, havendo
necessidade de conjugação desta perspectiva com a democracia participativa. Abria-se
caminho para ouvir, consultar e deliberar, e mais do que isso, esta experiência apresentou

998
a necessidade de abrir a caixa preta da burocracia estatal, tornando transparente as formas
e mecanismos de execução das políticas públicas.
Ainda na década de 1980 surgem os primeiros conselhos, havia naquele contexto
um debate sobre o seu caráter, consultivo para auscultar a população ou
normativo/representativo com poder de decisão? Foram criados na cidade de São Paulo
conselhos que iam desde o setor de transportes, da condição feminina e questão racial
(GOHN, 2001).
A partir da década de 1990, diversos conselhos gestores foram instaurados no
Brasil, estes possuem formação paritária e abrangem membros da esfera do Estado e da
Sociedade Civil, são divididos em duas modalidades: aqueles que atuam sob a ótica das
políticas públicas atuando em áreas como Assistência Social, Saúde e Educação e aqueles
que atuam junto a segmentos populacionais como negros, pessoas com deficiência e
crianças e adolescentes.
Estes órgãos foram recebidos com alta expectativa sobretudo por membros da
sociedade civil que na década anterior engendraram uma série de lutas visando o
reestabelecimento da democracia, abria-se possibilidade de em efetivo controle da coisa
pública e de uma participação equilibrada entre Estado e Sociedade Civil.
Passado o período de tormenta neoliberal capitaneado no Brasil por Fernando
Henrique Cardoso, houve entre 2003 e 2010 com Luís Inácio Lula da Silva um
reordenamento e consequente expansão dos conselhos gestores, temáticas como geração
de emprego, saúde, educação, meio ambiente, juventude, segurança pública, igualdade
racial e assistência social foram debatidas em 74 507
conferências nacionais. Abria-se,
portanto, oportunidade para acompanhar, fiscalizar e conferir as propostas estabelecidas
após longos processos de negociação e pactuação entre diferentes esferas da sociedade civil
e do Estado, colocava-se em voga a possibilidade de conjugação da democracia
representativa com a democracia participativa.
É inegável, portanto, que neste período específico da história brasileira
consubstanciou-se considerável avanço no que diz respeito a institucionalização desta
forma de participação, aumentando sobremaneira a possibilidade de ampliação do espaço
público e a consequente publicização de suas ações.
O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) aponta em pesquisa
realizada no ano de 2012 existência de 40 conselhos gestores a nível nacional, estes estão

507
Citamos aqui a importante obra de SADER (1988), quando o mesmo destaca o surgimento de associações
de moradores , sindicatos, partidos políticos e de movimentos sociais como o MST

999
divididos entre conselhos de políticas públicas e conselhos de direitos, já o IBGE (2010)
apurou a existência de 38.875 conselhos municipais, provando que estes espaços são hoje
uma realidade consolidada. Todavia, sabemos que a existência formal destes espaços não
é o bastante, quando se trata de conselhos gestores, questões como a cooptação de
conselheiros, baixa qualidade na participação e a burocratização destas instâncias tem
aparecido com frequência enquanto temas geradores de pesquisas e reflexões.
Entendemos aqui, que as questões apresentadas acima apesar de importantes se
constituem enquanto elementos endógenos, não sendo suficientes, portanto, para
compreender a distância que há entre existência formal de um lado e operação qualitativa
por outro.
Defendemos que uma análise profícua das experiências conseilhistas bem como o
seu atual quadro, carecem de um exame que articule elementos endógenos e exógenos.
Para isto, faz-se mister tratar do panorama político brasileira. Que há uma crise nas
instituições brasileiras parece não haver dúvida, esta crise traz consigo desapreço de parte
considerável da população pelo funcionamento destas. Ademais, nos parece aqui que o
próprio sentido da democracia parece estar em jogo, visto que no atual panorama forças
que pareciam superadas ressurgem com força, renegando qualquer possibilidade de
aprofundamento do pacto estabelecido com a instauração da nova república, disto
trataremos no próximo item deste trabalho.

DEMOCRACIA: UM CONCEITO EM DISPUTA

Este item tem como objetivo resgatar alguns conceitos sobre democracia,
analisando o seu alcance e a disputa no Brasil atual, para isto utilizaremos os autores
Coutinho (2006) e Wood (2011).
A utilização da categoria democracia tanto no que diz respeito ao seu enfoque
analítico quanto em sua perspectiva prática tem sido empregada por espectros que vão da
esquerda à direita, de liberais a socialistas todos acabam por evocá-la como um ente
sobrenatural que irá resolver todos os problemas de uma sociedade de classes baseada em
uma desigualdade estrutural e que parece não ter fim, um leitor desavisado e desatento
poderia inclusive se deixar levar pela pujança do nome e através de sua simples explanação
apoiar medidas que contrariam a própria concepção do termo e seus impactos na vida
cotidiana.

1000
Mas o que seria de fato a tão propagada democracia? Quais são suas possibilidades
efetivas de alcance e sobretudo, como tem sido produzido o discurso sobre esta categoria?
No escopo liberal pensadores como Alexis de Tocqueville compreendiam que a
democracia era em si algo inevitável, o mesmo afirmava que a tendência a igualdade de
condições seria um “desígnio divino”, sendo impossível de ser evitada, todavia para o autor,
esta igualdade levaria fatalmente a uma “tirania da maioria”, esmagando a liberdade
individual. Havia, portanto, uma contradição entre liberdade e igualdade, sendo a
democracia algo inevitável mas com uma concepção negativa (COUTINHO, 2016).
Coutinho também destaca que os primeiros regimes liberais tinham como
característica a participação restrita, citando a Grã-Bretanha dos séculos XVIII e XIX, este
afirma que a prática liberal consistia em sufrágio extremamente limitado, de modo que
apenas aqueles que dispunham de propriedades ou pagavam determinando montante de
impostos poderiam eleger seus representantes, este modelo segundo o autor vigorou até o
século XX.
Esta cisão entre proprietários e o restante da população e a eleição de
representantes no parlamento inglês também foi descrita por Wood (2011), esta afirma
que a cidadania ativa seria reservada apenas para homens proprietários, excluindo as
mulheres e aqueles que não tivessem “com que viver por si só”, desta forma a autora aponta
que havia uma divisão entre elite proprietária e uma multidão trabalhadora.
Percebe-se, portanto, que defender a democracia não fazia parte dos planos dos
pensadores liberais, apenas com o passar do tempo esta categoria foi sendo incorporada a
esta corrente filosófica, isto no entanto não ocorreu por mera mudança de convicção, aqui
temos que considerar a atuação de grupos como os cartistas e do movimento feminista,
cujo um dos lemas era justamente a luta pelo sufrágio universal.
Coutinho (2016) afirma que paulatinamente foram sendo incorporados ao ideário
liberal alguns direitos de cidadania e que estes direitos tinham como pressupostos a
socialização da participação política, desta forma alguns regimes assumiram a forma liberal-
democrática incorporando questões como sufrágio universal e a organização sindical /
partidária. Em todo caso, havia um importante dilema, o avanço da democracia e a
pavimentação de um caminho que levasse a soberania popular induziriam a um eminente
processo de construção de uma lógica e uma prática que iriam chocar-se com o processo
de reprodução do capital, desta forma como fugir desta “armadilha”?
Entendemos que coube ao pensamento liberal não apenas tolerar a democracia,
mas incorporá-la aos seus ditames, entretanto para que isto ocorresse a estrutura e a

1001
desigualdade de classes deveria ser preservada, a igualdade civil neste bojo e o próprio
sufrágio universal não deveriam ser empecilhos, pois se por um lado a cidadania independe
da posição socioeconômica, todavia a apropriação do trabalho excedente dos trabalhadores
tampouco encontra algum tipo de limitação na esfera formal.

Na democracia capitalista, a separação entre a condição cívica e a posição


de classe opera nas duas direções; a posição socioeconômica não
determina o direito à cidadania – e é isso o democrático na sociedade
capitalista – mas, como o poder capitalista de apropriar-se do trabalho
excedente dos trabalhadores não depende de condição jurídica ou civil
privilegiada, a igualdade civil não afeta diretamente nem modifica
significativamente a desigualdade de classe – e, é isso que limita a
democracia no capitalismo. As relações de classe e capital e trabalho
podem sobreviver até mesmo à igualdade jurídica e ao sufrágio universal.
Neste sentido, a desigualdade política na democracia capitalista na
democracia capitalista não somente coexiste com a desigualdade
socioeconômica, mas a deixa fundamentalmente intacta (WOOD, 2011,
p. 184).

Desta forma, nossa análise caminha na seguinte direção: por um lado há que se
reconhecer os avanços do processo democrático em países norteados pelas ideias liberais,
pois sem dúvida, sufrágio universal, eleições periódicas e separação de poderes
representaram importantes conquistas, todavia é preciso sempre lembrar que estas
conquistas acabam em última análise por chocarem-se com a lógica de acumulação e
concentração típicas de uma sociedade regida pelo capital, isto traz um importante dilema
para aqueles que defendem uma democracia direta cujo fundamento seja baseado em uma
legítima participação popular, pois se por um lado existem hoje uma série de instituições
ancoradas no funcionamento de uma democracia de cunho liberal, nos parece claro que
isto não tem sido suficiente para a construção de uma sociedade com níveis menores de
desigualdade e ampla participação política.
Por fim, é necessário esclarecer que concordamos aqui com a ideia de Coutinho
(2006) sobre democracia, na opinião deste autor a democracia (ou democratização como
chegou a afirmar em ensaios recentes) possui valor universal, ou seja, ela se expressa
naquilo que o autor classifica como uma crescente socialização da participação política.
Entretanto, é necessário reconhecer que embora importantes, os conceitos de
democracia que de forma intermitente estão em disputa permanecem via de regra
ancorados em formas de pensar oriundas de países centrais no capitalismo mundial, de
modo que é necessário pensar quais são as ferramentas que devem ser adicionadas para

1002
que haja melhor compreensão da realidade brasileira e do funcionamento de suas
instituições.

DEMOCRACIA E BRASIL: UM CASO PERDIDO?

Descrença no funcionamento das instituições, marchas lideradas pela extrema-


direita, desapreço pelas leis, golpes de Estado, todas estas palavras têm feito parte do
cotidiano dos brasileiros, o momento atual é de descrença e desilusão, o “gigante da
América Latina” parece estar em coma, e em processo irreversível.
Nos interessa, portanto neste item, analisar quais são os motivos que levaram o país
ao atual quadro, quais foram os processos que se imbricaram e formaram hoje a situação
esdrúxula que mescla crise económica, crise política e que ao mesmo tempo
proporcionaram um recrudescimento da democracia e consequente aumento do
autoritarismo.
A história brasileira nos mostra que o apreço pela democracia nunca foi um ponto
central em nossa formação, nossas revoluções foram todas feitas pelo alto, sendo fruto de
acordos entre as elites que dominam o país, de modo que a participação popular e sua
consequente capilarização nas respectivas instituições seja sempre vista como um perigo,
algo a ser temido e sobretudo evitado.
Esta construção ocorreu de forma paulatina, se formos pensar o Brasil império
autores como Carvalho (2006), irão constatar que ao final deste período histórico tínhamos
uma população analfabeta, uma sociedade escravocrata e latifundiária, a ideia de cidadania,
portanto está subjugada, renegada a um segundo plano, lembremos por exemplo que os
escravos não possuíam direitos básicos e eram tratados como propriedade por seus
senhores.
Não é de se estranhar também que à época do império, os próprios senhores se
regozijavam com o fato de não haver fronteiras entre o público e privado, neste caso, a
classe dos senhores não apenas se servia do Estado, mas operava no seu interior
promulgando leis e serviços que lhe satisfaziam conforme a necessidade.
A passagem do império para a república também não foi capaz em si de modificar
o panorama, mudou-se o regime mas os atores continuaram os mesmos, o início do século
XX no Brasil marca um forte compromisso com ideias liberais e o pouco compromisso
com o enfrentamento da Questão Social, panorama que apenas sofreria modificações com
a chegada de Vargas ao poder.

1003
Importante salientar que este período representa principalmente a partir da década
de 1930 importantes transformações nas estruturas social e económica do país, destacamos
aqui o crescente processo de urbanização e as primeiras organizações de cunho anarquista
e socialista. Estes processos imbricados auxiliaram na consolidação de uma cultura contra
hegemónica e que pela primeira vez na história possibilitou uma substancial luta por
direitos, luta esta que foi organizada pelos membros pertencentes a classe trabalhadora
através de suas organizações e associações.
Isto mostra que mesmo com um processo que via de regra tem sido organizado
pelas elites, que o próprio rito de desenvolvimento de um país da periferia do capitalismo
como Brasil, traz em seu bojo contradições que possibilitam a entrada em cena de uma
classe disposta a se insurgir ou mudar as instituições , denotando, portanto, que os
508

processos de luta e busca por hegemonia não são lineares.


Se formos levar em conta o aspecto democrático, é preciso dizer que esta época
inaugura uma tendência que iria se estabelecer a posteriori, ou seja, a designação do
comunismo como algo a ser combatido, este “fantasma” acaba por servir de pretexto para
a impugnação especialmente de direitos civis e políticos, estabelecendo ditaduras que
variavam quanto ao formato e protagonismo.
Foi o caso por exemplo do golpe de 1937, quando um documento intitulado Plano
Cohen acabou por servir como pretexto para o fechamento de instituições e a instauração
de uma ditadura, um dos efeitos desta ação foi o encerramento das atividades do Partido
Comunista Brasileiro sendo obrigado a operar na clandestinidade.
Assim, entre 1937 e 1945 manifestações políticas foram suspensas, o congresso era
composto de meras figuras decorativas, a imprensa era proibida de atuar, ao mesmo tempo
em que opositores do regime eram presos e torturados. Esta situação perdura até 1946
quando foi promulgada uma nova constituição, e nesta é restituído o direito ao voto, sendo
esta conquista estendida a todos os brasileiros, exceção feita aos analfabetos e soldados das
forças armadas, no plano partidário segue o combate ao PCB, havendo cassação do registro
do partido em 1947 após breve período de funcionamento pós-clandestinidade.
Pelo menos naquilo que tange o sufrágio, o período compreendido entre 1946 e
1964 apresentou substanciais avanços , esta época representa o surgimento de importantes
partidos políticos , destacamos por exemplo o PSD, PTB e UDN, para que tenhamos uma
ideia , em 1964 às vésperas do golpe de Estado, uma pesquisa realizada pelo IBOPE

508
Doutorando em Ciências Sociais pela UNESP/FCLAR. E-mail: etohfaria@gmail.com.

1004
destacou que 64% da população brasileira 509
tinha alguma preferência partidária ,
mostrando que a população sentia-se de fato representada e que os partidos políticos eram
capazes de realizar a mediação necessária entre sociedade civil e sociedade política.
Fato é, que o golpe civil-militar imposto em 1964, tratou de colocar por terra
qualquer ilusão no que diz respeito ao avanço dos partidos políticos e a democratização
das instituições brasileiras, a promulgação de nada mais que 17 atos institucionais durante
os vinte anos de regime, interrompeu de forma violenta qualquer possibilidade de
participação popular e ampliação da esfera pública.
Os chamados “anos de chumbo” foram o cenário necessário para o início da
experiência neoliberal na América do Sul, em suma, com transições pactuadas pelo alto
criaram-se as condições para a efetivação de uma “democracia” imune as pressões
populares, cujo principal interesse é a superexploração dos trabalhadores e a acumulação
em tempo cada vez maior de capital.

Com efeito, a meta dos ideólogos neoliberais, como pode ser facilmente
notada no conteúdo de suas receitas políticas, era a constituição de
regimes democrático-liberais que apoiassem fundamentalmente na
desmobilização e na apatia dos cidadãos, apresentando eleições regulares
disputadas, na prática, apenas por “elites Políticas”, pró-status quo
(DEMIER, 2017, p. 55).

No que diz respeito ao caso específico do Brasil, levemos em conta que a partir de
meados da década de 1970 a ditadura militar brasileira encontrava-se combalida, havia
claros indícios de derrocada do regime, capitaneados pela queda do barril de petróleo e
pelo exaurimento do “milagre” económico, também devemos considerar aqui a
reorganização do campo da esquerda no âmbito da sociedade civil . 510

Desta forma, o curioso caso brasileiro acabou por produzir uma sociedade civil que
conseguia ao final do período ditatorial colocar suas demandas em pauta, ou seja, aquilo
que Coutinho (2006) classificava como uma sociedade civil do tipo “ocidental”, assim, o
período que vai do início dos anos 1980 até 1989 acaba por constituir-se em um intervalo
no qual a relação entre Estado e Sociedade Civil ocorreu por vias contraditórias, havendo
momentos de hegemonia dos movimentos situados no campo de esquerda. O resultado

509
1989-1930: República Velha; 1930-1937: Governo Getulino (1930/34 - Governo Provisório, 1934/37:
Governo Constitucional); 1945-1964: Democracia Populista; 1988 - dias atuais: redemocratização.
510
Os representantes nas Conferências recebem o nome de “Delegados” por terem sidos escolhidos e
credenciados para representarem um determinado setor da sociedade ou do poder público.
1005
deste curioso quadro foi a constituição brasileira de 1988. Desta forma concordamos com
Demier (2017), quando este afirma que:

Tal situação fez com que o projeto da cúpula dirigente da ditadura, isto
é, a construção de um “regime baseado em maiorias eleitorais
conservadoras, avesso a mobilizações populares e presidido pela “razão
técnica” e apolítica não pudesse se exprimir plenamente naquele que foi
o principal resultado jurídico-político do processo de transição: a Carta
Constitucional de 1988 (DEMIER, 2017, p. 58).

Tínhamos entre outros avanços, o reconhecimento através da carta constitucional


de 1988 da Assistência Social enquanto política pública superando enfim anos de
assistencialismo e esquecimento do Estado, redução da jornada semanal de trabalho de 48
horas para 44 horas, férias remuneradas com direito a acréscimo de 1/3 do salário, direitos
iguais para trabalhadores urbanos e rurais, inclusão de seguro-desemprego e ampliação
para 120 dias do período de licença às gestantes. Outro aspecto importante foi a
descentralização político-administrativa, revertendo o padrão que vigorava desde a ditadura
civil-militar.
Merece destaque na carta de 1988 sua orientação participativa, mesmo com as
dificuldades impostas por partidos de centro e direita, houve a promulgação de emendas
populares e o consequente movimento que acabou por criar instituições participativas nas
áreas de saúde, planejamento urbano e Assistência Social, o resultado segundo Avritzer
(2016), foi a criação de mais de vinte mil conselhos gestores no país, estes conselhos se
espalharam e ganharam capilaridade em todo o território brasileiro.
Em todo caso, a história brasileira parece repetir-se, a promulgação da constituição
de 1988 e seus avanços democráticos pouco foram aproveitados pela população brasileira,
logo a hegemonia neoliberal iria se fazer sentir, a eleição de Fernando Collor de Mello e
posteriormente Fernando Henrique Cardoso foram o início do desmonte pelo qual a carta
constitucional foi submetida, esta época marcou a entrada definitiva do Brasil no âmbito
das economias modernas, apresentando todavia um duro retrocesso para a classe
trabalhadora. Esta ofensiva apresentava entre outros pilares, a privatização de empresas
estatais, a criação de agências reguladoras e o controle da política monetária e cambial,
apostava também em uma focalização das políticas sociais, sendo estas destinadas apenas
aos grupos situados na esfera da extrema pobreza.
A ascensão do Partido dos Trabalhadores e Luís Inácio Lula da Silva trouxe
esperanças de reversão do quadro estabelecido pela quimera neoliberal, fruto de uma

1006
composição de forças que tinham na figura do ex–metalúrgico a figura principal, o governo
petista foi fruto de avanços e recuos no que diz respeito a questão democrática, uma vez
que ao mesmo tempo em que tentou tornar permeável as instituições aos anseios e desejos
dos trabalhadores, por outro lado continuou a seguir a política macroeconómica de
governos anteriores, resultando portanto em um governo marcado por contradições e
reviravoltas.
Esta mesma orientação foi seguida por Dilma Rousseff, todavia sem a mesma
habilidade política de seu antecessor, mesmo concluindo o primeiro mandato e sendo
reeleita em 2014, a mesma sucumbiu diante da organização de setores da direita cujas
principais lideranças (incluindo partidos políticos, setores do judiciário e a imprensa) já não
conseguiam mais perceber o Partido dos Trabalhadores enquanto condutor de seu projeto
político, fato é que o PT foi apenas tolerado pela elite brasileira quando se viu obrigado a
abandonar o seu programa original e reorientá-lo para uma agenda pró-mercado, todavia a
burguesia brasileira nunca desejou de fato que a presidência fosse ocupada por uma partido
cuja origem foi forjada em um amplo processo de luta dos trabalhadores cujo propósito
era a redemocratização do país.
Houve então um golpe de Estado costurado pelo legislativo com apoio do judiciário
e importantes setores da mídia, criaram-se portanto as condições para a deposição de uma
presidenta eleita de forma democrática, o triste espetáculo foi televisionado como uma
novela cujo final já estava escrito, mais previsível impossível.
A consequência deste episódio foi o paulatino afastamento dos brasileiros de suas
instituições, como se estas não fossem mais capazes de trazer respostas para os problemas
vividos no cotidiano, não obstante ressurgem grupos clamando por soluções baseadas no
autoritarismo cujos exemplos são o apelo a repressão policial, o fechamento do congresso
nacional, o descrédito dos partidos políticos e até mesmo o apelo a figuras cuja plataforma
política são o anti-comunismo, o arbítrio e o desrespeito pelas minorias.
O quadro traçado até aqui traz influências sobre os conselhos gestores, visto que
estes órgãos não estão apartados da realidade, desta forma a última sessão deste trabalho
se dedicará a apontar algumas tendências presentes nestes espaços, bem como
possibilidades de reversão deste quadro.

1007
CONSIDERAÇÕES FINAIS: HÁ SAÍDA PARA OS CONSELHOS GESTORES?

Vimos que a questão democrática no Brasil nunca foi totalmente resolvida,


permanecem vigentes posições que conclamam o arbítrio e o autoritarismo, ao mesmo
tempo, permanece um clima de desilusão com as instituições, cujo funcionamento parece
ocorrer de forma contrária aos anseios da maioria da população.
Os conselhos gestores foram mecanismos pensados no sentido de diminuir o
abismo existente entre o Estado e a Sociedade Civil, são frutos direitos da constituição de
1988 e obtiveram algum momento de êxito e de crescimento com as experiências do
partido dos trabalhadores a frente do Estado.
Todavia, pouco a pouco estes espaços foram perdendo importância, e hoje não
seria exagero dizer que tratam-se apenas de apêndices da administração pública, sem
possibilidade de fato de reverter o quadro de implementação de políticas públicas de “cima
para baixo”. De modo que o quadro que hoje se coloca é que salvo raras exceções, temos
conselhos cujo propósito foi totalmente desvirtuado, não havendo possibilidade de
acompanhamento e deliberação efetivos das políticas públicas.
Assim sendo, algumas tendências são observadas nestes órgãos:
 Assembleias esvaziadas, sem a devida presença da população
 Pouca ou nenhuma efetividade deliberativa
 Ocupação dos espaços por membros do executivo, sem a devida paridade com a
sociedade civil
 Omissão de documentos necessários para a análise e acompanhamento das pautas
 Persistência do despreparo dos conselheiros

O quadro denota que o projeto do qual os conselhos surgiram está fracassando.


Todavia este fracasso se dá não apenas por questões endógenas, mas como vimos
anteriormente por questões exógenas, ou seja, não seria um erro dizer que a baixa
densidade de nossa democracia, somada aos nossos contumazes arroubos autoritários, são
questões que tem trazido sérias implicações para o funcionamento destes espaços.
Todavia abandoná-los não nos parece uma boa estratégia, embora estes espaços
tenham sido ocupados via de regra por instituições e atores que não possuem ligação com
a causa democrática, compreendemos que o funcionamento dos conselhos gestores é
processo que ainda encontra-se em curso, cuja possibilidade de reversão do atual quadro
ainda é possível.

1008
A dinâmica destes espaços é contraditória, e por isso mesmo dada a possibilidades
de conquistas por parte daqueles que defendem políticas públicas que de fato estejam
articuladas as reais necessidades da população. Compreendemos que é através destas que
descortina-se a possibilidade de desmercadorização da vida, tão em voga nos tempos atuais.
Um exemplo de sucesso foi a rejeição por parte do Conselho Municipal de
Assistência Social de São Paulo do famigerado Programa Criança Feliz, uma vez que de
forma correta os conselheiros afirmaram não haver informações com relação a questões
técnicas, operacionais, metodológicas e conceituais de vinculação ao Sistema Único de
Assistência Social e a Tipificação Municipal.
Também cabe considerar o afastamento do povo de suas instituições, esta questão
parece espraiar-se para os conselhos, embora tenhamos que considerar sua existência ainda
recente, levamos em conta que há um distanciamento dos principais interessados das
assembleias promulgadas por estes espaços. Autores com Raichelis (2008), apontam para
um possível substituísmo, ou seja, na ausência da população dos processos decisórios estes
são substituídos por técnicos e profissionais envolvidos diretamente com o andamento das
políticas públicas.
Não se trata aqui de desconsiderar a participação destes profissionais, antes de tudo
consideramos louvável e importante que agentes comprometidos com a democratização
do Estado brasileiro estejam presentes em importantes espaços como os conselhos,
entretanto, entendemos que tal participação não tem sido suficiente para acumular forças
visando uma mudança de panorama. Continuamos a defender que o processo participativo
é sobretudo pedagógico, e que se faz necessária a participação da população, entendida
aqui como um duplo movimento: aprendizado e contribuição.
Aprendizado porque são necessários o domínio dos termos utilizados nas
assembleias e a compreensão do debate orçamentário, além disso, a democracia envolve
os atos constantes do dissenso e do consenso, demandando, portanto, a identificação dos
interesses em disputa, dos blocos de poder e dos atores presentes no seio de espaços como
os conselhos. Entretanto, entendemos também que a participação popular pode contribuir
para o correto andamento destas instâncias, visto que as experiências cotidianas, baseadas
em questões materiais devem servir como elementos norteadores das políticas públicas,
neste caso compreende-se o saber popular enquanto valor importante e que pode aliar-se
ao saber técnico.
Todavia, entendemos aqui que este processo requer tempo e vontade política
daqueles que comandam o executivo, neste caso não nos restam muitas ilusões, é

1009
extremamente difícil pensar a democratização destas esferas sem um projeto político que
esteja devidamente afinado com a ideia de ampliação do espaço público e das instituições
brasileiras. Assim, nos afastamos das concepções messiânicas que pensam a participação
como algo em si mesmo, sendo capaz de promover as mudanças das quais a sociedade
necessita sem a mediação da sociedade política e de seus atores.
Destacamos que compreender o ainda nebuloso contexto político tupiniquim é
tarefa importante. Analisar o presente e projetar o futuro são necessidades urgentes. O
desmonte do Estado brasileiro , a instabilidade política e o descrédito da população com
as instituições são questões que devem ser levadas em conta, por outro lado, o cenário para
2018 pode trazer a recuperação (mesmo que parcial) dos ensejos democráticos que
permeavam as lutas travadas pela sociedade civil na década de 1980 ou caminhar na sua
direção oposta, neste caso teríamos um recrudescimento das práticas não comprometidas
com a democracia e a consequente ruptura com qualquer projeto participativo. O histórico
brasileiro nos mostra que a segunda hipótese, longe de ser delírio ou fantasia é
possibilidade real e apresenta-se enquanto opção concreta, desta forma a análise das
relações contraditórias entre Estado e Sociedade Civil como eixo norteador de influência
sobre os conselhos gestores é tarefa peremptória.

REFERÊNCIAS

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1010
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Martins Fontes editora, 2014.

WOOD. E. M. Democracia contra Capitalismo: a renovação do materialismo histórico.


São Paulo: Boitempo, 2011.

1011
AS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO ESPAÇOS
HÍBRIDOS DE REPRESENTAÇÃO E PARTICIPAÇÃO EM
GOVERNOS RESPONSIVOS

Everton Henrique FARIA511

Resumo: Muito tem se discutido nos últimos anos acerca dos sistemas de representação
institucionais adotado pelas democracias representativas. Novos sujeitos, estrutura descentralizada
de poder, gestão mais eficiente, efetivação de direitos de cidadania e o papel das instituições
políticas na vida pública brasileira, são temas que adensam o debate no campo político institucional
e despertam diversas reflexões sobre os caminhos que as democracias têm percorrido. Nesta
direção, as Ciências Sociais vêm estudando os paradigmas que a institucionalização da participação
e da representação suscitam no campo dos estudos científicos, bem como os novos modelos
democráticos estabelecem a inserção e o reconhecimento de novos personagens políticos em meio
as estruturas estatais. Tendo como ponto de partida as características assumidas pela configuração
da democracia no Brasil após a Constituição de 1988 – CF/88, este artigo se propõe a entender
como a sociedade civil se tornou um campo importante de atuação na busca pela efetivação de
princípios de cidadania em um Estado democrático absorvendo em suas estruturas representantes
que expressam a diversidade de instituições e interesses públicos em um processo de
descentralização de poder em busca da responsividade governamental frente aos interesses da
coletividade. Assim, as Conferências de Políticas Públicas são utilizadas para demonstrar como os
espaços híbridos de representação e participação se tornaram um campo político importante de
negociação de interesses entre o Governo e a Sociedade Civil nos processos de planejamento e
decisão da Gestão Pública. Para tanto, o aporte metodológico baseia-se nas técnicas de pesquisas
bibliográfica e documental, com recorte nas teorias desenvolvidas sobre a democracia, a
representação e a participação nos últimos anos.

Palavras-Chave: Conferências de Políticas Públicas. Democracia. Participação e Representação.

INTRODUÇÃO

Muito tem se discutido nos últimos anos acerca do sistema de representação


institucional adotado pelas democracias representativas. Novos sujeitos, uma estrutura
descentralizada de poder, gestão mais eficiente, efetivação de direitos de cidadania e o
papel das instituições políticas na vida pública brasileira, são temas que adensam o debate
no campo político institucional. Consequentemente, a institucionalização da participação e
da representação suscitam paradigmas que vêm sendo estudados nos dias atuais pelas
Ciências Sociais.
Tendo como partida as características assumidas pela configuração da democracia
no Brasil após a Constituição de 1988 – CF/88, a representação institucional no Brasil

511
Os Conselhos Gestores desempenham papel importante na definição das políticas públicas na medida em
que estes desenvolvem processos de acolhimento de demandas e de definição de prioridades e encaminha
ao poder público para que sejam solucionados.
1012
adotou novas formas e aglomerou no cenário político diferentes personagens reconhecidos
a partir de então pela institucionalidade legal e o campo de atuação que até então se pautava
pelo reconhecimento institucional destes sujeitos passou a dar espaço para a busca de
legitimação da representação por estes sujeitos políticos que sempre estiveram à margem
das estruturas estatais.
O poder assumido pelo Estado democrático passa a ter como premissas básicas a
descentralização do poder, a gestão democrática e os direitos de cidadania, que passaram
a ser a bandeira de atuação dos sujeitos políticos inseridos nas estruturas governamentais.
Isto é, para além do reconhecimento institucional era necessário que os personagens
políticos mobilizam-se a conquistar espaços na arena política que já estavam ocupados
pelos personagens paternalistas que se tornaram uma das heranças mais tortuosas da
redemocratização brasileira, uma vez que mesmos com novos sujeitos na arena política
antigos hábitos estabeleciam amarras ao alargamento do Estado e a descentralização efetiva
do poder.
Não obstante, estes sujeitos políticos entram em cena e o movimento globalizatório
traz novas perspectivas para o debate a ser realizado na gênese das ciências sociais. Debates
estes que se adensam à medida que movimentos sociais, instituições políticas - tais como:
os partidos políticos, o sistema partidário, o sistema eleitoral, os conselhos gestores de
políticas públicas; o arranjo federativo, as características e os efeitos das formas de governo,
bem como as entidades presentes em toda a sociedade civil -, visam a efetividade da
descentralização do poder e o rompimento com as práticas tradicionalistas existentes até
então.
Deste modo, o Estado passou a oferecer aos sujeitos políticos um campo “ilusório”
de atuação, onde este introduzia um discurso imaginário dotado de representação e de
normas que direcionam suas ações. Contudo, mesmo com vieses democráticos o Estado
criou maneiras de engessamento diretas ou indiretas para a efetividade da ação política por
estes sujeitos, como pode ser percebida, por exemplo, pela burocratização legal dos
movimentos sociais e pelo cooptação dos sujeitos pertencentes à sociedade civil para
ocuparem cargos públicos.
Tanto a burocratização legal quanto a cooptação dos sujeitos políticos realizadas
pelo poder público, acabam por enfraquecer as discussões travadas dentro das estruturas
públicas e a arena política passa a ter como intermediadora entre Estado e sociedade civil
os próprios mecanismos previstos na Constituição, tais como: os conselhos gestores de

1013
políticas públicas, os fóruns institucionais de discussões, as conferências públicas, as
audiências públicas e as próprias comissões setoriais do governo.
Não obstante, será a sociedade que dará a legitimidade ao poder do Estado, que
dentro de sua funcionalidade ocultará as necessidades reais da população maquiando as
desigualdades sociais ou buscando subterfúgios para que não se perceba os interesses
contidos em suas ações. O Estado, nesta perspectiva, exerce sobre a sociedade uma coerção
que garante sua autoridade passando a ideia de uma sociedade coesa que comungue dos
ideais propostos.
O discurso adotado por estes sujeitos políticos que adentraram as estruturas de
governo tem sua fecundidade no próprio discurso ideológico de suas bases, onde há
finalidade é destruir e eliminar ideais políticas dominantes da memória possibilitando no
curso histórico a formação de novos discursos ideológicos que são efetivados através da
garantia do poder exercido pelos sujeitos políticos que chegam ao exercício da
representação com sua história política e social e que por meio delas suas ações os
direcionam a práticas de representatividade individual ou coletiva.
A dimensão da ação política e social ganha espaço nas estruturas governamentais e,
consequentemente, estabelecem mudanças significativas nos campos de atuação existentes
até o presente momento, sobretudo, quando tais personagens representam a miscigenação
de diferentes instituições com campos de ações múltiplos em um mesmo campo de atuação
que pode ser identificado como campo político.
O campo de atuação destes pode ser entendido na perspectiva bourdieuniana, no
qual exprime que os campos têm suas próprias regras, princípios e hierarquias podendo
ser definidos a partir dos conflitos e das tensões que os delimitam, não obstante, estes
podem ser construídos pelas redes de relações ou de posições que seus membros/atores
sociais assumem. De acordo com Bourdieu (2003, p. 179),

[...] o campo, no seu conjunto, define-se como um sistema de desvio


de níveis diferentes e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem
nos actos ou nos discursos que eles produzem, têm sentido senão
relacionalmente, por meio do jogo das oposições e das distinções.

Assim sendo, as ações dos sujeitos ocorrem no âmbito da individualidade ou


coletividade nestes espaços restritos dentro de processos de normatização, ou seja, o campo
se estabelece como uma estrutura que determina e é determinada pelas relações dos
sujeitos que a compõe. Em outras palavras, o campo normatiza as estruturas para que seus

1014
sujeitos possam agir e ao mesmo tempo em que estes agem as mudanças nestas estruturas
vão ocorrendo.
Nesta perspectiva, tendo como ponto de partida as características assumidas pela
configuração da democracia no Brasil após a Constituição de 1988 – CF/88, este artigo
propõe a reflexão de como a sociedade civil se tornou um campo importante de atuação
na busca pela efetivação de princípios de cidadania em um Estado democrático absorvendo
em suas estruturas representantes que expressam a diversidade de instituições e interesses
públicos em um processo de descentralização de poder em busca da responsividade
governamental frente aos interesses da coletividade. Não obstante, as Conferências de
Políticas Públicas são utilizadas para demonstrar como os espaços híbridos de
representação e participação se tornaram um campo político importante de negociação de
interesses entre o Governo e a Sociedade Civil nos processos de planejamento e decisão
da Gestão Pública.
Para tanto, o aporte metodológico baseia-se nas técnicas de pesquisas bibliográfica
e documental, com recorte nas teorias desenvolvidas sobre a democracia, a representação
e a participação nos últimos anos.

DEMOCRACIA E AS DIMENSÕES DE UM GOVERNO RESPONSIVO

São inúmeros os problemas enfrentados pelas democracias desde a formação do


Estado Moderno. Implementados e reformulados em todas as épocas e em diferentes
locais, os sistemas democráticos de governo, geram características relevantes e substanciais
a serem questionadas e compreendidas pelos estudiosos.
Robert Dahl (1997, p. 25-26) ao tratar sobre os paradigmas da democracia a definiu
como um “sistema político que tem, como uma de suas características, a qualidade de ser
inteiramente, ou quase inteiramente, responsivo a todos os seus cidadãos”. Sendo que o
sistema democrático deve proporcionar aos cidadãos pelo menos cinco critérios para que
estes estejam preparados a participar da vida política São eles: 1. Participação efetiva; 2.
Igualdade de voto; 3. Aquisição de entendimento esclarecido; 4. Exercer o controle
definitivo do planejamento; 5. Inclusão dos adultos (DAHL, 2001, p. 50).
Para o autor, esses critérios ajudam na construção de um sistema democrático capaz
de oportunizar direitos iguais a seus membros e, desta forma, garantir que as ações sejam
tomadas oportunizando a aprendizagem sobre todas as questões políticas que podem
influenciar e acarretar em consequências ao seu campo de atuação.

1015
Deste modo, Dahl (2001, p. 61) reforça que a democracia deve garante a seus
cidadãos uma série de direitos fundamentais que outros sistemas de governo não concedem
e nem podem conceder, pois

[...] a democracia não é apenas um processo de governar. Como os


direitos são elementos necessários nas instituições políticas democráticas,
a democracia também é inerentemente um sistema de direitos. Os
direitos estão entre os blocos essenciais da construção de um processo
de governo democrático (DAHL, 2001, p. 61/62).

Nesta direção, Norberto Bobbio (1998, p. 326) traduziu o sistema democrático


como “um método ou um conjunto de regras de procedimento para a constituição de
Governo e para a formação das decisões políticas (ou seja, das decisões que abrangem a
toda a comunidade) mais do que uma determinada ideologia”. Atentou, ainda, para a
dimensão da democracia como contraproposta a todas as formas de governos autocráticos,
a qual estabelece quem pode tomar decisões coletivas e quais os procedimentos para isso.
Nas palavras do autor:

Afirmo preliminarmente que o único modo de se chegar a um acordo


quando se fala de democracia, entendida como contraposta a todas as
formas de governo autocrático, é o de considerá-la caracterizada por um
conjunto de regras (primárias ou fundamentais) que estabelecem quem
está autorizado a tomar decisões coletivas e com quais procedimentos.
Todo grupo social está obrigado a tomar decisões vinculatórias para
todos os seus membros com o objetivo de prover a própria
sobrevivência, tanto interna como externamente (BOBBIO, 2009, p.
30).

As ações devem ser tomadas no conjunto da coletividade para que as mesmas


alcancem o objetivo de suprir as necessidades que são geradas no âmbito da sociedade,
bem como no campo de atuação política. Ao tratar sobre a responsividade do governo
frente às demandas e decisões tomadas no âmbito das instituições em um sistema
democrático Dahl afirma que

[...] para um governo continuar sendo responsivo durante certo tempo,


às preferências de seus cidadãos, considerados politicamente iguais,
todos os cidadãos plenos devem ter oportunidades plenas
1. De formular suas preferências.
2. De expressar suas preferências a seus concidadãos e ao governo
através da ação individual e da coletiva.

1016
3. De ter suas preferências igualmente consideradas na conduta do
governo, ou seja, consideradas sem discriminação decorrente do
conteúdo ou da fonte da preferência (DAHL, 1997. p. 26).

Desta forma, a democracia sobrepuja as vontades individuais e aglomera nas


estruturas governamentais as dimensões das necessidades coletivas abrindo espaço para a
participação dos sujeitos nas tomadas de decisões realizadas pelos governos,
independentemente de possuir opiniões contrárias. Isto é, a participação dos sujeitos nos
processos que envolvem os direitos de cidadania - direitos civis, políticos e sociais -
perpassam as individualidades e ganham dimensões coletivas.
Destarte, os governos ao seguirem os “critérios de democracia” apontados por Dahl
ou ressaltadas por Bobbio (resumidos na tabela-1), assumem um caráter responsivo, pois
colocam dentro dos campos de atuação os sujeitos como participantes na construção dos
direitos de cidadania.

TABELA 1: DIMENSÕES DE UM GOVERNO RESPONSIVO


Robert Dahl
1. Participação efetiva; 1. Formulação de preferências;
2. Igualdade de voto; 2. Liberdade de expressar suas
3. Aquisição de entendimento preferências pela ação individual
esclarecido; ou coletiva;
4. Exercer o controle definitivo do 3. Igualdade no atendimento das
planejamento; preferências pelo governo.
5. Inclusão dos adultos.

Fonte: Dahl (2001, p. 50); Dahl (1997. p. 26) – elaboração própria.

No Brasil, juntando todos os períodos que o Estado foi governado por um sistema
democrático, a história da democracia não ultrapassa 100 anos512. Isso significa que em 195
anos da Formação do Estado brasileiro quase metade esteve sob o controle de governos
centralizadores e totalitários, em um primeiro momento com o regime monárquico e
depois sob a égide das ditaduras (Estado Novo e Ditadura Militar. Todavia, mesmo nos
períodos republicanos com princípios democráticos o Estado não adotava as dimensões
de um governo responsivo. Somente com a promulgação da Constituinte de 1988 que o

512
Pós-Graduanda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá.
E-mail: nayara_sandy@hotmail.com

1017
Brasil estabeleceu, por ordenamentos jurídicos, diretrizes para a construção de um governo
responsivo.
Isso significa que somente com a nova constituinte que o Estado adotou
mecanismos de participação e representação direta da população. No qual, a participação
popular foi reconhecida institucional e a representação podendo ser feita através do
sufrágio universal, sobretudo, buscando romper com as práticas centralizadoras do Estado
chamando a sociedade a ser corresponsável pela gestão administrativa no processo de
fomentação das políticas públicas e da efetividade dos direitos de cidadania.
Não obstante, o controle das ações governamentais passou a ser exercidos também
por novos personagens, bem como a construir novas dimensões de controle social, uma
vez que os indivíduos e as diferentes instituições existentes na sociedade se inseriram nas
estruturas governamentais a fim de que as necessidades da sociedade estivessem nas pautas
administrativas.
Deste modo, é evidente que a recente democracia no Brasil apresenta problemas
diversos a serem resolvidos, principalmente no que se refere a “cultura política”, pois com
pouco tempo de formação democrática as próprias instituições sociais ainda não
terminaram o seu processo de preparação para a participação institucional e tão pouco para
o processo de representação dos interesses coletivos nos espaços políticos institucionais,
nos quais servem como um campo de negociação e articulação dos diversos interesses que
fazem parte da pauta de discussão das instituições que compõem a sociedade civil.
De acordo com Dahl (2001), os caminhos à construção de um sistema democrático
devem ser traçados através da participação efetiva da população nas ações governamentais
e na vida pública, bem como na responsavidade dos governos em oferecer espaços para
que isso aconteça. Para ele as instituições políticas são fundamentais para o
desenvolvimento de uma democracia e o sistema democrático para que seja democrático
em grande escala deve possuir no mínimo as seguintes instituições políticas: 1. Funcionários
eleitos 2. Eleições livres, justas e frequentes 3. Liberdade de expressão 4. Fontes de
informação diversificadas 5. Autonomia para as associações 6. Cidadania inclusiva
(p.98/99).
Ao adotar uma democracia representativa um país deve ter em funcionamento
essas instituições políticas pela eleição de funcionários governamentais realizadas pelos
cidadãos por meio de eleições livres, justas e frequentes sem que haja coerção. A liberdade
de expressão deve ser uma determinante nos processos democráticos para que os cidadãos

1018
possam participar sem sofrerem sérias medidas punitivas. Estes devem ser livres para
buscarem informações em fontes diversificadas (DAHL, 2001, p. 99-100).
São nas instituições políticas de Autonomia para as associações e Cidadania
Inclusiva as considerações de maior importância. Pois, são nelas que se pode encontrar os
novos mecanismos de participação e representação garantidos pela Constituição de 1988,
uma vez que o autor ressalta a importância das instituições presentes na sociedade civil para
o campo de atuação no cenário político institucional. Não obstante, a Cidadania inclusiva
faz com que os direitos de cidadania sejam o objetivo final das administrações públicas não
excluindo dos processos políticos nenhum sujeito por questões étnicas, raciais, de gênero
e por desigualdades sociais. Segundo o autor:

 Autonomia para as associações. Para obter seus vários direitos, até


mesmo os necessários para o funcionamento eficaz das instituições
políticas democráticas, os cidadãos também têm o direito de formar
associações ou organizações relativamente independentes, como
também partidos políticos e grupos de interesses.
 Cidadania inclusiva. A nenhum adulto com residência permanente
no país e sujeito a suas leis podem ser negados os direitos
disponíveis para os outros e necessários às cinco instituições
políticas anteriormente listadas. Entre esses direitos, estão o direito
de votar para a escolha dos funcionários em eleições livres e justas;
de se candidatar para os postos eletivos; de livre expressão; de
formar e participar organizações políticas independentes; de ter
acesso a fontes de informação independentes; e de ter direitos a
outras liberdades e oportunidades que sejam necessárias para o
bom funcionamento das instituições políticas da democracia em
grande escala (DAHL, 2001, p. 100).

O sistema democrático deve ser um garantidor dos direitos de cidadania, sendo que
tais direitos devem estar conhecidos e reconhecidos por todos os sujeitos que integram um
país democrático. Dahl e Bobbio suscitam a necessidade de espaços de representação
dentro da democracia e trazem para o debate as formas como isso deve ser feito. No Brasil,
por exemplo, as normas jurídicas garantem os direitos de cidadania plena, o que, no
entanto, não significa que a democracia representativa consegue ser exercida integralmente.
Assim, o processo de desenvolvimento da democracia brasileira traz características
peculiares para os estudos sobre democracia, uma vez que nela pode ser encontrada a
polarização da institucionalidade criada pelos governos frente às instituições políticas. Ou
seja, tem-se nas estruturas governamentais a legitimação jurídica da importância das
instituições políticas, mas na prática há uma tentativa de engessamento das mesmas a fim
de tutelar as ações oriundas da sociedade.

1019
AÇÕES POLÍTICAS GOVERNAMENTAIS E A SOCIEDADE CIVIL

Como já apresentado às democracias trazem um vasto repertório de estudos para


aqueles que se dedicam a compreensão dos sistemas e formas de governo. O Brasil nos
últimos anos se tornou um laboratório quando o assunto é democracia. Novas formas de
participação, novas formas de representação e novos sujeitos na arena política institucional
visando o alargamento do Estado e a democratização da máquina governamental, chamam
a atenção de pesquisadores e colocam na cena pública um arcabouço de possibilidades
para as ciências sociais.
A busca pelo rompimento da tutela do Estado vigente durante a ditadura militar
sobre a sociedade se tornou um forte discurso nas últimas décadas do Brasil,
principalmente para dar ao Estado novas funções que não mais fossem a de cuidar da
homogeneização da sociedade através da ordem e do desenvolvimento em um sistema em
que a sociedade seria apenas subserviente as normas e regras estabelecidas. A ação do
Estado amparada até então na ideia de “bem comum” não despertava mais nas classes de
trabalhadores a satisfação pela situação existente no país, estes passaram a reivindicar novos
mecanismos capazes de atender suas reais necessidades.
É frente a este cenário que a Constituição é aprovada e o Estado de direito é
reestabelecido, garantindo legalmente os direitos de cidadania que faziam parte da pauta
de reivindicações destes sujeitos políticos que estavam às margens das estruturas
administrativas do Brasil. Ao ser inserido na Constituinte os dispositivos que obrigavam o
Estado a pensar em novas estruturas de participação e representação, os sujeitos políticos
passaram a lutar para a efetivação dos direitos conquistados. No entanto, mesmo com o
alargamento das estruturas do Estado os anos que se seguiram foram anos que a
burocratização das instituições políticas engessou as ações que emergiam na sociedade
através da normatização institucional, na qual a racionalização ganhou espaço e passou a
ditar as formas de atuação no campo político e as decisões a serem tomadas ficaram
submetidas ao voto dos representantes.
O conceito de sociedade civil ganha forma nesta conjuntura e as dimensões dos
espaços de luta passam a ser tratados como um espaço de participação institucional das
organizações presentes na sociedade e os novos dispositivos de representação passam a se
estabelecer nos espaços de embates e debates com a perspectiva do fortalecimento da
sociedade civil. Ou seja, as instituições políticas e sociais adentraram dentro dos espaços
institucionais do Estado, mas ao mesmo tempo perdem em boa parte seu caráter

1020
heterogêneo e passam a ser reconhecidas ou tratadas apenas como instituições da
sociedade civil, perdendo em certa medida a identidade coletiva de representação de cada
instituição.
Neste sentindo, a burocratização estatal faz com que a identificação das diferentes
instituições políticas, em especial os movimentos sociais, se perca no próprio conceito de
sociedade civil, já que até mesmo os atores sociais e o Estado passaram a lidar com a
representação de forma a ligá-la diretamente com a dimensão da institucionalidade da
sociedade civil. De acordo com Avritzer (2007, p. 444), os próprios atores sociais passaram
a se denominar representantes da sociedade civil e o Estado passou a lidar
institucionalmente com uma representação oficial da sociedade civil.
Não obstante, a sociedade civil nas últimas décadas tem sido uma grande
condensadora das forças políticas existentes no âmbito de uma sociedade, sobretudo, é ela
que tem trabalhado para que o Estado esteja como garantidor de espaços de participação.
Entretanto, não se pode perder de vista que o campo de atuação da sociedade civil é
composto pela heterogeneidade dos campos que as diferentes instituições atuam, sendo
que estas carregam singularidades na forma de participação e representação que não
podem ser encaradas de forma homogênea.
Nogueira (2003, p. 187) ao trabalhar com as ideias de Gramsci ressalta que a
sociedade civil

[...] serve para que se faça oposição ao capitalismo e para que se


delineiem estratégias de convivência com o mercado, para que se
proponham programas democráticos radicais e para que se legitimem
propostas de reforma gerencial no campo das políticas públicas. Busca-
se apoio na ideia tanto para projetar um Estado efetivamente
democrático como para se atacar todo e qualquer Estado. É em nome
da sociedade civil que muitas pessoas questionam o excessivo poder
governamental ou as interferências e regulamentações feitas pelo
aparelho de Estado.

Nesta direção, é necessário saber de qual sociedade civil se está falando, pois a
sociedade civil não é uma composição homogênea, tão pouco expressa um único campo
de atuação seja em favor ou contra o governo. A dimensão desta não pode ser olhada pela
lógica da reprodução do capitalismo, nem mesmo pela ótica da representação
institucionalizada que vem permeando o campo de debates acerca da democracia
representativa. Pois, de acordo com as dimensões da democracia representativa apontadas

1021
por Dahl (2001), é necessário que os cidadãos também tenham o direito de formar
associações ou organizações relativamente independentes para que haja autonomia.
De tal forma, se o Estado cria espaços de participação e representação, mas não
enxerga as singularidades das instituições que os adentram, estas instituições serão sempre
vistas pela sociedade como pertencentes a estruturas de governo e a premissa fundamental,
da sociedade civil, de articuladora entre sujeitos sociais, demandas públicas e Estado se
perde, pois esta não agirá em prol das organizações que a compõe, mas em prol das
demandas governamentais. Isto é, há uma inversão no processo de representação, a
sociedade civil ao invés de levar as demandas daqueles que a compõe questionando e
exigindo políticas públicas efetivas acaba por desempenhar o papel de apaziguadora de
descontentamentos sociais e políticos a pedido do Estado.
Deste modo, à medida que o aparelho de Estado incorpora essas associações ou
organizações apenas como sociedade civil em sua pauta de discussões, este não expressa
em sua agenda de governo a pluralidade das pautas de discussão levantadas por estas
instituições burocratizando as ações e criando um polo dicotômico entre Estado e
Sociedade Civil.
Deste modo, segundo Nogueira (2003, p. 191)

[...] a sociedade civil é considerada um espaço onde são elaborados e


viabilizados projetos globais de sociedade, se articulam capacidades de
direção ético-política, se disputa o poder e a dominação. Um espaço de
invenção e organização de novos Estados e novas pessoas. Um espaço
de luta, governo e contestação, no qual se formam vontades coletivas.

Quando reconhecida como um espaço de embate e debate composto por


diferentes à sociedade civil pode possibilitar a construção ou a reconstrução de espaços
democráticos efetivos que não sejam encarados como braços extensores do governo, mas
como um campo para se pensar em mudanças, contestando a ordem vigente e
aglomerando pautas distintas tendo como finalidade principal a cidadania ativa.
Não obstante, o governo ao reconhecer a sociedade civil como um espaço
heterogêneo coloca em prática a dimensão da responsividade, pois este reconhece não a
sociedade civil como um mecanismo burocrático de participação e representação, mas
como espaço no qual se define agendas de prioridades na fomentação de políticas públicas.
A dimensão individual é considerada pela autonomia do indivíduo de se identificar com

1022
os discursos/ações realizados pelas instituições, no qual a sua participação ao comungar
com seus pares formam uma coletividade e ganham força nos processos decisórios.
Assim sendo,

[...] não pode haver “Estado” democrático sem cidadania ativa e sem
participação, ou seja, sem “sociedade civil” organizada. Dirigentes
democráticos distinguem-se pelo respeito aos direitos, aos interesses e à
participação dos “dirigidos”. Por isso, o melhor terreno para o
desencadeamento de dinâmicas de emancipação em condições de
modernidade radicalizada não é o Estado em sentido estrito (ou seja, o
mundo do governo, da administração ou do poder), mas a sociedade
civil, quer dizer, a malha de movimentos, agregações e associações com
as quais interesses e indivíduos se organizam e buscam se afirmar perante
os demais, diante do Estado e como Estado. O social, porém, não basta
a si próprio: na ausência de um Estado, desvincula-se da ideia
republicana, ou seja, converte-se em espaço de interesses exacerbados,
não de direitos (NOGUEIRA, 2007, p. 55).

Por ser uma esfera da sociedade composta por sujeitos e instituições políticas e
sociais, a sociedade civil deve garantir sua autonomia e independência frente ao governo.
Sobretudo, deve aproveitar os espaços de participação e representação institucional para
suscitar o debate sobre a importância do reconhecimento das instituições que a compõem
em sua integralidade e não com pautas abertas e insuficientes sobre as demandas existentes.
Seu olhar de criticidade as ações governamentais deve ser um marco nas ações a serem
realizadas, pois se o Estado não cumprir com suas funções administrativas a sua função
será a de suscitar entre suas instituições medidas que o coloquem nos direcionamentos
para a efetivação dos direitos de cidadania.
A existência do Estado, deste modo, é fundamental para a sociedade civil, pois sem
este a sua existência ficaria sob a égide dos interesses particularistas. Todavia, ao se fazer
está afirmação há que se tomar o cuidado de não confundir o conceito de sociedade civil
enquanto condensadora de múltiplos interesses e instituições com a dimensão
mercadológica de sociedade civil de braço extensor governamental frente aos direitos de
cidadania, que tanto tem se difundido nos últimos anos.
Não obstante, far-se-á necessário que os representantes das demandas e dos
interesses da sociedade consigam articular tais questões para que as decisões políticas
realmente sejam eficazes no campo estatal e no âmbito da sociedade civil, uma vez que as
decisões políticas devem prover tais mudanças.

1023
Ser representante das demandas e interesses da sociedade implica em
realizar mediações e intermediações. Decisões políticas democráticas
envolvem mudanças no campo estatal como da própria sociedade civil
(desde que certos princípios democráticos não sejam abandonados, mas
sejam marcos referenciais-quais sejam: justiça, liberdade, solidariedade e
igualdade com respeito as diferenças) (GOHN, 2004, p. 79).

Nesta direção, a sociedade civil não pode ser condescendente com a


hegemonização da representação política realizadas pelo governo, que coloca o sufrágio
universal como o ponto máximo de participação popular e representação política, por
exemplo. É necessário que a mesma busque legitimidade, relevância e reconhecimento no
cenário político institucional frente as suas diversidades. Pois,

[...] a pluralização de práticas, instâncias e atores da representação, assim


como a diversificação de grupos sociais com exigências e direito de
representação desafiam e são desafiados pelo modelo da representação
eleitoral por dois motivos principais, passíveis de interpretação como
sendo conducentes a déficits de legitimidade: a ausência de autorização
e a inevitável ambiguidade no que se refere aos grupos sociais
eventualmente representados (LAVALLE; VERA, 2001, p. 126).

A sociedade civil “não é a extensão mecânica da cidadania política ou da vida


democrática. Longe de ser um âmbito universal, é um território de interesses que se
contrapõem e só podem se compor mediante ações políticas deliberadas” (NOGUEIRA,
2003, p. 196). E o seu caráter público amplia-se

[...] na medida em que, para além dos debates, articulações, encontros


que visam a discutir, problematizar questões e demandar soluções para
os problemas que estão ausentes ou que recebem tratamento precário na
agenda pública, produzindo e ampliando, portanto, os espaços públicos,
significativos setores da sociedade civil passam também a demandar e/ou
investir na implementação de espaços públicos institucionais (...)
(LÜCHMANN, 2007, p. 145).

Não obstante, a sociedade civil ao se inserir nos espaços institucionais de


participação e representação deve garantir que novos espaços públicos institucionais sejam
criados para que ocorra maior visibilidade sobre as problemáticas que a representação vem
suscitando no cerne da democracia representativa.
Neste propósito, para que um governo seja responsivo em uma democracia
representativa não é preciso mais que ordenamentos jurídicos, se faz necessário que o
mesmo reconheça o quanto a população pode colaborar no processo de formulação e

1024
implementação de políticas públicas, sobretudo, este deve não criar apenas espaços de
participação e representação institucional com foco na tutela das instituições públicas, mas
com o objetivo de vislumbrar a descentralização do poder tendo os cidadãos como
coautores responsáveis pelos seus direitos de cidadania.
Assim, a sociedade civil deve atuar com criticidade diante do Estado visando a
efetivação democrática através do esclarecimento dos cidadãos em relação as ações
governamentais, bem como o controle definitivo do planejamento das ações
governamentais.

AS CONFERÊNCIAS DE POLÍTICAS PÚBLICAS COMO ESPAÇOS HÍBRIDOS


DE REPRESENTAÇÃO

Partindo do pressuposto de que a representação constitui-se em um conceito


complexo e que tem origens históricas que determinam várias agendas de pesquisas na
atualidade, a definição utilizada para a compreensão das Conferências Públicas como
espaços híbridos de representação é a desenvolvida por Urbinati (2010, p. 55), que entende
a representação como “um processo abrangente de filtragem, aprimoramento e mediação
da formação e expressão da vontade política, plasma o objeto, o estilo e os procedimentos
da competição política”.
Não obstante, a abordagem dada para as Conferências parte das dimensões
apresentadas por Lüchmann (2007, p. 143), que discute a representação a partir das
organizações da sociedade civil ressaltando a importância destes mecanismos para o
fortalecimento da democracia deliberativa, por proporcionar legitimidade das decisões
políticas oriundas dos processos de discussão realizados nos espaços de representação que
fogem a lógica da representação eleitoral, orientados pelos princípios da inclusão, do
pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e do bem-comum, conferindo a estes
espaços um reordenamento na lógica de poder tradicional.
Frente a isso, analisar as configurações da representação sobre a ótica da
representação por intermédio da sociedade civil nos remete a importância do alargamento
das estruturas do Estado e a inserção da sociedade civil dentro destas estruturas. Pois, as
mudanças nas estruturas do Estado favoráveis à introdução de controles sociais na gestão
pública têm sido simultaneamente estímulo e produto do protagonismo das organizações
civis, agora investidas com funções de representação política (LAVALLE; HOUTZAGER;
CASTELLO, 2006, p. 45). Todavia, “à medida que o envolvimento da sociedade civil nas

1025
políticas sociais aumentou, um problema tornou-se inescapável: o surgimento de novas
formas de representação ligadas a ela” (AVRITZER, 2007. p. 443).
É neste contexto, que as Conferências de Políticas Públicas emergiram como um
novo cenário de reflexão das ações governamentais mediante as necessidades de ser pensar
a gestão pública a partir da descentralização do poder, da gestão eficiente e da soberania
popular. As mesmas constituem-se em um instrumento de participação e representação da
sociedade de caráter híbrido reconhecidos institucionalmente e que podem ou não ser
obrigatórios dependendo do ordenamento jurídico que as normatizam.
Surgidas no Brasil no governo de Getúlio Vargas por meio da Lei nº 378, de 13 de
Janeiro de 1937, objetivo principal era facilitar o conhecimento do Governo Federal acerca
das atividades relativas à saúde e orientá-lo na execução dos serviços locais de saúde
(FARIA; SILVA; LINS, 2012). No entanto, com a Constituição Federal de 1988 as
Conferências ganharam caráter de instrumento de fortalecimento democrático e de
políticas públicas se entendendo para todas as áreas da gestão pública, tendo na
participação social o processo de fortalecimento da representação da sociedade nas
tomadas de decisão no ciclo de políticas públicas com o exercício do controle social.
Acerca de sua história, Faria, Silva e Lins (2012, p. 260-261) ressaltam que

Desde sua criação até 2010, já foram realizadas 102 conferências


nacionais e centenas de milhares de conferências intermediárias, nas
esferas municipais e estaduais. Do total de encontros nacionais, 9
aconteceram entre 1941 e 1988 - 8 delas referentes ao tema saúde e 1
de Ciência e Tecnologia; 27 foram organizados entre 1988 e 2002 e
debateram políticas de Saúde, Assistência Social, Direitos Humanos,
Direitos da Criança e do Adolescente e Segurança Alimentar e
Nutricional; e as outras 67 Conferências, que correspondem a 66% do
total, ocorreram entre 2003 e 2010, nos governos Lula (República
Federativa do Brasil, 2010). Neste governo, as conferências tornaram-se
uma das principais arenas de interlocução entre governo e sociedade
civil, com o objetivo de debater e deliberar propostas para formulação
de políticas públicas, propor novas ações do governo para compor o
Plano Plurianual de Ação (PPA) e avaliar as políticas aprovadas em
encontros anteriores.

Isto é, as Conferências transformaram-se em espaços de representação das


demandas coletivas existentes na sociedade, uma vez que os seus participantes deliberam
sobre as demandas e necessidades existentes na sociedade orientando o poder público em
seu atendimento. Mesmo quando há interesses particulares aqueles que os têm, devem

1026
abrir diálogos e espaços de negociação com todos os representantes 513 para que tais
interesses possam incorporar as agendas governamentais.
A respeito dos espaços de decisão da esfera pública os quais as Conferências
ocupam no cenário político institucional, Habermas (2003, v. I, p. 227-228), ressalta que

[...] a participação simétrica de todos os membros exige que os discursos


conduzidos representativamente sejam porosos e sensíveis aos estímulos,
temas e contribuições, informações e argumentos fornecidos por uma
esfera pública pluralista, próxima à base, estruturada discursivamente,
portanto, diluída pelo poder.

Nesta perspectiva, as Conferências de Políticas Públicas servem como canal de


expressão e atendimento das demandas sociais populares, garantindo, por meio dos
processos deliberativos, ações políticas mais efetivas, já que esses espaços consolidam,
dentro das políticas públicas, 1º) processos decisórios no que tange o levantamento de
demandas; 2º) consolidam as prioridades dentro dessas demandas, para serem
incorporadas às agendas governamentais e, ao mesmo tempo, 3º) servem como espaços de
avaliação e monitoramento das ações governamentais que estão em andamento.
Desta forma, as Conferências consistem em processos participativos setoriais
inseridos na cogestão de algumas políticas públicas brasileiras que aglomeram no mesmo
espaço diferentes personagens da sociedade civil e do Estado, a fim de auxiliar no processo
de fomentação, implementação, monitoramento e avaliação de políticas públicas,
configurando-se espaços híbridos de representação, participação e descentralização de
poder no âmbito dos cenários políticos institucionais.
Os espaços públicos em que acontecem as Conferências de Políticas Públicas,
permitem que a sociedade civil discuta e delibere qual o rumo a ser tomado pelas políticas
públicas específicas para a seu Município, Estado ou União, mediante a prestação de contas
pelo poder público acerca do planejamento traçado e os trabalhos que foram e estão sendo
realizados ao longo da gestão.
As conferências ocorrem a cada dois anos nos três níveis de governo (municipal,
estadual e federal), de acordo com a área temática e é chamada pelo(a) presidente do
conselho gestor. No caso das políticas públicas de Assistência Social, Educação, Dos
Direitos da Criança e do Adolescente e Saúde, são obrigatórias por se tratarem de áreas às

513
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail: gabrielacatarina11@gmail.com

1027
quais os Conselhos Gestores possuem cunho deliberativo514. Não obstante, as conferências
nestas áreas são fundamentais, já que elas, por meio de suas deliberações, determinam
como os governos devem compor suas agendas políticas, inserindo as deliberações nos
instrumentos de gestão, tais como o Plano Plurianual, Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lei
Orçamentária Anual e Planos de Ação de cada política.
Pires e Lopez (2010, p. 567), resumem as Conferências nacionais como

[...] que objetivam debater temas relevantes da política pública e social e,


a partir das discussões, extrair deliberações e proposições normativas que
informem as instâncias decisórias – ministérios, secretarias de governo e
o Poder Legislativo – sobre preferências consensualizadas entre os
diversos setores integrantes da instância participativa. As conferências
desempenham um papel importante ao permitir que, dialogicamente,
setores expressivos e organizados da sociedade brasileira apresentem a
diversidade de interesses que espelham a multiplicidade de posições e
preferências em temas e questões específicas, de forma a se tomarem
decisões que contribuam para aprimorar e desenvolver políticas
específicas na área em questão.

Desta forma, as conferências são espaços fundamentais para o fortalecimento da


participação social, sobretudo, consistem em um espaço em que a sociedade civil, por meio
de suas organizações, adentram ao planejamento dos governos de forma institucionalizada,
inserindo demandas e determinando as prioridades sociais reforçando a importância dos
direitos de cidadania, uma vez que

[...] a cidadania se constrói pela participação direta e indireta dos


cidadãos, enquanto sujeitos políticos, não apenas para a solução de seus
problemas sentidos, sem espaços públicos onde as decisões coletivas
possam ser cumpridas, mas também para um processo de radicalização
democrática, através do desempenho instituinte, transformador da
própria ordem na qual operam (BAIERLE, 2000, p. 192).

Para além de um espaço de fortificação da cidadania, as Conferências se constituem


como espaços amplos e democráticos de discussão e articulação coletivas de propostas e
estratégias de organização colocando em movimento a busca pela efetivação de direitos
civis, políticos e sociais.

514
“[...] a segregação é um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se
concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole.” (VILLAÇA,
p.142, 2001 – grifo do autor).

1028
Contudo, as mesmas sinalizam para os problemas acerca da efetividade dos
governos que tendem a seguir modelos democráticos representativos, a partir de três
dimensões cruciais: 1ª) a institucionalidade não garante efetividade destes espaços; 2º) há
o uso desses espaços como mecanismo de manipulação de interesses tanto pelo poder
público quanto da sociedade civil e; 3ª) com relação a representação – quem estou
representando?
A institucionalidade legal a qual as Conferências estão atreladas são encaradas,
muitas vezes, pelos gestores públicos como uma obrigatoriedade para a aquisição de
recursos no âmbito das políticas públicas levando, desta forma, as Conferências a perderem
o seu caráter de representação, participação e de controle social, uma vez que os processos
decisórios que são alavancados dentro destes espaços não passam de normas
procedimentais orientadas pelas resoluções que os Conselhos Gestores determinam no
chamamento público para a realização das mesmas.
Nesta mesma direção, quando não atreladas a um Conselho Gestor de cunho
deliberativo a sua obrigatoriedade fica submetida à vontade governamental. Isto é, aqueles
que estão à frente da gestão podem interferir diretamente na realização das Conferências
alegando, entre outros motivos, comumente a falta de recursos orçamentários.
A utilização dos espaços das Conferências como um mecanismo de manipulação
tanto pelo poder público quanto pela sociedade civil é outra prática que pode ser percebida
entre aqueles que participam destes espaços, uma vez que os mesmos quando consolidados
dentro do ciclo de políticas públicas servem para a legitimação das ações estatais e/ou para
negociar parcerias público/privadas entre as instituições da sociedade civil. Ou seja, as
tomadas de decisões realizadas pelas deliberações entre os representantes das instituições
que conseguem inserir delegados nestes espaços tendem a favorecer determinados
seguimentos sociopolíticos fazendo com esses espaços sirvam como mecanismos de defesa
de interesses particularistas.
Deste modo, ao servirem como espaço de manipulação de interesses a dimensão
da representação suscita a discussão em torno daqueles que ocupam esse espaço trazendo
a ideia de que ao passo que as Conferências atendem interesses privados o seu aspecto
público/coletivo se perde e a representação se restringe ao atendimento das demandas
daqueles que conseguiram eleger o maior número de delegados para estarem nestes
espaços. Em outras palavras, a representação sociopolítica desvincula-se das demandas
coletivas passando a ser exercida de forma fragmentada em prol dos projetos políticos

1029
governamentais e/ou dos interesses das instituições da sociedade civil que ali se fazem
representadas.
Evidentemente, que ao tratar de qualquer espaço de representação popular em uma
democracia encontraremos problemas que restringem a efetividade destes espaços como
organismos de representação deliberativa, já que as próprias democracias suscitam
questões a serem debatidas e esclarecidas.
No entanto, mesmo frente a esses problemas as Conferências possibilitam uma
participação efetiva da população por se consolidarem em espaços deliberativos que
auxiliam no exercício do controle social e do planejamento das ações a serem
implementadas pelas gestões públicas. Outrossim, permitem que sejam discutidas medidas
que aprimorem o sistema de garantia de direitos fundamentais de cidadania dando a todas
as pessoas o direito de participarem das tomadas de decisões governamentais de forma
direta aproximando tais práticas as dimensões da efetivação de governos cada vez mais
responsivos.
Assim, as conferências de políticas públicas reforçam os vieses da representação
institucional da sociedade civil e estabelecem espaços decisórios no que tange às políticas
públicas, uma vez que o reconhecimento institucional das mesmas determina que os
governos considerem as deliberações realizadas fortalecendo, deste modo, o sistema
democrático e a descentralização do poder por meio de uma gestão compartilhada entre
governo e sociedade civil.

CONCLUSÕES

Há muito que ser discutido quando o assunto é democracia representativa,


contudo, é emergente que se realize discussões em torno da institucionalidade e do
reconhecimento das instituições políticas em sua heterogeneidade e nos seus múltiplos
campos de atuação, sobretudo, no que tange ao sistema de representação que envolvem os
espaços híbridos de representação e participação, tendo como ponto de partida para quem
e com quem tem sido implementado estes espaços.
É sabido que modelo vem sendo amplamente debatido e muitos teóricos vêm
discutindo as implicações destes para a sociedade. O que se tentou neste trabalho foi
realizar algumas observações no que tange a representação das instituições políticas no
cenário institucional por meio da sociedade civil, especialmente chamando a atenção para
as singularidades que este tema traz na compreensão das sociedades com regimes

1030
democráticos representativos por meio de mecanismos de representação como as
Conferências de Políticas Públicas.
A inversão no papel da sociedade civil pelos governos acentua para um novo
modelo centralizador de Estado, o qual pela tutela institucional burocratizante acaba por
distanciar a sociedade civil do cerne de suas finalidades, bem como a transforma em um
espaço homogeneizador de reflexões das ações públicas estatais. A inflexão desta, por sua
vez, gera um olhar pragmático voltado a um entendimento unilateral sobre as organizações
existentes na sociedade deixando de observar as pluralidades das pautas existentes e os
desafios que são postos na superação das realidades sociais na composição de uma agenda
pública capaz de atender interesses coletivos rompendo com a lógica privatista dos
governos.
Deste modo, a responsividade do governo torna-se primordial nas democracias
representativas, pois ao reconhecer as redes, sujeitos políticos, organizações de voluntários,
empresas, clubes, instituições políticas, movimentos sociais entre outros; os governos
apontam para práticas políticas com interesses sociais coletivos e com pautas públicas
descentralizadoras que são compostas por demandas sociais discutidas por diferentes
sujeitos no âmbito da sociedade.
O caráter da institucionalização no ciclo de políticas públicas de mecanismo de
representação e participação como as Conferências de Políticas Públicas, nos chama a
atenção para a ampliação das formas do exercício do controle social e da representação
das demandas coletivas sinalizando para os governos, por meio de deliberações, as
diretrizes a serem seguidas pelas gestões públicas.
Há muito que se avançar na recente democracia brasileira, sobretudo, existe um
caminho árduo até que a sociedade consiga romper com as velhas práticas políticas
estabelecidas inserindo no contexto de cultura política a efetivação da participação
sociopolítica e da implementação de espaços de participação e representação. Não
obstante, para a efetivação de um governo responsivo no Brasil far-se-á necessário o
reconhecimento dos diferentes sujeitos e instituições que compõem o campo de ação
política.
Assim, para se garantir os direitos de cidadania é necessário mais que ordenamentos
jurídicos, é preciso estruturas políticas que não engessem as ações da sociedade civil, mas
lhe garanta autonomia efetiva para suas práticas nos processos decisórios dentro dos
espaços de representação e participação fortalecendo, deste modo, o controle social em
espaços como os proporcionados pelas Conferências de Políticas Públicas.

1031
REFERÊNCIAS

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1032
A PARTICIPAÇÃO DA SOCIEDADE NO CONSELHO MUNICIPAL
DE RIBEIRÃO PRETO/SP: LIMITES E POTENCIALIDADES

Natanael GOMIDE JUNIOR

Resumo: As instâncias deliberativas e participativas são consideradas uma inovação institucional


que se institucionalizam a partir da segunda metade da década de 80, materializando os artigos da
Constituição Federal que preveem a participação social na gestão dos negócios públicos. O objetivo
do trabalho é debater a participação da sociedade civil no conselho municipal de saúde de Ribeirão
Preto - SP, focalizando a vocalização e a contestação dos membros da sociedade civil. Apesar de
representarem uma inovação no que concerne à gestão e descentralização dos negócios públicos,
alguns estudos têm mostrado que os conselhos são segmentados em torno de um nível de renda
alto, alta escolaridade, melhores ocupações. De outro lado, apesar da segmentação, os conselhos
de política são vistos como espaços nos quais os cidadãos se transformam em sujeitos políticos,
ampliando e universalizando a cidadania. O trabalho pretende discutir os limites e as
potencialidades da participação social nestas instâncias participativas e deliberativas, mostrando a
influência da sociedade civil na consecução das políticas de saúde. A teoria democrática deliberativa
sustenta-se no princípio de que a validade das normas e das ações decorrem de procedimentos de
deliberação e decisões coletivas, dos quais participam as pessoas possivelmente afetadas, que
interagem por meio do discurso racional. A Democracia Deliberativa se realiza por meio de
procedimentos institucionais que articulam estado e sociedade, que viabilizam a formação de
consensos e negociações em torno de questões que envolvem a coletividade num geral, por meio
de um debate racional e argumentativo no qual todos os cidadãos podem expor suas opiniões.

Palavras–chaves: Conselhos de política. Democracia Deliberativa. Participação Social.

INTRODUÇÃO

O Brasil se transformou ao longo do século XX de um país de baixa propensão


associativa e poucas formas de participação da população de baixa renda para um dos
países com maior número de práticas participativas. A baixa propensão participativa que
vigorou até a década de 80 está ligado às formas verticais de organização da sociabilidade
política, fortemente permeada pela concentração de poder na propriedade da terra e pelo
clientelismo no interior do sistema político. As instâncias participativas são resultado de um
longo processo de reorganização da sociedade civil e de suas formas de relação com o
estado e de um longo processo de transformações institucionais, jurídicas e administrativas,
especialmente no nível local, ocorridos desde o final da década de 70. É somente a partir
desse período, após um longo período de supressão da liberdade de expressão, dos direitos
políticos e fundamentais, que se pode falar em uma sociedade “civil autônoma e
democrática”. Há nesse período um aumento vertiginoso das associações civis, em especial,
as comunitárias, uma reavaliação da ideia de direitos, uma defesa da ideia de autonomia

1033
organizacional em relação ao estado, a defesa de formas públicas de apresentação de
demandas e de negociação com o estado (AVRTIZER, 2009).
Logo após o final da ditadura militar, os movimentos sociais lutam e reivindicam
uma alteração nos padrões de desigualdade social, civil e política e se mostravam
insatisfeitos com a forma como se relacionavam estado e sociedade. Os movimentos sociais
e as organizações da sociedade civil reivindicam a democratização do estado por meio da
participação nas decisões acerca de políticas públicas e no controle público sobre as ações
públicas. Dessa forma, a luta desses atores sociais encontrou ressonância em atores
políticos durante o processo constituinte de 1988, visto que ambos tinham em comum, um
projeto político de ampliação da participação política. O resultado disso, foi a inscrição
constitucional da participação social como princípio da organização e gestão do estado
brasileiro. Essas inscrições constitucionais trouxeram a expectativa de concretizar a
participação societária e alterar a relação entre estado e sociedade, além de ampliar e
diversificar os atores envolvidos na política (DAGNINO; TATAGIBA, 2007).
Com a participação cidadã nos negócios públicos, esperava-se reverter o padrão de
planejamento e execução das políticas públicas no Brasil, provocando um tensionamento
nas agências estatais, tornando-as mais transparentes, mais responsáveis e suscetíveis ao
controle da sociedade. Os mecanismos de participação obrigariam o estado a negociar suas
propostas com outros grupos sociais, dificultando a usual “confusão” entre interesse
público e os interesses dos grupos que circulam em torno do poder estatal e exercem
influência sobre ele (TATAGIBA, 2002).

OS CONSELHOS DE POLÍTICA

O início da década de 90 se constitui como um ponto de inflexão da participação


social na formulação e gestão das políticas públicas. Os conselhos municipais se
institucionalizam nesse período, materializando os artigos previstos na então recente
constituição federal de 1988, que possui como um dos fundamentos do sistema de governo
do país, a soberania e a cidadania. A cidadania, a partir desse novo arcabouço institucional,
pode ser exercida por meio de representantes eleitos, ou seja, por meio do sufrágio
universal com o voto direto e secreto e também por meio de uma inovação institucional: a
participação direta na gestão dos negócios públicos, por meio de plebiscito, referendo e
iniciativa popular de lei. No tocante à saúde, tema central deste trabalho, o inciso III do
artigo 198 prevê: “participação da comunidade”. Dessa forma, segundo Avrtizer e Pereira

1034
(2005), é o desenho institucional da constituição federal de 1988 que “abriu” espaços para
o surgimento das instituições participativas.
Os conselhos de política surgiram então, como resultado dos artigos previstos na
constituição federal de 1988 que previa a participação social na gestão dos negócios
públicos e sua posterior regulamentação: por meio da lei orgânica da saúde (LOS) e de
assistência social (LOAS), e também como resultado de um dos capítulos das políticas
urbanas no processo constituinte, regulamentado depois a partir do Estatuto da cidade,
dessa forma, começaram a proliferar os chamados “planos diretores”, que se tornaram
obrigatórios em municípios com mais de 20 mil habitantes (AVRTIZER, 2008).
Os conselhos municipais de política são canais institucionais de participação da
sociedade, regulamentados com as seguintes características: a) são temáticos, ou seja, são
ligados às políticas sociais específicas, como saúde, educação, assistência social, criança e
adolescente e emprego, mas também estão relacionados à políticas regulamentadas no
plano estadual e municipal (políticas de transporte, política urbana, de meio ambiente,
direito das mulheres); b) são de caráter semi representativo, geralmente com mandatos
sociais não remunerados. Os conselhos preveem a participação voluntária de
representantes das organizações sociais da sociedade civil, e não a eleição direta dos seus
integrantes; c) em geral, são deliberativos, abrangentes e permanentes: as atribuições não
se restringem à formulação de sugestões ou ao encaminhamento de demandas mas
abrangem a deliberação sobre as diretrizes das políticas temáticas, aprovação da
normatização e regulação das ações do governo; d) em geral, são de composição paritária
entre governo e sociedade, ou seja, são compostos por representantes da sociedade civil
organizada e do governo, na maioria dos casos, garante metade da representação para as
organizações da sociedade civil e metade para a representação de órgãos governamentais.
No caso dos conselhos de saúde, a composição é tripartite: 50% composto por
representantes dos usuários (sociedade civil organizada) e outros 50% divididos entre
instituições representantes do governo (25%) e instituições prestadoras de serviços e
organizações representantes dos trabalhadores do setor (25%); e) possuem autonomia ou
semi autonomia em relação ao governo: possuem autonomia em suas atribuições para
definirem suas regras e dinâmicas de funcionamento próprios (AVRTIZER, 2009).
De acordo com Tatagiba (2002), a composição paritária é importante pois está
relacionada ao reconhecimento do “outro” e da capacidade de se estabelecer acordos
contingentes em torno de demandas específicas. Embora fundamental, alguns estudos têm
mostrado que há uma resistência da sociedade civil, principalmente aqueles vinculados a

1035
defesa de direitos, em reconhecer a presença das demais organizações como
representações legítimas de interesses esparsos pela sociedade. Dessa forma, os membros
da sociedade civil acabam não aceitando o pluralismo e o conflito inerentes a esses espaços.
A heterogeneidade na composição, o respeito à diferença e a capacidade de construir
adesões em torno de projetos específicos parecem ser condições necessárias tanto para
dotar de eficácia as ações dos conselhos, como para ampliar seu potencial democratizante,
daí decorrente a necessidade da ampliação do grau de publicidade desses espaços de
negociação. Assim, quanto maior a diversificação do público, maior a publicidade e maior
o avanço democrático. Porém, a igualdade numérica da composição paritária não tem se
mostrado suficiente para garantir o equilíbrio no processo decisório. Os principais
constrangimentos para uma relação mais simétrica entre estado e sociedade são: a
dificuldade de ambos atores em lidar com a pluralidade; a relação conselheiro-entidade e
qualificação dos conselheiros para o exercício de suas funções.
Avrtizer (2008) define o desenho institucional dos conselhos de políticas como
partilha de poder ou instituições híbridas (AVRTIZER; PEREIRA, 2005), visto que conta
com representação mista entre os atores sociais e os governamentais; são constituídos pelo
próprio estado, ou seja, são dependentes da vontade política dos governantes, embora
ocorra sanções em casos de não instauração do processo participativo, como o não repasse
de recursos do governo federal para outras esferas de poder; são dependentes da existência
de uma forte organização da sociedade civil . O autor ainda considera essas instâncias
deliberativas – em comparação ao orçamento participativo – como os mais fortemente
democratizante nos casos de oposição a participação social por parte da sociedade política:

Assim, nos casos em que as organizações da sociedade civil são fortes, é


possível, através da sanção estabelecida pela lei e pelas formas de
organização dos movimentos populares em questão, resistir a uma
tentativa do governo de retirar poder da instância participativa. Dessa
forma, os desenhos de partilha se diferenciam dos desenhos de
participação “de baixo para cima” devido a sua maior independência do
sistema político (AVRTIZER, 2008, p. 55).

Para Avrtizer (2008), o sucesso dos processos participativos está relacionado não ao
desenho institucional e sim a maneira como se articulam desenho institucional, organização
da sociedade civil e vontade política de implementar desenhos participativos.
Avrtizer e Pereira (2005) também definem os conselhos de política como aqueles
oriundos de legislação federal ou local, deixando de lado os “conselhos consultivos”. É um

1036
espaço distinto do estado e da sociedade civil, que possuem em geral três características: a
territorialização, a centralidade do poder local e a deliberação pública, conferindo uma
maior autonomia para os municípios, rompendo com o caráter hierárquico tradicional das
políticas públicas. O local se torna o lugar central para a elaboração de políticas públicas,
de tomada de decisões discutidas e compartilhadas. Os autores ainda realizam uma
distinção entre conselhos de políticas locais e conselhos gestores. Os primeiros seriam
aquelas instituições responsáveis por implementar as políticas específicas locais, são típicos
de áreas que não possuem sistemas nacionais unificados, mas apenas orientações gerais de
políticas. Aqui nessa categoria, se enquadram, os conselhos de meio ambiente, de
desenvolvimento urbano, de habitação, de preservação do patrimônio. Já os conselhos
gestores, são quando as indicações previstas na constituição foram transformadas em leis a
partir de legislação específica. Nesse caso, se enquadram, os conselhos de saúde e de
assistência social.
Os conselhos se instituem em caráter deliberativo, mas não executivo; são órgãos
com função de controle, não correcional das políticas sociais, à base de anulação do poder
político. Os conselhos não quebram o monopólio estatal da produção do direito, mas
podem obrigar o estado a elaborar normas de direito de forma compartilhada em co –
gestão com a sociedade civil. Os procedimentos no momento da criação de um conselho
são: a criação de um regime interno que precisa ser submetido à apreciação do poder
executivo, que por sua vez o aprovando, transforma-o em decreto. As decisões tomadas
nos conselhos devem ter a forma de resolução e devem ser publicadas em diário oficial. A
não homologação pelo executivo das resoluções dos conselhos de saúde, por exemplo,
devem ser encaminhadas ao Ministério Público (TATAGIBA, 2002).
De acordo com Dagnino (2002), as relações entre sociedade civil e estado que se
estabelecem nos conselhos gestores são sempre tensas, permeadas pelo conflito, visto que
ambos possuem projetos políticos destoantes. Apesar disso, a autora reconhece que a
participação social nos conselhos em um geral tem produzido impacto positivo sobre o
processo de construção de uma cultura mais democrática na sociedade brasileira,
confrontando as concepções elitistas da democracia, como as tecnocráticas e autoritárias
sobre a natureza do processo decisório no interior do estado, questionando também o
monopólio estatal sobre a definição do que é público e tem contribuído para uma maior
transparência das ações estatais. Ainda segundo a autora, os conselhos têm contribuído na
promoção do reconhecimento do outro enquanto portador de direitos, assim como da
existência e legitimidade do conflito enquanto constitutivo da democracia e cidadania. Os

1037
conselhos têm se constituído enquanto canais de expressão e defesa de reivindicações de
direitos dos excluídos da cidadania no Brasil, e contribuído para o reconhecimento destes
por parte da sociedade como um todo. No que toca à crítica de que os conselhos gestores
tratariam e produziriam políticas setorializadas e pontuais, a autora, pontua a necessidade
de se reconhecer que a participação em instâncias nacionais seria complexa e a necessidade
de se pensar se o caráter pontual, emergencial e compensatórias das políticas não são
dimensões caraterísticas das próprias demandas que a sociedade civil apresenta atualmente.
Apesar das benesses trazidas por essa inovação institucional, há que se apontar
inúmeras dificuldades que vigem e dificultam uma deliberação mais justa. O predomínio
de uma razão tecno burocrática, o excesso de “papelada”, a lentidão, a ineficiência, a falta
de sensibilidade e despreparo da burocracia estatal, a falta de recursos, a instabilidade de
projetos que resultam de parcerias com o estado, a falta de transparência que dificulta o
acesso às informações são apontadas na literatura como traços constitutivos do estado
brasileiro que operam no sentido de dificultar a democratização das decisões. Além disso,
há o apontamento desses espaços enquanto isolados em relação ao conjunto da estrutura
administrativa “institucionalidades paralelas”, provocando uma difícil comunicação com o
resto do aparato estatal. Por parte da sociedade civil, a maior dificuldade para uma
participação mais igualitária é a exigência de qualificação (técnica: conhecimentos
específicos sobre o que se discute e política: conhecimento sobre o funcionamento do
estado, dos procedimentos) que essa participação requer. A aquisição dessa competência
técnica específica por parte das lideranças subalternas tem exigido um considerável
investimento de tempo e energia, que muitas vezes, acabam sendo “roubadas” do tempo
dedicado à manutenção dos vínculos desses conselheiros com as bases representadas, os
colocando em um dilema: a luta institucional ou a mobilização social? A importância da
qualificação técnica e política é primordial para os membros da sociedade civil, visto que a
falta de qualificação, associada a uma matriz cultural hierárquica, favorece a submissão ao
estado e aos setores dominantes, além de afirmar a política como uma atividade privativa
das elites. No que toca ao processo de aprendizagem dessa qualificação, as ONG’s têm se
mostrado ser uma organização importante para o aprendizado dessa qualificação por parte
dos membros da sociedade civil (TATAGIBA, 2002).
A maioria dos estudos sugerem que os conselheiros governamentais possuem um
vínculo muito frágil com seus órgãos de origem, dessa forma, eles acabam defendendo suas
próprias opiniões pessoais e não as propostas e posicionamentos resultantes da discussão
com as agências estatais envolvidas, dessa forma, em muitas das vezes, o posicionamento

1038
do governo nem sempre chegam ao conhecimento do conselho, assim bem como ocorrer
das discussões dos conselhos não serem acompanhadas pelas agências estatais envolvidas.
Esse fato decorre da pouca importância que o estado tem conferido a sua participação nos
conselhos, mandando para as reuniões pessoas não preparadas para a discussão e com
pouco poder de decisão, exemplificado nos altos índices de ausência e na grande
rotatividade dos conselheiros governamentais. Da mesma forma que os conselheiros
governamentais, os conselheiros não governamentais também possuem um vínculo frágil
com suas entidades/bases, vocalizando, muita das vezes, opiniões pessoais que não alteram
a categoria ou coletividade que ele mesmo representa. A antecipação das pautas aparece
como uma possível solução desse impasse, visto que o tema a ser debatido e tratado é
apresentado com pouca ou, na maioria das vezes, nenhuma antecipação. A antecipação
das pautas poderia proporcionar uma maior otimização das decisões dos conselheiros
frente aos seus representados, pois possibilitaria uma discussão prévia antes da deliberação
em si. O que a literatura mostra é que as entidades, movimentos sociais e ONG’s tendem
a eleger seus representantes e se afastarem do cotidiano dos conselhos. Uma das
consequências, é a baixa visibilidade social que o conselho adquire, tornando isolado e
débil. Com vistas a reverter essa situação, alguns conselhos, como o conselho nacional de
saúde, têm compartilhado via internet suas ações e a história do conselho, com um banco
de dados sobre a saúde atualizado diariamente, além da criação de ouvidorias, criação de
jornais noticiando o funcionamento do conselho. Outro investimento utilizado pelos
conselhos para romperem com o isolamento são as conferências nacionais, estaduais e
municipais, que visam despertar a atenção dos cidadãos para os assuntos tratados nos
conselhos. Ainda no tocante à falta de qualificação dos conselheiros não governamentais,
se coloca uma questão:

Mas como melhorar a qualidade da representação dos conselheiros


societais sem promover a elitização e a burocratização da participação?
Como construir um programa de capacitação, que permite aos
conselheiros da sociedade civil dialogar em pé de igualdade com os
agentes estatais, sem, contudo, transformá-los em especialistas, o que
acabaria recolocando o ciclo das exclusões por meio do discurso
especializado? De que forma minorar os efeitos das desigualdades
sociais no processo deliberativo? Num país como o nosso, marcado por
altos índices de analfabetismo, essa discussão assume contornos
dramáticos, principalmente quando a essa característica associa-se outra:
a valorização, em nossa cultura política, do argumento técnico em
detrimento de outros saberes (TATAGIBA, 2002, p. 70).

1039
Diante disso, o grande desafio das experiências participativas são construir
mecanismos capazes de minorar os efeitos das desigualdades sociais no interior dos
processos deliberativos, permitindo a construção de acordos sem a influência de fatores
endógenos como o poder, a riqueza ou as desigualdades sociais pré-existentes. Algumas
medidas para tentar reverter ou minimizar esses fatores estão sendo tomadas, como por
exemplo, a criação do “programa de capacitação à distância para conselheiros e gestores
municipais e estaduais de assistência social”, criado pelo conselho nacional de assistência
social (CNAS) e a secretaria de assistência social/ministério da previdência social, em
parceria com o ministério da educação – por meio da TV escola – e com a TV educativa
(TATAGIBA, 2002).
Outra questão atinente aos conselhos gestores é sobre a agenda temática. A
literatura tem mostrado, em virtude da pouca institucionalização, que os conselhos de
saúde ainda tratam demasiadamente sobre organização interna, sobre legislação, muito
mais do que sobre a definição de diretrizes e políticas, por exemplo. E é dessa questão que
surge um embate entre os atores sociais representantes dos conselhos gestores: quais são
os assuntos mais pertinentes a serem tratados, as questões pontuais ou as questões
estruturais? Alguns setores da sociedade civil defendem a primazia do trato das questões
pontuais, visto que a pauta e demanda principal seria a necessidade de ampliação da rede,
qualidade do atendimento, falta de especialidades médicas, melhorias no atendimento. Por
outro lado, alguns setores defendem o trato de questões mais estruturais, como diretrizes
de políticas, setores prioritários de investimentos. Dessa forma, há uma disputa em torno
das questões relevantes a serem tratadas e deliberadas, que segundo Tatagiba (2002),
muitas vezes, é imposto unilateralmente pelo estado, visto que o presidente do conselho é
quem seleciona os assuntos a serem tratados.
Outra controvérsia presente na literatura especializada, é se os conselhos gestores
fazem parte ou não da estrutura administrativa do estado, visto que em muitos municípios,
carecem de recursos financeiros, infra estruturais e humanos. Há os que reivindicam que
os conselhos devem funcionar como uma secretaria, usufruindo de todo o suporte
infraestrutural, enquanto outros argumentam que essa concessão bloquearia o potencial
crítico e democrático dos conselhos. A literatura também mostra que os governos quando
não conseguem compor um conselho de “aliados” ou quando sua hegemonia está
ameaçada, boicota ou tenta esvaziar os conselhos como estratégias de “convencimento”.
Também há tentativas de cooptação e manipulação para neutralizar o conselho, como a
“ascensão de status” dos conselheiros a partir de um contato mais íntimo com o governo

1040
em “reuniões fechadas”, o que acaba muitas das vezes, modificando a postura dos
conselheiros não governamentais, criando uma postura “vaidosa” e de pertença à
burocracia estatal. Tatagiba (2002) argumenta que os conselhos gestores possuem baixa
capacidade propositiva, exercendo pouca influência sobre o processo de definição das
políticas públicas, embora reconheça, que se constituem em um grande avanço
democrático na gestão pública.
Em se tratando do perfil dos conselheiros, a maioria dos representantes da
sociedade civil possuem algum tipo de vínculo associativo, de filiação ou associação a uma
organização social, seja sindicatos ou associações profissionais, associações de moradores,
instituições religiosas e filantrópicas, clubes de serviços, ONG’s ambientalistas e de defesa
dos direitos das mulheres e negros. A maioria dos conselheiros (56%) têm grande
engajamento sociopolítico, participando em pelo menos um trabalho voluntário, reunião
de grupos locais, manifestações de protestos ou greves. São, na sua maioria, pessoas
informadas e atualizadas sobre os acontecimentos políticos e sociais em um geral, sendo
que 96% destes utilizam jornais como meio de informação sobre acontecimentos gerais
(RIBEIRO; AZEVEDO; JUNIOR, 2004).

OS CONSELHOS MUNICIPAIS DE SAÚDE

Tema aqui de nosso interesse, os conselhos municipais de saúde estão presentes


em mais de 5.000 municípios. Sua origem, remonta a dois movimentos sociais importantes
na redemocratização brasileira: o movimento sanitarista, que envolveu médicos,
enfermeiros e outros profissionais da saúde, se tornando forte a partir do final dos anos 70
nas universidades e alguns outros setores da área da saúde como a fundação Oswaldo Cruz.
O movimento sanitarista, em suma, reivindicava uma ênfase maior na medicina preventiva
e na reorganização do papel do estado no sistema de saúde do país. De outro lado, outro
movimento social importante nesse momento histórico é o movimento popular pela saúde,
que teve sua origem na zona leste de São Paulo e envolveu mães e outros usuários da saúde,
cujo objetivo principal era controlar a qualidade dos serviços de saúde. O movimento
popular pela saúde teve dois momentos cruciais nos anos 80: a VIII conferência nacional
de saúde ocorrida em Brasília em 1986, que propôs a extinção dos institutos de previdência
– expressão de um direito segmentado à saúde. Nessa conferência ocorreu uma
reivindicação por um estado mais ativista por parte do movimento sanitarista e de uma
forma popular de controle público por parte dos movimentos populares. O resultado de

1041
todo esses movimentos é a proposta de um sistema unificado de saúde, descentralizado e
com participação popular sob a forma de uma emenda popular durante a assembleia
nacional constituinte e aprovada com algumas modificações propostas pelos setores
conservadores (AVRTIZER, 2008).
Dessa forma, a aprovação do capítulo 186 da constituinte sobre a saúde foi uma
enorme vitória dos movimentos populares, porém, após a promulgação, houve uma luta
pela incorporação dos conselhos na legislação ordinária que seguiu pós constituinte. A lei
orgânica da saúde (LOS) foi proposta em 1990 durante o primeiro ano do governo de
Fernando Collor de Mello, que na primeira versão, vetou integramente todos os institutos
de participação popular. É apenas em dezembro de 1990 por meio da lei 8.142 que os
conselhos são instituídos na área de saúde. Dessa forma, os conselhos de saúde são
resultados da convergência de dois movimentos sociais, o movimento sanitarista e o
movimento popular da saúde (AVRTIZER, 2008).
Cabe ressaltar, como pano de fundo histórico, que do início do século até os anos
1930, a política de saúde se restringia a ação tópica de alguns atores da sociedade e a
grandes campanhas de vacinação. A constitucionalização do direito à saúde somente se
efetiva em 1934 na “Era Vargas”, quando o estado passa a ser o principal regulador social.
A partir de 1934, há uma previsão de assistência em saúde aos trabalhadores e mulheres
grávidas, chamada de “cidadania regulada”, ou seja, poucas pessoas tinham “condições” de
receber assistência em saúde. É muito forte nesse período histórico, a ideia de controle
sanitário da população, dessa forma, cabia ao estado aplicar os padrões de saúde e higiene,
bem como controlar as atividades dos indivíduos. É somente a partir do período
autoritário, que irá surgir a primeira forma universal de política de saúde com a criação do
INSS em 1966, que mesmo assim, não consegue oferecer uma assistência adequada a
população de baixa renda, devido a problemas de segmentação no acesso à saúde devido
à falta de estrutura administrativa (ALMEIDA, 2009).

O CONSELHO MUNICIPAL DE RIBEIRÃO PRETO

O conselho municipal de saúde de Ribeirão Preto foi instituído por legislação


específica municipal por meio da lei 12.929 de 21 de dezembro de 2012. A participação
social figura em seu primeiro artigo: “a participação da comunidade na organização, gestão,
fiscalização e controle do sistema único de saúde (SUS), prevista no artigo 198, inciso III
da Constituição Federal”. No artigo 7 da lei fica explicitado o objetivo do conselho: “tem

1042
por finalidade atuar na formulação e no controle da execução da política municipal de
saúde, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, nas estratégias e na promoção do
processo de controle social em toda sua abrangência”. Assim como previsto em legislação
federal, o conselho é composto por representantes do governo, dos prestadores de serviços
da saúde, dos trabalhadores de saúde e dos usuários, sendo que a representação dos
usuários dos serviços de saúde será paritária em relação ao conjunto com os demais
integrantes.
Para inferirmos a influência de cada ator social representado no conselho,
acreditamos, em consonância com o argumento de Almeida (2009) que o número de falas
é uma variável de suma importância, visto que quanto maior o nível de discussão antes do
momento que precede o voto, mais se aproxima do ideal deliberativo de interatividade e
pluralidade de discurso. Ainda segundo Almeida (2009) é importante saber também, se as
falas expressam denúncias ou demandas, daqui, podendo se inferir se o conselho é mais
propositivo ou reativo em sua atuação. Outra variável importante que adotamos aqui neste
trabalho é a contestação, aqui, assumida enquanto contraposição à agentes governamentais.
Essa variável também é importante, dado que os conselhos de políticas temáticas em um
geral, é muito dependente da vontade política do governante em mandato. Dessa forma, a
partir dessa variável, podemos inferir o relativo grau de autonomia ao qual se encontra o
conselho municipal de saúde aqui tratado e também, não obstante, a presença de diversos
e conflitantes discursos como prática de valorização da alteridade e do encorajamento
democrático.
Foram analisadas 23 atas, do período de janeiro de 2015 a dezembro de 2016, todas
disponibilizadas no site da prefeitura municipal de Ribeirão Preto. A frequência de falas
de cada representante no conselho municipal de saúde de Ribeirão Preto pode ser
resumida no quadro que segue abaixo:

TABELA 01: FREQUÊNCIA DE FALAS DOS REPRESENTANTES NO


CONSELHO
Representantes Frequência de falas
Usuários do SUS (sociedade civil) 322
Trabalhadores da saúde 232
Governo e prestadoras de serviço 111
Fonte: elaboração própria

Transformadas em porcentagens, pode ser resumido no gráfico abaixo:

1043
GRÁFICO 01: PORCENTAGEM DE FALAS DOS REPRESENTANTES

17%
Usuários do SUS
48% Governo e prestadores

35% Trabalhadores

Fonte: Elaboração própria


Podemos inferir, a partir dos dados, que a sociedade civil – representada a partir
da categoria “Usuários do SUS”, é o ator social que mais vocaliza nas sessões deliberativas
do período pesquisado. Porém, é importante ressaltar a multiplicidade de interesses e
representações que estão em voga dentro da categoria “Usuários do SUS”, a saber, vão de
movimentos populares da saúde, associações de bairros, entidade de portadores de
patologias ou deficiência até representantes de sindicatos e associações patronais. Dada a
enorme multiplicidade de interesses, podemos perceber a partir da análise das atas, pontos
divergentes e conflitivos envolvendo os próprios representantes da categoria de usuários
do SUS. Apesar da categoria ser a que mais vocaliza no conselho, podemos notar a partir
da análise dos dados, que se vocaliza ainda muito sobre organização interna - como
exemplificado na tabela abaixo - apontando para um possível baixo grau de
institucionalização do conselho, dito em outras palavras, as regras do jogo não estão
totalmente claras para os jogadores:

GRÁFICO 02: TIPO DE VOCALIZAÇÃO – SOCIEDADE CIVIL


50

40

30

20

10

0
Organização interna Denúncia Demanda Contestação

Organização interna Denúncia Demanda Contestação

Fonte: Elaboração própria

1044
Podemos perceber dessa forma, que a principal vocalização dos membros
representantes da sociedade civil (Usuários do SUS) é sobre organização interna (45,31%).
Figuram nessas vocalizações dúvidas concernentes a prazo, desconhecimento dos
procedimentos internos necessários à condução dos trabalhos. É recorrente em todas as
sessões deliberativas, o pedido de correção das falas registradas em atas de sessões
passadas. Cabe pontuar também que alguns membros da sociedade civil que possuem
direito à voz, mas não ao voto, reclamaram em uma das sessões, sobre o não recebimento
dos documentos sobre o que seria tratado, ficando, dessa forma, “sem saber o que estava
acontecendo”. Outro ponto importante a ressaltar é a fala de alguns membros dessa
categoria reclamando de falta de apoio técnico para tomar decisões mais otimizadas, alguns
até mesmo preferindo se ausentar das discussões e votações por acreditarem que não
possuem conhecimento “adequado” e suficiente para participar das discussões sobre os
negócios públicos. Muitos membros dessa categoria também relatam confusão e
despreparo com o excesso de informações que recebem nas sessões. Foi até mesmo
solicitado e marcado uma reunião especificamente para tratar somente do regimento
interno do conselho. Mesmo diante desse cenário, podemos perceber que durante sessões
estratégicas para o governo, no qual precisa-se aprovar documentos que precisam do
parecer do controle social, alguns conselheiros representantes da sociedade civil tendem a
votar favoravelmente, porém com ressalva, aos documentos formulados por agentes
estatais. Podemos nos indagar a partir disso, se esses fatos não representam
constrangimentos ou mesmo coerções dos agentes estatais aos membros da sociedade civil,
visto que em face das dúvidas, não seria mais coerente votar contrariamente aos
documentos redigidos pelo governo? Em uma das reuniões, o governo precisava
urgentemente do parecer do conselho sobre o relatório anual de gestão da saúde, uma
“espécie” de prestação de contas. Dada essa condição, uma das conselheiras membra da
categoria “Usuários do SUS” pede vistas ao relatório. É a partir desse momento que o
secretário municipal de saúde se mostra muito irritado com a vocalização da conselheira e
se inicia uma discussão intensa entre os dois representantes, que culmina na grave denúncia
da conselheira de assédio e intimidação pessoal, em até mesmo outros espaços, por parte
do secretário municipal de saúde.
Em consonância com a literatura aqui discutida que trata sobre a crescente distância
dos membros representantes no conselho com suas bases, há o pedido de destituição de
dois conselheiros que são acusados de não encaminhar e tratar dos assuntos pertinentes

1045
com sua base representativa. Em suma, as vocalizações dos membros da sociedade civil
apontam para um baixo grau de institucionalização do conselho. Ademais disso, o conselho
parece ser um espaço importante para a apresentação de denúncias do mal atendimento
em postos públicos de saúde, da falta de médicos especialistas, da falta de estrutura no
atendimento a toda população. Dessa forma, além de um baixo grau de institucionalização,
podemos inferir a partir da análise dos dados, que o conselho é mais reativo do que
propositivo, visto que a quantidade de denúncias é maior que a de demandas.
No que concerne aos representantes estatais e de prestadores de serviços na área
da saúde, há também uma grande multiplicidade de interesses ali em voga, a saber os
representantes são: o secretário municipal de saúde, departamento regional de saúde
XVIII, hospital das clínicas da faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo,
faculdades da área da saúde da universidade pública local (USP), cursos universitários da
área da saúde, entidades filantrópicas, beneficentes ou sem fins lucrativos (SUS), sociedade
e empresas privadas prestadoras de serviços ao SUS, secretaria municipal de saúde. O tipo
de vocalização nessa representação pode ser resumido no gráfico que abaixo segue:

GRÁFICO 03: TIPO DE VOCALIZAÇÃO – GOVERNO E PRESTADORAS


100

80

60

40

20

0
Prestação de contas Organização interna Denúncia Demanda

Prestação de contas Organização interna Denúncia Demanda

Fonte: Elaboração própria

Podemos observar, a partir dos dados, uma larga preponderância de vocalizações


“prestação de contas” (83,8%), dessa forma, aqui nessa categoria, os membros do governo
são os que mais vocalizam, sendo que o secretário municipal de saúde e sua suplente são
os mais participativos. Porém há aqui um paradoxo, do mesmo modo que o secretário
municipal de saúde é um dos que mais vocaliza nessa categoria, é também um dos que
mais falta as sessões deliberativas. Das 23 reuniões aqui analisadas, o secretário municipal
de saúde somente compareceu a 7. As faltas são um importante ponto a se tocar, visto que

1046
muitos propõem pautas para se serem discutidas, mas não comparecem a sessão, dessa
forma, a proposição acaba sendo retirada da pauta de discussão e votação. Durante as 23
reuniões aqui discutidas, houve 301 faltas nesse período, sendo que uma das reuniões
precisou ser remarcada por falta de quórum. A presença do secretário municipal de saúde
parece se dar em momentos oportunos e estratégicos para o governo, como por exemplo,
em momentos no qual precisam do parecer do conselho sobre algum relatório ou
documento formulado pela burocracia estatal.
Na maioria das reuniões há a apresentação de algum técnico ligado à área da saúde
que faz uma exposição sobre alguns programas ou ações realizadas pelo governo no
município, ou até mesmo a apresentação de balancetes de gastos por especialidade médica,
por região da cidade, relatório de gestão, planos de atuação em saúde, etc. Dessa forma,
podemos inferir que o conselho atua como um importante espaço de promoção de
accountability dos governantes sobre os representados, no que concerne as políticas de
saúde. Segundo Akutsu e Pinho (2002), a accountability só pode ser garantida por meio do
exercício da cidadania ativa. Sem uma sociedade civil organizada, os gestores públicos não
se sentirão obrigados a promover a accountability. Dessa forma, o controle social pode
fortalecer o controle formal legalmente instituído, levando a sociedade a participar mais
ativamente da vida pública.
As denúncias (3,8%) e demandas (2,8%) aqui nessa categoria são em quase sua
totalidade proveniente dos representantes de cursos universitários da área da saúde e de
entidades filantrópicas. Há que se ressaltar, porém, que em uma das sessões, o próprio
secretário municipal de saúde realiza a denúncia de que o hospital das clínicas criança não
foi entregue pelo governo estadual. A partir dessa fala, foi aprovado a elaboração de uma
carta aberta ao governador do estado, com cópia ao conselho estadual de saúde, ao
ministério público estadual, federal e do trabalho e à imprensa tratando da política de
recursos humanos do hospital das clínicas e da FAEPA, uma organização de caráter
privado, que explora o trabalho, com jornadas exaustivas. Ademais desse exemplo, o
conselho tem se mostrado um importante espaço para a elaboração de documentos
denunciando ou demandando sobre políticas de saúde aos órgãos competentes.
No que toca as vocalizações sobre organização interna (9,5%), os membros estatais
na maioria das vezes respondem a perguntas ou dúvidas dos membros representantes da
sociedade civil. Podemos perceber a partir disso, um desequilíbrio entre as classes
representadas, apontando na falta de preparo dos conselheiros da sociedade civil, no que
tange à conhecimentos dos procedimentos de condução do conselho e da máquina

1047
administrativa estatal. Cabe pontuar que no site da prefeitura municipal de Ribeirão Preto,
na aba do conselho municipal de saúde, há uma cartilha de 110 páginas formulada pelo
tribunal de contas da união com orientações para os conselheiros da saúde.
Para finalizar, vamos tratar das vocalizações dos trabalhadores da saúde. Dentre
todas as classes representadas no conselho, podemos inferir que em perspectiva comparada
essa é a que apresenta uma “menor” multiplicidade de interesses envolvidos. As
representações vão desde trabalhadores da área da saúde, passando por conselhos de
fiscalização do exercício profissional da área da saúde até sindicatos. As vocalizações dos
trabalhadores da saúde podem ser resumidas conforme segue no gráfico abaixo:

GRÁFICO 04: TIPO DE VOCALIZAÇÃO – TRABALHADORES DA SAÚDE


50

40

30

20

10

0
Demanda Organização interna Denúncia Contestação

Demanda Organização interna Denúncia Contestação

Fonte: Elaboração própria

A partir da análise dos dados, podemos depreender que essa categoria é a que mais
demanda (39,58%) dentre todas categorias representadas, porém, as vocalizações sobre
organização interna (37,5%) aparecem logo atrás. As principais demandas são por
ampliação da atual estrutura de atendimento de saúde à população, melhora nas condições
de atendimento e trabalho.
Em todas as categorias representadas, podemos observar que há sempre um ou no
máximo dois participantes que são os mais atuantes nas sessões deliberativas. Faltam
pouco, vocalizam muito e possuem forte engajamento sócio político, participando de
diversos eventos sobre políticas de saúde.

1048
CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises dos dados apontam para um baixo grau de institucionalização do


conselho municipal de saúde, ou seja, em um geral, os atores sociais ali presentes
conhecem pouco sobre as regras do jogo do conselho, dito em outras palavras, os
conselheiros ainda possuem muitas dúvidas concernentes à prazos, encaminhamentos
necessários para o prosseguimento dos trabalhos, etc. Isso fica evidenciado no alto índice
de vocalização sobre organização interna. Ainda que a sociedade civil, representada pela
categoria “Usuários do SUS”, seja a que mais vocaliza no período pesquisado, suas falas
são em maior parte atinente à organização interna. É importante frisar e ressaltar que
dentro de cada categoria representada, há uma multiplicidade de interesses e atores sociais
em representação. Podemos inferir, também, a partir dos dados, que há um baixo grau de
contestação por parte dos representantes da sociedade civil “usuários do SUS” aos agentes
estatais ali representados. A partir da análise qualitativa das atas, verificamos que há
constrangimentos e coações, principalmente por parte do secretário municipal de saúde,
em aprovar o mais rápido possível os relatórios que são estratégicos ao governo. As
reuniões estratégicas para o governo, que precisam do parecer do controle social, são
sempre longas e permeadas pelo conflito. A existência de coação fica visível a partir dos
relatos dos conselheiros não estatais, que se mostram confusos e imersos em um mar de
informações. Mesmo assim, os relatórios, documentos que são de suma importância para
o prosseguimento da liberação de recursos por parte do governo federal e estadual à esfera
municipal, e consequentemente, para as políticas de saúde, são sempre aprovados, mesmo
que com ressalvas. Podemos inferir, dessa forma, que os membros da sociedade civil são
cooptados pelos agentes estatais. A análise dos dados também mostrou que há um
desequilíbrio de poder e de informação (específicas e técnicas) entre os agentes estatais e
não estatais, que são exemplificados no momento do debate e na tomada de decisões.
Ademais dessas constatações, o conselho demonstra ser um importante espaço de
encaminhamentos de documentos aos órgãos competentes, de denúncias referentes a má
administração dos gastos com saúde, da falta de atendimento especializado e também de
demanda por mais postos de saúde, por um atendimento mais humanizado e por uma
melhor infraestrutura no atendimento em saúde. O conselho se mostra um lugar
importante também para a promoção de accountability, visto que na maioria das reuniões,
há a presença de algum técnico do governo ou mesmo o secretário municipal de saúde,
que presta esclarecimentos e informações sobre os gastos em saúde, ficando suscetível a

1049
possíveis indagações/questionamentos. O conselho atende a um dos dois eixos de
accountability proposto por Schedler (1999), a answerability. Nessa dimensão, os agentes
públicos e as agências prestam informações sobre suas ações e decisões e as justificam ao
público.

REFERÊNCIAS
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conselhos municipais de saúde. In: Democracia, desigualdades e políticas públicas no
Brasil. Belo Horizonte, 2009, p. 73-109 (capítulo de relatório de pesquisa).

AKTSU, Luiz; PINHO, José Antônio Gomes de. Sociedade da informação, accountability
e democracia delegativa: investigação em portais de governo no Brasil. Revista de
Administração Pública, v. 36 (5), p. 723-745, 2002. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rap/article/viewFile/6461/5045. Acesso em: 14
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___________. Instituições participativas e desenho institucional: algumas considerações


sobre a participação no Brasil democrático. Revista Opinião Pública, v. 14, n.1, p. 43-64,
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setembro de 2017. (Artigo em periódico digital)

___________. PEREIRA, Maria de Lourdes Dolabela. Democracia, participação e


instituições híbridas. Teoria e Sociedade, número especial “Instituições híbridas e
participação no Brasil e na França”, p. 16-41, 2005. (Artigo em periódico digital).

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espaços públicos e a construção democrática no Brasil: limites e possibilidades. São Paulo,
2002, p. 279- 296.

DAGNINO, Evelina; TATAGIBA, Luciana. O potencial de conselhos de políticas e


orçamentos participativos para o aprofundamento democrática. In: Democracia, sociedade
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RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz; AZEVEDO, Sergio de; JUNIOR, Orlando Alves dos
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power and accountability in new democracies. Lynne Rienner Publishers, 1999, p. 13-28.

TATAGIBA, Luciana. Os conselhos gestores e a democratização das políticas públicas no


Brasil. In: Sociedade civil e espaços públicos no Brasil. São Paulo, 2002, p. 47- 95.

1050
PROGRAMA “MINHA CASA MINHA VIDA”: ESTUDO DE CASO
NA CIDADE DE SARANDI (PR)

Naiara Sandi de Almeida ALCANTARA515

Gabriela Catarina CANAL516

Resumo: O presente trabalho teve início em 2014 como um projeto de Iniciação Científica (PIBIC)
e, posteriormente, houve uma série de desdobramentos que culminaram nos resultados que foram
apresentados como Trabalho de Conclusão do Curso (TCC), cuja proposta inicial era verificar se
as/os moradoras/es do programa habitacional “Minha Casa Minha Vida” (MCMV), se entendiam
como sujeitas/os segregadas/os geograficamente. Para alcançar os objetivos propostos foram
realizadas: uma pesquisa teórica para levantamento de dados acerca do programa em toda a Região
Metropolitana de Maringá (RMM), bem como uma pesquisa quantitativa com aplicação de
questionários em uma amostra de 107 Unidades Habitacionais (UH) no Conjunto Mauá, escolhido
por se localizar na cidade de Sarandi-PR considerada periférica em relação à cidade polo, Maringá
e, posteriormente, uma pesquisa etnográfica através de entrevistas no mesmo conjunto. A partir das
pesquisas realizadas constatou-se que o MCMV somente tornou-se parte da agenda pública frente
a uma crise financeira que começou ameaçar a economia nacional, dito isso, essa política pública
habitacional vem a lume para responder a demandas de setores privados. Desta forma, é possível
inferir que o direito à cidade não é efetivado através do MCMV, pois as/os beneficiárias/os só são
convocadas/os no momento do recebimento das casas, estas não atendem as necessidades das
famílias, pois estas não se adequam ao padrão das UH, as quais seguem um modelo de tamanho
único, afinal, mais da metade das/os entrevistadas/os responderam que consideram insuficiente o
tamanho de suas moradias. Além disso, as vias de acesso ao centro são precárias e as/os
moradoras/es contam com apenas um modal de transporte público, o ônibus, dificultando o acesso
aos serviços que a cidade deveria oferecer no local de residência.

Palavras-chave: Moradia. Políticas Públicas. Programa Habitacional. Segregação.

INTRODUÇÃO

Falar sobre a questão da moradia hoje significa pensar o “Direito à Cidade”. É um


tema largamente discutido, mas com uma interpretação dada pela hegemonia dos
interesses do mercado imobiliário, que age sempre com vistas aos interesses do capital.
Com a produção de habitação, não visa efetivamente atender à faixa de renda que mais se

515
O valor do imóvel é dividido por cento e vinte meses, tempo fixo definido pela CEF para o financiamento
(mensamente a família deverá pagar uma parte e o governo outra). O valor a ser pago pela família será o
salário mensal total de todos os residentes da moradia multiplicado por cinco5% o excedente desse valor o
governo paga. O valor do imóvel é definido por unidade de federação. Para o estado do Paraná couberam
os seguintes: capital e respectiva região metropolitana R$ 62 mil por UH, municípios com população maior
ou igual a 50 mil habitantes R$ 60 mil por UH, municípios com população entre 20 e 50 mil habitantes R$
58 mil por UH, municípios com população de até 20 mil habitantes R$ 49 mil por UH.
516
Municípios com população acima de 20 mil habitantes possuem limite de até 50 UH por empreendimento,
1051
acima de vinte mil até cinquenta mil habitantes possui limite 150 UH; acima de 50 mil até cem mil habitantes
possuem limite de 300 UH e com mais de 100 mil habitantes possuem limite de 500 UH. Cada entidade
organizadora (responsável pela construção) poderá ter no máximo dois empreendimentos simultâneos.
encontra à margem social. Por isso, programas habitacionais desenvolvidos por meio de
políticas públicas como o MCMV, são muito importantes, principalmente para o Brasil
que tem um alto déficit de habitação social, muito embora não atenda exclusivamente às
faixas de rendas mais baixas:

O problema da moradia é real e talvez seja um dos mais importantes no


Brasil. Contudo o “Minha Casa, Minha Vida” o formula falsamente, não
a partir das características intrínsecas ao problema, mas sim das
necessidades impostas pelas estratégias de poder, dos negócios e das
ideologias dominantes – como já afirmou o sociólogo Gabriel Bolaffi em
sua interpretação certeira sobre o BNH (ARANTES; FIZ, 2009, p. 24).

O MCMV foi criado por meio da Lei n° 11.977 de 07 de julho de 2009. Apesar de
advir do governo federal, conta com o auxílio dos poderes públicos locais, com o
intermédio da Caixa Econômica Federal. O financiamento é repassado à entidade
organizadora que tem como função reunir as/os beneficiárias/os. Para receber a casa da
faixa 1, o indivíduo deverá atender a uma série de pré-requisitos exigidos pelo programa,
como dispor de renda familiar bruta mensal de até R$1,8 mil, possuir cadastro atualizado
no CadÚnico, por intermédio do qual é permitido mapear e identificar famílias de baixa
renda, dentre outras exigências específicas posteriores ao recebimento da moradia. Todas
essas condicionalidades têm como tarefa selecionar grupos sociais das camadas que mais
necessitam de auxílio e lhes proporcionar o usufruto da cidadania, ou seja, como membro
de um Estado, ter participação da vida política e desfrutar dos direitos assegurados pela
Constituição Federal da República.
De acordo com discussões constantes no livro “Retratos da região metropolitana
de Maringá” é possível compreender como a segregação espacial517 ocorreu na cidade.
Desde o planejamento houve a separação entre os espaços “principais” e os “populares”,
onde as/os moradoras/es, nas chamadas áreas principais tinham acesso assegurado aos
serviços que o espaço citadino poderia oferecer e as moradoras/es das áreas populares
estariam afastados dos mesmos. Essa segregação ocorreu no início do planejamento e
continua até os dias de hoje. É algo evidente quando se analisa o planejamento das casas

517
Défice habitacional é um termo utilizado para se referir aos cidadãos que não possuem uma moradia
adequada. E os dados utilizados para medir os índices de déficit de habitação são os seguintes: 1) coabitação
forçada que ocorre quando existem mais de uma família residindo em um mesmo domicílio, sendo que não
há condições financeiras para que uma família passe a residir em outra casa; 2) famílias que residem em casas
alugadas e o valor do aluguel compromete mais de 30% da renda familiar; e 3) o adensamento excessivo que
ocorre quando existem mais de 3 moradores utilizando permanentemente um cômodo como dormitório
1052
permanente. Todos esses pontos podem ser complementados por outras situações de precariedade.
populares de Maringá e região, construídas em locais afastados dos centros comerciais e de
todos e quaisquer serviços que a população necessita para seu o desenvolvimento social.
As casas do MCMV são construídas e repassadas as/aos proprietárias/os sem a
instalação de equipamentos e serviços que garantam a educação, a saúde, o lazer e o
transporte. A população as adquire sem os requisitos fundamentais que atendam algumas
de suas necessidades mais básicas. Dessa forma, excluem a/o moradora da vida social da
cidade. A falha está no modelo do programa, como ele foi articulado, desde sua criação
teórica até às pessoas envolvidas, como as/os futuras/os beneficiárias/os que deveriam estar
incluídas/os em todas as fases do processo, não só no momento do recebimento das casas
finalizadas.

[...] a maioria das medidas que visam combater a pobreza é tomada com
base em dados estatísticos, quantitativos ou macroeconômicos. O pobre
é, em suma, considerado mero objeto de políticas públicas, não sujeito
da política, sujeito político propriamente dito [...] (REGO; PINZANI,
2014, p. 47, - grifo dos autores).

Segundo a obra de Rodrigues (2010) é possível inferir que “Elites Dirigentes”, como
foram nomeadas as classes mais altas, ocupam os espaços “principais” da cidade, possuindo
acesso a todos os serviços oferecidos por ela, enquanto as outras porções da população são
alocadas nas imediações de acordo com o grau de importância que lhes são conferidos por
suas ocupações no mercado de trabalho. Assim é possível que as/os residentes das casas
do MCMV, alocadas/os em regiões afastadas dos centros comerciais, sejam compostos por
trabalhadoras/es de dois setores: terciário não especializado e secundário. Verifica-se, por
meio dessa divisão espacial, que quanto menor a renda, mais periférica será o local de
moradia. Dessa forma, infere-se que a segregação tem como principal característica a
posição econômica.
Nas considerações finais da citada obra (RODRIGUES, 2010), pode-se verificar
como é a configuração da cidade polo, onde se percebe a nítida divisão do espaço
geográfico ocupado pela restrita camada da população mais abastada e a população de nível
social oposto, camadas de baixas rendas, alocam-se nos entornos da cidade, pois “[...] não
há no município de Maringá áreas onde preponderem moradores de ocupações de baixa
qualificação” (RODRIGUES, 2010, p.38). As/os que possuem menor qualificação são
as/os beneficiadas/os pelo MCMV, ainda assim, na cidade de Maringá, a maior parte da
população que recebe casas do programa possui condições financeiras acima dos três

1053
salários mínimos, tendo em vista que o grupo mais pobre teoricamente deveria estar no
foco.

[...] 82,5% do déficit habitacional urbano concentra-se abaixo dos 3


salários mínimos, mas receberá apenas 35% das unidades do pacote, o
que corresponde a 8% do total do déficit para esta faixa (ARANTES;
FIZ, 2009, p. 24).

A RMM conta com vinte e seis municípios: destes, seis possuem habitações pelo
MCMV. Apesar de ter sido criado para atender uma faixa de renda específica de até R$1,8
mil (renda familiar bruta), foram criadas mais duas modalidades que atendem famílias que
possuem renda acima desse valor. O financiamento do programa acontece pela Caixa
Econômica Federal e o valor mensal pago por cada família obedece a um cálculo518. O
governo paga a diferença entre o financiamento e o resultante do cálculo. O último valor
será o resultado final da conta ou então R$25 mensais, o que for maior.
Os seis municípios que contam com o MCMV da RMM, com Unidades
Habitacionais (UH) construídas em condomínios residenciais (urbanos e rurais) são:
Maringá (1780 UH), Sarandi (813 UH), Marialva (810 UH), Mandaguari (105 UH),
Ângulo (61 UH) e Iguaraçu (70 UH), totalizando 3639 UH por toda a RMM, construídas
e inauguradas até maio de 2015. A quantidade de UH é definida por municípios 519, então
cada cidade poderá contar com um máximo de habitações.
Contudo, de acordo com trabalho desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), em estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), por meio da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), verificou-se
que, apesar da queda do déficit habitacional entre os anos de 2007 e 2011, a RMM ainda
conta com um déficit habitacional520 de 18.807 moradias, no qual 1.824 apresentam
condições precárias, 6.997 estão em condição de coabitação, 9.280 com aluguel que
ultrapassa 30% da renda total de todas/os as/os moradores e 1.127 com adensamento

518
O município de Sarandi localiza-se na região Noroeste do Estado do Paraná, foi instalado no dia primeiro
de fevereiro de 1983, após ser desmembrado do município de Marialva. Situa-se a 416,60km da capital
Curitiba e possui área territorial de 103,683km², sua população é de 83.724 habitantes, 27.854 domicílios e
56.270 eleitores (IBGE, 2010). Pertencente à Região Metropolitana de Maringá, possui 1.431
estabelecimentos comerciais, sendo a população economicamente ativa composta por 42.712 pessoas, dos
quais 11.101 moradores estão inclusos no mercado formal (IPARDES, 2010).
519
Graduada em Administração Púbica, UFLA/ Lavras,
1054e-mail: rafasabatine@gmail.com.
520
Mestrando no Programa de Pós Graduação em Sociologia, UFSCar/ São Carlos, e-mail:
thallesvbreda@gmail.com.
excessivo, ou seja, existem casas com mais de três pessoas por cômodo utilizado
permanentemente como dormitório.
Essa situação de elevados índices da habitação precária na RMM é somente uma
projeção do que ocorre em todo o cenário nacional, pois todo o país passou um processo
desorganizado de beneficiamento da urbanização brasileira que pode ser visualizado por
intermédio dos dados sobre o déficit habitacional que assolam o país desde o início do
século XXI. De acordo com Caio Santo Amore (2015), aproximadamente 7,2 milhões de
famílias estavam em condições precárias de moradias, sendo que 90% possuía uma renda
de zero a três salários mínimos (AMORE, 2015, p. 17). Mas em relação a esse problema
pouco foi feito até o ano de 2008, quando a crise do subprimes começa a ameaçar a
economia nacional.
A crise teve início em 2007 nos EUA a partir da queda do Índice de Dow Jones,
que foi ocasionada por grande quantidade de empréstimos que diversos bancos americanos
realizavam para hipotecas de alto risco, dentre outros motivos que fizeram com que
diversas instituições bancárias da América do Norte fossem à falência, causando impactos
nas bolsas de valores de países como o Brasil, que sofreu uma diminuição da produção
industrial e dos investimentos. Para combater essa crise, surgiu em 2009, o MCMV como
política habitacional que movimentou diversos setores da economia e elevou o poder de
consumo da classe baixa possibilitando o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).
Celina Souza (2006) discorre sobre políticas públicas e expõe que a definição mais
conhecida sobre o tema é do cientista político Harold Lasswell: ele sugere as seguintes
questões “quem ganha o quê, por quê e que diferença faz” (SOUZA, 2006, p. 24).
Portanto, uma política pública precisaria responder a essas três questões. No caso do
MCMV, política voltada à habitação popular, surgida na incidência de uma crise que afetou
agentes relacionados a instituições econômicas, é possível depreender que esses agentes
podem não ser os responsáveis pela criação da política pública, mas influenciaram em
grande medida.
Amore (2015), afirma que:

O Minha Casa Minha Vida é, na origem, um programa econômico. Foi


concebido pelos ministérios de “primeira linha” – Casa Civil e Fazenda
– em diálogo com o setor imobiliário e da construção civil, e lançado
como Medida Provisória (MP 459) em março de 2009, como uma forma
declarada de enfrentamento da chamada crise dos subprimes
americanos que recentemente tinha provocado a quebra de bancos e
impactado a economia financeirizada mundial (AMORE, 2015, p. 15).

1055
A demanda por um projeto que visasse à diminuição do déficit habitacional surge
quando os índices de situação precária de moradia se apresentam elevados, entretanto, ele
só passa a fazer parte da agenda presidencial no momento que se deflagrou a crise do
subprimes.
A partir da obra “De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana” de
Magnani, foi possível inferir que a cidade é pensada por uma série de profissionais, dentre
engenheiras/os, arquitetas/os, urbanistas e outros, com fins a atender as demandas dos
“organismos multilaterais juntamente com instituições de consultoria internacional e
corporações transnacionais e elites locais” (MAGNANI, 2002, p. 13), ou seja, a grande
massa não é levada em conta no momento da criação do seu domicílio. A cidade não é
construída com vistas a atender as necessidades da grande população, mas aos interesses
do mercado imobiliário, das indústrias e elites financeiras, de modo que o solo urbano
acaba servindo de mercadoria de troca.

OBJETIVOS

O trabalho teve como objetivo verificar se as/os moradoras/es do Conjunto Mauá


que se localiza na cidade de Sarandi-PR521, escolhido para a realização da pesquisa
quantitativa e etnográfica, se sentiam segregadas/os geograficamente, visto que, de acordo
com a pesquisa teórica, o conjunto se encontra à margem do Município, então as/os
residentes estão afastados do centro urbano, bem como de todos os equipamentos
públicos, com exceção de uma creche.

JUSTIFICATIVA

Esse projeto possui interesse nacional, pois através da pesquisa teórica do MCMV
e da pesquisa quantitativa e etnográfica na cidade de Sarandi, mesmo ocorrendo em um
dos conjuntos e com apenas alguns moradores, pode-se entender que a lógica acerca do
programa é semelhante à aplicada em vários outros. Ou seja, o trabalho corrobora,
mediante investigação dos textos, a externar que os locais de construção são em muitos
casos afastados e que a população com salários de até R$ 1,8 mil, que deveriam estar no

521
Nome fictício com intenção de preservar a imagem da instituição. Para tanto, também não será revelado o
nome do bairro no qual a mesma se localiza.

1056
foco do projeto, é a menos favorecida. As casas obedecem a uma planta única de criação,
com um tamanho que não adequa com dignidade o núcleo familiar, pois este não é
formado segundo um padrão pré-estabelecido.
O interesse por essa linha de pesquisa surge, inicialmente, para tentar compreender
o grande déficit habitacional, mesmo com a construção de moradias populares do MCMV.
Com o desenvolvimento do trabalho, algumas outras questões vieram a lume, como o
espaço que separa os conjuntos das partes centrais dos municípios, a forma de locomoção
e como os programas são implantados.

HIPÓTESES

Uma das hipóteses é de que as/os residentes do Conjunto Mauá não se sentem
segregados geograficamente, apesar de levarem um tempo consideravelmente longo para
chegarem ao centro, porque ter a casa própria é muito importante para elas/es. Isso é
evidente em pesquisas como “A política dos outros” de Teresa Caldeira (1984), que em
sua etnografia constatou que a importância de possuir um imóvel, bem consideravelmente
caro que está diretamente relacionado ao sentimento de pertencimento social enquanto
cidadã/o. Como apontado por Canclini na obra “Consumidores e Cidadãos”, “Alguns
consumidores querem ser cidadãos” (1999, p. 92), e isso é possível na medida em que os
indivíduos alcançam um maior poder aquisitivo, já que não é mais necessário arcar com os
custos de imóveis alugados ou com reformas em casas completamente precárias. Consumir
mais não se trata apenas de um desejo fútil, irracional e impensado que resultará em mais
precarização. Trata-se da satisfação de desejos biológicos carregados de simbologias. Os
produtos consumidos não estarão mais munidos apenas de valor mercantil, mas sim de
mensagens sociais compartilhadas por todas/os de forma semelhante.
Toda essa forma de sociabilização, por intermédio do consumo, demonstra que os
meios tradicionais da política, como o voto e a participação de partidos e sindicatos, não
igualam as pessoas. O consumo as distingue ainda mais e, a participação social e política
ocorrem por meio dele, que se torna um espaço de disputas entre classes, pois os produtos
já são pensados e criados, cada qual, para uma parcela específica da população, em que
uns poderão almejar consumir os mesmos bens, mas não terão possibilidades financeiras
de fazê-lo. Os objetos já são criados para a distinção social, pois há uma escassez planejada
para que nem todas/os possam adquirir os mesmos produtos.

1057
METODOLOGIA

Para a análise quantitativa um questionário foi formulado com fins a verificar as


condições de vida das famílias. A amostra representativa contabilizou 107 moradoras/es,
escolhidas/os por meio de sorteio aleatório simples. Não se exigiu que fossem
necessariamente as/os responsáveis legais pelos domicílios, apenas que fizessem parte do
núcleo familiar, para que pudessem responder as questões com precisão, já que algumas
eram acerca da renda familiar, por exemplo.
O questionário buscou informações sobre os locais onde residiam antes de serem
alocadas/os pelo MCMV, os impactos que a deslocação causou, a condição econômica das
famílias, se elas possuíam o sentimento de segregação geográfica, e se o espaço das casas
(aproximadamente 32m²) supria as necessidades de todas/os as/os residentes. Em relação
à locomoção, houve questões sobre o tipo de transporte utilizado e quanto aos ônibus
públicos, se estavam suprindo as carências em relação ao tempo de espera, valores,
condições físicas dos veículos e afins.
A pesquisa etnográfica foi formulada com a pretensão de ouvir os moradores do
MCMV, não para se apropriar das vozes dos indivíduos e assim monopolizá-las, mas ao
contrário, visando empoderar-se com os argumentos advindos daquelas/es que melhor
podem falar sobre o programa, já que são as/os receptoras/es diretas/os.

O que nos interessa é antes a advertência de que os críticos sociais


podem facilmente assumir uma posição paternalista e achar que
conhecem melhor do que os envolvidos a situação que pretendem
descrever. Tendem a negar legitimidade ou, pelo menos, valor ao que as
pessoas, objetos de seus estudos, dizem de si, à maneira em que estas se
veem etc., já que tais descrições de si são presumidamente deformadas
pela ignorância da sua “verdadeira” situação, que somente o crítico social
é capaz de objetar que as vítimas da injustiça possuem um acesso
privilegiado ao conhecimento dela, que a conhecem melhor do que
qualquer observador (REGO; PINZANI, 2014, p. 36-37).

Além do que, através da pesquisa as/os entrevistados puderam praticar uma


reflexão sobre o programa e assim formular algumas demandas pontuais para buscar
melhorias ao conjunto. Esse exercício, de uma fala mais centrada, é oportuno quando há
a possibilidade de contatar o poder público “[...] para dispor de instrumentos críticos de
interpretação dos dados empíricos, já que os relatos em questão são fortemente
influenciados pelas imagens dominantes na sociedade” (REGO; PINZANI, 2014, p. 35).

1058
A primeira atividade de campo foi uma trilha do centro da cidade de Sarandi até o
Conjunto Mauá. Posteriormente, percorreu-se todo o conjunto e regressou-se ao centro da
cidade. O objetivo foi observar todo o caminho que permite o acesso ao centro, onde estão
os principais equipamentos públicos. Todo o trajeto foi cronometrado e, depois de
concluído analisou-se o tempo que separada o morador do Mauá dos serviços que ele
necessita.
Nessa primeira ida a campo houve algumas conversas com moradoras/es
aleatórias/os para tentar identificar as/os responsáveis pelas casas, pois a pesquisa foi
realizada somente com as/os donas/os dos domicílios, já que em princípio, essa pessoa já
poderia ter passado pelo processo de exclusão, afinal, um dos pré-requisitos para a
obtenção das UH do MCMV é não possuir nenhum imóvel, renda familiar baixa, dentre
outros. Foram feitas algumas questões abertas para dar ensejo a/ao entrevistada/o para
dialogar de forma ampla, em relação aos seus sentimentos quanto ao local de sua atual
residência e sobre os serviços que utiliza.

RESULTADOS

Ao realizar a pesquisa teórica relativa ao MCMV verificou-se que apesar de haver


um grande índice de déficit habitacional o programa somente torna-se parte da agenda
pública quando incide sobre o país a crise do subprimes, que afetou diversos setores
privados. Desde seu planejamento teórico, o MCMV apresentou questões incoerentes,
como a quantidade de UH destinadas a cada faixa de renda, visto que a maior parte das
UH não foi construída para abrigar famílias da faixa um (1-3 salários mínimos). Na RMM,
a situação ocorre de maneira semelhante ao restante do país: apesar da implantação do
programa, o déficit habitacional ainda apresenta-se alto e os conjuntos são sempre
construídos nas franjas das cidades.
No tocante ao estudo de caso, apurou-se que grande maioria das/os moradoras/es
residentes do Conjunto Mauá, antes da mudança, habitava o Conjunto Mutirão que se
encontrava no extremo oposto da cidade, mas mais próximo do centro comercial. Em maio
de 2011, as 170 famílias que residiam no Mutirão, terreno de posse da prefeitura, que ficou
conhecida como “favela de Sarandi” por ser formado por barracões, tiveram suas casas
desapropriadas com a presença ostensiva de policiais militares. Algumas e alguns
profissionais, como assistentes sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
estiveram presentes para mediar a situação. De acordo com o então secretário da

1059
administração, Luis Gustavo Martins, o desmanche dos barracões iria solucionar o
problema, pois acabaria com a favela da cidade, enquanto as famílias seriam remanejadas
para o extremo oposto de Sarandi, no Conjunto recém-inaugurado do MCMV.
O Poder Público, portanto, foi incapaz de estabelecer uma relação de cooperação
com as demais esferas do poder e falhou em seu principal objetivo: garantir à população
seus direitos fundamentais, resguardados pela Constituição Federal (CF/88). O direito à
cidade é um destes direitos que não são plenamente assegurados e pode ser definido como:

[...] o direito de todos e de todas ao acesso à habitação e a todos os


serviços relacionados à vida urbana e necessários ao bem-estar coletivo,
conforme os valores e as categorias de representação da sociedade
(JUNIOR, O. A.; CHRISTOVÃO, A. C.; NOVAES, P. R., 2011, p. 07).

O terreno onde foram construídas as casas do Mutirão foi doado pela prefeitura,
em 1985, quando o município recebeu verbas para construção de moradias. De acordo
com a Lei de Licitações e Contratos, lei nº 8.666/93, é possível que ocorra a doação de
bens públicos imóveis para a citada finalidade, conforme o que consta em seu art. 17, inciso
I, alínea f. Então, em conjunto de mutirão, os futuros moradores construíram suas casas
no terreno recebido, que não possuía infraestrutura alguma. Após 25 anos residindo
naquele local, as famílias foram chamadas a se mudar para o novo conjunto do MCMV, o
Mauá. Considerando que bens públicos não podem ser adquiridos por usucapião,
conforme disposto no art. 183, §3º, CF/88, e que as famílias não receberam documentação
legal que comprovasse a doação, o processo foi simplificado e a prefeitura retomou a posse
do terreno.
Reformas urbanas, em tese, deveriam ser de utilidade pública, visando atender os
interesses sociais da população, promovendo melhorias nas condições de vida, suprindo
as necessidades das camadas mais pobres. Entretanto, é visível que o Poder Público não
agiu voltado a qualidade de vida das pessoas que residiam no Mutirão, já que não foi
executada uma política de planejamento urbano para melhor atendê-las. Houve um
processo de “higienização” do centro da cidade, além da segregação socioespacial dos
moradores que lá residiam, afinal, elas/es foram retiradas/os de uma área central que
possuía todos os serviços públicos e realocados no Conjunto Mauá.
Através da pesquisa quantitativa foram entrevistadas 79 pessoas do sexo feminino e
28 do sexo masculino, sendo que o maior índice de entrevistadas/os incidiu na faixa de
idade entre 36 e 44 anos. Sobre a questão da segregação socioespacial, a/o entrevistada/o

1060
foi questionado acerca de sua atual localização. Constatou-se que 50,5% das/os
moradoras/es consideram que suas casas são mais bem localizadas do que onde residiam
anteriormente. E 49,5% responderam que estão distantes do centro e serviços que
necessitam. Uma questão que pode ser atrelada à distância é o tipo de transporte utilizado
diariamente. Verificou-se que 76% dependem do transporte público, 17% possuem carro
e 7% moto, ou seja, a maior parcela utiliza ônibus (único modal público oferecido). Destes,
apenas 21% possui cartão de passe (vale-transporte) concedido pela entidade patronal e
79% precisam custear seu transporte para ir trabalhar. Durante o período de pesquisa o
conjunto Mauá era atendido por apenas duas linhas de ônibus: o Vale Azul e o Alvamar.
Por intermédio da pesquisa, foi possível captar dados acerca da escolaridade e
trabalho das/os moradoras/es e então, corroborar a teoria de que essas variáveis estão
atreladas ao local onde o indivíduo irá residir e o espaço que será destinado a ela/e na
sociedade. A maioria das/os residentes do Mauá, 64%, possui nível de escolaridade baixa,
pois concluíram apenas o ensino fundamental. Em relação à atividade empregatícia, 78%
estão ativas/os no mercado de trabalho e 22% compreendem desempregadas/os,
aposentadas/os ou inaptas/os ao trabalho.
Das/os 78% que trabalham 22% trabalham mais do que 40 horas semanais. No
tocante à renda individual, 24% não possui renda, 37% recebem até um salário mínimo e
35% até três salários mínimos. Apenas quatro pessoas recebem de três a seis salários
mínimos. Em 2014, quando foi aplicada a pesquisa, o salário mínimo era de R$ 724, então
54% possuía uma renda familiar de aproximadamente R$2 mil.
Com referência ao tamanho das famílias por UH, verificou-se que 7 UH possuem
um/uma morador/a, 52 UH possuem até três, 42 UH possuem até sete e 6 UH possuem
até dez. De acordo com o IPEA, pode-se inferir, mediante dados coletados, que
aproximadamente 45% das famílias do conjunto Mauá ainda podem estar em situação de
déficit habitacional, pois constituem uma situação nomeada de adensamento excessivo. Ela
ocorre quando existem mais de três pessoas utilizando um cômodo como dormitório
permanente. Por meio dos dados captados pela pesquisa quantitativa, pode-se entender
que mais da metade, 50,5%, das/os entrevistadas/os não se entendem como segregadas/os
geograficamente, mesmo dependendo única e exclusivamente do transporte público.
Também foi possível confirmar que a teoria que discute a RMM se aplica
igualmente em regiões menores, ou seja, quem mora no conjunto Mauá possui poucos
anos de estudo e ocupam espaços desprivilegiados no mercado de trabalho, com altas
cargas horárias e baixos salários. Em relação a casa, muitas/os moradoras/es ainda se

1061
encontram em condições precárias. Mais da metade, 52%, consideram insuficiente o
tamanho de suas moradias, visto que estas têm um espaço menor do que o necessário para
acomodar, com o mínimo de conforto, suas famílias.
Para entender melhor os resultados obtidos na pesquisa quantitativa, em 2015
efetuou-se uma pesquisa qualitativa, por meio de uma etnografia, pretendendo-se, assim,
conversar com as pessoas e captar respostas para questões subjetivas que não ficaram
evidentes nos questionários com questões fechadas. Elas/es foram questionadas/os para
saber como se sentiam em relação ao tamanho de suas casas e qual a percepção acerca da
distância até o centro. A partir da pesquisa teórica se constatou que o conjunto Mauá, com
exceção de uma creche, não possui equipamentos púbicos, nem privados. Por fim, por
meio das questões socioeconômicas, foi possível conhecer melhor o perfil das/os
residentes.
Então, efetuou-se a ida ao campo na tentativa de entrevistar moradoras/es
escolhidas/os aleatoriamente, com algumas questões previamente elaboradas. Conversou-
se com sete moradoras/es: Maria, Pedro, Aparecida, Beatriz, Luiz, Marcela e Carolina,
respectivamente. Os nomes reais não serão utilizados para preservação da identidade.
Maria morava no antigo Conjunto Mutirão antes de se mudar para o conjunto Mauá. Ela
acha que sua casa hoje é melhor em estrutura, contudo, na antiga residência ela morava
quase no centro, portanto era mais bem localizada. Quando foi questionada sobre a
localização, respondeu: “A casa sim, mas o lugar é muito longe, longe do centro, longe de
tudo, não tem nada aqui perto não tem mercado, não tem farmácia, não tem nada”
(informação oral). Maria não possui meio de locomoção. Depende do transporte público.
Já o Seu Pedro, que também morava no Mutirão, considera a mudança boa, apesar de ter
se afastado do centro. Para ele não é difícil o acesso aos serviços e equipamentos públicos,
pois acredita ter se acostumado com o caminho que percorre com frequência de bicicleta
ou a pé. Quando questionado sobre a distância, ele disse: “Não, não é muito longe não, a
gente acostuma” (informação oral).
A terceira entrevistada, Aparecida, acha que hoje as condições de sua moradia são
melhores do que quando ela morava no centro de Sarandi, pois a residência é sua. Ela
disse: “Lá era cedido pela minha sogra, agora aqui é meu, a casa é minha” (informação
oral). Ela, porém, sente a distância, porque tem um bebê e precisa se locomover por meio
do transporte público ou caminhando. Vê dificuldade nas duas formas, pois tem que andar
sempre com o carrinho de neném, que é grande e pesado. Questionada se ela se sentia

1062
afastada da cidade, respondeu que sim em relação à dificuldade em ter acesso aos serviços
dos quais necessita.
Beatriz, a quarta entrevistada, morava no Jardim Verão antes da mudança. Como a
maioria dos entrevistados, ela também acredita que onde morava havia acesso mais fácil ao
centro. Hoje ela se locomove de carro, contudo já foi caminhando ao centro e acha o
trecho longo e cansativo. Lembra-se, inclusive, que muitas vezes teve que andar por cerca
de quarenta minutos (tempo estimado por Beatriz) com sua filha pequena. Ela gostaria que
houvesse no conjunto serviços públicos e privados. O quinto entrevistado, Luiz, acredita
que a distância do conjunto ao centro é razoável. Antes de se mudar para o Residencial
Mauá, ele residia em uma casa alugada no Jardim Esperança. Luiz diz se lembrar de que
os aluguéis comprometiam muito a renda familiar, por ser muito caro. Ele possui um carro,
mas também se locomove de bicicleta, demorando cerca de vinte e cinco minutos para
chegar ao centro, pedalando rápido. Quando o entrevistado é questionado sobre estar
isolado da cidade ele diz que “Com certeza, até se observar bem o único acesso que você
tem aqui é um só” (informação oral). Ele se referia à Estrada Octávio Colli e continua
dizendo que esse caminho: “[...] é único. Quando a prefeitura tá fazendo algum trabalho
na estrada, você fica isolado, você tem que esperar eles terminarem para passar”
(informação oral). Luiz também acredita que o que falta para seu conjunto seria uma
passagem que chegasse até Maringá e um posto de saúde.
Marcela residia no Jardim Independência. Ela fez questão de deixar claro de que
antes não morava no Mutirão. Quando ela foi questionada sobre onde achava melhor
morar, respondeu que no Mauá e disse: “Pra mim tá bom, porque a gente tem carro, para
quem tem carro é bom... agora a pé...” (informação oral). Foi questionada também se
algum dia ela precisou se deslocar a pé e ela respondeu que nunca. Em relação ao modo
como sua filha pequena se locomovia para ir à escola, ela respondeu que ela ia de ônibus,
se não fosse assim não teria como ir. Mas ela não acha que o Conjunto é longe do centro.
Também acredita que tem acesso aos serviços públicos de que necessita: “Público eu acho
que não falta, porque aqui tem rede de esgoto, tem galeria, tem iluminação” (informação
oral).
A última entrevistada, Carolina, residia no Mutirão antes da mudança. Ela acredita
que sua casa hoje é melhor em estrutura física, no entanto antes ela possuía maior facilidade
de chegar ao centro. Hoje quando precisa ir ao centro vai de circular ou seu marido a leva
quando não está trabalhando. Sobre a distância que caminha, ela disse que só é longe
quando ela está com pressa. Carolina é moradora do Conjunto Mauá há quatro anos.

1063
Quando questionada sobre como se sentia morando ali, ela disse que estava tentando se
acostumar, porque é realmente muito longe. Achava que tinha direito de continuar
morando no antigo Mutirão, pois foi o que o prefeito prometeu para os moradores, que
continuariam morando lá. Ela disse também que “[...] no direito, a gente morou lá mais de
20 anos. Direito era lá, eu acho que tinha que arrumado lá as casas e não mandado a gente
para cá” (informação oral).

CONCLUSÕES

Através dos dados quantitativos, pode-se inferir que a maioria das/os


entrevistadas/os não se consideram segregadas/os geograficamente e quase metade
consideram suficiente o tamanho de suas residências, mesmo aquelas/es que possuem
famílias com muitos membros. Inferiu-se, ainda, que grande maioria das/os moradoras/es
trabalha, muitas/os trabalham mais do que 40h por semana e ainda assim a renda mensal
média das famílias é de dois mil reais.
Contudo, através da pesquisa etnográfica, pode-se confirmar que existe o
sentimento de segregação entre as/os residentes, já que apenas dois entrevistados não
responderam que as distâncias são grandes, o restante respondeu que o caminho a ser
percorrido para ter acesso aos equipamentos públicos é longo e cansativo. Mesmo
aquelas/es que afirmaram não estarem separados da cidade, talvez, demonstrassem o
sentimento de isolamento em outras questões.
As pessoas que disseram que não se sentem segregados foram: Seu Pedro e
Marcela. Ambos vieram de pontos considerados próximos ao centro. Seu Pedro, já idoso,
apesar de dizer que não se sente segregado, relatou que “nós sempre nos acostumamos
com as situações”. Já Marcela argumenta que a localização não influencia em sua vida e de
sua família porque possuem um veículo, todavia, sua filha não consegue ter acesso à escola
a não ser de ônibus. As/os outras/os cinco moradoras/es sentem a distância caminhando,
de bicicleta ou mesmo de ônibus, consideram suas moradias melhores em questão de
infraestrutura e por ser uma residência própria, mas segregadas/os geograficamente em
relação a todos os serviços dos quais necessitam, pois não possuem acesso aos mesmos
com facilidade e rapidez.
Mesmo que o trabalho de pesquisa etnográfica tenha tido suas limitações no caso
apresentado como a pequena quantidade de entrevistadas/os, em vista de diminuto tempo
e falta de recursos, foi possível inferir que as/os moradoras/es entendem sua situação, leem

1064
o Estado como uma instância despregada de suas realidades, assim não pode reagir com
fins a tentar mudar a situação a qual foram submetidas/os e acabam submissas/os. E,
também, que o MCMV não está suprindo o habitacional, isto é, não está cumprindo com
a finalidade para o qual foi criado teoricamente.

REFERÊNCIAS

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Beatriz Cruz; SHIMBO, Lucia Zanin; AMORE, Caio Santo, Minha Casa...E a Cidade?,
Rio de Janeiro: Letra Capital, 2015. p.11-28. (Capítulo de livro)

ARANTES, P.; FIX, M. Como o governo Lula pretende resolver o problema da


habitação. Alguns comentários sobre o pacote habitacional Minha Casa, Minha Vida.
Correio da Cidadania, 2010. Disponível em < http://www.unmp.org.br>, último acesso:
16 ago. de 2015. (Artigo em periódico digital)

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado Federal: Saraiva, 2015. (Constituição Federal)

CALDEIRA, T. P., A política dos outros: O cotidiano dos moradores da periferia e o


que pensam do poder e dos poderosos, São Paulo: brasiliense, 1984. (Obra completa)

CANCLINI, N. G., Consumidores e Cidadãos: Conflitos multiculturais da globalização,


4.ed. Rio de Janeiro: UFRJ, 1999. (Obra completa)

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <


http://cod.ibge.gov.br/232D6>. Último acesso: jul. de 2015. (site do IBGE)

JUNIOR, O. A.; CHRISTOVÃO, A. C.; NOVAES, P. R., Políticas Públicas e Direito à


Cidade: Programa Interdisciplinar de Formação de Agentes Sociais e Conselheiros
Municipais, Módulo III, in:_______. A produção Capitalista do Espaço, os Conflitos e o
Direito à Cidade, Rio de Janeiro: Letra Capital, 2011. (Capítulo de livro)

MAGNANI, J. G. C., De Perto e De Dentro: Notas para uma etnografia urbana. Revista
brasileira de ciências sociais, vol. 17 n° 49, junho/2002. (Artigo em periódico físico)

REGO, W. L. PINZANI, A., Vozes do Bolsa Família: Autonomia, dinheiro e Cidadania,


2. ed., São Paulo: Unesp, 2014. (Obra completa)

RODRIGUES, A. L. TONELLA, C. Retratos da região metropolitana de Maringá,


Maringá: EDUEM, 2010. (Obra completa)

SOUZA, Celina, Políticas Públicas: Uma revisão da literatura, Sociologia, Porto Alegre,
ano 8, n. 16, p. 20-45, 2006. (Artigo de periódico físico)

1065
ENTRE A RACIONALIDADE PÚBLICA E PRIVADA: O CARÁTER
HIBRIDO DA GESTÃO SOCIAL NA ONG CÉU AZUL

Rafaela Sabatine VICTÓRIO522

Thalles Vichiato BREDA523

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o caráter dual do terceiro setor dentro de uma periferia
pobre fomentada pelo Programa Minha Casa Minha Vida, em São Carlos/SP. O bairro Jardim
Zaváglia, inaugurado em 2011. Desde sua criação até 2017, o bairro apresenta uma deficiência de
equipamentos públicos e privados. Atualmente o bairro conta com uma Escola Estadual Jardim
Zaváglia, dois playgrounds com academias ao ar livre, escasso comércio, e a ONG Céu Azul.
Durante as incursões etnográficas no bairro e participação na ONG, como voluntário (a
participação como voluntário na ONG foi parte da estratégia de entrada em campo), que ocorreram
no período de novembro de 2016 a maio de 2017, percebeu-se o papel central que a ONG adquiriu
no bairro Jd. Zaváglia e Eduardo Abdelnur (bairro vizinho com características semelhantesao Jd.
Zaváglia). Ela aparece como um equipamento do terceiro setor, que em seu cotidiano fomenta
atividades socioeducativas para um grupo de alunos (aproximadamente 270), que variam entre
esportes, artes, educação musical, etc. A figura da presidenta da ONG é muito marcante dentro da
instituição e do bairro. Portanto, o objetivo deste artigo é analisar a centralidade da ONG e o caráter
híbrido da presidenta, a partir de uma literatura que mobilize a importância e o modo de gestão do
terceiro setor, considerado como gestão social. O terceiro setor é visto como parte de uma mistura
de racionalidades voltadas para a provisão de desenvolvimento e proteção sociais. Sendo esta uma
gestão valorativa, pautada em relações de confiança e solidariedade, os valores e o altruísmo, que
ao lado da publicização, representatividade, sustentabilidade e efetividade social, compõem as
formas simbólicas exigidas no processo de gestão social. Além dessas formas simbólicas, podemos
identificar um conjunto de fatores determinantes da gestão, que designamos como dualidades da
gestão social das Organizações do Terceiro Setor, que provem da condição simultânea dessas
organizações. Observamos, portanto, este caráter dual na ONG Céu Azul, a racionalidade pública
em conflito com a racionalidade privada, que expressa valores da dirigente da ONG. É comum a
confusão entre quais ações são originárias da presidente e quais ações são originárias da
organização, por parte dos funcionários, alunos e moradores.

Palavras-chave: Terceiro Setor. Gestão Social Hibrida. ONG. Periferia Pobre. São Carlos.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste artigo é apresentar e debater as características da gestão social do


terceiro setor dentro de uma área periférica fomentada pelo Programa Minha Casa Minha
Vida Faixa 1 (PMCMV1), em São Carlos/SP. Ao apresentar o modelo de gestão
implementada em uma ONG, pretende-se discutir os fluxos privados e públicos que
marcam a gestão das organizações sociais, as disputas entre o universal e o particular e todas

522
Incursões etnográficas realizadas em virtude da pesquisa de Mestrado do aluno Thalles Vichiato Breda,
em curso no Programa de Pós Graduação em Sociologia, na Universidade Federal de São Carlos, SP.
523
Estado Social- Burocrático visa assumir o papel de garantir os direitos sociais e o pleno-emprego ao passo
que o faz por meio de contratações direita de burocratas, representado pelo Estado desenvolvimentista e
protecionista (BRESSER PEREIRA, 1998).
1066
as ambiguidades que permeiam esta área de gestão. A ONG Céu Azul 524discutida como
objeto empírico deste artigo se apresenta como uma tipologia de gestão social, podendo
encontrar em outras ONGs modelos semelhantes de gestão, argumento que
desenvolveremos durante esta apresentação.
Os resultados expostos são frutos de incursões etnográficas525 realizadas durante
novembro de 2016 e que ocorrem até o presente momento. Durante este período foram
realizadas ao menos quatro visitas por mês na instituição. O acesso à ONG inicialmente
foi planejada como entrada em campo para estudar o bairro na qual se localiza. Conforme
as visitas foram se intensificando foi possível observar o papel desempenhado pela
instituição naquela localidade com pouca infraestrutura e equipamentos de consumo. A
partir disso, a atenção se voltou também para o modo de operação da ONG, de seus
professores e gestores a fim de compreender suas práticas de gestão social.
O bairro onde se localiza a ONG Céu Azul, inaugurado em 2011, é fruto do
PMCMV1, contando com mil unidades habitacionais. Até o atual momento, o bairro
apresenta uma deficiência de equipamentos públicos e privados, contando com uma Escola
Estadual, dois playgrounds com academias ao ar livre, escasso comércio, e a ONG Céu
Azul. A ONG se apresenta como um equipamento do terceiro setor, que em seu cotidiano
fomenta atividades socioeducativas para um grupo de alunos (aproximadamente 300), que
variam entre esportes, artes, educação musical, etc. A figura da presidenta da ONG é muito
marcante dentro da instituição e do bairro. Portanto, o objetivo deste artigo é analisar a
centralidade da ONG e o caráter híbrido da presidenta e de sua gestão, a partir de uma
literatura que mobilize a importância e o modo de gestão do terceiro setor, considerado
como gestão social. O terceiro setor é visto como parte de uma mistura de racionalidades
voltadas para a provisão de desenvolvimento e proteção sociais. Sendo esta uma gestão
valorativa, pautada em relações de confiança e solidariedade, os valores e o altruísmo, que
ao lado da publicização, representatividade, sustentabilidade e efetividade social, compõem
as formas simbólicas exigidas no processo de gestão social. Além dessas formas simbólicas,
podemos identificar um conjunto de fatores determinantes da gestão, que designamos
como dualidades da gestão social das Organizações do Terceiro Setor (OTS), que provem

524
Segundo Bresser Pereira (1998), a globalização colocou dupla pressão no Estado. Por um lado, o de
proteger seus cidadãos, do outro, de fortalecer seus mercados e baratear os custos de produção. Duas lógicas
que podem entrar em conflito.
525
Para Bresser Pererira (1998), o Estado Social-Liberal tem a intenção de continuar a proteger os direitos
sociais e a promover o desenvolvimento econômico. Apresenta-se como liberal, pois se pautara mais em
controles de mercados e menos em controles administrativos, realizando seus serviços sociais e científicos
1067 não-estatais competitivas.
principalmente por intermédio de organizações públicas
da condição simultânea dessas organizações. Observamos, portanto, este caráter dual na
ONG Céu Azul, a racionalidade pública em conflito com a racionalidade privada, que
expressa valores da dirigente da ONG. É comum a confusão entre quais ações são
originárias da presidente e quais ações são originárias da organização, por parte dos
funcionários, alunos e moradores.
Para discutir estas questões, iniciamos com uma discussão a respeito do
fortalecimento das Organizações do Terceiro Setor frente ao realinhamento do papel do
Estado na década de 1990 e o avanço do neoliberalismo; em seguida, discutiremos as
características gerais da gestão social do Terceiro Setor e de suas organizações atualmente,
por fim, apresentamos nosso objeto empírico e apontaremos as características convergentes
com a literatura trabalhada.

REALINHAMENTO DO ESTADO NA DÉCADA DE 1990 E O


FORTALECIMENTO DAS OTS

O Estado brasileiro no final da década de 1970 e no início da década de 1980,


acompanhando o cenário mundial, passava por uma crise institucional financeira onde se
apresentou necessário repensar o papel do Estado e das organizações civis. Entre as
décadas de 30 e 60 do século XX, dentro no nacional desenvolvimentismo o Estado526 teve
um papel econômico e social centralizador na sociedade brasileira. Entretanto, entre 70 e
80, as deformações e o processo de globalização527colocou o Estado no centro da crise
econômica e como principal causador da redução das taxas de crescimento, como aponta
a interpretação de Bresser Pereira (1998).
O debate que se acirrava então seria: qual o papel do Estado frente às questões
econômicas, sociais e científicas? As reformas propostas junto à onda internacional do
neoliberalismo e conservadorismo intentavam aplicar um Estado mínimo, onde ele se
prezaria apenas às suas “funções clássicas”: garantir a propriedade os contratos. Entretanto,
verificou-se a impossibilidade da aplicação de um Estado mínimo, uma vez que não existe
uma possibilidade de um capitalismo sem a relação com o Estado (OLIVEIRA, 1995).

526
Constitui-se principalmente no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e continuou no
governo Lula, como argumenta Paula (2005). O projeto gerencialista é a) orientação da ação do Estado para
o cidadão-cliente; b) ênfase no controle dos resultados por meio de contratos de gestão; c) fortalecimento e
aumento da autonomia da burocracia estatal, valorizando o trabalho técnico e político e a formulação de
gestão das políticas públicas; d) descentralização de políticas públicas; e) distinção entre unidades
descentralizadoras entre exclusivas de Estado e das organizações civis; f) transferência para o setor público
não-estatal dos serviços sociais e científicos; g) controle das unidades descentralizadas; h) terceirização das
atividades auxiliares ou de apoio (BRESSER PERERIRA, 1068 1998; PAULA, 2005).
527
Privatização, processo de tornar uma empresa estatal em privada.
Prevaleceu, portanto, o que o Bresser Pereira (1998) chama de Estado Social
Liberal528 ou um projeto gerencialista529, onde cabe o Estado garantir o contrato e a
propriedade e também é de sua responsabilidade garantir os direitos sociais e promover a
competitividade de mercado. Em outras palavras, “Estado e mercado não mais podiam ser
vistos como alternativas polares, transformando-se agora em fatores complementares de
coordenação econômica” (BRESSER PEREIRA, 1998, p. 53), este, portanto foi o
realinhamento do Estado neoliberal, onde o Estado não mais controla o mercado, mas fica
a serviço do mesmo, mesclando duas lógicas até então distintas.
Esta reforma de Estado envolveu algumas consequências. Não é o foco deste artigo
discutir extensivamente os motivos da crise ou mesmo as soluções e consequências do
projeto gerencialista proposto pra o seu enfrentamento, que se estabeleceu na década de
90; entretanto, destacaremos algumas circunstâncias que influenciaram direto na
concepção das Organizações do Terceiro Setor, representados pelo debate sobre o
“tamanho” do Estado e o seu papel regulador do Estado. Debate este pautado em cima
dos termos de privatização, “publicização” e terceirização. Deste debate tem-se a definição
de espaço público não-estatal, que se encontra entre o espaço estatal e o espaço privado.
Discutiremos mais extensivamente este espaço público-não estatal que representa o lugar
do terceiro setor hoje.

O “TAMANHO” DO ESTADO E SEU PAPEL REGULADOR

Dentro desta reconstrução do Estado, logrou-se que era necessário recuperar a


poupança pública e superar a crise fiscal; redefinir a intervenção no plano econômico e
social por meio da contratação de organizações públicas não-estatais para executar serviços
de educação, saúde e cultura; e por fim, a reforma da administração pública voltada para
uma administração pública gerencial. Em outras palavras, significou dissolver um Estado
que promovia diretamente o desenvolvimento econômico e social para um Estado que atua
como regulador e facilitador ou mesmo financiador deste desenvolvimento (PAULA,
2005). Desta maneira, entendia-se que o Estado diminuiria de “tamanho”, a ideia, portanto,
seria

528
Terceirização é o processo de transferir para o setor privado serviços auxiliares ou de apoio.
529
“Publicização”, processo de transformar uma organização estatal em uma organização de direito privado,
mas pública não-estatal.
1069
[...] a delimitação do Estado, reduzindo seu tamanho em termos
principalmente de pessoal através de programas de privatização530,
terceirização531 e “publicização”532 (este último processo implicando a
transferência para o setor público não-estatal das serviços sociais e
científicos que hoje o Estado presta) (BRESSER PEREIRA, 1998).

Este processo de publicização, foco que daremos aqui, implica na criação ou


redefinição das instituições. Isto tem consequências na forma restrita, por um lado, em
instituições organizacionais voltadas para o controle social, por outro, na participação da
sociedade civil nas decisões políticas das instituições públicas533. Por fim, temos o
fortalecimento de algumas instituições, uma delas é o setor da organização pública não-
estatal ou Organizações do Terceiro Setor.
Em oposição às ideias de Bresser Pereira, Francisco de Oliveira (1995) defende
que é difícil estabelecer um “tamanho” ou uma medida em si. O Estado deve ser sempre
pensado em relação à sociedade civil. Transformar isso em uma régua ou medida seria
como seguir a ideologia liberal norte-americana, o que seria um grande equívoco, diz
Oliveira. A redução e reestruturação estatal, afirma Oliveira, não deve ser confundida com
a redução social e universalizante de direitos.
Num plano de ideias, temos dois autores opostos, Oliveira que coloca no plano
marxista e na luta de classes, onde essa redefinição estatal deveria ser fruto da relação entre
o Estado e sociedade civil e a relação entre classes antagônicas e; Bresser Pereira, que se
localiza no espectro centro-direita, neoliberal, onde a saída da crise deveria partir de ajustes
macroeconômicos, estruturais, junto com a desregulação do Estado e flexibilização dos
direitos trabalhistas) (BRESSER PEREIRA, 1998, OLIVEIRA, 1995).

FORTALECIMENTO DA ORGANIZAÇÃO PÚBLICA NÃO-ESTATAL

Convencionado que uma das saídas para a diminuição o tamanho do Estado seria
transferir para entidades públicas não-estatais as atividades na área social e científica,
incluindo nesta categoria as escolas, universidades, centros de pesquisa cientifica e
tecnológica, creches, ambulatórios, hospitais, entidades de assistenciais aos carentes, dentro

530
A efetiva participação da sociedade civil nos processos decisórios de organizações publicas não-estatais, ou
organizações do terceiro setor é alvo de extensas discussões acadêmicas.
531
Documento acessado no site da ONG Céu Azul. No intuito de proteger a instituição, guardamos o direito
de não divulgar o site ou o documento na íntegra.
532
Documento acessado no site da ONG Céu Azul. No intuito de proteger a instituição, guardamos o direito
de não divulgar o site ou o documento na íntegra.
533 1070 aos moradores e entrevistados que se seguem.
Nome fictício, assim como todos os nomes se referindo
tantas outras diversas instituições. Mesmo com a transferência destas atividades, seu
financiamento ficaria em grande proporção sendo responsabilidade do Estado (BRESSER
PERERIRA, 1998; PAULA, 2005).
O que seria, então, uma entidade pública não-estatal? Podemos definir que o
“público” é tudo aquilo que é voltado para o interesse geral e, como “privado” aquilo que
é voltado para o lucro ou para o consumo dos indivíduos e dos grupos; estatal é uma forma
específica de espaço ou propriedade pública, aquela que faz parte do Estado. Logo, o
público não pode estar limitado ao estatal. Em outras palavras, as iniciativas não-estatais
também realizariam benfeitorias/obras públicas, mas, ao mesmo tempo, tais como
fundações, associações sem fins lucrativos e que não se interessam pela defesa corporativa
mas também pelo interesse geral, não podem ser consideradas estritamente privadas. Estas
são consideradas públicas, pois atendem o interesse da população geral sem visar fins
lucrativos e não são ligadas ao estado, logo, uma entidade pública não-estatais (BRESSER
PEREIRA, 1998).
Portanto, compreendemos o público mais amplo que o Estado, podemos
compreender tais entidades como as entidades do Terceiro Setor, entidades sem fins
lucrativos, organizações não-governamentais (ONGs) e as organizações voluntárias. Em
princípio, alerta Bresser Pereira (1998), todas as organizações sem fins lucrativos são ou
devem ser organizações públicas não-estatais. “São ou devem ser”, pois uma entendida
formalmente pública e sem fins lucrativos pode ser uma falsa entidade pública uma vez que
objeta ter lucros.
As Organizações do Terceiro Setor apareceram neste momento como uma grande
aposta para a ativação da sociedade civil para a construção de políticas sociais com caráter
não mercadológico, uma vez que no privado é a esfera da mercadoria e coloca as
vulnerabilidades sociais como espaço e geração de lucro. Soma-se a isso, as Organizações
do Terceiro Setor poderiam ter um papel de fazer a passagem do campo da “carência”
social para o campo dos direitos. Entretanto, não se trata de jogar a responsabilidade a
tarefa de combater as desigualdades, mas sim de uma parceria onde podem ocorrer formas
de gestão descentralizada e de forma mais direta sobre determinadas localidades. Uma
intermediação entre as esferas locais, estadual e federal (OLIVEIRA, 1995).
Para além da participação da sociedade civil, o reconhecimento deste espaço
público não-estatal tornou-se particularmente interessante em um momento de discussões
dicotômicas entre o Estado e o mercado, apresentado como uma forma à privatização
estatal. O papel do terceiro Setor aparece então como um possível facilitador de formas de

1071
controle social direto e de parceria, que poderiam abrir novas perspectivas à democracia.
O que define em última instancia o que é uma atividade pública não-estatal é a dependência
do financiamento do Estado:

Todas às vezes, entretanto, que o financiamento e uma determinada


atividade depender de doações ou de transferências do Estado, isso
significara que é uma atividade públicas, que não precisando ser estatal,
pode ser pública não-estatal, e assim ser mais diretamente controlada
pela sociedade que a financia e dirige (BRESSER PEREIRA, 1998, p.
68-69).

A celebração desta gestão com o Estado é financiada parcialmente ou mesmo


totalmente pelo próprio Estado. O crescimento deste tipo de organização foi exponencial
na segunda metade do século XX em decorrência da iniciativa estatal e da própria
sociedade engajada na publicização de serviços sociais e científicos. Não podemos
confundir este tipo de organização com as propriedades coorporativas, tais como sindicato,
associações de classe e clubes. O Estado continuará de certa forma a ser um forte promotor
ou subsidiado das atividades sociais e científicas, com a diferença que sua execução caberá
principalmente a entidades públicas não-estatais, incentivando o crescimento do espaço
público (BRESSER PEREIRA, 1998).
Entretanto, se verificou que o ideal de participação democrático por intermédio das
Organizações do Terceiro Setor não foram tão satisfatória quanto se esperava. Houve uma
concentração de poder no núcleo estratégico, ou seja, nas secretarias formuladoras de
políticas públicas ou mesmo desvio de finalidades nas organizações que se pretendiam ter
caráter social/público, traduzindo-se em autocracia ou mesmo neopatrimonialismo. Os
canais de demandas populares não se mostraram tão porosos e flexíveis (PAULA, 2005).

GESTÃO SOCIAL DO TERCEIRO SETOR

Para conceituar a gestão social do terceiro setor devemos definir o espaço a qual
estas organizações pertencem antes. Este espaço denominado terceiro setor está localizado
em uma “área intermediaria do sistema de mistura proteção social, no qual esforços, lógicas
e racionalidades típicas do estado, do mercado e das comunidades envolvem-se no
tratamento da questão social”.
Sendo assim, segundo Cabral (2011, p. 49) o terceiro setor pode ser definido como:

1072
Espaço relacional no qual lógicas diversas, discursos e racionalidades que
emergem do estado, do setor mercantil e da comunidade são
interconectados por um propósito comum de proteção e
desenvolvimentos sociais. Nesse campo intermediário de relações
sociais, as organizações sociais (OTS) apresentam-se como
empreendimentos privados, que atuam formal ou informalmente
movidas por propósitos solidários originados na expressão pública de
cidadãos que interpretam a questão social e a representam por meio das
suas missões organizacionais, com o objetivo de participar da produção
de bens públicos de proteção e desenvolvimento sociais.

Diante desta definição chamaremos atenção principalmente ao valor da


solidariedade que estas organizações são pautadas e a importância que a missão possui para
a gestão destas organizações. A missão se torna aqui o objetivo final destas organizações.
Além da solidariedade inerente a essas organizações, outros valores se apresentam
presentes na forma de gerir estas organizações. A gestão é, portanto tomada de atributos
normativos, substituindo a visão puramente técnica a uma questão valorativa. Como explica
Cabral (2011) “Assim, o TS, como manifestação desse espaço público pode ser
identificado por sua estrutura de atributos normativos que se explicitam em novas
sociabilidades para gerir formas de produção de bens públicos e valores não estimados.”
Dito isto, a gestão social tem a função de reproduzir os valores sociais e produzir os bens
públicos de proteção social.
Além da definição de organizações do terceiro setor é importante definir também
quais sãos os públicos envolvidos nestes espaços, visto que são grupos sociais formados por
pessoas com diferentes visões. Aqui serão chamados de públicos constituintes. Para tanto,
segundo Cabral, esses públicos são divididos em cinco diferentes atores sociais:
Instituidores (criadores das organizações e detentor da missão); Funcionários
(trabalhadores da organização e detentores de certo grau de identidade com a missão);
Voluntários (trabalhador não remunerado que contribui para organização de diferentes
formas e dotado da ideologia da organização); Doadores (contribuem financeiramente para
manutenção da organização) e; Público alvo (grupo dos cidadãos beneficiados pelos
serviços prestados pela organização) (CABRAL, 2011, p. 52).
Além disso, ainda segundo Cabral (2011) esses públicos constituintes interpretam
a missão da organização de forma distinta, tendo diferentes valores que em torno das
Expectativas, Necessidades, Capacidades, Interesses e Representações Sociais, formando
o acrônimo ENCIR.

1073
Ainda na perspectiva valorativa da gestão social do terceiro setor, temos os atributos
normativos que caracterizam este espaço público não estatal, sendo enumerados em
Representatividade dos interesses coletivos; democratização; qualidade e efetividade;
Visibilidade Social; Cultura pública; Autonomia; e; Controle e a defesa social.
Sendo assim, Cabral (2011, p. 53) considera que:

Esse conjunto de atributos, manifestado na natureza pública deste campo


intermediário de sociabilidade, constitui-se em um referencial a partir do
qual podemos tratar, normativamente, o processo de gestão que o
contemple com um processo de gestão social que garanta a reprodução
desses valores e a produção de bens públicos na perspectiva das ENCIR
dos públicos constituintes.

Portanto fica evidente que está forma de gestão está inserida dentro dos grupos
sociais e não se manifesta de forma padrão, a sua manifestação depende inteiramente aos
atributos normativos que estes públicos constituintes possuem bem como as suas
necessidades especificas, todas essas sendo exemplificadas ao sentido que se atribui a
missão da organização, ou seja, cada organização social de forma individual possui seu
próprio conjunto de atributos normativos.
Outro aspecto que caracteriza a gestão social do terceiro setor são as dualidades
que esta gestão apresenta devido ao seu lócus de atuação ser um espaço fronteiriço e
dotados de atributos e racionalidades do mercado e do estado, o que resulta em aparentes
divergências. É importante salientar estas “aparentes divergências”, pois são justamente
essas dualidades presentes na gestão destas organizações que vão fazer com que as
racionalidades distintas não sejam problemas na gestão, mas sim atributos que as tornem
dotadas de valores e respeitando suas próprias missões.
Com isso Cabral (2011, p. 55) identifica analiticamente as dualidades da gestão
social das organizações do terceiro setor devido a sua natureza hibrida e fronteiriça de
espaço, sendo elas:

Equilibram apelos solidários e defesas corporativas dos públicos


individuais que as constituem; Provem bens e serviços para um público-
alvo determinado pela missão e atingirem um benefício público que
extravasa esse público localizado; estabelecem critérios de exclusão e
seletividade necessários e suficientes perante a demanda de recursos para
executarem políticas de inclusão sob a ótica da universalidade e
amplitude; Adequarem medidas de avaliação solicitadas pelos
financiadores e pelo estado (que refletem expectativas de realização
comparáveis com bens usualmente disponíveis de outras fontes), a uma

1074
postura inovadora, alternativa e direcionada, para suprirem deficiências
e alterarem limites, que esses mesmos agentes foram incapazes de atingir;
Serem fidedignas (accountable) perante a sociedade civil e perante os
beneficiários de seus bens em particular; e; equilibram o requisito de
controle sobre processo de seu desempenho e desenvolverem uma
missão autonomamente estabelecida.

A partir das dualidades aqui enumeradas, conseguimos ter mais clareza ao analisar
as organizações do terceiro setor, visto que estes conjuntos de atributos ficam evidenciados
no dia a dia destas organizações e a missão a qual elas se dedicam.

RACIONALIDADES EM CONFLITO

Os resultados discutidos nesta sessão do artigo são parte do esforço de


sistematização dos resultados obtidos em campo que cotejam etnografia local, entrevistas
semiestruturadas com moradores locais e conversas informais realizadas com
trabalhadores da ONG e moradores do bairro e que ela se localiza. A intenção é discutir
o papel e a imagem institucional da ONG estudada, principalmente dentro da perspectiva
da disputa entre valores e racionalidades universais e particulares, ou melhor,
representados entre valores e racionalidades do Estado e valores particulares.
A exposição aqui segue em duas partes. Em primeiro abrimos a exposição a
respeito do papel da fundadora da ONG junto ao bairro local e, em segundo, o papel
institucional da ONG, entre a prestadora de serviço e caridade.
Logo quando foram iniciadas as incursões etnográficas na ONG Céu Azul, ainda
não era possível compreender qual serviço tal instituição prestava a aquela comunidade.
Com o tempo, foi possível perceber que funcionava como contra turno escolar, uma
espécie de creche que atendia alunos dos bairros entre 1- 15 anos (cerca de 300 alunos em
um bairro com mil famílias, segregado de outros bairros e da malha urbana consolidada).
As atividades prestadas pela ONG variam de reforço escolar, aula de música, informática,
dança, artesanato, atividades físicas, etc. Embora tenha essa aparência de creche, ela tem
uma maior liberdade em suas ações por ser uma organização do terceiro setor, como
demonstro a seguir.
Averiguando o contrato de concessão534 da ONG, observamos em suas cláusulas 5
e 6 o papel da ONG e do município:

534
Licenciando em Ciências Sociais; IFG/ Campus Formosa; Bolsista de Iniciação Científica do CNPq;
rohh.mello0806@gmail.com.

1075
5. DAS OBRIGAÇÕES DA ASSOCIAÇÃO: (...) 5.7 Propiciar e
desenvolver ações de cunho social, como reforço escolar, cursos
profissionalizantes, alfabetização, recreação e esportes, entre outras, de
forma a contribuir para a formação integral de crianças e adolescente.
(...) 6. Cabe ao MUNICÍPIO fiscalizar periodicamente, o fiel
comprimento deste contrato.

O Estatuto Social535 da ONG ainda determina que a mesma é:

Artigo 1: (...) uma associação de direito privado, constituída por tempo


indeterminado, sem fins econômicos, de caráter organizacional,
filantrópico, assistencial, promocional, recreativo e educacional, sem
cunho político ou partidário, com finalidade de atender a todos que elas
se dirijam independente de classe social, nacionalidade, sexo, raça, cor
ou crença religiosa.(...) Artigo 2: No desenvolvimento de suas atividades,
a Associação observará os princípios de legalidade, impessoalidade,
moralidade, publicidade, economicidade e de eficiência (...) Artigo 3: A
Associação se dedicará às suas atividades através de seus administradores
e associados, e adotará práticas de gestão administrativa, suficiente a
coibir a obtenção de forma individual ou coletiva, de benefícios ou
vantagens (...).

Podemos observar que em seu contrato celebrado com o poder Municipal, sua
finalidade maior é atribuída ao cunho social ou a proteção social. Por finalidade maior,
parece vir suprir a lacuna de equipamentos públicos e particulares no bairro (hipótese ainda
em investigação). De qualquer modo, a finalidade da ONG é impessoal, como demonstra
o próprio estatuto, mas na prática, apresenta indícios de uma pessoalidade bem marcada,
evidenciando as dualidades da gestão desta organização.
A gestão da ONG tem como presidenta a própria fundadora, Luciana536. Nunca
houver alternância. A aproximação entre a Luciana e os moradores do bairro e as crianças
ocorre de forma muito intensa e próxima, ela é uma figura muito conhecida e respeitada.

535
Cabe considerar que conforme sugere Mann (1992), o Estado possui uma autonomia relativa em relação
à sociedade civil. Sendo que em alguns contextos, suas ações podem vir a entrar em conflito com algumas
frações das classes sociais em disputa pelo poder de Estado. Isto é, a composição social das instituições em
que o poder de Estado se materializa não é um determinante absoluto da orientação de suas políticas. No
entanto, para os fins deste artigo, seguiremos discutindo o caráter de classe do estado e suas políticas.
536
A decisão do governo de transferir a administração das escolas da rede pública às Organizações Sociais
(OSs) gerou uma série de manifestações por parte de parcela população goiana, em especial, parte dos
estudantes da educação básica da rede pública de ensino do Estado de Goiás, que iniciaram em Dezembro
de 2015, um movimento de ocupação das escolas por 1076todo o Estado, intitulado Movimento “Secundaristas
em Luta – GO” como forma de protesto, contra a implementação das OSs na educação goiana,
argumentando que o mesmo, estaria com a referida política pública, iniciando um processo de privatização
e terceirização da educação goiana.
Isso colabora para que a ONG passe a ser representada no plano simbólico por uma pessoa
ao invés de uma instituição pública. Observamos na fala de duas moradoras que foram
entrevistadas: “Mas, Michele, aqueles cursos que a Luciana fazia lá [na ONG] de noite, não
tem mais nada?”; “Não sei se você já ouviu falar no Aluízio, que mora bem em frente à
ONG? Ele é bem conhecido lá, inclusive Luciana paga não sei o que pra ele”. A ONG
aparece representada pela figura da presidenta e não pela própria instituição, é a Luciana
que oferecia os cursos e não a instituição, financiada majoritariamente pelo município. É a
Luciana que paga os funcionários e prestadores e não a instituição. Como consequência
máxima, a ONG não é entendida no plano institucional de prestadora de serviço do
terceiro setor que tem por finalidade a proteção social, ou seja, a construção de direitos e
o plano de cidadania. Ela se manifesta como pessoalizada, como órgão de caridade, em
uma perspectiva individual e não na constituição de direitos. Durante todo o ano em que
foram realizadas as incursões etnográficas, por diversas vezes em conversas informais o
nome da presidenta se sobrepunha ao nome da instituição.
Essa concepção de caridade também aparece muito na gestão da própria ONG.
Em outras palavras, não apenas a comunidade a concebe desta maneira, mas também ela
fomenta parte da gestão sendo como caridade. A primeira característica para embasar o
argumento é o fato de ela receber muitas doações de alimentos, roupas, equipamentos de
diversas empresas e repassar para os alunos e comunidades, o que consolida a dualidade
entre a prestação de serviço prevista em seu estatuto e a assistência social de característica
filantrópica. Além disso, promove apresentações (realizadas pelos alunos) e festinhas com
comida próximo à datas festivas, onde seu público extrapola aos alunos. Por outro lado,
tem sido prática corriqueira da ONG promover de arrecadação de alimentos nas portas de
mercados, em dias específicos. Estas ações são promovidas pelos funcionários contratados
da ONG, com carteira assinada, fora de seu horário de serviço sem receber hora extra.
Quando questionamos o motivo destas ações e a falta de pagamento por elas, a resposta
dos professores se repetiam, “a coordenadora fala que é pelas crianças, mas eu trabalho,
não faço caridade. A ONG é meu trabalho”, e assim por diante. Observamos que por parte
de alguns funcionários, a organização é concebida como uma instituição que presta serviço
para determinado público, por outro lado, a administração da ONG promove atividade
que se caracteriza como caridade, como se os funcionários se voluntariassem para
promover festas comemorativas e arrecadar alimentos fora de seu horário de serviço, fato
este que parece não acontecer devido às reclamações generalizadas no corpo de
funcionários contratados.

1077
A própria gestão da ONG parece confundir o papel por ela desempenhada. Ora
como prestadora de serviço, ora como organização de filantropia ou caridade. Mas, para
tanto, se utiliza de uma mão de obra sustentada pelo financiamento público e acaba por
empurrar os funcionários a fazerem papel de voluntários.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Este artigo teve o objetivo de discutir o conflito das racionalidades públicas e


mercadológicas que dotam o espaço fronteiriço das organizações privadas, mas de interesse
público, gerando uma gestão pautada em valores, aqui chamada de gestão social. Para isso
saímos principalmente das dualidades que estas organizações possuem como consequência
desta lógica hibrida do conflito entre as racionalidades. A organização estudada,
denominada ONG Céu Azul é um exemplo clássico de como essas lógicas distintas
permeiam o mesmo espaço e reproduzem bens públicos de proteção social e tem a figura
de um dono, que exprime suas vontades por meio da missão da organização e é legitimado
como líder pela comunidade.
Por meio desta analise podemos observar a partir destas características claramente
a manifestação das diferentes expectativas, necessidades, capacidades, interesses e
representações sociais da missão (ENCIR) dos públicos constituintes da ONG Céu Azul.
Como já explicado no tópico anterior, o fundador da ONG exprime a suas expectativas na
missão e vê o cumprimento desta como o objetivo final do seu trabalho, como este
fundador neste caso está inserido dentro da realidade da organização, este não enxerga seu
trabalho como forma de prestação de serviço ao bem público, resumindo seu trabalho
como filantropia, pois não vê o todo que está inserido, só o local que está atuando. Mas é
por meio dessas ações que estas organizações desempenham o papel de proverem bens e
serviços para um público-alvo determinado pela missão e atingem um benefício público
que extravasa esse público localizado.
Muitas vezes essas organizações carecem de profissionalização na forma de gerir o
bem público, os funcionários que prestam serviço a ONG (os quais muitas vezes não
possuem identificação com a causa) não se sentem motivados frente as ações da ONG.
Entretanto este mesmo comportamento não é visto por parte dos voluntários, visto que
esses prestam o serviço em primeiro momento pela identificação com a causa da
organização.

1078
Além disso, busca entre o equilíbrio entre trabalho voluntário e trabalho
remunerado no que tange o tratamento aos envolvidos na ONG é algo inerente a essas
organizações, o que se evidencia através das dualidades advindas principalmente das
divergências entre a racionalidade pública e a racionalidade mercadológica faz com que os
funcionários hora se coloquem como contratados, hora se coloquem como voluntários em
prol dos bem das crianças, o papel exercido por cada indivíduo não é de todo claro dentro
da organização. Ou seja, há a busca entre o equilíbrio entre aspectos solidários e defesas
corporativas dos públicos individuais que as constituem.
Cabe ressaltar aqui neste trabalho, que muitas vezes estas organizações não se
reconhecem como organizações do terceiro setor e se veem sem classificação direta, sendo
este um dos motivos de elas não saberem se são filantrópicas ou não, o que se deve ao fato
da inserção das atividades de assistência e proteção social via terceiro setor ser
relativamente nova como discutido na reforma administrativa do estado.
Outro aspecto importante a ser salientado neste estudo é a delimitação do espaço
de atuação do trabalho da ONG Céu Azul. Aqui temos uma figura privada que
desempenha um serviço público e com dinheiro público, ou seja, temos a produção de um
bem público por um ente privado.
Diante disso concluímos que o caráter hibrido da ONG Céu Azul é resultado do
conflito entre a racionalidade pública e privada, dando conotações valorativas a gestão
social da organização, o que se mostra como um desafio dentro das organizações, visto que
as dualidades presentes e os conflitos de expectativas entre os públicos constituintes
também se mostra como um problema a gestão social destas organizações e
consequentemente a missão a qual elas se destinam, além de desviar a sua função de
prestadora de serviço públicos, contrariando o princípio da eficiência administrativa do
estado.
Para futuros trabalhos seria interessante se aprofundar nos outros públicos
constituintes da ONG Céu Azul, para assim poder identificar as ENCIR que estes grupos
possuem e outras dualidades inerentes a esta gestão que possam aparecer.

REFERÊNCIAS

BRESSER PEREIRA, L. C.A reforma do Estado dos anos 90: lógica e mecanismos de
controle. In: Lua Nova, nº 45, p.50-95, 1998.

1079
CABRAL, H. S. C. Uma Abordagem normativa para a gestão social no espaço público. In:
PEREIRA, J. R. (et al.) (Org.). Gestão Social e Gestão Pública: interfaces e delimitações.
Lavras, Editora UFLA, 2011.

OLIVEIRA, F. A questão do Estado: vulnerabilidade social e carência de direitos. In:


ABONG Cadernos, Série Especial, p. 7- 19, outubro de 1995.

PAULA, A. P. P. Administração pública brasileira entre o gerencialismo e a gestão social.


In: RAE – Revista de Administração de Empresas, vol. 45, º1, p. 37 – 49, 2005.

1080
ORGANIZAÇÕES SOCIAIS (OSS) NA EDUCAÇÃO: TÁTICAS DE
AVANÇO DA ONDA NEOLIBERAL NO GOVERNO DO ESTADO
DE GOIÁS?

Rodrigo de Melo MACHADO537

Resumo: Esta pesquisa se insere no campo das pesquisas em Ciências Sociais e da Sociologia da
Educação e teve como objetivo principal, realizar uma análise acerca do processo de implantação
e implementação de Organizações Sociais (OSs) na administração das escolas da rede pública de
ensino do Estado de Goiás, sob o regime de Contratos de Gestão, na tentativa de compreender
se esta seria um indicador para um processo de privatização e terceirização do sistema público
de educação, cumprindo assim, a agenda de expansão do projeto neoliberal de sociedade, que
vigora no Brasil desde os Anos 90. O neoliberalismo é uma corrente teórica e ideológica que tem
como objetivo principal, a reestruturação produtiva do capital. Para isto efetiva diversas
privatizações e fomenta políticas de desmanche do setor produtivo estatal. Buscou-se com a
pesquisa, compreender a relação neoliberalismo-educação, e os impactos da tentativa de
implantação das OSs à educação do Estado de Goiás. A pesquisa demonstrou que as mudanças
na legislação, vieram para subsidiar, do ponto de vista jurídico, um processo de ampliação das
reformas neoliberais feitas no Estado de Goiás, sobretudo nos governos Marconi, que têm como
um de seus objetivos centrais, a terceirização e privatização dos serviços administrados pelo
estado. Tendo em vista que as leis que regulamentam e permitem que uma atividade seja ou não
exercita pelo estado e pela sociedade civil, mudanças na lei foram efetivadas, com o objetivo de
ampliar as possibilidades de atuação das OSs para todos os setores que o estado administra.
Apesar das mobilizações populares, que foram bastante representativas, não houve o total
impedimento da implementação destas políticas, compreendidas como danosas à educação.

Palavras-chave: Neoliberalismo. Educação pública. Privatização e terceirização.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa buscou compreender o processo de implantação e implementação


de Organizações Sociais (OSs) na administração das escolas da rede pública de ensino
do Estado de Goiás, sob o regime de Contratos de Gestão. Buscamos compreender os
impactos da implantação de tal medida, no contexto da educação goiana, a fim de
investigar se estas seriam, ou não indicadores da expansão do projeto neoliberal de
sociedade.
Num primeiro momento, no intuito de nos aproximarmos do objeto da pesquisa,
buscamos fazer um balanço da bibliografia anteriormente desenvolvida a respeito do
tema, no intuito de compreender o surgimento das Organizações Sociais (OSs) durante
a década de 1990, e sua ligação com o ideário do neoliberalismo, bem como buscamos

537
Ver: MP decide manter suspenso o edital para implantação das OS na rede de educação. Disponível em:
<http://www.jornalestadodegoias.com.br/2017/06/28/ministerio-publico-decide-manter-suspenso-o-edital-
para-implantacao-das-os-na-rede-estadual-de-educacao/> Acesso: 1 jul 2017.
1081
compreender o papel do Estado na sociedade capitalista.
Posteriormente, buscamos analisar os editais de chamamento publicados pela
SEDUCE-GO, documentos publicados pelo Governador e pelo Estado de Goiás, a
proposta que o projeto de implantação e implementação da política apresenta, bem como
o discurso da gestão – que defende com veemência a execução da política – no intuito de
compreender melhor como se estrutura a proposta de gestão por Organizações Sociais e
o seu impacto na educação.

NEOLIBERALISMO, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E EDUCAÇÃO

O Neoliberalismo pode ser compreendido, segundo Almeida (2009), como uma


corrente teórica e ideológica surgida na Europa e América do Norte após a segunda
guerra mundial, como “uma reação teórica contra o Estado intervencionista e de bem-
estar” (p. 37), que reelabora o chamado Liberalismo clássico (formulado à partir do
século XVII), tendo ganhado força, a partir da década de 1970, com “a crise do petróleo,
que gerou baixas taxas de crescimento e altas taxas de inflação” (idem). A autora afirma
que a “base do projeto político e ideológico neoliberal é o processo de reestruturação
produtiva do capital” (idem).
Antunes (2009), compreende a reestruturação produtiva como o processo no
qual o capitalismo busca dar uma resposta às suas crises estruturais. Segundo o autor,
busca-se recuperar o ciclo reprodutivo do capital, reestruturando a economia sem
transformar os pilares essenciais do modo de produção. Trata-se de reestruturar o padrão
produtivo, com o objetivo de repor os patamares de acumulação existentes no período
anterior de crescimento econômico. Para o alcance desse objetivo, seguindo as ideias de
Almeida, os neoliberais adotam uma série de políticas, como a descentralização do
Estado, efetiva privatizações das empresas estatais, desregulamentações os direitos dos
trabalhadores, bem como o desmanche do setor produtivo estatal.
Conforme sugere Bobbio (1986) o “(neo)liberalismo é, como teoria econômica,
favorável à economia de mercado e como teoria política, é promotor do “estado que
governe o menos possível ou, como se diz hoje, do estado mínimo (isto é, reduzido ao
mínimo necessário)” (p. 114). Nesse sentido, as políticas empregadas nesse tipo de
governo, se direcionam para o que Almeida chama atenção, a “reestruturação produtiva
do capital” (p. 37). Uma concepção mercadológica da sociedade, calcada nos princípios
de produção e lucro, ou seja, a concepção da sociedade como um dinâmico ambiente de
negócios, onde o Estado tem como papel principal “evitar que as pessoas empreendam

1082
ações lesivas à preservação e ao funcionamento regular da economia de mercado”
(MISES, 1990, apud ALMEIDA, 2009, p. 38).
Almeida sugere que no Brasil, desde a década de 1990, com o governo Collor,
podemos observar indícios da implementação do “projeto neoliberal” (p. 43). Segundo
ela, durante o governo de Fernando Collor, com a gradativa redução do tamanho do
Estado, e consequente privatização de diversas empresas estatais, entre outras políticas
adotadas durante seu mandato, preparou-se o terreno para a emergência acentuada do
neoliberalismo no Brasil, que ocorreria a partir do governo de Fernando Henrique
Cardoso (1994-2001), onde vários instrumentos legais foram criados para “beneficiar
credores no Estado brasileiro, como a isenção fiscal para instalação de grandes indústrias”
(p. 43). Desde então, gradativamente, políticas desse cunho vem sendo empregadas e o
ideário político-econômico do neoliberalismo emerge, de forma cada vez mais acentuada
gerando graves consequências para a sociedade civil brasileira.
Nesse contexto, dentre os vários setores da sociedade influenciados pelas
mudanças estruturais, advindas do modo de governar do neoliberalismo, conforme
sugere Gentili (2001) em sua análise sobre o Consenso de Washington, documento
elaborado no final da década de 1980 nos Estados Unidos (BATISTA, 1995), um dos
campos afetados pelo impacto dessas políticas, é o campo da educação, que segundo
Gentili, vivencia diversas mudanças, não somente estruturais.
As políticas de reestruturação neoliberais, com o advento da globalização,
provocam também, uma série de mudanças ideológicas, modificando-se assim, não
somente o funcionamento dos sistemas educacionais, mas operando também, nas nossas
subjetividades, “nos sentidos construídos e atribuídos à educação como prática política”
(GENTILI, 2001, p. 9). Como diriam Marx e Engels (1996), a forma como a sociedade
se organiza, produz, a forma de organização ideológica das pessoas que compõem a
sociedade.
Ainda que tenha sido usado quase que exclusivamente para fazer referência geral
às políticas de ajuste econômico, segundo Gentili (2001), é possível defender a tese de
que existe um Consenso de Washington no campo das políticas educacionais que
tratariam de “transferir a educação da esfera política para esfera do mercado negando sua
condição de direito social e transformando-a em uma possibilidade de consumo
individual, variável segundo o mérito e a capacidade dos consumidores.
A educação deve ser pensada como um bem submetido às regras diferenciais da
competição. Longe de ser um direito do qual gozavam os indivíduos, dada sua condição

1083
de cidadãos” (Ibidem, 2001, p. 19).
Em seus estudos sobre a relação neoliberalismo-educação, o autor se propõe a
pensar o impacto da onda neoliberal no campo da educação da América-latina e em
especial, a educação brasileira, desenvolvendo análises acerca das diversas formas de
privatização da educação.
Entre as modalidades de privatização elencadas pelo autor, cabe ressaltar uma
que, segundo ele, podemos destacar como uma das mais originais tentativas de
privatização do ensino público: “a delegação de determinadas funções educacionais para
o setor privado com a manutenção do financiamento público” (Ibidem, 2001, p. 86).
Segundo o autor, a problemática dessa modalidade de privatização vai além da
pouca interferência do Estado nas políticas públicas. Esse tipo de privatização elucida
“uma dimensão peculiar e pouco estudada da reforma escolar em curso” (Ibidem, 2001,
p. 86).
E é justamente esse tipo de política, quem vem chamado a atenção, no Estado de
Goiás, onde se encontra em curso processos de reformas na educação que visam
transferir a responsabilidade do Estado para Organizações Sociais no que tange à gestão
escolar.

ORGANIZAÇÕES SOCIAIS: ENTENDENDO O CONTEXTO,


COMPREENDENDO O PROJETO

Antes de entrarmos na discussão do processo de implementação das OSs e o


desfecho dos editais propostos pela SEDUCE (Secretaria de Estado de Educação,
Cultura e Esporte), gostaríamos inicialmente de compreender o que são as OSs, como
surgem e em que contexto político, econômico e social elas se inserem no Brasil.
Criada no contexto da reforma administrativa e da reforma do estado da década de
1990, a OS é para os seus idealizadores, a possibilidade de saída de uma dita “crise do
Estado” (BRASIL, 1997), a qual, segundo estes, o Brasil já enfrentava desde a
redemocratização pós-regime militar. Segundo os Cadernos MARE (1997), devido ao
modelo de desenvolvimento adotado no Brasil, com grande, intervenção em diversos
setores da economia, como energia, telecomunicações, saneamento, setor bancário,
petroquímicas, petróleo e gás etc. (ALMEIDA, 2010), o Estado havia perdido suas funções
primordiais.
Necessitava-se então, reestruturar o Estado e colocá-lo no âmbito que representava
sua função primordial. Conforme o Programa Nacional de Desestatização, era preciso

1084
“reordenar a posição estratégica do Estado na economia, transferindo à iniciativa privada
atividades indevidamente exploradas pelo setor público” (BRASIL, 1990). A partir de
então, durante toda a década de 1990, empreenderam-se diversas privatizações nos
diversos setores da economia em que o estado atuava como provedor e que os governos
consideravam um domínio da economia “indevidamente explorado” pelo setor público
Nesse contexto, surgem no final da década de 1990, com a publicação da Lei
federal nº 9.637, de 15 de maio de 1998, as OSs. Segundo o Art.1º, da referida lei, o poder
executivo, pode qualificar como organizações sociais,

Pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, cujas atividades


sejam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento
tecnológico, à proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à
saúde, atendidos aos requisitos previstos nesta Lei (BRASIL, 1998).

As entidades da iniciativa privada, qualificadas como organizações sociais, segundo


Mazza (2013), adquirem algumas vantagens peculiares, como “isenções fiscais, destinação
de recursos orçamentários, repasse de bens públicos, bem como empréstimo temporário
de servidores governamentais” (p. 157, grifo nosso).
Segundo os Cadernos MARE, a proposta central da criação das Organizações
Sociais “é proporcionar um marco institucional de transição de atividades estatais para o
terceiro setor e, com isso, contribuir para o aprimoramento da gestão pública estatal e não-
estatal. ” (BRASIL, 1997, p. 7). Esse movimento em direção ao terceiro setor, tinha como
um de seus principais argumentos, a crítica “pela rigidez dos procedimentos e pelo excesso
de normas e regulamentos” (ibidem, 1997, p. 8), presentes na burocracia estatal.
Mazza (2013), compreende que esse movimento em direção às OSs e ao terceiro
setor, está relacionado a um processo de privatização “lato senso, realizado por meio da
abertuda de atividades públicas à iniciativa privada” (p. 157). Posição essa, condizente com
a defendida por Gentili (2001). segundo o autor, “privatizar não significa ‘afastamento’ do
Estado e sim, em alguns casos, participação decidida de um aparelho governamental, ele
mesmo privatizado, que opera em benefício dos grupos e corporações” (p. 87).
Por terem suas atividades relacionadas à pesquisa, científica, desenvolvimento
tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, à cultura e à saúde, as OSs atuam
em áreas de interesse público, mas que, no entanto, segundo o autor, não podem ser
consideradas serviços públicos stricto sensu (MAZZA, 2013), tendo em vista o rearranjo
da atuação do Estado nos setores a elas vinculados.

1085
A lei nº 15.503, de 28 de dezembro de 2005 estabelece a regulamentação das OSs
do Estado de Goiás, ela prevê os critérios para a seleção e define as áreas em que as OSs
poderão atuar. Inicialmente, a lei previa a atuação das OSs, inicialmente nos setores de
“ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio
ambiente, cultura, saúde e assistência social” (GOIÁS, 2005), no entanto, modificações
feitas em 2014, 2015 e 2016 ampliaram as possibilidades de atuação das OSs para diversos
setores do serviço público. Segundo o Art. 2º, da versão atual da lei, as entidades
qualificadas como organizações sociais, podem vir a atuar essencialmente nas áreas de,

a) assistência social; b) cultura; c) educação; d) desenvolvimento


tecnológico; e) gestão de atendimento ao público; f) gestão de serviços
sociais e auxiliares em unidades profissionais; g) integração social do
menor infrator e garantia de seus direitos individuais e sociais; h)
pesquisa científica; i) proteção e preservação do meio ambiente; j) saúde;
k) educação profissional e tecnológica; l) esporte e lazer; m) assistência
técnica e extensão rural. (GOIÁS, 2005)

Como podemos observar, houve uma ampliação significativa nos setores em que as
OSs podem vir a atuar. Por que essa ampliação? Por que a implementação dessas medidas
neste momento político, econômico e social específico? É sobre essas questões que iremos
nos debruçar.
Para compreender melhor esse aspecto, é preciso que nos debrucemos um pouco
sobre uma compreensão materialista do papel do direito e do estado em nossa sociedade.
Para isso, precisamos revisitar brevemente, alguns postulados a respeito da teoria do estado,
a partir de uma compreensão marxista de sua origem e função em nossa sociedade.
Tradicionalmente, dentro das Ciências Sociais, faz-se referência aos teóricos do
contrato social para se pensar a teoria “clássica” do Estado. John Locke (1978, apud
ALMEIDA, 2009), em “O segundo tratado sobre o governo civil” compreende que os
homens, antes do surgimento do Estado, viveram em um Estado de Natureza, que se
constituía em liberdade e igualdade de sociabilidade entre os homens.
Neste Estado, conforme sugere Almeida (2009), a razão é a lei natural que orienta
a ação dos homens. Aqueles que não seguissem essa lei, poderiam ser castigados por todos
os outros homens, estes tornando-se executores das leis da natureza. O autor argumenta
que “todos os governantes estão em Estado de natureza enquanto não concordem em
formar uma comunidade, fundando um corpo político” (LOCKE, 1978 apud ALMEIDA,
2009, p. 34).

1086
A propriedade para Locke, é um direito adquirido, nasce da força de trabalho, isto
é, quando os homens empreendem uma ação sobre a realidade, eles criam também sua
propriedade. Isto porque para Locke, a ação do homem sobre um espaço da realidade lhe
confere possse desta realidade, o diferenciando dos demais. Se um homem cultiva um
pedaço de terra, nenhum outro tem direito de se apropriar dela (ALMEIDA, 2009).
A liberdade, para o autor, é a capacidade de

Dispor e ordenar, conforme lhe apraz a própria pessoa, as ações, as


posses e toda a sua propriedade, dentro da sanção das leis sob as quais
vive, sem ficar sujeito à vontade arbitrária de outrem, mas seguindo
livremente a própria vontade (LOCKE, 1978 apud ALMEIDA, 2009)

O Estado, definido pelo autor como Estado político, neste contexto nasce de um
pacto entre os seres humanos que compõem a sociedade. É ele quem regulamenta as
relações de propriedade, garantindo que os homens não empreendam ações lesivas uns
aos outros e é ele que garante a liberdade e o direito à vida, propriedade inicial para todos
os homens (ALMEIDA, 2009).
Temos aí, algumas das principais características do Estado Moderno. Estes
postulados referem-se à organização de uma instituição que está presente enquanto ente
regulador das relações em nossa sociedade. No entanto, cabe destacar que esta é uma
compreensão liberal do Estado e seu papel na sociedade civil. O Estado, e suas leis, não
são uma entidade “neutra”, que tem em seu papel a “função” de garantir a lei e a ordem
impedindo que os homens prejudiquem uns aos outros.
Engels (1980, p. 190-191), compreende que

O Estado nasceu direta e fundamentalmente dos antagonismos de classes


que se desenvolviam no seio mesmo da sociedade gentílica. Em Roma,
a sociedade gentílica se converteu numa aristocracia fechada, em meio a
uma plebe numerosa e mantida à parte, sem direitos mas com deveres;
a vitória da plebe destruiu a antiga constituição da gens, sobre os
escombros instituiu o Estado, onde não tardaram a se confundir a
aristocracia gentílica e a plebe.

Para Engels, o Estado é um produto da sociedade. Quando esta chega a um


determinado grau de desenvolvimento, onde os conflitos e antagonismos de classe que
dividem a sociedade se tornam irreconciliáveis. Neste contexto, surge o Estado como um

1087
poder aparentemente colocado por cima da sociedade “chamado para amortecer o choque
e mantê-lo dentro dos limites da ‘ordem’” (ENGELS, 1980, p. 191).
Segundo Almeida (2009), Marx, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte, defende
que

Os indivíduos que compõem o Estado não são uma massa homogênea,


mas indivíduos situados em contextos sociais específicos e que compõem
e representam classes específicas, sendo estas compostas de grupos que
se juntam ou se separam no processo das lutas sociais pelo controle do
Estado (ALMEIDA, 2009, p. 32-33, grifos nossos).

O Estado, na compreensão marxista é atravessado por antagonismos de classe, e os


indivíduos que ocupam as instâncias institucionais onde o poder de Estado se materializa,
representam as classes a que pertencem, ainda que não tenham consciência disso, tendo
em vista que a existência dos sujeitos também é atravessada por estes antagonismos.
Neste sentido, as ações empreendidas pelos membros do Estado, derivam de seu
horizonte social de classe, horizonte este que vai determinar se as ações do Estado vão se
direcionar a favor ou contra a classe trabalhadora538.
Cabe então, retomar os questionamentos feitos anteriormente: Por que essa
ampliação da área de atuação das OSs para diversos setores do Estado? Por que a
implementação dessas medidas neste momento político, econômico e social específico?
Pachukanis (2017, p. 234), compreende que “a assim chamada ‘ideia do direito’
nada mais é do que a expressão unilateral e abstrata de uma das relações da sociedade
burguesa”. Isto é, o campo jurídico, compreendido pelo liberalismo em uma dimensão de
“neutralidade” no que tange à normatização da sociedade civil, na verdade, também é um
campo da luta de classes, em que as disputas e as relações de dominação se manifestam.
Em Goiás, as mudanças empreendidas na legislação, vêm para subsidiar, do ponto
de vista jurídico, um processo de ampliação das reformas neoliberais feitas no Estado de
Goiás, sobretudo nos governos Marconi, que têm como objetivo, a terceirização e
privatização dos serviços administrados pelo estado. Tendo em vista que as leis que
regulamentam e permitem que uma atividade seja ou não exercita pelo estado e pela
sociedade civil, mudanças na lei, com o objetivo de “aperfeiçoar e aprimorar a lei sobre o

538
Ver: Justiça determina suspensão de edital para escolha de OS na educação
<http://g1.globo.com/goias/noticia/2017/01/justica-determina-suspensao-de-edital-para-escolha-de-os-na-
educacao.html> Acesso:05 jan 2017.
1088
tema” (GOIÁS, 2016), vêm sendo empreendidas para “facilitar” o avanço das políticas
neoliberais no Estado de Goiás.

ANÁLISE DA POLÍTICA DE GESTÃO POR OS, PROPOSTA PELO GOVERNO


DO ESTADO DE GOIÁS

Nos últimos tempos, têm se assistido a uma disputa539 no campo da educação


goiana, no que se refere à implementação, pelo atual governo de uma política que prevê a
“celebração de Contrato de Gestão objetivando o gerenciamento, a operacionalização e a
execução das atividades administrativas, de apoio para a implantação e implementação de
políticas pedagógicas definidas pela [Secretaria de Estado de Educação, Cultura e Esporte]
SEDUCE nas Unidades Educacionais da Rede Pública Estadual de Ensino” (GOIÁS,
2015, p. 1).
O projeto que têm como objetivo, transferir a gestão das escolas para as OSs
previa inicialmente, abarcar somente a “Macrorregião IV, Anápolis” (Ibidem, 2015, p. 1),
e posteriormente, conforme a secretária de Educação, Cultura e Esporte, Raquel Teixeira
declarou em entrevista à TV UFG (2016), pretende-se ampliar para toda a rede de ensino
do Estado.
Desde 2010, o governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo, filiado ao Partido
da Social Democracia Brasileira (PSDB), que já está em seu quarto mandato frente à
administração do Estado, apresenta em seu Plano de Governo, a proposta de promover
Contratos de Gestão na administração de diversos setores do Estado.
Calcado na ideia de uma gestão pública por resultados, orientada para o
estabelecimento de um retorno dos “trabalhos a serem realizados, metas a serem atingidas,
prazos de execução, sua operação, orçamento e os resultados esperados. Serão
instrumentos para acompanhar e fiscalizar o desempenho dos projetos, órgãos e entidades,
assim como de seus gestores” (PERILLO, 2010, p. 16), que o governador vem
implementando projetos nesse sentido, como a inserção das OSs na administração dos
Hospitais públicos em 2011 e, a partir de 2015 iniciou-se o processo de implementação
das Organizações Sociais na educação.
O processo de implementação das OSs na educação se inicia em abril de 2015,
através da “Convocação Para Qualificação De Entidades Como Organização Social De
Educação” (GOIÁS, 2015). A referida convocação foi feita tendo em vista que não existiam

539
Doutoranda em Ciências Sociais, UNESP/Araraquara; CAPES; lanapolonio@gmail.com

1089
organizações sociais qualificadas em educação no Estado de Goiás. Neste sentido,
conforme prevê a lei de OS do estado de Goiás, é papel do mesmo estimular “a
qualificação como organização social do maior número possível de entidades de direito
privado” (Idem, 2005).
Em dezembro de 2015 foi publicado o 1º edital, que estabelecia as diretrizes a
serem seguidas pelas Organizações Sociais concorrentes. O edital estabelecia que as OSs
tinham que apresentar projetos que apresentassem propostas de melhorias do “ponto de
vista pedagógico, econômico, operacional e administrativo e os respectivos prazos e formas
de execução” (GOIÁS, 2015) durante o período de vigência do contrato gestão das escolas,
a OS precisava ser idônea e que seus proprietários não tivessem inadimplências com o
Estado de Goiás.
As escolas foram selecionadas através das três principais etapas:

a) estruturação de um banco de dados com variáveis que caracterizam as


escolas estaduais; b) aplicação da técnicas estatísticas (sic) denominada
de análise fatorial para identificação de agrupamentos de unidades
escolares por similaridades; c) definição de critérios para a caracterização
do Grupo Alvo e identificação das unidades escolares prioritárias.
(GOIÁS, 2015)

As variáveis consideradas no estudo foram “i) perfil da escola; ii) localização; iii)
indicadores de desempenho, iv) indicadores de contexto ou socioeconômicos, v)
indicadores de infraestrutura e vi) indicadores econômico-financeiro das escolas” (GOIÁS,
2015). A partir desse processo, agrupou-se as escolas em grupos com perfis semelhantes,
buscando selecionar as escolas com o perfil mais adequado para a OS atuar.
Cabe destacar que até o momento, três editais consecutivos foram suspensos pos
irregularidades.540 Membros das Organizações Sociais estão envolvidos em processos
judiciais e não possuem idoniedade moral.541
Segundo a secretária Raquel Teixeira (2017), o objetivo das OSs é trazer melhoria
e qualidade para a educação do Estado. No entanto, o discurso da gestora merece análise

540
Doutora; Docente Departamento de Antropologia Política e Filosofia, UNESP/FCLAR – Araraquara;
kerbauy@travelnet.com.br
541
Estatuto da Juventude, disposto na Lei n. 12.852, de 05.08.2013 - O Estatuto da Juventude, de 2013, é o
instrumento legal que consolida os direitos dos jovens de 15 a 29 anos de idade, quanto à cidadania, à
participação social e política e à representação juvenil; à educação; à profissionalização, ao trabalho e à renda;
à saúde; ao desporto e ao lazer; à igualdade; à cultura; ao território e à mobilidade; à sustentabilidade e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado; à segurança 1090pública e ao acesso à justiça. (IBGE, 2015).
mais criteriosa. Conforme a Secretária declarou em entrevista ao Jornal Opção, que no que
se refere às OSs,

O conceito é de uma parceria, quase um convênio, porque a OS tem


interesse na educação, tem metas a atingir e quer contribuir no processo.
O que tenho visto é que a maioria delas quer ir além e dar uma
contribuição à educação pública, até mesmo por marketing ou outra
coisa.

Para Gentili (2001, p. 75) a privatização da educação, em linhas gerais, pode ser
compreendida como “um amplo e progressivo processo de transferência de
responsabilidades públicas em matéria educacional para entidades privadas que começam
a invadir espaços que o Estado ocupava ou devia hipoteticamente ocupar”.
A Secretária de Educação do Estado de Goiás, no entanto, tem opinião adversa à
do autor. Segundo ela,

As pessoas costumam fazer confusão entre o que é público é o que é


estatal. O que é público? A escola é aberta a todos, sem discriminação
de qualquer nível – raça, cor, gênero ou seja o que for; tem de ser
transparente e é “vigiada”, digamos assim, pelos órgãos controladores da
aplicação dos recursos públicos; e a qualidade dos serviços, esperamos,
será melhor.

O discurso da qualidade em educação tem como critério principal, a busca pela


melhoria do desempenho dos alunos em provas estaduais, a busca por uma educação com
menor custo e o argumento de que é necessário que organizações do terceiro setor
assumam a gestão das escolas estaduais.
A proposta de educação por OSs, transfere a responsabilidade do Estado em gerir
as escolas e as coloca nas mãos de grupos empresariais. Gentili (2001, p. 87) afirma que,

Privatizar não significa ‘afastamento’ do Estado e sim, em alguns casos,


participação decidida de um aparelho governamental, ele mesmo
privatizado, que opera em benefício dos grupos e corporações que
passam a controlar verdadeiramente o campo educacional.

Isto é, o Estado mostra seu caráter de classe através das políticas que o governo
implementa. Neste ponto, cabe nos questionarmos: Quem ganha com a implementação
das Organizações Sociais na educação do Estado de Goiás?

1091
Conforme afirma a secretária de Educação, o modelo de gestão por OS foi
elaborado a partir dos modelos das escolas Charter, nos Estados Unidos da América e
algumas experiências na Europa (TEIXEIRA, 2017). Estes modelos de gestão, têm o
mesmo princípio das OSs, financiamento estatal e gestão de entidades do terceiro setor.
Apesar de o argumento da qualidade estar presente na fala da Secretária de
Educação, pesquisas de especialistas em Educação, têm mostrado que seu precioso modelo
não é tão eficaz assim, pois a média atingida pelos estudantes nas escolas Charter em
avaliações da aprendizagem mostram que, em geral, os estudantes da charter das escolas
da rede privada têm resultados semelhantes, em alguns casos, inferior. Freitas (2012, p.
391), questiona, “Por quê copiamos de quem está na média do Pisa há 10 anos (EUA) e
não de quem esta consistentemente no topo deste programa (Finlandia)?”.
A resposta é simples: a questão que se coloca por trás das Organizações Sociais não
é uma questão orçamentária, como afirmam os gestores neoliberais do Estado de Goiás,
tampouco uma questão que se refere à qualidade da educação fornecida pelo Estado. A
questão é que grandes grupos empresariais e organismos financeitos internacionais, como
o Banco Mundial, se beneficiam com estas políticas (FREITAS, 2012 ;KLEES e JR., 2015)
e estes mesmos grupos têm interesses políticos e econômicos que precisam ser defendidos
por quêm os representa no Estado.

CONCLUSÕES

O governo do Estado de Goiás continua avançando no processo de implementação


das Organizações sociais na administração das escolas da rede pública do Estado. Apesar
dos esforços de educadores, estudantes e organizações públicas que se engajaram na luta
contra a privatização na educação do Estado, e mesmo com os editais suspensos pela
justiça, o Estado segue, sem diálogo com a população, na tentativa de implementar a
política, à fórceps, para garantir os interesses dos grandes empresários e organizações
financeiras que têm interesse em lucrar com a medida. Cabe considerar que a presente
pesquisa, pelos seus próprios limites, não conseguiria abordar toda a complexidade no que
tange ao processo de implementação da referida política na educação pública do Estado.
Aspectos como trabalho docente, qualidade do ensino, a ligação entre os organismos
internacionais e a referida política merecem ser explorados pelo campo científico. Que
pode auxiliar na melhor compreensão de projetos que impactam tão fortemente a vida da
sociedade.

1092
REFERÊNCIAS

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trilhas do fazer e do saber a possibilidade de ser: os caminhos do trabalho e da educação
na prisão. Goiânia: [s.n.], 2009. Cap. 1, p. 31-44. Dissertação (Mestrado em Educação) -
Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Educação, 2009.

ALMEIDA, M. P. Reformas neoliberais no Brasil: a privatização nos governos Fernando


Collor e Fernando Henrique Cardoso. Niterói: [s.n.], 2010. Tese (Doutorado em História)
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BATISTA, P. N. O CONSENSO DE WASHINGTON: A VISÃO NEOLIBERAL


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1094
AS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA JUVENTUDE: O CASO DO
PROJOVEM CAMPO ‘SABERES DA TERRA’

Elaine A. S. APOLONIO542

Maria T. M. KERBAUY543

RESMO: O Projovem Campo - Saberes da Terra, é uma modalidade do ProJovem, uma política
pública da Diretoria de Políticas de Educação para a Juventude (DPEJUV), a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), e o Ministério de
Educação (MEC), em parceria com a secretaria de Educação do Estado da Paraíba, no nível
fundamental de Educação de Jovens Adultos, unificando qualificação social e profissional, visando
a potencialização das capacidades dos jovens do campo, com idades entre 18 e 29 anos. O objetivo
geral da pesquisa é analisar a implementação de políticas públicas para a Juventude, através do
Programa Projovem Campo – Saberes da terra e sua contribuição para o desenvolvimento de uma
melhor qualidade de vida dos jovens, de acordo com as diretrizes da Política Nacional de
Juventude. O objetivo específico desta pesquisa é verificar a eficiência e eficácia da política em
questão; e se os objetivos visados na concepção e implementação do programa Projovem Campo
Saberes da Terra foram atingidos. A proposta metodológica adotada para este projeto é de natureza
qualitativa, pois dessa maneira, é possível cruzar informações, confirmar ou rejeitar hipóteses,
descobrir novos dados, afastar suposições ou levantar hipóteses alternativas. Realizaremos um
estudo bibliográfico, com documentos primários (relatórios, cadernos e legislação) e publicações
em torno da realidade investigada, que contribua para evidenciar aspectos metodológicos do
Programa PROJOVEM e sua efetiva aplicação, além de entrevistas semiestruturadas, com os
responsáveis pela implementação e coordenação do programa no Estado da Paraíba.

Palavras-chave: Política pública. Educação de jovens e adultos. Qualificação profissional.


ProJovem.

INTRODUÇÃO

O Programa ProJovem Campo – Saberes da Terra (PJCST) foi criado em 2005 pelo
governo federal do Brasil. Ele nasceu como uma modalidade do ProJovem, política pública da
Diretoria de Políticas de Educação para a Juventude (DPEJUV) e da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização Diversidade e Inclusão (SECADI), ligadas ao do Ministério de
Educação. Implementado em parceria com as secretarias estaduais e municipais de Educação, de
todo o território nacional, sua proposta era atender os jovens do campo, na faixa etária entre 18 e
29 anos, proporcionando a eles educação no nível fundamental de Educação de Jovens Adultos e
qualificação social e profissional, visando a potencialização das suas capacidades.

542
Internacionalmente, existem outras definições etárias para estes grupos. Na Assembleia Geral das Nações
Unidas de 20.11.1989, que tratou da Convenção sobre os Direitos da Criança, considerou-se que o grupo de
crianças seria formado pelas pessoas com até 18 anos de idade. A Assembleia Geral das Nações Unidas, de
18.11.1985, definiu como juventude o grupo de pessoas entre 15 e 24 anos de idade. (IBGE, 2015).
543
ECA, Estatuto da Criança e do Adolescente LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. (BRASIL,1990)
1095
Como o seu próprio nome indica, a intenção do PJCST foi a de oferecer uma
alternativa viável de educação da juventude rural, através da metodologia diferenciada
proposta, com práticas pedagógicas que valorizam os saberes oriundos da vida no campo
e permite através da pedagogia da alternância, o tempo disponibilizado para que o jovem
transmita para a comunidade o que aprendeu em sala de aula.
Atualmente a juventude em nosso país corresponde a 26,1% do total da população
brasileira, de acordo como os dados do mais recente censo demográfico realizado no
Brasil, em 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Segundo este
levantamento 29,8 milhões de pessoas viviam no campo, no período da coleta de dados.
Apesar de um expressivo encolhimento, na comparação com o censo anterior, realizado
em 1991 – época em que cerca de um quarto da população brasileira vivia no campo –
estes quase 30 milhões de camponeses formavam uma população comparável à do Peru,
neste mesmo período.
De acordo com dados coletados pelos pesquisadores a serviço do IBGE, nesta
população rural cerca de 8 milhões eram jovens. Mas, dependendo de critérios de analise,
esta faixa da população pode ser até maior. Em 2006, uma pesquisa coordenada pela
pesquisadora Tânia Bacellar, apoiada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário
concluiu que 36% da população brasileira é rural. Segundo a pesquisadora, 90% dos
municípios brasileiros têm menos de 5 mil habitantes, e, do ponto de vista sociológico,
deveriam ser considerados zonas rurais, e não urbanas.
Outra disparidade é a que determina o intervalo da faixa etária desta população
jovem. O IBGE qualifica este grupo como o formado por pessoas com idade entre 15 e
24 anos. Mas, quando segundo os critérios do governo federal, para fins de Políticas
Nacionais e Juventude, são consideradas jovens as pessoas com idade entre 16 e 29 anos.
A Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), no ano de 1985 definiu como
sendo “jovem” o indivíduo pertencente a faixa etária de 15 a 24 anos, o que permite certa
flexibilidade, tanto para mais, quanto para menos, esticando esse limite de acordo com o
grupo social a que o jovem pertence, incluindo áreas rurais e de extrema pobreza. No Brasil
para fins de políticas públicas com jovens, estendemos a definição para os indivíduos entre
15 e 29 anos544 pertencentes a todos os estratos da sociedade. Abramovay (2015).

544
Estatuto da Juventude, disposto na Lei n. 12.852, de 05.08.2013 - O Estatuto da Juventude, de 2013, é o
instrumento legal que consolida os direitos dos jovens de 15 a 29 anos de idade, quanto à cidadania, à
participação social e política e à representação juvenil; à educação; à profissionalização, ao trabalho e à renda;
à saúde; ao desporto e ao lazer; à igualdade; à cultura; ao território e à mobilidade; à sustentabilidade e ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado; à segurança pública e ao acesso à justiça. (IBGE, 2015).
1096
Mas, esta população está longe de ser considerada homogênea. A noção de
juventude é uma construção social e cultural, com múltiplas relações e contextos sociais,

[...] A realidade social demonstra, no entanto, que não existe somente


um tipo de juventude, mas grupos juvenis que constituem um conjunto
heterogêneo, com diferentes parcelas de oportunidades, dificuldades,
facilidades e poder nas sociedades. Nesse sentido, a juventude, por
definição, é uma construção social, ou seja, a produção de uma
determinada sociedade originada a partir das múltiplas formas como ela
vê os jovens, produção na qual se conjugam, entre outros fatores,
estereótipos, momentos históricos, múltiplas referências, além de
diferentes e diversificadas situações de classe, gênero, etnia, grupo etc.
(ABRAMOVAY; ESTEVES, 2007)

Seja qual for o critério adotado, é fato que uma considerável massa de gente,
formada por milhões de brasileiros vive no meio rural.
Dar a eles um projeto de vida mais justo, do ponto de vista social, e construir uma
sociedade sem desigualdades e com mais oportunidades é o objetivo da luta de coletivos
de educadores e movimentos sociais camponeses, nesta visão de Educação no Campo.
A luta dos trabalhadores, para garantir o seu direito à escolarização e ao
conhecimento, é também uma estratégia de resistência, de manutenção de seus territórios
de vida, trabalho, identidade e uma reação ao histórico descompromisso e inadequação da
escola tradicional que perpetua a condição precária de escolarização da juventude rural e
agrava a desigualdade social. (MOLINA, 2006).
O objeto do nosso estudo é a análise da política pública para a Juventude na área
de educação, o programa Projovem Campo – Saberes da Terra, voltado para a educação
rural, sobretudo com jovens provenientes da agricultura familiar.
O interesse por essa pesquisa surgiu durante minha atuação profissional, pois
desenvolvi atividades voltadas para prática social e o trabalho com os jovens, sempre
pautados em uma proposta interdisciplinar visando superar a fragmentação do saber
através das práxis, a união entre a teoria e a prática fundamentada na filosofia Freiriana
baseada nos princípios de uma educação libertadora.
Em vários projetos exerci as funções de formação de educadores, implementação,
coordenação pedagógica e supervisão de núcleos e projetos de formação profissional, além
de pesquisa científica e mediação de leitura. No período de 2009 a 2010 atuei no Projovem
Urbano Programa Nacional de Inclusão de Jovens: Educação, Qualificação e Ação
Comunitária como coordenadora e supervisora pedagógica.

1097
Concordamos com Lira e Melo (2010) que afirma que mesmo diante da criação
desses espaços de discussão e luta, na prática, ainda há muito a ser alcançado. Entendemos
a trajetória e importância da luta do homem do campo, e o descompasso entre a
interpretação e incorporação do problema camponês, e a questão agrária, que geralmente
caminha mais rápido que a política do setor. Mas, é inegável que nos últimos vinte anos,
houve avanços na educação do jovem do campo.

MOVIMENTO PELA EDUCAÇÃO DO CAMPO

No Brasil, o Movimento pela Educação do Campo ganhou força, a partir de


meados dos anos 1990, logo depois da redemocratização, após os anos de regime militar.
Neste período houve uma revisão de conceitos e de códigos de conduta com o
reconhecimento da pluralidade de atores que compõem o país e das suas diferenças. Esta
constatação causaria impacto na formulação de políticas públicas para diversos segmentos,
especialmente as focalizadas na juventude.
Como parte deste processo de mais abertura e maior questionamento, houve a
criação de entidades e realização de congressos voltados para a articulação e definição de
uma prática educativa que contemplasse os anseios dos povos do campo.
Para implementá-la houve ações conjuntas para a promoção da escolarização dos
povos do campo como a “Articulação Nacional por Uma Educação do Campo”
(inicialmente chamada Articulação Nacional por Uma Educação Básica do Campo). “Essa
organização tem criado momentos e espaços de discussão importantes para a área, entre
eles, a realização de duas Conferências Nacionais por uma Educação Básica do Campo -
em 1998 e 2004” (LIRA; MELO, 2010, p. 15)
Em 1999 o MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), criou o Conselho
Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável para Agricultura Familiar (Condraf), com
a finalidade de ampliar e institucionalizar a participação dos movimentos sociais na
formulação de políticas públicas para o campo.
Em 2003 esse movimento deu origem ao GPT (Grupo Permanente de Trabalho
de Educação do Campo – de 2003), foi instituído através da Portaria nº 1.374, de 3 de
junho. Desde então, ele tornou-se responsável pela articulação de ações do Ministério da
Educação pertinentes à educação do campo, divulgar, debater e esclarecer as Diretrizes
Operacionais Para a Educação Básica nas Escolas do Campo.

1098
Desde sua formação o GPT – Grupo Permanente de Trabalho em Educação do
Campo contou com a participação de representantes das diversas Secretarias integrantes
da estrutura do MEC e Gabinete do Ministro, representante do Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira – INEP, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação – FNDE, da Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – CAPES, do Conselho Nacional de Educação – CNE.
Para acompanhamento das atividades o Grupo tem contado com a participação
organizações e instituições da sociedade civil que atuam na área de educação do campo,
especialmente, aquelas representativas de trabalhadores rurais (MEC, 2009)
Os anos 1990 também foram marcados por um protagonismo maior dos jovens,
pela relevância que a juventude alcança no cenário nacional, a juventude brasileira passa a
ter mais visibilidade nas agendas públicas, sendo vistos como sujeitos de direitos, com a
ampliação da oferta de políticas públicas especificas para juventude.

JUVENTUDE OU JUVENTUDES?

Como ponto de partida para este estudo sobre a implementação de uma política
pública de juventude, na área de educação, com a análise do programa Projovem Campo
Saberes da Terra, faz-se necessário refletir sobre o termo juventude. Em 2010, o ano da
realização do mais recente censo demográfico no Brasil, coordenado pelo IBGE, havia no
país 51,3 milhões de pessoas de 15 a 29. É uma fatia correspondente a 26,1% do total da
população brasileira.
Como já se viu, nesta introdução, a definição da palavra juventude não é uma tarefa
fácil, pois o termo é uma construção social e cultural, com múltiplas relações e contextos
sociais, derivada das inúmeras formas de percepção dos jovens através de momentos
históricos, estereótipos, classe, gênero, etnia, grupo etc.
As diferenças e variações são tantas que pesquisadores alertam que o mais correto
é se referir a “juventudes” no plural. Entretanto, a juventude ainda é vista sob o estigma de
“juventude problema” vistos como vítimas ou protagonistas de inúmeras dificuldades.
(grifo do autor)
A Juventude é considerada também como um valor positivo. É um ideal, uma
estética desejada, um valor simbólico associado à beleza. São características que fazem com
que a sociedade possa comercializar os seus diversos atributos, em forma de mercadorias,
em que a imagem se compra e se vende, intervém no mercado do desejo como veículo de
distinção e legitimidade (MARGULIS; URRESTI, 1996)

1099
De acordo com os instrumentos legais brasileiros 545 a “[...] definição de crianças e
adolescentes, considera a idade como critério, de acordo com o ECA, Estatuto da criança
e do Adolescente546, (BRASIL, 1990). Criança é o indivíduo com até 12 anos de idade
incompletos, e adolescente é a pessoa com idade entre 12 e 18 anos”. (IBGE, 2015).
Segundo Abramovay (2015) no ano de 1985, a Assembleia Geral das Nações
Unidas (ONU) definiu como “jovem” o indivíduo pertencente a faixa etária de 15 a 24
anos, mas o conceito permite certa flexibilidade, seja para mais ou para menos. A variação
pode acontecer esticando esse limite de acordo com o grupo social a que o jovem pertence,
incluindo áreas rurais e de extrema pobreza [...] “No Brasil para fins de políticas públicas
com jovens, estendemos a definição para os indivíduos entre 15 e 29 anos547 pertencentes a
todos os estratos da sociedade”. (ABRAMOVAY; CASTRO, 2015, p. 13)

Parte-se da afirmação de que não há somente uma juventude, mas


juventudes que se constituem em um conjunto diversificado com
diferentes parcelas de oportunidades, dificuldades, facilidades e poder
na nossa sociedade. A juventude por definição é uma construção social,
uma produção de uma determinada sociedade, relacionada com formas
de ver os jovens, inclusive por estereótipos, momentos históricos,
referências diversificadas e situações de classe, gênero, raça, grupo,
contexto histórico entre outras. [...] Ressalta-se que o emprego do termo
juventudes no plural, antes de patrocinar uma perspectiva fracionada, na
qual aparecem modelos de jovens separados, sinaliza a existência de
elementos comuns ao conjunto dos jovens. As diferentes juventudes não
são “estados de espírito” e sim uma realidade palpável que tem sexo,
idade, raça, fases, uma época que passa cuja duração não é para sempre,
ou seja, uma geração” (ABRAMOVAY; CASTRO, 2015, p. 14).

Esta condição juvenil tem sido prolongada, tanto pela permanência na escola,
quanto pela dificuldade de ingresso no mercado de trabalho; o que retarda a autonomia e
independência econômica dos jovens,

[...] se pensarmos a proporção da atual população jovem a nível mundial,


suas especificidades e importância qualitativa e quantitativa enquanto
grupo social específico, que hoje chega a cerca de 1,7 bilhões de jovens,
e que enfaticamente nos países em desenvolvimento reúnem 85% dessa

545
Conforme a Resolução CD/FNDE/MEC n º 11/2014 poderão fazer adesão ao Programa, por meio de
suas Secretarias de Educação: Os 80 municípios com o maior número de escolas no campo e os 1.830
municípios integrantes dos 120 Territórios da Cidadania; além do Distrito Federal e os estados para atender
aos municípios de sua abrangência territorial, que não tenham feito adesão por meio de suas Secretarias
Municipais de Educação. (MEC, 2014).
546
Dados obtidos através da Resolução CD/FNDE/MEC n º 11/2014
547
Bolsista CAPES. Mestrando pelo Programa de1100
Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de
Ciências e Letras de Araraquara (FCLAr/UNESP). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Antropologia Contemporânea (GEPAC) vinculado ao CNPq. guilherme.mfloriano@hotmail.com
população mundial; torna-se fundamental reconhecer a necessidade de
um projeto de sociedade não somente de vida específico inclusivo para
os jovens, (DELORS, 2001) mas que os considerem como sujeitos com
direitos próprios e de participar de forma mais incisiva” (LIMA;
ANDRADE, 2004).

Foi a partir da década de 1990 que a juventude passou a ter mais visibilidade nas
agendas públicas, pois “Pela primeira vez, na história brasileira, os jovens foram vistos
como sujeitos de direitos” (PAIS, 2003)
Mas, nem sempre isso aconteceu sem que a abordagem com esta faixa etária da
população resvalasse no preconceito. Políticas públicas formuladas nas áreas de assistência
social, da educação e segurança pública, carregam o estigma da ‘juventude problema’; pois
este segmento da sociedade é comumente apresentado com enfoque negativo, sempre
como vítimas ou protagonistas de inúmeras dificuldades.
Durante o processo de redemocratização do Brasil a sociedade civil se organizou para
buscar soluções para os inúmeros problemas políticos enfrentados pelo país e

[...] implicou transformações nas relações sociais e de poder,


reinterpretação de direitos e deveres, revisão de conceitos e exigência de
novos códigos de conduta que reconhecessem a pluralidade dos atores,
a multiplicidade de organizações e formas de ação, assim como o
reconhecimento dessas diferenças enquanto direito. O debate em torno
dos interesses, dos conflitos e dos problemas políticos se multiplicaram,
fato que tem grande impacto na formulação e constituição de políticas
públicas de juventude (CUNHA, 2011).

Segundo Cunha (2011, p. 03), “com a crise de ação do Estado, as políticas


neoliberais priorizaram programas focalizados em ações compensatórias destinados a
camadas vulneráveis e pobres da população e dentre eles os jovens”.

POLÍTICAS PÚBLICAS PARA JUVENTUDE

O processo de redemocratização vivido no Brasil nos 1980 e 1990 contribuiu para


uma revisão de conceitos e de códigos de conduta reconhecendo a pluralidade dos atores
que compõem o país e o reconhecimento das diferenças enquanto direito, essa constatação
vai impactar na formulação de políticas públicas para diversos segmentos, especialmente as
focalizadas na juventude.
A juventude rural tem se tornado protagonista na luta por uma melhoria na
qualidade de educação oferecida aos povos do campo, com a valorização e preservação de

1101
seu modo de vida e de seus saberes para fortalecer a permanência no campo. É no âmbito
das políticas públicas que o Estado se relaciona com os jovens, através da implementação
de programas e projetos que buscam sanar dificuldades enfrentadas pelos jovens a caminho
da vida adulta.
As políticas públicas, conforme definição corrente, são conjuntos de programas,
ações e decisões tomadas pelos governos (nacionais, estaduais ou municipais) com a
participação, direta ou indireta, de entes públicos ou privados que visam assegurar
determinado direito de cidadania para vários grupos de sociedade ou para determinado
segmento social, cultural, étnico ou econômico, ou seja correspondem a direitos
assegurados na Constituição (ANDRADE, 2016).
As políticas públicas estão diretamente relacionadas com o setor público, nas
esferas dos governos municipais, estaduais e federais são implementadas políticas nos
setores de educação, saúde, habitação, segurança, meio ambiente, mobilidade etc.
Verifica-se quatro fases de atuação mais intensa de políticas públicas voltadas para
o segmento de juventude no país, acompanhando o processo que se desenvolvia por toda
a América Latina; o que até nos anos 1990 no Brasil a juventude era incluída em políticas
públicas destinadas as demais faixas etárias, no período que vai de 1950 a 1980 o principal
interesse foi ampliar o acesso e conclusão da educação formal e a preocupação com a
utilização do tempo livre dos jovens.
No período seguinte entre 1970 a 1985, o interesse era pelo controle dos setores
juvenis mobilizados, com ênfase no acompanhamento do movimento estudantil. A fase
que se estende entre 1985 aos anos 2000 marcou o enfrentamento da pobreza e prevenção
de delitos juvenis. Por fim, no período que vai de 1990 a 2010 o foco é com o acesso ao
mercado de trabalho e a inserção do jovem (SPOSITO; CARRANO 2003).
O Projovem Urbano surgiu em 2007, com a constituição do grupo de trabalho –
GT Juventude com representantes da Secretaria Geral de da Presidência da República, da
Casa Civil e dos Ministérios da Educação, do Desenvolvimento Social, do Trabalho e do
Emprego, da Cultura, do Esporte e do Planejamento. O objetivo do GT é promover um
amplo e diversificado programa de inclusão social de jovens brasileiros com a articulação
de duas noções básicas: oportunidades para todos e direitos universalmente assegurados.
Essas noções propiciaram que o jovem se tornasse protagonista de sua inclusão
social, na perspectiva do desenvolvimento de sua cidadania. O ProJovem Urbano tem
como finalidade a elevação do grau de escolaridade visando o desenvolvimento humano e

1102
ao exercício da cidadania, por meio da conclusão do ensino fundamental, de qualificação
profissional e do desenvolvimento de experiências de participação cidadã.
A experiência vivida nesse programa me fez refletir sobre a situação de programas
de políticas públicas para a juventude, com essa mesma temática, e se encontraria os
mesmos problemas enfrentados durante a gestão do Projovem Urbano, pois a história da
educação de jovens e adultos, sobretudo, a educação do campo para a juventude rural
convive com a descontinuidade dos programas e a baixa qualidade de educação ofertada,
apesar dos avanços observados no Programa Projovem Campo – Saberes da Terra, os
mesmos problemas são historicamente perpetuados.

O PROJOVEM CAMPO NO ESTADO DA PARAÍBA

A nossa área de estudo é o estado da Paraíba, que no PNAD 2015 registra um aumento
da população de 0,7% correspondente a um total de 29.464 habitantes só na capital, João Pessoa.
O território da Paraíba conta com um total de 3.914.421 pessoas e é o quinto estado com o maior
número de habitantes na região Nordeste.
O censo Agropecuário de 2006 registra um retrato abrangente do meio rural brasileiro e
da agricultura familiar. No Nordeste brasileiro estão concentrados metade dos 4,3 milhões de
produtores rurais enquadrados na Lei 11.326/2006. Do ponto de vista geográfico, o estado da
Paraíba é dividido em quatro mesorregiões geográficas (Zona da Mata, Agreste Paraibano,
Borborema e Sertão Paraibano), e em 23 microrregiões com um total de 223 municípios, existiam
167.286 estabelecimentos agropecuários registrados no último censo. Desse universo, 148.069
eram familiares, representando 88,51% do total das unidades de produção recenseadas pelo IBGE.
Essas estatísticas revelam a resistência do agricultor rural paraibano.
A Organização das Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO) e o Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), define que a agricultura familiar está baseada em três
características fundamentais: 1) que estabelece que a gerência dos trabalhos no estabelecimento é
do produtor direto e a maior parte do trabalho é realizada pela família que reside no local ou
próximo dele, 2) é permitida a contratação de trabalhadores apenas temporariamente e 3) a
principal fonte de renda da propriedade, cerca de 80%, deve ser originada da agricultura (SOUZA;
TARGINO, 2009).
Em sua apresentação, o Programa ProJovem Campo - Saberes da Terra define
como a sua meta “o acesso e a qualidade da educação para uma parcela da população
historicamente excluídas do processo educacional, respeitando as características,
necessidades e pluralidade de gênero, étnico-racial, cultural, geracional, política,
econômica, territorial e produtivas dos povos do campo”. (PROJETO, 2009)

1103
Em 2008, foram aprovados projetos de 19 estados e 19 instituições de Ensino
Superior públicas, com a meta de atender a 35 mil jovens agricultores familiares. Em 2009
foram aprovadas 30.375 novas vagas a serem ofertadas por secretarias estaduais de
educação de 13 estados da federação.
Os agricultores participantes receberam uma bolsa de R$ 1.200 em 12 parcelas e
tiveram de cumprir 75% da frequência. O curso, com duração de dois anos, foi oferecido
em sistema de alternância —intercalando ‘Tempo-escola e Tempo-comunidade’.
O formato do programa foi de responsabilidade de cada estado, de acordo com as
características da atividade agrícola local. Com isso, visava-se a diminuição da desigualdade
social e escolar, através de uma prática pedagógica inovadora permitindo que o
aprendizado, adquirido em sala de aula, seja aplicado na comunidade de origem
incentivando o protagonismo do educando.
A organização, do Programa, tem a duração de 2.400 h de aulas, a serem executadas
em 2 anos, alternando atividades de Tempo-escola e Tempo-comunidade.
A forma de organização das turmas e o calendário, deverá se ajustar às necessidades
locais como estabelece a Lei nº 9.394/96 em seu artigo 28: Na oferta de educação básica
para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua
adequação às peculiaridades da vida rural de cada região.
A organização das turmas deve comportar de 25 a 35 educandos, sendo que deve
haver três educadores das áreas de conhecimento do ensino fundamental sendo: a)
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (Licenciatura em Letras); b) Ciências Humanas
(Licenciatura em História, Geografia, Filosofia ou Sociologia); c) Ciências da Natureza e
Matemática (Licenciatura em Biologia, Ciências, Matemática, Física ou Química); d) e um
educador das ciências agrárias (graduação ou técnico da área das Ciências Agrárias), por
turma e; e) um Tradutor e Intérprete de Libras (PROJETO, 2009).
A equipe gestora local, do estado ou município deve ter um Coordenador geral
(estadual ou municipal) e um Coordenador de turma para coordenar, no mínimo, duas
turmas em diferentes unidades de ensino, sendo um coordenador de turma para cada dez
turmas.
A organização curricular, os tempos e espaços formativos do programa estão
fundamentados no eixo articulador: Agricultura Familiar e Sustentabilidade, ampliando
assim as dimensões de atuação na formação do jovem agricultor definindo os seguintes
eixos temáticos:

1104
a) Agricultura Familiar: identidade, cultura, gênero e etnia;
b) Sistemas de Produção e Processos de Trabalho no Campo
c) Cidadania, Organização Social e Políticas Públicas;
d) Economia Solidária;
e) Desenvolvimento Sustentável e Solidário com enfoque Territorial.

Figura 1. Estrutura Do Currículo

Desenvolvimento Agricultura Familiar,


Sustentável e Solidário Identidade, Cultura,
com Enfoque Territorial Gênero e Etnia

AGRICULTURA Sistemas de
Economia FAMILIAR E Produção
Solidária SUSTENTABILIDADE e Processo de
Trabalho
Cidadania, no Campo
Organização Social
e Políticas Públicas

Fonte MEC – Projeto Base 2009.

Segundo, SCHMIDT, LIMA e SECHIM, (2010) a coletânea dos Cadernos


Pedagógicos produzida para o Programa Projovem Campo deseja contribuir para um
processo de estudo produtivo e agradável, possibilitando uma metodologia de estudos e
construção de saberes. Os cadernos são subsídios pedagógicos, que não dão conta de
todas as questões do processo pedagógico nas salas de aula, pois que devem ser
complementadas com metodologia que, além dos Cadernos, utilize também o Acervo
Bibliográfico de cada escola e do Laboratório, sendo este a vida da comunidade e do
entorno, o que possibilitará o desenvolvimento das habilidades intelectuais (elevação da
escolaridade), profissionais (técnicas necessárias ao manejo das diferentes ocupações do
Arco Ocupacional Produção Rural Familiar) e socioambientais (intervenção na
comunidade e na sociedade) para a auto formação e a transcendência social de todos os
sujeitos educativos no seu crescimento humano pessoal, profissional e coletivo.
(SCHMIDT; LIMA e SECHIM, 2010, p. 13).

1105
A base metodológica do Programa Projovem Campo – Saberes da Terra são os
ensinamentos de Paulo Freire, que instigam a reflexão sobre a práxis educativa, num
contexto em que a experiência de educadores e educadoras, bem como dos educandos/das
do Programa, têm desafiado a vivenciar práticas pedagógicas dialógicas

[...] de múltiplos saberes, na perspectiva de constituirmos uma ação


transformadora da realidade. O coletivo de Educadores/as no Programa
é plural na sua formação acadêmica, trajetória profissional e inserção
social na Educação do Campo. A compreensão e acolhimento dessa
pluralidade são importantes para a construção de relações pedagógicas
que potencializem o diálogo de saberes escolares, acadêmicos e técnicos.
(SCHMIDT; LIMA, SECHIM, 2010, p. 7).

A execução da proposta pedagógica e curricular acontece por meio da realização


de atividades educativas em diferentes tempos e espaços formativos, sendo o “Tempo
Escola, ” o período no qual, os jovens permanecem efetivamente na unidade escolar com
atribuições de aprendizagens sobre os saberes técnico-científicos dos eixos temáticos,
planejamento e execução de pesquisas, atividades de acolhimento e organização grupal,
entre outras atividades pedagógicas.
E o “Tempo Comunidade, ” correspondente ao período no qual, os educandos
realizam pesquisas, estudos e experimentações técnico-pedagógicas nas comunidades, com
o objetivo de partilharem seus conhecimentos e suas experiências adquiridas na escola com
as famílias ou instâncias de organização social.
O “Tempo Escola” e o “Tempo Comunidade” são espaços formativos privilegiados
de articulação entre estudo, pesquisa e criação de propostas de intervenção tais como:
leitura, escrita, arte, afirmação da diversidade étnica, cultural e de gênero; o
desenvolvimento do espírito coletivo e solidário; superação dos valores de dominação,
preconceito étnico raciais e desigualdades existentes na relação campo–cidade;
desenvolvendo a autonomia e a solidariedade produtiva.
O ProJovem Campo busca desenvolver Educação do Campo como um conceito
que

[...] nomeia um fenômeno da realidade brasileira atual, protagonizado


pelos trabalhadores do campo e suas organizações, que visa incidir sobre
a política de educação desde os interesses sociais das comunidades
camponesas. Objetivo e sujeitos a remetem às questões do trabalho, da
cultura, do conhecimento e das lutas sociais dos camponeses e ao embate
(de classe) entre projetos de campo e entre lógicas de agricultura que têm

1106
implicações no projeto de país e de sociedade e nas concepções de
política pública, de educação e de formação humana (CALDART, 2011,
p. 259).

É importante considerar que a convergência, entre a organização curricular e os


tempos/espaços formativos, deve apontar para o levantamento das necessidades apontadas
pelos jovens e pela comunidade, através da pesquisa e sistematização dos dados, das
discussões e dos diálogos suscitados, sendo o momento pedagógico no qual educadores,
educandos e técnicos agrícolas, planejam e realizam ações que envolvam a comunidade e
instituições próximas onde discutem alternativas coletivas para geração de emprego e renda
além de políticas de desenvolvimento sustentável e de agroecologia.
Considerando que o objetivo do, segundo Projeto (2009), é desenvolver políticas
públicas de Educação do Campo e de Juventude que oportunizem a jovens agricultores
(as) familiares excluídos do sistema formal de ensino, a escolarização no Ensino
Fundamental na modalidade de Educação de Jovens e Adultos, integrado à qualificação
social e profissional, pretendemos investigar o processo de implementação do Projovem
Campo Saberes da Terra.
Apesar dessa proposta inovadora que propicia a aceleração da aprendizagem e
simultânea qualificação profissional, o programa apresenta solução de continuidade, pois
convive com todas as alegações apresentadas por outros programas da área de educação
para juventude que motivaram a descontinuidade na execução das ações. Questões como
a falta de recursos e profissionais capacitados, problemas estruturais, como ausência de
transporte da coordenação dos programas até os núcleos, falta de comunicação entre os
parceiros envolvidos atrapalharam (e atrapalham) a eficiente execução dos programas.
Com base nesse pressuposto, o nosso problema de pesquisa é verificar: Em que
medida os objetivos propostos pelo Programa Projovem Campo – Saberes da Terra, nos
moldes da implementação, estimulou ou criou condições para a continuidade, ampliação
ou multiplicação da experiência no contexto da Paraíba?
O objetivo geral do nosso estudo propicia a avaliação do processo de
implementação do programa de política pública para a área de juventude, analisando as
relações existentes entre executores, gestores, educadores, os recursos materiais e
financeiros, informativos destinados ao Programa Projovem Campo – Saberes da Terra e
os processos envolvidos através da análise dos obstáculos técnicos e legais, as deficiências
organizativas, os conflitos potenciais entre executores e gestores e a integração e cooperação
por parte dos destinatários (SECCHI, 2014).

1107
O nosso objetivo específico é analisar os procedimentos e processos utilizados e,
bem como detectar dificuldades, os obstáculos e falhas encontrados nessa fase da política
pública de educação na área de juventude rural do programa Projovem Campo Saberes da
Terra do estado da Paraíba?
A proposta metodológica adotada para este projeto é de natureza qualitativa:
realizamos um estudo de caso através da observação do contexto da implementação do
programa Projovem Campo – Saberes da Terra no estado da Paraíba.
Uma das vertentes desta pesquisa foi realizar um estudo bibliográfico a partir dos
documentos primários (relatórios, cadernos, legislação) e publicações em torno da
realidade investigada, que contribuísse para evidenciar aspectos metodológicos do
Programa Projovem Campo – Saberes da Terra e sua efetiva aplicação.
Também foram feitas entrevistas semiestruturadas com executores, gestores e
educadores do programa na Secretaria de Educação do Estado da Paraíba, que participa
do mencionado projeto, desde a edição de 2014548.
Optamos por trabalhar nessa pesquisa com a avaliação de processo, pois as políticas
públicas ou programas têm vida e percorrem todo um caminho pois nascem, crescem,
transformam-se, mudam, reformam-se e possivelmente morrem, percorrendo assim um
ciclo vital (DRAIBE, 2001, p. 26).

QUADRO 1. SISTEMAS OU SUBPROCESSOS DE IMPLEMENTAÇÃO


Sistema gerencial e decisório Compreender a natureza e os atributos da
autoridade que conduz o processo.
Processos de divulgação e informação Meios de divulgação entre agentes
implementadores e beneficiários.
Processos de seleção (de agentes Os programas envolvem, em geral, algum tipo
implementadores e ou de beneficiários) de seleção, seja de agentes que o
implementarão, seja do público-alvo a que se
dirige.
Processos de capacitação (de agentes e ou Verificar a capacidade dos agentes para
beneficiários) cumprir as tarefas que lhe cabem na
implementação.
Sistemas logísticos e operacionais (atividade- Parâmetros de suficiência e qualidade de
fim) recursos e de tempo
a) financiamento e gasto a) os recursos financeiros são suficientes para
b) provisão de recursos materiais os objetivos propostos ou podem ser
maximizados

548
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/03/02/mesmo-com-crise-bolsa-familia-reduz-
485- mil-beneficiarios-em-3-anos.htm acessado em 27.mar.17.

1108
b) equipamentos coletivos, equipamentos de
comunicação, serviços de transportes etc.
Fonte: Draibe (2001)

ADESÃO AO PROJOVEM CAMPO SABERES DA TERRA 2014 549

Em 2014 houve uma nova proposta de adesão ao programa, desta vez com vagas
disponíveis para os 80 municípios com o maior número de escolas no campo, os 1.830
municípios integrantes dos 120 Territórios da Cidadania, o Distrito Federal e os estados
para atender aos municípios de sua abrangência territorial, que não tenham feito adesão
por meio de suas Secretarias Municipais de Educação, sendo que conforme a Resolução
CD/FNDE/MEC nº11/2014 poderão fazer adesão ao Programa, por meio de suas
Secretarias de Educação.
A meta a ser atingida, nesta etapa de 2014, pela adesão Estadual é de 15 Estados
com 18.360 jovens atendidos, e via adesão municipal atender 304 municípios com 26.895
jovens atendidos, a SECADI pretende atingir um total de 54.255 jovens nessa etapa do
programa.
São agentes do Projovem Campo – Saberes da Terra:

 A Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e


Inclusão do Ministério da Educação (SECADI/MEC), gestora nacional do Programa, por
meio da Diretoria de Políticas de Educação para a Juventude;
 O Distrito Federal, os estados e os municípios que aderirem ao Programa,
denominados entes executores (EEx);
 O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), autarquia
vinculada ao MEC, executora das transferências de recursos financeiros do Programa.

Essa organização, desde o espaço onde ocorrerá o curso de formação fica à cargo
da equipe gestora local, que deve possuir um Coordenador geral (estadual ou municipal);
além do Coordenador de turma, para coordenar, no mínimo, duas turmas em diferentes
unidades de ensino, sendo um coordenador de turma para cada dez turmas.
A Equipe pedagógica de o Programa Projovem Campo Saberes da Terra é
composta por Formadores, indicados pelas entidades parceiras (universidades), para o

549
http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dos-beneficiarios-estao-trabalhando
acessado em 27.mar.17.

1109
desenvolvimento das etapas de formação continuada, destinada aos professores do
Programa das quatro áreas: Linguagem Códigos e suas Tecnologias, Ciências Humanas,
Ciências da Natureza e Matemática e Ciências Agrárias. E ainda, se houver necessidade,
segundo a avaliação dos professores e coordenação, o Tradutor e Intérprete de Libras, e o
professor para Atendimento Educacional Especializado (AEE).
O Programa visa promover ações educacionais e de cidadania voltadas a jovens
que, por diferentes fatores, foram excluídos do processo educacional, de modo a reduzir
situações de risco, desigualdade, discriminação e outras vulnerabilidades sociais,
fomentando a participação social e cidadã, favorecendo a permanência e a sucessão dos
jovens na agricultura familiar.

CONCLUSÃO

Esta é uma pesquisa em andamento, mas podemos observar que a organização


metodológica do programa em tempo escola e tempo comunidade busca a aproximação
do jovem de sua comunidade através de ações desenvolvidas nas cidades onde o programa
está implementado.
Entretanto é importante considerar que a intervenção na comunidade tem se
mostrado muito pontual, principalmente no que diz respeito a projetos de desenvolvimento
sustentável e agroecologia.
Outro problema ressaltado, é que o grupo pesquisado passa pelos mesmos
problemas e entraves de implementação notados por outros programas destinados a
juventude que visa a aceleração de escolaridade, qualificação profissional e cidadania, pois
observamos e constatamos , através de entrevistas com gestores e educadores do programa,
a existência de falta de comunicação entre gestores locais e o órgão responsável pelo
programa em nível federal, e ainda falta de apoio logístico e articulação local nas cidades
onde o programa foi implementado, além de falta da Formação Continuada dos
Educadores e dificuldades do monitoramento nas escolas, causadas principalmente pela
falta de transporte.
Esta situação observada, ainda que em fase de início de análise da coleta de dados,
nos faz temer que o Programa Projovem Campo da Paraíba enfrenta problemas, que são
historicamente perpetuados.
A escola deve ser um espaço motivador e integrador, o presente programa trata com um
público e contexto específico, que necessita que as metas do Programa Projovem Campo – Saberes
da Terra, para serem atingidas, integrem saberes locais, uma vez que, uma das propostas do referido

1110
programa é o de desenvolver propostas pedagógicas e metodologias adequadas para expandir a
educação básica e melhoria da qualidade, da oferta e oportunidades, de aprendizagem aos jovens
agricultores e agricultoras beneficiados pelo programa, contribuindo para a redução de
disparidades entre a realidade da educação urbana e rural.

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1112
PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA E REDISTRIBUIÇÃO:
RECONHECIMENTO E RECIPROCIDADE

Guilherme de Matos FLORIANO550

Resumo: O Programa Bolsa Família (PBF) é uma política de transferência de renda que objetiva
reduzir a fome e romper com o ciclo intergeracional da pobreza no Brasil. Através de suas
condicionalidades o programa visa manter as crianças e adolescentes na escola, bem como garantir
o acompanhamento de saúde das gestantes, nutrizes, lactantes, crianças e bebês. Assim, chegou a
beneficiar 50 milhões de pessoas nos últimos anos – um quarto da população brasileira – e,
portanto, existe uma gama de estudos sobre seus diferentes impactos, ainda mais tendo em vista
que o programa existe há mais de uma década no país. No escopo dos direitos sociais, é inegável
que o programa os ampliou na medida em que garante a satisfação de necessidades básicas; isso se
comprova pela saída do Brasil do Mapa da Fome da ONU. Na área antropológica, entretanto,
ainda não são tantos os trabalhos. O objetivo aqui foi explorar um pouco desse programa à luz da
antropologia do dom de Marcel Mauss. Na medida em que o Estado se constitui como
centralizador das tributações e responsável pela redistribuição de bens, palavras, serviços para a
sociedade, ele se concretiza enquanto um centro privilegiado para as trocas. A reciprocidade
assimétrica gerada a partir do pagamento de impostos, da redistribuição dos serviços, do
cumprimento das condicionalidades pelos beneficiários do PBF, etc. é consequência desse
processo nas sociedades modernas. Portanto, nosso raciocínio tem como foco a análise do PBF
enquanto um recorte da relação do Estado x sociedade através de políticas sociais, tendo
redistribuição e reciprocidade como seus elementos chave para a nossa compreensão
antropológica.

Palavras-chave: Programa Bolsa Família. Direitos sociais. Redistribuição. Reciprocidade.

O QUE É BOLSA FAMÍLIA?

No Brasil as políticas de transferência de renda datam da década de 1970 como


nos bem mostra Rocha (2013). Entretanto, apenas nas últimas décadas destinamos dotação
orçamentária específica, advinda dos fundos da união, direto para estas políticas, segundo
a autora. O programa que beneficia as pessoas com deficiência e idosos – ambos de baixa
renda – é a política de transferência de renda não contributiva mais antiga ainda vigente no
país. Mas ainda não existia, até o fim do século passado, políticas que privilegiavam as
parcelas mais baixas da população como um todo.
Foi no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso – presidente do Brasil
entre 1995 e 2002 – que tais políticas apareceram na agenda do Governo Federal. Como
um teste, o programa Bolsa Escola foi implementado nas cidades de Campinas e no

550
http://mds.gov.br/area-de-imprensa/noticias/2014/setembro/brasil-sai-do-mapa-da-fome-das-nacoes-
unidas-segundo-fao acessado em 28.mar.17.

1113
Distrito Federal. As características gerais eram as mesmas: foco nas famílias de baixa renda
que apresentem em sua constituição crianças em idade escolar obrigatória; como condição
para o recebimento do benefício, as crianças deveriam ter sua saúde acompanhada, bem
como deveriam obter frequência escolar mínima; os benefícios eram pagos em nome das
mulheres, responsáveis pela família. Ambas as experiências datadas de 1995, chegam ao
escopo do Governo Federal em 1997 (ROCHA, 2013), mas apenas depois de 2000 tem
impacto significativo devido às mudanças de rumo adotadas pelo programa na sua chamada
segunda fase.
Assim, fica instituído em 2001 o Bolsa Escola, que transferia R$15 por mês por
cada criança – de 7 a 14 anos – que existisse na família, se limitando a 3 benefícios por
família. As crianças, assim, deveriam ter freqüência escolar mínima de 85%. Além deste, o
governo criou mais programas que, mais tarde, foram incorporados em um único
programa. O Bolsa Alimentação privilegiava as mulheres gestantes, nutrizes e crianças de
até 6 anos e também transferia R$ 15 por mês limitado a 3 pessoas por família. Sua
contrapartida – as chamadas condicionalidades – era o acompanhamento do cartão de
vacinação e a realização dos exames de pré-natal. O Auxílio-Gás, assim como os demais,
também tinha como alvo as famílias com renda per capita inferior a meio salário mínimo,
mas que não exigia contrapartida, transferindo R$15 a cada dois meses às famílias
beneficiárias do Bolsa Escola.
Em uma tentativa barrada por muitos entraves de implementar o Cartão
Alimentação como política universal de combate à fome logo no início de seu primeiro
mandato, Luís Inácio Lula da Silva cria o Programa Bolsa Família (PBF) em fins de 2003.
Algumas mudanças em relação às outras políticas de transferência direta de renda podem
ser destacadas de início: o público-alvo passou a ser as famílias consideradas pobres – com
renda per capita entre R$50 e R$100 – e as famílias extremamente pobres – com renda
per capita inferior a R$50. As extremamente pobres recebiam um benefício básico de R$50
e, no máximo, três benefícios de R$15 para cada filho em idade escolar obrigatória. Já as
famílias pobres recebiam apenas os benefícios referentes aos filhos.
Segundo Rocha (2013), por melhorar a focalização e privilegiar as famílias com
crianças como nos outros programas criados na era Cardoso, o PBF tem maior impacto na
pobreza extrema, sobretudo nas indigentes das áreas rurais do Norte e Nordeste, embora
o Cartão Alimentação tivesse maior impacto na pobreza. Desse modo, houveram grandes
dificuldades enfrentadas pelo PBF, como a não existência de uma rede assistencial a nível
nacional na qual o programa pudesse se ancorar, já que o Bolsa Escola se apoiava nas

1114
escolas e secretarias de educação e o Bolsa Alimentação nos postos de saúde e secretarias
de saúde; além do fato de as transferências per se não poderem se constituir enquanto
solução para a pobreza ou para a extrema pobreza; entre outras dificuldades operacionais,
de dispêndios federais com as transferência, infraestrutura e pessoal capacitado e do fato
de municípios muito pobres terem problemas mais profundos que apenas a renda, como
questões mínimas de saneamento básico, por exemplo.
Hoje, os valores do Bolsa Família foram atualizados, de modo que as famílias que
possuem renda per capita abaixo de R$77 são as consideradas em extrema pobreza e as
que possuem renda per capita entre R$77,01 e R$154 são consideradas em condição de
pobreza. Os benefícios pagos pelo programa também foram alterados ao longo do tempo,
sendo que hoje existem os seguintes: o Benefício Básico é pago somente às famílias em
condição de extrema pobreza – como aquele anteriormente citado – sendo que atualmente
é no valor de R$77; o Benefício Variável de 0 a 15 anos que é pago às famílias com crianças
entre essas idades, constituindo um valor de R$35 por criança; o Benefício Variável à
Gestante, tendo nome auto-explicativo, também constitui um valor de R$35 pago por 9
meses às gestantes; o Benefício Variável Nutriz é pago às nutrizes, ou seja, às famílias que
possuam crianças de até 6 meses de idade, transferindo também R$35 por 6 meses às
famílias; e todos estes chamados Benefícios Variáveis são limitados a cinco por família
(FLORIANO, 2016).
Com foco nos adolescentes, devido à alta evasão escolar na faixa etária de 16 e 17
anos – como constatado por uma pessoa entrevistada – foi criado o Benefício Variável
Vinculado ao Adolescente, benefício responsável por transferir R$42 às famílias com
jovens entre essa faixa de idade – este limitado a dois por família. Se ainda assim as famílias
não superarem a renda per capita de R$77, existe o Benefício para Superação da Extrema
Pobreza, calculado caso a caso para que as famílias venham a superar tal situação.
Para receberem os benefícios, existem condições herdadas dos programas que aqui
foram unificados – as condicionalidades –, atreladas à educação e saúde, como outrora. As
crianças de até 15 anos devem ter frequência escolas de, no mínimo, 85% ao passo que os
adolescentes entre 16 e 17 anos devem ter 75% como frequência mínima; quanto à saúde,
as gestantes devem fazer as consultas de pré-natal e acompanhar a saúde e a vacinação do
bebê, as mulheres até 44 anos também devem estar com seu acompanhamento de saúde
em dia; e o Cadastro Único deve ser atualizado a cada dois anos no máximo, mas
preferencialmente a cada nova alteração na família, seja ela relacionada a membros,
endereço, etc.

1115
Dessa forma, o PBF unifica todos os programas anteriores em um só. E para que
sua gestão, bem como a de toda a política de assistência social que vinha sendo
implementada, foram criados os Centros de Referência e Assistência Social (CRAS). Estes
espaços se constituem enquanto os locais onde operam os atendimentos assistenciais de
todos os programas sociais do governo federal com a população. Através deles são feitas as
buscas ativas por populações em situação de vulnerabilidade, são cadastradas famílias no
Cadastro Único, são oferecidas oficinas de música, brincadeira e jogos para as crianças e
adolescentes, são oferecidas acolhidas privadas e em grupo com apoio psicológico, entre
diversos outros atendimentos prestados à família.
É nesse sentido que o CRAS se constitui enquanto o local de referência da proteção
social no Brasil e é por isso que se configura como meio central de análise desta pesquisa.
É nele que as famílias entram em contato com os programas sociais do Estado, tem
atendimento básico promovido pelo Estado, é nele onde ocorrem relações de troca e
reciprocidade entre Estado e beneficiários, além de, é claro, ser o local onde as famílias se
cadastram para receber o Programa Bolsa Família e as condicionalidades são, em parte,
acompanhadas. Por isso é o espaço privilegiado para a análise que aqui se propõe. Além
disso, apresenta o foco, de todas as suas ações, na família enquanto elemento central de
troca. Troca aqui entendida em seu sentido maussiano, o que constitui um dos
pressupostos deste trabalho como se verá.
O Bolsa Família custa, em média, R$2,4 bilhões ao mês, totalizando
aproximadamente R$28 bilhões ao ano, sendo que o benefício médio transferido às
famílias é de R$182. O número de beneficiários no início de 2017 – após o governo de
Michel Temer ter feito uma grande fiscalização e retirado pouco mais de 11 mil famílias –
chega a 13.560.521.551
Em consonância com outras fontes de notícias do Governo Federal 552, os impactos
do programa são diversos: a taxa de mortalidade da infância – menores de 5 anos – caiu
em 65%; a mortalidade infantil foi reduzida de 29,7 por mil para 15,6 por mil no período
de 2000 a 2010 – concretização do 4º Objetivo de Desenvolvimento do Milênio (ODM);
além disso, o discurso oficial afirma que 75,4% dos beneficiários são trabalhadores
assalariados; o recuo médio de filhos nas famílias mais pobres foi de 30% face à média

551
Dados disponíveis em: http://www.revistaforum.com.br/blog/2013/12/o-salario-minimo-e-o-poder-
decompra-de-fhc-a-dilma-rousseff/ acessado em 28 mai. 15.
552
No que se refere à educação, ver Freire et al, 2013; Cavalcanti, Costa e Silva, 2013. Quanto à saúde, ver
http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2014/05/bolsa-familia-75-4-dos-beneficiarios-estao-trabalhando
acessado em 25 abr. 16.
1116
nacional de 20,17% entre 2000 e 2010; também ressalta, este discurso, que 1,7 milhão de
famílias deixaram espontaneamente o programa por melhoras em suas condições de vida.
Outros dados, como demonstrado alhures (FLORIANO, 2016), buscam traçar
evidências dos impactos do PBF na sociedade brasileira: o desemprego cai para 6,2%, a
taxa de ocupados cresce 24,8%, a pobreza cai de 34,9% para menos de 20% e são mais de
350 mil microempreendedores oriundos do Bolsa Família. Também, segundo destacado
pelo governo553, 98,3% da população tem acesso a alimentos e a segurança alimentar, o que
garantiu a saída do Brasil do mapa da fome da Organização das Nações Unidas (ONU) em
2014. Além destes, olhemos para alguns estudos sobre o tema.
Embora as políticas de transferência direta de renda possam ter impactos positivos
na segurança alimentar – relacionada à pobreza, à privação – em um estudo feito por
Almeida, Almeida e Ferrante (2015) apenas 28,72% das famílias pesquisadas por eles – e
beneficiárias – estão em situação de Segurança Alimentar, ao passo que 71,28% apresentam
níveis de Insegurança Alimentar ou alguma privação alimentar (ALMEIDA; ALMEIDA;
FERRANTE, 2015, p. 285-286). Tal estudo, contrariando outros, concluiu que na
referente região, quanto menor a renda, maior o autoconsumo, ou seja, quanto mais
privações, mais as famílias consomem o que elas mesmas produzem.
Mesmo que os gastos sejam prioritariamente com produtos alimentícios, como
mostrado acima, no município de Araraquara, Traldi, Almeida e Ferrante (2012) notam a
existência de doenças crônicas como diabetes e hipertensão em 51% das famílias, além do
baixo grau de escolaridade – são 38% das famílias que não possuem o ensino fundamental
completo. Entretanto, não deixam de postular que programa tem papel fundamental na
garantia da segurança alimentar inicial e no bem-estar das famílias.
Wolf e Barros (2014) fazem uma grande revisão sobre as repercussões do benefício
no estado nutricional das famílias e crianças. O que mais se constata, segundo este
levantamento, é que as pesquisas apontam para uma maior probabilidade de sobrepeso ou
obesidade em famílias e crianças beneficiárias. Sendo assim, sugerem que o
acompanhamento nutricional deveria se melhor feito pelo cruzamento de dados do PBF
com o Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN) e deveria ser uma condição
passível de exclusão do benefício (WOLF; BARROS, 2014, p. 1336). Carmo et al. (2016)
está de acordo com as considerações apresentadas por Wolf e Barros, afirmando que o

553
Os serviços oferecidos pelo CRAS tem foco sempre nas famílias, assim como o PBF e toda a política de
assistência social implantada no Brasil nos últimos anos.

1117
consumo de refrigerantes em beneficiários do programa é 1,24 vezes maior que entre os
não-beneficiários.
Além destes, existem muitos estudos na área da outra principal condicionalidade
do programa: a educação. A maioria dos estudos nesta área aponta positivamente para a
diminuição do abandono e o aumento da frequência escolar por parte de alunos que
pertencem a famílias beneficiárias face à famílias que não são (FLORIANO, 2016).
Nesse sentido, Melo e Duarte (2010) apresentam dados que comprovam o
aumento da frequência escolar de jovens beneficiários em quatro Estados do nordeste
brasileiro. Entretanto destacam: a maior frequência é notada entre as meninas e não entre
os meninos. Segundo os autores, tal questão se dá pelo fato de os meninos adentrarem
mais cedo às atividades produtivas.
Cavalcanti, Costa e Silva (2013) concordam com as afirmações dispostas acima.
Para os autores, o PBF atinge seus impactos diretos de alivio imediato da fome, redução
da pobreza e da desigualdade de renda e também aumentam a frequência escolar,
influenciando no futuro dos jovens que permanecem no ambiente escolar fortalecendo o
capital humano, para além de quaisquer bens monetários. Entretanto, uma maior cobertura
e um maior valor de transferência dos benefícios impactaria muito mais positivamente no
cenário brasileiro (CAVALCANTI; COSTA; SILVA, 2013). A condicionalidade de
educação, por outro lado, pode ficar restrita em si mesma como afirmam Freire et al.
(2013) quando tratam de famílias ribeirinhas. O que significa dizer que as frequências
aumentam, como é uma solicitação do próprio programa, mas que não há uma melhora
nos percentuais de rendimento escolar. Além disso, os pais desses jovens muitas vezes não
orientam nem acompanham a vida escolar de seus filhos por não saberem como contribuir,
o que demonstra algumas restrições quanto ao desempenho dessa condição de
cumprimento da política.
As condicionalidades foram uma novidade no campo das políticas públicas
brasileiras, na mesma medida em que foram e ainda são polêmicas. Ao mesmo tempo em
que o foco na família é uma inovação do programa, o fato de haver condicionalidades acaba
por gerar uma “clientela” (SENNA et al., 2007). Também, a geração de emprego e renda
é baixa, o que deve receber uma maior atenção. Zimmermann (2006) também aponta para
a importância do PBF como instrumento de combate à pobreza e à fome no país,
entretanto as condicionalidades e os baixos valores dos benefícios ferem os direitos
humanos. Desse modo, defende a existência de um benefício incondicional com maiores
valores de transferência.

1118
As condicionalidades podem ter um caráter punitivo, restringindo o benefício à
quem não cumpri-las. Mas e o Estado? Não há uma punição para ele caso os serviços
prestados não sejam de qualidade ou sejam até mesmo falhos (ZIMMERMANN;
ESPINOLA, 2015; KERSTENETZKY, 2009). “Por isso, se considerarmos a obrigação
estatal na provisão dos serviços públicos, a exigência de contrapartidas para frequentar esses
serviços constitui-se uma contradição com essa obrigação.” (ZIMMERMANN;
ESPINOLA, 2015, p. 149). A necessidade de maior investimentos nos serviços oferecidos
pelo Estado se torna ainda mais verdade se levarmos em conta que as condicionalidades
são indicadores de vulnerabilidade (LICIO; MESQUITA; CURRALERO, 2011) na
medida em que por seus descumprimentos podemos notar as dificuldades das famílias.
Assim, o Estado deveria assumir uma maior responsabilidade perante seus serviços, de
modo a repensar as condicionalidades do programa instituindo um benefício de renda
básica universal
Se levarmos em conta a opinião dos beneficiários sobre o programa, eles próprios
percebem a importância que o PBF tem no complemento de sua renda, reiterando os
efeitos positivos que as condicionalidades tiveram em suas vidas como o aumento da
frequência escolar e às instituições de saúde (SANTOS et al, 2014). Embora a renda não
supra todas suas necessidades, segundo as famílias estudadas por Santos et al (2014), ela
gera certa autonomia, aumento do poder de compra, independência e é fundamental até
mesmo na redução da insegurança alimentar
Já no que tange aos impactos do programa na economia, Marcelo Neri (2014) atesta
o programa como uma porta de entrada em setores mais sofisticados do mercado
financeiro pelo fato de os indivíduos por serem beneficiários terem 23% mais de chance
de acessar serviços financeiros. Mas ainda assim, o autor corrobora a necessidade de
aumentarmos a quantidade de poupança no país que é baixa devido à expansão de crédito,
à queda da desigualdade, ao aumento do emprego formal e dos programas de proteção
social, que reduzem as incertezas o que faz com que as pessoas gastem e não guardem
dinheiro (NERI, 2014). O que, para o autor, poderia ser uma solução para a falta de
poupança – fato este que caracteriza, para ele, a diferença entre uma economia em
desenvolvimento e uma economia consolidada – seria a criação de fundos de poupança
para os beneficiários, que seria de fácil aplicabilidade – os beneficiários já possuem contato
com os bancos – e teria fortes impactos.
Em Vozes do Bolsa Família: autonomia, dinheiro e cidadania Rego e Pinzani
(2013) nos permitem adentrar a realidade de muitas mulheres beneficiárias do Bolsa

1119
Família. Segundo eles, todas as entrevistadas registram mudanças relevantes em suas vidas,
sobretudo no sentido material, mesmo que o benefício seja sempre referido como uma
“ajuda” (REGO; PINZANI, 2013, p.87). Diferente do que é noticiado em alguns veículos
de informação, das 150 entrevistas feitas pelos pesquisadores, apenas 2 mulheres disseram
ter aberto mão de seu serviço de empregada doméstica para viver do Bolsa Família, tendo
em vista os baixos salários que recebiam. Além disso, 90% delas disseram que a mulher
sabe cuidar melhor do dinheiro, das compras mais econômicas e, portanto, é melhor os
cartões virem nos nomes das mulheres.
Outro ponto a ser destacado nesse impactante estudo é que 75% das mulheres
entendem o benefício como um favor do governo ou uma ação que deriva da condição
inicial de vida do ex-presidente Lula. Apenas 5 mulheres utilizaram a palavra “direito”
quando em referência ao PBF. Fora isso, o impacto que o programa teve nas economias
locais estudadas foi extremamente relevante na medida em que permite às famílias fazerem
compras à prazo não apenas alimentos, mas até móveis baratos – fator que se deve à certeza
da regularidade do dinheiro. “Disso se depreende que o BF não se limita a sustentar as
famílias que o recebem, mas dá a elas um certo folego que lhes estaria permitindo sair da
sua atual situação de privação absoluta de bens.” (REGO; PINZANI, 2013, p. 89).
Dessa forma, os autores concluem que o PBF contribui para o aumento da renda
monetária das famílias e para o aumento da autonomia cívico-política pelo fato de serem
geradas responsabilidades entre as famílias e o governo através das condicionalidades. A
autonomia ético-moral também sofreu alterações uma vez que geram responsabilidades
das mulheres frente às suas famílias e à economia doméstica.
Além disso, o benefício contribui para a libertação da vergonha, derivada da
ausência de renda permanente, o que também contribui, por conseguinte, à conquista da
cidadania (REGO; PINZANI, 2013).

DESENVOLVENDO DIREITOS SOCIAIS

A partir da caracterização do programa e de um breve levantamento de seus


impactos, podemos começar a refletir mais profundamente sobre a política. Assim,
peguemos emprestado alguns conceitos de Amartya Sen (2000) de início, como:
oportunidades, liberdade, desenvolvimento, muito delineados em sua grande obra
Desenvolvimento como liberdade.

1120
A saúde no caso brasileiro pode se caracterizar como um entrave de oportunidades
às famílias de baixa renda, logo, gera certo grau de privação de liberdades. Entretanto, no
caso educacional a questão é um pouco distinta: mesmo que a qualidade dos serviços de
educação também possa ser questionada, o fato de as crianças permanecerem mais tempo
na escola, a taxa de abandono escolar tenha diminuído, as implicações futuras com certeza
serão de uma menor privação de liberdade, ainda que as oportunidades geradas sejam de
grau limitado, afinal, até mesmo as distinções salariais entre as pessoas que possuem ensino
completo e as que não possuem é grande: cerca de quinze vezes menos é o que recebe
alguém com um menor nível de escolaridade (JARDIM; FLORES, 2013). Na questão que
toca as mulheres, por exemplo, temos avanços na redução da privação de liberdades: o fato
de as mães serem as “chefes” dessas famílias na relação do PBF Estado x beneficiários, faz
com que elas tenham tido aumentado seu poder de decisão sobre os gastos desse benefício
dentro de seu lar, assim como aumentam o grau de autonomia dessas mulheres (REGO;
PINZANI, 2013).
O que se coloca em questão ao analisar os impactos do PBF a partir dessa
perspectiva é a busca pela ruptura com as privações de liberdade: inclusão econômica,
inserção no mercado consumidor e aumento do poder aquisitivo554, inclusão social, etc.
tudo isso acaba por ser consequência dos efeitos do programa na sociedade brasileira. O
que comprova isso são os diversos dados já trazidos no primeiro tópico deste capítulo:
aumento da frequência escolar, aumento das taxas de aprovação escolar, aumento do
acompanhamento da saúde dos bebês e outros555. O que talvez seja o maior destaque no
quesito educacional, o qual o PBF sem dúvidas agiu como catalisador, foi a saída do Brasil
do Mapa da Fome da ONU. Assim, o Bolsa Família está inserido num olhar mais amplo
à pobreza em consonância com os ideais de Sen (2000): não deve ser restrita à ausência de
renda ou carências financeiras, mas as restrições de liberdades devem ser combatidas em
vistas ao aumento das capacidades e ao desenvolvimento, afinal de contas, renda e
capacidades não estão imbricadas de uma maneira exata, ou seja, existem diversos fatores
que influenciam nessa relação como a morte nos primeiros anos de vida, a falta de boas

Polanyi (1980) também comete um equívoco ao associar reciprocidade com simetria. Como vimos, é a
554

assimetria que garante a reprodução dos movimentos de troca. Entretanto, sua perspectiva é, inclusive muito
retomada por Lanna (2005), e se constitui como essencial e indispensável para afirmarmos o PBF enquanto
um programa pautado na redistribuição e na reciprocidade.
555
Mestranda em Direito pela Universidade Estadual de São Paulo “Júlio Mesquita Filho” – UNESP (2017-
2019); bolsista Capes; Especialização em Processo Civil e Argumentação Jurídica pela Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais – PUC Minas - (2016-2017); Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de
Franca – FDF – Franca/SP (2011-2015); mediadora1121 e conciliadora judicial e extrajudicial em formação pelo
CEBRAMAR/DF. E-mail: mariana_menegaz@hotmail.com.
condições de saúde, a existência de doenças, etc. E, como vimos, nisso também o Brasil
avançou – redução da mortalidade infantil e na infância.
Entretanto, o PBF sempre foi alvo de muitas críticas pela mídia brasileira e pela
oposição do Partido dos Trabalhadores, que sempre o caracterizou enquanto uma política
assistencialista. Os direitos sociais, seguindo a linha das oportunidades e liberdades de Sen
(2000), assim como o Estado, a coisa pública sofrem uma desmoralização criada por uma
construção social no plano inconsciente, como um habitus bourdieusiano e isso é reforçado
pela imprensa (JARDIM; FLORES, 2013).

(...) Como o país nunca teve uma experiência universalista, a ideia de


direitos sociais não está naturalizada no habitus da sociedade brasileira.
Assim, inspirados em Bourdieu, diríamos que não basta os direitos
estarem institucionalizados nas leis, mas que precisam estar ainda (e
sobretudo), inscritos nos corpos e nas mentes dos indivíduos das
sociedades (JARDIM; FLORES, 2013, p. 135).

Considerando o tempo de existência do Brasil, ainda é cedo para dizer se a política


social das últimas décadas surtiu efeito na sociedade brasileira no sentido acima
mencionado. A permanência ou não desses direitos sociais será uma prova disso, bem
como a persistência da pobreza na sociedade, afinal “O enigma da pobreza está
inteiramente implicado no modo como os direitos sociais são negados na trama das
relações sociais” (TELLES, 1999, p. 88). As beneficiárias, em sua maioria, percebem o
Bolsa Família enquanto um direito seu, por pagarem impostos ou pelo fato de passarem
necessidades, como demonstraram Rego e Pinzani (2013). Mas se isto está se espalhado
pela sociedade como um todo, não podemos afirmar com certeza.
O Estado, por sua vez, deve ser o meio que garanta a inclusão desses direitos sociais
nas políticas nacionais. Um Estado de bem-estar ancora-se no Estado, na família e no
mercado (JARDIM; FLORES, 2013), sendo que o Estado e a família são os principais
elementos dessa relação, caso contrário, o mercado tem força demais e a política de bem-
estar passa a ser uma política neoliberal. E não podemos deixar de notar que o PBF se
pauta exatamente nessa relação entre o Estado e a família. Seu próprio nome deixa isso
nítido. Trata-se de uma relação de troca constante entre o Estado e família que inclusive
gera um movimento maior no país: a criação de uma política nacional de assistência social,
como nunca antes havia existido, com locais físicos de referência e atendimento – os CRAS

1122
– que, mais uma vez, constituem relações com as famílias – logo, do Estado com as
famílias556.
Primeiramente então trata-se de reconhecer o ser humano enquanto um ser
incluído na comunidade política para, em seguida, poder usufruir de outros tipos de
direitos: civis, sociais, etc. Desse modo, cidadania é inclusão na vida pública (RABELO;
SILVA, 2013). A partir de então temos a premissa básica dos direitos: o direito a ter direitos

(...) Nesse sentido, o PBF representa um avanço importante na


construção do sistema de proteção brasileiro, ao não exigir a
comprovação da incapacidade para o trabalho e instituir a “[...]
legitimidade de garantir um aporte de renda a todos aqueles que estejam
abaixo de um patamar de renda considerado mínimo” (JACCOUD,
2009, p. 13). Essa legitimidade está calcada no reconhecimento da sua
condição cidadã (...) (RABELO; SILVA, 2013, p. 69).

A visão que esse modelo de política social traz busca afastar a ideia de pobreza à de
natureza, na qual pobreza é relegada à carência, ao imperativo das necessidades vitais onde
há apenas o imperativo da sobrevivência (TELLES, 1999). Os direitos sociais são pensados
em uma outra chave de cidadania, que não a regulada como é o caso desde a Era Vargas
(SANTOS, 1979). A redistribuição implementada pela política social da qual o PBF faz
parte dispõe de recursos reais que não apenas financeiros. Para a gerência do PBF e da
política de inclusão social e promoção dos direitos sociais foi criado um novo ministério
no governo federal o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS).
Também foi criada uma rede nacional de políticas de assistência social, com locais de
atendimento, de referência, como citado acima. Passou-se a dispor de pessoal qualificado,
aparelhagem, espaços públicos, informações, redes de informações, acessos a novos
serviços, além da redistribuição da renda per se. Passou-se a dispor de novos recursos
físicos e humanos para dar conta de uma velha demanda nacional. Com isso, os direitos
sociais são promovidos por serem condições de cidadania. Não se trata de alguma
redistribuição ou benefício por perda de emprego, ou qualquer outra política do tipo

556
Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2002); mestre em Direito pela
Universidade Federal de Santa Catarina (1996); graduado em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina (1994). Professor dos programas de pós graduação, mestrado em direito, da Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, e da Universidade Federal de Uberlândia - UFU; é professor da
pós-graduação em biocombustíveis, mestrado e doutorado, programa conjunto da Universidade Federal de
Uberlândia e Universidade Federal dos Vales do Mucuri e Jequitinhonha. Doutorando em História pela
Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: walmott@gmail.com.
1123
(SANTOS, 1979), mas trata-se de uma política de redistribuição de renda e, sobretudo,
direitos sociais que são condição de cidadania.
Wanderley Guilherme dos Santos (1979) nos traz uma reflexão extremamente
contemporânea e pertinente ao PBF, como dissemos: por alavancar os direitos sociais
renegados no âmago da política social brasileira, o PBF traz consigo uma nova concepção
de cidadania que, mesmo que sofra com efeitos de diversos determinantes e repercussões,
não está vinculado à política de acumulação estritamente. Isso quer dizer que, por não se
tratar de uma política contributiva – os beneficiários não precisam contribuir em um
período para receber o benefício em outro, como o FGTS, o seguro-desemprego, etc. –
mas sim de uma política redistributiva, o programa engendra uma conexão dos direitos
sociais essenciais com esta nova concepção de cidadania de modo que os beneficiários
estejam assegurados sem estarem sujeitos aos “azares da acumulação” (SANTOS, 1979),
ou seja, os beneficiários continuarão a receber seus benefícios independentemente de sua
contribuição com o FGTS, por exemplo – eles só deixarão de receber o benefício caso
descumpram condicionalidades ou tenham sua renda ultrapassada o teto das faixas de
pobreza.
Ao se reconhecer um direito como social, muda-se o status da necessidade, ou seja,
necessidades ao se tornarem legítimas legal e constitucionalmente, transformam-se em
questões sociais, em direitos sociais (RABELO; SILVA, 2013).

REPENSANDO A TROCA

Para além das reflexões aqui delineadas, olhar para o Bolsa Família de maneira
mais ampla implica percebê-lo a partir do ponto de vista do dom, como alguns
antropólogos fizeram. Mas antes de entrar em seus pormenores, retomemos um pouco as
teorias que irão iluminar nossa reflexão.
Quando remontamos à fundação da disciplina sociológica, na tentativa de superar
o debate apriorismo x empirismo – kantianos x neo-kantianos –, Durkheim se consagra
como elemento indispensável para pensar a sociedade enquanto coisa social. As categorias
sociais, a partir daí ganham a característica de coisas sociais, uma vez que são históricas,
que são representações coletivas, entendendo que “coletivo” para Durkheim é um conceito
não que se caracteriza como resultado das individualidades que compõem determinada
sociedade, mas enquanto alto externo à existência única de cada indivíduo em si, que
exerce poder coercitivo sobre cada pessoa e que possui característica própria e constituinte

1124
dos grupos sociais (DURKHEIM, 1996). Essa classificação da realidade dos grupos sociais
está implícita no grupo desde as formas como verbalizam e se comunicam, até as formas
como se dispõem territorialmente – este arcabouço interno é o sistema social.
Os comportamentos individuais, assim, são regulados por regras coletivas, bem
como a forma pela qual os grupos se expressam, advém de categoriais que são, também,
sociais. O altruísmo, por sua vez, é uma característica que marca a influência do coletivo
sobre o individual: “O altruísmo é a solidariedade, a força que une os coletivos”
(STEINER, 2016, p. 84). O egoísmo seria, portanto, a sobreposição do individual ao
coletivo – algo que a ciência deve lutar para frear.
Tanto o egoísmo quanto o altruísmo surgem do culto do indivíduo: este é um
componente essencial da consciência coletiva em uma sociedade regida pela solidariedade
orgânica que, por sua vez, funda o individualismo e o altruísmo moderno, segundo Steiner
(2016). Até mesmo nosso egoísmo é, portanto, fruto da sociedade: são construções sociais.
Mas mesmo se tratando de sociedades modernas, não se trata de olharmos para a
economia e os aspectos econômicos como elementos centrais. Pelo contrário, isto é
criticado pela reflexão iniciada por Durkheim.
O que liga, então, o indivíduo ao grupo? O que constitui a solidariedade, a
moralidade? O altruísmo! Até porque Durkheim considera que mesmo as práticas
altruístas trazem prazer aos indivíduos – assim como dissemos acima, o egoísmo também
possui sua parte social

Examinados em termos de prazer e sofrimento, o altruísmo e o egoísmo


são tão intimamente imbricados que se torna difícil distinguí-los, tal qual
fizeram os economistas. Mas Durkheim redefine os dois termos,
considerando se a ação tem por finalidade o próprio indivíduo ou se a
ação leva o indivíduo em direção a um coletivo, família, nação,
humanidade. Este é o critério final de diferenciação do que Durkheim
chama cada vez mais de atos interessados e desinteressados (STEINER,
2016, p. 90).

Assim se caracteriza o homo duplex: individual e coletivo (social); egoísta e altruísta.


De forma a voltar suas ações aos outros, o indivíduo em um ato de renúncia –
desinteressado – supera a condição individual e se liga à coletividade.
Essa superação da individualidade não é tanto trabalhada por Durkheim, entretanto
seu sobrinho Marcel Mauss trabalhou sobre o tema em seu ensaio sobre a dádiva: trocas
aparentemente desinteressadas, mas obrigatórias na realidade. Desta forma, o vínculo

1125
social está para além da descendência unicamente, da consanguinidade e do parentesco,
está na aliança entre o grupo.
A dádiva se constitui como o elemento que faz essa aliança. Ela é propulsora de
confiança na medida em que cria a obrigação de retribuir, operada pelo tripé da relação:
dar, receber e retribuir. As trocas como trabalhou Mauss (2003), possuem caráter
aparentemente livre e gratuito, mas que na realidade é imposto e interessado. O econômico
encontra-se, assim, embebido no social e não dotado de realidade/racionalidade exterior à
sociedade.
A troca de dádivas não se dá apenas por objetos economicamente úteis. Esta é
apenas uma etapa dos movimentos de troca. O contrato é mais geral e permanente: a
iminência da guerra é latente caso as prestações não sejam retribuídas. Na verdade, o que
se troca não é tão fundamental, mas sim o fato da troca existir. A consolidação e reprodução
dessas práticas envolvem muito mais que apenas as coisas trocadas, a relação de aliança, o
vínculo é o principal a ser tratado aqui.
E nas sociedades ditas modernas, embora nos pareça estranho, não é diferente.
Embora o desenvolvimento do mundo moderno, a expansão do capitalismo e do dinheiro
enquanto moeda universal de troca, além de toda a transformação pela qual este sistema
passou – apresentada por Polanyi (1980) – as trocas como expressas por Mauss ainda fazem
parte de nossa vida. É exatamente confrontando os economistas que pensam que o
utilitarismo superou essas formas de escambo, que Mauss escreve o Ensaio sobre a dádiva
contestando os economistas da época. Polanyi (1980) também tece suas críticas nesse
sentido: o dinheiro não possui utilidade em si mesmo, não é um bem trocado por outro
bem, ele é uma forma instrumental de se materializar o “crédito” e de se efetuar as trocas.
Portanto, as trocas garantem a existência da solidariedade e se abastecem no mercado
moderno: é nele que adquirimos produtos para trocar com pessoas e reforçar os vínculos.
É no mercado moderno que nos abastecemos dos ingredientes a serem trocados e,
portanto, impulsionamo-lo (NICOLAS, 2002).
Como nos mostra Godbout (2002), nas trocas de presentes em eventos
comemorativos – dia dos pais, das mães, das crianças, dos namorados, aniversários, natal,
etc. – podemos perceber a troca reforçada. O ato parece unívoco, imprevisto, mas é de
fato obrigatório e perpetuado pelas maneiras de oferecer o presente, o jogo do segredo, o
cerimonial de recepção. Essa é a forma de relação de aliança que resplandece no seio de
relacionamentos duradouros (FLORIANO, 2016). E esta troca não se resume a bens

1126
trocados nestas datas específicas, como citado, mas a própria troca de palavras, gestos,
atitudes se consolida como uma troca per se no âmbito destas relações.
A reciprocidade, por sua vez, é uma característica do dom que aparece como um
dos elementos centrais no texto de Mauss (2003). E ela existe, de fato, mesmo que não seja
materializada em algum bem, ou imediata. Um sentimento de gratidão, uma palavra,
representa a reciprocidade no ciclo de trocas. Mas a existência da retribuição não funda a
troca pela reciprocidade (LANNA, 2005). Textos como o de Mauss mais constatam a
existência da reciprocidade que se indagam sobre sua importância no sistema. Dar também
implica em perder. O que caracteriza a troca é a dívida e não a reciprocidade
(GODBOUT, 2002). As trocas são, essencialmente, unilaterais.
Por conseguinte, podemos concluir que não existe simetria nas trocas. Se um bem
pode ser trocado por um agradecimento, as coisas trocadas não são simétricas. Mesmo que
duas coisas sejam trocadas, elas não são a mesma coisa e nem possuem o mesmo
significado e o mesmo valor para quem dá e quem recebe. Isso se agrava pelo fato de que
doar algo à alguém é doar algo de si, ou seja, não há como recebermos algo de nós mesmos.
Assim, não há simetria no que é trocado, nem no valor do que é trocado, nem mesmo na
posição dos trocadores. A troca passa a ser entendida como dádiva-dívida, então. Sendo
que cada movimento unilateral funda (ou não) movimentos em sentido contrário ou em
diversos outros sentidos, o que a caracteriza como desequilibrada, também. Desequilíbrio
e assimetria são, desse modo, elementos constitutivos das trocas (LANNA, 2005).

Essa “naturalização” da vontade de dar juntamente das características


supracitadas, coloca em cheque o privilégio paradigmático que a escolha
racional enquanto preferência baseada na otimização, maximização das
utilidades e minimização dos custos, nos propõe. Privilégio
paradigmático este, consolidado pelos processos econômicos de
exacerbação das trocas utilitárias e consequente desenvolvimento do
mundo moderno, fazendo com que todos outros paradigmas que não
esse, aparentem ser estranhos e devam ser provados. Por esse prisma,
apenas o interesse nos seria natural e não teria necessidade de ser
aprendido. Entretanto, ver a humanidade como simples reprodutora de
normas sociais interiorizadas, a moral do dever, é algo de que o
paradigma do dom também se distancia (FLORIANO, 2016, p. 36).

Na visão economicista as trocas são vistas como apenas meios para satisfação de
interesses pessoais – guiadas pela escolha racional – e a visão sociológica percebe o homem
como reprodutor de normas sociais. As trocas de dádivas, entretanto, são, como dissemos,
o elo entre o individual e o coletivo e entre coletividades. São promotoras de solidariedade

1127
e moralidade. São constitutivas do tecido social enquanto um elemento externo à existência
de cada indivíduo exclusivamente ao mesmo tempo que são exteriores a cada um, também,
como nos bem ensinou Durkheim.
Para começarmos a afunilar nossa discussão e fazer reflexões sobre o PBF à luz do
que estamos tratando, tenhamos também em mente o que nos ensina Philippe Steiner
(2016) sobre os dons organizacionais. Em sociedades modernas, as pessoas praticam suas
doações à distância, por intermédio de organizações e associações e mesmo assim não
deixamos de estar imersos na atmosfera do dom (MAUSS, 2003). Estas organizações se
ancoram nos mais diversos direitos: comercial, industrial, social. Desse modo, além da
criação dos vínculos, o dom na modernidade toma características de dotar de estruturas
organizacionais e/ou institucionais para proteção das pessoas, ou seja, “fornecer proteção
a grupos ou pessoas potencialmente ameaçadas pelo funcionamento do mercado ou pelos
caprichos da vida.” (STEINER, 2016, p. 98). Assim caracteriza-se o que o autor chama de
dom organizacional.
A diferença entre o dom organizacional e o dom mecânico, é que os dons
mecânicos são dados em ligações pessoais, ao passo que os organizacionais são
intermediados por associações, instituições ou organizações, como vimos. Para tanto, o
dom organizacional (orgânico) precisa de uma estrutura organizacional. Ao refletir sobre
tal afirmação de Steiner (2016), é possível que pensemos de imediato no PBF: embora a
Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) seja ancorada na Constituição de 88 e anterior
à criação do PBF, o programa se caracteriza como um propulsor e ampliador da política
de assistência social no Brasil. Assim, como já apontamos anteriormente, o programa pode
ser pensado como o eixo central dessa política que acabou por gerar uma vasta estrutura
organizacional no país: toda a política de assistência social agora é ancorada no Sistema
Único de Assistência Social (SUAS), nos CRAS, além de todas as informações, plataformas
digitais, pessoal especializado, ou seja, todo capital cultural e humano de que o país agora
dispõe.
Toda essa estrutura é a estrutura organizacional do PBF e por ele em grande
medida incendiada. Os CRAS, por excelência, se configuram como a organização central
intermediária na relação de troca entre o Estado, de um lado, e os beneficiários, de outro
lado. Aqui olhamos para uma parte do Estado e beneficiários enquanto um recorte da
relação entre Estado e sociedade, na medida em que a troca é elemento fundador da
relação entre estes dois elementos, até porque o Estado é uma parte da sociedade e porque
ele possui prerrogativa de tributar e é o centralizador de prestações (LANNA, 2005), ou

1128
seja, tendo a reciprocidade seu fundamento na dívida, o que diferencia o Estado da
sociedade é que ele se caracteriza como um ponto privilegiado para as trocas. Mas até
mesmo pelas características da troca – assimetria, desequilíbrio, dívida – as coisas trocadas
não serão as mesmas, nem no mesmo tempo, nem na mesma direção, nem simétricas,
necessariamente.
Nesse sentido, olhando para o PBF, o momento unidirecionado inicial se dá
quando a sociedade paga seus impostos ao Estado; em seguida, o Estado retribui com
serviços de educação, saúde, assistência social, etc.

(...) Dentro do PBF, analisando seu desenho institucional, podemos


perceber isso de forma mais clara: os tributos de toda a população
fundam a relação; a provisão de serviços educacionais, de saúde e
socioassistenciais continuam a troca; os beneficiários então recebem uma
quantia de dinheiro para melhorar suas condições de consumo e
sobrevivência e, em retribuição, devem seguir algumas exigências;
consomem produtos – com impostos indiretos – e pagam impostos
diretos; a relação então continua (FLORIANO, 2016, p. 38).

A partir disso, podemos refletir sobre as diversas diferenças e assimetrias que


existem nesse ciclo de trocas. De início, a posição social, hierárquica e geográfica entre os
trocadores é demasiadamente distinta. Os beneficiários ocupam regiões periféricas das
cidades e estados e ocupam posição muito diferente dos membros do Estado. O CRAS é,
ao mesmo tempo, organização intermediária da relação e uma das coisas que é trocada, na
medida em que é um órgão do Estado, dispõe de estrutura física, material tecnológico,
atendimento psicológico, pessoal qualificado; e intermédia o benefício da população com
o Estado – lembrando que o CRAS não tem autonomia para decidir quem receberá ou
não o benefício.
Além disso, existem muitas coisas diferentes envolvidas na troca: dinheiro,
professores, escolas, materiais escolares, médicos, hospitais, vacinas, remédios, prédios,
instituições, palavras, informações, etc. As próprias pessoas também se doam nessas trocas,
elas se oferecem ao cumprirem as condicionalidades freqüentando os postos de saúde e
oferecem até mesmo seus filhos fazendo-os freqüentarem as escolas. O pagamento
constante do benefício e o cumprimento constante das condicionalidades atenuam a marca
da dívida, que vai sempre sendo reproduzida em ambos os sentidos. Ela é a marca
institucional desta relação de troca. A partir da citação abaixo abriremos breve parênteses
para elucidar um pouco mais a questão.

1129
Como se pode observar nas entrevistas, a assimetria necessária para a
relação dádiva-troca não se inicia quando o governo transfere renda para
a conta da pessoa que participa do PBF. Na visão de boa parte dos
entrevistados, o primeiro a dar é o próprio participante, através do
imposto gerado pelo consumo. O dinheiro arrecadado pelos impostos
de todos, inclusive dos mais pobres, instaura o ciclo de dons e
contradons do Programa (PIRES, 2013, p. 188).

Em consonância com as percepções que aqui se delineiam aproximando o PBF


dos movimentos de troca-dádiva, a citação acima remonta a um dos quatro itens expostos
por André Pires (2013) que exprimem os elementos constitutivos básicos que nos
confirmam, além dos expostos, a natureza do PBF enquanto um sistema de troca-dádiva.
O item acima citado é o que Pires (2013) chama de “dar, receber e retribuir”. Utilizando-
se da célebre expressão utilizada por Mauss (2003) para tratar das trocas, o que Pires visa
elucidar com este título é o fato de que há reciprocidade na troca do PBF ainda que ela
seja assimétrica – como vimos, ela deve ser assimétrica para garantir que os movimentos
de trocas continuem a se reproduzir.
Um segundo elemento por ele destacado e que foi percebido também em nosso
trabalho de campo exposto na primeira sessão deste texto é o “decoro no uso do dinheiro”.
O dinheiro do PBF é visto de uma maneira diferente do dinheiro advindo de outras fontes,
ele carrega uma forte carga moral, comprovada pela forma correta e incorreta de se utilizar
esta renda. Sendo a forma correta, a utilização com os filhos, com seus vestuários, materiais
escolares, alimentação, em seguida, com bens para o lar, caso sobre algum dinheiro. E a
forma incorreta é com usos pessoais, com bebidas, cigarros, etc. O dinheiro é sempre
destinado aos filhos, segundo as entrevistadas.
O terceiro elemento, não na mesma ordem expressa por Pires (2013), é o fato de
as trocas não se darem entre individualidades. O que isso quer dizer é que as trocas são
efetuadas por grupos, sendo que nas famílias, as mulheres (mães) são as representantes do
grupo familiar e em nome dele é que fazem as trocas com o Estado – são representantes
de suas coletividades. O que isso evidencia, como buscamos mostrar anteriormente, é o
elemento coletivo, o componente social nas palavras de Pires (2013), das trocas.
Um último item apontado por Pires (2013) como elemento que nos permite as
aproximações que aqui delineamos, é “a produção de compromissos”. Participar do PBF,
segundo o autor, implica aceitar um compromisso, afirmar um contrato. Seguir as
condicionalidades afirma o compromisso dos beneficiários para com o contrato assumido,
ao passo que o pagamento do benefício pelo Estado, afirma o compromisso por sua parte

1130
– embora possamos, e devamos, questionar que a melhoria dos sistemas educacionais e de
saúde, bem como as punições aos entes federados que descumprissem com boas
qualidades em seus serviços, devessem ser também contrapartidas do Estado nesse
contrato. Assim, o cumprimento das condicionalidades e o pagamento dos benefícios se
configuram como a produção de compromissos expressa por Pires (2013).
Fechando parênteses e continuando nosso raciocínio anterior, o econômico é
embebido no social e não só os antropólogos afirmam isto. Polanyi (1980) muito bem
descreveu toda a transformação do capitalismo na passagem do século XIX até que
culminou em avanço de forças conservadoras, como o fascismo. Desse modo, o autor nos
deixa claro que a criação da economia de mercado, sobretudo através da separação cada
vez mais radical entre econômico x social, foi a responsável por grande parte de todo esse
processo. Portanto, o Estado enquanto um eixo central na sociedade é também um eixo
central no movimento de trocas, uma vez que a chave para todo esse processo é a
redistribuição. Ao Estado compete tributar a sociedade e redistribuir bens, serviços,
palavras das mais variadas maneiras. Centralidade é a palavra, por excelência, que
caracteriza a redistribuição para este autor e, também, para nós.
Podemos começar a conectar redistribuição e reciprocidade. A redistribuição é o
que cria o sistema econômico, ao passo que a reciprocidade557 o reproduz, se pensarmos à
luz de Lanna (1996). Não há redistribuição sem reciprocidade, as duas cosias se implicam
mutuamente de modo que, para existir um elemento, deve necessariamente existir o outro.
Assim, a redistribuição se materializa como o elemento central e definitivo que concretiza
a existência da reciprocidade no Programa Bolsa Família.

Em um pano de fundo amplo, a exigência de se retribuir ao Estado algo


distinto do que se recebe, funda novos circuitos de troca generalizada:
no limite, o que se recebe é o benefício, mas, para recebê-lo, as crianças
e adolescentes devem ter frequência mínima na escola e, assim, o
Estado deve oferecer as escolas, os professores, diretores, luz elétrica,
água, etc. Do mesmo modo, acontece com a questão da saúde: os
beneficiários devem acompanhar a saúde das crianças, manterem-se
vacinados, cuidar das gestantes e dos bebês enquanto o Estado deve
dispor de hospitais, postos de saúde, médicos, enfermeiras,
medicamentos, etc. Ou seja, existe a troca generalizada que é o Bolsa
Família e que funda outros circuitos de troca generalizada, que também
devem ser recíprocos, com todas as implicações que essas formas de
redistribuição e “reciprocidade hierárquica” acarretam (FLORIANO,
2016, p. 40-41).

O sistema “Multidoor Courthouse”, em uma tradução para o português, se refere a um Tribunal de várias
557

portas, em que o sistema utilizado vai além da “porta” tradicional, a qual seria o Poder Judiciário, indo para
alternativas, também denominadas de multiportas.
1131
CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Programa Bolsa Família é uma política de transferência de renda condicionada


não contributiva que resulta da unificação de outras políticas que vinham sendo
implementadas à sua véspera. O programa tem como objetivo a erradicação da fome e o
alívio imediato da pobreza e, para tanto, transfere quantias variáveis de renda às famílias
consideradas como pobres e/ou extremamente pobres de acordo com sua composição. De
modo que possam receber seus benefícios sem problemas, os beneficiários devem cumprir
condicionalidades específicas relacionadas à saúde e à educação, sobretudo.
Assim, beneficiando um quarto da população brasileira, o PBF pode ser visto como
uma política de desenvolvimento social na medida em que garante condições mínimas de
sobrevivência à população mais vulnerável. Pelo fato de o programa transferir renda à estas
famílias e incluir as necessidades – como alimentação – em um âmbito legal, o programa
também se concretiza enquanto uma forma de ampliação de direitos sociais, mesmo que a
qualidade dos serviços públicos ainda precisem avançar.
O Estado então se caracteriza enquanto o centralizador dos recursos na medida em
que possui a prerrogativa de tributar a sociedade. Portanto, redistribui serviços, palavras,
bens, renda – como no PBF – e continua por reproduzir o movimento de troca –
necessariamente assimétrico de modo que garanta a perpetuação das trocas – que funda o
social, tendo o econômico e o político suas raízes neste primeiro, afinal estas esferas não
estão desvinculadas uma da outra. Redistribuição implica em reciprocidade e vice-versa:
este é o vaivém da sociedade, o fundamento do social, do econômico, do político e,
portanto, do Bolsa Família.

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1134
AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA PARA A
CONCRETIZAÇÃO DA DEMOCRACIA

Mariana Lima MENEGAZ558

Alexandre Walmott BORGES559

Resumo: O presente trabalho possui o escopo de analisar as políticas públicas de acesso à justiça
para que a democracia seja efetivada, principalmente após a Resolução 125/10 do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ), a Lei nº 13.140/15 (Lei da Mediação) e o Código de Processo Civil
(CPC/2015). O acesso à justiça é direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXV, da Constituição
Federal de 1988 e, atualmente, também pode ser garantido através da utilização dos métodos
alternativos de resolução de conflitos, que envolve mecanismos autocompositivos, como a
mediação e a conciliação, e o heterocompositivo, como a arbitragem. O acesso à justiça
proporciona ampla possibilidade para que os indivíduos tenham seus direitos defendidos, porém,
em contraposição, fomenta a cultura do litígio, que está presente na sociedade. O cenário atual do
poder judiciário é de significativa morosidade no trâmite dos processos, o que influencia
diretamente no acesso à justiça, haja vista que se inicia uma demanda judiciária sem previsão de
lapso temporal para sua conclusão. Ademais, a utilização dos métodos adequados de resolução de
conflitos possibilita o empoderamento das partes e os consequentes diálogos sobre seus litígios,
conseguindo resolvê-los da melhor forma possível, principalmente, pois os próprios envolvidos são
as pessoas ideais para solucionarem suas lides. O método utilizado é o dogmático-jurídico,
analisando o Direito por meio de pesquisas bibliográficas, consultando artigos, doutrinas e
jurisprudências. Desse modo, objetiva-se comprovar que é necessário maior ênfase aos métodos
consensuais de resolução de conflitos para que o acesso à justiça seja efetivamente garantido, com
efetividade nas decisões e celeridade processual. Conclui-se, portanto, que o artigo não possui a
finalidade de esgotar completamente o tema abordado, mas sim trazer questionamentos e analises
acerca do direito fundamental de acesso à justiça e das políticas públicas empregadas para a
concretização da democracia.

Palavras-chave: Acesso à justiça. Conciliação. Democracia. Mediação. Métodos Alternativos de


Resolução de Conflitos.

INTRODUÇÃO

É natural que as relações humanas sejam permeadas de conflitos, alguns que


possuem lapso temporal curto, outros com períodos maiores e que demoram a serem
finalizados. A interação entre as pessoas, jeitos diferentes de pensar, de agir e de reagir,
aliados à baixa intolerância existente, geram pontos de tensões que se não forem bem
resolvidos, resultam em conflitos em grande escala.
Dentre todos os conflitos existentes, vários são levados para a apreciação do Poder
Judiciário, por entenderem ser um local de proteção de direitos, em que um terceiro
imparcial designado para análise da lide, decidirá sobre as questões dispostas. Além disso,

558
Mestranda em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Paulo. Email: lillian.lino@hotmail.com.
559
Realizada em1º de Julho de 2015, a PEC 171/93 teve 303 votos a favor, 184 contra e 3 abstenções.

1135
é direito de todo cidadão que qualquer lesão ou ameaça a direito protegido pelo
ordenamento jurídico deve ser amparado pode Poder Judiciário, conforme disposto no
artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 (CF/88).
A Magna Carta de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, dispõe de várias
alternativas para que todo conflito seja solucionado, como a possibilidade de recorrer ao
judiciário, conforme citado acima, além da criação das Defensorias Públicas (artigo 134,
CF/88), que atuam em prol dos hipossuficientes e dos vulneráveis, inclusive com apoio
jurídico a eles. Ademais, há também a garantia de justiça gratuita para aqueles que não
possuem condições econômicas para arcar com os custos do processo (artigo 5º, LXXIV,
CF/88).
Desse modo, é possível vislumbrar que o ordenamento jurídico concede algumas
opções para que o acesso à justiça seja garantido. Entretanto, é notório que há alguns ajustes
que devem ser realizados para que esse direito seja efetivo, que ocorra em tempo hábil e
que seja adequada para aquela determinada questão.
A cultura do litígio e da produção de sentença em massa, que está presente nos
indivíduos atualmente, é o reflexo de uma sociedade que não sabe dialogar com os outros
e que apenas quer trabalhar com o binômio “ganha-perde”, sendo que enquanto uma parte
esteja ganhando e a outra perdendo, isso é considerado o correto.
Desse modo, foram desenvolvidas alternativas para que os direitos das pessoas
sejam preservados e assim, o acesso à justiça fique resguardado para aqueles casos
específicos em que a atuação do Poder Judiciário é considerada como necessária e
imprescindível. As alternativas que são objetos deste trabalho são: a mediação e a
conciliação, que podem ser consideradas como políticas públicas, sendo aplicadas em
vários âmbitos, como o comunitário, escolar, familiar, restaurativo, entre outros.
Assim, o escopo deste trabalho é analisar as políticas públicas no tocante à
mediação e a conciliação, para que o direito ao acesso à justiça seja preservado e efetivado,
consolidando não apenas uma garantia prescrita na Constituição Federal de 1988, mas
também realizando uma mudança de cultura, haja vista que a aplicação dos Métodos
Alternativos de Resolução de Conflitos, em especial a mediação e conciliação, promove
uma mudança de cultura, facilitando o diálogo entre as partes e fomentando o
empoderamento das mesmas, para que elas tenham consciência de que estão capacitadas
para resolverem seus conflitos.
Partindo desse pressuposto, o trabalho iniciará abordando o direito de acesso à
justiça, previsto na Magna Carta, com todos os detalhes, inclusive trazendo à baila alguns

1136
fatores que dificultam com que esse direito seja efetivado. Posteriormente, serão abordados
algumas alternativas às políticas públicas já utilizadas para a garantia do acesso à justiça,
principalmente sobre a utilização da mediação e da conciliação como possíveis
mecanismos adequados para que direitos fundamentais sejam preservados.
Nesse sentido, faz-se importante caracterizar cada método em separado,
evidenciando quais são suas características principais, suas diferenças e os motivos para que
eles sejam utilizados, destacando em quais situações eles são adequados de utilizar.
Por fim serão apontadas conclusões acerca do tema em analise, sendo relevante
destacar quais as melhorias trazidas para a sociedade em razão da aplicação das técnicas e
quais os caminhos que devem ser percorridos para que os Métodos Alternativos de
Resolução de Conflitos sejam abordados como políticas públicas para assegurar o acesso à
justiça, direito tão importante previsto no ordenamento jurídico.
Para tanto, serão analisadas vastas bibliográficas a respeito do tema, tanto brasileiras
como estrangeiras, incluindo também leis e resoluções. No tocante aos mecanismos
alternativos serão consultados livros e artigos de estudiosos a respeito da mediação e da
conciliação, como Fernanda Tartuce, William Ury, Marshall B. Rosenberg, Kazuo
Watanabe, entre outros.
Ressalta-se apenas que o presente trabalho não possui o escopo de esgotar todo o
tema de políticas públicas alternativas para a concretização do acesso à justiça, mas sim
servir como fonte de reflexão e aprofundamento em um assunto recente no meio
acadêmico, e também na prática, que deve ser bastante estudado e difundido para sua
adequada aplicação.

O DIREITO DE ACESSO À JUSTIÇA

A Constituição Federal de 1988, também chamada de Constituição Cidadã, possui


caráter mais humanitário, abordando direitos fundamentais e inerentes ao ser humano, que
antes eram negados e não cumpridos pelos aplicadores do direito. Ademais, a preocupação
com a garantia dos direitos humanos passou a ser cada vez maior, sendo difundida por
todo o mundo, evidenciado a sua importância e necessidade.
Entretanto, antes mesmo da Constituição Federal de 1988 (CF/88), outros
ordenamentos jurídicos mundiais abordavam direitos que posteriormente seriam
positivados nas leis brasileiras, como o direito ao acesso à justiça, que é vislumbrado na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, do no de 1948, que em seu artigo 8ª

1137
disciplina o acesso à justiça, determinando que: “Toda pessoa tem direito a receber dos
tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos
fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou lei.”
Ademais, a Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamado de
Pacto de São José da Costa Rica, do ano de 1969, aborda o acesso à justiça em seus artigos
8º e 25, sendo que este último determina que:

1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer


outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a
proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos
pela constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal
violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de
suas funções oficiais.

Desse modo, evidencia-se que os direitos humanos e a preocupação com que eles
sejam cumpridos são anteriores à própria Constituição Federal, encontrando respaldo em
ordenamentos estrangeiros.
Dentre os direitos que estão garantidos tanto na Convenção Americana de Direitos
Humanos, como no Pacto de São José da Costa Rica, como na Magna Carta de 1988, está
o direito de acesso à justiça, positivado no artigo 5º, XXXV (CF/88) (BRASILe, 2017).
Segundo este artigo: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que
comprovarem insuficiência de recursos.”. Assim, está assegurado que até mesmo a ameaça
de lesão a qualquer direito que seja juridicamente protegido pelo ordenamento jurídico
poderá ser amparada pelo Poder Judiciário, haja vista que este deve ser provocado pelas
partes para só então estar autorizado a agir no caso concreto.
Alguns outros fatores auxiliam para que o acesso à justiça seja efetivo e abranja a
maior parte de pessoas, como a possibilidade de concessão de justiça gratuita, em alguns
casos. Este direito está disciplinado também no artigo 5º, LXXIV, da CF/88, que estipula
que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem
insuficiência de recursos”.
Ademais, outro grande incentivo efetivo para o aumento do acesso à justiça é a
criação das Defensorias Públicas por todo o território brasileiro. Tais órgãos estão
disciplinados no artigo 134, da Magna Carta:

A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função


jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento

1138
do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a
promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e
extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e
gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta
Constituição Federal.

Assim, é evidente que a atuação das Defensorias Públicas aos hipossuficientes e aos
vulneráveis é imprescindível para a concretização do acesso à justiça (DALLEFI; FUNES,
2008).
Entretanto, há alguns obstáculos a serem analisados e ultrapassados para que esse
direito seja efetivo.
Entre eles, há o obstáculo no tocante ao aspecto econômico. Ainda que haja a
justiça gratuita (artigo 5º, LXXIV, CF/88) e a atuação das Defensorias Públicas, auxiliando
aqueles que não possuem recursos econômicos para arcar com os gastos processuais, a
grande desigualdade econômica vivenciada no Brasil é preocupante. O sistema vigente
atualmente, além do fomento da globalização mundial, corroborado com corrupções nos
cofres públicos, acarreta a evidente crise, que faz com que os hipossuficientes fiquem ainda
mais distantes do tão sonhado acesso à justiça.
Várias pessoas que residem em bairros mais afastados dos centros das cidades não
possuem condição econômica para chegarem até as Defensorias Públicas, os Fóruns, para
terem orientações jurídicas, ou mesmo para irem até alguma audiência, quando designada.
Além disso, o aspecto psicológico também possui relevante influência quando
abordado o tema de obstáculo ao acesso à justiça, haja vista que a demora em solucionar
conflitos, a insegurança da decisão final, que pode ser positiva ou negativa, dependendo do
ponto de vista. Há ainda o estereótipo de “parte”, “autor” e “réu”, faz com que algumas
pessoas sintam receio de recorrer ao Poder Judiciário, ainda que seja para pedirem o
auxílio para dirimir alguma questão.
Soma-se o fato de que várias pessoas sequer possuem o conhecimento de seus
direitos. Algumas não sabem que possuem direitos básicos, como o de concessão de
benefícios previdenciários, aposentadoria, medicamentos, entre outros. Porém, há alguns
que conhecem seus direitos, mas não sabem qual a forma para garanti-los, evidenciando a
falta de orientação jurídica para todos.
Assim, ressalta-se a importância da aplicação do acesso à justiça de forma
horizontal, alcançando todos os indivíduos, independente das diferenças existentes na
sociedade, o que reflete na necessidade de políticas públicas para disseminar informações
e conhecimentos acerca de direitos e deveres de todos (CAPPELETI; GARTH, 1988, p.

1139
12).

ALTERNATIVAS À CRISE DO PODER JUDICIÁRIO: OS MECANISMOS DE


SOLUÇÃO DE CONFLITOS

Em decorrência do amplo acesso ao Poder Judiciário, várias são as demandas


propostas pelas partes, resultando em grande aumento de processos em trâmite em todas
as instâncias, que são iniciados sem previsão temporal de término. Corroborado a isso está
o aumento da cultura do litígio, que instiga as partes para que briguem ao invés de
dialogarem, e que deleguem o poder de decisão a um terceiro imparcial, sendo o
magistrado determinado para aquele caso concreto.
Ressalta-se que o Poder Judiciário está vivendo uma crise atualmente de processos
em quantidade acima do que pode suportar o que reflete em vários aspectos, como em
audiências que são designadas em datas muito distantes daquelas em que os processos são
iniciados, prejudicando algumas provas e as próprias partes, que permanecem sem saber
qual será a solução final, por longo período.
Sabe-se que, em média, para cada dez novas demandas propostas no Poder
Judiciário, apenas três são solucionadas e, além disso, há mais de noventa e três milhões
de processos que estão pendentes de resolução (BRASILb, 2016, p. 13).
Outros dados do Conselho Nacional de Justiça, de 2017 sobre o ano de 2016,
mostram (BRASILd, 2017, p. 36) que Justiça Estadual, há 19. 787.004 (dezenove milhões,
setecentos e oitenta e sete mil e quatro) casos novos, sendo que na Justiça Federal há
3.801.911 (três milhões, oitocentos e um mil, novecentos e onze) demandas novas. Já na
Justiça do Trabalho há 4. 262. 444 (quatro milhões, duzentos e sessenta e dois mil,
quatrocentos e quarenta e quatro) novos casos, o que significa que há um grande número
de casos novos, sendo iniciados para apreciação do Poder Judiciário, sendo que grande
parte desses computados, não possuem nem mesmo um prazo mínimo para serem
finalizados.
Desse modo, faz-se necessário pensar em alternativas para além do Poder
Judiciário, ou também chamadas de “Multiportas”.
A decisão judicial proferida pelo magistrado é apenas um das alternativas para
solucionar conflitos, sendo considerada a opção tradicional e mais comum no Brasil,
porém, isso está sendo modificado.
Há vários dispositivos no ordenamento jurídico brasileiro que dispõe acera dos
novos mecanismos de resolução de conflitos, como o Novo Código de Processo Civil de

1140
2015 (BRASIL, 2015), a Lei de Mediação (Lei nº 13. 140/15), a Resolução do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) nº 125/10, além das Leis nº 9.307/96 e 13.129/15, referentes à
Arbitragem (BRASILa, 2015; BRASILc, 2010; BRASILf, 2015; BRASILg, 1996;
BRASILh, 2015).
Ademais, em outros países tais métodos já estão sendo utilizados, como nos Estados
Unidos da América (EUA), que desde a década de 1970 utilizam o sistema denominado
“Multidoor Courthouse”560 (BRASILb, 2016, p. 40), aplicando os institutos e as devidas
técnicas para a solução de conflitos e o consequente empoderamento das partes.
Nesse sentido, no Brasil também são utilizados tais mecanismos, sendo que a
conciliação é utilizada há mais tempo e a mediação é mais recente, porém, ambos ainda
encontram resistência das partes quando aplicados para solucionar conflitos profundos e
importantes, sendo um aspecto muito importante a ser desenvolvido através de políticas
públicas, para a disseminação da aplicação dos institutos abordados a seguir.

POLÍTICAS PÚBLICAS DE ACESSO À JUSTIÇA

Desde a década de 1990 os Tribunais brasileiros utilizavam práticas que


estimulavam a autocomposição das partes, através de projetos iniciais em vários âmbitos,
como a mediação escolar, a mediação comunitária, mediação vítima-ofensor, conciliação
previdenciária, entre outras.
Desse modo, com o objetivo de estabelecer novas políticas públicas que
abordassem a resolução adequada de conflitos e, consequentemente, o acesso adequado à
justiça, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução 125/10, a qual possui
o principal escopo de disseminar a cultura de pacificação social, mitigando a cultura do
litígio (BRASILb, 2016, p. 38).
Nesse sentido, verifica-se, o que é almejado é o acesso à justiça, e não simplesmente
ao judiciário, haja vista que o que importa não é apenas a solução de determinada demanda
pelo Poder Judiciário, mas sim que os indivíduos sejam incluídos em todo o sistema de
solução de conflitos (BRASILb, 2016, p. 39). Desse modo, a satisfação das partes é
considerada como escopo a ser alcançado e não apenas a coisa julgada processual.
Assim, entende-se que o acesso à justiça considera não apenas analisando o fim do
processo que foi levado a analise do sistema, mas também se aqueles envolvidos

560
Disponível em: http://www.cnbb.org.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=2264-
mensagem-da-cnbb-sobre-a-reducao-da-maioridade-penal&category_slug=notas-e-declaracoes&Itemid=252.

1141
terminaram os trâmites com o sentimento de satisfação em relação ao resultado de sua
demanda. Nota-se aqui que o que é considerado não são apenas números processuais
(quantidade de processos findados), mas também aspectos internos de cada um,
observando o sentimento que aquela experiência gerou nos envolvidos.
Atualmente, após várias modificações no ordenamento jurídico, conforme citado
anteriormente, entende-se que o sistema é considerado como pluri-processual, englobando
processos auxiliares, quais sejam os heterocompositivos, como a arbitragem, e os
autocompositivos, como a mediação e a conciliação, que são o escopo desse trabalho.
Assim, o acesso à justiça, direito fundamental e garantido pela Constituição Federal
de 1988 deve não apenas ser efetivo, mas também ser adequado, tempestivo e justo,
observando não apenas a demanda, mas todos os envolvidos. Nesse sentido, cita-se
importante trecho do Manual de Mediação (BRASILb, 2016, p. 40):

Inicialmente o movimento de acesso à justiça buscava endereçar conflitos


que ficavam sem solução em razão da falta de instrumentos processuais
efetivos ou custos elevados, voltando-se a reduzir a denominada
litigiosidade contida. Contudo, atualmente, a administração da justiça
volta-se a melhor resolver disputas afastando-se muitas vezes de fórmulas
exclusivamente positivadas e incorporando métodos interdisciplinares a
fim de atender não apenas aqueles interesses juridicamente tutelados
mas também outros que possam auxiliar na sua função de pacificação
social.

Portanto, percebe-se que há um novo olhar para o acesso à justiça, que caracteriza
o Poder Judiciário como um ambiente em que as pessoas solucionam efetivamente suas
demandas e questões, trazendo harmonia social em razão do empoderamento das partes
e da consciência de que em determinadas causas, elas mesmas serão as melhores pessoas
para decidirem seus conflitos.
Nesse contexto, novas políticas públicas devem ser criadas para implementação de
determinados mecanismos, alguns já utilizados pelos próprios Tribunais, outros a serem
criados e aperfeiçoados pelos operadores. Assim, faz-se necessário o estudo mais
aprofundado sobre cada instituto citado, sendo eles a mediação e a conciliação.

MEDIAÇÃO

A Mediação é instituto previsto em vários dispositivos do ordenamento jurídico


brasileiro, como o Código de Processo Civil de 2015, a Resolução nº 125/10, do CNJ e a

1142
Lei nº 13.140/15, porém, já era adotada por alguns Tribunais antes mesmo de sua
positivação, alguns em caráter experimental, como a mediação comunitária.
Primeiramente, a Mediação é mecanismo autocompositivo de resolução de
conflitos, em que um terceiro imparcial chamado de mediador, é convocado para auxiliar
e facilitar o diálogo entre as partes, com o objetivo de empodera-las para que elas mesmas
tenham a consciência de que são capazes de solucionarem seus conflitos.
Segundo Tartuce (2016, p. 52):

Mediação é o meio consensual de abordagem de controvérsias em que


uma pessoa isenta e devidamente capacitada atua tecnicamente para
facilitar a comunicação entre as pessoas para propiciar que elas possam,
a partir da restauração do diálogo, encontrar formas proveitosas de
lidar com as disputas.

A Mediação é um método em que o mediador aplica as técnicas para que as partes


consigam solucionar suas questões.
Habitualmente, esse método é aplicado em causas que as partes já possuem prévio
relacionamento, antes mesmo desse acontecimento que gerou o conflito, sendo que o
relacionamento e a convivência entre eles permanecerão também depois da resolução do
conflito.
O artigo 694, do Código de Processo Civil de 2015, disciplina que nas ações de
família, todos os esforços serão utilizados para que a audiência de mediação ocorra,
lembrando que deve haver uma equipe multidisciplinar para auxiliar o procedimento da
audiência.
Não apenas para ações de família o instituto da mediação pode ser utilizado. Há
várias aplicações desse mecanismo, como por exemplo, a mediação escolar, que está sendo
utilizado cada vez mais nas escolas brasileiras.
Brevemente explicando, a mediação escolar consiste no trabalho exercido pelo
mediador, em parceria com demais profissionais de outras áreas, como psicólogos,
assistentes sociais, funcionários das escolas nas quais a mediação é aplicada, além e,
principalmente, dos alunos, parte imprescindível do processo de mediação (MORGADO,
OLIVEIRA, 2009).
Destaca-se, portanto, que o instituto da mediação é utilizado em várias áreas, haja
vista que o grande escopo dela é a promoção da cultura de pacificação e do diálogo, pois
se entende que as próprias partes são capazes de resolver seus próprios litígios, sendo que
o judiciário deve ficar responsável apenas pelas demandas que são possíveis de solução

1143
através do diálogo, ou que provas importantes são difíceis de serem constituídas,
preservadas e então, precisa-se de técnicas de aplicação legal para resolver determinados
litígios.

O PAPEL DO MEDIADOR PARA EFETIVAÇÃO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS

O mediador é pessoa capacitada para aplicação da mediação. Através das técnicas


específicas, faz-se a neutralização das questões trazidas pelas partes, trabalhando a empatia
delas, a capacidade de se colocar no lugar dos outros, analisando suas condições,
possibilidades, além de técnicas para reforçar e aplicar a escuta ativa, para que as partes
entendam que devem não apenas escutar o que o outro está falando, mas ouvir
interpretando, com atenção, para absorver tudo o que o outro indivíduo está expressando.
Ademais, outras técnicas serão utilizadas pelo mediador, como a comunicação não-
violenta (CNV). Rosenberg (2006, p. 21) afirma sobre o tema:

(..) identifiquei uma abordagem específica da comunicação – falar e ouvir


– que nos leva a nos entregarmos de coração, ligando-nos a nós mesmos
e aos outros de maneira tal que permite que nossa compaixão natural
floresça. Denomino essa abordagem como Comunicação Não-Violenta,
usando o termo “não-violência” na mesma acepção que lhe atribuía
Gandhi – referindo-se a nosso estado compassivo natural quando a
violência houver se afastado do coração.

Assim, em consequência, a essência das técnicas é transmitida para as partes ali


presentes, o que reflete nas relações dessas pessoas com terceiros que não participam da
audiência.
Nesse sentido, percebe-se a importância de uma boa formação do mediador, para
que ele saiba aplicar todas as técnicas passadas para ele. Assim, é notória a necessidade de
cursos para formação de mediador conforme os ditames do Conselho Nacional de Justiça,
na Resolução 125/10, que exige tanto a parte teórica do curso, como também a parte
prática, supervisionada por profissional capacitado.
Apenas um mediador corretamente formado e treinado para a aplicação das
técnicas definidas é que poderá exercer corretamente a política pública de aplicação dos
mecanismos adequados de resolução de conflitos, transmitindo para as partes o real
significado da mediação, fazendo com que elas entendam que ninguém melhor do que elas
próprias para solucionarem alguns conflitos (URY, 2003).

1144
CONCILIAÇÃO

A Conciliação é outro mecanismo de resolução de conflitos que é alternativo ao


processo judiciário tradicional. Assim como a mediação, é instrumento autocompositivo
de solucionar questões trazidas pelas partes.
Há algumas características em comum com a Mediação, porém, outras são
diferentes, como as ressaltadas a seguir.
Em contraposição à Mediação, a Conciliação é utilizada para casos em que as partes
não se conheçam previamente, desse modo, entende-se que é um instituto aplicado para
questões específicas, como acidentes de carro, em que as partes se relacionam apenas
naquele momento, sendo que muitas das vezes nunca se encontraram, e não pretendem
continuar a se relacionar após a solução do caso concreto, na maioria dos casos.
Ainda que a conciliação seja um instituto com algumas diferenças em relação à
mediação, é notório que ambos lidam com o conflito da mesma forma: entendendo que é
algo positivo, que quando bem trabalhado, pode gerar excelentes frutos e reflexos para
toda a sociedade.
Conforme abordado anteriormente, os indivíduos se relacionam e trocam
experiências, desse modo, é natural que surjam conflitos e que questões conflitantes façam
parte do cotidiano da sociedade.
Ressalta-se, portanto, a importância deste trabalho e da prática efetiva das políticas
públicas de acesso à justiça, incluindo no âmbito dos mecanismos alternativos de resolução
de conflitos, sendo que apenas quando forem considerados adequados é que eles serão
aplicados nas situações concretas.

O CONCILIADOR E SUA ATUAÇÃO NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE


MECANISMOS ALTERNATIVOS

Assim como existem diferenças entre a Mediação e a Conciliação, é notório que


também existem diferenças quanto ao papel do mediador e do conciliador.
No tocante ao conciliador, faz-se necessário destacar que, ao contrário do
mediador, ele pode sugerir algumas alternativas para solucionar as questões trazidas. Assim,
além de facilitar o diálogo, ele aplicará as técnicas descritas acima, como a empatia, escuta
ativa, normalização, solidariedade, para que as partes se sintam confortáveis em pensar de
modo criativo em novas soluções e também que possam aceitar sugestões apontadas pelo
conciliador.

1145
Haja vista que a mediação e a conciliação são ambos institutos autocompositivos,
em que pretendem uma real mudança de cultura em toda a sociedade, é imprescindível
que a intenção do ganho mútuo esteja presente nas audiências primeiramente, para que
depois elas possam levar os ensinamentos e as práticas para além dos fóruns e das câmaras
privadas, disseminando as técnicas e aplicando em suas vidas pessoais.
Nesse sentido, Ury afirma que (URY, 2015, p. 110):

Receamos que, se colaborarmos, não haverá o suficiente para atender às


nossas necessidades ou seremos explorados pelo outro lado. É bastante
tentador nos concentrarmos apenas na conquista de resultados para nós
mesmos em vez de na criação de valor para os outros e para nós. No
entanto, por mais difíceis que as pessoas às vezes sejam, a oportunidade
de mudar o jogo para ganha-ganha-ganha está em nossas mãos.

Assim, é notório que a mudança começa no interior em cada indivíduo, para que
perceba a importância que é ser empoderado e ter em suas escolhas e em seu diálogo a
maneira mais poderosa e impactante de resolver todos os conflitos que se encontra. Porém,
sem nunca esquecer que o poder judiciário sempre estará disposto a recepcionar e
solucionar os conflitos que não sejam passíveis de conciliar ou mediar.

CONCLUSÃO

O presente trabalho abordou o tema referente às políticas públicas para o efetivo


acesso à justiça e assim a democracia. É notório que as relações interpessoais estão ficando
cada vez mais estritas, com o aumento da globalização, juntamente com o sistema e o
avanço da tecnologia, que aproxima as pessoas e diminui distâncias, os conflitos acabam
surgindo em decorrência dos laços afetivos permanecerem mais aprofundados.
Desse modo, o conflito deve ser encarado como algo natural de todo
relacionamento, que faz com que ocorra o crescimento interno de cada pessoa, haja vista
que as questões sempre existirão, em decorrência de criações diversas, pensamentos
diferentes, gostos opostos, opiniões conflitantes. Assim, o que é necessário é a modificação
da forma de encarar os litígios existentes.
Toda a situação citada anteriormente reflete também no poder judiciário que
encontra-se abarrotado de processo, sendo que a maioria deles não possui ao menos um
prazo mínimo para que haja uma solução definitiva e nem mesmo uma média temporal
para que a execução da sentença seja finalizada.

1146
A cultura de litígio existente na sociedade deve ser modificada e mecanismos são
criados e adaptados para a realidade brasileira, conforme vislumbrado neste artigo.
Conforme abordado, o acesso à justiça é direito de todos os cidadãos e está
positivado no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal de 1988, também chamada de
Constituição Cidadã. Esta trouxe vários avanços no aspecto legal acerca dos direitos
humanos, que corrobora com o disposto em outros diplomas legais, inclusive estrangeiros,
que garante o amplo acesso e a proteção dos indivíduos pelo poder judiciário, como a
Convenção Americana de Direitos Humanos, também chamada de Pacto de São José da
Costa Rica, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
No presente artigo, primeiramente foram abordados aspectos relacionados ao
amplo acesso à justiça, sendo que a própria Constituição Federal de 1988 elencou alguns
novos aspectos para que esse direito fosse efetivado, como a criação das Defensorias
Públicas, criadas para auxiliar e amparar os hipossuficientes e vulneráveis (artigo 134,
CF/88), além também da possibilidade de utilização pelos indivíduos do benefício de
justiça gratuita (art. 5º, LXXIV, CF/88) aplicado àqueles que não possuem condições
financeiras para o acesso à justiça.
Após, foram elencados alguns obstáculos à efetivação do acesso à justiça, como
empecilhos psicológicos, referentes aos estereótipos relacionados com os indivíduos serem
“partes” de um processo judicial, além de aspectos econômicos, como a dificuldade em
indivíduos hipossuficientes financeiramente em acessarem locais como as Defensorias
Públicas e os Fóruns, que normalmente estão localizados geograficamente nos centros
urbanos.
Além disso, ainda foi destacada a necessidade de políticas públicas, haja vista que
muitas pessoas não possuem acesso à informação sobre seus direitos ou, em alguns casos,
possuem o conhecimento, porém, não sabem os mecanismos para garanti-los, ainda que
direitos básicos, como saúde, medicamentos, aposentadoria e benefícios previdenciários.
Posteriormente, foram abordados aspectos referentes às políticas públicas de acesso
à justiça, para assegurar a ampla democracia, que envolviam os novos métodos alternativos
e adequados de resolução de conflitos, como a mediação e a conciliação.
Nesse sentido, a princípio, o instituto da mediação foi detalhado, como sendo um
mecanismo autocompositivos de resolução de conflito, em que as partes são empoderadas
para que elas mesmas tenham consciência de que são capazes de solucionarem seus
próprios conflitos.
O trabalho exercido pelo mediador deve ser cauteloso através da utilização de

1147
técnicas determinadas, como a empatia, a escuta ativa, a normalização, para que as partes,
que normalmente chegam às audiências polarizadas e querendo apenas o seu êxito na
causa, comecem a pensar e a criar soluções alternativas que sejam não mais no aspecto
“ganha-perde”, mas sim no “ganha-ganha”.
Ademais, foram indicados aspectos a serem seguidos pelos mediadores, haja vista
que são facilitadores de diálogos, pois não podem sugerir nem indicar soluções para as
partes, devendo apenas estimular que elas conversem e consigam chegar a um acordo final.
Posteriormente, foi abordada a conciliação, citando suas características e diferenças
da mediação, destacando a relação existente entre as parte que participam desse instituto.
Nesse sentido, ainda foi elencadas algumas diferenças quanto à função do
conciliador, pois na conciliação, há a possibilidade de sugestão e indicação de alternativas
para que as partes apliquem em suas questões e seus conflitos que foram abordados nas
sessões de conciliação e que o conciliador entendeu, com a aplicação das técnicas, que
seria uma boa opção para elas.
Por fim, é importante destacar a importância das políticas públicas para a efetivação
dos métodos alternativos de resolução de conflitos, principalmente a mediação e a
conciliação, para auxiliar na garantia e no cumprimento do direito de acesso à justiça
horizontal, justo e adequado, sendo que é imprescindível que as partes tenham consciência
de que elas possuem a capacidade de dialogar e solucionar seus conflitos, sendo que o
poder judiciário auxiliará nas demandas em que a aplicação dos mecanismos alternativos
não for a mais adequada.

REFERÊNCIAS

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http://intertemas.unitoledo.br/revista/index.php/ETIC/article/viewFile/1842/1748. Acesso
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conflito em oportunidade. Exedra, Coimbra. nº 1, p. 46 – 56, jun. 2009. Disponível em:
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Rio de Janeiro: Sextante, 2015.

_________. Supere o Não: Negociando com pessoas difíceis. Trad. Regina Amarante. São
Paulo: Best Seller. 2003.

1149
FORMAÇÃO DE AGENDA CONSERVADORA NO CONGRESSO
NACIONAL: O CASO DA REDUÇÃO DA MAIORIDADE PENAL
(PEC 171/1993)

Lillian Lages LINO 561

Resumo: O objetivo desta pesquisa está em analisar e compreender o processo de formação de


agenda no caso da redução da maioridade penal. Proposta pela primeira vez em 1993, a PEC 171
que visa reduzir a idade de imputabilidade penal para 16 anos, a despeito do posicionamento
contrário do Poder Executivo, foi aprovada na Câmara dos Deputados no ano de 2015 e seguiu
para o Senado. Historicamente, o Executivo, juntamente com os líderes partidários, tem poder de
agenda. A aprovação desta PEC, no entanto, revela um novo panorama nas relações entre poderes,
uma ruptura na disciplina partidária e a proeminência do Legislativo na formação de agenda.
Aplicando o modelo teórico dos Múltiplos Fluxos, de John Kingdon, propõe-se a discutir quais os
fatores que mobilizam a agenda-setting e a correlação de forças estabelecida na atual legislatura da
Câmara dos Deputados. Visa-se explicar o resultado das votações dos deputados e a partir da
análise da tramitação da PEC 171, serão identificados os principais atores envolvidos, além de
verificados seus argumentos centrais, a atuação de grupos de interesse, as orientações das lideranças
das bancadas partidárias, o comportamento das Frentes Parlamentares, os papéis exercidos pelo
Governo Federal (contra o projeto) e pela Presidência da Casa (a favor). Também é analisado o
papel da mídia e da opinião pública na contenção e avanço desta proposta. Com estes dados,
verificaremos os elementos que , dentro de um quadro de avanço do conservadorismo,
possibilitaram a abertura da janela de oportunidades para redução da imputabilidade penal.

Palavras-chave: Congresso Nacional. Formação de agenda. Maioridade Penal. Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

Proposta pela primeira vez em 1993, a PEC 171/1993, que dispõe sobre a redução
da maioridade penal, foi aprovada nos dois turnos na Câmara dos Deputados, no ano de
2015 e seguiu para apreciação do Senado Federal. Este trabalho, que tem como escopo
aplicar a teoria dos Múltiplos Fluxos de John Kingdon (2003), propõe-se a analisar a
inserção desta proposta na agenda da Câmara dos Deputados.
Esta pesquisa se justifica por três grandes motivos. O primeiro concerne à reduzida
aplicação de modelos de formação de agenda. Ainda sob construção (BRASIL;
CAPELLA, 2015), os estudos sobre políticas públicas no Brasil são considerados recentes
como um campo acadêmico e incipiente quando comparado ao desenvolvimento de outras

561
Definição de emenda aglutinativa (BRASIL,2015) “é a que resulta da fusão de outras emendas, ou destas
com o texto, por transação tendente à aproximação dos respectivos objetos.”
Íntegra da emenda aglutinativa nº16 apresentada pelos deputados Rogério Rosso (PSD-DF) e Andre Moura
(PSC-SE) disponível
em:http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1356032&filename=EMA+1
6/2015+%3D%3E+PEC+171/1993. 1150
nações. O segundo se refere à sua importância social, longo desenvolvimento histórico e
contemporaneidade, conforme explanaremos com o histórico da proposta. Outrossim,
justifica-se pela pouca ênfase que trabalhos científicos que estudam a formação da agenda
concedem ao legislativo nacional, sendo recorrente na literatura debates sobre a agenda do
executivo e sua proeminência em pautar novas matérias.
Apesar de não declarado o regime de urgência, principalmente pelo
posicionamento favorável da Mesa da Casa, coordenada por Eduardo Cunha, a proposta
conduzida ao debate de maneira célere revela uma forte organização interna no poder
legislativo bem como o reduzido prestígio do Executivo em conseguir conter seu avanço.
Ao analisar as votações nominais de que participaram os membros da CD entre
1989 e 1994, Limongi e Figueiredo (1999) verificaram que, em média, 89,4% do plenário
vota de acordo com a orientação do seu líder, taxa considerada suficiente para predizer
93,7% das votações nominais.
Estes dados encaminham para duas considerações. Em primeiro lugar, a PEC
171/1993, considerando o posicionamento contrário do Executivo, destaca-se por ter
avançado até a aprovação 22 anos após sua primeira proposição. Isso indica um
deslocamento do protagonismo do Executivo em iniciar legislações e a redução no poder
de controle sobre a agenda.
Em segundo lugar, a despeito dos dados empíricos que versam sobre a análise das
votações nominais, a PEC 171/1993 revelou uma ruptura na disciplina partidária, que
surgiu em um período do poder Executivo fraco e com poucas possibilidades de barganha.
O histórico da PEC ilustra que as votações tiveram mudanças de votos, rompimento de
coalizões e quebra da disciplina partidária, elementos não muito recorrentes no Legislativo
nacional (CHEIBUB et al, 2003).
Em primeiro turno, a PEC 171/93 foi rejeitada.562 Grupos contra e a favor da
medida, disputaram espaço para entrar nas galerias. A UNE (União Nacional dos
Estudantes), a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) e a União da
Juventude Socialista (UJS) pressionaram com faixas e gritos de “não, não à redução”,

562
Definição presente no glossário da Câmara dos Deputados: Recurso utilizado pelos parlamentares, em
uma Casa legislativa, com o objetivo de impedir o prosseguimento dos trabalhos e ganhar tempo dentro de
uma ação política. Os mecanismos mais utilizados são os pronunciamentos, pedidos de adiamento da
discussão e da votação e saída do Plenário para evitar quorum. Disponível no link:
http://www2.camara.leg.br/glossario/o.html . Acesso em 01 de fevereiro de 2017.
1151
enquanto que atores da Frente Parlamentar de Segurança Pública agiram em defesa da
temática. Em nota563, a CNBB posicionou-se contra a medida.
Cerca de 24 horas depois, por meio da emenda aglutinativa nº16564,o presidente
Eduardo Cunha (PMDB/RJ), colocou novamente o texto em votação em primeiro turno
que foi, então, aprovado com 323 votos favoráveis e 155 contrários. Partidos como o PSOL
(Partido Socialismo e Liberdade), que fez uso da obstrução565 no segundo dia de votação
do primeiro turno, argumentaram que a emenda aglutinativa só poderia ser colocada em
votação caso a emenda principal tivesse sido aprovada. Sem dar publicidade ao ato,
movimentos sociais não desempenharam o mesmo papel que na noite anterior e os poucos
estudantes que estavam presentes, foram proibidos de entrar. A PEC foi aprovada em
segundo turno e aguarda deliberação do Senado Federal.
Este trabalho está dividido em 3 frentes. Na primeira discute-se o fluxo de
problemas, que é composto por três grandes blocos que atuam independentemente, mas
que reunidos sustentam uma temática na agenda, são eles: indicadores, feedback de
programas existentes e o advento de algum evento ou símbolo que provoque comoção
nacional (focusing event).
Nesta pesquisa, identificamos dois eventos focais. O primeiro566 é o caso do menor
no Rio de Janeiro, responsável por suscitar a temática e agregar, via mídia de massa, a policy
image da impunidade a menores infratores. O segundo é o estupro coletivo que ocorreu
567

no Piauí, em 2015, que alimentou o problema de crimes hediondos serem praticados por
jovens. Argumentamos que esses foram os símbolos necessários para que os tomadores de
decisão encaminhassem a PEC 171/1993 para votação, culminando no feedback do ECA.
Na segunda frente, adentrando o campo das soluções e alternativas, realizamos
buscas nos sites da Câmara dos Deputados e do Senado. Iluminamos a centralidade do
conceito de Policy Primeval Soup, utilizado por Kingdon, para elucidar as ideias que
surgem gradualmente no segundo fluxo. A PEC que visava a redução da maioridade penal
esteve nesse caldo por 22 anos até ser encaminhada para agenda e durante esse período,

563
Caso disponível no link: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,rapaz-e-agredido-e-acorrentado-nu-a-
poste-no-rio,1126304 .Acesso em 28 de Agosto de 2017.
564
Caso disponível no link: http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2015/06/justica-ouve-suspeito-de-ser-o-
mentor-de-estupro-coletivo-no-piaui.html . Acesso em 28 de Agosto de 2017.
565
Conceito utilizado por Kingdon (2003).
566
Pesquisa disponível em:
http://arquivos.portaldaindustria.com.br/app/cni_estatistica_2/2016/07/01/31/Pesquisa_CNI-
IBOPE_Avaliacao_do_Governo_Setembro2015.pdf 1152
Acesso em: 19 de Julho de 2016.
567
Partidos que compunham o “Blocão”: PDT, PSC, PP, Pros, PMDB, PTB, PR e Solidariedade.
apenas em 4 anos (1998, 2006, 2008 e 2014) não houve movimentação na Câmara dos
Deputados, o que reforça o incrementalismo na proposição de alternativas.
O fluxo político caminha independente dos demais, sendo extremamente forte para
promoção de mudanças na agenda e central para análise da PEC 171/1993. Na terceira
frente, analisamos os atores principais envolvidos (agenda-setters), as mudanças na
administração e o humor nacional conservador (national mood). Estes elementos
possibilitaram a aprovação desta proposta na Câmara menos de 6 meses após a eleição do
Deputado Eduardo Cunha para presidência, considerado ator central para aprovação desta
PEC.
Para compreender o equilíbrio de forças (balance of forces)568 estabelecido na atual
legislatura da Câmara dos Deputados, realizamos uma análise quantitativa do primeiro e
do segundo dia de votação em primeiro turno da PEC na Câmara dos Deputados.
Construímos um mapa das votações da PEC 171/1993 visando analisar a correlação de
forças no Congresso Nacional, considerando o voto dos parlamentares, segundo a filiação
partidária, a composição das Frentes Parlamentares e o pertencimento à base do governo
e de apoio ao Presidente da Casa. O escopo esteve em compreender quais os fatores
necessários e suficientes para a formação de grupos de coalizão que encaminhassem a
temática da redução da maioridade penal da agenda governamental para decisória.
Em determinadas situações, quando um problema é reconhecido, uma alternativa
está disponível e o fluxo político é favorável para mudança, os fluxos confluem e abre-se
uma janela de oportunidades (policy window), que será contemplada na conclusão.
Destacamos que a janela de oportunidades, que se abre quando há um problema
convincente ou por questões políticas, responsável por conduzir esse tema pra agenda está
baseada em três pontos principais: 1.A baixa popularidade do Executivo: 69% da
população considerava o governo de Dilma Rousseff ruim ou péssimo, conforme pesquisa
Ibope divulgada em setembro/2015569. 2. A fragmentação parlamentar - após a reeleição,
Rousseff contabilizou sua coligação com 304 deputados eleitos, configurando maioria
simples na Câmara. Para aprovação de PECs, faz-se necessário o número mínimo de 308
deputados. No decorrer do seu mandato, foi perdendo apoio e muitos dos que a ajudaram
a se reeleger, votaram a favor do seu impeachment. 3.A ascensão do conservadorismo na

568
Partidos que compõem o “Centrão”:PP, PR, PSD, PRB, PSC, PTB, Solidariedade, PHS, Pros, PSL, PTN,
PEN e PTdoB.
569
Disponíveis em :http://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_deputados?idProposicao=14493
.Acesso em 04 de dezembro de 2016.
1153
Câmara dos Deputados – com a formação dos blocos informais “Blocão570” e depois do
“Centrão571”, reforço das bancadas ruralista e da segurança pública, além do fortalecimento
da Frente Parlamentar Evangélica que, maior a cada nova legislatura, ganhou centralidade
com a presidência de Eduardo Cunha exercida na Casa, além de outras temáticas
conservadoras que teriam sido responsáveis por liderar o avanço e aprovação da PEC
171/1993.
Com a aplicação da teoria dos Múltiplos Fluxos para análise da PEC 171/1993, os
resultados desta pesquisa demonstram que a emergência de dois focusing events, um para
suscitar a questão e o outro para catalisar a temática, serviram como símbolos apropriados
pela mídia que disseminou a policy image da impunidade, criada na CD, para a opinião
pública. Os tomadores de decisão se apropriaram desse diálogo, retiraram a proposta de
redução da maioridade penal do caldo e concentraram-se em encontrar o equilíbrio de
forças. Com fortes quedas na popularidade de Dilma, reunidas com intensa fragmentação
parlamentar e a emergência da CD mais conservadora desde 1985, tornou-se possível a
aprovação da PEC da redução da maioridade penal 22 anos após sua primeira proposição.

FLUXO DE PROBLEMAS

Kingdon (2003) exalta a diferença entre uma condição e um problema. As


condições se tornam questões quando os formuladores de políticas interpretam e
acreditam que deveriam tomar alguma atitude em relação a determinado assunto. A
transição é realizada por meio da análise de valores, realização de comparações e
estabelecimento de categorias. Enquanto não há essa interpretação, a temática não é
visualizada como um problema e permanece como uma situação (condition).
Essa mudança na interpretação, também absorvida na teoria de Kingdon (2003),
depende do que Baumgartner e Jones (1993) denominaram policy image. A imagem
política representa as idéias que perpassam a concepção de um problema e tem dois
componentes centrais: informações empíricas e apelos emotivos (tone) (CAPELLA, 2006)
ou, em outra denominação, está atrelada a números e símbolos (STONE, 1997).

570
Disponível em :http://www2.camara.leg.br/atividade-
legislativa/plenario/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/internet/votacao/mostraVotacao.a
sp?ideVotacao=6437&tipo=partido .Acessoem 04 de dezembro de 2016.
571
Na mídia impressa, a revista Veja e os jornais Estadão e Folha de São Paulo foram contemplados. Na mídia
digital, o portal de notícia R7 e G1. Na mídia televisiva, os programas Brasil Urgente, Cidade Alerta, Jornal
da Band, Jornal Nacional e Jornal do SBT.
1154
Segundo Kingdon (2003), para que uma condição se torne um problema, três
frentes devem ser levadas em consideração: indicadores, feedbacks de problemas já
existentes e crises, símbolos ou focusing events. Discutiremos cada uma dessas frentes no
que concerne ao nosso estudo de caso.

INDICADORES

Segundo Kingdon (2003), é bastante frequente que indicadores chamem a atenção


dos tomadores de decisão por ser algo sistemático e indicar que realmente existe uma
questão que demanda alguma ação. Capella (2004) expõe os indicadores como ferramentas
que possibilitam a conversão de um assunto em uma questão. No entanto, esses dados não
são utilizados primariamente e, considerando a centralidade que as idéias exercem no
modelo dos Múltiplos Fluxos, os indicadores per si não são um problema.
Neste item, realizamos análise de discursos dos parlamentares de 1º de Fevereiro
até o dia 1º de julho de 2015 (data da segunda votação em primeiro turno)572, reunindo-se
um montante de 271 falas. De acordo com a orientação partidária, 20 legendas deveriam
votar pelo ‘sim’573. Desta forma, analisamos o discurso dos parlamentares que compõem
essas legendas e que seguiram a orientação de seus partidos, visando encontrar o que
motivou esse posicionamento e com o objetivo de localizar o que os tomadores de decisão
consideraram questões latentes que demandavam ação.
No que concerne à interpretação de indicadores, as falas dos parlamentares trazem
três problemas centrais a serem solucionados com a redução da maioridade penal: a
violência, a impunidade e o quantitativo dos crimes hediondos praticados por menores
infratores.
Buscamos diversas fontes, como o Mapa da Violência de 2015 e o Anuário de
Segurança Pública, e apesar dos discursos enfáticos sobre o aumento da violência no último
ano e a sensação de insegurança crescente, essas taxas aumentaram progressivamente de
1980 a 2003 e depois se mantiveram sem grandes variações. Nesse período de aumento
constante dos índices de violência, os tomadores de decisão não haviam interpretado esses
dados como um problema, permanecera como condição.

572
Disponíveis em: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=14493.
Acesso em 19 de Julho de 2016.
573
Definição de acordo com glossário da Câmara: “Comissão temporária criada para analisar e votar proposta
de emenda à constituição (PEC), projeto de código e propostas que envolvam matéria de competência de
mais de três comissões de mérito.”
1155
A impunidade também não se confirmou com os dados extraídos de relatório do
SINASE e Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2015), que afirmou o aumento de
443% adolescentes cumprindo medidas socioeducativas, no período de 1996 a 2013. Mais
do que autor de atos infracionais, o jovem é vítima. Além disso, identificar o jovem como
o personagem que mais pratica crimes hediondos, vai na contramão do que a realidade
traz. Os atos infracionais mais cometidos são: roubo, tráfico e homicídio (SINASE, 2013).
Apesar dos discursos reforçarem o aumento da violência, do não aprisionamento,
de questionar a aplicação da internação, de duvidarem dos números relacionados aos
crimes hediondos e sustentarem a imagem da impunidade em relação a menores infratores,
os dados ofereceram outra realidade. O que se verificou com os indicadores, portanto, é
que os tomadores de decisão se apropriaram dos dados sobre a violência e das taxas de
homicídios cometidos por menores infratores para atingir a magnitude da temática e
iluminar um problema desta maneira interpretado.

FEEDBACK DA APLICAÇÃO DO ECA

No caso da redução da maioridade penal, os eventos dramáticos do linchamento


do menor no Rio de Janeiro e o do estupro coletivo no Piauí levaram ao feedback da
implementação do ECA, 25 anos após sua proposição. Destacamos o canal informal
presente na reclamação e no estudo de caso, responsável por propiciar a revisão do
Estatuto que visa o atendimento para crianças e adolescentes. Esses eventos anteciparam e
auxiliaram na condução para avaliação dos tomadores em duas frentes: a infraestrutura do
ECA, relacionando-a ao tempo de internação, e a comparação da imputabilidade penal no
Brasil com outros países, atrelando-a à impunidade.
O problema na infraestrutura está presente em diversas frentes. Das unidades de
internação visitadas pelo MP em 2014, no universo de 21.823 adolescentes cumprindo
medida socioeducativa, 6.672 estavam internados provisoriamente. Rompendo as Regras
Mínimas das Nações Unidas para a Proteção de Jovens Privados de Liberdade e o que está
previsto no ECA, no ano de 2014, dentre as unidades visitadas, 55,2% das unidades de
internação não separavam os presos provisórios dos definitivos.
O segundo eixo norteado pelo feedback do ECA, revela que é recorrente a
confusão, e os discursos e os meios de comunicação trouxeram isso à tona, entre a Idade
Mínima de Responsabilidade Penal –IMRP e Idade da Maioridade Penal- IMP, pautando-
se a impunidade. A primeira, prevista no ECA,é de 12 anos e é entendida como a idade

1156
na qual a criança ou o adolescente é considerado penalmente responsável por seus atos
infracionais. O jovem em conflito com a lei, que tem a IMRP, é atendido pelo sistema
juvenil. A segunda, a IMP, no Brasil, é definida aos 18 anos e configura a idade a partir da
qual o adulto poderá responder penalmente caso em conflito com a lei. Os países com
maior IMRP tendem a ter os maiores tetos de idade para IMP, o que estende o nível de
proteção para os jovens (HAZEL, 2008).
Os discursos analisados revelaram que os jovens não são apenas encarcerados,
como também são vítimas da precariedade, que sustenta altos níveis de presos provisórios.
Além disso, a falta de clareza nos debates sobre a distinção entre a IMRP e IMP é evidente.
A fala parlamentar agiu no sentido de buscar soluções para o que foi interpretado como
um problema e sustentou argumentos não condizentes com a realidade e estudos
empíricos.

FOCUSING EVENT, CRISE OU SÍMBOLO

Segundo Kingdon, alguns itens potenciais para adentrarem a agenda ficam na


retaguarda pela falta de uma crise, símbolo ou evento que propulsione a questão para a
atenção dos tomadores de decisão.
Nesta pesquisa identificamos dois eventos que possibilitaram a proposição e o
avanço da proposta de redução da maioridade penal: o linchamento de um menor no
Flamengo (RJ), em 2014, e o estupro coletivo no Piauí, em 2015. O primeiro evento teria
sido responsável por, ao concentrar a atenção neste assunto, encaminhar a temática para a
agenda governamental, enquanto que o estupro coletivo teria catalisado a aprovação para
agenda decisória.
O caso no Flamengo foi o primeiro passo para conduzir a atenção dos congressistas
para dados sobre a violência e adolescentes em conflito com a lei e principalmente, para a
análise da implementação da política pública do ECA, permitindo a percepção preexistente
do problema. O segundo passo para conduzir a temática, restringindo-a aos crimes
hediondos, foi o estupro coletivo no Piauí.
A pesquisa pelos eventos dessa dissertação ocorreu de duas maneiras. Analisamos
os discursos dos deputados federais no que concerne à redução da maioridade penal e
identificamos que, dentre os crimes mencionados, o estupro coletivo no Piauí foi o mais
recorrente e que o linchamento no Rio foi debatido em plenário no mesmo dia que
ocorreu.

1157
Além disso, pesquisamos casos que envolvessem menores nos grandes meios de
comunicação574 no intervalo temporal de Janeiro de 2014 a Setembro de 2015 por
compreender o período anterior e posterior às votações da PEC na Câmara. Acessando o
portal de buscas de cada um dos veículos de informação, o recorte foi realizado utilizando-
se as seguintes palavras-chave: maioridade penal, menor infrator, ato infracional, PEC,
171/1993, Câmara dos Deputados.
Para Kingdon, o papel da mídia não estaria em criar novas temáticas, mas em pinçar
ideias provenientes da burocracia ou congresso ou ainda de algum movimento que nasceu
na sociedade e catalisá-los. Desta maneira, “[...] o modelo assegura aos meios de
comunicação um papel importante, principalmente na circulação das ideias dentro das
policy communities” (CAPELLA, 2006, p. 10).
No caso da redução da maioridade penal, a mídia agiu de duas maneiras.
Primeiramente, no caso do linchamento, ela não foi responsável em propor a temática mas
por moldar a imagem política da impunidade. Neste evento, ela pinçou a temática dos
debates na Câmara e alimentou essa imagem associada a menores infratores. Em segundo
lugar, os meios de comunicação participaram ativamente no recorte da redução da
maioridade penal apenas para os crimes hediondos e alimentaram a opinião pública.
Então, os tomadores de decisão, utilizando vastamente como argumento o apoio da
sociedade brasileira, apropriaram-se desse debate e redirecionaram os diálogos.
Destarte, neste terceiro eixo de problemas, almejou-se destacar que o linchamento
no Rio de Janeiro, ao suscitar a imagem política da impunidade, atuou como primeiro
símbolo para que os tomadores de decisão buscassem dados quantitativos e falhas nos
programas implementados para justificarem a aprovação da maioridade penal. Em 2015,
principalmente devido à ação midiática, foi o caso do estupro coletivo no Piauí que
conduziu a restrição da maioridade penal para crimes hediondos aos tomadores de
decisão.

FLUXO DE ALTERNATIVAS E SOLUÇÕES

Este fluxo envolve um processo gradual de acúmulo de conhecimento e


perspectivas produzidas principalmente por grupos de especialistas. Para identificá-los,
seria necessário a análise das atas das audiências. No entanto, apesar de aprovadas, não

574
Disponível em : http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/SEGURANCA/485735-21-DOS-27-
DEPUTADOS-DA-COMISSAO-ESPECIAL-DEFENDEM-REDUCAO-DA-MAIORIDADE-
PENAL.html . Acesso em 12 de Fevereiro de 2017.
1158
consta no site da CD a ata de nenhuma das audiências públicas solicitadas e aprovadas, o
que impossibilitou esse mapeamento. Caminhamos, então, para pesquisa documental,
analisando atas, fruto das reuniões deliberativas, bem como anais das sessões legislativas575,
identificando os principais atores no debate do tema na Câmara.
Na comunidade das políticas públicas, muitas ideias são consideradas e são
possíveis. Todos esses elementos ficam no que Kingdon denomina policy primeval soup.O
conceito de um caldo no qual os elementos flutuem reflete a pouca importância que
Kingdon designa para a origem das ideias. Longe de ser um sistema racional de tomada de
decisões, o caldo assemelha-se ao processo biológico de seleção natural no qual os critérios
para sobrevivência geralmente envolvem viabilidade técnica e custos toleráveis, além da
receptividade do público e dos tomadores de decisão.
Mais importante do que descobrir a origem, é compreender as mutações e
recombinações que permitem que uma ideia se sustente. O caldo muda não apenas pela
presença de novos elementos mas, principalmente, pela recombinação dos previamente
existentes. O que está em pauta, portanto, é como a questão é percebida. A indicação da
proeminência de um assunto na agenda não é a sua fonte, mas o clima no governo e sua
receptividade.
Com vistas a compreender a importância de onde as ideias se originam, realizamos
duas buscas de propostas de emenda à Constituição no site da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal. Na primeira pesquisa, utilizamos como palavras-chave ‘maioridade
penal’. No site da Câmara, foram localizadas 22 propostas e no site do Senado, 10. Na
segunda busca pelo filtro de ‘imputabilidade penal’, localizamos 33 PECs listadas no site
da Câmara e 19 no do Senado.
No caso da redução da maioridade penal, a origem da proposta na Câmara foi
central para seu avanço e aprovação, frente aos arranjos políticos que se formaram na nova
legislatura, eleição de Cunha para presidência e altas quedas de popularidade da ex-
presidenta Dilma, além de fraqueza na relação entre Executivo e Legislativo.
É possível que estivessem disponíveis alternativas durante esses 22 anos. Ao
verificarmos o altíssimo número de propostas envolvem a redução da maioridade penal e,
com pouco diálogo entre si, identificamos que a comunidade de especialistas é altamente
fragmentada. O discurso não unânime em torno da proposta dificultou seu avanço e

575
Partidos que declararam apoio a Cunha: ( PP, PTB, DEM, PRB, SD, PSC, PHS, PTN, PMN, PRP, PEN,
PSDC e PRTB.

1159
suscitou instabilidade, elementos que teriam bloqueado sua ascensão nos anos anteriores
a 2015.
Reunidos a esses elementos, em 2015, destacamos maior receptividade dos
tomadores de decisão da Câmara dos Deputados em encaminharem a temática. Para
analisarmos esse panorama na 55ª legislatura, identificamos os principais atores que
atuaram no âmbito das comissões.
O Brasil sustenta alta proeminência do Executivo nas comissões, que detém pouco
poder para encaminhar novas frentes (Pereira e Muller,2000). Arthur Lira (PP/AL),
candidato único no processo, sob protesto de 12 deputados que votaram em branco, foi
eleito presidente da CCJC. Ainda que, oficialmente, essa seja uma posição atingida por
votação, na prática, o que se verifica é a determinação pelo líder do partido (Pereira e
Mueller, 2000).
Recebida a proposição 171/1993, Lira concedeu a relatoria a Luiz Couto (PT). É
previsto no regimento interno o prazo de 5 sessões para que a CCJC se pronuncie sobre a
admissibilidade da matéria mas, no caso da PEC 171/1993, bastaram 4 sessões para que o
parecer de Luiz Couto pela inadmissibilidade fosse rejeitado e que o de Marcos Rogério
(PDT) fosse aprovado.
Aprovada na CCJC, a matéria foi encaminhada para a Comissão Especial576 da
maioridade penal, criada por Eduardo Cunha. Previsto no art. 33 do RICD, as comissões
temporárias têm seu quantitativo definido pelo presidente da CD por indicação dos líderes,
estabelecido no ato ou requerimento de constituição.
Eleito como presidente desta Comissão, André Moura, membro do PSC, é aliado
de Eduardo Cunha no Blocão e no Centrão e compartilha de idéias conservadoras, como
a aprovação da maioridade penal. Diferentemente da CCJC, na Comissão Especial,
conforme levantamento da Agência Câmara577, houve mais unanimidade pela aprovação da
PEC 171/1993. Antes de iniciarem as discussões, dos 27 membros, 21 aprovavam a
redução, representando 77,8%. Entre os deputados favoráveis à redução, 51,8%
defendiam apenas para crimes hediondos. Esses quantitativos indicam que, na Comissão
Especial, a produção de alternativas para os problemas previamente considerados pelos
parlamentares já estava limitada.

576
Consulte: NEUSTADT, Richard. (1960), Presidential Power: The Politics of Leadership. New
York,Wiley.
577
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política – PPGPol/UFSCar, bolsista CAPES. E-
mail: danistul@gmail.com.
1160
Frente a esse quadro, nove deputados disputavam a relatoria, cuja indicação é
prerrogativa do presidente (RICD, art.41). Assim como André Moura, Laerte Bessa,
indicado relator, também compõe a base de apoio de Cunha, estando no PR, partido
presente no Blocão e Centrão. Esse panorama é importante para a compreensão das
dificuldades dos partidos da base governista em barrarem o encaminhamento da redução
da maioridade como uma alternativa ao avanço da violência e da impunidade, ilustração
feita pela ótica conservadora.
A atividade mais intensa, cujo objetivo estava em compreender a temática da
redução e encaminhar para outras alternativas, culminou no requerimento de 67 audiências
públicas, das quais 41 foram requisitadas por deputados do PT. Maria do Rosário (PT) e
Margarida Salomão (PT) peticionaram, respectivamente, 17 e 13 requerimentos. Tendo
em vista que a presidência da Comissão quanto a relatoria estavam com parlamentares
favoráveis à redução, o PT agiu no sentido cobrar explicações sobre a temática e retardar
o seu desenvolvimento.
No âmbito das comissões, visando barrar o encaminhamento da questão, foram
identificados o maior número de requerimentos partindo de parlamentares do PT. Maria
do Rosário (30), Alessandro Molon (21), Erika Kokay (18) e Margarida Salomão (17)
realizaram requerimentos de audiência pública, questões de ordem e verificações de
votação nominal com o escopo de ampliar a gama de soluções para o que fora indicado
pelas bancadas conservadoras como um problema a ser resolvido com a redução da
maioridade penal.
Relacionamos acima alguns atores individuais que promoveram o avanço ou
bloquearam a tramitação da PEC 171/1993 e que atuaram no debate da redução como
uma alternativa possível. Tais elementos sustentam que a PEC 171/1993 propiciou, desde
seu início, a difusão de ideias. Esse processo preliminar de gestação das ideias, denominado
por Kingdon de soften up, é propiciado por advocacy policy entrepreneurs, responsáveis
por não permitir que as ideias flutuem livremente no caldo.
Os empreendedores de políticas, centrais no modelo dos Múltiplos Fluxos, são
participantes que podem estar dentro ou fora do governo em grupos de interesse, atentos
para as oportunidades de encaminhar suas propostas. Eles advogam pelas propostas ou
pela proeminência de uma ideia, investindo recursos (tempo, energia, reputação e
dinheiro), visando retorno seja para promoção de interesses pessoais, seja para promoção
de valores ou almejando afetar o modelo da política pública, por simplesmente gostarem
do jogo.

1161
O cargo de presidente da Câmara possibilita que Cunha seja um empreendedor de
políticas, pois, nesta posição, conjuntamente com o colégio de líderes, é responsável por
organizar a pauta e conferir celeridade ao processo. Exercendo o quarto mandato
consecutivo como Deputado Federal pelo PMDB, Cunha teve o apoio declarado de 13
partidos578 na sua eleição para presidência da casa.
Eleito em 1º de Fevereiro para presidência, a PEC foi desarquivada 5 dias depois,
quando o prazo para que a proposição seja desarquivada é de 180 dias contados da
primeira sessão legislativa (RICD, art. 105). Seguiu para a CCJ e comissão especial em
março. Em abril foi divulgada a primeira pesquisa Datafolha sobre a aprovação em torno
da redução da maioridade penal, que reforçou o consentimento do público de massa em
torno desta questão.
Os também integrantes do Centrão (PR, PSD, Pros, PSL, e PTdoB), grupo que
nasceu e cresceu sob a liderança de Cunha, expõem as altas habilidades de diálogo e
negociação deste empreendedor de políticas. Sua eleição à presidência, sustentada
pelas bancadas ruralista, evangélica e da segurança pública propiciou o investimento de
recursos em prol da aprovação da PEC 171, conforme será analisado no fluxo político.
Isso significa que mais do que impor uma derrota política, o interesse de Cunha estava na
matéria, não considerando seu conteúdo isoladamente mas para fortalecer as bancadas que
o sustentaram.
Outro elemento importante é a expansão da temática para além da comunidade de
políticas públicas. Em entrevista à revista Veja em 11 de fevereiro de 2015, o já eleito
presidente da Câmara declarou apoio à redução da maioridade penal. Essa declaração logo
no início do seu mandato como presidente elucida a persistência em promover a questão,
que já estava no caldo.
Dentre os congressistas que atuaram no debate nas Comissões, identificamos dois
empreendedores de políticas: Maria do Rosário e Marcos Rogério. A deputada federal
pelo PT foi a que mais, dentre todos os parlamentares, atuou contra o avanço da redução,
não permitindo que as ideias flutuassem livremente no caldo. Seguindo o que Kingdon
define como empreendedor de políticas, Maria do Rosário investiu tempo, energia e
reputação nas Comissões que participou e realizou trabalhos preliminarmente, no período

578
Agradeço ao DATAPOL pelo banco de dados de PECs; à Prof. Anna Cândida Ferraz da Cunha, pelo
material e pela leitura; à Lis Barreto, pela leitura e críticas construtivas. Qualquer erro remanescente é de
responsabilidade do autor.
1162
de gestação da ideia. Promovendo o encaminhamento de ideias, foi persistente e buscava
levar a temática para o debate com a sociedade civil.
Marcos Rogério também se destacou pela forte atuação na CCJC, investindo
diversos recursos, fomentando discursos e debates no processo de softening up. O
deputado federal fez pronunciamentos e encaminhamentos na Comissão, elaborou
parecer contrário do proposto por Luiz Couto e, por meio de conexões políticas e
habilidade nas negociações, teve seu parecer como o vencedor.
Destacamos, por fim, a atuação da mídia de massa na proposição de alternativas.
Apesar de na pesquisa de Kingdon a mídia pertencer ao grupo de atores visíveis e estar
mais atrelada à formação de agenda, identificamos nesta pesquisa que a mídia teve forte
desenvolvimento na proposição de alternativas, principalmente com o advento do segundo
evento focal.
Além de um importante ator visível, na análise da PEC 171, os meios de
comunicação podem ser considerados um empreendedor de políticas. Conforme visto no
fluxo de problemas, a veiculação de atos infracionais cometidos por menores foi
recorrente, criando-se o processo de soften up. Os canais midiáticos atuaram no sentido
de promover o direcionamento para a penalização de jovens envolvidos com crimes
hediondos como uma solução plausível para o problema de violência. Não obstante, foram
responsáveis por disseminar a temática para a opinião pública.
Neste contexto, o fluxo de alternativas revelou que o círculo para atuação do
Executivo, tradicionalmente exercida no âmbito das comissões, foi se fechando.
Recorrentemente avaliadas como fracas, as comissões seguiram o posicionamento do
presidente da Mesa. Considerando a proporcionalidade, os maiores partidos ganharam
espaço na comissão especial e elegeram o presidente que conduziria a PEC 171 ao
Plenário.

FLUXO POLÍTICO

Para compreender o papel de cada participante interno ao governo, cabe considerar


a relação entre o Executivo e Legislativo, com base em duas correntes. A primeira,
dominada pela literatura internacional (MAINWARING, 1998; LAMOUNIER;
MENEGUELLO, 1986; SARTORI,1983; SHUGART; CAREY,1992), sustenta que
Executivo e Legislativo, por serem detentores de interesses próprios, são confrontacionistas
(DINIZ, 2005). Freitas (2008) sintetiza esse entendimento como uma agenda dual, ou seja,

1163
a compreensão de que a vitória de um poder implica na derrota do outro, constituindo um
jogo de soma zero. Com esses elementos, haveria pouco sucesso de implementação de
projetos do governo.
Na contramão desses argumentos, a segunda corrente é nacional e fornece
elementos empíricos para sustentar que há um elevado grau de cooperação do Legislativo
com o Executivo e que o presidencialismo não é responsável por romper a disciplina
partidária. A Perspectiva Centrada no Sistema Político579 rompe o dualismo e propõe a ação
articulada entre os poderes (DINIZ, 2005). Esse rompimento não significa a ausência de
conflitos, mas uma maior interação e interesse do Executivo em criar coalizões para
encaminhar sua agenda.
Mesmo em plenário, o Congresso rejeita muito mais seus próprios projetos do que
aqueles de iniciativa do Executivo. Esse quantitativo não se justifica apenas pela
manutenção das prerrogativas previstas no texto constitucional. O próprio RICD consagrou
a centralização que favorece a atuação do Executivo no âmbito legislativo e conferiu amplos
poderes ao colégio de líderes.
O PT manteve a maior bancada no Congresso no segundo mandato. No entanto,
houve diminuição de parlamentares da base aliada e aumento da oposição e o PT teria
perdido seus aliados para seus adversários (LIMONGI, 2017). Para Mainwaring (1993), a
dificuldade dos presidentes em assegurar sustentação estável no Congresso estaria
relacionada à combinação entre um sistema partidário fragmentado e partidos
indisciplinados. Cheibub (2003), por sua vez, em análise das votações nominais no
Congresso, revela que há um nível significativo de disciplina partidária, o que está além do
esperado frente à legislação eleitoral e partidária.
Os dados empíricos coletados na análise da PEC 171 nos direcionam para a
corrente nacional. Deslocando o protagonismo, o legislativo foi muito mais atuante do que
o Executivo no nosso estudo de caso. Estando o Executivo fragmentado, houve muito mais
margem para atuação do legislativo, ao mesmo tempo em que a disciplina partidária dos
partidos atrelados ao governo se enfraqueceu.
Estudos indicam que, no Brasil, a esquerda tem um histórico de coesão muito mais
forte que a direita (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999). O caso da maioridade penal teria
apresentado um novo cenário frente a este quadro. Na nossa análise quantitativa,
identificamos apenas o PCdoB que, como um todo, votou pelo não. Em seguida, o que

579
Mestrando em Ciência Política; PPGPol/UFSCar; Bolsista CAPES; eduardoaraujocouto@gmail.com

1164
mais se aproximou foi o PT com 98,3% dos parlamentares votando contrários à PEC e 1
deputado votando favoravelmente. Limongi e Figueiredo (1999) identificaram que, em
análise realizada nos anos 1990 , na CD, a probabilidade de voto disciplinado varia de
acordo com os partidos e o PT lideraria neste quesito.
PRB, PSDC, PRTB, PMN, PRP, PEN e PT do B foram extremamente coesos e
seus parlamentarem votaram em bloco pela redução da maioridade penal. Destes 7
partidos, 3 são do Centrão (PRB, PT do B e PEN), o que reitera sua força política.
Tratar sobre coesão remete à orientação e fidelidade partidárias. Identificamos que
88,1% dos parlamentares seguiram a orientação do partido e votaram pelo ‘sim’, enquanto
que 77,2% , que tinham como orientação o ‘não’, votaram pelo ‘não. Esses elementos
reafirmam a importância dessa votação para que a agenda do legislativo se sustentasse, ou
seja, “A coalizão governamental vota unida nas votações verdadeiramente importantes para
o governo” (FIGUEIREDO; LIMONGI, 1999, p. 120).
A votação pela redução mostrou um interesse muito maior pelos blocos políticos
da Câmara do que pela própria base governista, que teve apenas força com o PT (98,3%),
PCdoB (100%) e PDT (73,7%). Os outros seis partidos revelaram forte rompimento com
a base: PROS (45,5%), PMDB (24,6%), PR (6,7%), PSD (6,5%), PP (5,1%) e o PRB revela
o ápice com 0% de votos pelo Não.
Uma das hipóteses desta pesquisa era que a PEC 171 havia obtido força frente ao
avanço das bancadas evangélicas, ruralista e da segurança pública. Por não ser possível
identificar nominalmente os parlamentares que compõem a última bancada, realizamos
sua exclusão do nosso banco de dados. Muito mais proeminentes que essas bancadas
temáticas, o Centrão se destacou no avanço da proposta da redução da maioridade penal.
Dos parlamentares que compõem o Centrão, 87,7% votaram pelo ‘sim’, à medida
que 53,7% dos que não são do Centrão, também votaram pelo ‘sim’. Essas porcentagens
indicam um grupo político coeso e uma divisão entre os parlamentares que não compõem
esse conjunto. Não obstante, dentre os 4 blocos analisados (Bancadas Evangélica e
Ruralista, Centrão e Blocão), este é o que demonstrou o maior qui-quadrado, na casa dos
60, com alta força de associação.
Os dados também indicam a fragilidade da base governista. No nosso banco
também identificamos 219 parlamentares que não compunham a base governista. Dentre
esses, 45 votaram pelo ‘não’, 152 pelo ‘sim’ e os demais 22 também compõem o bloco
restante. Percentualmente comparando, destacam-se os 69,4% de parlamentares que não

1165
são da base governista e votaram pelo ‘sim’ e os 34,2% dos deputados da base governista
que optaram pelo ‘não’.
O último elemento desta análise estatística é a regressão logística. Essa técnica
estatística permite predizer como um elemento X se comportará, tendo como base outras
variáveis. Com essa técnica, visamos verificar a correlação de forças na Câmara que levou
à aprovação da PEC 171 e a razão de chance do voto pela aprovação em função do
pertencimento à base do governo, às bancadas evangélica e ruralista, ao Centrão, e pela
aprovação do impeachment e da PEC 241. Esta análise multivariada permite verificar os
fatores determinantes (variáveis independentes) do voto parlamentar na PEC 171,
considerando o 2º dia de votação como variável dependente.
Para esta análise do modelo, cujo valor de r² é de 0,456, selecionamos três aspectos
do modelo: a razão de chance (exp B),a média que esse valor pode atingir e a significância.
A maior razão de chance está na PEC 241. Isso significa que o voto favorável à redução
aumentou em cerca de 14 vezes a chance do voto pela aprovação da PEC 241.
Considerando 95% a confiabilidade desse resultado, a variação para este item está entre
6,01 e 35,44.
Em seguida, considerando a razão de chance aparece o impeachment, com 11 vezes
e no intervalo de 4,81 a 25,33. Esses quantitativos indicam que o parlamentar que votou
pela aprovação da PEC 171/1993, apresentou cerca de 11 vezes mais chances de aprovar
o impeachment de Dilma.
O Centrão aparece como o terceiro maior em razão de chance. Ainda que com um
valor muito inferior ao das votações supracitadas, o de 3,64, entre os grupos políticos e
também entre os temáticos, o Centrão se destaca. As bancadas evangélica e ruralista
apresentaram quantitativos ainda menores, o que revela pouca proeminência em conduzir
a PEC 171 para aprovação.
A significância, por sua vez, nos traz a evidência empírica se um dado X é
verdadeiro, apresentada em números decrescentes de confiabilidade. Os maiores valores
estão no impeachment e na PEC 241. Ambos apresentam o quantitativo de 0,0 , ou seja,
considerado muito forte para estes dados.
O Centrão apresentou 0,1% de significância, o que demonstra que os dados são
verdadeiros e reforça que a razão de chance de 3,64 expressa quase exatamente o que
ocorre com essa população. As bancadas evangélica e ruralista, mais uma vez, se
aproximaram, conferindo destaque para a primeira.

1166
Em um governo enfraquecido e com um legislativo fortalecido, principalmente
devido à liderança de Eduardo Cunha, a bancada do governo demonstrou 0,948 de razão
de chance. Isso significa que a aprovação da PEC 171 resguardava pouca força dentro da
própria ala governista, elemento elucidado nas orientações partidárias. A significância neste
item foi o mais alto, o que indica menores evidências na correlação bancada de governo e
PEC 171.
O fluxo político, destarte, independentemente dos fluxos de problemas e
alternativas, atua segundo suas próprias regras e dinâmicas. Nesta pesquisa identificamos
que o humor nacional conservador, a eleição de Cunha como elemento de mudança na
administração, reunidos com a criação do Centrão, atuando como organização política
organizada, foram os pilares para a aprovação da PEC 171/1993 22 anos após sua
proposição.

CONCLUSÃO E A JANELA DE OPORTUNIDADES

O objetivo desta pesquisa consistiu em aplicar a teoria dos Múltiplos Fluxos de


Kingdon, no caso específico da redução da maioridade penal, visando compreender os
elementos que possibilitaram a aprovação da PEC 171/1993, na CD, 22 anos após sua
primeira proposição. Dentre os objetivos específicos, logramos identificar os principais
atores que atuaram nos três fluxos, bem como construímos um mapa das votações para
análise da correlação de forças, com o escopo de verificar o nível de fidelização à orientação
do governo, bancadas e grupos políticos.
Frente a esses objetivos, cabe identificar como ocorreu a reunião dos fluxos. As
janelas se abrem quando há um problema convincente ou por questões políticas, ou seja,
o fluxo de soluções tem reduzida importância na agenda governamental. Segundo
Kingdon, a mudança ocorre quando uma questão surge, fruto de indicadores, feedbacks
e/ou eventos focais ou quando há alterações na dinâmica política, destacando-se as
mudanças dentro do governo e no humor nacional. Desta maneira, o autor identifica duas
janelas possíveis: a de problemas e a política.
As alternativas se mostram proeminentes em conduzir uma questão para agenda
decisória. Ao interpretarem uma condição como problema, os formuladores de políticas
se mobilizam em busca de soluções. Concomitantemente, os políticos realizam articulações
nas comunidades políticas. A entrada de novos membros no Congresso, a mudança na
administração ou um novo humor nacional podem abrir uma janela.

1167
A confluência dos três fluxos, que ocorre quando a janela está aberta e que atinge
a agenda decisória, culmina no que Kingdon denominou coupling. O autor argumenta que
a conexão entre problemas e alternativas aumenta as chances de mudanças. No entanto,
exalta que a proposta cresce na agenda quando o fluxo político abre a janela e cria o tempo
exato para as mudanças.
A análise do fluxo problemas, pensando de maneira exclusiva, não permitiu a
abertura de uma janela de problemas. Os dados, relatórios e pesquisas não identificaram
uma questão pulsante a ser atrelada a uma solução no momento político certo. O que se
verificou foi o discurso dos parlamentares buscando atrelar a redução da maioridade penal
à diminuição dos índices de violência e controle da impunidade. O crime no Piauí teve
ampla repercussão no que concerne aos crimes hediondos e fomentou a policy image,
apropriada pelos tomadores de decisão, recrudescida pela mídia e dissipada para a opinião
pública.
Não havendo a abertura de uma janela de problemas, houve a abertura de uma
janela política. Identificando essa abertura, Cunha e parlamentares do Centrão buscaram a
reunião do fluxo de problemas com o de alternativas. Para análise do segundo fluxo,
realizamos pesquisa documental dos anais das sessões legislativas. Sem a publicação das
atas das audiências públicas, não foi possível mapear os especialistas que atuaram na
proposição de soluções. No entanto, na consulta das sessões, verificamos que a
comunidade de especialistas de segurança pública é altamente fragmentada, reunindo
diversas propostas que apresentam poucos pontos em comum.
Frente a essas falas desencontradas, a PEC 171/1993 ganhou forças para seguir no
ano de 2015 frente ao espectro político. No âmbito das comissões, identificamos diversos
parlamentares da base governista atuando para tentar conter o avanço da proposta,
deputados que não eram os mesmos que atuaram no Plenário ou que tiveram
proeminência nas votações. No entanto, o arranjo político já estava definido.
No fluxo político, as bancadas evangélica e ruralista demonstraram menos força do
que se supunha. Sim, as duas foram importantes para a aprovação da PEC 171. No entanto,
os grupos políticos analisados, Centrão e Blocão, mostraram-se muito mais coesos e
direcionados. A grande mudança de votos do não para o sim de um dia para o outro está
com o Centrão. Além disso, os 13 partidos que o compõem estão distribuídos em todas as
posições na CD, o que reitera sua força em movimentar diferentes orientações. O Blocão
não demonstrou o mesmo desempenho e articulação.

1168
Com constantes quedas de popularidade, a ex-presidenta Dilma não detinha força
para enfrentar a CD conduzida por Cunha e seus blocos políticos. Esse quadro ficou
evidente com 171 parlamentares da base governista votando pelo sim e 110, também da
base, votando pelo não. A PEC 171/1993, que nasceu na CD, esteve muito mais fortalecida
para seguir com o Executivo enfraquecido, conduzindo com spillover outras temáticas para
aprovação também.
A regressão logística nos permitiu identificar claramente que o grupo que apoiou o
impeachment de Dilma foi praticamente o mesmo que sustentou a redução da maioridade
penal. O levantamento indicou que os parlamentares que votaram favoravelmente pela
redução tinham cerca de 11 vezes mais chances de votar favoravelmente pelo
impedimento.
Mais alarmante que esse quantitativo, está o cenário da PEC 241. Dos
parlamentares que votaram favoravelmente à PEC 171, tinham 14 vezes mais chances de
voto favorável à PEC 241. Esse dado questiona o tempo que uma janela pode ficar aberta.
Defendemos que a janela conservadora ainda está aberta. Com início na 55ª
legislatura, é possível ainda identificar propostas que estão avançando com esse novo
quadro político que Cunha moldou. No entanto, a janela para conduzir a redução da
maioridade penal se encerrou com sua votação.
Identificamos como empreendedores desta política Cunha, o Centrão e a mídia.
Os meios de comunicação agiram no sentido de reunir soluções a problemas, ainda que
os problemas isoladamente não demandem essas soluções. A análise dos eventos focais
permitiu identificar a mídia moldando a temática para associar jovens com crimes
hediondos e a impunidade.
O Centrão , como bloco político unitário, exerceu as características de
empreendedor. Desenvolveu amplas negociações e, com 11 mudanças de voto do sim para
o não, carregou a PEC 171 para aprovação.
Cunha, por sua vez, reforçou a teoria de Kingdon, pois demonstrou que uma
mudança na administração é provavelmente a janela mais óbvia a ser aberta. No posto de
presidente da CD, este parlamentar tinha grande articulação política e deu formato ao
Blocão e ao Centrão, bloco este que permanece em atuação no Congresso. Não é possível
afirmar que Cunha tinha interesse direto na matéria, mas é possível mapear que sua intensa
atuação nesta proposta tenha ido ao encontro de mostrar rompimento com o Executivo e
independência do Legislativo. O parlamentar agiu no sentido de reunir os três fluxos e dar
celeridade para aprovação desta proposta em uma brecha na abertura da janela.

1169
A PEC 171/1993, destarte, destacou-se por ter revelado uma diminuição na
proeminência do Executivo, que tradicionalmente coordena as matérias do Legislativo e
tem seus trâmites mais acelerados. A abertura da janela política ocorreu com um novo
arranjo institucional, novos parlamentares, queda de popularidade do Executivo e forte
fragmentação parlamentar. Com humor nacional conservador, a caixa de propostas de
spillover seguiu as coordenadas de Eduardo Cunha, empreendedor político, que conduziu
a proposta de redução da maioridade penal para aprovação 22 anos após sua primeira
proposição.

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1171
O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NA
FRANÇA E NOS ESTADOS UNIDOS: PECULIARIDADES
HISTÓRICAS, RESPOSTAS INSTITUCIONAIS

Daniel STULANO 580

Resumo: Um dos importantes temas de estudos para a Teoria Política contemporânea diz respeito
à relação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, especificamente, sobre a crescente
influência do poder Judiciário sobre os demais, levantando um importante debate sobre a relação
constitucionalismo – democracia. No centro desse debate, situa-se a questão do controle de
constitucionalidade das leis, isto é, o poder concedido ao judiciário como intérprete supremo da
Constituição, o que traria um importante poder de veto sobre a legislação, e, em última instância,
sobre a soberania popular. No presente trabalho, busca-se contrapor dois influentes modelos de
controle de constitucionalidade das leis: 1) modelo estadunidense, estruturado sobre o controle
jurisdicional; 2) modelo francês, estruturado sobre um controle político, corporificado no Conselho
Constitucional. Para tanto, realiza-se um levantamento histórico buscando, na origem de tais
instituições, compreender os principais fatores que fizeram emergir, sob uma base semelhante de
ideias liberais, duas diferentes soluções para o problema da relação entre os poderes. Parte-se do
pressuposto de que os diferentes processos históricos e seus respectivos marcos institucionais
contribuíram para a existência de certa contraposição entre igualdade e liberdade e, de acordo com
a ênfase colocada sobre cada um desses ideais nos diferentes países (Estados Unidos e França),
definiu-se as diferentes formas de controle de constitucionalidade. No caso americano, destacam-
se os importantes debates realizados entre os federalistas e os anti-federalistas no contexto da
Convenção Federal, gerando importante base documental sobre problemas e proposições surgidos
à época. Além disso, ganha relevância na análise o estudo do caso Marbury x Madison, no qual o
controle jurisdicional das leis é requerido pela Suprema Corte estadunidense. Na França, no
contexto da Revolução, torna-se notável o desenvolvimento das diferentes Constituições (1791,
1793 e 1795), reflexo do processo revolucionário, em que o Judiciário mantém mero papel de
prestador de justiça comum, civil e criminal, despojando-se do controle sobre os demais poderes.
Por fim, destaca-se no presente trabalho a contribuição de Alexis de Tocqueville, autor de
brilhantes análises sobre a Revolução Francesa e sobre a democracia na América, que levanta
questões sobre o Judiciário e sua contribuição para a democracia.

Palavras-chave: Conselho Constitucional. Controle de constitucionalidade. Judicial review.

INTRODUÇÃO

O homem está, de certa forma, todo contido nos cueiros que o envolvem no
berço. Nas nações dá-se algo semelhante. Os povos padecem sempre de suas
próprias origens. As circunstância que presidiram ao nascimento e serviram ao
seu desenvolvimento influem sobre todo o resto da carreira.
Alexis de Tocqueville – A democracia na América (p. 193).

Um dos importantes temas de estudos para a Teoria Política contemporânea diz


respeito à relação entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, mais

580
A Constituição de 1891 continha 8 artigos transitórios; a de 1934, 26 artigos; e a de 1967, 16. (Ferraz, 2012)

1172
especificamente, a crescente influência do poder Judiciário sobre os demais, levantando
um importante debate sobre a relação constitucionalismo – democracia. No centro desse
debate, situa-se a questão do controle de constitucionalidade das leis, isto é, as instituições
estatais e os processos capazes de afirmar a supremacia da norma constitucional.
Dois modelos paradigmáticos se contrapõem, devido aos princípios opostos de suas
bases teóricas: o modelo estadunidense de controle jurisdicional das leis e o modelo francês
de controle político das leis. O ponto central dessa contraposição reside na delegação ou
não delegação de judicial review ao Poder Judiciário. Parte-se do pressuposto de que, para
compreender a formação de tais tradições normativas, faz-se necessário analisar as origens
de tais instituições, observado os fatos que possibilitaram o surgimento de dois modelos
opostos, sobre uma base de ideias liberais e republicanas semelhantes. Dessa forma,
realiza-se uma análise sobre o desenvolvimento de cada uma das tradições, destacando-se
contribuições bibliográficas sobre o tema.
Na primeira parte do artigo, será realiza análise sobre o controle jurisdicional de
constitucionalidade das leis, modelo paradigmático que influenciou as Constituições de
diversos países, cujo espírito encontra-se na Constituição Federal dos Estados Unidos de
1787, que atribui ao Judiciário o poder de veto sobre leis consideradas contrárias aos
princípios da Constituição Federal. Tal função, segundo Arantes (2015, p. 30) colocaria o
Judiciário “(...) em pé de igualdade com os demais poderes, exatamente naquela dimensão
mais importante do sistema político: o processo decisório de estabelecimento de normas
(...) capazes de impor comportamentos, autorizar ações de governo e gerar políticas
públicas”.
Alexis de Tocqueville (1973, p. 205), questionando-se sobre a origem desse imenso
poder político que os juízes americanos detêm, conclui que “A causa reside num só fato:
os americanos reconheceram nos juízes o direito de fundamentar seus veredictos na
Constituição mais do que nas leis".
Para compreender o processo de formação do controle jurisdicional das leis nos
Estados Unidos, faz-se necessário um levantamento histórico do período de elaboração da
Constituição americana, levando em consideração a conjuntura de pós-Independência,
visando entender quais eram as peculiaridades históricas sobre as quais foram assentadas
as soluções institucionais. Nesse estudo, destacam-se os importantes debates realizados
entre os federalistas e os anti-federalistas no contexto da Convenção Federal, gerando
importante base documental sobre problemas e proposições surgidos à época. Além disso,
ganha relevância na análise o estudo do caso Marbury x Madison, no qual o controle

1173
jurisdicional das leis é requerido pela Suprema Corte estadunidense. Considerado marco
fundacional, compreende-se a decisão da Suprema Corte dentro de um processo de
geração de nova concepção constitucional, rompendo-se com uma visão interpretativa que
privilegie o indivíduo.
Na segunda parte do trabalho, será realizada a análise sobre a tradição normativa
francesa, caracterizada como modelo político de controle das leis. Segundo Arantes (2015,
p. 31), “A primeira e mais importante diferença entre Franca e Estados Unidos”, no que
se refere à tradição normativa de controle de constitucionalidade, “(...) é que, no primeiro
caso, a plataforma liberal foi utilizada no combate à monarquia absolutista, resultando daí
o processo de esvaziamento do poder executivo e fortalecimento do corpo legislativo (...)”,
tornando-se o legítimo representante da soberania popular. A própria centralização
administrativa, ocorrida sob o Antigo Regime, em que tribunais de exceção eram utilizados
como instrumento de poder do monarca (TOQUEVILLE, 1973), contribuíram para a
geração de desconfiança perante os juízes (LUNARDI, 2011). Para melhor compreender
o processo de formação de controle político das leis, faz-se necessário analisar a Revolução
Francesa, sob a chave de combate ao absolutismo e valorização dos princípios
republicanos. O diálogo com os autores que estudam a tradição normativa francesa
integrará o corpo do texto.
Por fim, no tópico conclusivo, será realizada uma análise comparativa entre os
principais pontos contrastantes das tradições expostas.

O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NOS ESTADOS


UNIDOS

O RISCO DE FACÇÕES NO PERÍODO PÓS-INDEPENDÊNCIA E A


ELABORAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO DE 1787

O final do século XVIII, denominado pelo brilhante historiador Eric Hobsbawm


(1981) como “a era das revoluções”, tornou-se um marco para o pensamento político graças
a dois processos revolucionários – a Revolução Americana e a Revolução Francesa –, que
partilhavam uma semelhante base de ideias liberais, mas que representavam respostas
pragmáticas à problemas específicos enfrentados por suas respectivas sociedades, o que
ocasionou respostas institucionais tão diversas.
A Constituição dos Estados Unidos, elaborada na Convenção da Filadélfia
(também denominada Convenção Federal) em 1787, surge como uma resposta

1174
institucional perante as graves crises que assolavam o país no período de pós-
Independência. Até então, uma única casa legislativa era responsável por congregar os
estados confederados, o chamado Congresso Continental, em que cada estado tinha direito
a um voto. Consani (2015) afirma a inexistência do ramo executivo ou judiciário central e
que os poderes do Congresso, no modelo em questão, eram extremamente restritos. O
modelo político implementado no pós-Independência privilegiava o poder dos estados,
responsáveis pela cunhagem de moedas, regulação do comércio e dos tributos, tendo
inclusive frotas navais próprias. A autonomia era tal que “(...) recusavam-se a dar
cumprimento às deliberações do Congresso Continental com as quais não concordavam”
(CONSANI, p. 149), afirmando a soberania dos estados frente à Confederação. Conforme
observa Tocqueville:

Enquanto durou a guerra com a mãe-pátria, a necessidade fez prevalecer


o princípio da união. E, ainda que as leis que constituíam essa união
fossem defeituosas, o laço comum subsistiu apesar delas. Mas, logo que
a paz foi concluída, os vícios da legislação vieram à luz: o Estado pareceu
dissolver-se repentinamente. Cada colônia, transformada em república
independente, apoderou-se da soberania completa (TOCQUEVILLE,
1973, p. 208).

A lei comum, que vigorou até a promulgação da Constituição, era representada


pelos Artigos da Federação, que afirmavam a descentralização do poder e a soberania do
poder legislativo. Outro aspecto relevante destacado por Consani (2015) diz respeito ao
ideal de liberdade política presente nos Artigos da Federação, que se refletiu em um
crescimento na participação política, já que a maioria dos estados abolira os requerimentos
de propriedade e riqueza para a elevação do cidadão à condição de elegível às legislaturas
estaduais, gerando grande aumento do número de pequenos e médios proprietários na
composição da legislatura nos diferentes estados.
O arranjo institucional descrito, imerso na grave crise econômica enfrentada pelo
país ao final do processo revolucionário, foi em grande parte responsável por suscitar um
período crítico da história estadunidense, em que, segundo Gargarella (2006), pairou a
ameaça de anarquia e tirania, ou nos dizeres d’Os Federalistas, a temível formação de
facções. Na ausência de uma autoridade nacional comumente respeitada e na presença de
enormes tensões sociais geradas pela crise econômica, desenvolveu-se uma grave crise
institucional que, via de regra, opunha um setor majoritário de devedores contra uma
minoria credora. Endividados e sofrendo com as constantes cobranças e ameaças judiciais,

1175
pequenos proprietários recorreram ao legislativo estadual para que intervisse em seu favor.
Gargarella (2006, p. 170) elucida que “(...) era aí onde surgia o risco da tirania: a ausência
de garantias legais era tão manifesta, que qualquer grupo no controle da força pública se
tornava uma óbvia e imediata ameaça (...)”.
Nesse contexto têm origem conflitos contra-institucionais, dos quais a “rebelião de
Shays” é o mais ilustrativo. Nela, Daniel Shays, um fazendeiro endividado, liderou um
levante popular contra a cobrança de dívidas, impedindo o funcionamento da corte
municipal, chegando a capturar um arsenal federal. Após serem enfrentados e capturados
por uma milícia financiada por comerciantes, comandadas pelo General Benjamin
Lincoln,

Quatorze líderes da rebelião foram sentenciados à morte, mas todos


foram perdoados ou tiverem sua pena relaxada para prisão de curto
período. Tal episódio acentuou a impressão já bastante forte de que a
supremacia legislativa dos estados estava colocando em risco o ideal
republicano e submetendo o governo da lei ao governo das paixões e dos
interesses populares (CONSANI, 2015, p. 150).

Diante da pressão popular, os legislativos estaduais, valendo-se da prerrogativa de


emitir papel moeda e perdoar dívidas, começaram a validar legalmente as demandas da
maioria devedora.
Nesse contexto de ameaça às liberdades individuais, em que a soberania do poder
Legislativo tornava-se questionável na medida em que ameaçava a manutenção dos
contratos e levantava o risco de uma tirania da maioria, surge a convocação da Convenção
da Filadélfia, apoiada pelo Congresso Continental, afim de recomendar revisões aos
Artigos da Federação.
Ao final de seus trabalhos é escrita a Constituição dos Estados Unidos de 1787,
uma prescrição de “remédios republicanos para males republicanos” (LIMONGI, 2004).

INOVAÇÕES INSTITUCIONAIS COMO FORMA DE SUPERAR PROBLEMAS


ENFRENTADOS NO PERÍODO PÓS-INDEPENDÊNCIA

Formulada na Convenção da Filadélfia, à portas fechadas, a Constituição dos


Estados Unidos foi submetida ao Congresso Continental, deliberando-se que o texto
constitucional deveria ser ratificado pelos estados que compunham a Confederação.
Durante esse período, acalorados debates foram travados publicamente em artigos de

1176
jornais, ainda que seus autores mantivessem as identidades encobertas por pseudônimos,
expondo um grupo de defensores do texto constitucional, denominados “federalistas”, e
os críticos daquele texto, os “anti-federalistas”.
Reconhecida como uma das principais obras da Teoria Política moderna, “O
Federalista”, compilação de artigos de jornais assinados por Alexander Hamilton, James
Madison e John Jay, sob o pseudônimo Publius, é fundamental para a compreensão dos
problemas e das soluções institucionais encontradas pelos artífices do texto constitucional
americano. Pode-se elencar três problemas principais, suscitados pelas crises vivenciadas à
época, sobre os quais os federalistas se esforçavam para solucionar, inserindo inovações
institucionais na Constituição proposta. São eles: a fraqueza do governo central fundado
pelos Artigos da Federação; o risco de formação de facções e a consequente necessidade
de se proteger a liberdade dos indivíduos; e, por fim, a divisão dos poderes republicanos.
Como destaca Limongi (2004, p. 247), “Pela primeira vez, a teorização sobre os governos
populares deixava de se mirar nos exemplos da Antiguidade, iniciando-se, assim, sua
teorização eminentemente moderna”.
Frente ao primeiro problema, a ausência de um governo central forte, Alexander
Hamilton, abordando os defeitos da Confederação, destaca a ausência de poderes
conferidos ao governo central para que realmente pudesse se impor como autoridade:

Entre nós, as formas de nossa Confederação atual exigem o concurso de


treze vontades soberanas para determinar a execução de todas as
resoluções importantes que emanam da União. As consequências fáceis
eram de prever: as resoluções da União não foram executadas; e os erros
dos Estados têm-nos conduzido a passos largos até o extremo a que hoje
os vemos reduzidos (HAMILTON; MADISON; JAY, 1973, p. 118).

Hamilton associa à ideia de governo a possibilidade de fazer leis, executá-las e


sancionar aqueles que por ventura a descumprirem, servindo para dissuadir qualquer ato
de infração. Limongi (2004) aponta que o raciocínio de Hamilton conduz a um
desdobramento necessário, em que o governo central deveria ser capaz de exigir o
cumprimento das normas por ele instituídas, estendendo o raio de ação da União
diretamente aos cidadãos. A Constituição apresenta uma inovação em relação à forma de
governo, “(...) até então não experimentada por qualquer povo ou defendida por qualquer
autor”, nas palavras de Limongi (2004, p. 248). Essa inovação é representada pela
convivência de dois entes estatais, com delimitações claras sobre o âmbito de ação de cada
ente, previstas constitucionalmente, firmando-se o federalismo como pacto político.

1177
Destaca-se, na obra “O Federalista” (Hamilton et. al., 1973), a reiterada importância
adquirida pelo texto constitucional enquanto amarração normativa que visa unir entes
federados sob uma legislação comum, de modo que seja salvaguardado o interesse nacional
e as liberdades dos indivíduos, sendo uma solução institucional contra o espírito faccioso
que poderia vir a dominar algum ente federado. Logo na introdução da obra, percebe-se a
importância fundacional da Constituição, considerada como responsável pela “re-
fundação” da União, o que acarretará ao texto constitucional e a seus guardiães uma
importância central na estrutura de poderes da república.
Quanto ao temível risco das facções, James Madison defende que a União pode ser
um auxílio contra esse mal. Ele afirma que a defesa do bem público e dos direitos
individuais, pari passu à preservação do espírito e forma do governo popular, deve ser
condição sine qua non à qualquer forma de governo. No artigo n.10, Madison
(HAMILTON et. al., 1973, p. 101) afirma que “há dois métodos de evitar as desgraças da
facção: ou prevenir-lhe as causas ou corrigir-lhe os efeitos”. Sendo impensável a destruição
da liberdade e impossível dar a todos os cidadãos as mesmas opiniões, paixões e interesses,
resta aos homens criar meios para que esse gérmen das facções, inerente à natureza
humana, seja refreado:

Quais serão os meios de obter esse fim? É evidente que não há senão os
dois que se seguem: ou prevenir na maioria a comunidade de paixões e
de interesses, ou, se os homens que a compõem já se acham unidos por
essa comunidade de interesses e paixões, servir-se do seu número e da
sua situação local para embaraçá-los, com esperança de êxito, planos de
opressão (HAMILTON; MADISON; JAY, 1973, p. 103).

Partindo dessa reflexão, Madison torna o que seria um problema para as


democracias puras, a extensão e o número elevado de cidadãos, o verdadeiro antídoto das
repúblicas modernas contra os males das facções. A república contribuiria para depurar e
aumentar o espírito público, já que somente cidadãos comprometidos com o interesse da
pátria seriam escolhidos como representantes da população. Por outro lado, reuniria um
grande número de interesses em conflito, o que resultaria em uma neutralização recíproca,
tornando impossível que uma facção controlasse todo o poder, havendo a necessidade de
uma coordenação de interesses visando o bem comum.
Rompendo com a crença de Montesquieu e Rousseau, de que as democracias eram
ancoradas na virtude dos cidadãos que a compõem, Madison (HAMILTON et. al., 1973)
parte dos seguintes pressupostos: que os homens tenderão a abusar do poder que lhes

1178
competir; que o gérmen das facções se encontra na própria natureza humana, mais
especificamente no desenvolvimento de suas faculdades, fonte diferenciadora dos homens.
Comprometido com o credo liberal, Madison defenderá que o governo deve limitar-se e
controlar para que seja assegurado o livre desenvolvimento do indivíduo e de suas
atividades econômicas.
Sendo assim, mesmo com os remédios republicanos contra as facções, seria
necessário discutir sobre a divisão dos poderes, afim de que experiências traumáticas como
aquelas vivenciadas ao final do século XVIII não tornassem a acontecer, afastando
qualquer risco de um governo tirânico de maioria.
Nos acalorados debates entre federalistas e anti-federalistas, a questão da divisão
dos poderes opunha dois modelos distintos, ainda que partindo da mesma premissa, de
que o poder não poderia estar concentrado. Os anti-federalistas defendiam um modelo
que primasse pela separação precisa de poderes, cada qual com clara autonomia e
independência. Em contraposição, o modelo defendido pelos federalistas baseava-se num
sistema de “freios e contrapesos”, um sistema de “mútuo equilíbrio” no qual os poderes
estivessem parcialmente separados e parcialmente vinculados entre si, capazes de se
controlar e frear mutuamente.
Mas quais seriam as soluções institucionais encontradas para que esse sistema de
“freios e contrapesos” se incorporasse ao texto constitucional? Roberto Gargarella afirma
que:

Dentre outras ferramentas, a nova Constituição federal outorgou ao


Executivo os seus próprios instrumentos defensivos (o veto presidencial);
habilitou a reação da justiça frente às decisões tomadas pelos poderes
políticos (através de controle judicial de constitucionalidade); permitiu
ao Congresso insistir com as suas iniciativas (sobrepondo-se ao veto
presidencial, e re-elaborando as decisões impugnadas pela justiça),
facultando-o, ao mesmo tempo, para processar os membros das restantes
esferas de governo (GARGARELLA, 2006, p. 177).

Visando combater a ameaça de uma sobreposição do legislativo frente aos outros


poderes, ao partir do pressuposto de que ele pode alterar as leis que regem o
funcionamento das estruturas de poder, foram necessárias medidas adicionais, como
destaca Limongi (2004, p. 251) ao afirmar que “A instituição do Senado é defendida com
este fim, uma segunda câmara legislativa composta a partir de princípios diversos daqueles
presentes na formação da Câmara dos Deputados, sendo previsível que a ação de uma leve
à moderação da outra”.

1179
Assim, o Senado apresenta-se como uma câmara legislativa composta sob
princípios diversos, sendo em tese mais conservadora, devido ao perfil etário exigido e o
tempo prolongado de mandato, o que proporcionaria uma maior cautela frente aos apelos
populares nos momentos mais “apaixonados”. Essa inovação institucional visou
acrescentar um elemento de estabilidade no arranjo institucional, tornando o processo
legislativo mais cauteloso. Tocqueville (1973, p. 222) aponta que o partido Federalista
procurou limitar o poder popular, aplicando suas doutrinas à Constituição. Para tanto,
contaram com circunstâncias favoráveis como a ruína da primeira Confederação, que “fez
o povo temer a queda na anarquia”, além da presença de homens que tiveram importante
participação na guerra de independência, colaborando para a força moral de seus
discursos.
Enquanto o Poder Legislativo, segundo “O Federalista” (HAMILTON et al.,
1973), n.49, necessitava ser refreado devido a sua maior sensibilidade às questões imediatas
e sua extensão de poderes, o Executivo e o Judiciário precisavam ser dotados de robustez.
A figura do Presidente da República e dos poderes corporificados no Executivo Federal
despertaram críticas por parte dos anti-federalistas, que associavam sua força à de um
“colosso formidável”, um “filho da realeza”. Hamilton (1973, p. 167), defendendo a
importância do fortalecimento daquele poder que representaria a centralização da
administração federal, destaca a relação entre a força do Poder Executivo e a qualidade na
execução das leis, defendendo o fortalecimento dessa instituição afim de que a crise gerada
pela ausência de um poder central capacitado fosse superada.
Quanto ao Judiciário, considerado o mais fraco dentre os três poderes, “sem força
e sem vontade”, fazia-se necessário protege-lo contra-ataques. Hamilton (1973, p. 176)
defende a inamovibilidade e vitaliciedade dos juízes como “um freio às usurpações e à
tirania do corpo legislativo”, sendo um meio eficaz de assegurar a “prontidão, a firmeza e
a imparcialidade da administração da justiça”. O autor realiza uma defesa da judicatura
federal afim de superar as prejudiciais falhas dos Atos da Federação. Dessa forma, a União,
valendo-se dos precedentes constitucionais defendidos pelos federalistas, conseguiria agir
coercitivamente em situação em que a amarração normativa se visse ameaçada. Assim, o
texto constitucional seria o parâmetro normativo, restritivo, frente à soberania do
legislativo, criando um ambiente favorável para um controle jurisdicional de
constitucionalidade.
Defendendo esse precedente de veto concedido ao Judiciário, Hamilton argumenta
que:

1180
A independência rigorosa dos tribunais de Justiça é particularmente
essencial em uma Constituição limitada; quero dizer, numa Constituição
que limita a alguns respeitos a autoridade legislativa, proibindo-lhe, por
exemplo, fazer passar bills os attainder (decretos de proscrição), leis
retroativas ou coisas semelhantes. Restrições desta ordem não podem ser
mantidas na prática senão por meio dos tribunais de Justiça, cujo dever
é declarar nulos todos os atos manifestamente contrários aos termos da
Constituição. Sem isto, ficariam absolutamente sem efeito quaisquer
reservas de direitos e privilégios particulares (HAMILTON;
MADISON; JAY, 1973, p. 168, grifo nosso).

Percebe-se que o Judiciário assume poder político ao ser elevado como supremo
intérprete da Constituição, afim de resguardar os direitos do indivíduo frente aos perigos
da tirania da maioria. Sobre isso, Tocqueville (1973, p. 207) destaca que o juiz americano
é “levado, sem querer, ao terreno da política”, quando tem de julgar determinados
processos Assim, “encerrado em seus limites, o poder atribuído aos tribunais americanos
de pronunciar-se sobre a inconstitucionalidade das leis forma, ainda, uma das barreiras
mais poderosas que jamais foram erigidas contra a tirania das assembleias políticas”.
Hamilton defende que a Constituição posiciona os tribunais de Justiça entre o povo
e a legislatura, como forma de “conter esta última nos limites das suas atribuições”. O
silogismo empregado por Hamilton transparece na seguinte passagem:

A Constituição é e deve ser considerada pelos juízes como a lei


fundamental; e como a interpretação das leis é a função especial dos
tribunais judiciários, a eles pertence determinar o sentido da
Constituição, assim como de todos os outros atos do corpo legislativo.
Se entre estas leis se encontrarem algumas contraditórias, deve-se
preferir aquela cuja observância é um dever sagrado; que é o mesmo que
dizer que a Constituição deve ser preferida a um simples estatuto; ou a
intenção do povo à dos seus agentes (HAMILTON; MADISON; JAY,
1973, p. 169).

Apesar da veemente defesa do controle de constitucionalidade por via judicial,


merece atenção o fato de que essa inovação não está efetivamente descrita na Constituição
de 1787. Tal qual o silogismo utilizado por Hamilton, o controle de constitucionalidade
jurisdicional surge como o desdobramento lógico da divisão dos poderes, como forma de
fortalecer o Judiciário e garantir à liberdade e os direitos do indivíduo.

1181
A CRISE INSTITUCIONAL E A CRIAÇÃO DE UMA NOVA CONCEPÇÃO
CONSTITUCIONAL

Ao reafirmar a importância de proteção ao indivíduo e à propriedade privada, por


meio de inovações institucionais presentes na Constituição de 1787, a revolução americana
mostra-se “mais liberal do que republicana”, nas palavras de Arantes (2015, p. 30),
atribuindo ao judiciário a condição de poder político:

Essa função, conhecida como judicial review ou controle de


constitucionalidade das leis, pode colocar o judiciário em pé de
igualdade com os demais poderes, exatamente naquela dimensão mais
importante do sistema político: o processo decisório de estabelecimento
de normas (leis e atos executivos) capazes de impor comportamentos,
autorizar ações de governo e gerar políticas públicas.

Rogério Arantes afirma que, com as experiências marcantes da primeira década de


independência, a possibilidade de tirania para além de uma monarquia absoluta deveria
ser prevenida.
A função do controle de constitucionalidade das leis (judicial review), não contida
explicitamente no texto constitucional americano, foi mitificada na decisão judicial da
Suprema Corte americana no caso Marbury vs. Madison, pelo chief justice John Marshall,
em 1803, quando a Suprema Corte afirmou sua capacidade de controle jurisdicional das
leis.
Segundo Klautau Filho (2003, p. 255), a decisão do processo Marbury vs. Madison
é “certamente a decisão mais citada nos estudos de controle de constitucionalidade, mesmo
na doutrina constitucional brasileira”, frisando que tal citação se dá, na maioria das vezes,
sem maiores relações com o contexto histórico da época, acarretando certa áurea mítica
em torno do chief justice John Marshall e desconsiderando o momento de transformação
vivenciado na sociedade americana após a ratificação da Constituição.
Em linha semelhante de análise, Continentino (2016) realiza uma crítica em relação
à perspectiva de “mito fundador” em torno do caso Marbury vs. Madison. O autor defende
que há um processo de transformação em torno da concepção de Constituição, marcando
a supremacia da norma constitucional, bem como abrindo caminho interpretativo à
prerrogativa do Judiciário como controlador das leis. O autor vale-se de uma série de
decisões “pré-Marbury” tomadas pelos tribunais de Justiça de diferentes estados
americanos em que se afirmam a recusa de aplicação de leis devido à sua

1182
inconstitucionalidade. Nota-se que a maioria das decisões tomadas eram contrárias à leis
estaduais que se chocavam com os princípios constitucionais, principalmente quando a
liberdade dos indivíduos, a conservação da propriedade privada e o direito de defesa ampla
eram ameaçadas.
O caso em questão, Marbury vs. Madison, aconteceu no apagar das luzes do
governo do Partido Federalista de John Adams, então presidente dos Estados Unidos, com
o chamado Judiciary Act. Essa lei permitiu alterações na estrutura do Judiciário,
aumentando o número novos juízes, que seriam empossados pelo presidente Adams antes
da troca de governo, dentre os quais encontrava-se William Marbury.
Porém, o presidente recém-eleito, Thomas Jefferson, membro do Partido
Republicano, considerou que tal ato aumentaria a jurisdição das cortes federais e criaria
cargos para os juízes federalista, isto é, vinculados ao mesmo partido que o então presidente
John Adams, configurando-se como um uso fraudulento da Constituição. Porém, no
apressado processo de atribuição dos cargos antes da troca de governo, Adams não
conseguiu dar posse à todos os juízes. Thomas Jefferson, por meio de James Madison
(secretário de Estado do presidente republicano), negou-se a dar posse àqueles que não
haviam concluído o processo durante o governo Adams. Conforme aponta Consani (2015,
p. 162), Marbury e outros três juízes do Distrito de Columbia decidiram “testar a legalidade
da decisão da administração ajuizando uma ação na Suprema Corte e pedindo que
Madison, secretário de Estado de Jefferson, desse-lhes posse de suas funções”.
Eis que em 1803 a Suprema Corte, por meio do chief justice John Marshall,
apresentou decisão relativa ao caso: “Marshall apresentou o problema para a Corte
formulando três questões: 1) Marbury tem o direito ao cargo? 2) Se ele tem um direito e
este foi violado, a lei proporciona a ele algum remédio? 3) Se há um remédio, pode ele ser
emitido por esta Corte?” (CONSANI, 2015, p. 162).
Sua decisão foi cercada de riscos. O mais temível deles era o de que Jefferson, com
maioria republicana nas duas casas legislativas, pudesse realizar um impeachment contra
os juízes federalistas. Frente a isso, Marshall decide que Marbury tinha direito a nomeação,
já que ela era válida e aprovada pelo Senado, porém a Suprema Corte não teria condições
de dar a ele um wright of mandamus (ordem judicial), já que o decreto que autorizava a
Corte a expedi-los era inconstitucional. Argumenta Marshall que:

(...) todos os que têm fizeram Constituições escritas as contemplam como


a lei fundamental e suprema da nação, e, consequentemente, a teoria de
todos os governos desse tipo deve ser a de que um ato da legislatura,

1183
contrário à Constituição, é nulo. Essa teoria se liga essencialmente à uma
Constituição escrita e deve, portanto, ser considerada por esta Corte,
como um dos princípios fundamentais de nossa sociedade. Não
devendo, portanto, perde-lo de vista na ulterior consideração deste
assunto (MARSHALL, 1803, apud KLAUTAU FILHO, 2003, p. 269).

Apesar de marco jurisprudencial, a sentença de John Marshall deve ser


compreendida como parte de uma transformação de mentalidade gerada no calor de
situações peculiares, vivenciadas no pós-Independência, como defendido por Continentino
(2016, p. 126), em que muitas vezes eram contrapostas as liberdades individuais frente às
legislações estaduais, desenvolvendo-se uma comunidade política “cuja linguagem se
desenvolvia em torno da atribuição do poder Judiciário declarar leis inconstitucionais”.

O CONTROLE POLÍTICO DE CONSTITUCIONALIDADE: AS RAÍZES DO


MODELO FRANCÊS

O ANTIGO REGIME, A REVOLUÇÃO FRANCESA E A DESCONFIANÇA


DIANTE DO JUDICIÁRIO

Alexis de Tocquevile (1997), na obra intitulada “O Antigo Regime e a Revolução”,


defende que a centralização, a tutela e a justiça administrativa são instituições nascidas
durante o Antigo Regime. Pensando sobre o processo de crise das instituições durante o
ancien régime na França, Tocqueville destaca o processo de transformação do papel do
governo, o qual classifica como relações de soberania à relações de tutela, ao apresentar
decretos que interferem até mesmo na vida privada, afetando-se liberdades individuais e
municipais. O autor afirma que “Não havia em toda a Europa país algum cuja justiça
comum dependesse menos do governo que na França, mas tampouco havia um só país
com tantos tribunais de exceção”, utilizados como instrumento de centralização dos
julgamentos que interessavam à Coroa, tendo os tribunais em certos casos, inclusive, o
poder de decretar regulamentos de administração pública (TOCQUEVILLE, 1997, p. 89).
Diversos autores atribuem ao amálgama entre os poderes do Estado, durante o Antigo
Regime, uma importante contribuição para a geração de desconfiança em relação à
magistratura, que perdurou durante diversos momentos na tradição normativa francesa
(ARANTES, 2015; FARIA, 2013; LUNARDI, 2011).
Durante o processo revolucionário francês, deflagrado em 1789, três textos
constitucionais foram promulgados. Permeados por diferentes fases ideológicas, refletindo
o movimento pendular de radicalização, é de se destacar o fato de que, em nenhum dos

1184
textos constitucionais o Judiciário tenha adquirido a função de controlar atos dos demais
poderes, mantendo apenas sua clássica função de prestador da justiça civil, criminal e
comum. Destaca Arantes (2015) que, textualmente, a Constituição de 1791 afirmava que
os tribunais não possuíam direito de suspender a execução de leis, dispositivo inserido
também na Constituição de 1795, que marca a retomada burguesa do controle
revolucionário. O autor destaca que o texto constitucional de 1793, marcado pela defesa
incondicional do poder popular, é o que mais se afasta do ideal liberal de cheks and
balances:

Ao lado do sufrágio universal e de outras medidas igualitárias, o texto de


1793 estabeleceu a supremacia do parlamento como órgão da soberania
popular e, com base na ideia rousseauniana da vontade geral, fixou a
supremacia da lei: segundo o artigo 4 da declaração de direitos que
precedia o texto constitucional, “a lei é expressão livre e solene da
vontade geral” e só ela poderia punir, proteger e estabelecer o que era
justo e útil à sociedade. Ou seja, nenhuma outra instituição social ou
política poderia colocar-se entre o Estado e a Nação, entre o corpo
legislativo e a soberania popular, entre a vontade geral e o indivíduo
(ARANTES, 2015, p. 32).

Durante o período revolucionário, houveram elaborações teóricas visando instituir


um órgão responsável pela análise do controle de constitucionalidade das leis. Como
aponta Lunardi (2011), o Abade Sieyès, em 1793, participando dos trabalhados de
elaboração da Constituição do Ano III, sugeriu a criação do “Jurie constitutionnaire” (júri
constitucional), competente para exercer o controle de constitucionalidade, podendo
anular atos legislativos que violassem a Constituição. Apesar da elaboração teórica, o órgão
não foi inserido na carta constitucional.
Percebe-se que, a partir de diferentes peculiaridades históricas, desenvolveu-se
diferentes aplicações práticas da tese de separação de poderes de Rousseau. Enquanto a
Constituição dos Estados Unidos de 1787 elevava o Judiciário à condição de terceiro poder
do Estado, capaz de controlar a constitucionalidade das leis e preservar a liberdade do
indivíduo e manter contratos, a plataforma liberal, na França, foi utilizada como forma de
combater as bases ideológicas do ancien régime, buscando-se minimizar as forças do poder
Executivo e fortalecer o poder Legislativo, considerado como verdadeiro representante da
soberania popular. Segundo Lunardi (2011, p. 286-287), “o Parlamento foi considerado
como instituição representativa da coletividade nacional, limitando o raio de ação dos

1185
demais poderes e, em particular, as competências fiscalizadoras do poder judiciário, que
devia tão-somente aplicar a lei”.

O CONSELHO CONSTITUCIONAL E A PREPONDERÂNCIA DA


INTERPRETAÇÃO POLÍTICAS DAS LEIS

Com a grave crise institucional vivenciada durante a 4ª República francesa,


instituída pela Carta Constitucional de 1946, na qual a câmara baixa adquiriu poder
preponderante na aprovação de leis, configurando-se, segundo Almeida (1999, p. 198),
como um “bicameralismo quase que fictício”, foi criado o Comitê Constitucional,
“composto por parlamentares e pelo Presidente da República”, cabendo ao órgão a
verificação sobre projetos de lei, verificando se os mesmos supunham revisão
constitucional.
Agravada a crise institucional, uma nova carta constitucional foi aprovada em 1958,
instituindo o Conseil Constitutionnel, órgão criado com a competência de exercer o
controle de constitucionalidade de leis, composto por membros vitalícios e nomeados. Os
Presidentes da República tornam-se, ao final de seus mandatos, membros vitalícios do
Conselho Constitucional. Os outros membros, são nomeados para um mandato de nove
anos, sem possibilidade de recondução, dentre eles: três são escolhidos pelo Presidente da
República, enquanto os Presidentes da Assembleia e do Senado escolhem três membros,
respectivamente. Lunardi (2011, p. 289) frisa, a respeito da designação dos membros que
irão compor o Conselho, que “não é feita nenhuma exigência nem é imposta condição
objetiva de conhecimento jurídico-constitucional. Vale a vontade política de quem os
nomeia e falta qualquer possibilidade de controle da nomeação por outras autoridades”,
podendo, inclusive, políticos com mandato em curso ocuparem o Conselho, inexistindo
requisitos constitucionais fixados para tal designação.
O Conseil Constitutionnel tem, tradicionalmente, uma função preventiva, dado
que, quando suscitada a dúvida sobre a constitucionalidade da lei por um ator habilitado,
o órgão tem o dever de se manifestar sobre sua validade, declarando-a (ou não)
constitucional. Segundo Faria (2013, p. 16), “(...) tal decisão vincula as autoridades
administrativas e judiciárias”, caracterizando o órgão como o “guardião da Constituição”.
Assim, as decisões do Conselho “não se sujeitam a nenhum tipo de recurso”.
Até o ano de 1974, apenas o Presidente da República, o Primeiro-Ministro, os
Presidentes da Assembleia Nacional e do Senado eram legitimados para representar
questões junto ao Conselho. A partir de 1974, por meio de uma reforma institucional,

1186
fortaleceu-se a possibilidade da oposição acionar o Conselho, já que a reforma instituiu
que, sessenta (ou mais) deputados ou senadores seriam considerados como grupo legítimo
para acionar o Conselho Constitucional, aumentando o número de atores com tal iniciativa.
Faria (2013, p. 16) aponta que, por meio da emenda constitucional de julho de
2008, houve uma “(...) singela revolução constitucional (...)”, onde o Conseil
Constitutionnel adquiriu a legitimidade para realizar o “(...) controle constitucional
concreto e a posteriori”, ou seja, mesmo que a lei já tenha sido promulgada.
Apesar das traços políticos do Conselho, Lunardi (2011) critica a caracterização do
Conselho Constitucional francês como meramente político, pautando-se em três
argumentos: 1) status dos membros do Conselho, que possuem garantias de neutralidade
e independência, os mesmo vigentes para os magistrados; 2) parâmetros para o efetivo
controle de constitucionalidade das leis, em que há a necessidade de fundamentação para
as decisões, tal qual o procedimento jurídico, sendo impossível a existência de um controle
puramente jurídico ou puramente político; 3) decisões do Conselho possuem efeitos
típicos de decisões do judiciário, como a força de coisa julgada, sem possibilidade de
recurso ou contestação.
Apesar das críticas da autora e das recentes alterações no modelo de controle de
constitucionalidade francês, o que chama atenção é a longa duração de uma tradição na
qual a justiça está excluída da possibilidade de se sobrepor às decisões legislativas, onde a
soberania popular se ilustra no poder Legislativo e contrasta com o modelo estadunidense,
onde o medo da tirania inspirou a necessidade de instituições que defendessem o indivíduo
e a propriedade, dando origem ao modelo jurisdicional de controle de constitucionalidade.

CONCLUSÕES

O estudo das origens do controle jurisdicional das leis aponta para a importância
das questões contingentes, peculiaridades históricas vivenciadas em um determinado
período, fundamentais para o movimento de transformação de ideias. No caso americano,
destaca-se a importância do contexto de crise do período pós-Independência, crise
econômica mas acima de tudo institucional, em que o projeto de união, erguido por meio
de estruturas frágeis, ruía em meio à conflitos. Nesse momento da história americana,
parece haver uma contraposição entre os direitos de liberdade e igualdade, prevalecendo
os primeiros. Ao mesmo tempo em que a Constituição e o controle jurisdicional de
constitucionalidade podem apresentar-se como importantes dispositivos em defesa dos

1187
indivíduos, podem também apresentar-se como dispositivos que privilegiam a manutenção
do status quo, caracterizando-se como uma forma de veto sobre a soberania popular.
Gargarella (2006) afirma que desde os “anti-federalistas” a Constituição americana recebe
como principal crítica a criação de um sistema de governo de corte aristocrático, em que o
Senado seria como uma reprodução da clássica Câmara dos Lordes inglesa. Além disso,
os requisitos de dinheiro e propriedades exigidos como pré-requisito para certos cargos
públicos contribuíam para fundamentar a crítica em questão.
No caso francês, a tradição opressora do Judiciário, amalgamado a outros poderes
e influenciado pelas decisões da Coroa, ocasionou uma preocupação das massas frente ao
poder dos magistrados, havendo a defesa da necessidade de se fortalecer a soberania
popular. Sendo assim, com a Revolução Francesa, a plataforma de ideias liberais, que nos
Estados Unidos foram voltadas à proteção do indivíduo e ao estabelecimento de cheks and
balances, foi direcionada para o combate à monarquia absolutista, afirmando a soberania
do Legislativo sobre qualquer outro poder, inclusive a Constituição. Ao poder Judiciário,
reservou-se à mera prestação da justiça nos conflitos entre particulares.
Com a Constituição de 1958 e a criação do Conselho Constitucional, institui-se um
órgão responsável pelo controle de constitucionalidade, em um primeiro momento
preventivo, e posteriormente um controle sobre leis promulgadas. Apesar das alterações
quanto ao seu perfil de atuação, o Controle Constitucional continua sendo composto por
critérios políticos, contrastando com o modelo estadunidense.
Em meio a um período de crescente influência do poder judiciário sobre os demais,
torna-se importante analisar as raízes dos principais modelos de controle de
constitucionalidade, principalmente pensando na chave das peculiaridades históricas que
contribuíram para sua formação e que influenciaram seu desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

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1189
DE TRANSITÓRIO A PROVISÓRIO: A PERENIDADE DO ATO
DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS 581

Eduardo Araujo COUTO 582

Resumo: O Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios (ADCT) foi a maneira pela qual os
atores da Assembleia Nacional Constituinte encontraram para compatibilizar o regime jurídico que
se esvaía com a transição democrática e o que se instalava. Se o ADCT foi criado para auxiliar na
transição entre estes dois ordenamentos jurídicos, o que explica seu crescimento de 62%, de
originalmente 70 artigos, para 114 atualmente? Sustentamos no texto que o ADCT criou sua
própria agenda de reformas. Seguindo o espírito de policies do corpo central da Carta e da
consequente tendência de tratar políticas públicas como matéria constitucional, o conceito de
transitório se transformou em provisório: com o aval do Supremo Tribunal Federal (ADIns 829,
830 e 831) e o precedente criado pela Emenda Constitucional de Revisão 1/1994, uma agenda
própria de arrecadação e gestão orçamentária se instalou no ADCT. A Emenda Constitucional
95/2016, conhecida como “Novo Regime Fiscal” ou “Teto dos Gastos Públicos”, coroa o objetivo
de longa data do Executivo de tornar discricionário grande parte do montante orçamentário da
União. A partir da análise das diversas Emendas que alteraram o ADCT, sob o enquadramento do
institucionalismo histórico e de um estudo orientado via process-tracing, buscamos descrever a
trajetória do Ato dos Dispositivos Constitucionais Transitórios com o objetivo de acrescentar novas
variáveis aos estudos já consolidados de reformas constitucionais e tentar trazer algumas inferências
sobre os condicionantes e mecanismos que expliquem como o processo de transformação do Ato
se deu e suas consequências no processo decisório e na gestão orçamentária do Executivo, além da
relação deste com o Legislativo.

Palavras-chave: Reforma Constitucional. Mutação Constitucional. Agenda do Executivo. Relações


Executivo-Legislativo.

INTRODUÇÃO

Seguindo as tendências da segunda metade do século XX, os anseios da população


em termos de participação e políticas públicas, e a incerteza do jogo democrático e em
relação à corrente majoritária que seguiria sua promulgação (GOMES, 2006; ARANTES;
COUTO, 2008), a Constituição de 1988 (CF/88) inseriu em grande parte do seu texto
dispositivos que foram muito além da polity, isto é, da definição de Estado e Nação, direitos
individuais de liberdade e participação política, regras do jogo democrático e de direitos
materiais orientados para o bem estar e igualdade (ARANTES; COUTO, 2008).
Adentrando o plano governamental e transbordando o originalmente chamado de

581
A classificação é apenas de caráter ilustrativo mais geral, e deverá ser refeita com mais rigor em um segundo
momento. A categoria “anistia” foi destacada por ter sido considerada uma particularidade da transição
democrática.
Foram considerados dispositivos os caput e parágrafos dos artigos.
582

1190
constitucional, um montante considerável – cerca de 30% – dos dispositivos nela contidos
remetem a políticas públicas (policy).
Com isso, alterações que em Constituições brasileiras anteriores ou em outros
modelos de democracia (o inglês, por exemplo) seriam feitas por via ordinária, na maior
parte das vezes por maiorias simples, sob a CF/88 devem respeitar maiorias qualificadas,
“engessando” a maior parte de iniciativas de mudança do status quo. Ao mesmo tempo,
porém, sendo esta a gramática básica para mudanças no Brasil, e considerando a
quantidade de políticas públicas constitucionalizadas, a “Carta brasileira nascia prevendo a
necessidade de ser revista” (ibid., p. 54). Com uma média de cerca de 3 reformas por ano,
chegamos ao fim de 2016 com 95 emendas constitucionais (ECs) aprovadas e sancionadas,
o que demonstra a adaptação do jogo político à maioria qualificada de três quintos no plano
governamental e de formação de maiorias.
Ao contrário, portanto, de críticas iniciais perante o suposto detalhismo e robustez
da CF/88 que levaria, tanto do ponto de vista de seu sistema político quanto da
constitucionalização de policies, ao imobilismo, à paralisia e à ingovernabilidade; e por
outro lado, de críticas à suposta “morte” da Constituição originalmente promulgada por
um suposto excesso de mudanças e descaracterização do texto inicial, “ela segue vigente,
ampla e não para de crescer” (ARANTES; COUTO, idem, p. 32).
Esse texto pretende analisar uma das facetas da construção e da contínua
reconstrução da Constituição de 1988: o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Concebido originalmente como um recurso “ponte” entre dois ordenamentos jurídicos, tal
como parte de seu conteúdo realmente propõe, hoje sua análise faz com que pareça uma
colcha de retalhos: há dispositivos “mortos” ou exauridos, correspondentes à transição ou
a eventos extraordinários da política brasileira – vide o plebiscito sobre a forma e o sistema
de governo de 1993 (Art. 2º) –; mas há também regulamentações recentes, como a
repartição dos recursos destinados à irrigação entre regiões do país – Art. 42., reescrito pela
Emenda Constitucional (EC) 89, de 15 de setembro de 2015 –; há ainda novos artigos no
ADCT, como os Artigos 79 a 83, que criaram o Fundo de Erradicação à Pobreza (EC
31/2000).
Inicialmente com 70 artigos, hoje o ADCT conta com 114, um crescimento de
62%. Se o ADCT foi criado realmente para auxiliar na transição entre dois ordenamentos
jurídicos, o que explica tantas mudanças? Qual sua natureza atual comparada à original?
Seu texto também segue o espírito de policies do corpo central da Carta? Há algum
posicionamento do STF perante um suposto desvirtuamento do ADCT?

1191
Este trabalho não pretende responder todas essas perguntas, mas analisar esse
apêndice da Constituição à luz de trabalhos da Ciência Política e do Direito que tomaram
a Carta Constitucional e suas reformas como objeto de análise (ARANTES; COUTO,
2008; FERRAZ, 1986). Não há muitos estudos, mesmo no Direito Constitucional (RAAD,
2008; DANTAS, 1995; FERRAZ, 2012), que tomam o ADCT como objeto de análise sob
a ótica da mutação e das reformas constitucionais; este trabalho tem como principal
intenção, portanto, chamar a atenção às movimentações que incidiram e ainda incidem
nesta parte do ordenamento constitucional.
A primeira seção pretende auxiliar na compreensão da natureza do ADCT, seu
papel na transição entre dois ordenamentos jurídicos, e de sua composição original,
quando promulgada a CF/88. Em seguida, a partir de sua natureza, se discute a
possibilidade de reformas e emendas dos dispositivos transitórios. A terceira seção se
destina a demonstrar o processo de transformação da natureza do ADCT, e a próxima lhe
é complementar ao propor características e possíveis condicionantes às reformas e
mutações. Uma última seção conclui o texto, retomando a argumentação das seções
anteriores e fazendo uma reflexão a partir do institucionalismo histórico.

A TRANSIÇÃO ENTRE ORDENAMENTOS JURÍDICOS: O ADCT SAÍDO DA


CONSTITUINTE

Mesmo quando uma nova Constituição represente uma ruptura jurídica,


via de regra não há um rompimento absoluto com uma certa cultura, um
certo processo histórico, um condicionamento nacional. É preciso
aplainar a travessia entre o velho e o novo” (BARROSO, 2008 apud
RAAD, 2008, p. 389; grifos no original).

A transição brasileira para o ordenamento jurídico da CF/88 representou, ao


mesmo tempo, continuidade e ruptura. Apesar dos atributos institucionais provenientes do
regime militar que ficava para trás terem exigido uma nova Constituição (Rocha, 2013), a
participação ativa dos militares e outros atores do Regime Militar e a permanência de
instituições como o Supremo Tribunal Federal (STF), também ativo na redemocratização
e com interesses próprios, fizeram com que o potencial disruptor e criador do novo regime
se amortecesse.
A ruptura com o regime anterior pode ser demonstrada a partir do produto final
da Assembleia Nacional Constituinte (ANC). Apesar dos esforços do chamado Centrão e
das forças mais conservadoras presentes na escrita da nova Carta, a participação social e a

1192
estrutura descentralizada oriunda do primeiro dos dois regimentos que orientaram os
trabalhos (GOMES, 2006) fizeram com que se promulgasse uma Constituição que garantiu
uma série de direitos e de políticas públicas para as quais iniciativas de mudanças seriam,
ao menos em tese, mais difíceis do que em termos ordinários.
A continuidade, por sua vez, se deu, por exemplo, pela atuação do STF em manter-
se como duplo tribunal: constitucional (Art. 102 da CF/88) e última instância jurídica,
enquanto corte suprema nacional, em um contexto em que se vislumbrava a criação de um
tribunal constitucional exclusivo (CITTADINO, 1999). Por outro lado, também, ao
observarmos o ordenamento jurídico resultante da CF/88, tudo o que esta não revogou
expressamente ou não o revoga a partir de suas leis e princípios, continua vigente
(DANTAS, 1995).
Tendo em vista a transição não-violenta ou não-disruptiva do Regime Militar para
a Nova República, e levando em conta o que Barroso (apud RAAD, 2008) chamou acima
de “certa cultura” e “condicionamento nacional”, o Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias conteria precisamente as normas que cuidariam da confluência do passado
com o presente. E o faz, segundo Barroso (ibidem), de três formas diferentes das quais ele
deriva três espécies distintas de disposições transitórias presentes no ADCT de 1988:

1) Disposições transitórias propriamente ditas: “regulam


temporariamente determinada matéria, até que a regra constitucional
possa incidir em sua plenitude” (idem, p. 390);
2) Disposições de efeitos instantâneos e definitivos: “criam ou
extinguem determinadas situações jurídicas para que a Constituição já se
depare, na sua aplicação regular, com uma nova realidade” (ibidem);
3) Disposições de efeitos diferidores: “suspendem, por um prazo
acertado, o início da eficácia de uma determinada norma constitucional”
(ibidem);

Acomodam-se os dois ordenamentos jurídicos, portanto, e parece ter sido este o


objetivo dos constituintes originários ao definir “transitório”, de três formas diferentes:
normas transitórias até que o novo ordenamento se assente; normas definitivas que
aproveitam do novo ordenamento para se impor; e dispositivos que adiam por
determinado tempo ou ocasião o início da vigência da nova ordem.
Analisando a composição do texto original do ADCT de 1988, o princípio
transitório nos termos acima tratados é justamente a única identidade comum aos

1193
dispositivos ali presentes. Justifica-se, assim, estarem à parte do corpo central do texto
constitucional, sem divisão entre capítulos e seções e reunindo conteúdos tão diversos
quanto a anistia (artigos 8º e 9º), a criação do estado de Tocantins (artigo 13) e a instalação
do Supremo Tribunal de Justiça (STJ, artigo 27). Há, assim como no corpo central da
Carta, dispositivos de polity e também de policy. A transitoriedade contrasta, vale a pena
insistir, com a permanência que se espera de um texto constitucional (FERRAZ, 2012).
Mesmo com reformas constantes e repetidas sobre os mesmos dispositivos no texto
permanente, o corpo principal da Carta visa a perenidade, diferentemente do ADCT, que
se destacaria a partir de um “princípio de direito intertemporal” (DANTAS, 1995, p. 146),
onde o tempo e as regulamentações consumiriam casos especiais ordenados por seus
dispositivos.
Mas se a Constituição promulgada em 1988 inovou em vários pontos, como na
ampliação da autonomia dos municípios, na sua extensa quantidade de policies, etc;
também o fez seu ADCT. “Além de extenso, analítico e casuístico – vícios de que também
padece a própria Constituição -, extrapolou significativamente a finalidade e
particularmente o conteúdo próprio de regras de transição” (FERRAZ, 2012, p. 375) Em
comparação com as Constituições brasileiras anteriores, os 70 de artigos de 1988 são o
dobro do segundo ADCT mais extenso de nossa história, 36 artigos, em 1946 583. Uma
possível explicação para o seu tamanho pode advir da tese de Arantes e Couto (2008):
Constituições elaboradas em períodos democráticos, e o caso brasileiro se confirmou em
sua análise empírica feita pelos autores, tendem a ser mais robustas.
Em rápida classificação dos dispositivos lá contidos584, inspirado pela “Metodologia
de Análise Constitucional” de Arantes e Couto (2002, 2006, 2008), é possível perceber que
a maior parte dos dispositivos585 contidos no ADCT são policy (ver Gráfico 1).

583
Art. 60 § 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
584
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e Valorização do Magistério
585
Art. 212 - União aplicará, anualmente, nunca menos de dezoito, e os Estados, o Distrito Federal e os
Municípios vinte e cinco por cento, no mínimo, 1194
da receita resultante de impostos, compreendida a
proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino.
GRÁFICO 1 – PERCENTUAL DE POLITY E POLICY NOS DISPOSITIVOS DO
ADCT DE 1988

Fonte: Elaboração Própria a partir do Banco de dados do DATAPOL

A quantidade de policy presentes no texto é expressiva, e se torna ainda mais


interessante quando a comparamos com os dados de Arantes e Couto (2008) em relação
ao corpo central da Carta: 496 dispositivos de policy - (30,5%) e 1131 de polity (69,5%). É
relevante analisarmos também essa classificação nas diversas seções da Constituição, tal
como fizeram os autores em 2006 (Gráfico 2).

GRÁFICO 2: POLITY OU POLICY NOS NOVE TÍTULOS DAS


CONSTITUIÇÕES (EM %)

Fonte: Couto e Arantes (2006)

1195
Apesar da grande quantidade de policies nas seções temáticas da Carta, com
destaque para a “Ordem Social” (60%) e “Ordem Econômica e Financeira” (70%),
consideradas pelos progressistas o grande ganho oriundo da Assembleia Nacional
Constituinte e pelos mais conservadores como “entulho nacional-desenvolvimentista”
(idem, 2006, p. 43), é interessante destacar os quase 80% de policy nas Disposições
Constitucionais Gerais. A despeito do menor número de dispositivos tanto deste como do
ADCT, parece que o constituinte originário legou partes “gerais” da Constituição para
dispor de políticas públicas, mesmo que relativas às seções temáticas da Carta, e também
para estabelecer a agenda futura de reformas e regulamentações.
Contrariamente à posição de Gustavo Capanema, deputado constituinte em 1946,
de que os dispositivos transitórios deveriam ter sido escritos a partir de uma “lei
constitucional transitória”, à parte da Carta Constitucional, por crer que “incorporá-los ao
texto constitucional, destinado a vigorar indefinitivamente, não [é] de boa técnica jurídica”
(Dantas, 1995, p. 142); Raul Machado Horta (1995, apud RAAD 2008) e Anna Cândida
da Cunha Ferraz (2012) atestam que o distanciamento entre as normas de transição e a
Constituição se desfez quando a própria Carta de 1988 as “incorporou ao seu conteúdo
material, [...] com a função de regular a permanência de situações anteriores à vigência da
Constituição nova“ (RAAD, idem, p. 391, grifo nosso). Para Ferraz, é a partir do princípio
da “unidade da Constituição” que podemos derivar a interpretação dos dispositivos
transitórios, de onde também decorrem duas consequências: “as normas constitucionais
transitórias podem servir de parâmetro para legislação infraconstitucional, [...] [e] não são
passíveis de serem fulminadas elas próprias de ‘normas inconstitucionais’” (2012, p. 369).
Mesmo havendo divergência entre normas transitórias e do corpo central da Carta, trata-se
de “contingência necessária de sua finalidade normativa”, que por vezes é a própria exceção
– temporal – à norma permanente.

O EXAURIMENTO DO ADCT E SUA POSSIBILIDADE DE REFORMAS

Aceito o caráter constitucional das normas transitórias como o fez a jurisprudência


(vide ADIns 829, 830 e 831, analisadas adiante), estão elas “sujeitas, em princípio, às
mesmas normas e limitações impostas para a mudança das demais normas constitucionais”
(FERRAZ, 2012, p. 371). Mas há certo cuidado, ou deveria haver em tese, com algumas
de suas características.

1196
Primeiramente, há de se admitir que as disposições transitórias não estão no rol de limitações
do artigo 60, e sobretudo em seu parágrafo 4º586, da CF/88. Em segundo lugar, Ferraz (idem) coloca
que “a irreformabilidade só se constata onde atua a impossibilidade” (ibidem, p. 371). No caso do
ADCT, uma norma transitória que já produziu seus efeitos, onde seu prazo está consumado, não
seria passível de reforma.
Por fim, a autora aponta que “é de se ter como inconstitucional a atuação do Poder
Constituinte Derivado quando modifica as Disposições Transitórias para suprimir, alterar ou incluir
no texto normas que não se compatibilizem com a finalidade apontada” (ibidem, p. 372).
Há de se questionar então se as normas presentes no ADCT original já se
concretizaram ou exauriram, como sua finalidade impunha. Analisando o panorama onze
anos após a promulgação da Carta, Ferraz (idem) dá resposta negativa à questão: para a
autora, o processo de transição constitucional ainda não estava inteiramente concluído.
Por um lado, os dispositivos nitidamente transitórios e casuísticos – e aqui se destaca
a transição eleitoral presente no começo do Ato – foram implementados e por isso se
exauriram, por seu próprio prazo ou por regulamentação legislativa – como por exemplo
o Código do Consumidor (art. 48 do ADCT; Lei nº 7078/90) –; e até mesmo a Revisão
Constitucional (art. 3º) prevista pelo Ato já se deu no prazo estipulado. A autora conclui
que “não se pode mais dizer que a Constituição de 1988 é uma Constituição Provisória em
razão da previsão, antes existente, da revisão de suas normas” (ibidem, p. 380, grifo no
original).
Por outro há normas que não estão esgotadas. Dentre estas, Ferraz – a autora se
baseia em 1999 para seu estudo – destaca o art. 42, que determinava a obrigatoriedade de
investimentos em irrigação em regiões específicas do país por 15 anos e o art. 40, que
mantinha a Zona Franca de Manaus por 25 anos. Dispositivos essencialmente de policy e
que não condizem com a transição – normas de natureza autônoma, nas palavras de Ferraz
– entre ordenamentos jurídicos. Os dois artigos em questão foram regulamentados ou
emendados posteriormente. E é justamente o emendamento do ADCT que complexifica
a questão de seu exaurimento.
Das 95 Emendas Constitucionais promulgadas até o fim de 2016, 35 delas (cerca
de 37%) alteraram ou incluíram dispositivos no Ato Transitório. O Gráfico 3, a seguir,
discrimina as emendas pelo tipo de mudança realizada.

586
A mudança de nome para Fundo de Estabilização Fiscal demonstra, assim como os debates à época
(Cardoso, 1998) que o objetivo era o ajuste fiscal e a Reforma do Estado.

1197
GRÁFICO 3 – EMENDAS CONSTITUCIONAIS RELATIVAS AO ADCT POR
TIPO DE MUDANÇA

Fonte: Elaboração Própria a partir do Banco de dados do DATAPOL.

Se tivemos Emendas que alteraram normas essencialmente transitórias – como a


EC 2/1992, analisada adiante – ou que alteraram o prazo da transitoriedade de alguns
dispositivos – como por exemplo a EC 43/2004, que aumentou o período de investimentos
em irrigação nas regiões Centro-Oeste e Nordeste – , em contrapartida houve, a partir da
EC de Revisão 1/1994 (que instituiu o Fundo Social de Emergência), a adição de artigos
ao ADCT, mais uma vez compostos de policy, e emendas como a EC 41/2003, que
modificaram ou aplicaram o ADCT como qualquer outra norma do Corpo Central. No
caso da EC 41/2003, aplicou-se o art. 17 do Ato às situações previstas no corpo permanente
(RAAD, 2008).
Nas seções seguintes, veremos o processo de mudança no ADCT, que abrange
tanto mudanças formais – reformas e emendamentos – quanto informais – mutações e
reinterpretações, e a partir da análise da trajetória das mudanças, verificar o
estabelecimento de sua agenda própria de reformas.

A MUTAÇÃO DO ADCT: DAS REFORMAS TRANSITÓRIAS À


REINTERPRETAÇÃO

Tão cedo foi promulgada a Constituição de 1988, as tentativas de reformá-la vieram


à pauta do Congresso Nacional. Em 6 de outubro de 1988 – um dia após a promulgação –
, já se apresenta a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 1/1988, do Dep. Amaral

1198
Netto (PDS-RJ), que tentava consultar a população, via plebiscito, sobre a instituição da
pena de morte no Brasil. Logo em seguida, as PECs 2/1988 e 3/1988, dos Dep. Victor
Faccioni (PDS-RS) e César Cals Neto (PDS-CE) respectivamente, já visavam alterar o
ADCT. Ambas traziam mais uma vez à tona o debate sobre o sistema político brasileiro, a
ferrenha disputa entre presidencialistas e parlamentaristas que não se esgotou na
Constituinte. Sinal disso foi a aprovação do Artigo 2º da ADCT, que deu uma segunda
chance aos parlamentaristas derrotados na Constituinte (Limongi, 2008) via consulta
popular marcada para 7 de setembro de 1993. Os autores das PECs 2 e 3, de 1988, visavam
introduzir o sistema parlamentarista antes mesmo da realização do plebiscito revisor. Nessa
mesma linha seguem outras propostas de mesmo cunho, como a PEC 12/1989, do Dep.
Jorge Arbage (PDS-PA) e outras, que calharam em uma nova PEC do próprio Dep. Victor
Faccioni (PEC 24/1989). Esta útlima PEC “aglutinadora” das anteriores mantém o
plebiscito apenas para a forma de governo, monarquia ou república.
Outras tentativas de reformar o ADCT logo nos primeiros anos de vigência da
CF/88 se atêm a dispositivos estritamente transitórios e principalmente de polity (destaque
ao processo eleitoral que viria nos próximos anos), com exceção de uma (PEC 10/1989).
São exemplos destas:

-PEC 10/1989, do Dep. Orlando Pacheco (PFL-SC): altera o Art. 57 do ADCT


visando estender o prazo para o pagamento de débitos previdenciários dos estados e
municípios.
-PEC 23/1989, do Dep. Moema São Thiago (PSDB-CE): altera o Art. 4º do ADCT
com o objetivo de reduzir o mandato do Presidente José Sarney; o disposto originalmente
para seu término era de 15 de março de 1990 enquanto o proposto era 31 de janeiro do
mesmo ano.
-PEC 30/1989, do Dep. Ney Lopes (PFL-RN): altera o Art. 5º do ADCT para
regulamentar as eleições de 1990
-PEC 40/1989, da Dep. Raquel Cândido (PDT-RO): altera o Art. 4º do ADCT
também visando reduzir o mandato de Sarney ao dia 15 de fevereiro de 1990.
-PEC 48/1990, do Dep. Jesus Tajra (PFL-PI): altera o Art. 4º do ADCT para
modificar a data de posse dos governadores eleitos em 1990, de 15 de março de 1991 para
1º de janeiro do mesmo ano.

1199
Até este ponto, porém, nenhuma das propostas logrou chegar à votação final em
Plenário, sendo todas arquivadas. O ponto de inflexão nesse sentido é a PEC 51/1990, do
Dep. José Serra (PSDB-SP), da qual vale a pena acompanhar a tramitação. Na justificativa
de seu projeto (Diário da Câmara dos Deputados, 08 de Novembro de 1990, p. 11784), o
Deputado volta à discussão do plebiscito, tentando a partir de sua proposição antecipar
tanto a consulta popular, de setembro para abril de 1993, quanto a Revisão Constitucional
em um ano, para 1992, alegando que o ano seguinte, eleitoral (pleito proporcional, para a
Câmara e dois terços do Senado), os representantes estariam em seus redutos eleitorais
trabalhando em campanha. Argumenta também que em 1992, grande parte dos deputados
e senadores já estaria em serviço há mais de um ano e meio, capazes de avaliar o sistema e
a Carta em voga.
A proposição foi aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
(CCJC), e a única referência nesse estágio à problemática de emendar o ADCT é o voto
em separado, pela inadmissibilidade, do Dep. Hélio Bicudo (PT-SP):

A intertemporaneidade da disposição transitória quer dizer que ela


resolve os conflitos no tempo entre as normas anteriores e as novas. [...]
No caso, parece-me, data vênia, inaceitável não considerar-se, no exame
do problema, isto é, na questão da admissibilidade da proposição, o
problema de fundo relativo à competência desta Comissão [...]; não se
pode esquecer – circunstância da maior relevância – que não fazem parte
do texto constitucional. São disposições à parte e que, destarte, não
podem ser objeto de emenda constitucional. [...] As disposições
transitórias agora em exame não são normas intertemporais, mas normas
excepcionais, que se esgotam desde que cumpridas, ensejando, sem
determinar, transformações institucionais. E é por isso mesmo que não
tem, in limine, fundamento constitucional buscar-se a modificação ou a
derrogação de uma tal disposição mediante emenda ou qualquer outra
alternativa legiferante. Elas não são direito. Trazem apenas uma
expectativa de transformação que pode, sequer, ocorrer. Tanto no plano
plebiscito, como no plano da revisão. No primeiro caso, mantido o
sistema presidencialista e, no segundo, não tendo as emendas
apresentadas – porque somente através delas se pode operar quaisquer
modificações na Carta – obtido a maioria absoluta dos votos dos
membros do Congresso Nacional, permanecerá a Constituição de 1988,
tal como ela é, sem alterações (Diário da Câmara dos Deputados, 8 de
agosto de 1991, pp. 12929-12930, grifos no original).

O voto do deputado petista foi vencido sob o argumento – retirado do voto do


relator, Dep. Roberto Magalhães (PFL-PE) –, de que o constituinte originário deixou
diversas lacunas em aberto ao redigir os artigos 2º e 3º do ADCT: a data da Revisão
Constitucional de forma mais específica (consta apenas “após 5 anos contados da

1200
promulgação da Constituição” no texto original); o início da vigência do parlamentarismo
e/ou da monarquia, caso aprovados; a falta de informação sobre quem seria o soberano e
as formas de sucessão ou as linhas-mestras do parlamentarismo adotado; período em que
se deveria concluir a revisão constitucional. Ao fim de seu relatório, o relator sugere ao
autor tais modificações no projeto, e o rito continua no trajeto ritual de Proposta de
Emenda à Constituição, com a criação de Comissão Especial, à revelia do voto e da
recomendação do Dep. Hélio Bicudo.
A Comissão Especial criada para analisar a PEC fez questão de mais uma vez
reafirmar a possibilidade de emendamento do ADCT. O relator da matéria nesta nova
etapa, mais uma vez o Dep. Roberto Magalhães, enumera as mesmas razões levantadas por
Ferraz acima. São elas:

a) não há qualquer disposição na Carta Constitucional vigente que


assegure a intangibilidade das normas do AD
b) somente as matérias constantes do art. 60, § 4 da Constituição vigente,
as chamadas normas pétreas, são insuscetíveis de emenda;
c) se as normas permanentes da Carta, excetuadas as previstas no art. 60,
são passíveis de modificação, com maior razão as normas transitórias
devem sê-lo. (Diário da Câmara dos Deputados, 1º de setembro de 1992,
p. 19544)

A PEC é aprovada e se torna a primeira Emenda ao ADCT. Neste primeiro


momento, abre-se um precedente, apesar dos questionamentos, sobretudo do Dep. Helio
Bicudo, quanto à possibilidade de emendas ao Ato. Neste primeiro caso, porém, não
podemos afirmar que o projeto se afasta da finalidade transitória, já que regulamentou e
modificou aspectos da Revisão Constitucional e do Plebiscito sobre o sistema de governo.
Houve, dado o amplo debate no Congresso, pelo menos quatro Ações Diretas de
Inconstitucionalidade impetradas ao STF visando “derrubar” a Emenda recém-aprovada.
Seus autores foram: o Partido de Reedificação da Ordem Nacional (PRONA), ADIn 829-
3 (DF); o Partido Socialista Brasileiro (PSB), ADIn 830-7 (DF); a Confederação Nacional
da Pecuária (CONAPEC), ADIn 831-5 (DF); e o Governador do Estado do Paraná, ADIn
833-1 (DF).
Os argumentos para a suposta inconstitucionalidade se mostraram basicamente os
mesmos nas quatro ações e as respostas do STF também, com ressalva apenas à ADIn da
CONAPEC, que não foi “conhecida” pelo Supremo Tribunal Federal por ilegitimidade
da parte requerente.

1201
As entidades argumentaram, para nossos propósitos de análise do ADCT,
convergentes com a posição do Dep. Hélio Bicudo durante a tramitação na Câmara.
Colocam que o art. 60 da Constituição permitiria ao poder constituinte derivado apenas a
reforma da parte permanente da Carta.
O STF responde usando-se da mesma argumentação do relator Dep. Roberto
Magalhães, demonstrando a possibilidade de reformas do ADCT; e a partir do princípio
de “unidade constitucional”, relembrando que também ao Ato as únicas restrições cabíveis
ao emendamento são as contidas no art. 60, § 4º da CF/88 (cláusulas pétreas). A própria
instância responsável pela “guardiania” da Constituição, por sua última interpretação,
portanto, abre o precedente para sua modificação. Sobre o conteúdo da EC 2/1992, o STF
parece também se ater ao fato de que a emenda não se afasta da transitoriedade e da mesma
forma não fere nenhuma das cláusulas pétreas: segundo o relatório, o art. 2º do ADCT
expressa clara ressalva à separação dos poderes, e a emenda apenas regulamenta e dá nova
data à consulta popular já prevista pelo constituinte originário, assim como à Revisão
Constitucional.
É, porém, na própria Revisão Constitucional que reside nosso segundo ponto de
análise. É durante este período que se acrescentam novos artigos ao ADCT pela primeira
vez, sob a EC de Revisão (ECR) 1/1994. Infelizmente não foi possível acompanhar a
tramitação do projeto e seus debates, visto que nas bases de dados tanto da Câmara dos
Deputados, como do Senado e do Congresso Nacional (responsável pela Revisão
Constitucional) não se encontram o projeto originário, as atas ou as notas taquigráficas do
processo decisório. A única informação relevante encontrada no período é a da PEC
179/1993, prejudicada em vista do Parecer 24/94, este parte integrante da tramitação da
ECR 1/1994. Tal PEC nos levanta mais dúvidas do que respostas, já que apesar do
conteúdo similar e de mesma autoria que o projeto que resultou na ECR 1/1994, se
aprovada teria realizado a mesma alteração no corpo central da Constituição.
De qualquer forma, a Emenda abre um segundo precedente ao nosso ver: uma
mutação – alteração não-formal de mudança constitucional – que reinterpretou a função
do Ato Transitório, com alterações “do significado, do sentido e do alcance das disposições
constitucionais” (Ferraz, 1986, p. 9) dando legitimidade a adentrarem este título à parte da
Constituição novo tipo de dispositivo. A mutação, no sentido que lhe impõe Ferraz (idem)
acontece, porém, com a própria alteração da letra do ADCT causada pela ECR 1/1994.
Seu texto adiciona os Artigos 71, 72 e 73 ao Ato. O artigo 71 nos demonstra a mutação em
questão:

1202
Art 71. Fica instituído, nos exercícios financeiros de 1994 e 1995, o
Fundo Social de Emergência, com o objetivo de saneamento financeiro
da Fazenda Pública Federal e de estabilização econômica, cujos recursos
serão aplicados no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação,
benefícios previdenciários e auxílios assistenciais de prestação
continuada, inclusive liquidação de passivo previdenciário, e outros
programas de relevante interesse econômico e social.

A criação do Fundo Social de Emergência não é uma política transitória, muito


menos entre dois ordenamentos jurídicos. A ECR 1/1994 faz com que o conceito de
transitório seja acrescentado de um componente provisório. Acreditamos que é a partir de
tal mutação que se abre a possibilidade de uma agenda própria de reformas do ADCT.
Este não é, porém, a única característica que guia sua alteração. A próxima seção busca
outros possíveis condicionantes.

QUADRO GERAL DAS REFORMAS E DA AGENDA PRÓPRIA DO ADCT

Podemos, a partir do processo traçado acima, apresentar algumas características


que podem ter favorecido o emendamento do ADCT e o possível desvirtuamento da sua
finalidade principal, dando nova “função” a ele.
Em primeiro lugar, a classificação apresentada por Barroso, acima, apesar de
condizente com um Ato Transitório ideal, não corresponde exatamente ao ADCT de
1988. Os três tipos de dispositivos estão presentes na Carta, mas poderíamos acrescentar
ao menos mais uma categoria: dispositivos que regulam provisoriamente determinada
política, sem menção à legislação que resolveria por definitivo a questão. São exemplos
desse tipo de dispositivo os Artigos 40, 42 e 60:

Art. 40. É mantida a Zona Franca de Manaus, com suas características


de área livre de comércio, de exportação e importação, e de incentivos
fiscais, pelo prazo de vinte e cinco anos, a partir da promulgação da
Constituição.

Parágrafo único. Somente por lei federal podem ser modificados os


critérios que disciplinaram ou venham a disciplinar a aprovação dos
projetos na Zona Franca de Manaus.

Art. 42. Durante quinze anos, a União aplicará, dos recursos destinados
à irrigação:

I - Vinte por cento na Região Centro-Oeste;

1203
II - Cinquenta por cento na Região Nordeste, preferencialmente no
semiárido.

Art. 60. Nos dez primeiros anos da promulgação da Constituição, o


Poder Público desenvolverá esforços, com a mobilização de todos os
setores organizados da sociedade e com a aplicação de, pelo menos,
cinquenta por cento dos recursos a que se refere o art. 212 da
Constituição, para eliminar o analfabetismo e universalizar o ensino
fundamental.

Apesar do parágrafo único do Art. 40 indicar “lei federal”, não se estabelece uma
relação de necessidade de regulamentação. Para tal sorte de dispositivos, então, houve um
padrão no tipo de emendamento: prorrogação do prazo da policy. Para o Art. 40, a EC
42/2003 – Emenda da Reforma Tributária – adicionou mais 10 anos ao seu prazo de
vigência. Para o Art. 42, a EC 43/2004 mudou a vigência do dispositivo de “quinze anos”
para “vinte e cinco anos”; posteriormente, a EC 89/2015 alterou o mesmo prazo para
“quarenta anos”.
Por fim, o Art. 60 merece mais atenção. Foram 3 Emendas Constitucionais o
alterando. A primeira, EC 14/1996, é a que estabelece o FUNDEF587, fundo contábil que
se destinaria à aplicação dos – a partir desta emenda – 60% do disposto no Art. 212 da
CF/88588 à manutenção e desenvolvimento do ensino fundamental pelo período agora
estendido de 10 anos a partir da promulgação da EC. A segunda Emenda prorrogou o
Fundo Social de Emergência (FSE) – agora com o nome de Fundo de Estabilização Fiscal
(FEF), criado pela EC de Revisão 1/1994 (analisada acima), também com o fim em tese de
financiar as políticas de educação e também saúde589. Já a terceira Emenda, EC 53/2006
prorrogou mais uma vez o financiamento da educação, com a “nova versão” do FUNDEF
feita no governo do presidente Lula: o FUNDEB590.
O desenvolvimento do Art. 60 do Ato de um “esforço de mobilização” em prol da
educação e da erradicação do analfabetismo a um dos pilares da política educacional
nacional, sobretudo no que toca ao seu financiamento, nos leva à segunda característica da
transformação do ADCT: o estabelecimento de uma agenda própria de reformas.

587
Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização do Magistério.
588
Art. 17 §2 É assegurado o exercício cumulativo de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de
saúde que estejam sendo exercidos na administração pública direta ou indireta.
589
“[...] Institutional change often occurs precisely when problems of the rule interpretation and enforcement
open up space for actors to implement existing rules in new ways”
590
Em tese, renovar uma política pública de tempos em tempos pode significar ter de reunir maiorias para
referendar sua reaprovação. O caso da derrota da CPMF 1204 em 2007, após mais de 10 anos de vigência, ilustra
isso.
A ECR 1/1994, como vimos, foi a primeira modificação no ADCT que lhe
acrescentou artigos. Ao fazê-lo, reiteramos, o constituinte derivado transformou o
significado de transitório: a partir da ECR 1/1994 e sobretudo nos Artigos criados após a
publicação original, a transitoriedade não mais significa a passagem entre dois
ordenamentos jurídicos, mas políticas provisórias. Constituem exemplos dessa prática não
só a política educacional do FUNDEF e do FUNDEB, mas também as Emendas que
originaram e prorrogaram a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira
(CPMF – Art. 74, 75, 90) e a Desvinculação de Receitas da União (Art. 76, 76-A e 76-B),
sucessora do FSE e do FEF.
As políticas mencionadas acima (FUNDEF, FUNDEB, FSE, FEF, CPMF e DRU)
têm pontos em comum: arrecadação e organização de fundos com a finalidade, em tese,
de financiar políticas de saúde (CPMF) e educação (FUNDEF, FUNDEB). Com o tempo,
porém, como a própria transformação da nomenclatura de FSE para FEF, e tendo seu
ápice com a DRU, tais políticas se tornaram maneiras de desvincular gastos e legar ao
governo liberdade para gerir sua arrecadação.
As sucessivas transformações da CPMF na ocasião de suas prorrogações
demonstram este processo. Concebida inicialmente como uma fonte exclusiva de
financiamento para a saúde, após a criação do SUS e a desvinculação em relação à
previdência social (Jatene, 2011), outras finalidades foram sendo dadas à Contribuição com
o passar do tempo. A Tabela 1 mostra as diversas ECs relativas à CPMF e o destino do
montante arrecadado:

TABELA 1 – EMENDAS DA CPMF E DESTINAÇÃO DE RECURSOS

Emenda Destinação (Artigos do ADCT)


EC 12/1996 Art. 74 § 3º O produto da arrecadação da contribuição de que trata este artigo será
destinado integralmente ao Fundo Nacional de Saúde, para financiamento das
ações e serviços de saúde.

EC 21/1999 Art. 75 § 2º O resultado do aumento da arrecadação, decorrente da alteração da


alíquota, nos exercícios financeiros de 1999, 2000 e 2001, será destinado ao custeio
da previdência social.

1205
EC 37/2002 Art. 84 § 2º Do produto da arrecadação da contribuição social de que trata este
artigo será destinada a parcela correspondente à alíquota de:

I - vinte centésimos por cento ao Fundo Nacional de Saúde, para financiamento


das ações e serviços de saúde;
II - dez centésimos por cento ao custeio da previdência social;
III - oito centésimos por cento ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza,
de que tratam os arts. 80 e 81 deste Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias.

Fonte: Elaboração própria.

Concomitantemente, a partir de 2000, as Emendas Constitucionais que instituíram


e prorrogaram a DRU tiraram não só da CPMF, mas de todos os impostos e contribuições
federais (exceto a Contribuição Social do Salário-Educação), alguma porcentagem de sua
destinação original para gastos discricionários do governo: as ECs 27/2000 (criadora da
DRU), 42/2003, 56/2007 e 68/2011 estabeleceram o patamar de 20% de recursos
desvinculados; já a EC 93/2016 aumenta a alíquota a 30% e institui os Artigos 76-A e 76-
B, que estendem tal prerrogativa a Estados, Distrito Federal e Municípios. Merece atenção
também neste processo desvinculante a revogação pela EC 93/2016 do §3º do Art. 76
proveniente da EC 59/2009, que reduzia paulatinamente a zero os recursos desvinculados
da educação (art. 212 Cf/88).
Há ainda a última PEC aprovada, no fim de 2016, que pode entrar nesse contexto:
a EC 95/2016, do “Teto dos Gastos Públicos”, introduziu os artigos de 106 a 114, sob a
alcunha de “Novo Regime Fiscal”, visando “congelar” as despesas primárias dos órgãos
federais por vinte anos, fazendo de maneira geral com que os gastos do governo possam
aumentar apenas de acordo com a inflação. Isso pode significar, a partir de um cenário de
recursos escassos, o corte de despesas discricionárias (saúde, educação, policy
governamental em geral) para atender os gastos obrigatórios, já que aumentar o montante
de recursos ou o endividamento não seria possível.
Por fim, além dos dispositivos autônomos de policy já presentes no texto original e
prorrogados e da criação de sua agenda própria de emendamentos constantes por conta da
transformação de transitório em provisório, há ainda outro uso do ADCT pelo poder
constituinte derivado: partes transitórias e principalmente provisórias de policy
provenientes de reformas ao próprio texto central da Constituição.
São exemplos desta prática a EC 80/2014 e a EC 87/2015. A primeira, que ficou
conhecida como “PEC Defensoria para todos”, visou segundo seus autores ampliar a

1206
independência e a atuação autônoma da Defensoria Pública, inserindo-lhe em seção
exclusiva nas funções essenciais à Justiça (antes se encontrava junto à advocacia). As
alterações no corpo central da Constituição se limitaram a estabelecer sua “unidade, a
indivisibilidade e a independência funcional”. Já no ADCT, se encontra a transição para
tal princípio a partir da universalização da Defensoria Pública por todo o território
nacional:

Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será


proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à
respectiva população.

§ 1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal


deverão contar com defensores públicos em todas as unidades
jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.

§ 2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação


dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões
com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.

A EC 87/2015 regulamenta a sistemática da cobrança do imposto sobre operações


relativas à circulação de mercadorias, serviço de transporte interestadual e intermunicipal
e comunicação, entre entes subnacionais. Mais uma vez, no corpo central da Carta, os
dispositivos alteram alíquotas e a sistemática da cobrança intrafederativa. No ADCT, a
transição para o novo regime:

Art. 99. Para efeito do disposto no inciso VII do § 2º do art. 155, no caso
de operações e prestações que destinem bens e serviços a consumidor
final não contribuinte localizado em outro Estado, o imposto
correspondente à diferença entre a alíquota interna e a interestadual será
partilhado entre os Estados de origem e de destino, na seguinte
proporção:

I - para o ano de 2015: 20% (vinte por cento) para o Estado de destino e
80% (oitenta por cento) para o Estado de origem;
II - para o ano de 2016: 40% (quarenta por cento) para o Estado de
destino e 60% (sessenta por cento) para o Estado de origem;
III - para o ano de 2017: 60% (sessenta por cento) para o Estado de
destino e 40% (quarenta por cento) para o Estado de origem;
IV - para o ano de 2018: 80% (oitenta por cento) para o Estado de destino
e 20% (vinte por cento) para o Estado de origem;
V - a partir do ano de 2019: 100% (cem por cento) para o Estado de
destino.

1207
Pode-se perceber, portanto, que de três maneiras o ADCT transfigurou sua
finalidade inicial para se adaptar ao contexto pós-constiuinte, pós-Constituição Provisória:
a partir de policy provisória na publicação original; partindo do precedente (não
questionado no STF) da ECR 1/1994, criadora de uma agenda própria e provisória da
gestão orçamentária discricionária; e adotando dispositivos concernentes à transição à
implementação completa de novas policies e/ou ao caráter provisório de alguma parte de
tal política pública.
Observando a tabela montada por Raad (2008) a partir das diversas PECs
originárias da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, é possível observar que grande
parte delas toma parte da agenda descrita acima, correlatas à ela (instituição de novos
fundos provisórios, por exemplo) ou de outros dispositivos ainda não muito “aproveitados”
para o estabelecimento de novas agendas ao ADCT: alguns destaques são a administração
pública, sobretudo na gestão de pessoal (Art. 17591, por exemplo); casuísmo do pacto
federativo, como criação de novos estados e municípios, adequação de seu pessoal ou
transferências de políticas e financiamentos; questões eleitorais. O quadro abaixo seleciona
alguns exemplos retirados da tabela do autor:
QUADRO 1: PECS RELATIVAS AO ADCT SELECIONADAS SEGUNDO SUA
AGENDA

PEC Autor Ementa


Dá nova redação ao art. 60 do ADCT, dispondo que nos dez primeiros
anos da promulgação da EC 14/1996, os estados, o DF e os municípios
destinarão não menos de 60% dos recursos resultantes de impostos à
Deputada ANA manutenção e ao desenvolvimento da educação infantil e do ensino
342/01 CARDOSO e outros fundamental
Senador JEFFERSON Altera os arts. 84 e 85 do ADCT, instituindo o Fundo de
412/01 PERES e outros Desenvolvimento da Amazônia Ocidental
Acrescenta os arts. 90 e 91 ao ADCT, possibilitando que os servidores
Deputado GONZAGA públicos requisitados optem pela alteração de sua locação funcional do
2/03 PATRIOTA e outros órgão cedente pela do cessionário
Dá nova redação ao art. 167 da CF e acrescenta artigo do ADCT, para
Deputado BISMARCK assegurar recursos para a pesquisa científica e tecnológica, no âmbito das
94/03 MAIA instituições e entidades públicas
Deputado MARCELO Acrescenta artigo ao ADCT para estabelecer mandato de seis anos para
132/03 CASTRO e outros Prefeitos, Vice-Prefeitos e Vereadores eleitos em 2004
Deputado SANDRO Acrescenta artigo ao ADCT para instituir a Carreira de Administrador
317/04 MABEL e outros Municipal
Senador LUIZ
OTÁVIO e outros
(com apenso da PEC Acrescenta artigo ao ADCT, sobre a formação de novos municípios até o
495/06 339/04) ano de 2000

591
Mestrando em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos – IESP/UERJ. Email:
brunosalgadosilva@gmail.com.

1208
Altera o art. 212 da CF e o art. 76 do ADCT, autorizando estados e
municípios a fixarem percentual maior que o mínimo constitucional para
Deputada LUCIANA o desenvolvimento do ensino, desvinculando as arrecadações de impostos
538/06 GENRO e outros e contribuições sociais vinculadas ao ensino e saúde
Acrescenta artigo ao ADCT, vedando a criação, a incorporação, a fusão e
o desmembramento de municípios até que sejam promulgadas a lei
Deputado RAUL complementar e a lei que disciplinará os Estudos de Viabilidade
100/07 HENRY Municipal de que trata o §4º do Art. 18 da Constituição Federal
Deputado LUIZ
CARLOS HAULY e Fixa reserva de vaga na representação da Câmara dos Deputados e do
205/07 outros Senado Federal para mulheres
Fonte: Raad (2008), pp. 400-414

É importante destacar que a agenda desvinculante da gestão das arrecadações e


gastos do governo é uma das possíveis do ADCT, e provavelmente a mais extensa, visto
que a maior parte dos artigos adicionados ao Ato foram relativos a ela. Mas como
demonstra a diversidade de temas nas propostas acima elencadas, há diversas outras
possibilidades de novas agendas ao ADCT, além de sua função de ancorar partes
provisórias de políticas inseridas no seio da Carta.
É de questionar, para além de um desvirtuamento da finalidade original do ADCT,
a técnica legislativa empreendida nas sucessivas reformulações das mesmas políticas. A
CPMF, por exemplo, legou em “letra morta” diversos artigos cujos prazos já se exauriram,
assim como a própria política. Outras políticas, como a DRU, quando reformuladas
reescreveram seus artigos.

À TÍTULO DE CONCLUSÃO: O PROVISÓRIO PERENE E A ETERNA


TRANSITORIEDADE

“[...] Mudanças institucionais acontecem normalmente precisamente quando


problemas na interpretação das regras e em sua aplicação abrem espaço para atores
implementarem regras existentes de novas maneiras”592 (MAHONEY; THELEN, 2010, p.
4, tradução livre). As Constituições, de acordo com Ferraz (1986), são instrumentos
jurídicos estáveis. Mas isso não significa imutabilidade. “A eficácia das Constituições
repousa, justamente, na sua capacidade de enquadrar ou fixar, na ordem constitucional, as
vontades e instituições menores que a sustentam” (ibidem, p. 5). Isso se destaca de forma
veemente em uma Constituição recheada de políticas públicas como a brasileira, em que

592
Doutor em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos - IESP/UERJ. Email:
prolanzara@gmail.com

1209
governos podem (ou devem) se valer de mudanças em sua Carta Magna para exercer seus
poderes.
A implementação do Fundo Social de Emergência a partir da ECR 1/1994 se deu
em pleno embate contra a inflação e a crise contornadas pelo Plano Real. O fator
contextual é interessante à mutação constitucional. E, ao aceitarmos alguns princípios do
institucionalismo histórico e do path dependence, mudanças – mesmo que incrementais e
não-exógenas – contam para constituir a gramática e a forma de fazer política.
No caso da ECR 1/1994, o panorama de crise moveu os atores e criou um
precedente a partir da mutação do ADCT. O STF, que em ocasiões anteriores se retraiu
de intervir em situações em que foi chamado a partir de denúncias de vícios diversos em
políticas governamentais para permitir que o Executivo implementasse sua resposta ao
cenário econômico desfavorável – como no caso da proibição de liminares no Plano Verão
de Collor e da tendência governista no período analisado por Silva (2016) – permitiu que
um processo informal de mudança da Constituição tomasse forma.
O ADCT encontrou seu lugar e se acomodou como instrumento governativo
provisório e transitório. No campo econômico, por exemplo, o caráter provisório de
medidas de arrecadação e desvinculação de gastos para uma gestão econômica centralizada
e discricionária.
Tendo tomado tal posto, porém, o Ato tem se constituído de forma perene quanto
a algumas políticas. A CPMF, criada em 1993 enquanto IPMF, foi renovada por diversas
vezes até que em 2007 se exauriu. A DRU, resultado de um processo que começou com
o FSE e passou pelo FEF, ainda está vigente. O FUNDEB, um dos pilares da política
educacional, partiu da menção da intenção de esforços para erradicar o analfabetismo.
O ADCT, em suma, se tornou espaço central para as políticas públicas brasileiras,
a partir de um caráter perene e provisório ao mesmo tempo. Uma forma de “desengessar”
a perenidade constitucional e trazê-la à transitoriedade e à discricionariedade
governamental no manejo da máquina pública.
Este trabalho não deu conta de tratar deste fenômeno a fim de esgotá-lo, mas
levanta diversas outras questões: em primeiro lugar, partindo de um ponto de vista
estratégico, em que situações é mais ou menos favorável por prazos de vigência a políticas
públicas? Sob outra perspectiva, e levando em conta que o provável projeto original do
FSE tinha como destino o corpo central da Constituição, por que uma política pública

1210
como a DRU, vigente há tanto tempo, não adentra o corpo permanente da Constituição?593
Por fim, como sopesar a relevância, no manejo da máquina pública, entre a parte provisória
e suas inferências na parte permanente?

REFERÊNCIAS

ARANTES, Rogério Bastos; COUTO, Cláudio Gonçalves A Constituição sem fim. In:
DINIZ, S.; PRAÇA, S. (org.): Vinte anos de constituição. São Paulo: Paulus, p. 31-60,
2008.

COUTO, Cláudio Gonçalves; ARANTES, Rogério Bastos. Constituição ou políticas


públicas? Uma avaliação dos anos FHC. In: ABRUCIO, F. L.; LOUREIRO, M.R. O
Estado numa Era de Reformas: os anos FHC. Brasília: ENAP, 2002.

DANTAS, Ivo. Das disposições constitucionais transitórias (Uma redução teórica). Revista
de Direito Administrativo, v. 199, p. 79-87, 1995.

FERRAZ, Anna Candida da Cunha. Processos informais de mudança da Constituição. São


Paulo: Max Limonad, 1986.

GOMES, Sandra. O impacto das regras de organização do processo legislativo no


comportamento dos parlamentares: um estudo de caso da Assembléia Nacional
Constituinte (1987-1988). Dados, v. 49, n. 1, p. 193-224, 2006.

MAHONEY, James; THELEN, Kathleen (Ed.). Explaining institutional change:


ambiguity, agency, and power. Cambridge University Press, 2010.

RAAD, Kley Ozon Monfort Couti. Apontamentos sobre disposições constitucionais


transitórias. In: ARAÚJO, José Cordeiro et. alii. (Org.) Ensaios sobre impactos da
Constituição Federal de 1988 na Sociedade Brasileira. Brasília: Câmara dos Deputados,
Edições Câmara, pp. 387-417, 2008.

ROCHA, Antônio Sérgio. Genealogia da Constituinte: do autoritarismo à democratização.


Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 88, p. 29-87, 2013.

593
O BPC é destinado aos idosos (65 anos) e portadores de deficiências socialmente mais vulneráveis(renda
familiar per capita de até ¼ do salário mínimo), e que atualmente beneficia mais de 4milhões de famílias
(cerca de 16 milhões de pessoas).

1211
REFORMA DA PREVIDÊNCIA NO BRASIL: O PAPEL DAS
COALIZÕES DISTRIBUTIVAS E A PERCEPÇÃO DO SETOR
FINANCEIRO

Bruno Salgado SILVA594

Arnaldo Provasi LANZARA595

Resumo: A Seguridade Social contemplada pela Constituição Federal de 1988 representou um dos
maiores avanços da sociedade brasileira no que se refere à conquista de direitos sociais, vinculando-
os à condição de cidadania. A garantia desses direitos conferiu um protagonismo ao Estado
brasileiro no que se refere à sua capacidade de implementar políticas sociais, buscando assim
resgatar uma dívida social historicamente pendente. Contudo, a área da Seguridade, no Brasil, vem
enfrentando uma série de dificuldades desde a sua implementação, como o desvio de recursos do
Orçamento da Seguridade para pagamentos de despesas da dívida pública, as desonerações fiscais,
que ocasionam queda na arrecadação, e as diversas reformas que buscaram alterar sua natureza
protetiva. Atualmente, debate-se uma proposta de emenda à Constituição (PEC nº 287 de 2016)
que visa estabelecer novas regras para a aposentadoria, como ampliação do tempo de contribuição
e da idade para se aposentar, desvinculação dos benefícios assistenciais do salário mínimo, etc.
Apesar de forte resistência na sociedade, a proposta contempla as demandas do empresariado
industrial e financeiro, que possuem grande poder de articulação e barganha no atual governo,
estruturando uma “coalizão distributiva” pró-reforma Este trabalho tem como objetivo
compreender como determinadas coalizões distributivas exercem sua influência nos processos de
reforma no sentido de transformar os arranjos públicos de seguro social em esquemas privados de
capitalização. Procurar-se-á demonstrar, à luz da literatura especializada sobre as reformas
econômicas, que essas coalizões distributivas não são dissolvidas pelos processos de reformas
liberalizantes. Ao contrário disso, tais reformas intensificam o comportamento rent-seeking,
propiciando um novo ambiente decisório e institucional estruturado por coalizões distributivas.

Palavras-Chave: Coalizões distributivas. Previdência. Reformas. Sistema Financeiro.

INTRODUÇÃO

As análises políticas e econômicas fundamentadas nos argumentos da teoria


neoclássica sugerem que qualquer tentativa de o Estado proteger os interesses das
coletividades dos rigores da competição capitalista gerará, como consequência, ineficiências
alocativas e privilégios injustificáveis, que acabarão se voltando contra a realização do
“interesse geral”. Portanto, as reformas liberalizantes assumiriam uma dimensão

594
O RGPS é o regime previdenciário que atende aos trabalhadores da iniciativa privada e aos servidores que
não contam com regimes próprios de previdência, baseia-se no modelo contributivo e solidário de repartição.
595
O discurso identifica as políticas adotadas pela coalizão petista como responsável por desarranjar o
equilíbrio fiscal por haver gerado expectativas de inclusão em demasia.
1212
transcendente e refundacional, ao promoverem uma nova institucionalidade mais afeita à
realização plena e harmônica de tais interesses.
Importa ainda mencionar que este apelo abstrato ao interesse geral mascara as reais
intenções dos agentes que o evocam dissimuladamente para conferir um caráter “técnico e
neutro” a certas decisões de política pública, decisões estas de acentuado caráter privatista
e informadas pela ação estratégica das coalizões distributivas. Assim, no bojo dos processos
de reforma dos sistemas públicos de previdência, tornou-se comum evocar tal princípio
para justificar a necessidade da adoção de algumas medidas de natureza restritiva ou
privatizante.
A partir de documentos oficiais divulgados pela Confederação Nacional das
Instituições Financeiras, este estudo analisará a percepção deste setor sobre a recente
proposta de reforma previdenciária brasileira e sua capacidade de intervir na agenda
decisória como protagonista de um movimento de financeirização dos fundos da
seguridade social.
Este trabalho esta dividido em cinco seções além desta breve introdução. A segunda
seção discorre sobre o papel das coalizões distributivas nas reformas dos sistemas
previdenciários ao demonstrar como essas coalizões influenciam os processos de reformas,
possuindo vantagens organizativas para influir nas decisões de política pública. A terceira
seção analisa as recentes propostas de reformas liberalizantes no Brasil. À luz de
documentos divulgados pelo setor financeiro a quarta seção analisa a percepção deste setor
em relação à reforma previdenciária. A quinta e última seção conclui o trabalho

COALIZÕES DISTRIBUTIVAS E AS REFORMAS PREVIDENCIÁRIAS DE


NATUREZA PRIVATIZANTE

A economia política neoclássica assume que toda intervenção do Estado na


economia é resultado de contínuas tentativas de assegurar “reservas de mercado” por parte
de “coalizões distributivas”. Estas, cujo comportamento rent-seeking visaria capturar partes
do Estado para o seu próprio benefício, entrariam em conluio com as elites burocráticas
para maximizar os orçamentos e predar a economia. De acordo com essa perspectiva, as
reformas liberalizantes seriam fundamentais para dissipar o comportamento rentista do
horizonte das políticas econômicas (KRUEGER, 1974; BUCHANAN, 1980).
Contudo, como os ganhos das reformas econômicas orientadas para o mercado são
incertos e dilatados no tempo, como supõem essas teorias, haveria poucas chances de essas
reformas se concretizarem, pois haveria insuficiente apoio político para a consecução dos

1213
seus objetivos, e também poucos incentivos para os atores interessados nos seus resultados
se organizarem coletivamente. Aliás, os supostos beneficiários dessas reformas são
geralmente vistos, por essas teorias, como grupos caracterizados por certa fragilidade
organizativa vis-à-vis os grupos beneficiados pelas regulamentações e proteções do Estado
(OLSON, 1999).
Ainda de acordo com essas teorias, as reformas econômicas liberalizantes somente
lograriam êxito se os ambientes decisórios fossem insulados das pressões políticas
(NELSON, 1989; WILLIANSON, 1994). O insulamento decisório de certas esferas da
burocracia como pré-condição para realização das reformas econômicas seria, portanto,
uma exigência para o Estado criar “compromissos críveis” como incentivos à ação coletiva
dos agentes econômicos, criando condições propícias à institucionalização dos objetivos da
liberalização econômica. Assim, não se trataria simplesmente de produzir um ajuste
econômico e sim uma proteção institucional permanente aos agentes que dele se
beneficiam (NORTH, 1990).
No entanto, um assunto pouco discutido por essas teorias é como se forjam novas
coalizões distributivas no bojo mesmo dos processos de ajuste estrutural e de liberalização
econômica. Em primeiro lugar, deve-se destacar que os resultados das reformas
econômicas orientadas para o mercado não são distributivamente neutros. O fato é que as
capacidades de ação dos diversos atores sociais implicados nessas reformas podem se
tornar mais ou menos desiguais, dependendo dos incentivos gerados pela ação
governamental. O que deve ficar claro é que tais incentivos não são dispositivos dotados de
neutralidade. Ao contrário disso, eles se constituem como importantes estímulos para os
atores políticos e sociais que perseguem estratégias de reforma conferirem maior
legibilidade aos seus objetivos.
Desenvolvimentos teóricos mais recentes no campo do institucionalismo histórico
vêm demonstrando como as políticas de proteção social podem ser subvertidas pela ação
direta ou sub-reptícia dos interesses organizados e das coalizões distributivas (PALIER,
2005; HACKER; PIERSON, 2014). Tais coalizões tendem a acumular recursos suficientes
para explorar brechas e ambiguidades legislativas no curso da implementação dos
processos de reforma, criando uma variedade de “vias ocultas” que terminam por
inviabilizar as diretrizes estruturantes das políticas de proteção social (HACKER;
PIERSON, 2014). Conforme salientam Hacker e Pierson (2014), as políticas públicas
resultantes dos processos de reforma se constituem como um “prêmio” aos interesses
organizados. Atores sociais com horizontes largos de tempo, com suficiente informação e

1214
capacidade de ação coletiva, não se interessam apenas pelas vantagens de curto prazo de
uma política, e sim pelas “vitórias duradouras”, que são geralmente asseguradas durante os
processos de reforma.
Políticas de ajuste estrutural e reformas liberalizantes, tais como as reformas nos
sistemas de seguridade social, criam poderosos incentivos para a formação de coalizões
distributivas, que, ao contrário de serem dissolvidas, se apoiam em setores da burocracia,
especialmente nos setores ligados às áreas econômicas do governo, na expectativa de verem
os seus interesses contemplados (SCHAMIS, 2002).
É durante os processos de liberalização que se entrevê a dinâmica constitutiva
dessas coalizões. Grandes conglomerados financeiros, bancos de investimento, seguradoras
privadas são os potenciais ganhadores de uma dinâmica de mobilização de recursos que,
paradoxalmente, transforma os recursos concentradas pelo antigo Estado protetor e
“rentista” em fontes de um novo processo de apropriação de rendas e de reconversão
patrimonial das economias. Nesse processo, vislumbra-se uma convergência de
comportamentos entre as elites políticas proponentes das reformas e as elites econômicas
que delas se beneficiam (Idem, 2002). O resultado dessa convergência de interesses enseja
um processo de construção institucional cujo principal objetivo é constitucionalizar os
objetivos da reforma ao retirá-los da disputa política democrática, elevando os reclames
distributivos de uma determinada coalizão vitoriosa ao status constitucional. Os principais
objetivos da reforma, portanto, como a redução do conteúdo redistributivo do Estado,
induziriam mudanças que aumentariam a “capacidade do Estado” de proteger os direitos
de propriedade, extrair receitas,centralizar sua estrutura fiscal e administrativa, e de
institucionalizar de vez os objetivos do ajuste, inviabilizando quaisquer tentativas de se
modificar a política orçamentária para contemplar expectativas que ultrapassem os limites
da austeridade fiscal.
Em muitos casos, esses objetivos são logrados prescindindo da legitimidade
democrática das decisões políticas. Pois, em algumas situações e contextos, em que os
agentes econômicos possuem mentalidades e comportamentos rentistas, e onde o agir
predatório e as considerações distributivas de curto prazo pesam mais do que as decisões
de investimento baseadas num planejamento de longo prazo, torna-se tentador introduzir
reformas impopulares através de “circunstâncias políticas excepcionais”. E é mais tentador
ainda introduzi-las desse modo, especialmente quando expectativas de inclusão advindas
de mudanças geradas por políticas redistributivas se afiguram como ameaças ao status quo.
Assim, para conjurar tais ameaças, essas circunstâncias, colocadas em curso para

1215
“maximizar oportunidades de investimento”, tendem a se transformar numa instituição
regular.
É por isso que alguns entusiastas dessas reformas afirmam que o êxito delas
depende da “audácia” de um grupo seleto de tecnocratas dispostos a tomar medidas
impopulares, e claro, em circunstâncias políticas excepcionais (HARBERGER, 1993). E é
essa excepcionalidade que abre às coalizões reformistas uma “janela de oportunidade”,
uma conjuntura crítica, única talvez, para introduzir medidas de difícil digestão em
contextos democráticos. Assim, desde que o poder decisório se concentre nas mãos de
algum ministro das finanças, a exigência que se faz aqui é que este deve agir de forma
autoritária e enérgica para neutralizar os efeitos da política sobre a economia. E é de todo
o interesse de uma coalizão reformista que esse poder seja assim concentrado, pois dele
depende a conservação das vantagens de tal coalizão, a manutenção dos seus resultados
distributivos e a condição derradeira de pax nos mercados.
Nesse sentido, pode-se afirmar que as reformas orientadas para o mercado apostam
na construção de um novo arranjo institucional, um novo State building, cuja finalidade é
sempre proteger os ganhos de uma coalizão distributiva vitoriosa, a qual lucrou com o
desarranjo das políticas pregressas, especialmente as de corte redistributivo. Assim, a
estabilização dos resultados distributivos dessas reformas, em alguns contextos específicos,
passaria a depender da construção de um ambiente de credibilidade aos investidores; um
ambiente decisório orientado por uma legislação decisionista e “motorizada” pela
economia, o qual seria imposto para suplantar enclaves corporativos ligados aos interesses
do trabalho.
Propostas de reforma da seguridade social, que visam restringir benefícios ou
privatizar os fundos do seguro social, sempre foram objetos de cobiça por parte do
empresariado e do setor financeiro, pois elas criam expectativas de vultosas transferências
de recursos entre diferentes grupos da sociedade. Criam, por assim dizer, uma expectativa
de que a renda previdenciária entesourada para o pagamento de benefícios seja
alienada,tão logo se faça sentir os efeitos das medidas restritivas ou privatizantes sobre os
benefícios.Na visão dos agentes empresariais e financeiros, o desentesouramento dessa
renda caminharia a pari passu com o fortalecimento dos mercados de capitais. Ao
produzirem uma realocação de recursos da seguridade social para o setor financeiro, tais
reformas exacerbam os conflitos distributivos, alimentando a cobiça por crédito nos
mercados de capitais doméstico e internacional. Tais reformas, quando não optam por
uma total privatização dos fundos públicos previdenciários, à semelhança do que ocorreu

1216
em alguns países, a exemplo do Chile, tendem a produzir medidas restritivas que diminuem
a atratividade do seguro social público para a força de trabalho organizada, especialmente
para os trabalhadores com as maiores remunerações e rendimentos, tal como vem
ocorrendo em alguns países que consolidaram abrangentes sistemas de aposentadoria
fundamentados no chamado modelo bismarckiano de seguro social (PALIER, 2010).
Com essas reformas restritivas, os segmentos da força de trabalho que antes
dependiam dos benefícios do seguro social passam a estar liberados dos inconvenientes
relatados às obrigações solidárias (compulsórias) que os vinculavam aos sistemas públicos
contributivos.Assim, por força de algumas medidas introduzidas por essas reformas, os
trabalhadores são impelidos a trocar sua segurança material e ontológica por uma vulgar
aposta nas promessas de rentabilidade dos fundos de capitalização.
Como se verá a seguir, as recentes propostas de reformas liberalizantes no Brasil
propõem a constitucionalização dos objetivos do ajuste, e a conversão dos recursos da
previdência social em fundos de capitalização. Somam-se a estes argumentos o papel
desempenhado pelo setor financeiro que possui forte trânsito na atual Secretaria de
Previdência.

REFORMA PREVIDENCIÁRIA NO BRASIL

O novo processo de juridificação de direitos sociais inaugurado pela Constituição


de 1988 trouxe importantes inovações ao criar um sistema integrado de seguridade social,
com orçamento próprio e fontes diversificadas de financiamento, contemplando as áreas
de previdência, saúde e assistência. No que concerne à previdência, a Constituição Federal
instituiu o trabalhador rural como “segurado especial”, conferindo-lhe o direito ao
benefício de aposentadoria sem exigência de vínculo contributivo. Também inovou ao
equiparar o plano de benefícios para todos os trabalhadores, tendo sido fixado o piso no
valor de um salário mínimo, indexado aos níveis correntes de inflação. Ressalte-se ainda
que a assistência social no Brasil é um direito universal garantido pela Constituição,
contemplando benefícios que protegem os grupos em situação de risco, com destaque para
o Benefício de Prestação Continuada (BPC).596

596
O texto da reforma exige reparação somente ao dano efetivo e a perda das condições de saúde do
trabalhador, desconsiderando as situações de periculosidade no trabalho (DIEESE/ANFIP, 2017).

1217
Contudo, as mudanças sofridas pela economia brasileira nos anos 1990 produziram
enormes impactos sobre as proteções previdenciárias. Em 1994 foi instituída a
desvinculação de parte dos recursos da seguridade social com a criação do Fundo Social
de Emergência. Esse Fundo, depois renomeado Desvinculação das Receitas da União
(DRU), em 2000, permite que 20% das receitas da seguridade social sejam livremente
alocadas pelo governo federal, inclusive para pagamento dos juros da dívida. Esses desvios
do orçamento da seguridade social resultaram no subfinanciamento das políticas de saúde
e assistência, gerando também uma forte perda de receita para a previdência social.
No Brasil, as discussões sobre a reforma da previdência começam a ganhar
destaque após a estabilização inflacionária ocorrida com o Plano Real, durante o primeiro
mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-1999). O mote para a primeira
reforma da previdência centrou-se nos requerimentos de estabilização monetária e
equilíbrio fiscal, que então orientavam a agenda macroeconômica do governo, em vista do
suposto “déficit explosivo” das contas previdenciárias. A Emenda Constitucional n.20 de
1998, veio contemplar esses objetivos ao priorizar o equilíbrio financeiro do sistema,
introduzindo algumas mudanças, dentre as quais se destacam: a substituição da
aposentadoria por tempo de contribuição pela aposentadoria por tempo de serviço; fim da
aposentadoria proporcional e dos regimes especiais. Cabe destacar que algumas medidas
restritivas adotadas por essa reforma, como a Lei do Fator Previdenciário, tornaram as
regras de acesso às aposentadorias demasiadamente severas para os trabalhadores
brasileiros filiados ao Regime Geral de Previdência Social (RGPS)597, especialmente para
os trabalhadores com baixas remunerações e trajetórias irregulares de trabalho.
A segunda reforma da previdência ocorreu durante o início do primeiro mandato
do governo Lula (2003-2006). A Emenda Constitucional n.41 de 2003, fixou o limite de
idade e estabeleceu um teto máximo para as aposentadorias dos servidores públicos filiados
ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS) equivalente ao teto do RGPS. Assim, os
servidores que ingressaram no setor público após a promulgação da referida reforma
perderam o direito ao recebimento integral da aposentadoria. Os servidores que quisessem
receber um benefício de aposentadoria acima desse teto teriam de contribuir para os
fundos de previdência complementar.
Importa salientar que ambas as reformas abriram um precedente para a expansão
dos fundos de pensão no país, ao introduzirem medidas restritivas que diminuíram a

597
Ver a magistral obra de Polanyi(2000), especialmente o capítulo sobre o Speenhamland system.

1218
atratividade dos fundos da previdência pública, sobretudo para os trabalhadores cujos
salários de contribuição eram bastante superiores em relação aos salários médios de
contribuição dos trabalhadores filiados ao RGPS. Desde então, a chamada Previdência
Complementar, que organiza os fundos de capitalização das entidades abertas (com fins
lucrativos e individuais) e fechadas (sem fins lucrativos e destinadas aos empregados de
empresas e aos servidores públicos), tornou-se uma alternativa real de complementação
dos rendimentos de aposentadoria tanto para os servidores públicos como para os
trabalhadores da iniciativa privada que querem receber benefícios superiores aos valores
fixados pelo teto do RGPS.
Cabe destacar que a ampliação da margem de atuação dos fundos de pensão no
Brasil começa a ser efetivamente percebida como uma oportunidade de complementação
de renda, especialmente para esses trabalhadores, a partir do ano 2001, com o
reconhecimento explícito dessa atividade (LC n. 109, de 29/05/2001). A instituição dos
benefícios da Previdência Complementar também produziu um incentivo para que bancos
e seguradoras privadas explorassem o nicho da previdência complementar aberta. Como
resultado, esses agentes passaram a competir agressivamente por potenciais clientelas,
assediando inclusive os fundos de pensão fechados; estes, por sua vez, vislumbraram a
possibilidade de instituírem fundos individuais de capitalização, concorrendo com os
bancos e seguradoras privadas na oferta de planos de previdência privada (GRUN, 2003).
Contudo, as autoridades governamentais vedaram a possibilidade de esses fundos se
converterem em instrumentos puros de capitalização, proibindo sua aplicação em
operações arriscadas, especialmente durante o governo Lula.
Entretanto, o atual cenário político brasileiro, marcado pela interrupção do segundo
mandato da presidente Dilma Rousseff em setembro de 2016, lança dúvidas sobre o futuro
da seguridade social no país, abrindo um precedente para uma nova conjuntura
liberalizante.
Ao se observar o novo cenário político brasileiro, e o empenho com o qual a nova
coalizão política encaminha os projetos de reforma, entrevê-se que os objetivos de reforma
convergem para uma institucionalização permanente da austeridade econômica. Para as
elites políticas e econômicas que sustentam a coalizão reformista, há um entendimento
comum de que a políticas econômicas anteriormente adotadas pelos governos da coalizão
liderada pelo Partido dos Trabalhadores (PT), políticas que sustentavam o crescimento

1219
através da expansão do crédito, do pleno emprego e das medidas redistributivas, foram
responsáveis por mergulhar o país na crise598.
O diagnóstico que se fez, em relação às origens da crise, era o de que uma economia
operando muito próxima ao pleno emprego, como a economia política produzida pelos
governos da coalizão petista, pressionava em demasia os custos empresariais, elevando as
taxas de inflação. A única alternativa para debelar a crise seria adotar o receituário; uma
política econômica mais austera, capaz de desaquecer a economia, através da diminuição
do consumo, dos salários e do gasto público, elevando assim a taxa de desemprego. Seria
necessário, portanto, produzir uma terapia de choque. No final desse processo, o
crescimento surgiria espontaneamente, uma vez que o aumento da confiança dos
investidores impulsionaria o consumo e os investimentos privados (DIEESE, 2016).
Vale destacar que o ajuste fora produzido com base nesse diagnóstico. Além disso,
o coroamento institucional da austeridade, e que acusa o seu caráter permanente, deu-se
com a promulgação da Emenda Constitucional n. 241 de 2016 (PEC 241/2016), que fixa
por 20 anos um teto para o crescimento das despesas públicas. O propósito de tal medida
é estabelecer um “Novo Regime Fiscal”, constitucionalizando as metas da austeridade até
2036.
Cabe ainda ressaltar que as medidas previstas pelo “Novo Regime Fiscal” somente
lograriam se efetivar se fossem complementadas pelas reformas estruturais. É a partir desse
diagnóstico, portanto, que a ênfase se volta para a necessidade de mais uma reforma da
previdência, pois, de acordo com o Ministro da Fazenda “o problema fiscal brasileiro
decorre da existência de uma grande folha de previdência e assistência social, que
representa 70% dos dispêndios públicos” (BRASIL, 2016). Enfim, os entusiastas do Novo
Regime Fiscal asseveram que o teto de gastos inscrito na Constituição irá“ disciplinar o
conflito distributivo” na medida em que o mesmo terá que ser resolvido civilizadamente,
ou por meio de coerções legais.
Ora, é evidente que esse propósito revela a intenção da coalizão reformista de
ancorar a proteção institucional do investidor, ou a do rentista, na Constituição,
constrangendo especialmente o crescimento das despesas vinculadas à seguridade social.

598
A Confederação Nacional das Instituições Financeiras representa a: Associação Brasileira de Bancos
(ABBC), Associação Brasileira de Bancos Internacionais (ABBI), Associação Brasileira das Entidades de
Crédito Imobiliário e Poupança (ABECIP), Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e
Serviços (ABECS), Associação Brasileira das Empresas de Leasing (ABEL), Associação Nacional das
Instituições de Crédito, Financiamento e Investimento(ACREFI),Associação Brasileira das Entidades dos
Mercados Financeiro e de Capitais (ANBIMA), Associação Nacional das Corretoras e Distribuidoras de
Títulos de Valores, Câmbio e Mercadorias (ANCORD),
1220 Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN).
Com a aprovação dessa medida, pode-se antever outras possíveis consequências de caráter
mais imediato, quais sejam: a revogação ou alteração da política de valorização do salário
mínimo; e a desvinculação do piso dos benefícios previdenciários e assistenciais deste
patamar básico. Assim, em vista do fato de os benefícios da seguridade social (previdência
e assistência) seguirem a regra de reajuste do mínimo, as possíveis elevações das despesas
com esses benefícios não seriam mais toleradas pelas novas regras constitucionais
instituídas pela PEC 241/2016 (DIEESE, 2016:12).
A reforma da previdência seria a condição sine qua non para retomar a confiança
dos investidores. Com as escusas de que a previdência social seria o maior item de despesa
a “onerar” o orçamento, e tendo como justificativa as sempre recorrentes previsões
catastrofistas sobre o envelhecimento da população brasileira, a Proposta de Emenda à
Constituição 287/2016 (PEC 287/2016) propõe alterar o regime previdenciário brasileiro
mediante a adoção de medidas bastante restritivas.
A PEC 287/2016 é uma tentativa de inviabilizar sistemicamente o direito à
seguridade social consagrado pela Constituição de 1988. A proposta pretende unificar as
regras de acesso às aposentadorias, reduzindo o valor dos benefícios previdenciários e
assistenciais a patamares mínimos. Uma das medidas mais polêmicas, sem dúvida, é a
adoção da aposentadoria por idade (65 anos),desconsiderando as desigualdades de gênero
e de situações de trabalho, ao eliminar a redução de cinco anos de idade para a
aposentadoria do trabalhador rural e ao suprimir o direito concedido às mulheres de se
aposentarem com cinco anos a menos do que os homens. Prevê-se ainda uma drástica
redução do valor das aposentadorias, com taxas de reposição bastante baixas. Nesse
quesito, em particular, adotou-se regras irrealistas, considerando as especificidades do
mercado de trabalho brasileiro; um mercado de trabalho fortemente rotativo e que exibe
altos índices de informalidade. De acordo com as novas regras, o valor do benefício de
aposentadoria passa a ser calculado em 51% do salário de benefício mais um ponto
percentual por ano de contribuição, contra os atuais 70% mais um ponto por ano. Assim,
para ter acesso à aposentadoria integral (100% do salário de benefício), o trabalhador
brasileiro precisaria combinar 65 anos de idade e 49 anos de contribuição. Ou seja, o
trabalhador só terá direito ao valor integral do benefício de aposentadoria aos 65 anos, se
ele entrar no mercado de trabalho formal aos 16 anos (idade mínima para o trabalho) e
contribuir ininterruptamente por 49 anos (DIEESE/ANFIP, 2017).
Outras medidas restritivas dizem respeito às mudanças nas regras da aposentadoria
por invalidez, cujo acesso por parte do segurado dependeria da comprovação de sua

1221
incapacidade permanente para o trabalho, e das aposentadorias especiais, que deixariam
de ser concedidas para o exercício de atividades que efetivamente prejudiquem a saúde do
trabalhador.599 Merece destaque também a redução no valor das pensões, que além de
desvinculadas do salário mínimo passariam a ser calculadas em 60% do valor da
aposentadoria que o segurado recebe ou receberia caso se aposentasse por invalidez no
momento do óbito (DIEESE/ANFIP, 2017).
Medida também polêmica, e que atenta contra os direitos da população em situação
de vulnerabilidade, é a elevação progressiva da carência mínima de 65 para 70 anos para a
concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC), deixando sem qualquer proteção
parte considerável da população dependente desse benefício. Aliás, o fim da vinculação
dos benefícios ao piso do salário mínimo, proposto sem ressalvas para o BPC, ao mesmo
tempo em que põe em risco a manutenção do seu valor enseja uma oportunidade real para
desvincular o reajuste das aposentadorias do RGPS do valor do salário mínimo; medida
que a coalizão reformista considera ser indispensável para a consecução dos objetivos do
ajuste no longo prazo. Além disso, a coalizão reformista considera que esses benefícios
criam desincentivos para o trabalho, fazendo ecoar os velhos argumentos liberais que, em
outros contextos, justificaram a adoção das mesmas medidas restritivas como estímulos à
mercantilização do trabalho.600
Em compasso com as reformas anteriores, a atual reforma também abre um
considerável espaço de atuação para as seguradoras privadas e fundos de pensão. Aqui as
medidas restritivas visam novamente reduzir a atratividade da previdência pública para os
trabalhadores que recebem as maiores remunerações. Nesse quesito, a PEC 287 é explicita
no seu intento de acabar com os “privilégios” relacionados à aposentadoria dos servidores
públicos das três esferas de governo. Quanto aos servidores da União, a reforma propõe
que a regra atual de aposentadoria compulsória passe de 70 para 75 anos. A PEC 287
também obriga estados e municípios a criarem regime complementar de previdência e,
sobretudo, permite que sejam contratados benefícios complementares em planos abertos,
oferecidos por entidades privadas do sistema financeiro (DIEESE/ANFIP, 2017). Assim,
estaria aberto o caminho para a institucionalização de um pilar privado previdenciário no
país. Vale relembrar que em maio de 2016 foi formada a Frente Previdenciária que tem

599
O presidente do Bradesco, Luiz Carlos Trabuco, afirmou “temos responsabilidade no encaminhamento
das reformas” e que o caminho para a “retomada não será via consumo, mas sim via privatização”. (VALOR
ECONÔMICO, 2017)
600
Mestre e Doutoranda em Ciência Política; UFSCAR. brunaferrari03@gmail.com
1222
como objetivo avançar na construção de propostas para o fortalecimento da previdência
complementar e na interlocução com governo e entidades de representação (ANBIMA,
2017).

O SETOR FINANCEIRO E A REFORMA DA PREVIDÊNCIA

O que se percebe atualmente, após a instituição do Novo Regime Fiscal, é uma


aceleração legislativa das propostas de reformas de apoio ao ajuste constitucionalizado.
Cabe destacar que a nova coalizão política que governa o país deixou explícito que as metas
do ajuste constitucionalizado somente seriam cumpridas se a reforma da previdência fosse
aprovada.
Prova disso, é que uma das primeiras iniciativas do governo recém-empossado, em
2016, foi desarticular a burocracia do setor previdenciário. Grande parte da estrutura dessa
burocracia permanece atualmente subordinada ao Ministério da Fazenda, demonstrando
a intenção do atual governo de tornar o setor previdenciário um mero apêndice da área
econômica. Vale ainda enfatizar que, à testa da nova secretaria que trata dos assuntos
previdenciários, foi colocado um burocrata oriundo da área da previdência complementar
e com forte trânsito nos meios empresariais e financeiros. Ao analisar a agenda oficial do
secretário, disponível para consulta no site do Ministério da Fazenda, observa-se que
durante o período de julho e dezembro de 2016 (período em que a reforma estava sendo
gestada), a grande maioria de seus compromissos foram com o mercado financeiro,
empresas privadas e representantes patronais: cerca de vinte e um encontros com
representantes de bancos, fundos de pensão e fundos de investimentos (JP Morgan,
Bradesco, Santander, Itáu, BBM, XP investimentos, Pimco e GAP Asset Management);
três com organizações patronais e apenas um com as centrais sindicais (BRASIL, 2017).
Os fortes apelos do setor financeiro para que a previdência complementar se torne
uma realidade para os trabalhadores brasileiros é notória. Cada vez mais se observa
propagandas de bancos e seguradoras privadas na grande mídia com o objetivo de induzir
a população a se filiar a esquemas privados de previdência.
Contudo, é nos documentos produzidos pelas entidades do setor financeiro que se
entrevê com mais clareza as reais intenções dos agentes envolvidos com a reforma da
previdência. Em um documento intitulado “Agenda do Setor Financeiro 2017”, a

1223
601
Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) , entidade máxima de
representação dos interesses do sistema financeiro, deixa claro sua intenção de influir
diretamente no processo de reforma. 602 Por meio desse documento, a CNF afirma que sua
função é subsidiar o Congresso Nacional e o governo sobre temas ligados ao setor
financeiro, ou vinculados a questões que a afetam o “ambiente de negócios em que opera
o setor, tais como os trabalhistas e os previdenciários” (CNF, 2017: 27). Declara, portanto,
que pretende “desempenhar o papel que lhe reserva a Constituição” ao apoiar todas as
iniciativas que visem formar um ambiente de maior segurança jurídica para os contratos e
fortalecer o mercado financeiro, iniciativas estas que, segundo a entidade, serão
insuficientes se não vierem acompanhadas de uma mudança de mentalidade da população
brasileira em direção à acumulação privada de poupança. Assim, a estratégia da CNF,
explícita em tal documento, é apoiar iniciativas “que permeiem toda formação do futuro
consumidor”(CNF, 2017:26). O propósito da entidade é formar o consumidor em
perspectiva, instilando neste o apreço por um comportamento diligente no que se refere
às suas finanças pessoais; o foco aqui é o incremento da capacidade de poupança individual,
transformando o indivíduo imprevidente e dependente do Estado em um pequeno
investidor.
A subseção destinada ao reajuste dos benefícios merece destaque em função da
CNF afirmar que os reajustes das pensões e aposentadorias devem “atender às restrições
orçamentárias da União, estados e municípios”. A vinculação de reajuste dos benefícios
previdenciários ao salário mínimo pode implicar ganhos reais que não se justificam, porque
não refletem ganhos de produtividade. Ou seja, a Confederação defende que não existe
razão econômica que justifique a vinculação dos benefícios previdenciários aos reajustes do
salário mínimo. Em uma de suas justificativas afirma que a vinculação da correção dos
benefícios ao salário mínimo acarreta ônus excessivos nos orçamentos públicos dos entes

601
Outros membros interromperam seus trabalhos na comissão por diferentes motivos: Marcello Augusto
Diniz Cerqueira foi exonerado em julho de 2014, Wadih Damous renunciou em maio de 2015 para se
candidatar ao cargo de Deputado Federal pelo PT e Nadine Monteiro Borges se desligou em agosto de 2015.
No mesmo ano, Vera Ligia Huebra Neto Saavedra Durão (jornalista e ex-presa política) e Rosa Cardoso da
Cunha (advogada e ex-membro da Comissão Nacional da Verdade) passaram a compor a equipe.
602
Na literatura sobre o tema há um debate sobre a utilização do termo ditadura para se referir ao regime
político adotado no Brasil entre 1964 e 1985. Neste projeto, optamos por utilizar o termo ditadura civil-
militar por considerarmos o importante apoio de determinados setores da sociedade civil dado aos militares
tanto ao golpe em 1964 quanto ao longo dos 211224 anos deste regime (DREIFUSS,1981; MELO, 2012;
REIS,2012). No entanto não deixamos de considerar também os setores que fizeram importante resistência
à ditadura como: o movimento estudantil, o movimento operário e alguns setores da Igreja Católica
(MARTINS FILHO,2014).
federativos, e redução de sua capacidade de investimento em saúde, educação e segurança
(CNF, 2017: 29).
Segundo o documento, o modelo previdenciário brasileiro estaria consumindo a
sustentabilidade financeira do setor público, impedindo que os recursos orçamentários
sejam aplicados nos mais pobres. Também declara que o déficit explosivo da previdência
seria decorrente do próprio formato solidário do sistema previdenciário brasileiro, em que
as contribuições dos trabalhadores ativos financiam as aposentadorias da geração
precedente, em detrimento dos regimes de capitalização. Aponta ainda que seria um
equívoco circunscrever a “crise previdenciária” a um problema meramente atuarial de
combate ao déficit operacional do sistema, sugerindo que a solução para essa crise estaria
em fundar um “novo modelo previdenciário para novos trabalhadores” (CNF, 2017:27).
Assim, como proposta de reforma, a CNF defende que as aposentadorias sejam
organizadas em duas bases. A primeira corresponderia ao atual RGPS e se assentaria, por
sua vez, em dois pilares; um, com característica de benefício definido, cujo reajuste seria
desvinculado do salário mínimo, e em sistema de repartição (destinado para os
trabalhadores mais pobres); e outro de contribuição definida e em sistema de capitalização
(contas individualizadas), que cobriria os trabalhadores com “capacidade contributiva”. A
segunda base corresponderia à atual previdência complementar, aberta ou fechada – fruto
das reformas precedentes- que continuaria a atrair os trabalhadores com as melhores
remunerações (CNF, 2017:28). Portanto, estaria aberto o caminho para a construção de
um pilar previdenciário privado no país.

CONCLUSÃO

Este trabalho procurou demonstrar como determinados atores privados


compreendem a proposta de reforma da previdência e se articulam para influir na agenda
decisória do governo, atuando como protagonistas da formação de novas coalizões
distributivas interessadas na financeirização dos fundos da seguridade social.
A Seguridade Social brasileira é o mais importante mecanismo de proteção social
do país e um relevante instrumento de promoção do desenvolvimento. Além de
transferências monetárias para as famílias, da Previdência, do Trabalho e da Assistência
Social, contempla a oferta de serviços universais através do Sistema Único de Saúde (SUS).
Contudo, este arcabouço de proteção encontra-se atualmente ameaçado pelo
Novo Regime Fiscal e pelas reformas trabalhista e previdenciária. Deve-se salientar que os

1225
experimentos privatizantes de reforma nos sistema previdenciários são possíveis mesmo
em países como o Brasil, com sistemas públicos e relativamente abrangentes de seguro
social. A intensidade desses experimentos depende, sobretudo, dos resultados distributivos
que eles promovem. De certo modo, as promessas de ganhos futuros é o que incita a
formação de coalizões distributivas em torno das reformas dos sistemas previdenciários. E
isso também será proporcional à capacidade que essas coalizões possuem de perseguir
estratégias que subvertam os sistemas públicos de previdência, antecipando os efeitos
distributivos das políticas de reforma.
O fato é que a constitucionalização dos objetivos do ajuste, exemplificada pelo caso
brasileiro recente, vem se tornando uma regularidade na gestão das políticas
macroeconômicas de diversos países, convertendo-se num poderoso artifício de
neutralização das políticas redistributivas.

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WILLIANSON, J. The Political Economy of Policy Reform. Washington: IIE, 1994.

1227
AS COMISSÔES ESTADUAIS DA VERDADE

Bruna Ferrari PEREIRA 603

Resumo: Neste trabalho pretendemos apresentar variáveis e indicadores que permitam uma análise
sistemática das as comissões estaduais da verdade (CEV's) no Brasil, as quais foram estabelecidas
através da resolução n° 4 de 17 de setembro de 2012 da comissão nacional da verdade, para a
cooperação e intercâmbio de informações visando à eficácia dos procedimentos investigatórios
sobre os casos de graves violações de direitos humanos cometidos entre os anos de 1946 a 1988. A
formação desta rede de comissões da verdade dedicada à apuração dos fatos foi uma importante
inovação do país, possibilitando a ampla mobilização em torno de pesquisas e atividades
relacionadas à memória, à verdade e à justiça. Assim, experiência brasileira permitiu não apenas o
auxílio às pesquisas da comissão nacional na verdade, mas a possibilidade de continuidade de seus
trabalhos mesmo após a publicação do relatório final desta, em dezembro de 2014. Assim, o
principal objetivo deste trabalho é identificar como diferentes composições e naturezas político-
institucionais das CEV's impactaram nos níveis de institucionalização alcançados por cada comissão
e consequentemente nos resultados concretos atingidos. O principal material utilizado são os
projetos de lei, os relatórios finais e parciais destas comissões, além dos depoimentos de vítimas de
violações de direitos humanos prestados em audiências públicas promovidas pelas CEV's.

Palavras-chave: Comissão da verdade. Ditadura Militar. Instituições. Justiça de Transição.

INTRODUÇÃO

Neste trabalho pretendemos apresentar variáveis e indicadores válidos que


permitam uma análise sistemática dos trabalhos das comissões estaduais da verdade. Neste
caso, tomaremos como exemplo a Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, a qual teve
seu tempo de duração limitado entre 2013 e 2015. Para tanto, consideramos que a
comissão do Rio de Janeiro foi integrada por sete membros designados pelo então
Governador do estado Sérgio Cabral Filho do Partido do Movimento Democrático
Brasileiro (PMDB), vinculada à Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos
Humanos, e teve sua sede na Caixa de Assistência dos Advogados do Estado do Rio de
Janeiro (CAARJ), uma instituição com regulamento próprio e representante dos advogados
cariocas.
A comissão estadual da verdade do Rio de Janeiro (CEV/RJ), teve duração de dois
anos e oito meses, com a entrega de seu relatório final em dezembro de 2015 em cerimônia
no Palácio Guanabara. A comissão teve sete integrantes, dentre eles, permaneceram do

603
Estudo em andamento coordenado pelo Professor Doutor José María Gómez através do Núcleo de
Direitos Humanos do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-
Rio), a partir de uma parceria entre a CEV/RJ e a Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
1228
início ao fim: Álvaro Machado Caldas; Eny Raimundo Moreira; Geraldo Cândido da Silva
e João Ricardo Wanderley Dornelles604.
O processo de redemocratização no Brasil - permeado por acordos entre as elites
civis e militares - impediu o debate público sobre os crimes da ditadura605 e o marginalizou
na agenda política da transição. (VASCONCELOS, 2010, p.233). Uma das principais
consequências deste frágil processo consistiu na falta de acesso aos documentos em poder
das Forças Armadas produzidos no período, bem como na dificuldade de localização dos
mortos e desaparecidos políticos. (COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DO RIO
DE JANEIRO, 2015, p. 29).
Neste sentido, podemos observar que no Brasil a redemocratização em 1985 foi
um processo de transição negociada, (OLIVEIRA, 2000; O'DONNELL, 1996;
WEFFORT, 1992) permeado por diversos acordos entre civis e militares que garantiram
a não responsabilização judicial pelos crimes de violações de direitos humanos cometidos
na época, e a instituição tardia de comissões da verdade para investigar estes crimes.
Assim, o estudo, pesquisa e publicização das atividades e investigações das
comissões da verdade – inclusive pelo fato destas terem sido instituídas tardiamente - se
constitui em uma importante iniciativa como forma de promover o debate e a produção
de conhecimento em torno da memória política, dos valores democráticos e dos direitos
humanos no Brasil para que este debate não permaneça marginalizado em nossa
sociedade. Além destes fatores, o lançamento do relatório da Comissão Nacional de
Verdade (CNV) em 2014 também levantou uma intensa discussão na imprensa e na
academia sobre a repressão e os crimes da ditadura (D'ARAÚJO,2015) o que denota a
relevância e atualidade do tema selecionado para esta pesquisa.
As pesquisas que buscam analisar as transições de regimes ditatoriais para
democráticos, bem como as políticas de reparação ou justiça transicional são vastas e muito
conhecidas na Ciência Política (O'DONNELL; SCHIMITTER;
WHITEHEAD,1986; HAGOPIAN; MAINWARING, 1987; LINZ; STEPAN, 1995;
VITULLO, 2001; GUEDDES,2001; ANSELL; SAMUELS, 2014; D'ARAÚJO, 2015).
No entanto, a bibliografia que analisa e compara as medidas reparatórias pós-governos
autoritários especificamente nos estados brasileiros, ainda não é tão difundida.

604
Vide http://www.cnj.jus.br/images/pesquisasjudiciarias/Publicacoes/relat_pesquisa_fgv_edital1_2009.pdf
605
Vide http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2/bn_2016_v24.pdf

1229
Neste sentido, este trabalho visa ampliar a agenda de pesquisa sobre o tema, a qual
desde a instituição da CNV tem abordado apenas os trabalhos a nível nacional, dando
pouca ênfase aos avanços das comissões estaduais.

SÍNTESE DA BIBLIOGRAFIA

No que se refere às publicações sobre regimes autoritários e transitologia, há


diversos autores que analisam e comparam estas transições no Brasil e no mundo e
sustentam diferentes explicações para a queda destes regimes como: as crises econômicas,
o surgimento de novas lideranças e instituições e o fortalecimento dos movimentos de
resistência. Assim, ao longo dos últimos anos surgiu uma série de sistematizações teóricas
sobre a transitologia as quais nos forneceram importantes ferramentas analíticas para a
compreensão deste fenômeno em diferentes países e períodos (VITULLO, 2001;
GUEDDES, 2001; D'ARAÚJO, 2015).
Dentre os aspectos mais analisados nas transições democráticas estão os agentes
causais que podem levar regimes ditatoriais à queda, esses agentes podem ser: o aumento
expressivo de levantes populares e protestos (GUEDDES, 2001) e a relação entre
desenvolvimento econômico, desigualdade e pressões para a mudança de regime
(ANSELL; SAMUELS, 2014). No entanto, é importante considerar que a relação entre
desenvolvimento econômico e democracia não é direta, e que outros fatores podem
influenciar mais significativamente no processo de democratização (O'DONNELL;
SCHIMITTER; WHITEHEAD, 1986; HAGOPIAN; MAINWARING, 1987; LINZ;
STEPAN, 1995; TEITEL, 2003; SIKKINK, 2011).
Ainda sobre estes mecanismos causais, muitos teóricos têm resgatado os princípios
do liberalismo como fator explicativo para a democratização, de modo que no contexto da
modernização surgem novos grupos que se mobilizam para defender seus interesses e
alcançar espaços de representação, exigindo mais tolerância religiosa, liberdade de
expressão e outras liberdades individuais. Esses princípios podem servir como importantes
chaves explicativas para a análise comparada das mudanças de regimes (ANSELL;
SAMUELS, 2014).
Além disso, no caso dos regimes autoritários militares, os desacordos e rupturas
internas possuem um papel relevante para a liberalização do regime, o que destaca a
importância dos atores envolvidos nos processos de transição e a autonomia de suas

1230
decisões, tornando o curso da transição mais dinâmico e incerto. (O'DONNELL;
SCHIMITTER; WHITEHEAD, 1986).
Neste debate, também teve destaque os aspectos que caracterizariam a consolidação
democrática: liberdade de expressão e interesses; autonomia de partidos, lideranças e
instituições enquanto canais de intermediação entre a sociedade civil e o Estado;
reconhecimento do Estado de Direito pela sociedade civil, política e pelo próprio Estado;
a existência de uma burocracia estatal subordinada ao governo, capaz de prestar os serviços
básicos à população; e uma sociedade econômica institucionalizada, com um conjunto de
normas construídas e acordadas de forma "sociopolítica", as quais têm por função mediar
as relações entre Estado e mercado (LINZ; STEPAN, 1995).
No entanto, alguns estudiosos observam que após o fim do governo autoritário, o
Brasil não conseguiu estabelecer um regime democrático bem definido e
institucionalizado, de forma que as instituições políticas ao invés de serem baluartes da
ordem democrática, ainda permitem certos tipos de dominação autoritária resguardando
às Forças Armadas o poder de veto na arena política (HAGOPIAN; MAINWARING,
1987).
Já no que se refere às medidas tomadas por estados democráticos pós-ditatoriais, o
conceito de justiça de transição tem alcançado amplo espaço na literatura recente. O termo
pode ser definido como uma concepção de justiça associada a períodos de mudança
política, caracterizada pela resposta legal no combate às irregularidades de regimes
repressores anteriores. O conceito passou a ser utilizado principalmente após as duas
grandes guerras mundiais do século XX, além de outras experiências de graves violações
de direitos humanos relacionadas à queda de regimes autoritários (TEITEL, 2003).
No contexto de regimes democráticos pós autoritários, podemos identificar a
revisão da Lei da Anistia como uma nova tendência, o que tem permitido o julgamento de
indivíduos, inclusive chefes de Estado, por violações de direitos humanos cometidas no
passado. Apesar do Brasil ser uma exceção, este aspecto específico pode ser conceituado
como Justiça de Cascata, onde há uma revolução nas formas de accountability sobre
violações cometidas em um passado recente (SIKKINK, 2011).
Quanto à produção científica sobre a justiça de transição e medidas reparatórias
nos diversos estados brasileiros, ainda são poucos os estudos publicados. No entanto, já
conseguimos localizar algumas pesquisas sobre as comissões estaduais da verdade. A

1231
primeira, ainda em andamento, foi intitulada “Políticas Públicas de Memória para o Estado
do Rio de Janeiro: pesquisas e ferramentas para a não-repetição”606.
Além de auxiliar as investigações da CEV/RJ, esta pesquisa tem elaborado
recomendações de políticas públicas de memória e verdade histórica como: a criação de
centros de memória, sinalizações de lugares que evocam a memória da resistência ou
repressão exercida nos anos da ditadura militar e medidas de educação formal e informal
em direitos humanos. Este trabalho ainda teve como objetivo auxiliar a CEV/RJ na
promoção da memória sobre a ditadura militar, além do auxílio reparatório aos atingidos
pela violência de Estado na época. (COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DO
RIO DE JANEIRO, 2015, p. 310).
Ainda sobre os referenciais teóricos desta pesquisa, também podemos citar o
institucionalismo histórico. Esta abordagem desenvolveu-se principalmente a partir dos
anos 1970, e considerava como principal premissa para a compreensão da vida política o
conflito entre grupos rivais em busca da apropriação de recursos escassos. A partir disso,
seria possível analisar como a distribuição desigual de poder e desses recursos influenciava
a criação e modificação institucional (HALL; TAYLOR, 2003).
Neste contexto de distribuição desigual, o Estado seria não apenas um agente
neutro em meio a interesses concorrentes, mas um complexo de instituições responsáveis
pelos resultados provenientes dos conflitos entre os grupos. Assim, as instituições seriam:
os procedimentos, protocolos, normas e convenções oficiais e inerentes à estrutura
organizacional da comunidade política e da economia. Esses procedimentos estão
presentes desde as regras de uma ordem constitucional, até às normas de comportamento
dos sindicatos, por exemplo (HALL; TAYLOR, 2003).
Outro ponto central nas abordagens do institucionalismo histórico, é a concepção
particular de desenvolvimento da História, através da qual a dependência da trajetória
percorrida (path dependent) é uma importante chave explicativa para compreender as
modificações institucionais e os resultados dela provenientes. Nesta trajetória dos eventos
históricos, haveria períodos de continuidade e de “situações críticas”, sendo nestes onde
de fato ocorrem as mudanças institucionais importantes (HALL; TAYLOR, 2003).
Desta forma, ao considerarmos a instituição das comissões estaduais da verdade
como um momento de situação crítica, bem como a importância dos atores envolvidos
neste processo, acreditamos que a metodologia do institucionalismo histórico pode nos

606
http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/100_maiores_litigantes.pdf

1232
auxiliar a compreender como o trajeto seguido por estas comissões para investigar as graves
violações de direitos humanos gerou ou não resultados concretos em benefício da
sociedade.
Para a construção de nossas varáveis e indicadores, utilizaremos autores da Ciência
Política que analisaram processos de institucionalização (HUNTINGTON, 1975;
PARSONS, 1990; POLSBY, 2008) com vistas a identificar como ocorreu e os fatores que
influenciaram o processo de institucionalização das comissões estaduais da verdade em São
Paulo e o Rio de Janeiro, além de seus principais resultados.
Dentre as primeiras definições de instituições, está a de que elas seriam organizadas
e atuariam por intermédio da burocracia, a qual racionalizaria as esferas da vida social e
seria o instrumento mais universal e eficaz do exercício da dominação. Assim, a dominação
estatal ocorria a partir da repartição dos poderes de mando e coação, de acordo com regras
preestabelecidas e cristalizadas em instituições (WEBER, 1999).
Mais tarde, o termo instituição passa a ser utilizado em referência a um sistema de
normas fundado em valores comuns a todos os membros de uma dada sociedade,
constituindo um fenômeno moral:

The central thesis of the theory is that institutions are intimately related
to, and, in part at least, derived from ultimate value attitudes common to
the members of a community. They are thus, in a strict sense, moral
phenomena. This implies further that the primary motive for obedience
to an institutional norm lies in the moral authority it exercises over the
individual (PARSONS, 1990, p. 326).

Ao enfocar o lugar das instituições na ação humana e na configuração do sistema


social, esta abordagem permite uma análise subjetiva das instituições, as quais seriam
padrões de orientação de valor que regulam as relações dos indivíduos formando a
estrutura central dos sistemas sociais (PARSONS, 1990).
O conceito de instituição também pode ser definido como uma organização dotada
de valor, procedimentos e estabilidade. Neste sentido, a completude do processo de
institucionalização pode ser observada a partir dos seguintes aspectos: adaptabilidade;
complexidade organizacional; autonomia e coerência (HUNTINGTON, 1975).
Adaptabilidade se refere a capacidade da organização em ajustar-se às pressões
externas ao longo do tempo, o que poderia ser interpretado através da idade desta
organização. Já a complexidade organizacional está diretamente relacionada à variedade de
órgãos interdependentes dentro da organização e à padronização de procedimentos.

1233
Autonomia é definida como a independência em relação às instituições externas, e como
o procedimento para a resolução de disputas internas (HUNTINGTON, 1975).
Ainda sobre o processo de institucionalização das organizações dois aspectos
essenciais devem ser analisados, o nível de complexidade e de rotinização, os quais podem
ser medidos através dos seguintes indicadores: delimitação funcional; complexidade da
instituição através da sua separação de funções, além do universalismo e automatismo em
seus procedimentos internos. A autonomia financeira e a irreversibilidade são outros
importantes aspectos (POLSBY, 2008).
Também a seleção e rotação dos membros devem ser consideradas de forma que
na medida em que uma organização institucionaliza-se, a entrada torna-se mais difícil e a
rotação menos frequente, pois ocorre uma profissionalização da liderança a qual passa a
perdurar nos principais cargos (POLSBY, 2008).

Outro método de investigar até que ponto a instituição estabeleceu


limites é considerar seus líderes, como são recrutados, o que lhes
acontece e, mais particularmente, até que ponto a instituição permite a
entrada e a saída lateral de posições de liderança. (lateral tipo vários
cargos, várias candidaturas, renúncias e etc). (POLSBY, 2008, p. 226).

Dentre as consequências deste processo estão o considerável aumento no tamanho


da organização e da carga de trabalho, e a promoção e aplicação de normas profissionais e
de conduta entre os participantes (POLSBY, 2008).
Já no que se refere à estabilidade institucional, o conceito de veto player pode
funcionar como uma importante ferramenta analítica. Ele pode ser definido como atores
designados constitucionalmente para opinar diante de decisões políticas (TSEBELIS,
2002, p. 20). Assim, o funcionamento das instituições pode ser interpretado com base no
distanciamento ou proximidade dos veto players. Quanto maior o número de veto players,
maior a quantidade de interesses envolvidos, gerando múltiplas arenas e tornando mais
complexas as estratégias dos atores.
Assim, este conceito permite que se identifiquem os atores que estariam envolvidos
em uma eventual mudança no status quo, seja essa mudança de caráter pontual, como
mudança de políticas, ou uma mudança mais ampla no desenho institucional. Desse modo,
a multiplicidade de veto players conduz à estabilidade institucional, uma vez que as
alterações do status quo exigem acordos políticos envolvendo difusos interesses
(TSEBELIS, 2002).

1234
No Brasil, a origem da abordagem institucionalista na ciência política foi motivada
por complexos processos políticos vividos no país entre meados das décadas de 1970 e da
década de 1980, como a crise do regime ditatorial por exemplo (LIMONGI; ALMEIDA;
FREITAS, 2016). Neste contexto, Bolivar Lamounier e Fernando Henrique Cardoso
(1975) foram os pioneiros a valorizar o estudo das instituições na política brasileira, assim
como mais tarde Sergio Abranches (1988) ao analisar o presidencialismo de coalizão no
país.
A partir de meados dos anos 90 o debate ganhou novos rumos (LIMONGI;
ALMEIDA; FREITAS, 2016), a preocupação com a crise de governabilidade insuperável
deixou de ser o tema central dos estudos, e deu lugar à temática da transição para a
democracia, políticas públicas, federalismo e relações Executivo-Legislativo (ALMEIDA,
1995; FIGUEIREDO; LIMONGI, 1995). Também eram questionados aspectos
específicos da legislação eleitoral e os benefícios aos grandes partidos (NICOLAU, 1996).
No final dos anos 1990 os problemas da estrutura federativa brasileira dominaram
os estudos das abordagens institucionalistas com diversas críticas, definindo-a como
descentralizada, estadualista, incompleta e negativa para a agenda do governo federal
(ARRETCHE, 1999; ABRUCIO, 1998; CAMARGO, 1999; KUGELMAS; SOLA,
1999).

OBJETIVOS

O objetivo central deste trabalho é analisar a partir das diretrizes traçadas pelos
autores mencionados acima, construir variáveis que permitam identificar como se deu o
processo de institucionalização da comissão estadual da verdade do Rio de Janeiro, e como
eles influenciaram seus desdobramentos e alcance de resultados.
Para tanto, tomaremos o contexto político da Assembleia Legislativa do Rio de
Janeiro como a variável independente da nossa pesquisa, a qual possui como os dois
primeiros indicadores: a porcentagem na composição da Assembleia de representantes de
partidos portadores da ideologia de esquerda e defensores dos direitos humanos, e a
porcentagem de representantes de partidos portadores da ideologia de direita e com
membros das Forças Armadas e policiais, conhecidos por comporem a chamada "bancada
da bala".
O terceiro indicador para analisar o contexto político da Assembleia é a disciplina
partidária, a qual será medida através da porcentagem dos deputados e seguiram e que não

1235
seguiram as indicações das lideranças de seus partidos nas votações do projeto de lei que
instituía a comissão estadual da verdade.
Como variável dependente do contexto da Assembleia Legislativa está o nível de
institucionalização da comissão estadual da verdade do Rio de Janeiro, o qual mediremos
a partir de diversos indicadores, dentre eles, aqueles apresentados por Polsby (2008) : a
delimitação funcional e a complexidade das comissões; a sua irreversibilidade, autonomia
decisória e financeira; a seleção, rotação e o conjunto de membros e líderes das CEV's; a
aplicação de normas profissionais e de conduta entre eles; e o aumento da composição e
da carga de trabalho. Outros indicadores que ainda compõem esta variável são: a existência
ou não de veto players internos e externos e a capacidade das comissões de mobilizar atores
externos para realizar o enforcement, como por exemplo contar com o apoio da Polícia
Federal e do Ministério Público Federal nas atividades da comissão.
Já a última variável dependente se refere aos resultados concretos alcançados pela
CEV/RJ, e é composta por quatro indicadores, sendo o primeiro as reparações morais e
materiais públicas como por exemplo: pedidos oficiais de desculpas pelos governos
estaduais aos perseguidos políticos e familiares de mortos e desaparecidos; devolução
simbólica dos mandatos cassados de parlamentares acusados de oposição à ditadura
militar; retificação da causa de morte nas certidões de óbito de pessoas mortas em
decorrência de graves violações de direitos humanos praticadas por agentes do Estado
durante o período ditatorial; e reparação econômica e simbólica a setores ainda não
contemplados pela justiça de transição, como camponeses, indígenas e outros.
O segundo indicador se refere à criação de políticas públicas estaduais de verdade
e memória como: criar espaços de memória em locais que serviram como centro de
repressão ou resistência à ditadura; alterar a denominação de logradouros e instituições
que homenageiem pessoas vinculadas à prática de graves violações de direitos humanos; e
instituir datas simbólicas para a promoção de atividades relacionadas à defesa da
democracia e dos direitos humanos.
O terceiro indicador visa mensurar a criação após a publicação dos relatórios das
comissões estaduais da verdade, de coordenadorias, comissões e outros órgãos públicos
com orçamento próprio e estrutura suficientes para dar continuidade às investigações e
recomendações da CEV.
O quarto e último indicador desta variável se refere ao lançamento de editais
periódicos e específicos de apoio a pesquisas na área de direitos humanos e justiça de

1236
transição, os quais serão buscados nas diversas instituições de fomento à pesquisa,
universidades e centros de pesquisa dos estados analisados.

FIGURA 01: INDICADORES E VARIÁVEIS

A partir destes indicadores nossa hipótese de trabalho é que devido à aspectos


próprios da Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, esta alcançou um nível
maior de institucionalização que as Comissões da Verdade dos outros estados, o que
impactou significativamente nos resultados concretos alcançados por ela.
Como indícios da comprovação de nossa hipótese, podemos considerar um
resultado decorrente dos trabalhos destas comissões que foi alcançado no Rio de Janeiro,
mas não em São Paulo por exemplo, que se trata da criação pelo Governo do Estado do
Rio de Janeiro da Coordenadoria Estadual por Memória e Verdade vinculada à Secretaria
de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), a qual tem como objetivo
de implementar e monitorar as recomendações publicadas no relatório final da CEV/RJ,
além de promover o direito à memória, à verdade e à reparação.

1237
CONCLUSÕES

O objetivo central deste trabalho foi apresentar indicadores e variáveis que possam
ser utilizados como ferramentas analíticas para observar o grau de institucionalização da
Comissão Estadual da Verdade do Estado do Rio de Janeiro. Apesar da construção de
indicadores e variáveis o processo de avaliação empírica destas variáveis ocorrerá
posteriormente. No entanto o embasamento teórico deste trabalho nos forneceu o aporte
necessário para a construção de um método robusto e aplicável, o qual compõe parte
imprescindível de nossa pesquisa, conforme abaixo:

Finally, scientific research adheres to a set of rules of inference on which


its validity depends. Explicating the most important rules is a major task
of this book. The content of “science” is primarily the methods and rules,
not the subject matter, since we can use these methods to study virtually
anything. This point was recognized over a century ago when Karl
Pearson (1892, p. 16) explained that “the field of science is unlimited; its
material is endless; every group of natural phenomena, every phase of
social life, every stage of past or present development is material for
science. The unity of all science consists alone in its method, not in its
material. (KING; KEOHANE; VERBA, 1994, p. 10).

Também tivemos como objetivo neste trabalho construir um mecanismo de análise


que possa ser aplicado à outras Comissões Estaduais da Verdade no Brasil, possibilitando
uma análise comparada entre os seus impasses, desafios e níveis de institucionalização.
Neste processo, tomamos como principal premissa a importância de se construir
generalizações sistemáticas e com condições determinadas nas Ciências Sociais, conforme:

In fact, the very purpose of moving from the particular to the general is
to improve our understanding of both. The specific entities of the social
world—or, more precisely, specific facts about these entities— provide the
basis on which generalizations must rest. In addition, we almost always
learn more about a specific case by studying more general conclusions.
If we wish to know why the foreign minister of Brazil resigned, it will help
to learn why other ministers resigned in Brazil, why foreign ministers in
other countries have resigned, or why people in general resign from
government or even nongovernmental jobs (KING; KEOHANE;
VERBA, 1994, p. 35).

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1241
VIA JUDICIAL VERSUS BUROCRACIA INSTITUCIONAL:
ANÁLISE DA PERÍCIA MÉDICA DO INSS, NOS CASOS DE
AUXÍLIO DOENÇA

Arnaldo de Jesus AGUIAR JUNIOR

Resumo: O tema a ser desenvolvido neste trabalho diz respeito à gestão pública das políticas sociais,
em particular da busca pelo poder Judiciário, por parte do segurado do INSS que, por alguma
razão não lhe foi concedido o benefício previdenciário do auxílio doença, recorre à via judicial
como forma de garantir um direito constitucional. Neste trabalho pretendemos verificar a
capacidade do poder público satisfazer necessidades da população por meio de análise dos
procedimentos e dos atores envolvidos na perícia médica do INSS. Investigaremos se a possível
seletividade na concessão dos benefícios previdenciários implica na restrição do pleno exercício da
cidadania e acesso limitado aos direitos constitucionais, por meio de análise da conduta dos agentes
públicos e do nível de informação dos segurados da previdência social. A gestão do processo
previdenciário de um cidadão que necessita ter acesso ao benefício pode ser lento, confuso e ser
concluído por respostas incertas e pouco esclarecedoras, principalmente, para os mais idosos. A
baixa compreensão desse processo burocrático, por parte dos cidadãos comuns, provoca
insatisfação com o não atendimento das necessidades em período de fragilidade pessoal. Problemas
estruturais, institucionais e gerenciais impedem que os mais vulneráveis tenham o perfeito
entendimento da sua situação pessoal, com isso a qualidade duvidosa do atendimento e os
resultados insatisfatórios promovem a busca pelo poder judiciário, como principal garantidor dos
direitos sociais. Por ser um benefício diretamente relacionado com a incapacidade física do
segurado, o auxílio doença protege pessoas acometidas por doenças e vítimas de acidente do
trabalho, justificando uma pesquisa acadêmica que busque trazer maior transparência para os
intermináveis conflitos previdenciários contidos nas ações judiciais que buscam a concessão e
revisões de benefícios previdenciários. Diante da profunda assimetria existente entre o INSS e o
segurado, pretendemos analisar possíveis soluções burocráticas que colaborem com a efetiva gestão
dos direitos sociais, no âmbito da previdência social.

Palavras-chave: Burocracia. Judiciário. Política Pública.

INTRODUÇÃO

A seguridade social nacional procura atender às demandas sociais produzidas a


partir da redemocratização brasileira e, em particular, oriundas da Constituição Federal
promulgada em 1988. Trata-se de uma mudança de paradigma na política de proteção
social, a partir deste período ocorreu uma substituição da política de seguro social e
assistencialista, vigente anteriormente, pela garantia constitucional do direito social
universal, democrático, uniforme para população urbana e rural.
A formulação de políticas públicas voltadas para a área social produzidas após a
Constituição Cidadã promove a defesa dos princípios da equidade e da justiça social. Desta
forma, o reconhecimento da cidadania social permitiu que seguridade social integrasse a
nova construção do Estado brasileiro.

1242
Este novo desenho institucional do Estado nacional permitiu uma nova direção das
políticas sociais. Coube ao sistema de seguridade social, composto pelos setores da saúde,
previdência e assistência social, um novo modo de financiamento por parte da sociedade
brasileira, sob a gestão de um ministério próprio: o Ministério da Seguridade Social.
O papel da previdência social é todo aquele relacionado com os trabalhadores,
empregadores e governo, quando estes ficam impossibilitados de praticar a atividade
laboral. Trata-se de um instrumento da política pública previdenciária que visa proteger os
beneficiários do sistema de seguridade social por meio da distribuição de renda.
A face da política pública é diversa, possui diversos significados, adotamos como
significado básico todas as ações adotadas por um ente federativo que tenha como objetivo
satisfazer as demandas coletivas mediante a utilização de recursos públicos. Para Teixeira
(2002, p. 2) políticas públicas são “diretrizes e princípios norteadores de ação do poder
público, regras e procedimentos para as relações entre poder público e sociedade,
mediações entre atores da sociedade e do Estado”.
Autores como Monnerat e Souza (2011) enfatizam a importância da Previdência
Social como política pública garantidora de renda, particularmente para as populações mais
vulneráveis e que devem ser preservadas nos momentos de alto desemprego e queda na
atividade econômica.
Para Santos (2004), ao adotar a doutrina universal da solidariedade a previdência
social concretiza a transferência de renda para a população mais necessitada, garantindo o
benefício mínimo necessário para o enfrentamento da miséria. Trata-se de um direito à
cidadania, que combinado com outras políticas garantem a proteção social.
Nas palavras de Corrêa (2000, p.217): “A cidadania, pois, significa a realização
democrática de uma sociedade, compartilhada por todos os indivíduos ao ponto de garantir
a todos o acesso ao espaço público e condições de sobrevivência digna, tendo como valor-
fonte a plenitude da vida”
Uma referência obrigatória, Anthony Giddens, (2001), enfatiza que cabe ao
governo “... refrear a desigualdade e garantir oportunidades para a realização pessoal dos
indivíduos...”. Em outras palavras, uma sociedade melhor pode ser alcançada com a
atuação equilibrada entre governo e sociedade civil, onde o contrato social estabeleça a
proteção social como principal preocupação.
Coube à Constituição Federal de 1988 caracterizar a opção pela intervenção estatal
na busca pelo bem estar da sociedade, numa clara tentativa de implementar uma política
nacional de Welfare State visando melhores condições sociais e econômicas para a

1243
população. Com base neste raciocínio, faz-se necessário analisar a situação atual da
previdência social no quesito auxílio-doença.
Trata-se de um dos diversos benefícios previdenciários que cuida, especificamente,
da incapacidade laboral do segurado (a) do INSS quando este(a) está acometido(a) por
uma doença ou foi vítima de um acidente que torne temporariamente incapaz para o
exercício de sua atividade profissional.
Conforme o estabelecido pela Lei 8213/91 em seu artigo 20, a doença adquirida
ou desencadeada a partir das condições em que a atividade laboral é desenvolvida ou que
esteja relacionada com esta, é definida como doença do trabalho. Uma vez confirmada que
a doença tem relação com o trabalho, o beneficiário, que é segurado da previdência social,
passa a ter direito a receber o benefício do auxílio-doença, em decorrência da incapacidade
laboral.
A competência legal para estabelecer a relação causal entre o trabalho e a doença é
do profissional médico-perito pertencente ao quadro funcional do INSS. É esse agente
público o responsável pela garantia de direito previdenciário estabelecido em lei. Este
ponto é um dos principais nascedouros de conflitos que via de regra chegam ao Poder
Judiciário.
De um lado, ocorre a busca pela garantia de direitos estabelecidos na legislação
previdenciária por parte do segurado; do outro lado, está o Instituto Nacional do Seguro
Social (INSS) representado pelo corpo burocrático, seja no contato inicial com a área
administrativa, seja no momento da perícia médica. Revelando uma assimetria considerável
entre as partes envolvidas.

DIAGNÓSTICO

Segundo dados recentes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)607, o Instituto


Nacional do Seguro Social (INSS) ocupa o primeiro lugar entre os cem maiores litigantes
da justiça brasileira. Sendo responsável por 34,35% do número de processos ajuizados na
Justiça Federal. Dentre os benefícios previdenciários, o auxílio-doença representa mais da
metade dos benefícios concedidos segundo dados do IBGE608, entre 2011 e 2014.

607
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/2/bn_2016_v24.pdf
608
Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos, CNPQ,
tayla.barbosa@yahoo.com.br
1244
Fonte: Conselho Nacional de Justiça, 100 maiores litigantes, 2012, p. 15.

A gestão do processo previdenciário de um cidadão que necessita ter acesso ao


benefício pode ser lento, confuso e ser concluído por respostas incertas e pouco
esclarecedoras, principalmente, para os mais idosos. A baixa compreensão desse processo
burocrático, por parte dos cidadãos comuns, provoca insatisfação com o não atendimento
das necessidades em período de fragilidade pessoal.
Eventuais problemas estruturais, institucionais e gerenciais que impeçam que os
mais vulneráveis tenham o perfeito entendimento da sua situação pessoal serão apontados
para verificar a existência de impacto na qualidade do atendimento e nos resultados
insatisfatórios, que acabam por conduzir o pleito do benefício ao Poder Judiciário, visto
como principal garantidor dos direitos sociais.
Direitos sociais garantidos pela seguridade social estabelecida em norma
constitucional sejam no âmbito da Previdência Social, da Assistência Social ou da Saúde
Pública, devem estar clara e facilmente disponíveis para o acesso dos mais vulneráveis da
sociedade, devendo estar preparados para atender a previsível e crescente demanda
esperada pelos próximos anos.
Segundo a Convenção nº102 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada
em 1952, “Seguridade Social é a proteção que a sociedade proporciona a seus membros
mediante uma série de medidas públicas contra as privações econômicas e sociais (...) como
consequência de enfermidade, maternidade, acidente de trabalho, (...), invalidez, velhice
(...)” (OIT, 1952).

1245
A tendência é de crescimento pela procura dos serviços sociais pelas próximas
décadas, em função do envelhecimento populacional. O devido conhecimento e, ao
mesmo tempo, o esperado acesso aos direitos sociais beneficiam não só o indivíduo, mas
sua família e sua comunidade.

Fonte: Previdência Social: Reflexões e Desafios, Brasília: MPS, 2009, vol. 30, p. 112.

A dificuldade e desinformação na concessão de benefícios previdenciários podem


ser entendidas como uma restrição ao pleno exercício da cidadania, direitos garantidos
constitucionalmente podem ser abandonados em face de políticas econômicas restritivas.
Ainda sob o ensinamento de Kingdon, nas palavras de Saraiva determinadas “situações
passam a ser definidas como problemas e aumentam suas chances de se tornarem
prioridade na agenda” (SARAIVA, 2007, p. 227).
Ajustes na economia, via de regra, ignoram ajustes sociais, e produzem percalços
que vão desde a desinformação por grande parte dos usuários do serviço público, até
critérios desconhecidos, disfarçados pela discricionariedade de servidores públicos.
Segundo Sposati, a ocorrência de procedimentos restritivos permite o retrocesso
do avanço constitucional reconhecido como direito no âmbito da seguridade social.
Evidencia-se o duelo entre o poder público, responsável pela implementação de políticas
públicas que respeitem direitos constitucionais, e as limitações gerenciais da própria
administração pública na concretização de tais direitos (SPOSATI, 2011, p. 126).

1246
Parcela significativa dos problemas enfrentados no âmbito das políticas sociais
nacionais ocorre em função do baixo conhecimento, por parte do cidadão, da norma legal
que garante o acesso ao serviço público. Assim, no momento de requerer um benefício ao
poder estatal, o cidadão encontra-se frágil, sem argumentos sólidos que lhe permitam
exercer sua cidadania de forma plena.
Segundo Maria Rita Loureiro, de certa forma o corpo técnico da burocracia, neste
caso, representado pelos profissionais médicos-peritos, que atua politicamente ao “arbitrar
e negociar interesses em confrontos localizados”, buscando valer “seus pontos de vista nas
decisões sobre políticas públicas”. Temos um exemplo do burocrata de nível de rua,
conforme denominado por Michael Lipsky (1980, p. 3), são “servidores públicos que
interagem diretamente com os cidadãos no cumprimento de suas tarefas” (LOUREIRO,
2010, p. 82).
Outro ponto a ser explorado é o caráter discricionário e subjetivo permitido pelo
legislador constitucional que gera condutas e decisões cercadas de polêmicas e dúvidas por
parte deste técnico e, que afeta os segurados da providência social. Diante deste cenário
de poucas informações e esclarecimentos acerca das negativas administrativas , é fato
notório a busca das vias judiciais para a concessão de benefícios previdenciários.
Segundo Hill (2003 apud LOTTA, 2010), a discricionariedade não se mistura nas
análises produzidas pelos agentes públicos, embora seja reconhecida sua autonomia no
desenvolvimento da sua função pública.
Sabemos que a maior parte dos problemas enfrentados na implementação das
políticas sociais advém da enorme diferenciação observada na concessão de benefícios,
nesta pesquisa iremos nos limitar ao benefício previdenciário do auxílio-doença, por meio
da atuação dos profissionais envolvidos em cada processo. Fortes disparidades serão
registradas a partir de uma observação mais atenta do funcionamento de uma agência de
atendimento do INSS.
Lipsky (1980) batizou de street level bureaucrats o corpo burocrático especializado
que defendem seu modo de agir em um patamar acima daquele esperado pelas suas
obrigações decorrentes de sua ligação com o Estado. Portanto, a atuação dos técnicos na
linha de frente do atendimento médico-pericial ao segurado do INSS pode ser
contaminada por condutas pouco ética e morais.
A prevalência de condutas antiquadas praticadas em uma atividade burocrática
pode contribuir para elevar a iniquidade entre os cidadãos que procuram garantir seus

1247
direitos constitucionais. O foco da atividade burocrática deve ser o respeito pelo bem estar
da população com base nos direitos humanos e sociais.
Trabalho desenvolvido por Bertranou (2005 apud JACCOUD, 2008) indica que
na América Latina, duas em cada três pessoas não têm acesso à proteção social contra
riscos sociais comuns, como doenças ou perda da renda por causa da idade, invalidez ou
desemprego.
Importante destacar que o acesso aos benefícios sociais é, na maioria das vezes,
realizado pelas pessoas inseridas no mercado de trabalho formal, uma vez que os sistemas
previdenciários possuem natureza contributiva. Cabe à Previdência Social acolher os
cidadãos incapacitados para o trabalho.
O Instituto Nacional de Seguro Social (INSS) é a instituição responsável pelo
reconhecimento formal da incapacidade laborativa do trabalhador, por meio do acesso aos
benefícios da Previdência Social, mediante avaliação realizada por médicos-peritos.
São notórias as divergências observadas em relação às avaliações periciais, não são
raridades as negativas do benefício previdenciário; por um lado, evidenciando as
frustrações dos segurados que, insatisfeitos, discordam da decisão oficial; de outro lado, os
profissionais médicos adotam variáveis distintas desconhecidas pelos segurados, mas que
lhes garantem embasamento técnico no processo de tomada de decisão.
De forma geral, pessoas doentes e/ou em idades avançadas tornam-se frágeis e
sensíveis, uma vez que se encontra com limitações físicas, psíquica ou intelectual, o que
leva a um quadro de dependência, seja de outra pessoa, de instituição ou do Estado. A
condição de dependência está relacionada com a redução ou falta de capacidades, que
combinada com a necessidade de assistência e/ou ajuda para a realização de tarefas diárias.
Segundo dados do IBGE609 e do CNJ610, o número de processos judiciais envolvendo
matéria previdenciária é crescente, sendo responsável por parcela significativa dos
processos na Justiça Federal. As demandas em sua maioria são individuais, representando
enorme volume de processos e a já esperada morosidade da Justiça Federal.

609
A perspectiva do desenvolvimento regional endógeno discute a questão regional, apresentando sugestões
de políticas públicas que combatam as desigualdades sociais. As origens desta perspectiva teórica remetem a
década de 1970, período em que as políticas passaram a ser a pensadas “da base para o topo”, contrariando
as teorias de centralização das esferas decisórias.
610
Pós-doutoranda do Instituto de Saúde e Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP),
lecysartori@gmail.com. 1248
INDICAÇÕES FINAIS

A pesquisa inicial desenvolvida para este artigo mostrou um interessante e rico


material a ser futuramente desenvolvido. Ao mesmo tempo confirma a hipótese original
de que a busca pelo Poder Judiciário para solucionar conflitos no acesso aos direitos sociais
previdenciários, mesmo estando garantida pela Constituição Federal, não é a solução
adequada e mais eficiente em termos da administração pública.
A análise preliminar dos processos e procedimentos burocráticos adotados durante
a perícia médica do INSS demonstram a assimetria de forças entre os diferentes atores
envolvidos no conflito, e especificamente ao confrontar as negativas administrativas do
benefício e a correspondente concessão ou não do benefício, que podem buscar a via
judicial. A partir daí, será possível, ainda, explicitar as relações de forças, os possíveis
entraves burocráticos, o eventual desconhecimento do arcabouço jurídico e,
principalmente, publicizar a instabilidade gerencial e normativa do regime jurídico da
previdência, contribuindo, assim, para um melhor entendimento dos conflitos
previdenciários.
Pretendemos ao longo de pesquisa futura oferecer subsídios teóricos e empíricos
que ajudem a atender sobre essas e demais questões que surjam ao longo do processo de
pesquisa em relação à eventual disparidade entre a concessão de benefícios administrativos
e judiciais.
O procedimento metodológico desta pesquisa consistirá em um estudo documental
e de pesquisa de campo buscando uma abordagem qualitativa e quantitativa. Este
mapeamento refere-se aos segurados e suas demandas pessoais, e às interpretações das
normas jurídicas constitucionais e infraconstitucionais, além da jurisprudência
previdenciária, que contribuem para a edificação do ambiente favorável à crescente
litigiosidade entre os cidadãos e a burocracia previdenciária.
Trata-se de pesquisa de avaliação dos critérios utilizados na concessão dos
benefícios previdenciários pelo INSS, por meio da avaliação dos médicos-peritos.
Buscaremos investigar as causas e conseqüências da (in) satisfação dos segurados na busca
de seus direitos constitucionais.
De início, o embasamento bibliográfico desta pesquisa terá enfoque nos
documentos institucionais que balizam as práticas dos serviços sociais, tais como: relatórios,
memorandos, resoluções do INSS e ordens de serviço, dessa forma teremos uma
aproximação significativa das decisões tomadas.

1249
A abordagem metodológica a ser utilizada por esta pesquisa deve priorizar a
observação do trabalho nas Agências da Previdência Social (APS) de uma região a ser
definida. Optaremos pela oitiva dos segurados, dos técnicos, gestores e dos médicos peritos
por meio de entrevistas individuais, e também, utilização de questionários semiestruturados
como forma de obter informações de caráter qualitativo.
A opção pelas entrevistas se justifica pela necessidade de melhor compreender as
relações desenvolvidas entre os usuários e o corpo de funcionários públicos envolvidos na
arena previdenciária. Esses elementos foram chamados por Lipsky (1980), de burocratas
do nível da rua, pois se relacionam diretamente com os usuários do serviço público.
Pretendemos elaborar diários de campo de forma a acompanhar os segurados
desde o momento anterior à entrada na APS, sua permanência no interior da APS e,
principalmente, sua percepção no momento posterior ao atendimento na APS.
Apreender as experiências vivenciadas pelos entrevistados, seus valores individuais,
suas percepções diante das expectativas particulares e seus comportamentos proporcionará
uma interessante e densa trajetória pré-conflito. Combinado com a observação in loco com
os demais participantes do processo permitirá elaborar um diagnóstico com as causas
principais dos conflitos, o perfil das demandas judicializadas e, principalmente, possíveis
soluções pré e pós judicialização.

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1251
DESENVOLVIMENTO LOCAL E POLÍTICAS PÚBLICAS: O
MODELO DOS MÚLTIPLOS FLUXOS

Tayla Nayara BARBOSA611

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo compreender o processo de formulação de


políticas públicas a partir da Política Nacional de Desenvolvimento Regional; investigando a relação
entre a sociedade civil e o Estado, analisando os atores, as instituições e os debates que cercam esta
política, baseando-se no modelo dos múltiplos fluxos de John Kingdon. A partir da observação
teórica sobre desenvolvimento nas escalas locais, observa-se que os municípios brasileiros, dentro
da perspectiva de um capitalismo competitivo global, possuem dificuldades de crescimento
econômico e garantia de boa qualidade de vida para a sua população. Logo, o objetivo do texto, é
investigar esta política pública, visando a orientação de políticas públicas de desenvolvimento local.
Tendo em vista que as discussões sobre as políticas públicas ganharam força nos últimos anos, o
presente trabalho tem a intenção de verificar as trajetórias empíricas traçadas para o avanço de
políticas de desenvolvimento socioeconômico baseadas na teoria do desenvolvimento endógeno.

Palavras-chave: Desenvolvimento local. Múltiplos fluxos. Políticas públicas.

INTRODUÇÃO

O presente texto tem como objetivo compreender o processo de formulação de


políticas públicas a partir da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR);
investigando a relação entre a sociedade civil e o Estado, analisando os atores, as instituições
e os debates que cercam esta política a partir do modelo teórico de John Kingdon,
denominado múltiplos fluxos.
A Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) foi formulada em 2003
e institucionalizada em 2007, pelo Ministério da Integração Nacional, constituindo-se como
um primeiro esforço de coordenar políticas de desenvolvimento em todo o país. Além
disso, a PNDR representou uma mudança de paradigma da questão regional: antes tratada
pela abordagem macrorregional, a partir de instrumentos exógenos e top down; passa a ser
vista como uma problemática de múltiplas escalas, que implica na construção de
mecanismos endógenos e bottom up.
A relevância de tal discussão e, por conseqüência do texto, refere-se ao fato de que
a constituição de uma política pública ocorre através de articulações entre a sociedade civil

611
Segundo Francisco Mogadouro da Cunha (Chicão), conselheiro de Saúde, uma das causas da epidemia de
dengue que aconteceu em Campinas no primeiro semestre de 2014, foi a falta de agentes de controle
ambiental, que não foram contratados em 2012 (Epidemia..., 2014).
1252
e o Estado, sendo que no caso da PNDR, o processo também envolveu uma nova
concepção de desenvolvimento, que enfatiza o papel do Estado como promotor do
crescimento econômico. Dessa maneira, visto que a PNDR se consolida como uma política
pública de desenvolvimento, tornando-se referência para outras localidades, cabe um
esforço de pesquisa científica para investigar a sua implementação, analisando os debates
que perpassam a relação entre as demandas sociais e a ação do governo.
Além disso, outro aspecto importante referente a essa discussão, é que esta política,
inaugura uma nova perspectiva de ação governamental, pautada em uma nova visão de
desenvolvimento. Isto porque a ação do Estado como promotor do desenvolvimento
econômico volta a ser considerada relevante. A ação protagonista do Estado, defendida
pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), na década de 1960,
foi abandonada no final do século XX, com a onda neoliberal e a reforma do Estado.
Sendo assim, este texto analisa um momento de emergência dos estudos territoriais tão
importantes e relevantes para se entender as novas configurações socioeconômicas que
estamos assistindo, em um contexto de fragmentação da escala nacional e acirramento da
competição entre cidades, lugares e regiões. Nas últimas décadas as políticas de curto prazo
de controle inflacionário foram as principais formas de se fazer política econômica no país,
deixando-se de lado as políticas de desenvolvimento nacional, regionalmente integradas.
Portanto, o presente texto se propõe a investigar a formulação da PNDR no estado
de São Paulo, questionando, de forma mais geral: como se deu a formulação da Política
Nacional de Desenvolvimento Regional? Como o desenvolvimento local entrou na agenda
de política pública estadual? Quais foram as instituições e agentes que participaram desse
processo?

DESENVOLVIMENTO LOCAL E POLÍTICAS PÚBLICAS

A crescente participação de micro e pequenas empresas na geração de emprego e


renda em várias regiões, assim como experiências de sucesso de políticas de apoio a
aglomerações industriais impulsionou os estudos sobre o desenvolvimento local no Brasil.
A literatura sobre o tema é ampla, mas geralmente destaca-se que a inovação e o
conhecimento como condições fundamentais para o desenvolvimento bem sucedido de
empreendimentos no nível local. Além disso, as especificidades históricas de cada
localidade também são levadas em consideração para compreender as diferenças entre as
experiências de cada política.

1253
Segundo Ladislau Dowbor (2008), nos últimos anos, a tendência de enfatizar o
espaço local, que no Brasil, refere-se ao município, assim como o bairro ou o quarteirão;
faz parte de uma abordagem democrática que vem ganhando força, pois apresenta
alternativas de ação e participação políticas descentralizadas e desburocratizadas. Para o
autor, a estrutura decisória de políticas públicas, principalmente em nosso país, tende a
isolar o cidadão da esfera política. Nesse sentido, para Dowbor, essa ênfase na democracia
local é uma alternativa ao arcaísmo do Estado centralizador, herança dos tempos imperiais
no Brasil. Porém, o modelo liberal também não apresenta vantagens reais para os espaços
locais, já que os problemas sociais não são resultados do tamanho da estrutura estatal. “Da
mesma forma somos diariamente submetidos ao martelamento de propostas de se
"privatizar" e "enxugar" o Estado, quando o que devemos enfrentar é o problema de como
o Estado se organiza, quem o controla, e, sobretudo a quem serve” (DOWBOR, 2008, p.
6).
Desse modo, conforme argumenta Dowbor, a organização de ações no espaço
local, baseadas na participação comunitária e no planejamento descentralizado, “(...) não
pode ser vista de forma isolada: trata-se de uma transformação lenta e profunda do
conjunto dos mecanismos que o mundo ‘realmente existente’ utiliza para organizar o seu
desenvolvimento. ” (DOWNBOR, 2008, p. 12). Em vista disso, Dowbor, assim como
outros autores, defende que o desenvolvimento local deve ser inserido dentro de uma
política nacional de desenvolvimento regionalmente integrada.
A discussão acerca da possibilidade de desenvolvimento local a partir de novos
tipos de arranjos institucionais que articula diferentes agentes ganha força com as
experiências de pequenos empreendimentos industriais na década de 1970, no centro e
nordeste da Itália, conhecido como Terceira Itália. De acordo com Giacomo Becattini
(1999), estes empreendimentos eram baseados em pequenas empresas de setores
tradicionais, como calçados e alimentos, sendo que seus sucessos levaram ao
desenvolvimento da região, tornando-se objeto de estudo de pesquisadores e governos.
Baseando-se nos mesmos pressupostos supracitados, Robert Putnam (1996),
cientista político norte-americano, aplicou-os no estudo das causas para a desigualdade
interna de um país de capitalismo tardio, como a Itália. A partir disso, este autor conclui
que as instituições possuem grande relevância para o crescimento de uma região, pois
verificou que a região norte italiana possuía maior participação política e social, o que
contribuiu para seu desenvolvimento. Por outro lado, a região sul da Itália, não apresentava

1254
grau elevado de civismo, sendo que suas instituições políticas eram isoladas e pouco
receptivas à população. Nas palavras de Putnam (1996):

(...) quando tomamos por base as tradições cívicas e o desenvolvimento


socioeconômico registrado no passado para prever o atual
desenvolvimento econômico, constatamos que o civismo é na verdade
muito melhor prognosticador do desenvolvimento socioeconômico do
que o próprio o desenvolvimento. (PUTNAM, 1996, p. 166).

O estudo de Putnam ganhou grande notoriedade na academia e na mídia mundial,


porém, não é uma novidade na Ciência Política. William Nicholls, por exemplo, na década
de 1960, realizou um estudo para compreender as razões das discrepâncias entre o
desenvolvimento das regiões norte e sul dos Estados Unidos da América. Analisando a
história dessas regiões, Nicholls (1969) concluiu que a tradição sulina era o principal
obstáculo para o seu crescimento, já que era baseada na "dominância dos valores agrários,
a rigidez da estrutura social, a estrutura política antidemocrática, a pouca responsabilidade
social e a mentalidade e o comportamento conformista" (NICHOLLS, 1969, p. 466)
A comparação entre os estudos de Robert Putnam e William Nicholls revela que a
grande contribuição do primeiro para os estudos sobre desenvolvimento endógeno foi a
introdução do conceito de capital social em sua análise. Segundo Souza Filho (2001):

(...) compreendido como sendo o conjunto das características da


organização social, que englobam as redes de relações, normas de
comportamento, valores, confiança, obrigações e canais de informação,
o capital social, quando existente em uma região, torna possível a tomada
de ações colaborativas que resultem no benefício de toda comunidade
(SOUZA FILHO, 2001, p. 7).

No Brasil, os primeiros estudos sobre o tema se iniciaram com a formação da Rede


de Pesquisa em Sistemas Produtivos e Inovativos Locais (REDESIST), em 2003, que
definiu e ampliou o termo no contexto nacional, focando na formulação de políticas
públicas para seu incentivo. Inicialmente, o termo desenvolvimento local foi baseado em
uma perspectiva evolucionista, considerando a interação local entre os agentes e o espaço
(DOSI, 1988; JONHSON; LUNDVALL, 2000). Os pesquisadores do REDESIST
definem os arranjos de desenvolvimento local como “aglomerações territoriais de agentes
econômicos, políticos e sociais – com foco em um conjunto específico de atividades
econômicas – que apresentam vínculos mesmo que incipientes. ”

1255
A partir desta definição, o desenvolvimento local envolve participação e interação
de qualquer tipo de empresa, assim como outras instituições públicas e privadas.
Aprimorando esse conceito, o grupo de pesquisadores do REDESIST, destaca dois novos
elementos para a definição de políticas voltadas para essa temática: a interação entre
empresas privadas e a ação de órgãos governamentais. Outro grupo de pesquisadores
formado por Wilson Suzigan, João Furtado e Renato Garcia (1999, 2002) produziu
sua própria definição de desenvolvimento local, baseando-se em estudos sobre arranjos
industriais no estado de São Paulo. Partindo da teses de que o desenvolvimento econômico
do interior do estado durante a crise dos anos 80 e 90 teve como explicação a presença
desses arranjos na região, os estudos deste grupo de pesquisadores foram pioneiros no país
e estabeleceram modelos de metodologia para pesquisas sobre o tema. Assim como os
pesquisadores do REDESIST, o grupo liderado Suzigan, também destaca a importância
da articulação entre agentes públicos e privados e de políticas públicas de apoio para o
sucesso da PNDR.
De acordo com Eduardo G. Noronha e Lenita Turchi (2005), o problema do uso
do conceito de desenvolvimento local está relacionado a identificação do objeto de estudo,
ou seja, se os pesquisadores estão observando o mesmo objeto ou estão denominados
fenômenos diferentes pelo mesmo termo. Para esses autores, o estudo de desenvolvimento
local deve identificar arranjos produtivos de regiões de pequeno e médio porte com
produção especializada. Partindo das considerações de Hollingsworth (2003), Noronha e
Turchi definem desenvolvimento local como um arranjo institucional, formado por cinco
componentes: as instituições, as organizações, os setores institucionais e os resultados
e desempenhos. A partir destes componentes, é possível identificar as especificidades de
cada política local. Conforme argumenta Hollingsworth, a principal característica para o
desenvolvimento local é o ambiente institucional.
O presente texto parte do pressuposto que as três perspectivas de estudos sobre o
desenvolvimento local mencionadas acima são importantes e podem ser consideradas
complementares para a análise da PNDR. A partir das três perspectivas, considera-se o
desenvolvimento local como uma unidade, isto é, como um arranjo institucional que
interliga atores públicos e privados com alguma identidade além da especificidade
econômica. Para compreender a sua formação e desenvolvimento, é preciso investigar o
contexto histórico, social, econômico e institucional de cada política. Logo, ao definir
desenvolvimento local como um arranjo institucional, o enfoque recai sobre as regras,
práticas, normas, valores, organizações que o cercam e o sustentam.

1256
A institucionalização de políticas voltadas ao desenvolvimento local no Brasil se deu
com a criação do Programa de apoio aos Arranjos Produtivos Locais (APL), do Grupo
Interministerial de Trabalho sobre APL, e da PNDR, entre 2003 e 2004. Com isso, os
estudos sobre o tema cresceram, assim como o apoio do SEBRAE para as pequenas e
médias empresas envolvidas em tais políticas. No estado de São Paulo, especialmente, a
atuação do SEBRAE é essencial, com a criação de programas para a capacitação
empresarial.
Somado ao processo de institucionalização de tais políticas, as pequenas e médias
empresas destes arranjos passaram a serem incluídas na Política Industrial, Tecnológica e
Exportação (PITCE), assim como a articulação com diversas agências e órgãos
governamentais, como a Agência de Promoção e Exportação (APEX), da Financiadora de
Estudos e Projetos (FINEP), IPEA, BNDES, Banco do Brasil. Além disso, entre as
propostas governamentais, está um Plano Nacional de desenvolvimento dos APL’s.
Em vista dos programas governamentais de incentivo ao desenvolvimento local, os
municípios de várias regiões e estados do país passaram a disputar a implantação de um
desses arranjos produtivos em sua localidade, visando o acesso a essa política pública.
Sendo assim, o termo desenvolvimento local passou a ser muito utilizado por vários atores
e instituições, porém apenas isso e os programas de apoio, não garantem o sucesso de tal
empreendimento. Tal qual argumentam Noronha e Turchi (2007), o que é claro é a
necessidade de, além de políticas públicas de incentivo regional e a sua adequação a cada
especificidade local; que exista uma mediação institucional local para a organização e
aproveitamento dos benefícios dessas iniciativas.
De maneira geral, a literatura sobre o tema, destaca que as iniciativas de
desenvolvimento local só se consolidam se possuem articulação com instituições públicas
e privadas, por meio de programas de capacitação de mão de obra, de consultoria técnica,
de acesso ao credito, retificando a importância da governança nesses arranjos. Por
conseguinte, os governos municipais, as instituições públicas e agentes privados locais são
elementos relevantes para promover o desenvolvimento regional.
Na defesa do desenvolvimento local, alguns autores buscaram defini-lo, mesmo que
de maneira genérica. Neste sentido, de acordo com Buarque (2002), o desenvolvimento
local deve ser entendido como um processo endógeno sustentável. Ele reduz o conceito
de desenvolvimento à capacidade de um local tornar-se competitivo e atraente para o
investimento externo, que, consequentemente gera crescimento econômico. Desse modo,
para este autor, o desenvolvimento local é a superação do atraso, sendo que esse processo

1257
é possível para todos os municípios, visto que cada um possui uma potencialidade
específica.
Em contraposição a essa análise, Brandão (2007) argumenta que as inúmeras teses
do desenvolvimento local se apropriam de princípios neoliberais para vender a ideia de
que o desenvolvimento é possível para todos os locais. Porém, conforme já demonstrado
pela CEPAL, esse processo baseia-se em uma relação entre pares desiguais. Sendo assim,
o desenvolvimento endógeno não é possível para todos os municípios, mas deve ser
encarado como uma meta nas políticas nacionais de desenvolvimento regional. Desse
modo, enquanto Buarque defende o aspecto endógeno e competitivo do desenvolvimento
local, Brandão enfatiza a dimensão solidária desse processo, defendendo a integração dos
locais e a construção de redes de cooperação regional.
Outras contribuições se destacam nesta discussão, entre elas as de Araújo (1999),
que discutem o poder local e suas limitações diante da dinâmica regional e nacional.
Segundo Araújo, o federalismo brasileiro está baseado na desconcentração econômica,
iniciada no final da década de 1980, bastante abordada por Cano (1988), por isso, para
Araújo, a ação do Estado é importante para a integração regional, visto que a diminuição
da desigualdade regional pressupõe ações coordenadas entre as três esferas do federalismo
nacional e a sociedade. Entretanto, conforme destaca a autora, a tese de integração da
escala nacional foi abandonada com a emergência do neoliberalismo. Nesse sentido,
autores como Buarque, defendem o desenvolvimento local a partir da concorrência entre
municípios, perspectiva distinta de Furtado e de Prebisch, por exemplo, que consideravam
o desenvolvimento em termos nacionais. A autora, assim como os teóricos da Cepal,
enfatiza que a herança colonial brasileira teve como consequência problemas estruturais,
que são mais visíveis empiricamente nos pequenos municípios do país.

A POLÍTICA NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL

O objetivo da Política Nacional de Desenvolvimento Regional é duplo. Em


primeiro lugar, configura-se como uma tentativa de sustentar uma trajetória de reversão das
desigualdades inter e intra regionais, valorizando os recursos endógenos e as
especificidades culturais, sociais, econômicas e ambientais. Um segundo objetivo é criar
condições de acesso mais justo e equilibrado aos bens e serviços públicos no território
brasileiro, reduzindo as desigualdades de oportunidades vinculadas ao local de nascimento
e moradia.

1258
O desenho da Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) articula as
três esferas federativas, iniciando com as deliberações de nível estratégico dos ministros e
da Presidência no Conselho Nacional de Integração de Políticas Públicas no Território. A
seguir, o nível tático é discutido pelos secretários executivos dos ministérios na Câmara
Interministerial de Gestão Integrada de Políticas Regionais. A partir disso, os Comitês
Estaduais de Gestão de Políticas no Território lidam com os níveis operacionais,
negociando diretamente com as instâncias municipais.
Diante dessas características, a Política Nacional de Desenvolvimento Regional
(PNDR) é uma política transversal e desafiadora, que mobiliza recursos e instrumentos
federais e estaduais. A partir dela, coordenam-se diferentes políticas setoriais que lidam
com a questão do desenvolvimento regional, em várias regiões do país. Entre estas políticas,
destacam-se os programas estaduais de políticas dos últimos anos, que têm como objetivo
apoiar estudos e projetos para o desenvolvimento regional, através de políticas públicas
estruturadas com as governanças regionais e iniciativas privadas. As parcerias entre os
governos municipais e as empresas locais configuram-se por meio dos Arranjos Produtivos
Locais, e tem como objetivo melhorar a competitividade da economia local, gerando
emprego e renda para a população, conforme propagam os adeptos da teoria do
desenvolvimento endógeno sustentável612.
O marco inicial de políticas e programas no país, voltados para este novo tipo de
arranjo institucional, é 2004, com a articulação da Secretaria de Ciência, Tecnologia e
Desenvolvimento Econômico (SCTDE). Antes da instauração dessa política, o governo
investia em escolas técnicas e institutos tecnológicos como meios de fomento a projetos de
desenvolvimento econômico. Além disso, atuações de instituições da sociedade civil ou
mista, como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) e o Serviço de Apoio
às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE – SP), apoiavam iniciativas isoladas de projetos
de desenvolvimento local.
Segundo Celina Souza (2007), o estudo de políticas públicas possui caráter
interdisciplinar, tendo em vista que seu objeto de pesquisa são “as instituições, regras e
modelos que regem sua decisão, elaboração, implementação e avaliação” (SOUZA, 2007).
De acordo com Danilo Tavares da Silva (2010), os inúmeros instrumentos jurídicos que o
Estado brasileiro utiliza para incentivar o desenvolvimento regional, demonstram a
multiplicidade de atores e mecanismos institucionais demandadas pelas políticas públicas.

Havia algumas moradias ou repúblicas de usuários autônomos, que eram monitoradas por profissionais
612

dos CAPS em visitas domiciliares.

1259
Ainda segundo Silva (2010), os municípios, regiões e outras unidades territoriais,
que disputam o acesso as políticas públicas de apoio ao desenvolvimento regional; atuam
principalmente no plano midiático, divulgando as ações governamentais. Porém, essas
ações não são acompanhadas pela efetividade da ação estatal, gerando um déficit no
atendimento das demandas regionais. Logo, conforme argumenta Souza (2007), a análise
de políticas públicas demonstra o governo como o lócus no qual os conflitos entre ideias e
preferências ocorrem. “Pode-se, então, resumir política pública como o campo do
conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar o ‘governo em ação’” (SOUZA, 2007).
As iniciativas derivadas da PNDR são consideradas pelo governo, uma importante
estratégia de política pública para alcançar o desenvolvimento das governanças locais. Isto
posto, estudar as articulações em torno de tal política e como conseguiu sintetizar interesses
e teorias econômicas, colocando-os na agenda política estadual; é uma importante
contribuição tanto para a discussão acerca do desenvolvimento local como para os estudos
de políticas públicas.

O MODELO DOS MÚLTIPLOS FLUXOS APLICADO A PNDR

No texto Agendas, Alternatives e Public Policies, Kingdon (2003) tem como


objetivo investigar o processo em que determinados problemas entram na agenda
governamental. Originalmente formulado para a análise da formação da agenda (agenda-
setting), este modelo teórico considera a mudança na agenda como conseqüência da
convergência de três fluxos: problemas (problems); soluções (policies); e políticas (politics).
No que se refere ao primeiro fluxo, o de problemas, Kingdon (2003) analisa como
determinadas questões passam a ser consideradas como problemas pelo governo e entram
na agenda de políticas públicas. Tendo em vista a teoria da racionalidade limitada, o
modelo pressupõe que há uma seleção de questões que são escolhidas e outras que são
ignoradas. Tal processo se dá por meio da análise de três mecanismos: os indicadores
socioeconômicos; eventos e/ou crises momentâneas e o feedback de outros programas
governamentais. Logo, Kingdon parte do pressuposto que os problemas enfrentados pelo
governo são construções sociais. “Problems are not simply the conditions or external
events themselves: there is also a perceptual, interpretative element” (KINGDON,
2003, p. 109-110).
Já, no segundo fluxo, denominado de policy stream, se refere as soluções e
alternativas apresentadas para os problemas identificados pelo governo. Contudo, essas

1260
soluções e alternativas não estão ligadas a problemas específicos, muitas vezes, elas surgem
antes mesmo dos problemas. Conforme argumenta Kingdon, as pessoas não estão
necessariamente tentando resolver os problemas, sendo que na maioria das vezes, o que
elas oferecem são soluções gerais e tentam encaixá-las aos problemas. Com isso,
percebemos que os fluxos agem de maneira independente e, em determinados momentos,
chamados pelo autor de janelas de oportunidade (policy windows), determinados fluxos
convergem e as políticas públicas são produzidas: um problema encontra uma alternativa
e a partir disso a política é implementada.
A produção de alternativas é vista por Kingdon como um processo semelhante ao
de seleção natural. “Da mesma forma como moléculas flutuam no que os biólogos chamam
de “caldo primordial”, o autor entende que as idéias a respeito de soluções são geradas em
comunidades (policy communities) e flutuam em um “caldo primordial de políticas”
(policy primeval soup)” (CAPELLA, 2005, p. 6) Neste processo, há uma disputa entre
idéias, sendo que algumas são escolhidas e outras ignoradas. Desse modo, observa-se que
neste modelo teórico, as idéias possuem papeis centrais para a análise de políticas públicas.
Segundo o autor, “the content of the ideas themselves, far from being mere smokescreens
or rationalizations, are integral parts of decision making in and around government”
(KINGDON, 2003, p. 125).
Por fim, o terceiro fluxo compreende a política em si, envolvendo negociações
entre os atores e as instituições. Dentro desta dimensão política, Kingdon identifica três
fatores que afetam a agenda governamental. O primeiro fator é o clima nacional (national
mood), segundo o qual, a sociedade compartilha de uma mesma perspectiva sobre
determinada situação. O segundo fator são os grupos de pressão que se organizam para a
realização de suas demandas. O terceiro fator refere-se a mudanças dentro do governo,
como mudanças do partido incumbente ou no Congresso, entre outras.
Dessa forma, segundo o modelo de Kingdon, a entrada de determinados
problemas na agenda governamental depende da união desses três fluxos, em um processo
denominado pelo autor como coupling. Este último, por sua vez, ocorre quando existem
janelas de oportunidades (policy windows) abertas, que estão relacionadas principalmente
aos fluxos de problemas e políticas. A partir dessa perspectiva, as mudanças na agenda do
governo podem ocorrer de forma previsível, a partir, por exemplo, da mudança no
governo; ou de forma imprevisível, com a ocorrência de algum evento ou crise. Porém, nos
dois casos, a principal característica da janela de oportunidade (policy windows) é sua
transitoriedade, ou seja, ela ocorre de maneira rápida e breve.

1261
Entretanto, além do coupling, há um outro elemento essencial para a consolidação
da mudança na agenda governamental: a ação dos atores, chamados de policy
entrepreneurs por Kingdon (2003). Estes empreendedores (policy entrepreneurs)
possuem papel fundamental na promoção de políticas públicas, visto que mobilizam
recursos e agentes nesse processo. Eles podem fazem parte do governo ou de comunidades
da sociedade, sendo especialistas ou possuem autoridade em determinadas questões. “Os
entrepreneurs são hábeis negociadores e mantém conexões políticas; são persistentes na
defesa de suas idéias, levando suas concepções de problemas e propostas a diferentes
fóruns. Empreendedores conseguem “amarrar” os três fluxos, sempre atentos à abertura
de janelas” (CAPELLA, 2005, p. 6).
Por conseguinte, é fundamental para a compreensão do modelo teórico de
Kingdon, a concepção de que existem atores que influenciam a agenda governamental
(governmental agenda) e outros que possuem maior poder na definição das soluções
(decision agenda). Assim, existe um grupo de atores visíveis ao público e a imprensa e outro
grupo invisível (policy communities), dentro do qual as idéias circulam. Como exemplos
de atores visíveis que influenciam o processo de formulação de políticas públicas temos o
presidente, a burocracia governamental, o Poder Legislativo, os grupos de interesse, os
partidos políticos, a mídia e a opinião pública. Já, no segundo grupo, observamos a
presença de acadêmicos, pesquisadores e consultores; especialistas em temas que
produzem alternativas.
Outro ponto essencial do modelo teórico de Kingdon é a diferenciação entre os
conceitos de agenda governamental e agenda decisória. De um lado, o conceito de agenda
governamental, refere-se aos assuntos que interessam ao governo em um momento
específico. Por outro lado, a agenda decisória compreende um subconujunto dentro da
agenda governamental relacionado a tomada de decisões já prontas e rápidas. No que diz
respeito à PNDR, observamos que o tema do desenvolvimento local consistia em um
subgrupo dentro da questão do desenvolvimento nacional, já presente na agenda do
governo federal. Logo, o desenvolvimento local entrou para a agenda governamental junto
com o debate mais amplo sobre o crescimento do país e passou a compor a agenda
decisória a partir da PNDR.
Além da diferenciação dos conceitos de agenda, é importante para a compreensão
do modelo de múltiplos fluxos a ação das comunidades de políticas (policy communities)
nos subsistemas (policy subsystem), isto é, a elaboração de ideias e soluções por atores
especializados em determinados temas. Isso porque o processo de produção de políticas

1262
públicas é complexo, envolvendo muito mais que a organização formal de uma política.
Desse modo, a literatura de políticas públicas enfatiza o estudo dos subsistemas (policy
subsystem) da organização política, que engloba diferentes atores e instituições, sendo mais
ou menos coesos de acordo com sua especialização. No caso da PNDR, observamos a
ação de uma comunidade de política (policy communities) formada por pesquisadores e
acadêmicos especializados na questão do desenvolvimento regional como Carlos Brandão
e Teresa Araújo, dois dos principais nomes que elaboraram tal política. Tais atores, em
sua maioria ligados ao núcleo de economia da Universidade Estadual de Campinas
(UNICAMP), atuaram como consultores e assessores do governo federal, visto que
compartilhavam de uma mesma visão sobre o desenvolvimento do país.
Nesse sentido, conforme destaca Kingdon, em comunidades de política (policy
communities) coesas, como o caso da PNDR, os atores compartilham as mesmas crenças
e há poucos questionamentos sobre a produção de soluções. Conseqüentemente, a
formulação de ideias a partir dessas comunidades coesas tende a gerar políticas mais
estruturadas, o que facilita a sua entrada na agenda governamental. Tal processo pode ser
observado na formulação da PNDR, pois foi formulada por uma comunidade de
especialistas, em sua maioria de uma mesma instituição, que acreditavam que a solução
para o desenvolvimento nacional era o investimento estatal nas escalas locais. Assim, a
PNDR foi muito bem estruturada, articulando as três esferas federais, o que facilitou sua
apreciação na agenda do governo no momento propício.
Em vista disso, o papel dessas comunidades (policy communities) é essencial,
mesmo que apenas sua atuação não é suficiente para a promoção de políticas, visto que é
preciso a confluência dos outros fluxos. Porém, é a partir dessas comunidades que surgem
idéias e soluções que podem ser adotadas pelos tomadores de decisão. Além disso,
Kingdon destaca que essas comunidades não estão necessariamente relacionadas ao
governo ou a partidos políticos, já que possuem uma lógica própria. Isso porque as idéias
discutidas nessas comunidades nem sempre estão ligadas a um problema especifico atual,
como observamos no caso da PNDR, por exemplo. O debate acadêmico acerca do
desenvolvimento local no Brasil data dos anos 1950, com as publicações da CEPAL, sendo
intensificado nos anos 1970 e 1980. Contudo, uma das soluções discutidas nesse meio
acadêmico, a institucionalização de uma política nacional de desenvolvimento que leve em
conta as desigualdades regionais; só foi apreciada pelos tomadores de decisão nos anos
2000.

1263
Diante dessa perspectiva teórica, Zahariadis (2014) avança na análise de políticas
públicas, ao estender o modelo de Kingdon ao estudo de implementação de políticas.
Além disso, este autor amplia a análise original de Kingdon ao realizar comparações entre
políticas de diferentes países. Porém, uma das mais importantes contribuições de
Zahariadis (2014) é utilizar como unidade de análise não apenas a ação do governo federal,
mas também todos os atores envolvidos em uma determinada questão. Assim, enquanto
Kingdon enfatiza a estrutura governamental, Zahariadis analisa questões, sendo que ele
considera os fatores que influenciam o fluxo político (humor nacional, grupos de interesse
e mudanças no governo) como um único conceito: a ideologia.
A partir dessa breve apresentação do modelo teórico de Kingdon e das
contribuições de Zahariadis, seguiremos para a sua aplicação na análise da Política
Nacional de Desenvolvimento Regional. Tendo em vista a formulação da PNDR,
identificamos os três fluxos e a janela de oportunidade (policy windows). No que diz
respeito ao primeiro fluxo, o de problemas, desde a Constituição de 1988, existia um
debate nacional sobre como desenvolver de maneira uniforme as regiões e os municípios
do Brasil, visto que as políticas econômicas empreendidas pelo regime militar agravaram
as diferenças regionais.
Desse modo, o problema do desenvolvimento em escalas locais sempre esteve
presente para o governo federal brasileiro. Contudo, apesar de algumas especificações na
Carta Constitucional de 1988, como a autonomia dos municípios; tal problema nunca havia
se configurado como uma questão de urgência para o país. Além disso, alternativas e
possíveis soluções para o problema da desigualdade regional, isto é, o segundo fluxo do
modelo, também foram elaboradas desde a CEPAL nos anos 1950, visto que tal problema
era importante para o desenvolvimentismo do período.
Isto posto, desde meados do século XX, observamos acadêmicos e especialistas
produzindo teorias sobre como desenvolver o país a partir de suas bases locais. A solução
apresentada pela CEPAL, por exemplo, era o investimento na industrialização nacional.
Nos anos 1970, por sua vez, conforme destaca Cano (1988), houve uma tentativa de
interiorização da industrialização por parte do governo federal, principalmente no estado
de São Paulo. Contudo, tal iniciativa não obteve sucesso, tendo em vista a falta de
investimento por parte dos atores privados e a crise econômica do período. Assim sendo,
nos anos 2000, com a industrialização das grandes capitais consolidada e a identificação de
obstáculos ao desenvolvimento nacional a partir de indicadores de pesquisas
governamentais, assim como a influência externa de experiências de desenvolvimento local

1264
na Itália e da teoria do desenvolvimento endógeno; a PNDR é formulada em 2003. De
acordo com o terceiro fluxo, a dimensão política, observamos nesse ano um clima nacional
propício a iniciativas que impulsionassem a economia nacional, visto que o país enfrentava
uma crise econômica.
Somado a isso, temos grupos de pressão da iniciativa privada interessados em
investir em tal política e em empreendimentos no nível local, pois estão influenciados por
experiências frutíferas em outros países, como os Estados Unidos. Nesse ponto,
observamos que esses empreendedores agem de forma a pressionar o governo a partir das
instituições governamentais, assim como de instituições privadas, como o SENAI e
estaduais, como o SEBRAE. Por fim, nessa mesma época, temos a mudança no governo
federal, com a entrada de Luis Inácia Lula da Silva (PT) e uma proposta de
desenvolvimento mais igualitário.
Portanto, no primeiro governo Lula, que formulou a PNDR, observamos logo no
seu segundo ano de governo (2003) a convergência dos três fluxos: o problema da
desigualdade regional; a solução do desenvolvimento a partir do nível local e; a mobilização
política em prol de tal questão. Dessa maneira, observa-se o processo de coupling, assim
como a abertura de uma janela de oportunidade (policy windows) para a implementação
de uma política voltada ao desenvolvimento local, a qual é aproveitada pelos
empreendedores que defendiam tal ideia.

CONCLUSÕES

Tendo em vista que o presente trabalho teve como objetivo compreender o


processo de formulação de políticas públicas a partir da Política Nacional de
Desenvolvimento Regional; baseando-se no modelo dos múltiplos fluxos de John Kingdon,
conclui-se que os municípios brasileiros, dentro da perspectiva de um capitalismo
competitivo global, possuem dificuldades de crescimento econômico e garantia de boa
qualidade de vida para a sua população. Logo, o objetivo desta política é o combate a
desigualdade regional e a orientação de políticas públicas de desenvolvimento local.
A partir disso, iniciativas como Política Nacional de Desenvolvimento Regional
(PNDR) constituem-se como uma tentativa de aproximar setores da sociedade civil e
governos municipais em prol do desenvolvimento local. O desenho da Política Nacional
de Desenvolvimento Regional (PNDR) articula as três esferas federativas, iniciando com as
deliberações de nível estratégico dos ministros e da Presidência no Conselho Nacional de

1265
Integração de Políticas Públicas no Território. Diante dessas características, a Política
Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) é uma política transversal e desafiadora,
que mobiliza recursos e instrumentos federais e estaduais. A partir dela, coordenam-se
diferentes políticas setoriais que lidam com a questão do desenvolvimento regional, em
várias regiões do país.
Tendo em vista a formulação da PNDR, identificamos os três fluxos e a janela de
oportunidade (policy windows). No que diz respeito ao primeiro fluxo, o de problemas,
desde a Constituição de 1988, existia um debate nacional sobre como desenvolver de
maneira uniforme as regiões e os municípios do Brasil, visto que as políticas econômicas
empreendidas pelo regime militar agravaram as diferenças regionais. Além disso,
alternativas e possíveis soluções para o problema da desigualdade regional, isto é, o
segundo fluxo do modelo, também foram elaboradas desde a CEPAL nos anos 1950, visto
que tal problema era importante para o desenvolvimentismo do período.
No entanto, uma das soluções discutidas nesse meio acadêmico, a
institucionalização de uma política nacional de desenvolvimento que leve em conta as
desigualdades regionais; só foi apreciada pelos tomadores de decisão nos anos 2000. De
acordo com o terceiro fluxo, a dimensão política, observamos no ano da formulação dessa
política um clima nacional propício a iniciativas que impulsionassem a economia nacional,
visto que o país enfrentava uma crise econômica. Somado a isso, nessa mesma época,
temos a mudança no governo federal, com a entrada de Luís Inácia Lula da Silva (PT) e
uma proposta de desenvolvimento mais igualitário.
Diante do exposto, a análise preliminar dos dados dos municípios apreciados pela
PNDR no estado de São Paulo (BARBOSA; CARVALHO, 2015), conclui-se que a
dinâmica do desenvolvimento não se dá de maneira uniforme. Municípios pequenos e com
menor expressão econômica, mesmo situados em uma região de governo com índices
econômicos considerados expressivos, não são beneficiados por efeitos de
transbordamento per se. As desigualdades das estruturas socioeconômicas são patentes e
notórias, haja vista que os municípios com maior dinâmica econômica e maior peso
demográfico acabam concentrando maior atenção das políticas públicas, maiores recursos
e acabam também drenando a renda gerada nos demais municípios por conta de seu
comércio mais diversificado. Contudo, conforme estudos iniciais sobre essas iniciativas
demonstram, geralmente, tais articulações tendem a reproduzir lógicas regionais de
liderança e desigualdades.

1266
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1268
ENTRE AS TÉCNICAS DE AVALIAÇÃO E O ORÇAMENTO
PUBLICO DA SAÚDE MENTAL: ETNOGRAFIA DA POLÍTICA DE
FINANCIAMENTO EM CAMPINAS

Lecy SARTORI613

Resumo: A partir de um evento que produziu o deslocamento de dezenas de profissionais do


Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira (SSCF) para as ruas em protesto contra os cortes de gastos
no orçamento da saúde mental em 2012, pretendo analisar como funciona a política de
financiamento em Campinas. Mais especificamente, procuro mostrar as relações de negociação
que possibilitam o repasse financeiro por meio de um convênio de parceria entre o SSCF e a
Secretaria Municipal de Saúde (SMS). Para isso, aciono os dados de minha pesquisa de campo do
doutorado realizada (entre os meses de março de 2011 e maio de 2012) no SSCF e apresento o
modo como os atores avaliam as demandas locais para transcrevê-las em documentos que
compõem o texto do convênio e justificam a necessidade do recurso público. Além de criticar os
cortes de gastos que em seus efeitos inviabilizavam o projeto de ampliação das moradias para
abrigar uma lista de quinze pessoas em situação de risco social, os atores fabricaram documentos
que percoreram emaranhados burocráticos para explicitar as demandas aos administradores
municipais. Meu objetivo é descrever o modo como os atores na Comissão de Moradias
identificavam as demandas locais por meio de critérios elaborados a partir dos elementos da história
de vida e do contexto particular dos usuários. Os elementos da história individual são descritos em
uma linguagem que destacam as necessidades singulares transformados em parâmetros técnicos
administrativos. Minha ideia foi analisar como os atores, naquele momento, identificavam,
avaliavam e registravam, em documentos, as demandas locais com o objetivo de incluí-las no
convênio de financiamento. Também apresento o fluxograma da demanda do SUS, que, segundo
a Coordenação Municipal de Saúde Mental, os atores deveriam seguir para tornar as necessidades
locais visíveis para os gestores públicos. Destaco a problematização do fluxograma da demanda:
esse percurso burocrático foi seguido, mas a proposta de ampliação das moradias para acolher os
usuários da lista de espera não foi efetivada. Segundo a coordenação, ela esperava pela publicação
de uma portaria para resolver o problema, posição que não levou em conta a avaliação da Comissão
de Moradias. Observa-se o modo como os gestores municipais acessam os dados sobre a demanda
da população sistematizada em documentos e repassam o financiamento seguindo as estratégias do
governo federal descrita nas portarias.

Palavras-chave: Antropologia do Estado. Política de Financiamento em Saúde Mental.


Regulamentação estatal das práticas da Reforma Psiquiátrica.

INTRODUÇÃO

Em 23 de maio de 2012, os trabalhadores da rede de saúde de Campinas, incluindo


os do SSCF, depois de uma passeata pelo centro dessa cidade, concentraram-se em frente
à prefeitura e ali permaneceram até o início da reunião do Conselho Municipal de Saúde,
às 18 horas, na qual os conselheiros votariam a renovação do Convênio de Cogestão da

Na época da pesquisa de Campo, a Comissão de Moradias era composta por um representante de cada
613

CAPS (exceto CAPSi), um do Núcleo de Retaguarda, dois da Secretaria de Assistência Social (abrigo
Renascer), um representante da Coordenação Municipal de Saúde Mental e um da equipe do SRT.
1269
saúde mental entre o SSCF e a Secretaria de Saúde. Começada a reunião, entraram para
acompanhar a votação. Os cartazes que traziam destacavam sua oposição à maneira como
os gestores da secretaria conduziam os trâmites burocráticos para cumprir o Termo de
Ajustamento de Conduta assinado com o Ministério Público: em decorrência de
irregularidades no Convênio PSF, seriam demitidos 1.308 funcionários de diferentes
serviços da rede de saúde, e o edital do concurso que seria realizado para suprir as vagas,
publicado dias antes, mostrava que elas estavam longe da metade do número de pessoas
que seriam exoneradas.
Conforme um dos cartazes, para suprir a necessidade de doze terapeutas
ocupacionais foram ofertadas três vagas; para prover 39 cargos de psicólogos, doze vagas —
e, segundo um panfleto divulgado por e-mail, ao exonerar trezentos agentes de controle
ambiental, a prefeitura oferecia trinta vagas614 para a categoria. Para os manifestantes, as
vagas abertas não supriam as necessidades dos serviços, que, em alguns casos, já
funcionavam de forma precária. Um exemplo disso foi apresentado por uma psicóloga,
numa reunião no Sindicato de Saúde de Campinas (SinSaúde), em 17 de maio de 2011,
na qual se discutiu a situação do Convênio PSF: ela afirmou ser a única profissional para
atender uma população de quatro mil pessoas em um posto de saúde. Na manifestação,
um cartaz alertava sobre o “desmonte da saúde pública em Campinas”, que aconteceria,
segundo os atores, em consequência da maneira como a prefeitura conduzia as negociações
para resolver a situação daquele convênio, visto que o total de trabalhadores contratados
pelos dois convênios com o SSCF perfaziam, aproximadamente, 25% dos trabalhadores
da assistência à saúde no município. Outro cartaz listava os serviços que deixariam de existir
caso eles fossem dispensados: Serviço de Atenção à Dificuldade de Aprendizado (SADA),
Centro de Referência à Saúde do Idoso (CRI), Serviço Médico de Urgência (SAMU),
DST/aids, Centro de Referência Regional de Saúde do Trabalhador de Campinas
(CEREST), Central de Regulação de Combate à Dengue, Policlínica (Poli) I e II, e o
laboratório municipal.
Diferentes cartazes atestavam que o SSCF era “a favor do SUS”, “100% SUS”. Com
isso, os profissionais anunciavam que toda a assistência da instituição é gratuita — uma
estratégia para confrontar e deslegitimar o argumento de que os convênios são uma forma
de terceirização da saúde. De forma resumida, a terceirização, na saúde, significa contratar
empresas privadas para executar parte da assistência que o SUS não está preparado para

614
As citações são cópias de protocolos de encaminhamento de pedido de vaga nas moradias, que são
preenchidos pelo profissional de referência dos usuários.

1270
oferecer. Conforme a Constituição de 1988 e a Lei Orgânica da Saúde (no 8.080), de 19 de
setembro de 1990, só as instituições públicas estão autorizadas a fornecer assistência ao
SUS. Em Campinas, a Lei do Convênio, que autorizou a assinatura do convênio entre a
prefeitura e o SSCF em 1990, trouxe, em seu artigo segundo, um respaldo burocrático para
essa instituição, pois a integrou ao sistema municipal de saúde. De acordo com os
profissionais, o objetivo da prefeitura é transformá-la em uma organização social de saúde
(OSS), para produzir cortes de custo em seu orçamento. Com esse jogo político, buscava
deslegitimar a confiabilidade do SSCF, para reduzir o financiamento. Naquele momento,
conforme o discurso dos meus interlocutores, em vez de pensar na desassistência à
população, os administradores do município pensavam no orçamento, uma vez que
poderiam ter projetado ações que regularizassem o Convênio PSF antes de sua imputação
jurídica.
Observa-se como o orçamento e a diminuição do financiamento eram mecanismos
acionados pela prefeitura para gerenciar e direcionar o SSCF, os profissionais e as ações
em saúde segundo os seus objetivos. O SSCF, por sua vez, procurava, com as
manifestações, tornar visível que as irregularidades eram devidas às contratações via
Convênio PSF em vez de concurso público, ou seja, eram responsabilidade da prefeitura.
A instituição, em sua estratégia de tornar transparente os fatos em apresentações públicas
no Conselho Municipal de Saúde e por meio da produção de documentos (parecer de
auditoria externa, cartas, panfletos e cartazes) que apresentavam a responsabilidade da
prefeitura na irregularidade do convênio, produzia uma forma de fazer política para
assegurar a sua fiabilidade e o recurso do financiamento. Ao expor esse processo, afirmava,
por um lado, uma “regulação por revelação” (FLORINI, 2003, p. 34) através de práticas
de transparência, e, por outro, uma forma de fazer política utilizando o mesmo argumento
da transparência, como uma norma de regulação, para suscitar, nos administradores, nos
políticos e na população, maneiras de observar e avaliar se os processos burocráticos da
política de financiamento eram efetivos. De fato, o SSCF, ao recorrer ao discurso da
transparência, procurava atestar a fiabilidade dos processos de prestação de contas e
buscava responsabilizar os gestores municipais em relação aos processos políticos. Nesse
exemplo, observa-se que a transparência, além de ser resultado de processos de
avaliação/auditoria, que produzem efeitos sociais (STRATHERN, 2000, p. 2), é uma
forma de regulação da gestão pública. Essas novas práticas de gestão, denominadas de
auditoria, não são apenas instrumentos para impedir irregularidades de administração ou

1271
gastos do recurso público, mas técnicas de governo (POWER, 1994, p. 12; SHORE, 2009,
p. 45).
Em 2012, os trabalhadores, que já estavam preocupados em relação à renovação
do Convênio de Cogestão da saúde mental, foram surpreendidos pela proposta da
Secretaria de Saúde para solucionar as irregularidades do Convênio PSF. Dois dias antes
da sua manifestação, o sentimento de incerteza foi agravado por informações
disponibilizadas na reunião do Fórum Popular de Saúde de Campinas, que contou com a
participação dos conselheiros de Saúde e dos atores da Comissão de Acompanhamento
do Convênio: o documento do convênio apresentado pela prefeitura era um milhão e
seiscentos mil reais a menos do que o previsto e calculado (cinco milhões e seiscentos mil
reais) como necessário mensalmente para a manutenção, a ampliação e a criação de novos
serviços.
Isso afetava diretamente o SRT, que, por um lado, previa a ampliação de moradias
e a criação de outras, para incluir as quinze pessoas que aguardavam por vagas (segundo
meus interlocutores, eram, em sua maioria, casos graves que precisavam com urgência de
assistência em uma moradia 24 horas); por outro, porque ele procurava manter o
funcionamento de uma equipe composta por 136 profissionais, que acompanhava o
processo de reabilitação de 163 usuários oferecendo um cuidado clínico domiciliar em 29
moradias. As pessoas da lista de espera eram usuárias da rede de assistência, e estavam
morando em instituições como os CAPS (ocupando o leito noite reservado para o
acolhimento à crise) e nos abrigos municipais (ocupando os leitos destinados às pessoas
em situação de rua). Desse modo, os atores, na Comissão de Moradias, avaliavam e
organizavam os pedidos de vaga em uma lista de espera, e procuravam formas de realocar
os usuários para as moradias dos CAPS615 ou do SRT. No entanto, as vagas só existiam em
decorrência de falecimento (a chamada alta celestial) ou quando o usuário voltava a morar
com a família, e no caso de rearranjo ou ampliação das residências. Esta última alternativa
era a proposta da comissão para garantir moradia aos usuários da lista de espera.
Durante a pesquisa de campo, frequentei, como ouvinte, por oito meses (março de
2011 a maio de 2012), as reuniões da Comissão de Moradias. Na época em que participei
delas, os atores não conseguiam encaminhar a demanda das quinze pessoas que
aguardavam na lista. Para tentar resolver essa situação, reivindicavam a participação, nelas,

615
Em sua etnografia sobre um processo de reconhecimento dos direitos territoriais em uma comunidade
quilombola, O’Dwyer (2014, p. 80) analisou situações políticas em que o Estado é mobilizado e atualizado
em suas práticas administrativas.
1272
de um representante da Secretaria Municipal de Saúde. Em 28 de setembro de 2011, Alice,
funcionária da secretaria e vinculada à Coordenação de Saúde Mental, participou da
reunião para esclarecer o posicionamento daquela. Alice propôs que os membros da
comissão discutissem com os gerentes de cada serviço, para que a informação sobre a
ausência de vagas no SRT, decorrente da redução de custos do convênio, fosse exposta
para os apoiadores, e estes fariam a ponte entre a demanda detectada em cada região ou
distrito de saúde e a coordenação.
Para agir sobre o problema da falta de vagas no SRT, Alice contou que aguardava
“um edital da conferência e o posicionamento do Colegiado Nacional de Saúde Mental
como resposta” (ata da reunião da Comissão de Moradias, 28/09/2011). No próximo
tópico, discuto a razão pela qual a Coordenação de Saúde Mental, para administrar o
problema das quinze pessoas que aguardavam vaga nas moradias, esperava por um edital
ou pelo posicionamento desse colegiado.

A COMISSÃO DE MORADIAS

A Comissão de Moradias é formada por profissionais de diferentes instituições616, e


suas reuniões aconteciam, na época da pesquisa de campo, quinzenalmente, às quartas-
feiras de manhã, no prédio do Cebes, no centro de Campinas. Na reunião que contou com
a presença de Alice havia dez profissionais, que representavam instituições como o SRT,
o CAPS, o CAPS Ad, o Núcleo de Retaguarda, os abrigos municipais Reviver e Renascer
e o Serviço de Atendimento ao Migrante, Itinerante e Mendicante (Samim). Em seu início,
a profissional de referência (psicóloga de um CAPS) de uma usuária que estava morando
no CAPS Integração expôs a situação desta: 31 anos, psicótica. Filha adotiva, aos 7 anos
teve detectados problemas de aprendizagem; refere abuso sexual aos 16. Manifestou a
primeira crise psicótica depois que a mãe adotiva morreu, e em seu histórico havia muitas
internações. O pai tentou uma aproximação, “mas não deu conta de assumir”. Foi
moradora do SRT, onde tinha um quarto individual, e a equipe avaliou que ela teve avanços
na convivência com outros moradores, mas essa relação de “convívio se tornou
insustentável quando: tentou colocar medicação na comida de todos, episódio de fogo no
quarto, conseguiu colocar medicação na comida e alguns moradores passarem mal” (ata da
reunião da Comissão de Moradias, 28/09/2011). Ficou internada no leito noite daquele

616
Mestranda em Ciências Sociais; Universidade Federal de São Paulo; CAPES; fabianepenedo@gmail.com

1273
CAPS e, quando começou a receber o benefício, “fugiu no mundo”, sendo encontrada,
seis meses depois, em “um hospital do século passado, no Rio de Janeiro”. Retornou a
Campinas muito cronificada e foi encaminhada para internação no Núcleo de Atenção à
Crise. Sem ter com quem ficar (conheceu a mãe biológica, que sentiu medo dela), a equipe
do CAPS a colocou em uma pensão, mas “ela não sustentou”. Começou a repetir o mesmo
movimento que realizava antes de ser internada (ainda antes da fuga). “Histórico de
pequenos furtos” (ata da reunião da Comissão de Moradias, 28/09/2011). Roubou a bolsa
de uma médica, irmã de um policial federal. “Apesar da idade, ela é bastante infantilizada,
disputa os profissionais da equipe”, e, segundo a psicóloga da equipe das moradias, “tem
que ter assistência para envelhecer”, é preciso “cercear a sua circulação” porque “é grande,
invasiva, e se ela não te conhece, ela é hostil”, mas “ela não tem ninguém”. Sua referência
afirmou que “Ela está em situação de risco internada no CAPS e circulando pela cidade”.
A comissão concluiu que a usuária precisava de uma moradia 24 horas, mas não havia vaga.
A equipe do CAPS deveria avaliar a sua internação a partir dos critérios: “não consegue
gerir a própria vida (comete crimes e pode ser presa), e está se colocando em risco”.
Após a apresentação do caso, que foi conduzido para a lista de espera, Alice expôs
o fluxograma do SRT. Segundo ela, a função da Comissão de Moradias era discutir, de
forma coletiva, os critérios de avaliação dos casos e produzir os parâmetros de julgamento
das demandas por residência a partir dos PTIs. De acordo com os membros daquela, a
avaliação e a identificação das demandas já eram atividades que realizavam, mas isso não
era suficiente, uma vez que não era possível encaminhá-las para uma moradia. Os
parâmetros da comissão para justificar a necessidade de moradias para os usuários que
habitavam as instituições da rede de saúde de Campinas eram diversos e estavam descritos
nos protocolos de encaminhamento, e eram bastante esclarecedores da urgência de alguns
casos, como mostram os exemplos a seguir617:

08/2011. Paciente encontra-se internado no Núcleo de Retaguarda [três


meses], pois vinha fazendo uso intenso de álcool e apresentando crise de
ansiedade e, por vezes, sintomas psicóticos. Presenciou um homicídio
na pensão, o que o desorganizou ainda mais. Apresenta múltiplos

617
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo contabiliza separadamente pessoas mortas em confrontos
com policiais militares em serviço e fora de serviço, bem como divulga as mortes de policiais militares
ocorridas quando estes estavam em serviço e quando não estavam em serviço. Os dados utilizados neste
artigo referem-se apenas aos dados de policiais em serviço. Além disso, o trabalho se utiliza somente de
mortes envolvendo policiais militares porque estes, por serem responsáveis pelo policiamento ostensivo, são
autores de um número de mortes em confrontos extremamente elevado quando comparado com policiais
civis. 1274
sintomas somáticos, como dor generalizada, lapsos de memória, tonturas
(sensação de queda), ansiedade intensa.

12/4/2011 Atualmente reside no albergue. [...] A indicação feita para a


vaga na Residência Terapêutica dá-se, primeiramente, pela vontade do
usuário em ter uma moradia que possa chamar de lar. [...] Além de poder
redescobrir noções de cidadania, participar de uma comunidade e poder
transitar pelo seu território, reconstruindo sua identidade. Avaliamos que
ele não tem a autonomia para residir em uma pensão e se esta
possibilidade fosse concreta, ele provavelmente definharia, pois não se
sente digno de comprar produtos para [a sua] sobrevivência. Questões
que têm sido trabalhadas em terapia.

9/8/2008 Paciente apresenta alucinações auditivas de comando, delírios


persecutórios importantes, não faz uso regular de medicação e não
comparece ao CAPS com frequência regular. Perambula pelas ruas
solilóquio colocando-se em situação de risco [...] Refere que começou a
ouvir vozes com 25 anos e desde então tem tido internações frequentes
para controle do quadro mas após as internações novamente volta as ruas
e não consegue seguir as orientações medicamentosas. [...] Paciente
nestas andanças pela rua foi atropelado e teve fraturas múltiplas de arcos
costais e teve que ficar muito tempo na UTI e atualmente está no Núcleo
Clínico pois apresenta sequelas da traqueostomia e está muito debilitado.
[...] Atualmente precisa de auxílio na alimentação e cuidados pessoais,
com perspectiva de melhora, pois está se restabelecendo de um
atropelamento.

Observa-se que os parâmetros que justificam a necessidade de encaminhamento


dos usuários para as moradias são elementos de sua situação de precariedade social, do seu
quadro clínico ou psiquiátrico, a necessidade da administração da medicação. Em alguns
casos, existe a necessidade de auxílio para a alimentação e para os cuidados com a higiene.
Mais do que isso: existe um cálculo do risco e da vulnerabilidade que analisa e prevê os
danos futuros, tais como descompensações clínicas e psiquiátricas, recaídas no uso de
substâncias psicoativas, questões de sobrevivência (alimentação, etc.). Cabe informar que
os casos só são discutidos na Comissão de Moradias depois que a equipe de referência do
SRT esgota as suas intervenções (entre outras, encaminhar o usuário para pensionatos e o
investimento na tentativa de ele voltar a viver com um familiar). A internação, apesar de
acionada como recurso emergencial para resolver o problema de moradia e para prevenir
um risco social, não é uma possibilidade de habitação — caso do paciente do primeiro
exemplo citado, que estava internado no Núcleo de Retaguarda havia três meses.
Durante a pesquisa de campo, observei que os trabalhadores da rede da assistência
de Campinas constantemente solicitavam vagas no SRT, e os pedidos não eram para
pacientes egressos de hospitais psiquiátricos: a nova demanda refere-se aos egressos
daquela (egressos porque alguns necessitam de cuidados de reabilitação, como explicou

1275
uma interlocutora) e é caracterizada por uma população jovem, que apresenta, além do
quadro psiquiátrico, comorbidades clínicas, pouca autonomia e/ou faz uso de álcool e
outras drogas. Nota-se que a ideia de pouca autonomia refere-se a uma situação em que o
usuário depende da instituição para alimentar-se, tomar banho e dormir.
Após o insucesso dos investimentos que visam restabelecer as redes habitacionais
do usuário, os atores solicitam uma vaga no SRT. A demanda é avaliada pela Comissão de
Moradias, que determina o tipo específico de moradia para cada PTI. Segundo o protocolo
de pedido, as moradias são classificadas a partir do serviço nelas oferecido: a moradia de
alta complexidade, a moradia com atenção parcial, a moradia com profissional/cuidador
ou que tem só um aporte de atenção do profissional de referência para acompanhar a
reabilitação. Em 2012, a maioria dos usuários que aguardavam na lista necessitava de uma
vaga em moradia de alta complexidade. Meus interlocutores diziam que é mais fácil
encontrar alternativas, mesmo que temporárias, para resolver a urgência da necessidade de
habitação para os usuários mais autônomos.
De acordo com Alice, a Comissão de Moradias deveria elaborar um planejamento,
fazer as estimativas (sobre o número de vagas, a demanda, os recursos materiais e humanos,
e os insumos) e quantificar as internações decorrentes da falta de vagas nas moradias. Esses
dados serviriam de argumento para justificar a necessidade de mais vagas, que seria
deliberada a partir do controle social do SUS. Para isso, ela propôs que os membros da
comissão participassem das reuniões do Conselho Local de Saúde do seu distrito, a fim de
eleger, como prioridade deste, a proposta de ampliação das moradias. Na lógica do
fluxograma da Coordenação de Saúde Mental, a prefeitura planejaria as ações em saúde a
partir da demanda considerada prioridade naqueles conselhos. Ela analisaria as formas
para a sua viabilização, que seriam escritas e formalizadas no texto do Convênio de
Cogestão da saúde mental, e só depois desse processo a necessidade de mais vagas nas
moradias seria apresentada ao Conselho Municipal de Saúde, instância que delibera sobre
o financiamento do SUS.
Percebe-se, com esse exemplo, a composição do fluxo burocrático de pessoas e de
registros que a demanda deveria percorrer e a produção de informações sobre uma parcela
da população que não estava contemplada na portaria GM/MS no 3.090/2011, que
estabelece o recurso para implementação e para o custeio mensal dos SRTs (Ministério da
Saúde, 2011). Ao produzir as estimativas, os atores da Comissão de Moradias tornavam
quantificável a demanda observada localmente, e esses números forneceriam a justificativa
para, primeiramente, expor a realidade social problematizada por eles, e, posteriormente,

1276
ajudariam a compor o planejamento do orçamento para um futuro investimento em
moradias. Mais do que uma análise econômica, a problematização da comissão era uma
crítica ao limite da regulamentação das portarias, que em sua cobertura não possibilitam a
assistência a pessoas que não sejam egressas de hospitais psiquiátricos.
Ao elaborar os parâmetros, a comissão, além de tornar transparente a demanda
local não assistida pela prefeitura, produzia uma forma de fazer política por meio de uma
avaliação registrada em documentos que incitavam os agentes estratégicos a discutir o
assunto, a problematizar e a pensar formas de gestão das necessidades da população.
Pode-se afirmar, a partir das suas análises, que a Comissão de Moradias, ao destacar
as estimativas, apresentava a necessidade do financiamento e evidenciava os elementos
sobre a população que escapavam às regulamentações da biopolítica governamental
(COLLIER, 2005, p. 373). A quantificação da demanda avaliada localmente pelos
profissionais deveria ser exposta para os gestores dos serviços (através de cartas e ofícios ou
em exposições nas reuniões de equipe) e nos conselho locais de Saúde. Os gestores (no
Colegiado Gestor) e os apoiadores (na reunião do distrito, composta por profissionais dos
serviços de saúde que apresentavam as prioridades dos conselhos locais de Saúde) eram
pontos de convergência das informações sobre a população assistida e os responsáveis por
revelar/transmitir esses dados para a Coordenação de Saúde Mental. Nesta, os atores, por
sua vez, analisavam e decidiam quais demandas seriam incluídas no texto do convênio de
financiamento e negociavam com a prefeitura.
Em 10 de junho de 2011, a Comissão de Moradias escreveu uma carta dirigida à
Secretaria de Saúde e ao SSCF. A carta reafirma a necessidade de adaptação da Casa
Margarida, de manutenção das moradias, de criação de novas residências e de casas para
assistência a usuários idosos e com problemas clínicos. Explorei esse exemplo etnográfico,
acerca dos usuários que estavam morando em instituições da rede de assistência de
Campinas por não haver vaga no SRT, para destacar que os atores, na comissão,
articulavam-se politicamente para solucionar um problema local. Nesse caso específico, o
problema de moradia e de assistência de usuários que, segundo a história de vida singular,
o PTI e a avaliação dos profissionais, necessitavam de cuidados para prevenir riscos.
A organização do SUS foi detalhada por meio do fluxograma da demanda, que
indicava o caminho burocrático de avaliação e participação da população e dos
profissionais de saúde na reivindicação de financiamentos e de ações para resolver um
problema local. Segundo Alice, a demanda seria atendida se tornada visível por meio dos
debates públicos nos conselhos locais de Saúde e da fabricação de documentos (cartas,

1277
ofícios e projetos), que seriam encaminhados para os agentes estratégicos (gestores dos
serviços, apoiadores), assim como pela exposição pública da demanda local no Conselho
Municipal de Saúde. Mas a demanda de ampliação das moradias, mesmo depois de
percorrer esse fluxo burocrático, não constou, como já coloquei, no texto do convênio
votado em 23 de maio de 2012. Isso evidencia que, em algum lugar dessa rede de
negociação, o projeto de ampliação das moradias foi extirpado do convênio — o que abordo
no próximo tópico.

POLÍTICA E PRODUÇÃO DE DOCUMENTOS

O Plano de Ação e Metas, desenvolvido durante o Ano de 2012, integrado ao


documento do Convênio de Cogestão, detalhava as atividades que seriam realizadas nos
serviços. As metas do SRT era transformar a Casa Amarela em uma residência 24 horas,
para abrigar quatro pessoas da lista de espera. Além dessa proposta, o documento não
apresentava outras alternativas para aqueles que aguardavam vaga na lista de espera. A
posição da prefeitura ficou evidente no Fluxograma dos Serviços Residenciais
Terapêuticos, encaminhado por Alice, em 29 de fevereiro de 2012, para o e-mail da
Comissão de Moradias, o qual atesta que a Coordenação de Saúde Mental seguiria as
recomendações da política nacional. Conforme a política nacional descrita no e-mail, não
havia previsão de investimento para a criação de residências terapêuticas. Fica explícito que
o foco das ações da coordenação não estava nas pessoas que aguardavam na lista de espera,
mas na organização do funcionamento das relações em rede de uma forma propositiva
(que projetava as ações).
Entender o fluxo financeiro, participar da gestão, planejar as implementações,
elaborar um cronograma de metas, monitorar e tornar consistente o fluxo da demanda e o
controle social eram ações que se voltavam para a forma de operar a política de saúde no
município. Enquanto isso, as demandas locais seriam justificadas e incluídas no convênio
após os trâmites burocráticos previstos no fluxograma da demanda. Desse modo, a
coordenação dirigia os atores para que eles, de forma autônoma, detectassem as
necessidades da população e as registrassem em dados quantificáveis, que serviriam para
planejar e monitorar futuras implementações de novas moradias.
No entanto, a discussão sobre a necessidade de vagas nas moradias para uma
parcela da população que não estava identificada em índices biopolíticos do Estado e, por
isso, estava desassistida, evidenciou que cumprir o fluxograma da demanda não era garantia

1278
de que ela fosse incluída no convênio. Alice, representante da Coordenação de Saúde
Mental, acreditava que faltava instrução aos membros da Comissão de Moradias, e
apresentou a disposição burocrática, que eles já conheciam. Apesar disso, ela não percebeu
e/ou não avaliou que essa situação pudesse revelar que o fluxograma da coordenação era
falho, já que existia descompasso entre a proposta dos atores, elaborada a partir dos riscos
a que estavam sujeitos os usuários que aguardavam vaga, e as análises orçamentárias e
organizacionais realizadas pelos gestores municipais. Dito de outra forma, os atores
seguiram o fluxograma, mas as necessidades locais por vagas nas moradias não foram
incluídas no texto do Convênio de Cogestão — segundo meus interlocutores, na análise da
prefeitura, as demandas que excediam as portarias eram consideradas dispêndio de
recursos púbicos.
A coordenadora de Saúde Mental, Carla Siqueira Machado, em sua apresentação
no evento de moradias (em 2011) afirmou que os desafios da Reforma Psiquiátrica,
conforme o Colegiado Nacional de Saúde Mental, eram as ações que visavam a assistência
dos usuários de álcool e outras drogas em situação de rua e/ou em conflito com a lei. Dessa
forma, o foco da política nacional estava no financiamento de dispositivos que atendessem
a essa demanda.
As discussões ocorridas na reunião da Comissão de Moradias da qual Alice
participou expõem, por um lado, o descompasso entre a regulação da gestão municipal e
o saber local, e, por outro, como a Coordenação de Saúde Mental, por meio do fluxo da
demanda, exercia o governo dos atores e fazia a gestão do processo de elaboração de
parâmetros para registrar as necessidades da população.
Pode-se afirmar que as reivindicações da nova demanda por SRTs apresentava a
necessidade de atualizar e ampliar as regulamentações governamentais. No entanto, o foco
da análise, em situações como esta, deve estar não apenas nos problemas, mas também nos
efeitos das intervenções e na formulação de saberes estratégicos experimentados em uma
situação local. Dessa forma, os arranjos práticos que emergem das soluções e das
experiências eficazes devem ser investigados para formalizar as regulamentações políticas
da assistência em saúde mental.
Ao analisar o processo de implementação de repúblicas na Fundação Casa, em São
Paulo, Rolim (2013, p. 171) assinala que os documentos ministeriais são amplos e ubíquos,
e que há necessidade de uma regulamentação local, feita pelos gestores dos serviços. No
SRT, os profissionais determinam quais usuários serão acolhidos, como vão operar o
cuidado nas moradias, qual será a fonte do financiamento e a relação com a rede de

1279
assistência, mas a sua autonomia é regulada pelos administradores do município por meio
da distribuição do recurso. Em outras palavras, a autonomia do profissional tem um limite,
que é controlado por meio dos gastos, e, não, através de argumentos sobre a assistência
técnica em saúde. Observa-se que a autonomia regulada das escolhas e decisões dos
profissionais não está desconectada do jogo da reforma neoliberal, que exige o aumento da
racionalidade, do cálculo quantitativo realizado por técnicos habilitados em explicitar as
necessidades do financiamento.
Para os integrantes da Comissão de Moradias, a solução mais rápida para
administrar o problema do número de vagas no SRT era inserir a proposta de expansão
das moradias no texto do Convênio de Cogestão. Este, por um lado, era uma alternativa
burocrática para tornar visível uma parcela da população que estava acobertada por um
sistema que não conseguia quantificá-la; por outro, era uma alternativa para o
financiamento de algumas ações em saúde que não estavam previstas em documentos
ministeriais. Um exemplo disso é a equipe do SRT, uma vez que, para os documentos
ministeriais que regulam esse serviço, os seus usuários devem ser assistidos por
profissionais de referência dos CAPS. Isso quer dizer que há algumas brechas por meio
das quais o SSCF negocia o financiamento público. Esse experimentalismo que aciona as
brechas nas jurisdições é uma forma de atualizar o Estado por meio de práticas
administrativas618 (caso dos usuários do SRT que não eram egressos de hospitais
psiquiátricos). Tratam-se de acionamentos políticos que, ao invés de enrijecer o Estado,
produzem “flexibilidade, em sua possibilidade de avançar e recuar, em sua elasticidade”,
como afirma Foucault (2010, p. 174). Para a maioria dos meus interlocutores, o problema
da regulação do município por meio da limitação dos gastos orçamentários faz do
financiamento uma maneira de restringir avanços técnicos e, consequentemente, de
restringir as melhorias na qualidade do serviço.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo a apresentação de Carla Siqueira Machado no encontro de moradias, uma


nova política relacionada às residências terapêuticas estava em discussão, em 2011: a gestão
do coordenador geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, Roberto Tikanori, estaria
analisando a sua função. Era evidente, em seu discurso, que as portarias estavam

618
Aqui as pesquisadoras consideram policiais militares e policiais civis.

1280
ultrapassadas em relação à configuração da rede, porque “quando as portarias foram
criadas era outro contexto, outra rede e outra necessidade. O Ministério vai reavaliar as
moradias através de uma perspectiva intersetorial, ou seja, a política de moradias não será
de responsabilidade apenas da área da saúde” (MACHADO, 2011). Sua explicação
apresentava a posição da Coordenação de Saúde Mental de esperar uma nova portaria para
regular e incluir os novos casos da lista de espera, ao mesmo tempo em que explicitou o
papel da Comissão de Moradias e a autonomia regulada dos profissionais, que era acionada
para criar instrumentos para racionalizar, de forma quantificável, as demandas locais. A
Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, por sua vez, formula as
portarias, direciona as ações da reforma psiquiátrica, governa a distância a autonomia de
gestão dos profissionais, procura identificar as necessidades da população assistida nos
SRTs, analisa formas de ação e administração dos novos casos que precisavam de
moradias.
Ainda de acordo com Carla Machado, o financiamento previsto nas portarias era
insuficiente; ela destacou a importância da problematização da realidade, formalizada em
documentos, para incitar o debate político: “temos que nos posicionar sempre e
encaminhar os documentos, porque eles são instrumentos de negociação que cria situações
políticas de conversa” (MACHADO, 2011). Após a apresentação de Carla, Ruth Cerejo
fez o seguinte comentário:

A proposta que nos foi feita na última [reunião da] comissão pela
representante da coordenação foi que nós faríamos parte do Colegiado
da Mental. [...] A resposta para essa comissão é sair dessa posição
solitária e vir para a rede, porque essa é a diretriz do Tikanori. Eu acho
também, mas o cenário é um pouco frouxo. A ideia é fazer com que os
apoiadores tomem consciência de que em cada distrito tem quatro ou
cinco moradores de leito. Eu fico um pouco irritada, porque saber que
tem esses moradores, eles já sabem. Agora, pra onde que a gente vai ter
que mandar o papel dizendo que tem? Porque estes dados estão lá na
planilha; está lá no faturamento da Apac que já é moradores da
retaguarda há anos. Esse paciente, quando vier para as moradias, vai vir
como egresso, não como novo morador. A partir da próxima reunião, a
comissão entra para a rede na tentativa de ampliar a corresponsabilização
(CEREJO, 2011).

A corresponsabilização tinha por objetivo o compartilhamento da responsabilidade


no caso de algum acontecimento que colocasse o usuário em risco. Seu comentário joga
luz sobre as problematizações acerca dos fluxos da demanda organizada pela Coordenação
de Saúde Mental e sobre a produção de documentos que, mesmo seguindo as lógicas

1281
burocráticas, não tiveram o efeito da incorporação das necessidades locais no projeto de
financiamento. Os conflitos nas negociações agravaram-se quando os atores perceberam
que, apesar de cumprirem as orientações da coordenação, as demandas locais por
moradias não estavam garantidas no Plano de Ação e Metas das Atividades a Serem
Desenvolvidas durante o ano de 2013 (Serviço de Saúde Dr. Cândido Ferreira, 2013). Com
a renovação do convênio, o que foi previsto para resolver essa demanda foi a reforma em
uma das residências para abrigar quatro usuários da lista. Considerando que esse
financiamento não estava previsto nas portarias, pode-se afirmar que ele foi garantido no
contrato do convênio depois da mobilização política dos atores da Comissão de Moradias.

REFERÊNCIAS

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ANOS DE HISTÓRIA, 2011, Campinas. Anais... Campinas: Fundação Síndrome de
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Blackwell Publishing. 2005, p. 373-390.

FLORINI, A. The coming democracy: new rules for running a new world. London:
Island Press, 2003.

FOUCAULT, M. Michel Foucault: a segurança e o Estado. Entrevista. In: Ditos e


escritos VI: estratégia, poder-saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2010, p.170-
175.

MACHADO, C. S. 2011. Financiamento. In: SERVIÇOS RESIDENCIAIS


TERAPÊUTICOS: 20 ANOS DE HISTÓRIA, 2011, Campinas. Anais... Campinas:
Fundação Síndrome de Down; Ponto de Cultura Maluco Beleza. 5 DVDs, 2011.
Comunicação oral em mesa redonda.

MINISTERIO DA SAÚDE. Portaria no 3.090/GM, de 23 de dezembro de 2011.


(Revoga a Portaria 246, de 17 de Fevereiro de 2005; altera a portaria n. 106/GM/MS, de
11 de fevereiro de 2000, e dispõe, no âmbito da Rede de Atenção Psicossocial, sobre o
repasse de recursos de incentivo de custeio e custeio mensal para implantação e/ou
implementação e funcionamento dos Serviços Residenciais Terapêuticos [SRT].)

O’DWYER, E. C. Estratégias de redefinição do Estado no contexto de reconhecimento


das terras de quilombo no Brasil. Novos Debates: fórum de debates em antropologia, v.1,
n.1, p.80-86, jan. 2014.

POWER, M. The audit explosion. London: Demos, 1994.

1282
ROLIM, M. G. A questão da moradia em saúde mental. In: MATEUS, M. D. (org.).
Políticas de saúde mental: baseado no curso Políticas públicas de saúde mental, do CAPS
Luiz R. Cerqueira. São Paulo: Instituto de Saúde, 2013. p.169-175.

SERVIÇO DE SAÚDE DR. CÂNDIDO FERREIRA. Relatório de atividades 2012 e


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SHORE, C. Cultura de auditoria e governança iliberal: universidades e a política da


responsabilização. Revista Mediações - Dossiê: C&T – Análises sobre a cultura da
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STRATHERN, M. Audit cultures: anthropological studies in accountability, ethics and


the academy. London/New York: Routledge/Taylor & Francis e-Library, 2000.

1283
ATUAÇÃO DO PODER EXECUTIVO PAULISTA NAS POLÍTICAS
DE SEGURANÇA PÚBLICA PARA CONTENÇÃO DA LETALIDADE
POLICIAL ENTRE 1996 E 2015

Fabiane PENEDO E ANDRADE619

Resumo: Este artigo pretende descrever a atuação do poder executivo paulista nas políticas de
segurança pública relacionadas à redução da letalidade cometida por policiais militares entre os
anos 1996 e 2015. Parte-se da hipótese de que as políticas públicas cuja finalidade era reduzir a
letalidade policial fracassaram devido ao ativismo do executivo estadual em manter o status quo das
políticas na área, ou seja, continuando com um quadro de alta letalidade. A metodologia do estudo
está baseada em revisão bibliográfica e análise documental. A bibliografia se assenta em duas
grandes áreas, a primeira nos estudos sobre segurança pública, especificamente sobre letalidade
policial. Já a segunda, na área de políticas públicas, particularmente aos assuntos sobre as relações
entre grupos de interesse, tomadores de decisão e formulação de políticas. A pesquisa analisa a
letalidade policial entre os anos de 1996 e 2015, relacionando o governo vigente, a pressão da
sociedade civil organizada e as respostas do governo com políticas de segurança pública para
redução da letalidade, que não obtiveram êxito na diminuição das mortes perpetradas por policiais
militares. A análise considera como suposição que o fracasso na redução da letalidade policial possa
ser atribuído aos altos custos para mudança de uma política, sendo ela resistente a mudanças, à
construção social feita pelos formuladores de política pública dos destinatários da política e ao
ativismo do governo em continuar com uma determinada política (ou modifica-la de forma que
não se alteram substancialmente os resultados e efeitos da política) permanecendo o status quo dos
números excessivos de alta letalidade.

Palavras-chave: Letalidade policial. Grupos organizados. Políticas públicas. Segurança pública.


Polícia Militar do Estado de São Paulo

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta uma discussão a respeito das políticas de segurança pública
realizadas pelo estado de São Paulo entre 1996 e 2015 para a contenção da letalidade
perpetrada pela polícia militar. O artigo parte do pressuposto de que estas políticas fracassaram
em mitigar o problema da letalidade da ação policial por causa da atuação do poder executivo
estatal em manter o status quo, fazendo mudanças incrementais na política que não
conseguiram reduzir as mortes causadas pelas polícias, ou seja, a política permaneceu estável
durante os vinte anos analisados.
A estrutura do artigo apresenta, inicialmente, os dados sobre a letalidade da polícia
militar no estado de São Paulo, caracterizando a questão e exibindo os números de mortes

619
Conforme o Código Penal Brasileiro, há exclusão de ilicitude quando o agente pratica o fato em estado de
necessidade, em legítima defesa, ou em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito.
Isso significa que, atendendo a alguma destas circunstâncias, o ato deixa de ser delito punível.
1284
de civis em confrontos com policiais nestes últimos vinte anos. Em seguida, parte-se para
abordagem da literatura sobre a construção social dos destinatários da política e do desenho
da política pública concebidos como propaladores de uma situação social permanente a
diferentes grupos sociais, o que naturalizaria a falta de políticas públicas para a contenção
da letalidade. No item posterior aborda a questão da estabilidade da política através da
teoria do equilíbrio pontuado, entendido como um período longo sem mudanças, ou com
mudanças incrementais, que pode ser interrompido por uma grande mudança.
Na sequência, o artigo demonstra as recomendações de organismos nacionais e
internacionais para a contenção da letalidade, exibe as resoluções emitidas pela Secretaria de
Segurança Pública para esta área, indicando quais eram os secretários da pasta e o governador,
além dos partidos representados no comando do executivo do estado. Neste item são analisados
também os efeitos da política, através das resoluções e os números da letalidade após o
ordenamento passar a vigorar.
Por último, o artigo descreve a atuação do executivo paulista nas políticas de
segurança pública e os grupos organizados que o apoiam, a despeito da vontade do eleitor
mediano, contribuindo ativamente para a permanência da política.

SITUAÇÃO DO ESTADO DE SÃO PAULO QUANTO À LETALIDADE


PERPETRADA PELA PMESP ENTRE 1996 E 2015

Dados que comparam a letalidade policial existente no Brasil com a de outros


países indicam que a letalidade brasileira é alta. Na comparação realizada pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (BUENO; CERQUEIRA; LIMA, 2013) entre Brasil e
Estados Unidos, entre os anos de 2007 e 2012, mostrou que o número de civis mortos
pelas polícias brasileiras é, proporcionalmente, quatro vezes maior que o de civis mortos
pelas polícias estadunidenses. No Brasil, os estudos sobre letalidade policial ocupam um
lugar diminuto na produção de políticas de segurança pública, de acordo com Bueno,
Cerqueira e Lima (2013). Mais grave do que a pouca atenção que o tema recebe dos
acadêmicos, é o descaso no qual a letalidade policial é tratada, por vezes, pelos agentes
públicos, haja vista que muitos estados da federação não contabilizam integralmente as
mortes perpetradas por suas polícias e nem estabelecem um consenso acerca do que se
pode considerar como abuso ou não do uso da força policial. Geralmente pesquisadores
utilizam dados das Secretarias de Segurança Pública dos estados e do Sistema de Informações
sobre Mortalidade do Ministério da Saúde, sendo este, segundo os pesquisadores do Atlas da
Violência 2016, a fonte de “registros mais confiáveis sobre as mortes violentas intencionais”

1285
(CERQUEIRA et al, 2016, p. 15). Entretanto estes dados apresentam falhas quanto aos
números de mortes perpetradas por policiais devido a subnotificações existentes.
Em São Paulo, desde 1995, devido a lei 9155/1995, a Secretaria de Segurança
Pública divulga dados estatísticos sobre a criminalidade no estado, trimestralmente,
contabilizando, inclusive, os registros que recentemente passaram a ser chamados de “civis
mortos em confrontos com policiais”. Segundo Bueno, Cerqueira e Lima (2013) e Lima
(2008) os dados apresentados pelas Secretarias de Segurança Pública serviriam apenas para
demonstrar a transparência de alguns estados quanto às estatísticas criminais, mas não
estariam sendo utilizados para a formulação de políticas de segurança pública para conter
os abusos do excesso da força policial. Isso pode confirmar o caso de São Paulo que,
mesmo tendo sido pioneiro na divulgação destas informações, com números
extremamente excessivos de letalidade, tomou poucas decisões acerca do problema para
tentar reduzir a letalidade, com resoluções de normativas emitidas pela Secretaria de
Segurança Pública que serão melhor detalhadas adiante.
A letalidade policial alta é caracterizada por três fatores: i) relação entre civis mortos
e policiais mortos em confrontos; ii) razão entre civis mortos e civis feridos; iii) proporção
de civis mortos nos confrontos com policiais em relação ao total de homicídios dolosos de
determinada região (BUENO; CERQUEIRA; LIMA, 2013). Para Cano (2003) o índice
de letalidade pode ser medido pela razão entre mortos e feridos em confrontos de civis
com policiais, nos quais, o número de mortos é maior do que o número de feridos.
No período analisado, entre 1996 e 2015, foram mortas 9159 pessoas em
confrontos com as polícias militares em serviço620, enquanto que dentre os policiais foram
499 os que morreram. O gráfico abaixo mostra que o ano de 1996 apresenta a menor
razão, quando em confrontos, 7 civis foram mortos para cada um policial morto. Esta
proporção fica acima de 32, nos anos de 2003, 2009, 2010, 2012, 2014 e 2015, sendo que,
nestes dois últimos anos analisados morreu um policial para 43 e 41 civis, respectivamente,
conforme o gráfico:

620
Segundo pesquisa encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, realizada pelo Instituto
Datafolha, em novembro de 2016, disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/10/1690176-
metade-do-pais-acha-que-bandido-bom-e-bandido-morto-aponta-pesquisa.shtml. Esta percepção da
população não é recente, Teresa Caldeira (2000) já havia mencionado pesquisas realizadas com a população
nos anos 1980, em que surgia esta crença de grande parte da população considerando justificável a morte de
bandidos ou suspeitos por policiais. 1286
GRÁFICO 1 – CONFRONTOS: POLICIAIS MORTOS E CIVIS MORTOS

800
756
700
600 603 580
524 526 545 524 546
500 495 495
438 421
400 385 377 371
371
342
300 278
239 253
200
100
32 26 31 44 33 42 40 19 25 22 29
19 16 14 16 14 21 14 1428
0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Civis mortos em confronto com a policiais militares em serviço


Policiais militares mortos em serviço

Fonte: Elaboração própria com base em dados publicados trimestralmente no site da Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo.

Considerando a relação entre civis feridos e civis mortos nos confrontos com
policiais militares, tem-se que apenas em 1996, 1997 e 2005 o número de civis feridos foi
maior do que o número de mortos, sendo que no período 9159 pessoas foram mortas e
6793 foram feridas, conforme o gráfico a seguir.

GRÁFICO 2 – CONFRONTOS: CIVIS MORTOS E CIVIS FERIDOS

800 756

693
700

582 580
600
545 546
524 526 524
495 495
500
438
414 421 417
385 392
371 373 377 371
400 357 361 352 353 364
342
328
311 314
287 298 298
275 278 283
300 253
269
239

200 165

100

0
1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015

Civis mortos em confronto com a polícia militar em serviço


Civis feridos em confronto com a polícia militar em serviço

Fonte: Elaboração própria com base em dados publicados trimestralmente no site da Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo.

1287
No que tange à comparação entre as mortes perpetradas pela polícia militar e o
total de homicídios dolosos no estado, entre 1996 e 2015, tem-se o seguinte:

GRÁFICO 3 – CONFRONTOS: MORTES PERPETRADAS POR POLICIAIS


MILITARES X HOMICÍDIOS DOLOSOS

14000 16,0%
15,1%

12000 14,0% 14,0%

12,0%
10000 11,5%11,4% 11,3%
10,4%
10,0%
8000 9,5%
8,2% 8,4%
7,7% 8,0%
6000 6,9%
6,2% 6,0%
4000 4,1% 4,4%
4,0%
2,3% 2,9% 2,9% 3,1% 3,9%
2000 2,4%
2,0%

0 0,0%

Homicídios dolosos Pessoas mortas em confronto com a policiais militares em serviço

Fonte: Elaboração própria com base em dados publicados trimestralmente no site da Secretaria de
Segurança Pública do Estado de São Paulo.

No início do levantamento, a polícia militar era responsável por 2,3% das mortes
em relação ao total de homicídios dolosos no estado, num momento em que estas mortes
correspondiam a pouco mais de 10 mil casos. A partir de 2004, os homicídios dolosos
iniciaram uma trajetória de queda, o que, entretanto, não foi acompanhado pelas mortes
de civis em confrontos com policiais, o que implicou no aumento da proporção destas
mortes em relação aos homicídios dolosos, alcançando o patamar de 16% em 2015. Em
trabalho apresentado em Seminário Municipal Segurança e Direitos Humanos, feitos pelas
pesquisadoras Sinhoretto, Schlittler e Silvestre (2015), quando se considera apenas o
município de São Paulo, em 2014, a proporção das mortes cometidas por policiais621 chega
a 21% do total de homicídios dolosos.
Preocupados com estes números que indicam que a polícia militar paulista é altamente
letal, movimentos sociais, organizações internacionais e nacionais, entidades de think tank
passaram a reivindicar e a propor alternativas ao problema público da letalidade policial. Em

621
Conforme breve currículo disponível da página da Secretaria de Segurança Pública, acessada em 22 jul
2017, disponível em: http://www.ssp.sp.gov.br/Institucional/Historico/Secretarios/DadosGerais.aspx?id=2. A
descrição da carreira dos demais secretários também foram obtidas nesta fonte.

1288
geral, os movimentos sociais reivindicam medidas punitivas aos policiais. Já organismos
internacionais e nacionais, especialistas em segurança pública e instituições de think tank
costumam fazer um levantamento da situação e divulgar relatórios com recomendações aos
governos acerca, principalmente, de proposições para a formação e atuação policial e métodos
e estruturas investigativas que possam confirmar a intenção do policial em executar seu
oponente ao invés de a ação ter resultado em morte pelo excludente de ilicitude da atividade
policial622.

CONSTRUÇÃO SOCIAL E DESENHO DA POLÍTICA PÚBLICA

Antes de descrever as alternativas propostas pela sociedade civil organizada ao


problema da letalidade policial, se apresenta a hipótese de como as políticas públicas na
área de segurança pública entram (ou não) na agenda pública do estado, indicando como
é feita a construção social do grupo alvo da política e como esta política é desenhada.
Ingram, Schneider e de Leon (2007) descreveram que existe uma construção social
feita pelos formuladores das políticas públicas que constroem os aspectos positivos e
negativos dos grupos-alvo destas políticas. Desta construção social, os formuladores
determinam quem deverá receber a política, se esta política distribuirá benefícios ou
encargos e, desta maneira, as políticas acabam por perpetuar uma situação de injustiças e
cidadania desigual, quando não agem para modificar a situação daquele grupo-alvo. Esta
perpetuação da situação do grupo-alvo não deriva apenas da questão material que com a
política não é modificada, mas também porque, muitas vezes, a política pública reforça
estereótipos, valores e imagens de como o grupo-alvo é percebido pelos demais grupos da
sociedade, pelo governo, e até por eles próprios, ou seja, formando uma opinião pública a
este respeito, impulsionando uma situação que desencoraje a participação destes cidadãos
na política.
Os autores continuam afirmando que o desenho da política é uma construção
histórica e contemporânea e que têm um efeito a longo prazo, quando aos grupos são
oferecidos os benefícios ou encargos, e os grupos são afetados pelas regras, racionalidades
e lógica causal que buscam explicar como os alvos se relacionam com o problema e os
objetivos da política. Neste mesmo sentido, Pinc (2016) ao estudar a arquitetura
organizacional da segurança pública brasileira acredita na hipótese de permanência da

622
Mestre em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC. E-mail: quelicris@hotmail.com

1289
política da área, a despeito das inúmeras tentativas de mudanças radicais propostas pelo
Congresso Nacional, devido a ter sido desenhada a política há muitos anos, tendo sido
consolidada especificamente na Constituição Federal de 1988, mas trazendo princípios
estipulados ainda na Constituição de 1934, quando os primeiros ordenamentos sobre
segurança pública foram institucionalizados.
O desenho da política cria padrões diferenciados de cidadãos, estabelecendo imagens
positivas ou negativas dos grupos-alvo. Ingram, Schneider e de Leon (2007) estabeleceram que
o desenho da política pode construir, ao menos quatro tipos distintos de cidadãos. O primeiro,
de cidadãos privilegiados, os quais receberiam uma imagem positiva da política, benefícios e
recursos materiais. Estes aspectos favoreceriam a participação política destes cidadãos e
também seria benéfico à imagem do governo perante a população em geral, devido a estar
tratando bem um segmento da população que merece ser tratado desta forma. O segundo
grupo seria o dos “competidores”, os quais possuem recursos políticos, mas não são
considerados pela população em geral como merecedores de benefícios da política, até
recebem o benefício, mas às escondidas (este grupo é composto por lobistas, sindicatos,
indústrias poluentes, indústrias de armas e ativistas conservadores). Já o terceiro grupo é
conhecido como os dos dependentes, não dispõem de recursos políticos, mas dispõem de
carisma perante à sociedade que o considera merecedor de políticas públicas (deficientes
mentais, órfãos, pobres, usuários do sistema de bem-estar social). O acesso destes cidadãos às
políticas é dificultado porque precisam constantemente comprovar sua insuficiência, e isso nem
sempre é fácil para quem dispõe de quase nenhum recurso. O último grupo são os
considerados desviantes, além de possuírem pouco poder político, a construção de sua imagem
é extremamente negativa, recebendo desproporcionalmente encargos e sanções porque a eles
é creditado todos os males da sociedade (estupradores, traficantes, terroristas, hackers, usuários
de drogas). A este grupo estaria reservada a política pública da punição, e esta punição recai
facilmente nestes membros porque, além de possuírem escassos recursos políticos para
defenderem-se, a maior parte da população acredita que mereçam esta punição.
Em relação a nosso objeto de análise, no qual a letalidade policial recai elevadamente
sobre cidadãos considerados no Brasil como desviantes, a saber, homens, jovens, negros,
moradores de periferia, é natural associar aos dados de pesquisas de opinião pública,
realizada em novembro de 2016, no qual 50% dos entrevistados consideram que “bandido
bom é bandido morto”623. Esta percepção pública pode justificar também a inação do

623
Legislações infraconstitucionais são leis que estão hierarquicamente abaixo da CF.

1290
governante perante o uso excessivo da força policial, uma vez que um grande contingente
populacional vê a letalidade como algo positivo. Pensando alinhadamente com Ingram,
Schneider e de Leon (2007) os tomadores de decisão eleitos trabalhariam pensando em
reeleição, ou seja, com ações que possam ser consideradas positivas, agradando aos grupos
privilegiados, benquistos, para que possam favorecer a estes governantes, reelegendo-os.
Agindo de outra forma, com política escancaradas aos grupos “competidores”, ou muito
benéficas aos dependentes, ou sendo menos punitiva aos desviantes, os decisores eleitos
pensam que poderão perder votos e assim não obter a reeleição, por isso, permanecem
decidindo políticas que perpetuam a construção social estabelecida.
Posto isso, é nítido que as políticas possuem pouca margem às tentativas de mudança,
uma vez que reforçam elementos da construção social positiva e negativa dos grupos-alvo da
política. No entanto, os autores acreditam que é possível uma mudança na política com o apoio
da ciência, para a desmistificação da construção social, e do judiciário, que pode se abrir à
reivindicação de atores sociais que buscam mudar sua imagem negativa e cambiar de posição,
alterando sua imagem perante a população. Porém há a ressalva, como já citado anteriormente,
da dificuldade de mudar uma política estabelecida historicamente, mesmo com o apoio da
ciência e do judiciário, a política pode ser modificada em sua formulação e implementação,
mas tender a voltar para o modelo anterior devido aos empreendedores morais que trarão a
memória imagens, estereótipos e valores atrelados à política passada, atrapalhando os ganhos
dos membros do grupo.

O EQUILÍBRIO DA POLÍTICA PÚBLICA

Conforme o que foi descrito anteriormente, dificilmente se muda uma política pública
devido à construção social dos grupos-alvo arraigada na sociedade por um longo tempo,
intensificada pelo desenho da política que reforça as condições para que estes grupos-alvo
permaneçam na mesma situação, de um lado, privilegiada e, no outro extremo, de desvio.
Nesta seção serão abordados outros fatores que explicam a estabilidade da pública, o equilíbrio
pontuado.
O equilíbrio pontuado, segundo True, Jones e Baumgartner (2007) se caracteriza
pela estabilidade dos processos políticos, com pequenas mudanças incrementais, na maior
parte do tempo, mas que podem ser interrompidos por uma mudança política drástica.
Para que haja esta grande mudança, o problema público precisa passar a ser questionado,
entrando no discurso político. Os autores retomam Schattschnneider para ilustrar que os

1291
grupos sociais mais desfavorecidos têm dificuldades para emplacar suas ideias na agenda
política, porque lhes falta tempo e capital político, e desta forma, não conseguem romper
com o sistema estabelecido, mantendo o status quo. Outro ponto levantado pelos autores
são as inúmeras instituições e instâncias do sistema político, que dificultam a entrada de
políticas novas.
No Brasil, como nos EUA, onde foi realizada a pesquisa, existem inúmeros espaços
para a tomada de decisão, como o legislativo, o executivo e o judiciário, além dos entes
nacional, estaduais e municipais, com suas capacidades tanto para propor políticas, como
também para vetá-las. A Constituição Federal brasileira de 1988 ampliou os poderes
legislativos do Executivo, isso em âmbito federal, mas a Constituição do Estado de São
Paulo também concede este poder legislativo ao chefe do Executivo, desta forma, os chefes
do Executivo podem impor sua agenda política para aprovação do Legislativo, segundo
Figueiredo e Limongi (2001):

A implicação da prerrogativa exclusiva é óbvia. Se o presidente preferir


o status quo ao ponto preferido pela maioria da legislatura, antecipando
as modificações a serem introduzidas pelo legislativo, via emendas, o
Executivo “engavetará” as propostas que por ventura tenha para a área.
Isto é, o presidente antecipará as alterações dos legisladores e manterá o
status quo, negando aos parlamentares a oportunidade de fazer valer suas
preferências (FIGUEIREDO; LIMONGI, 2001, p. 25).

No caso da política de segurança pública, esta é uma política instituída


nacionalmente, através do artigo 144 da Constituição Federal, no entanto, a
operacionalização das polícias ostensiva e judiciária ocorre em âmbito estadual, portanto o
estado tem uma certa margem de poder para legislar a respeito de suas polícias. Além disso,
podem ser tomadas decisões sobre o funcionamento das polícias em nível da burocracia
local, em que se estabelecem normativas de funcionamento, por exemplo.
No estado de São Paulo foram tomadas decisões de implantação de uma política
para contenção da letalidade policial, com base em preceitos de ordenamentos nacionais e
em recomendações de organismos nacionais e internacionais. Estas políticas foram feitas
através de resoluções pelo poder Executivo, emitidas pela Secretaria de Segurança Pública,
isto significa que não houve a participação do Legislativo em nenhum momento da
formulação.
True, Jones e Baumgartner (2007) descreveram que há um monopólio político
caracterizado por um subsistema político dominado por um interesse único, cuja imagem

1292
ou ideia é poderosa, conectada por valores políticos fundamentais compreendidos e
apoiados pela população, num sistema estável, quando mudanças não ocorrem, o que
chamaram de um feedback negativo. Sendo um monopólio político, ele obtém sucesso em
amortecer pressões por mudanças, sobretudo se o grupo externo ao monopólio político
for fraco para pressionar e desestabilizar o arranjo institucional que mantém a política. O
monopólio político pode ser desestabilizado por novos atores que antes estavam alijados,
que triunfando podem implantar a nova política com novas regras e mudar o equilíbrio do
poder. Este novo equilíbrio pode durar por um longo período até que ocorra uma nova
mudança.
O feedback positivo para True, Jones e Baumgartner (2007) se define pelo
momento em que mudanças ocorrem, sejam elas pequenas (incrementais) ou grandes. As
pequenas mudanças ocorreriam como pequenas movimentações de terra, enquanto as
grandes como terremotos. As grandes mudanças ocorrem no que os autores chamam de
pontuações, quando há mudança na preferência da política ou na atenção dada ao
problema.
As tomadas de decisão, conforme True, Jones e Baumgartner (2007), tendem a ser
decididas na mesma direção, até que algum fator force o tomador de decisão a mudar sua
posição, se isto não acontecer, suas decisões serão baseadas num conjunto limitado de
possibilidades, de forma conservadora, no sentido de radicalizar a mudança política. Os
fatores que influenciam esta tomada de decisão, têm origens endógenas e exógenas. As
primeiras se referem a questões burocráticas e às políticas do subsistema político, enquanto
as outras são informações vindas do ambiente externo, de novos atores. Os autores
afirmam que as circunstâncias endógenas geralmente culminarão ou na permanência da
política ou em pequenas mudanças incrementais. Grandes mudanças em condições
endógenas podem ocorrer, mas somente em situações de grandes conflitos internos. Já as
circunstâncias exógenas trarão mudanças drásticas à política.
No caso estudado, as resoluções emitidas pela Secretaria de Segurança foram
ocasionadas por circunstâncias externas, as pressões da sociedade civil organizada
indignada com o excesso da letalidade policial que, de certa forma, chamaram a atenção
dos tomadores de decisão perante aquele problema. No entanto, a tomada de decisão foi
realizada isoladamente, somente pelo poder Executivo, que tomou fatores externos para
sensibilizar-se, mas que tomou a decisão internamente sem consultar as partes envolvidas
(Legislativo, sociedade civil e mesmo as forças policiais) para formular a política. Posto isso,
e baseando-se no resultado da política, considerando a letalidade policial que não foi

1293
reduzida, pode-se supor que a política foi uma pequena mudança incremental, sem
efetividade em seus resultados.

POLÍTICAS PARA A CONTENÇÃO DA LETALIDADE EM SÃO PAULO

Durante todo o período analisado, entre 1996 e 2015, o estado de São Paulo esteve
sob o governo do Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB, com a rara exceção de
um período inferior a um ano, quando assumiu o governo, o vice, Claudio Lembo, do PFL
– Partido da Frente Liberal, que depois passaria a se chamar DEM – Partido Democrático.
Durante estes 20 anos os apoiadores, partidos coligados à chapa do PSDB, foram partidos
direcionados ao espectro da direita, comumente o PFL/DEM e, nos dois últimos mandatos
aliaram-se também aos chamados partidos nanicos, conforme se verifica na tabela abaixo:

TABELA 1 – COMPOSIÇÃO DO GOVERNO ESTADUAL DE SÃO PAULO 1995


– 2015
Governador Partido Coligação Período
Mario Covas PSDB PFL 1995 – 1998
Mario Covas PSDB PTB, PSD e PV 1999 – 2001 (faleceu em março de 2001, quando
assumiu o vice)
Geraldo Alckmin PSDB - 2001 – 2002
Geraldo Alckmin PSDB PFL e PSD 2003 – 2006
Claudio Lembo PFL - 2006 – 2007 (assumiu no final do mandato,
quando Alckmin renunciou para disputar
eleições presidenciais)
José Serra PSDB PFL, PTB e PPS 2007 – 2010
Alberto Goldman PSDB - 2010 – 2010 (assumiu no final do mandato
quando Serra renunciou para disputar eleições
presidenciais)
Geraldo Alckmin PSDB DEM, PMDB, 2011 – 2014
PSC, PPS, PHS e
PMN
Geraldo Alckmin PSDB PSB, PRB, DEM, 2015 – atual
SD, PSC, PPS,
PTC, PTN, PSL,
PTdoB, PEN,
PMN e PSDC

Há de se destacar que, após a reabertura democrática é inegável a hegemonia do


PSDB no comando do estado de São Paulo. Antes dele, somente o PMDB – Partido do
Movimento Democrático Brasileiro governou o estado por dois mandatos consecutivos,
com Orestes Quércia e Luiz Antonio Fleury Filho, respectivamente.

1294
Foi também neste período que as polícias militares, cujo comando geral é o governador
do estado, foram responsáveis pela morte de 9159 pessoas. Outro ponto relevante é que, como
já citado acima, em meados dos anos 2000, quando se iniciou uma queda no número de
homicídios dolosos no estado, não houve mudança alguma em relação às mortes de civis
decorrentes de confrontos com policiais, o que destacou ainda mais o problema da letalidade
policial.
Inquietados com estes números, movimentos sociais como Jovem Negro Vivo,
Movimento Mães de Maio, organismos internacionais como Justiça Global, Anistia
Internacional, Human Rights Watch e até a ONU passaram a solicitar que ações fossem
tomadas por parte do governo para que o problema da letalidade policial fosse minorado.
Além destes, instituições de think tank e intelectuais especializados na área de segurança
pública (como Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, Instituto Sou
da Paz, Fórum Brasileiro de Segurança Pública) também demonstraram preocupação com o
uso excessivo da força policial e elaboraram relatórios e estudos para embasar possíveis
formulações de política por parte do governo.
Nos relatórios produzidos pelos organismos internacionais, além do diagnóstico do
problema – caracterizado não mais como morte ocasional, decorrente da intervenção
policial, e por isso passível do excludente de ilicitude, mas como execuções sumárias,
arbitrárias ou extrajudiciais –, também havia recomendações para uma política pública
visando a solução, ou mitigação do problema. Dentre as principais recomendações estão:

i) extinção do termo “resistência seguida de morte”, usado pelas


polícias, secretarias de segurança pública e meios de comunicação,
substituindo-o por “morte decorrente de ação policial”;
ii) proibição de execuções extrajudiciais, conforme os pactos
internacionais dos quais o Brasil é signatário;
iii) investigações imparciais e independentes das mortes decorrentes
de atividade policial, conduzidas por membros do Ministério Público;
iv) uso progressivo da força policial.

Nas políticas analisadas neste período, somente em uma (Resolução SSP/SP


526/2000) há a menção explícita à finalidade da política ser a diminuição ou controle da
letalidade perpetrada por policiais. As demais não descrevem em seu escopo
explicitamente que têm esta finalidade, embora, como se observará adiante, descrevam as
normativas quase que ipsis littteris às recomendações feitas pelos organismos
internacionais.

1295
Antes de iniciar o período hegemônico do PSDB em São Paulo, o estado foi
governado por Luiz Antonio Fleury Filho, embora este governo não faça parte do escopo
desta pesquisa, cabe salientar que Fleury era governador à época das mortes que ficaram
conhecidas como “Massacre do Carandiru”, em 1992, quando o estado alcançou a marca
histórica (e vergonhosa) de 1451 pessoas mortas em confrontos com policiais. No ano
anterior, tinham sido 1076 civis mortos em confrontos com policiais, e nos dois últimos
anos do mandato de Fleury, quando este traz para a pasta da Secretaria de Segurança
Pública uma política menos dura nas ruas, o número de mortos pela polícia abaixa para
402 e 519 pessoas.
Assumindo em 1995, o governo Covas inicia já neste ano duas políticas que
contribuíram com uma amenizada considerável no número de civis mortos em confrontos
com policiais. A redução obtida pelo governador, em seu primeiro mandato (618, 239, 253
e 342, respectivamente entre 1995 e 1998), segundo Oliveira Jr. (2003, 2012) foi causada
por sua postura menos conservadora na gestão da segurança pública do estado, mais
voltada aos princípios dos direitos humanos. Dentre as políticas implantadas por Covas
que certamente contribuíram para a redução da letalidade estão duas políticas implantadas
ainda em 1995, a criação da Ouvidoria de Polícia e o Programa de Reciclagem de Policiais
Envolvidos em Situação de Alto Risco. A Ouvidoria de Polícia de São Paulo foi a primeira
instituição deste tipo no país, cujo papel é denunciar atividades arbitrárias de policiais,
provocar os órgãos policiais e as próprias instituições encarregadas de fiscalizar a atuação
policial (Ministério Público), além de intimidar policiais que cometem infrações e
incentivar a participação popular (COMPARATO, 2005). Já o PROAR – Programa de
Reciclagem de Policiais Envolvidos em Situação de Alto Risco afastava do policiamento de
rua os policias envolvidos em situação de tiroteio para que passassem por reciclagem e
atendimento psicológico (CALDEIRA, 2000).
Em 1999 houve a implantação do Método de Giraldi, um manual de tiro defensivo,
cujo objetivo era evitar o uso do tiro pelos policiais militares, e, caso fosse inevitável atirar,
este tiro deveria ser um “tiro de qualidade” buscando evitar que o policial, o agressor e
terceiros fossem feridos ou mortos. Apesar de enquadrá-las como uma política, o Método
de Giraldi foi uma iniciativa da burocracia policial, tendo sido, uma política incremental,
com uma mudança política no nível médio (PINC, 2011).
A Secretaria de Segurança Pública de São Paulo emitiu a primeira resolução para
a contenção da letalidade policial no ano 2000, com o secretário Marco Vinicio Petrelluzzi,

1296
oriundo das carreiras do Ministério Público624. A resolução 526/2000 criava a Comissão
Especial para a Redução da Letalidade em Ações Envolvendo Policiais e o Grupo de
Acompanhamento de Casos Letais. Tanto o grupo, quanto a comissão, existiram até 2001,
no entanto, por prerrogativa da própria resolução os dados obtidos por estas instituições
foram mantidos em sigilo. Da comissão faziam parte, além de membros do governo, a
sociedade civil, como membros do Núcleo de Estudos da Violência e do Instituto São
Paulo contra a Violência. O objetivo da comissão era identificar fatores que aumentavam
a letalidade policial e propor medidas para a redução. Já o grupo tinha como finalidade
organizar e manter um banco de dados sobre as ocorrências de letalidade policial.
Embora não estejam disponibilizadas as informações sobre os resultados dos
objetivos específicos do grupo, a finalidade de reduzir a letalidade policial não foi alcançada
porque o índice de letalidade manteve-se praticamente constante neste período, com uma
redução significativa apenas no ano de 2001 e 2005, quando as mortes decaíram de 524
para 385 no primeiro período e de 545 para 278, no segundo.
Em 2013 foi publicada a Resolução 005/2013, no mandato do governador Geraldo
Alckmin, com o secretário de Segurança Pública Fernando Grella Vieira, também oriundo
das carreiras da magistratura, tendo passado pelo Ministério Público e pela Promotoria de
Justiça. As diretrizes principais desta resolução foram: a substituição da nomenclatura
“resistência seguida de morte” por “morte decorrente de intervenção policial” e novos
procedimentos para a atuação de policiais em casos envolvendo lesões corporais graves e
mortes. Dentre estes novos procedimentos estava a proibição aos policiais de socorrer as
vítimas, passando o socorro a ser função exclusiva do SAMU (Serviço de Atendimento
Médico de Urgência); a preservação do local da ocorrência para perícia técnica da polícia
científica e o acionamento imediato do COPOM e do CEPOL, respectivamente, os
centros de comunicações da polícia militar e da polícia civil. Esta resolução descreve ainda
ter considerado as diretrizes da Resolução 008/2012, elaborada pela Secretaria Nacional
de Direitos Humanos, que dentre suas recomendações pede a extinção do termo
“resistência seguida de morte” ou “autos de resistência” com a justificativa de que a
afirmação de “resistência” à prisão somente pode ser confirmada após apurada
investigação. A resolução nacional solicita ainda que o socorro a vítimas seja feito por

624
Projeto de Mestrado orientado pelo prof. Dr. Cleber da Silva Lopes - professor da área de Ciência Política
do Dpto. de Ciências Sociais e do Mestrado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina
(UEL).

1297
instituições especializadas em socorro médico, além de indicar procedimentos para início
imediato das investigações após a ocorrência de lesão ou morte.
Esta resolução da secretaria de Segurança Pública foi emitida no início de janeiro
de 2013, os resultados desta política, portanto, podem ser notados no decorrer deste ano.
Em comparação com o número de mortos decorrentes da atividade policial de 2012 para
2013 houve uma queda de 20%. No entanto, estes números tornaram a subir, mais de 60%
em 2014 e 30% em 2015, em relação ao ano de 2013.
Em 2015 foi emitida a Resolução 040/2015, pela Secretaria de Segurança Pública,
cujo governador era Geraldo Alckmin e o secretário da área, Alexandre de Moraes. Como
os demais secretários, este também tem origem nas carreiras da magistratura, mas desde
2002 passou a integrar equipes do governo, tanto do estado como no município de São
Paulo. As recomendações desta resolução reforçam o estabelecido na resolução 005/2013,
porém os procedimentos são extensivos também para casos de homicídios de agentes
estatais (policiais, agentes penitenciários, guardas municipais, profissionais da Fundação
CASA, membros da polícia técnica científica) mortos em serviço ou em função de seu
serviço. Além disso, as diretrizes detalham os procedimentos da perícia científica,
estabelecendo, inclusive, prazo máximo para a elaboração de laudos, estabelece ainda que
o Delegado da Polícia precisa estar presente na ocorrência para apuração dos fatos, após a
perícia e estipula que o Ministério Público seja comunicado imediatamente da ocorrência.
Como a resolução foi emitida ainda no início de 2015, é possível inferir que ela obteve
uma ligeira queda no número de mortes decorrentes de intervenção policial, que passaram
de 693 em 2014, para 580, em 2015.
O que é possível compreender através das diretrizes estabelecidas por estas políticas
é que seus resultados não são efetivos na redução da letalidade policial, uma vez que houve
oscilação neste número, mas ainda ficou muito acima dos parâmetros considerados de
morte legítima da ação policial sem o uso excessivo da força policial.

ATUAÇÃO DO PODER EXECUTIVO PAULISTA NAS POLÍTICAS DE


SEGURANÇA PÚBLICA

Conforme Pinc (2016), as políticas de segurança pública no Brasil são caracterizadas


por um institucionalismo histórico, que remontam aos anos 1930, que dificultam que
mudanças sejam realizadas atualmente, sobretudo pelos altos custos que estas mudanças
gerariam. Neste item será abordado o papel do executivo paulista nas “tentativas” de
mudanças nas políticas de segurança pública, especificamente nas políticas que objetivam a

1298
contenção da letalidade policial, relacionando o fracasso destas políticas ao ativismo do
governo em manter o status quo.
Paul Pierson (2006) descreve como o governo se torna ativo na vida pública,
moldando-a conforme as políticas que promove. Segundo ele, isso ocorre porque as
políticas públicas são instituições que estabelecem regras, proibições, benefícios ou sanções
que moldam a vida das pessoas e das organizações, através destas intervenções políticas
que têm consequências duradoras na vida dos cidadãos. O autor acredita que, sendo a
política pública uma instituição, além dos altos custos financeiros para modificá-la, as
revisões políticas também são difíceis devido aos inúmeros obstáculos a sua revisão, que
podem passar, segundo Ingram, Schneider e de Leon (2007) pelos hábitos culturais e
percepções de comportamento históricas arraigadas na sociedade que vê, tanto a política
como seus destinatários, com valores e estereótipos únicos, impossibilitando mudanças nas
preferências dos atores.
As preferências dos atores são moldadas em relação à política pública porque as
políticas influenciam na determinação dos investimentos em capital humano e social que
os atores detêm (PIERSON, 2006), que por sua vez, dependem do investimento político
feito àquela política, que conforme Ingram, Schneider e de Leon (2007), pode fortalecer o
ideal, em que a população em geral e os próprios membros do grupo-alvo têm sobre si, o
destinatário da política, que como visto anteriormente, pode ser uma percepção de um ator
privilegiado, merecedor de todos as benesses sociais e políticas ou um ator desviante,
merecedor de sanções e punições porque a ele está atrelado todo os males da sociedade.
Sendo assim, tanto o pensamento de Ingram, Schneider e de Leon (2007) como de
Pierson (2006) convergem para afirmar que o governo, através do estabelecimento de
políticas influenciam nas preferências dos grupos da sociedade, e não o conntrário, a
sociedade influenciando as ações do governo. Pierson (2006) chama esta ação de ativismo
de governo, ou seja, é o governo atuando através da formulação de políticas determinando
a forma de atuação e os desejos dos grupos sociais, inclusive dos grupos de interesse e da
opinião pública.
Pierson (2006) continua ainda descrevendo os mecanismos que o governo pode
utilizar na determinação das preferências, vontades e percepções dos grupos, como na
distribuição de benefícios e recursos que conseguem alterar o terreno político por um longo
período, através das expectativas dos atores, da estrutura do debate entre estes atores e,
principalmente, em relação às preferências dos atores em relação a problemas políticos.

1299
Como visto no item anterior, não houve alteração dos atores políticos
governamentais no executivo paulista nos últimos vinte anos, e a postura do governo em
relação às políticas de segurança pública e a forma como molda as preferências da
população em geral, sobre os grupos-alvo da política, certamente também não foram
alteradas nestes vinte anos.
Em outro texto, Pierson em parceria com Hacker (2010) mostram elementos
importantes para o estudo do fracasso das políticas de segurança pública de combate à
letalidade. Os autores afirmam que, as decisões de governo não são tomadas considerando
o posicionamento do cidadão eleitor mediano, quando o mais importante, então, seriam
as eleições. Isso não ocorre até porque, nem sempre o eleitor mediano tem opinião
formada a respeito de certa questão política e também porque estes eleitores medianos não
se encontram representados por grupos de interesse que se relacionam e pressionam os
tomadores de decisão. Por outro lado, Hacker e Pierson (2010) afirmam que as decisões
governamentais se apoiam nas pressões exercidas por um grupo de interesse, que pode ser
pequeno, mas muito poderoso e organizado, o que chamaram de “política como combate
organizado”. Neste tipo de ação dos grupos de interesse são estes pequenos grupos que
definem as políticas públicas, o que deve mudar e o que deve permanecer. Na permanência
da política, os pesquisadores explicitam que os grupos de interesse se articulam com os
tomadores de decisão para que os temas políticos propalados para mudar, que interfeririam
em seus ganhos, sejam abafados, empurrados, impedidos de ser revisados e/ou atualizados,
vetados, no que os autores chamaram de “política à deriva”. Eles explicam ainda que este
combate à mudança da política é feito através do lobby que, no sistema político bipartidário
dos EUA, onde foi feita a pesquisa, é destinado tanto a tomadores de decisão favoráveis
aos interesses do grupo, como também aos contrários, para que estes se mantenham
neutros e não fomentem o debate. Em suma, os autores afirmam que, de um lado o
governo formula as políticas e estas moldam as funções e comportamentos de grupos
sociais, por outro lado, o governo é influenciado por pequenos grupos muito poderosos
que acabam por moldar a vida em sociedade.
Em relação a estes pequenos grupos muito poderosos que influenciam a ação do
governo evitando o embate de questões que afetariam seus ganhos, sejam estes materiais
ou imateriais, os pesquisadores Bachrach e Baratz (1962) descreveram que existe uma face
do poder que é invisível àqueles que pensam o exercício do poder apenas como tomada
de decisão. Para eles, pode ocorrer no sistema político uma mobilização de viés que faz
com que se perpetuem valores dominantes, sem que temas contrários a estes valores e

1300
interesses dominantes adentrem na mesa de discussão. Segundo os autores, esta
mobilização da orientação política suprimiria alguns temas da agenda política, através da
restrição e bloqueio das preferências de outros grupos sociais. A esta supressão das
preferências dos outros grupos, Bachrach e Baratz (1962) chamaram de inação do governo,
quando questões latentes são camufladas e moldadas, manipuladas em direção às
preferências do grupo dominante.
Desta forma, pode-se compreender que as políticas das resoluções SSP 526/2000,
SSP 015/2013 e SSP 040/2015 não foram políticas que causaram uma mudança de impacto
para as vidas perdidas de homens, jovens, negros e pobres do estado de São Paulo nos
possíveis confrontos com policiais militares. Segundo Bachrach e Baratz (1962) o que o
Estado deixa de fazer é tão importante quanto o que ele fez, e, neste caso, o governo
executivo paulista estaria tomando uma postura de elaborar políticas incrementais, para
alegar que atendeu às reivindicações de movimentos sociais, organismos de direitos
humanos e instituições de think thank, quando simplesmente permaneceu na inércia, não
tomando decisão política que pudesse reduzir a situação de duas décadas de excessiva
letalidade policial.

CONCLUSÕES

Este artigo buscou apresentar que ao longo de vinte anos o problema da letalidade
cometida por policiais militares no estado de São Paulo manteve-se devido a uma política
de governo de aceitar a continuidade destas mortes ou buscar alterá-la com políticas
incrementais muito tímidas, que nada conseguiram modificar do quadro do uso excessivo
da força policial.
Por um lado, existiram mobilizações da sociedade civil organizada tentando alertar
o problema para o governo e mostrar estratégias para a redução destas mortes. No entanto,
por outro lado, existiu também uma parte da sociedade civil (não organizada) apoiando a
ação letal da polícia, a permanência do mesmo partido e seus aliados no poder nestes vinte
anos, e a presença de outros fatores desfavoráveis à mudança da política, como a
construção social dos destinatários da política pública e o próprio desenho da política que
contribuíram para que, apesar das mudanças incrementais verificadas com as três
resoluções, possa se supor que houve uma inação do estado perante o problema da
letalidade perpetrada pela polícia militar.

1301
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1303
PLANO PLURIANUAL PARTICIPATIVO: PLANEJAMENTO
POLÍTICO CIDADÃO?

Queli Cristina Jonas GARCIA625

Resumo: A participação social tem várias dimensões e sua avaliação, não menos complexa, envolve
conceitos como democracia, accountability, regras e procedimentos, transparência, entre outros.
Em vista disso, os riscos e limites da participação precisam ser evidenciados para que os
mecanismos e instrumentos da democracia participativa desenvolvam e promovam programas e
políticas públicas que contemplem uma boa integração entre poder público e sociedade civil. Nesse
sentido, o plano plurianual mostra-se como importante e hábil ferramenta para orientar a gestão
pública; contudo, a questão que se coloca diz respeito ao papel dele na integração da sociedade
civil com os Poderes Legislativo e Executivo ao ponto de ser ou não capaz de conciliar as demandas
sociais com o orçamento, as necessidades prioritárias e a mitigação de riscos para aprimoramento
de uma gestão democrática. Portanto, para a análise do tema observou-se o processo participativo
que vem sendo desenvolvido no município de São Bernardo do Campo, na região metropolitana
de São Paulo, e mais especificamente em relação às plenárias populares que têm sido utilizadas
como parte do processo de participação popular para a elaboração do plano plurianual da cidade;
com isso, busca-se avaliar as regras procedimentais e a implicação das demandas eleitas nessas
audiências pelos cidadãos na elaboração dos programas e ações que atualmente estão contidos
nesse referido documento.

Palavras-chave: Participação social. Democracia participativa. Plano Plurianual Participativo.


Plenárias populares.

INTRODUÇÃO

Ao tratar de participação popular e deliberações governamentais surgem elementos


vários para a reflexão do atual contexto sociopolítico brasileiro: o excesso de centralização
na tomada de importantes decisões políticas; a não representatividade dos interesses da
população, considerando, sobretudo, a sociedade brasileira tão diversa em natureza e
necessidades; as evidentes distorções entre as resoluções tomadas e os interesses populares,
tendo em vista a relação desigual entre Poder Público e a sociedade civil; a baixa deferência
e o alto grau de desconfiança da população em relação à classe política nacional; o aumento
dos custos políticos e burocráticos; a exposição da falta de legitimidade; a manipulação de
interesses privados em detrimento do público; a crise de representatividade e a necessidade
de instrumentos eficazes e efetivos que persigam o consenso dos cidadãos, que
consequentemente fortaleçam a relação entre Estado e sociedade civil, e que essa interação

625
Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Londrina – (UEL), cursando o Mestrado em Ciências
Sociais (UEL). Colaborador do Laboratório de Estudos sobre Governança da Segurança (LEGS);
fabrilima@gmail.com.
1304
possibilite caracterizar-se pela permanência e sustentabilidade de seus laços produzindo
políticas públicas mais legítimas e efetivas.
Em relação aos mecanismos e instrumentos de participação popular, é de
fundamental interesse para o desenvolvimento de uma nova relação entre Estado e
sociedade civil que ressaltem o equilíbrio da representação e da participação. Nesse
sentido, Avritzer (2009) vê no orçamento participativo uma maneira de harmonizar
representação e participação:

O orçamento participativo é uma forma de balancear a articulação entre


representação e participação ampla da população por meio da cessão da
soberania por aqueles que a detêm enquanto resultado de um processo
eleitoral. A decisão de iniciar o OP é sempre do prefeito. A soberania
passa a ser partilhada com um conjunto de assembleias regionais e
temáticas que operam a partir de critério de livre participação. Todos os
cidadãos são tornados, automaticamente, membros das assembleias
regionais e temáticas com igual poder de deliberação (AVRITZER,
2009, p. 37).

Diante disso, atualmente tem-se evidenciado a proliferação de modelos


participativos, que estão redefinindo a relação existente entre sociedade e Poder Público,
ao mesmo tempo que apresentam diferenciadas formas de incluir a participação popular
na esfera pública. Nesse sentido, há o interesse em compreender como se dá essa
participação popular em um contexto singular que foi aplicado na cidade de São Bernardo
do Campo, com o plano plurianual participativo, especificamente na elaboração desse
plano em que toma parte a sociedade civil, através das plenárias abertas à comunidade que
foram realizadas com o objetivo de colher as demandas eleitas pelos cidadãos para ajudar
na elaboração do plano plurianual municipal.
O processo político ali realizado e discutido pareceu-me singular, uma vez que se
tratava do planejamento político de uma cidade, através da formação do plano plurianual
com a participação dos cidadãos, merecendo por isso aprofundamento teórico e
investigativo.
Portanto, considerando a abrangência das questões no caso vertente, seja pela
complexidade das peças orçamentárias, seja pelos diversos atores sociais envolvidos, foi
estabelecido para a pesquisa um recorte estrutural epistemológico para viabilizar a análise
e as implicações do modelo a ser analisado. Nesse contexto, o objeto de pesquisa são as
plenárias do Plano Plurianual Participativo de São Bernardo do Campo - SP, realizadas em

1305
maio de 2013, as regras procedimentais adotadas para o andamento das plenárias e as
diretrizes eleitas pelos cidadãos nesses espaços públicos.
Definido o recorte, o objetivo do trabalho é sistematizar a discussão e análise sobre
participação popular e a efetividade dela na esfera pública, bem como a relação entre poder
público e a sociedade civil. Para tanto, a questão problema da pesquisa pode ser resumida
em: “A participação popular nas plenárias encontra correspondência real e efetiva nos
programas do Plano Plurianual (PPA)?”.
A partir destas delimitações podem ser traçadas algumas hipóteses para o estudo:
1) O modelo de plano plurianual participativo (PPA P) adotado pelo
município de São Bernardo do Campo pode ser reconhecido como um modelo em
construção de participação popular;
2) As regras procedimentais e a metodologia adotada nas plenárias do PPA P
podem restringir e direcionar a escolha das demandas priorizadas pela população;
3) O processo do plano plurianual participativo pode ser tomado como
referencial prático e teórico de aprendizado pelos atores que dele compartilham, bem
como servir de parâmetro a outras práticas participativas.

PARTICIPAÇÃO POPULAR E DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

Partindo de uma sucinta análise da evolução do conceito de participação social no


contexto político brasileiro, questões intrínsecas ao exercício pleno da cidadania são
destacadas, por exemplo: liberdade de escolha, instituições fortalecidas, mecanismos que
assegurem autonomia, transparência e pleno funcionamento de todos os órgãos do sistema
democrático, além da garantia de acesso e proteção aos direitos fundamentais dos cidadãos.
Nesse sentido, discutir as formas de participação popular repensando práticas mais
condizentes com sua natureza e criando mecanismos que viabilizem o pleno exercício das
pessoas e dos direitos envolvidos revigora o sistema democrático e, consequentemente,
fortalece a sociedade que o suporta.
Assim, as mencionadas questões fáticas, legais, institucionais estão imbricadas à
participação. Por isso, é de fundamental importância tratar da participação social, examinar
suas dimensões, riscos, limites e os instrumentos que a viabilizam, voltando-se mais
especificamente ao modelo de participação popular adotado no plano plurianual –
inclusive analisando o impacto dessa estrutura sobre as políticas públicas formuladas, a
adesão popular, o formato estabelecido pelo ente federativo e sua correspondência com os

1306
interesses e pautas populares, delineando nesse processo conceitos como participação,
democracia participativa, institucionalização da vontade e da confiança da população em
políticas públicas –, para assim compreender as regras vigentes, a natureza das instituições
que a compõe e o alcance de suas atividades.
Afinal, o arcabouço legal brasileiro dá suporte à democracia participativa, inclusive
com a previsão constitucional de instrumentos que reconheçam a participação social como
direito dos cidadãos. Basta ver que a Constituição Federal (CF) de 1988 contém a base
normativa da institucionalização da participação popular expressa em dispositivos que
preveem o pleno exercício político a partir de mecanismos como plebiscito, referendo e
iniciativa popular (artigo 14, da CF), dispondo, ainda, no caso da formação das comissões
do Congresso Nacional e das suas Casas, em seu artigo 58, parágrafo 2º., acerca da
realização de “audiências públicas com entidades da sociedade civil” (BRASIL, 1988).
Somado a isso, emendas constitucionais (EC), como a de n. 71 de 2012, trouxe, por
exemplo, a criação do Sistema Nacional de Cultura, que deve ser estruturado de “forma
descentralizada e participativa” (caput do artigo 261-A, da CF), prevendo a criação de
“órgãos gestores de cultura” (inciso I do § 2º, do artigo 216-A, CF), dos “conselhos de
política cultural” (inciso II, § 2º, do artigo 216-A, CF) e das “comissões intergestoras”
(inciso IV, § 2º, do artigo 216-A, CF).
Há também as legislações infraconstitucionais626 que foram ampliando a cultura de
participação na sociedade através do reconhecimento de conselhos, comissões,
conferências, fóruns, audiências públicas, plenárias, ambientes virtuais de participação,
entre outros mecanismos que se reproduzem pelo país.
Com bem observado por Nuria Cunill Grau a respeito da tendência das reformas
constitucionais na América Latina na década de 1990, evidencia-se “(...) uma clara
coincidência em torno do estímulo à denominada democracia participativa, pois nela
“consagra-se a obrigatoriedade do parlamento de dar expresso tratamento em um prazo
determinado aos projetos que são produto da iniciativa popular” (GRAU, 1998, p. 76).
Logo, é uma tendência contemporânea a de refletir e produzir conhecimento sobre
os agentes, a estrutura e os instrumentos definidores da democracia participativa no Brasil
e no mundo.

Os programas de policiamento ou vigilância comunitária do tipo neigbourhood watch possuem nomes


626

diversos a depender da área onde são adotados. Na cidade de Londrina, onde se constituem os grupos objetos
de estudo deste projeto, o programa é denominado “Vizinho Solidário”.
1307
E para o aprimoramento da democracia participativa é necessário evidenciar as
abordagens teóricas e as lacunas sobre a participação social ou cidadã, a (in)operância dos
mecanismos de participação, as oportunidades e os limites manifestados em termos de
espaços públicos colocados à disposição do processo participativo.
Já que para a viabilidade do processo democrático participativo é imprescindível a
consideração ao pluralismo da sociedade civil, bem como a previsão de um sistema jurídico
e político que respeite as perspectivas multidisciplinares dos diferentes grupos que
compõem o corpo social brasileiro, a capacidade de transformar informação em
conhecimento, a disposição de tempo e espaço suficientes para a realização de processos
populares deliberativos, a disponibilidade do maior número de conteúdos e dados
pertinentes ao debate. Todos estes elementos presentes auxiliam a configuração de um
contexto apropriado para que o melhor julgamento possível sobressaia.
À promulgação da Carta Magna seguiu-se a elaboração de leis fundamentais para
fortalecer a participação popular nas decisões públicas, como a Lei de Responsabilidade
Fiscal (Lei n. 101/2000), a Lei de Acesso à informação (Lei n. 12.527/2011) e o recente
Decreto Presidencial que instituiu a Política Nacional de Participação Social e o Sistema
Nacional de Participação Social (Decreto n. 8.243, de 23/05/2014).
Com estes dados, fica evidente que o contexto atual revela que é urgente pensar
novos ajustes democráticos nas tomadas de decisões políticas. Entretanto, como bem
salienta Sartori:

(...) um sistema ideal de tomada de decisões teria de satisfazer os


seguintes requisitos: (a) todo indivíduo deve ter o mesmo peso; (b)
intensidades iguais (de preferência) devem ter o mesmo peso; (c)
resultados de soma zero e resultados de soma positiva devem ser
adequadamente contrabalançados; (d) os riscos externos devem ser
minimizados; (e) os custos da tomada de decisão devem ser
minimizados. Como a enumeração mostra por si mesma, não há
princípio, regra ou sistema de tomada de decisão que esteja sequer perto
de satisfazer todos esses requisitos (SARTORI, 1994, p. 315).

Ou seja, um sistema que contemplasse os requisitos apontados por Sartori seria a


democracia ideal, contudo, os mecanismos colocados à disposição da democracia
participativa ainda estão distantes de cumprir o ideal democrático propugnado pelo autor.
Apesar disso, não se pode deixar de exaltar a estrutura de participação cidadã que tem se
multiplicado pelo país sob a forma de conselhos, audiências públicas, plenárias e redes de
comunicação virtual, entre outras.

1308
E ainda que pese o indispensável aprimoramento das instâncias e sistemas de
participação social, o país tem produzido mecanismos que estão propagando outras
iniciativas populares e fomentando uma nova cultura política de democracia participativa.
Pelas razões apontadas acima, o exercício da democracia tem necessidade de um
proceder constante, com tenaz persecução de seus fins, e o aprimoramento das instituições
participativas decorre desse processo. Ainda mais em um país com recente história
democrática e de descentralização e, portanto, pouca experiência de formatos e estruturas
que viabilizem maior aproximação popular às instâncias públicas decisórias.

O PLANO PLURIANUAL PARTICIPATIVO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO

A presente investigação justifica-se primeiramente porque o PPA P de SBC é um


modelo novo de gestão, cuja peculiaridade evidencia-se por incluir a manifestação popular
na elaboração de uma peça orçamentária complexa que demanda um cenário abrangente,
transparente e comprometido com a administração pública, o que, por si só, ressalta a
importância desta dissertação.
Além disso, em que pesem as pesquisas acadêmicas em relação ao orçamento
participativo, o plano plurianual participativo é assunto recente e há carência de estudos
publicados nessa área, o que reforça a justificativa de explorar esse instrumento
orçamentário popular para dimensionar e avaliar a participação da sociedade civil, o espaço
público para efetivação dos interesses dos munícipes (consistente nas plenárias realizadas),
bem como averiguar o real impacto das demandas eleitas pelas pessoas no processo, a fim
de analisar se de fato o plano plurianual participativo efetiva a participação e a inclusão do
cidadão nos processos decisórios de sua cidade.
Assim, espera-se com essa pesquisa colocar em evidência a importância da
participação popular como meio necessário ao fortalecimento da democracia, porque é a
partir dela que se permite aprimorar os instrumentos de gestão, gerando transparência,
crédito às instituições e maior aproximação do povo às instâncias decisórias do poder
estatal, bem como ressalta-se que urge a reprodução de modelos, novos e existentes, para
uma verdadeira gestão democrática. E ainda que se verifiquem impropriedades de
metodologia, regras e limitações referentes ao processo participativo, é preciso ressaltar que
esses mecanismos de inclusão popular reforçam a democracia participativa, mostrando que
o caminho é longo, mas que o aprendizado com essas experiências têm nos tornado mais
aptos à correção e aprimoramento das estruturas e modelos já existentes, e, principalmente,

1309
fazendo com que formas mais hábeis sejam desenvolvidas para a condução de gestões
públicas mais sensíveis aos interesses dos envolvidos, fomentando inclusão social e
geográfica, ao mesmo tempo em que intentam melhorar a qualidade de vida dos cidadãos
e de suas cidades.
Passando à análise das plenárias do orçamento participativo, verificou-se que em
relação ao perfil da população a análise restou prejudicada em razão da prefeitura de São
Bernardo do Campo não dispor dos dados socioeconômicos dos inscritos nas plenárias.
Em que pese a tecnologia empregada nas plenárias – tablets – para o credenciamento, os
dados coletados pelo órgão público restringiram-se ao gênero e número de participantes
por região.
A propósito dos participantes, no que se refere à adesão popular nas audiências
públicas, considerando o número de habitantes da cidade, tem-se que a média de presença
de 1,9% dos moradores de cada região é uma porcentagem baixa para comparecimento,
embora haja expectativa de crescimento – caso o processo participativo perdure nas
sucessivas administrações, ou seja, implementado mecanismos virtuais de participação
concomitantes ao processo já existente.
Corroboram a probabilidade de maior adesão popular as respostas dadas no
questionário semiestruturado, elaborado pela autora e aplicado em quatro plenárias, haja
vista que os entrevistados, em sua grande maioria, creditam os melhoramentos dos últimos
anos à influência do processo popular participativo para a elaboração do PPA.
Por outro lado, respostas do questionário apontam como ponto negativo do PPA
P a baixa participação dos munícipes, já que para alguns esse fato pode comprometer a
escolha e o peso de determinadas diretrizes para a região, direcionando as demandas. Já
no que se refere ao procedimento relativo ao ciclo participativo para a concepção do PPA,
como munícipe, observadora e pesquisadora, foi constatada uma boa divulgação do
processo e da convocação para as assembleias, via mensagens telefônicas, sítio eletrônico
da prefeitura, revistas de circulação local, outdoors; contudo, como pontuado nas
entrevistas, há carência de maiores informações sobre os procedimentos e sobre o debate
para elaboração do plano plurianual participativo.
Em relação às plenárias frequentadas pela autora, foi verificado que se iniciam com
aproximadamente uma hora de atraso. Somado a isso é realizada uma apresentação de
cada um dos vereadores, secretários e convidados presentes, fato que poderia ser evitado
a fim de abreviar o processo, já que no questionário muitas pessoas alegaram como ponto
negativo do PPA P o horário das sessões. As falas da secretária e diretora da SOPP são

1310
pertinentes ao PPA e seu processo participativo de formulação, além das palavras do
prefeito, pois ele faz uma breve prestação de contas da região da plenária e expõe,
resumidamente, a importância da participação da sociedade na construção do
planejamento da cidade. Quanto ao vídeo explicativo sobre o PPA, avalia-se que ele é
relevante, porém poderia ter mais informações sintetizadas sobre a região em questão e o
orçamento municipal, bem como apresentar as demandas escolhidas pelo ente público
para aquela localidade, tudo com o propósito de orientar e dar uma visão mais abrangente
das necessidades locais a seus próprios moradores.
Sobre os debates e a escolha das diretrizes feitas em salas, conclui-se que o tempo
disponibilizado para esclarecimento, discussão e votação das propostas é demasiadamente
curto. Afinal, são aproximadamente 15 minutos para todos esses procedimentos. Tanto
que nas entrevistas alguns participantes apontaram esse fator como prejudicial ao processo
de elaboração do PPA P.
De uma forma geral, os apontamentos nos questionários retratam que a maioria
dos participantes das plenárias do PPA P 2014-2017 esteve presente na edição anterior,
PPA P, 2009-2013, e considera a iniciativa da prefeitura na promoção deste processo
“ótima”. Essa visão positiva do PPA P pode ser comprovada por duas respostas: a primeira,
que eles acreditam que as diretrizes escolhidas nas sessões serão acatadas pelo Poder
Público, e a segunda, por considerarem o PPA P um instrumento de aproximação entre
Poder Público e cidadãos.
Depreende-se, assim, que o PPA P é um instrumento de planejamento de políticas
públicas capaz de mudar o comportamento cívico, impulsionando a confiança popular nas
instituições e políticas públicas e propagando outras iniciativas populares, o que fortalece o
liame entre Poder Público e cidadão e, consequentemente, a cultura política de democracia
participativa.
No entanto, a falta de clareza, publicidade e transparência dos dados acerca das
diretrizes priorizadas em cada sala (formada para discussão e deliberação das demandas)
evidencia que as desigualdades – sociais, econômicas e políticas – ainda permanecem neste
modelo democrático participativo, já que ele não é desenvolvido de maneira clara. Enfim,
se um mecanismo participativo é concebido para a inserção real do cidadão de modo a
impactar nas decisões políticas, é necessário que ele deva ser estruturado em regras
definidas e compreensíveis. Logo, essa falta de transparência, como no caso do PPA P de
São Bernardo do Campo, prejudica o processo deliberativo e a controle, inviabilizando a

1311
accountability da sociedade em relação à administração pública brasileira (ABRUCIO;
PEDROTI; PÓ, 2010).
No tocante à correlação entre o programa de governo, as diretrizes priorizadas, os
programas e ações estabelecidos no PPA e os demais dados supramencionados pode-se
tecer algumas considerações sobre o mecanismo de participação popular adotado pela
prefeitura de São Bernardo do Campo para a elaboração do plano plurianual.
Primeiramente, é preciso pontuar que o planejamento governamental feito pelo
município com participação popular vem ao encontro dos ideais de democracia
participativa, já que oportuniza à comunidade um espaço público para o debate, sugestões,
controle, solicitações e críticas ao ente público, fazendo com que o cidadão tome parte
mais ativamente do processo político. No entanto, a escassez do tempo concedido aos
moradores, em um evento que é propagado pelo ente municipal como espaço para
deliberação e escolha de diretrizes que orientarão a elaboração do plano plurianual, não
permite caracteriza-lo como espaço público destinado à participação ativa do cidadão.
Como consequência, a metodologia adotada no processo participativo também se
revela inibidora de uma ampla e irrestrita possibilidade de discussão e deliberação para a
formação da opinião pública.
Em relação à consideração da opinião pública, o desenho institucional não viabiliza,
de fato, a deliberação. Esse procedimento revela que o habitus continua a reforçar as
desigualdades existentes (BOURDIEU, 1996) e que a opinião pública não é formada
através de informações substanciosas e pertinentes acerca do que vai deliberar (SARTORI,
1987), o que, em síntese, demonstra que a estrutura política institui apenas uma aparente
revalorização da sociedade civil (GRAU, 1998).
Assim, para que se concretize uma verdadeira participação popular nas decisões
políticas é preciso que efetivamente haja a partilha do poder e o reconhecimento do direito
do cidadão em intervir nas decisões políticas (MORONI, 2009), sem o que não há
reconhecimento da legitimidade dos atores envolvidos nesse contexto de disputa política
e, em consequência, nem igualdade e o poder decisório dos cidadãos (FERRAZ, 2009).
Outro fator que precisa ser ressaltado, eis que corrobora as iniciativas participativas
é a descentralização de poder. A centralização sempre foi e continua sendo um processo
que é facilmente aderente às instâncias decisórias, sendo comumente justificada pelas
tradições, pela estrutura hierárquica ou pela competência de quem detém o poder. No
entanto, confirma e corrobora formas restritas de governar. Ao passo que a
descentralização possibilita que as decisões estejam mais próximas dos problemas, bem

1312
como viabiliza uma cogestão da administração. Dowbor, nesse excerto, expressa a
correlação entre centralização, concentração de poder e desigualdades e a importância da
descentralização para aproximação da população às instâncias decisórias e a reversão dessas
estruturas perniciosas:

Durante anos, os mesmos interesses que criaram os nossos desequilíbrios


organizaram a centralização das decisões, reforçaram a concentração de
renda, e hoje pregam a privatização, como se a participação ou não do
Estado fosse o essencial do problema, e não as deformações que as elites
nele introduziram. O essencial do problema é a democratização das
decisões, para que possam corresponder às necessidades da população, e
isto implica uma profunda descentralização (DOWBOR, 2008, p. 22).

E ainda afirma que:

Um instrumento chave desta participação é o planejamento


descentralizado: propostas ordenadas e submetidas à comunidade
significam a possibilidade dos indivíduos se pronunciarem antes das
decisões serem tomadas, em vez de se limitarem a protestar diante de fatos
já consumados (DOWBOR, 2008, p. 22).

Dessa forma, pretende-se com a discussão acerca do compartilhamento do poder


evidenciar as possibilidades para erigirmos novas formas de gerir a vida pública.
Em relação às comparações entre diretrizes, programas e ações do PPA, pode-se
verificar que a maioria das reivindicações priorizadas nas plenárias não orienta, de fato, a
ação do Poder Público para a elaboração do plano, seja porque a metodologia adotada
para a escolha das demandas nas sessões está orientada por eixos estratégicos
(macrodiretrizes) constantes do programa de governo (o que acaba por direcionar as
demandas votadas e convergi-las a um certo alinhamento com as propostas do Programa
de Governo, seja porque as diretrizes priorizadas pela população ao não serem
formalmente registradas e divulgadas na íntegra não possuem o status de documento oficial,
não se atribuindo a elas a correspondente força política a refletir os anseios populares que
devam ser convertidos em políticas públicas.
Nesse contexto, se propõe que a descrição e definição das ações do PPA devam
apontar, de forma mais detalhada, para as demandas eleitas pelos moradores e às regiões
onde os investimentos serão aplicados, além de requerer do órgão público, em forma de
atas, o registro das reuniões feitas em cada sala.

1313
Mas, todas essas críticas não retiram do plano plurianual participativo o
reconhecimento de que é um modelo de participação popular em construção e que precisa
ser aprimorado para enfatizar a integração social de forma mais democrática, melhorando
os procedimentos a fim de garantir legitimidade e assegurar a integridade da rede da
solidariedade civil, superando os mecanismos de exclusão e fortalecendo a consciência de
copertença política através dos circuitos de comunicação de um espaço público político,
que tem por base um associativismo civil e uma imprensa de massa (HABERMAS, 1998).
Portanto, as regras procedimentais e a metodologia adotada nas plenárias do PPA
P precisam ser revistas. Embora sejam justificadas dessa forma pelo ente público:

(...) uma metodologia de trabalho com ênfase na parte pedagógica, de


maneira que as pessoas se sentissem seguras e confortáveis para
apresentar suas ideias e sugestões para o planejamento da cidade”, sendo
que “o objetivo final é, além de criar um documento que reflita de fato
os anseios da sociedade, dar autonomia aos cidadãos, gerando equilíbrio
entre as diversas forças sociais presentes no município” (SÃO
BERNARDO DO CAMPO, 2011, p. 351).

Diante do exposto, discorda-se sobre esse método ser o mais propício para a
difusão e deliberação das ideias para o planejamento da cidade e formulação do plano
plurianual participativo, já que, conforme relatado, essa metodologia restringe e direciona
as escolhas das demandas, desempoderando a participação popular e coibindo seu poder
decisório (SUBIRATS, 2011).
Logo, para que os anseios populares sejam expressos e considerados, fazendo com
que os cidadãos sejam capazes de cooperar em benefício mútuo (PUTNAM, 2006), há a
necessidade de mecanismos e procedimentos adequados à participação para que não se
comprometa a efetividade do processo.
Afinal, a manutenção de regras procedimentais e de metodologia impróprias a
execução do processo participativo evidencia a não receptividade às reivindicações
colocadas pelos cidadãos, caracterizando a atuação destes como meros “colaboradores
funcionais” do Poder Público, que, por sua vez, restringe e direciona o processo
participativo, o que configura limitação à participação (GRAU, 1998).
E embora sejam feitas prestações de contas periódicas com novas convocações dos
munícipes para apresentar o que está sendo desenvolvido, para o efetivo controle social e
monitoramento das ações do governo, isto é, para proporcionar maior transparência ao
processo e acompanhamento direto por parte de qualquer cidadão, recomenda-se a criação

1314
de uma aba, link, dentro do portal da prefeitura municipal com informações sobre a
situação das reivindicações postas nas plenárias. Por exemplo, uma sugestão seria colocar
nesta página a descrição das demandas eleitas por região ou por tema, e atualizá-las
constantemente com informações, como o orçamento, as etapas necessárias para a
implantação de ações relacionadas e a sinalização do que já foi executado; o resultado disso
seria assegurar mais facilidade e efetividade ao controle social.

CONCLUSÃO

Concluímos, assim, que o PPA Participativo de São Bernardo do Campo – SP pode


ser reconhecido como modelo em construção de participação social, que deve ser
aprimorado para ampliar o espaço de interlocução entre poder público e cidadão, propiciar
mais tempo para a discussão e deliberação na escolha das demandas, otimizar e qualificar
a troca de conhecimento e informações para que se possa fortalecer cada vez mais o
processo de democratização da participação e, consequentemente, planejar a gestão
pública e o orçamento, harmonizando a destinação dos recursos públicos às demandas
prioritárias da comunidade.
Em que pesem as críticas ao procedimento que conduzem o processo de
participação, evidencia-se que é uma iniciativa bem sucedida de aproximar o cidadão das
instâncias decisórias e que os cidadãos a associam às políticas públicas conduzidas na
cidade, como se depreende das respostas aos questionários aplicados, o que permite
considerar o plano plurianual participativo uma estratégia para o planejamento político
cidadão, desde que sejam aprimorados os elementos que restrinjam a participação, que
considerem efetivamente a opinião pública e que disponibilizem com acuidade,
transparência e publicidade todos os dados que são fundamentais ao processo, associando-
os às políticas públicas que serão elaboradas ou justificando a impossibilidade de fazê-las
como manifestado nas demandas eleitas.
Com o aprimoramento do instituto pode-se afirmar que o processo do plano
plurianual participativo pode ser tomado como referencial prático e teórico de efetivo
aprendizado pelos atores que dele participam, bem como servir de parâmetro a outras
práticas participativas.
Uma análise mais acurada do acompanhamento das ações e a correlação com as
diretrizes por região poderia ser feita com o acompanhamento das leis de diretrizes
orçamentárias e leis orçamentárias anuais para o período 2014-2017, no entanto, o trato

1315
dessas questões encontra óbice, essencialmente, no limite temporal, já que nos
encontramos na segunda edição dessas legislações (2014 e 2015), assim, uma pesquisa
dessa natureza somente poderia ter início a partir de 2018 e demandaria trabalho analítico
mais aprofundado sobre o que foi implementado, em que área e qual a região beneficiada
pelo investimento.

REFERÊNCIAS

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trajetória e o significado das reformas administrativas. In: LOUREIRO, M. R.; ABRUCIO,
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<https://docs.google.com/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZGVmYXVsdGRvbWFpbnxwY2
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PUTNAM, R. Capital social e desempenho institucional. In: Comunidade e democracia:
a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.

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2009-2012. Essa mudança inclui você!

SARTORI, G. A teoria da democracia revisitada. Volume I – O debate contemporâneo.


São Paulo: Editora Ática, 1994.

SUBIRATS, J. Otra sociedad? Otra Política? De “no nos representam” a la democracia


de ló común. Barcelona: Icaria Editorial, 2011.

1317
VIGILÂNCIA COMUNITÁRIA EM LONDRINA: UM ESTUDO
SOBRE O PROJETO VIZINHO SOLIDÁRIO E SEUS IMPACTOS NA
CRIMINALIDADE E SENSAÇÃO DE SEGURANÇA627

Fabricio Silva LIMA 628

Resumo: Neighborhood watches são programas de vigilância comunitária implementados nos EUA
na década de 70 e na Inglaterra na década seguinte. Nesses locais, os programas foram concebidos
como projetos de iniciativa governamental visando diminuir os índices de criminalidade.
Entretanto, os resultados desses programas suscitaram dúvidas quanto ao sucesso da vigilância de
bairro na diminuição da criminalidade local. Há no Brasil iniciativas de vigilância comunitária, que
existem em Londrina há mais de uma década com o nome de Vizinho Solidário. Devido à ausência
de estudos que contemplem esse tema, o presente projeto tem o objetivo de analisar a implantação
e a efetividade do programa Vizinho Solidário em Londrina. Assim, as principais perguntas a serem
respondidas nesse trabalho são: 1) Houve alguma diferença na concepção do programa de
vigilância comunitária em Londrina frente às experiências norte-americanas e inglesas? 2)
Ocorreram resultados na diminuição dos índices de criminalidade nos bairros após a implantação
do programa? 3) Houve diminuição da sensação de segurança entre os moradores de bairros que
adotaram a vigilância comunitária? Para atender os objetivos de pesquisa será utilizada a seguinte
metodologia: 1) estudo de casos, com em sem o Vizinho Solidário, seguindo um desenho de
pesquisa quase experimental; 2) análise por séries temporais; 3) comparação de estatísticas
criminais; 4) aplicação de questionários do tipo survey; 5) pesquisa bibliográfica e entrevistas
semiestruturadas.

Palavras-chave: Diminuição de criminalidade. Neighborhood watch. Sensação de segurança.


Vigilância comunitária. Vizinho Solidário.

INTRODUÇÃO

Os programas de vigilância comunitária, vigilância de bairro/quarteirão ou Vizinho


Solidário foram concebidos (EUA na década de 70 e na Inglaterra na década seguinte) com
a ideia da comunidade se tornar os olhos e os ouvidos da polícia (BENNETT, 1988). Esses
projetos de vigilância comunitária funcionam como uma rede de membros de uma
determinada comunidade que observa o que está ocorrendo em sua própria vizinhança e
alerta as autoridades policiais quando percebem alguma atividade suspeita (BENNETT,
1988).

627
Programa Versão Mulher: Dia-a-Dia sobre o Projeto Vizinho Solidário de Londrina. Disponível em <
https://youtu.be/IOB9tHxB8VI>. Acessado em 26/05/2017.
628
MACHADO, Rafael. População se une e instala câmeras para aumentar segurança em bairro da zona
norte. Disponível em <http://www.bonde.com.br/bondenews/londrina/populacao-se-une-e-instala-cameras-
para-aumentar-seguranca-em-bairro-da-zona-norte-439844.html>. Acessado em 23/05/2017.
1318
Tais experiências de vigilância se utilizam de um variado sistema de comunicação
e sinalização como placas identificadoras, alertas sonoros (apitos, sirenes), sinais de
ocupação (manutenção de luzes acessas, recolhimento de lixo e jornais dos moradores em
viagem), grupos de comunicação virtual e até circuito de câmeras captando as atividades da
área. Tais estratégias possuem a intenção de mostrar aos criminosos em potencial que o
risco de detenção e apreensão nessas áreas são maiores (ROSENBAUM, 1987).
Caracterizando-se como uma forma de policiamento pró-ativo da comunidade,
mais centrado às circunstâncias locais (GARLAND, 2008), os programas de vigilância
comunitária aparentemente prestam um grande auxílio às autoridades policiais na
identificação/apreensão de criminosos. Nesse sentido, cabe questionar se tais experiências
de vigilância efetivamente contribuem para a diminuição de criminalidade e aumento da
sensação de segurança dos moradores.
Inicialmente, quando o programa foi idealizado pelos governos norte-americano,
em 1977, e inglês, em 1982, havia grandes expectativas de que a vigilância de bairro pudesse
auxiliar na prevenção e diminuição da criminalidade. Além disso, acreditava-se que a
experiência de vigilância comunitária pudesse integrar a vizinhança e fortalecer as
habilidades comunitárias no controle da criminalidade nas áreas implantadas. Sem falar na
possibilidade de o programa contribuir com o fluxo de informações úteis para as
autoridades policiais, o que auxiliaria de alguma forma na elucidação e prevenção de crimes
(BENNET; HOLLOWAY; FARRINGTON, 2006).
O fato é que ainda existem controvérsias quanto à efetividade de programas de
vigilância comunitária em relação à redução da criminalidade. Alguns autores defendem a
eficácia das experiências de vigilância comunitária. Outros apontam para a ineficiência
desses programas, e outros ainda afirmam que os métodos utilizados para o estudo dos
programas influenciam nos resultados das pesquisas, podendo distorcê-los (KANG, 2015).
Diante dessas polêmicas, estudos adicionais visando avaliar o impacto desses programas
são bem-vindos.
A análise do impacto desses programas na comunidade supõe que antes sejam
analisadas as suas características, bem como as razões que motivaram sua implantação. Os
programas de vigilância comunitária no contexto inglês apontam para uma crise de
legitimidade das autoridades estatais nas democracias liberais. Nesse sentido, as
experiências comunitárias de vigilância, além de promoverem uma redução das funções
estatais de segurança por meio do empoderamento dos cidadãos nessa área, também
sinalizariam mudanças políticas importantes em direção a um modelo de governo no qual

1319
ações reparadoras são direcionadas aos grupos sociais com problemas críticos de saúde,
educação moradia, violência e outros (HUGLES e EDWARDS, 2002). Além disso, o fato
de os cidadãos se unirem e organizarem grupos comunitários para cuidar de sua segurança
é um indicativo de falta de confiança na segurança estatal (SKOGAN, 1989).
Existem evidências de que os programas de vigilância comunitária são uma forma
de reação dos cidadãos em relação à qualidade do serviço de segurança oferecido pelo
Estado. E que, além disso, à medida em que alguns programas são iniciados ou contam
com apoio de autoridade policiais, há indicativos em relação à mudança de perspectiva da
atuação estatal, que passa a dividir o ônus do monopólio da segurança com os cidadãos.
Ainda que se possa traçar um ponto em comum, indicando a gênesis desses
programas nas realidades americanas, inglesas e até mesmo brasileiras, o que julgamos
pertinente observar e analisar é a forma de concepção, implantação e desenvolvimento
desses programas dentro do Brasil, bem como os resultados alcançados frente à
criminalidade e à sensação de segurança dos moradores envolvidos. Uma vez que tais
experiências se fazem cada vez mais frequentes e recorrentes em nossa sociedade,
incluindo a cidade de Londrina, consideramos importante a realização de um estudo que
possa fazer o levantamento de alguns projetos de Vizinho Solidário629 para verificar suas
características e contribuições na diminuição da criminalidade e melhora na sensação de
segurança.
Existe uma carência de estudos sobre as experiências de vigilância comunitária no
país. Na cidade de Londrina, por exemplo, estima-se a existência de 7 mil residências em
projetos do tipo Vizinho Solidário, agrupando, aproximadamente, 30 mil pessoas630. Alguns
desses grupos estão em funcionamento desde 2010, contando, inclusive, com o auxílio de
aplicativos de celular e monitoramento por câmeras631. A despeito dessa profusão de
experiências, não localizamos na pesquisa bibliográfica realizada para a construção desse
projeto nenhum estudo acadêmico sobre o fenômeno. Encontramos apenas matérias
jornalísticas na mídia impressa e televisiva de caráter apologético ao programa632.

629
CONSEG. Projeto Vizinho Solidário de Londrina recebe o "Prêmio Londrina de Cidadania 2013".
Disponível em < http://www.conseg.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=1002>. Acessado em
26/05/2017.
630
Os dados informados correspondem ao volume de ocorrências policiais registradas.
631
Vide notas 1, 2, 3 acima que ilustram a existência e funcionamento do Projeto Vizinho Solidário em
Londrina.
632
Discente do 7º período de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Bolsista
1320 para Estudos sobre os Estados Unidos – INCT-
do CNPq em projeto do Instituto Nacional de Tecnologia
INEU. Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH-UFU). E-mail
para contato: tuanefonsecac@gmail.com.
Diante desse cenário, o presente estudo visa auxiliar no preenchimento desse vazio
de estudos a respeito do Vizinho Solidário na cidade de Londrina. O objetivo do trabalho
é analisar as características desse programa de vigilância de bairro e o seu impacto sobre a
criminalidade e a sensação de segurança dos moradores. Busca-se com isso responder às
seguintes perguntas: 1) Há diferença na concepção do programa de vigilância comunitária
em Londrina com as experiências norte americanas e inglesas? 2) Há resultados efetivos
na diminuição dos índices de criminalidade nos bairros em Londrina após implantação do
vizinho solidário? 3) Houve impacto na sensação de segurança dos moradores dos bairros
que adotaram essa experiência de vigilância comunitária? Essas questões serão respondidas
por meio de estudos de caso que obedecerão a um desenho de pesquisa quase
experimental (Cano, 2002). Assim, serão estudados indicadores criminais antes e depois
da implantação dos programas de vizinho solidário, bem como comparados os indicadores
criminais e a sensação de segurança de áreas urbanas que tenham implantado o projeto
Vizinho Solidário com áreas similares onde o projeto não existe.

ABORDAGEM TEÓRICA DO OBJETO

Entre os anos 1960 e 1970, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos se depararam com


o crescimento nas taxas de criminalidade, bem como uma ineficiência da política penal que
já não conseguia fornecer a segurança adequada à essas sociedades. Uma forma de resposta
a essa falha na manutenção da segurança foi desenvolver políticas para “aliviar a
responsabilidade do Estado como o principal provedor da segurança”, permitindo assim
que atores não estatais pudessem contribuir no controle da criminalidade. Nesse sentido,
o Estado passou a contar mais com a participação da sociedade civil com estratégias
antecipatórias ao crime no lugar de direcionar esforços na persecução e condenação de
criminosos (GARLAND, 2008). Para que a nova estratégia fosse viável, as políticas públicas
desses países direcionaram seus esforços na formação de “organizações híbridas, que
trafegam nas velhas fronteiras do público/privado”, com a intenção de estimular atitudes
preventivas aos delitos por parte dos cidadãos, das comunidades e instituições empresarias.
Sendo assim, as soluções de policiamento comunitário surgiram como resposta e uma nova
estratégia dos governos norte-americanos e britânicos no combate à criminalidade
(GARLAND, 2008).
O contexto brasileiro, ainda que com suas particularidades, também demonstraram
a deficiência estatal no controle e combate à violência. Estudos sobre o Estado do Rio de

1321
Janeiro, por exemplo, mostram um aumento de 50% na taxa de criminalidade urbana entre
os períodos de 1977 e 1986, seguido de um decréscimo de 27,4% nas taxas de
aprisionamento (população prisional/100.000 habitantes) (COELHO apud ADORNO,
2002). No que se refere ao município de São Paulo, outros estudos mostram que, a
despeito do crescimento da criminalidade, existe uma condenação ínfima de 1,72% em
relação aos crimes denunciados contra crianças e adolescentes em 1991 (CASTRO apud
ADORNO, 2002).
Já os crimes contra o patrimônio, quando de autoria desconhecida, muitas vezes
não chegam sequer a serem investigados, caracterizando uma espécie de “área de exclusão
penal” (ADORNO, 2002). A taxa de condenação para os crimes patrimoniais, por
exemplo, foi extremamente baixa no Estado Rio de Janeiro nas décadas de 70 e 80. Para
cada 100 crimes contra o patrimônio houve a condenação de 5 infratores em 1976, sendo
que em quatro anos mais tarde esse número diminuiu para 4 (COELHO apud ADORNO,
2002). Dados mais recentes do Anuário Brasileiro de Segurança Pública e Estatística de
2016 também revelam um aumento do número de crimes violentos não letais contra o
patrimônio no Brasil, especialmente roubo de instituições financeiras (de 1.592 ocorrências
em 2014, subiram para 1.750 em 2015) e também roubo de carga (de 16.475 em 2014,
aumentaram para 18.491 ocorrências em 2015).633
A realidade de impunidade no contexto brasileiro ocasionou um descrédito por
parte dos cidadãos em relação aos órgãos responsáveis por manter a segurança e punir os
delituosos. A consequência dessa ineficiência estatal na manutenção da segurança
ocasionou a busca de soluções alternativas de proteção por parte da sociedade (ADORNO,
2002). Podem ser citadas as empresas de segurança privada, a proteção oferecida por
grupos de traficantes, a contratação de justiceiros, a formação de esquadrões da morde, os
linchamentos e a organização da comunidade em esquemas de vigilância de bairro ou
vigilância comunitária (ADORNO, 2002; LOPES, 2013).
Os esquemas de vigilância de bairro ou vigilância comunitária do tipo
neighborhood watch foram pouco estudados por acadêmicos no país. O que identificamos
foi um estudo descritivo e pouco preciso sobre a diminuição da criminalidade em algumas

633
Docente do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduada
(1997) e Mestra (2000) em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UnB); Doutora em Ciência
Política com ênfase em Política Internacional (2011) pela Universidade de Campinas (UNICAMP).
Coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH-UFU). Possui
experiência na área de Relações Internacionais, nos seguintes temas: Teorias de relações internacionais,
organizações internacionais, direitos humanos, política externa dos Estados Unidos. E-mail para contato:
marrielle@ie.ufu.br. 1322
áreas de Belo Horizonte decorrente da implantação da “Rede de Vizinhos Protegidos”
(LOPES & BATELLA, 2010). Por outro lado, as experiências de vigilância comunitária
existentes nos EUA e Inglaterra motivaram relevantes estudos sobre a forma de
organização desses grupos, o perfil das comunidades que os adotaram e sua contribuição
sobre a diminuição da criminalidade e sensação de segurança dos moradores
(ROSENBAUM, 1987; BENNET, 1988; GAROFALO; McLEOD, 1989; KANG,2015).
A princípio, os programas de vigilância comunitária fazem a conexão entre os
processos de controle social informal e os programas comunitários de prevenção à
criminalidade. Nesse sentido, há grande esperança de que as experiências de vigilância de
bairro estimulem o contato necessário ao fortalecimento dos laços de controles sociais
informais, que de alguma forma auxiliariam na qualidade das interações sociais, e,
consequentemente, estimulariam a troca de informações úteis à prevenção da
criminalidade em determinada área (ROSENBAUM, 1987).
Existe também a ideia de que os monitoramentos de vizinhança promovidos pelas
experiências de vigilância de bairro podem contribuir para a redução das atividades
delituosas. Isso porque os criminosos em potencial se sentiriam intimidados ao saber que
as possibilidades de detenção e apreensão aumentaram no local, além de que os residentes
tornam-se “os olhos e os ouvidos” da polícia e podem reportar qualquer atividade suspeita
às autoridades locais (ROSENBAUM, 1987, p. 106).
No entanto, apesar de existirem evidências empíricas que estimulam a adoção dos
programas do tipo Vizinho Solidário, há questionamentos sobre a eficácia desse tipo de
experiência. Já foi verificado que o tipo de público e o local onde é desenvolvido o
programa foram preponderantes para o seu sucesso em outros países. Existem estudos
demonstrando que a espontaneidade e o comprometimento na participação das pessoas
em comunidades mais pobres e com altas taxas de criminalidade foram baixos, sinalizando
que alguns locais que mais necessitam de controle social informal no auxílio da segurança
são aqueles onde menos ocorre (ROSENBAUM, 1987). O que se verifica em estudos
prévios sobre o assunto nas realidades norte-americanas e inglesas é que a participação
voluntária em experiências de vigilância comunitária é um fenômeno de classe média.
Dessa forma, o perfil dos participantes seria o de proprietários com renda razoável,
escolarizados, casados e com filhos (LAVRAKAS ET AL., 1980; SKOGAN AND
MAXFIELD, 1981; WANDERSMAN; JAKUBS; GIAMARTINO, 1981 apud
ROSENBAUM, 1987).

1323
Diante de uma aparente disparidade entre o que os programas de vigilância
comunitária almejam nas comunidades e o que efetivamente alcançam, faz-se necessário
um estudo e mensuração desses resultados. O presente estudo tem como base os
apontamentos promovidos por BENNETT (1988), que se valeu da aplicação de
questionários a grupos de vigilância comunitária antes e depois da implementação de
experiências em Londres (1988). Juntamente à análise dos grupos participantes do
programa, há coleta de dados de indivíduos que não estão integrando experiências de
Vizinho Solidário em pelo menos duas áreas diferentes. Nessa abordagem utilizada por
BENNETT (1988) há diversos apontamentos que podem nortear nosso estudo. O autor
relata como ocorreu a metodologia de implantação conduzida pelas autoridades policiais
inglesas, mensura o envolvimento dos moradores no programa, bem como realiza
comparações em relação a aspectos de diminuição/aumento de criminalidade, e o medo
dos residentes em relação à ocorrência de crimes nos locais observados.
Estudos realizados no contexto norte-americano também podem nos auxiliar na
pesquisa dos aspectos estruturais e operacionais das experiências do tipo Vizinho Solidário,
tais como características do modus operandi, tipo de vizinhança, predominância
étnica/racial, renda média dos participantes, forma de comunicação e outros levantamentos
(equipamento e tipo de treinamento) que serão úteis no momento de direcionar o que
deve ser observado e até mesmo questionado aos residentes dos locais estudados no
momento de nossas pesquisas (GAROFALO; McLEOD, 1989).
Observando o levantamento das experiências norte-americanas, juntamos
elementos sobre alguns dilemas entre o que é ideal e o que ocorre na realidade do contexto
dos programas de vigilância comunitária. Tais fatores se relacionam com o grau de
envolvimento das pessoas para com as experiências de vigilância e se tais programas os
mantêm motivados. Além disso, são levantados alguns tipos de vizinhanças que são
consideradas áreas férteis para os programas de Vizinho Solidário na realidade norte-
americana e que poderão servir de parâmetros e comparação para nossos estudos
(GAROFALO; McLEOD, 1989). Nesse mesmo aspecto, em relação à análise do perfil
dos grupos participantes em programas de Vizinho Solidário e ao tipo de bairro em que os
residentes vivem, basear-nos-emos em estudos feitos por KANG (2015) na cidade
estadunidense de Seattle.

1324
OBJETIVOS

OBJETIVO GERAL

Analisar a implantação e a efetividade do programa Vizinho Solidário em Londrina


em termos de diminuição dos indicadores criminais e aumento da sensação de segurança.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
a) Identificar as características e as particularidades do programa de vigilância
comunitária Vizinho Solidário de Londrina frente às experiências inglesas e norte-
americanas descritas pela literatura acadêmica;
b) Analisar se ocorreram resultados efetivos na diminuição dos índices de
criminalidade em locais onde o programa foi instalado em comparação com os índices de
locais similares onde o programa não existe.
c) Identificar se ocorreram resultados efetivos na sensação de segurança das pessoas
que residem em bairros onde a experiência foi implantada em comparação com a sensação
de segurança em locais similares onde o programa não existe.

JUSTIFICATIVA (RELEVÂNCIA) E VIABILIDADE

Os programas de vigilância comunitária do tipo Vizinho Solidário estão cada vez


mais presentes em nossa sociedade. Não é raro identificar a presença de residências com
sinais e placas identificando a participação nesses programas em várias cidades do país. Na
cidade de Londrina, não só podemos observar a placa de identificação em alguns bairros,
mas também guaritas limitadoras de movimento e até mesmo câmeras de monitoramento
instaladas como forma de auxílio à experiências de vigilância de bairro634.
Apesar da grande ocorrência dos programas desse tipo, pouco se tem estudado
sobre o assunto no Brasil. Como já foi mencionado, o que identificamos foi um estudo
descritivo e pouco preciso sobre a diminuição da criminalidade em algumas áreas de Belo
Horizonte (LOPES; BATELLA, 2010). No entanto, quanto à realidade londrinense, não
existem levantamentos sobre como são estruturados os grupos, os locais onde estão mais
presentes, as características do público participante, quem são os maiores responsáveis

634
Conforme presente no artigo 25 de seu Regulamento, disponível em:
<https://www.oas.org/pt/cidh/mandato/Basicos/RegulamentoCIDH2013.pdf>. Acesso em: 13 set. 2017.

1325
pelas iniciativas (poder público ou iniciativa privada) e se existe efetividade no combate ao
crime e melhora na sensação de segurança.
Assim, acreditamos ser de grande valia um estudo nessa área do conhecimento no
qual atores individuais e agências não estatais passam a atuar na manutenção da ordem e
segurança dentro de suas comunidades (KEMPA; STENNING; WOOD, 2004). As
experiências de vigilância comunitária em conjunto com as empresas de segurança privada
(atuando na venda de serviços e equipamentos de proteção pessoal ou patrimonial)
passaram a agir na prevenção e combate à criminalidade em vários países a partir da década
de 70. E o que torna o estudo ainda mais relevante é que a ação desses atores não estatais
representara uma mudança de paradigma da visão weberiana no qual o Estado é o
responsável pela segurança e mantenedor da ordem dentro das sociedades (WEBER,
1999; LOPES, 2013).
Para realizar o presente estudo, conforme metodologia a seguir, faremos estudos
de caso obedecendo um desenho de pesquisa quase experimental. Além disso,
utilizaremos elementos de pesquisa bibliográfica, matérias jornalísticas da região,
entrevistas, aplicação de questionários, e dados de criminalidade da Secretaria de
Segurança Pública do Estado do Paraná. Também contaremos com fontes informais e com
estudiosos da área, que integram forças policiais na cidade e auxiliam e coordenam
experiências de Vizinho Solidário em diversos bairros de Londrina.
Por fim, visamos divulgar os dados obtidos com as pesquisas e ainda agregar
conhecimento e novas ideias que podem ajudar a fomentar uma maior segurança na
sociedade. Isso ocorrerá por meio da apresentação do trabalho em congressos e por meio
de publicação em revistas sobre criminologia e Ciências Sociais no Brasil e no exterior.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS (MÉTODOS DE ABORDAGEM E


COLETA DE DADOS; FORMAS DE ANÁLISE)

Nossa análise partirá de uma metodologia de estudos de casos que obedecerão um


desenho de pesquisa quase experimental, comparando resultados dos locais sem e com a
presença do projeto Vizinho Solidário em Londrina. Nesse sentido buscaremos áreas com
características bem semelhantes no que se refere ao padrão socioeconômico e localização
(se possível, áreas no mesmo bairro), diferindo apenas quanto ao fato da presença ou
ausência do programa.
O desenho metodológico em questão é aconselhado para avaliação de programas
sociais confrontando grupos parecidos, mas cujo fator/causa de diferença seja o objeto a

1326
ser estudado (CANO, 2012). No nosso caso o projeto Vizinho Solidário se constitui o
elemento diferenciador. O grupo com a causa presente se chama grupo experimental, e o
segundo grupo com a causa ausente é denominado grupo de controle. Uma análise de
ambos permitirá identificar qual o efeito de tal causa, que num primeiro momento é o
único diferenciador entre os dois grupos (CANO, 2012), em termos de diminuição dos
indicadores criminais e aumento da sensação de segurança em algumas áreas da cidade
norte paranaense.
A pesquisa fará um tipo de avaliativo ex post de um programa comunitário, ou seja,
um estudo simultâneo à realização do programa. Dessa forma, verificaremos o grau de
efetividade do projeto Vizinho Solidário em termos de reduzir a criminalidade e aumentar
a sensação de segurança (DRAIBE, 2001). Mais especificamente, será feita uma avaliação
de impacto, isto é, buscar-se-á avaliar as “alterações ou mudanças efetivas na realidade
sobre a qual o programa intervém e por ele são provocados” (p. 21). Isto é, será analisado
o impacto do programa na criminalidade, medida pelos indicadores de crimes contra o
patrimônio (furto e roubo) da Secretaria de Segurança Pública do Paraná; e na sensação
de segurança, medida por um questionário a ser aplicado junto aos moradores das áreas
pesquisadas.
O grupo experimental será composto por dois casos: a experiência de Vizinho
Solidário do Jardim Shangri-lá, zona oeste; e a experiência de Vizinho Solidário do Jardim
Santa Mônica, zona norte. Os indicadores criminais e de sensação de segurança dessas
áreas serão comparadas com os indicadores de dois casos que comporão o grupo controle,
isto é, duas áreas com características urbanísticas e socioeconômicas similares, mas que não
têm a experiência de Vizinho Solidário. Esses casos de controle serão escolhidos por meio
de acesso aos setores censitários do site do IBGE, que nos possibilitará verificar
informações sobre renda e escolaridade das pessoas das áreas analisadas. Visamos
acompanhar e monitorar os números de ocorrência criminais contra o patrimônio
(principalmente os crimes de furto e roubo), além de inquirir os moradores sobre o medo
em relação a violência nas áreas.
Além da análise comparativa dos indicadores criminais e de sensação de segurança
entre os casos experimentais/com vizinho solidário x casos controle/sem vizinho solidário,
também será feita uma análise estatística de séries temporais nos dados de crimes contra o
patrimônio das áreas com vizinho solidário. A referida análise por sérias temporais
possibilita verificar se existia

1327
(...) uma tendência na série anteriormente à intervenção e, caso
afirmativo, qual a projeção da série para o momento posterior, no
suposto de que a intervenção não tivesse acontecido. Por sua vez, o teste
conclui se a diferença entre a projeção estimada – no suposto de ausência
da intervenção – e a série efetivamente registrada – é ou não significativa.
Se for, ela poderia ser atribuída ao efeito da intervenção, desde que a
incidência de outros fatores relevantes estivesse convincentemente
descartada (CANO, 2005, p. 22).

Dessa forma, acompanhando a evolução dos indicadores criminais teremos


condições de identificar se existe uma real interferência do projeto Vizinho Solidário nas
taxas de criminalidade dos locais estudados. Isso por meio de uma observação sobre a
existência de uma variância ou não nas taxas de ocorrência criminal, e caso ela exista, se é
relevante ao ponto de ser considerada como uma causa das ações promovidas pelo projeto
de vigilância comunitária.
Além disso, a pesquisa em questão se valerá de levantamentos bibliográficos; de
matérias jornalísticas locais; de entrevistas semiestruturadas, e da aplicação de questionários
do tipo survey para mensurar a sensação de segurança dos moradores, buscando assim
atingir os objetivos específicos de pesquisa acima mencionados.
No que se refere à pesquisa bibliográfica e à revisão da literatura, estas são
importantes para um resgate histórico, a fim de entender as origens e razões de implantação
dos programas de vigilância comunitária na Inglaterra e nos Estados Unidos. Além disso,
os textos elencados na bibliografia permitirão maior compreensão e aprofundamento dos
conceitos mobilizados pela literatura especializada, ao mesmo tempo que nortearão os
pontos a serem questionados a respeito do sucesso ou não das experiências de vigilância
comunitária em Londrina. Com isso, também teremos elementos para traçar um
comparativo do programa Vizinho Solidário de Londrina frente às experiências
estadunidenses e inglesas. Já as matérias da imprensa local nos auxiliarão a garimpar e
identificar elementos importantes da criação e influência na concepção dos programas de
Vizinho Solidário em Londrina. Além disso, as matérias escritas ou televisivas serão de
grande valia para identificar eventuais lideranças desses programas em funcionamento.
As entrevistas e os questionários têm como objetivo: 1) identificar as ações das
lideranças do Vizinho Solidário em Londrina para verificar quais os métodos utilizados no
combate à criminalidade (sinalizadores sonoros e visuais, sinais de ocupação, redes
informais de comunicação, rondas, cartilhas instrutivas, reuniões periódicas e outros); 2)
verificar a opinião dos moradores participantes do programa “pela interrogação direta das

1328
pessoas cujo comportamento se deseja conhecer (...)” (GIL, 2009, p. 55), comparando com
grupos que não tiveram participação em experiências de vigilância (BENNETT, 1988).
Tais procedimentos de entrevista e questionamento nos auxiliará, em conjunto com o
desenho de pesquisa quase experimental, entender se houve a diminuição/ aumento da
sensação de insegurança nas áreas onde o programa ocorre.

CONCLUSÕES

Conforme comentado, existe uma falta de estudos quanto à realidade brasileira e a


londrinense no que se refere aos programas de vigilância comunitária do tipo Vizinho
Solidário. Sendo assim, um levantamento de suas características, do público participante e
quem são os maiores responsáveis pelas iniciativas (poder público ou iniciativa privada) do
programa se faz pertinente e necessário.
Por meio dos métodos descritos acima, acreditamos que a pesquisa atingirá seu
objetivo de analisar e comparar a forma de implantação do projeto Vizinho Solidário em
Londrina em relação às experiências norte-americanas e inglesas, além de analisar o
impacto do programa em relação à criminalidade e sensação de segurança.

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orientação para o Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais – UEL, Londrina,
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Londrina já aderiram ao projeto, que começou no Jardim Shangri-lá. Disponível em
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1329
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FGV Editora, 2002.

CONSEG. Projeto Vizinho Solidário de Londrina recebe o "Prêmio Londrina de


Cidadania 2013". Disponível em <
http://www.conseg.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=1002>. Acessado em
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1330
GT 07 – DIREITOS HUMANOS:
CIDADANIA E IDENTIDADES

1331
DIREITOS HUMANOS SOB TENSÃO: COMPARAÇÃO DOS CASOS
DE PENA DE MORTE DA AMÉRICA LATINA E CARIBE E DOS
ESTADOS UNIDOS NO SISTEMA INTERAMERICANO DE
DIREITOS HUMANOS

Tuane Fonseca CUSTÓDIO635

Marrielle MAIA 636

Resumo: Este trabalho tem como objetivo apresentar resultados preliminares do estudo sobre o
perfil das denúncias de violação de direitos humanos relacionadas à pena de morte contra alguns
Estados latino-americanos e caribenhos (Barbados, Belize, Granada, Santa Lúcia, Cuba, Bahamas,
Costa Rica e Trinidad e Tobago) no Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) em
comparação com os casos estadunidenses. A pesquisa é um desdobramento das investigações sobre
os Estados Unidos no Sistema Interamericano de Direitos Humanos no âmbito do Núcleo de
Pesquisa e Estudos em Direitos Humanos - NuPEDH-IERIUFU em atividade vinculada ao
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos sobre os Estados Unido – INCT/INEU.
A metodologia utilizada consiste em uma pesquisa empírica, a partir do estudo qualitativo e
quantitativo dos documentos oficiais produzidos pela Corte e Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (Corte IDH e CIDH, respectivamente) referentes a casos de violação de direitos
humanos. Foram analisados relatórios de denúncias da Corte IDH e CIDH, publicados entre 1970
e 2015. A pesquisa, que ainda está em andamento, tem mostrado a recorrência de denúncias contra
os Estados sobre sentença de pena de morte ou violações de direitos humanos decorrentes e/ou
relacionadas a mesma e, também, tornado evidente a existência de redes de advocacy no processo
de denúncia. A análise dos denunciantes mostra uma forte influência do ativismo inglês nos países
latino-americanos e caribenhos, assim como a ausência de ação de organizações domésticas e de
organizações não governamentais internacionais nos mesmos.

Palavras-chave: América Latina e Caribe. ;Estados Unidos. Pena de morte. Sistema Interamericano
de Direitos Humanos.

INTRODUÇÃO

O Sistema Interamericano de Direitos Humanos (doravante SIDH) é um


mecanismo da Organização dos Estados Americanos (OEA) que recebe denúncias de
violações de direitos humanos contra os seus Estados-Membros. O SIDH foi estabelecido
formalmente com a aprovação da Declaração Americana de Direitos e Deveres do
Homem na Nona Conferência Internacional Americana, que aconteceu em Bogotá em
1948. Na mesma conferência, foi adotada a Carta da OEA, que tem como um dos
princípios fundadores da Organização os “direitos fundamentais da pessoa humana”

635
De acordo com o disposto no artigo 63.2 da Convenção Americana, disponível em:
<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 13 set. 2017.
636
De acordo com o disposto no artigo 64 da Convenção Americana, disponível em:
<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 13 set. 2017.
1332
(OEA, 2016). Ele é formado por dois órgãos: A Comissão Interamericana de Direitos
Humanos (doravante CIDH) e a Corte Interamericana de Direitos Humanos (doravante
CtIDH).
Com sua sede em Washington, D.C., a CIDH foi criada pela OEA em 1959, em
conformidade com o artigo 106 da Carta da Organização (OEA, 2016), que declara que:

Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos que terá


por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos
humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.
[...] Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá
a estrutura, a competência e as normas de funcionamento da referida
Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria
(OEA, 1948, art. 106).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão principal da


Organização dos Estados Americanos com autonomia para analisar casos de violação de
direitos humanos e, portanto, possui como função primordial promover a observância e a
defesa dos direitos humanos no continente americano e servir como órgão consultivo da
OEA nesta matéria. Ela funciona baseada em três pilares: O Sistema de Petição Individual;
o monitoramento da situação dos direitos humanos nos Estados Membros e; a atenção a
linhas temáticas prioritárias. Os conceitos que fundamentam a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos são: o princípio pro homine, a necessidade de acesso à justiça e a
incorporação da perspectiva de gênero em suas atividades (OEA, 2016). Todos os Estados
membros da OEA estão submetidos à supervisão do órgão, independentemente de ter
ratificado a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (doravante “Convenção
Americana” ou “Convenção”).
A CIDH atua a partir do recebimento, análise e investigação de petições individuais
que alegam a violação de direitos humanos por parte desses países. Ela é responsável por
observar e, quando julga necessário, publicar sobre o cumprimento geral dos direitos
humanos nos Estados membros. Além disso, a fim de analisar detalhadamente o
cumprimento dos direitos humanos e/ou investigar alguma situação específica, a CIDH
realiza visitas in loco aos países e produz relatórios que são publicados e apresentados ao
Conselho Permanente e à Assembleia Geral da OEA. No âmbito da Comissão, também
são realizados e publicados estudos sobre temas específicos (como a situação dos direitos
humanos das crianças e adolescentes, das mulheres, dos trabalhadores migrantes, das
pessoas privadas de liberdade, dos defensores de direitos humanos, dos povos indígenas e

1333
dos afrodescendentes, liberdade de expressão, entre outros), com o intuito de estimular a
consciência pública dos direitos humanos nos Estados americanos. Eles também
organizam e promovem visitas, conferências, seminários com representantes
governamentais, instituições acadêmicas, organizações não governamentais (ONGs) e
outros, para difundir e fomentar o conhecimento sobre o trabalho do SIDH (OEA, 2017).
A Comissão exerce influência sobre os Estados membros da OEA através de
recomendações sobre adoção de medidas que visam proteger os direitos humanos nos
países americanos, ela pode solicitar a adoção de “medidas cautelares”637, a fim de prevenir
danos irreparáveis à suposta vítima da petição em casos graves e urgentes, e, além disso,
possui competência para solicitar que a CtIDH requeira “medidas provisionais”638 dos
Governos, mesmo que o caso não tenha sido submetido à Corte, em casos de extrema
urgência e gravidade, que possam causar danos irreparáveis às pessoas, tem competência
para apresentar à jurisdição da CtIDH e atuar frente à Corte durante os trâmites e a
consideração de determinados litígios, além de solicitar opiniões consultivas639 a mesma
(OEA, 2017).
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi adotada Conferência
Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, que aconteceu em San José, Costa
Rica, em novembro de 1969, entrando em vigor em 18 de julho de 1978, após a décima
primeira ratificação da Convenção. Atualmente, vinte e cinco países aderiram ou
ratificaram a Convenção, sendo eles: Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Colômbia, Costa
Rica, Chile, Dominica, Equador, El Salvador, Granada, Guatemala, Haiti, Honduras,
Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname,
Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Contudo, Trinidad e Tobago a denunciou no
dia 26 de maio de 1998, por meio de uma comunicação dirigida ao Secretário Geral da
OEA (CORTE IDH, 2017).
A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi criada em 1979, possui sede em
San José, Costa Rica, é um órgão jurisdicional e possui jurisdição ilimitada. Ela é
responsável por atender casos em que o Estado envolvido tenha ratificado a Convenção
Americana e concordado com a jurisdição facultativa da Corte (FERREIRA,
ROMANZINI, 2016). Além da função jurisdicional, a CtIDH possui função consultiva.

637
De acordo com o disposto nos artigos 61, 62 e 63 da Convenção Americana, disponível em:
<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 13 set. 2017.
638
De acordo com o disposto nos artigos 64 da Convenção Americana, disponível em:
<https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm>. Acesso em: 13 set. 2017.
639
A CIDH passou a disponibilizar a quantidade de petições recebidas só a partir do ano de 2006, disponível
em: <http://www.oas.org/es/cidh/multimedia/estadisticas/estadisticas.html>.
1334 Acesso em: 10 set. 2017.
No que diz respeito à jurisdição640, os casos só podem ser submetidos à decisão da
Corte pela Comissão e pelos Estados partes; os casos só são reconhecidos se esgotados os
processos previstos nos artigos 48 a 50 da Convenção; a CtIDH só tem competência para
reconhecer os casos submetidos se os países tiverem reconhecido ou reconheçam a
referida competência, através de uma declaração especial ou por convenção especial; a
Corte possui competência para tomar medidas provisórias se considerar pertinente, em
casos de extrema gravidade e urgência, ou a pedido da CIDH, como foi supracitado; por
fim, a CtIDH também poderá tomar medidas para que se assegure ao prejudicado o gozo
do seu direito ou liberdade violados e até mesmo medidas de reparação, como pagamento
de indenização justa à parte lesada (CORTE IDH, 2017).
Quanto à função consultiva641, os Estados membros da OEA podem consultar a
Corte a respeito da interpretação da Convenção Americana e outros tratados que dizem
respeito à proteção dos direitos humanos nos países do continente americano. Ademais,
se solicitado por um Estado membro da OEA, a CtIDH pode emitir pareceres sobre a
compatibilidade entre qualquer de suas leis internas e os instrumentos internacionais em
questão (CORTE IDH, 2017).
Este trabalho tem como objetivo apresentar os resultados preliminares do estudo
sobre o perfil das denúncias de violação de direitos humanos relacionadas à pena de morte
contra alguns Estados latino-americanos e caribenhos no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos em comparação com os casos estadunidenses. A pesquisa é um
desdobramento das investigações sobre os Estados Unidos no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para estudos
sobre os Estados Unidos – INCT-INEU. Os resultados das análises dos casos que tem os
Estados Unidos como violador de Direitos Humanos no Sistema Interamericano de
Direitos Humanos permitiram identificar uma forte mobilização do ativismo em casos de
pena de morte. Entre os anos de 1970 até 2016, os casos de pena de morte representam o
percentual de 52,22% dos casos acolhidos pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos contra o país.
Em pesquisa posterior, a partir do estudo qualitativo e quantitativo dos documentos
oficiais produzidos pela CIDH e pela CtIDH publicados entre 1970 e 2015, foram
analisados o perfil das violações de direitos humanos de Barbados, Belize, Granada, Santa

640
Esse valor corresponde apenas aos relatórios de admissibilidade, inadmissibilidade e mérito,
desconsiderando, portanto, os relatórios de arquivamento.
641
Mestrando em Ciências Sociais; UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara; Bolsista CAPES;
Ricardo_maker@hotmail.com.
1335
Lúcia, Cuba, Bahamas, Costa Rica e Trinidad e Tobago, sendo possível identificar também
uma grande mobilização em torno da abolição da pena de morte por meio de denúncias
no SIDH contra os países Barbados, Granada, Bahamas e Trinidad e Tobago, bem como
casos de execução em Cuba. A fim de fazer uma análise comparativa desses países, o artigo
será dividido em 3 seções: O perfil dos casos de pena de morte nos Estados Unidos; o
perfil dos casos de pena de morte em Barbados, Belize, Granada, Santa Lúcia, Cuba,
Bahamas, Costa Rica e Trinidad e Tobago; além da Conclusão.

O PERFIL DOS CASOS DE PENA DE MORTE NOS ESTADOS UNIDOS

Apesar de os Estados Unidos não terem ratificado a Convenção Americana e não


aceitarem a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por ser um
Estado membro da OEA, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos possui
prerrogativa para analisar petições e emitir relatórios sobre violações de direitos humanos
no país. No período entre 2006 e 2012, foram recebidas na CIDH 562 petições contra os
Estados Unidos. Já no período compreendido entre as décadas de 1970 e 2010, foram
processados, das petições recebidas, 67 relatórios de admissibilidade, de mérito, de
inadmissibilidade e de arquivamento, em que 37 (55,22%) são categorizados como “pena
de morte” e 30 (44,78%) e possuem outros temas de denúncias (MAIA; LIMA, 2017 no
prelo).

1336
TABELA 1 – TEMA DAS DENÚNCIAS

Fonte: MAIA; LIMA, 2017 (no prelo).

Os demais temas são bem menos representativos do conjunto das denúncias. O


segundo tema que mais aparece é o da imigração (13.43%). Em terceiro lugar, empatados
com 5,97% das denúncias estão ações de intervenções externas dos Estados Unidos e
prisões irregulares por agentes do Estado efetuadas fora do território. As outras denúncias
têm uma representação bem menor como pode ser visto na tabela acima (MAIA; LIMA,
2017, no prelo).
Maciel (2017 no prelo) analisou que o perfil de ativismo nas petições contra os
Estados Unidos, submetidas à CIDH é constituído principalmente por organizações com
competência jurídica. Foram identificados 128 denunciantes, sendo que 48,44% são
clínicas de direitos humanos: Faculdades de Direito correspondem a 17,97%; escritórios
de advocacia pro Bono, 11,72%; e associações de profissionais do direito e serviços de
assistência judiciária e legal representam 5,47% (MACIEL, 2017).
Não obstante, é notável também, especialmente nos casos de pena de morte, o
apoio de funcionários estatais à causa de direitos humanos. Cerca de 13,28% do total de
denunciantes são procuradores e defensores públicos ligados ao sistema de Justiça; e cerca
de 20,31% dos peticionários são organizações especializadas em direitos humanos e
ressalta-se aquelas voltadas para a litigação internacional: (a) Grupos domésticos

1337
tradicionais de direitos civis (American Civil Liberties Union – ACLU e a Nacional
Association for the Advancement of Colored People – NAACP); (b) Grupos formados por
advogados (Lawyers Commitee for Human Rights e o International Human Rights Law
Group); (c) Grupos transnacionais (Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL)
(MACIEL, 2017, no prelo).
Organizações como American Civil Liberties Union (ACLU) e a Nacional
Association for the Advancement of CoLored People (NAACP), que foram pioneiras na
litigação nas cortes nacionais com base na Carta da ONU (1945) e a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948), bem como o núcleo majoritário de organizações civis nas
petições, foram fomentados no pós-guerra. Na década de 1970, houve uma consolidação
nacional do movimento de abolição da pena de morte que, nas décadas seguintes,
contribuiu para o aumento das mobilizações em prol de direitos civis e humanos nos
âmbitos doméstico e internacional (MACIEL, 2017, no prelo).
Além da extrema relevância das Faculdades de Direito por estarem entre os
principais peticionários, elas também desempenharam um papel fundamental na formação
da rede doméstica de ativismo, por meio da promoção de cursos e seminários de
treinamento de quadros para os novos escritórios de advocacia de direito público (public
interest law firms) e organizações de assistência legal, e por meio do estabelecimento de
clínicas universitárias de direitos humanos, além de programas de estágio curricular para
estudantes em organizações não governamentais peticionárias na ONU (MACIEL, 2017,
no prelo).
É evidente que os Estados Unidos têm evitado ratificar tratados que limitem o uso
da pena de morte e desconsideram as interpretações de órgãos internacionais que podem
sugerir mudança na aplicação da mesma. Visto que os Estados Unidos fizeram uma ressalva
no artigo 6 ao ratificar o Pacto dos Direitos Civis e Políticos – evidenciando que a pena de
morte poderia ser aplicada a todos, exceto às mulheres grávidas – não ratificou a
Convenção sobre os Direitos das Crianças e o Protocolo sobre abolir a pena de morte não
foi assinado, a Declaração Americana foi o instrumento mais utilizado nas petições sobre
pena de morte, totalizando em 58,26% do total de instrumentos usados para justificar a
normativa (MACIEL, 2017, no prelo).
Sobre o cumprimento das recomendações da CIDH sobre esses casos, os Estados
Unidos invariavelmente rechaçam as determinações do órgão. De outro lado é possível
identificar o abrandamento do uso da pena de morte para algumas situações avaliadas pela
CIDH. Na esteira das denúncias sobre a condenação à pena de morte de imigrantes que

1338
não tiveram assistência consular em seus julgamentos, o país adotou medidas de
sensibilização e orientação das polícias e órgãos judiciais para a garantia desse direito.
Também ocorreram mudanças legislativas no sentido da pena de morte para pessoas com
transtornos mentais e para crianças (MACIEL; KOERNER; MAIA, 2012).

O PERFIL DOS CASOS DE PENA DE MORTE EM BARBADOS, BELIZE, GRANADA,


SANTA LÚCIA, CUBA, BAHAMAS, COSTA RICA E TRINIDAD E TOBAGO

A metodologia utilizada na pesquisa consiste em uma pesquisa empírica, a partir


do estudo qualitativo e quantitativo dos documentos oficiais produzidos pela Corte e
Comissão Interamericana de Direitos Humanos referentes a casos de violação de direitos
humanos. Os casos foram contabilizados em uma base de dados do Núcleo de Pesquisa e
Estudos em Direitos Humanos (NUPEDH) do Instituto de Economia e Relações
Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (IERIUFU). Foram analisados
relatórios de denúncias da CtIDH e CIDH, publicados entre 1970 e 2015, de Barbados,
Belize, Granada, Santa Lúcia, Cuba, Bahamas, Costa Rica e Trinidad e Tobago,
comparando, dessa forma, as denúncias sobre pena de morte nos países em questão com
o caso estadunidense, vide tabela 2.

TABELA 2 – QUANTIDADE DE CASOS DE PENA DE MORTE NOS PAÍSES

Quantidade de casos de pena Porcentagem


de morte

Estados Unidos 37 55,22%

Trinidad e Tobago 18 72%

Bahamas 7 77,77%

Barbados 2 66,6%

Granada 3 42,85%

Belize 0 0%

Santa Lúcia 0 0%

Costa Rica 0 0%
Cuba 0 0%
Fonte: Elaboração própria com base nos dados disponibilizados pela CIDH

Identificamos que Estados Unidos, Trinidad e Tobago, Bahamas, Barbados e


Granada tem um percentual alto referente ao total de casos acolhidos pela CIDH

1339
relacionados à pena de morte. Em um total de 67 casos, 37 denúncias acolhidas contra os
Estados Unidos são de pena de morte. No caso de Trinidad e Tobago a relação é de um
total de 25 casos, dos quais 18 são referentes à pena de morte. A situação de Bahamas
apresenta um total de 9 casos e 7 casos de pena de morte. Sobre Barbados registramos 3
casos contra o país dos quais 2 são de pena de morte. Por sua vez, para Granada foram
registrados 7 casos dos quais 3 são de pena de morte.

BARBADOS

O país caribenho ingressou ao Sistema Interamericano em 1967, assinou a


Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 20 de junho de 1978 e a ratificou em
05 de novembro de 1981. No período entre 2006 e 2016642, a CIDH recebeu 15 petições.
No período de 1970 a 2015, foram processadas 3 petições, sendo publicados 2 relatórios
de admissibilidade (Caso 12.480 - Boyce e outros vs. Barbados e P1460-06 – Dacosta
Cadogan vs. Barbado) e 1 relatório de arquivamento (P444-99). Além disso, foram
disponibilizados dois relatórios da CtIDH.
Dos casos submetidos à Comissão, 66,6% correspondem à pena de morte e 33,3%
a tortura e/ou tratamento desumano e degradante (decorrente de prisão irregular).
Enquanto a denúncia referente à tortura e/ou tratamento desumano e degradante (P444-
99) teve como peticionário a Embaixada da Colômbia em Bridgetown, os dois casos de
pena de morte tiveram como peticionários o escritório de advocacia de Londres, Simone,
Muirhead & Burton (Caso 12.480 - Boyce e outros vs. Barbados), e o escritório de
advocacia Inn Chambers (P1460-06 - Dacosta Cadogan vs. Barbados).
Os relatórios disponibilizados pela CtIDH dizem respeito aos casos de pena de
morte supracitado. No caso Boyce e outros vs. Barbados, a Corte definiu que o Estado
violou os direitos da vítima garantidos nos artigos 1.1, 4.1, 4.2, 5.1, 5.2 e 25.1 da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos. E impôs uma sentença que consiste em comutar a
pena de morte da vítima, adotar medidas legislativas ou de outra natureza para garantir que
a pena de morte não seja imposta de modo que viole os direitos humanos e liberdades
garantidos pela Convenção, garantir que as leis internas estejam de acordo com a
Convenção, além de assegurar que as condições de detenção sejam coerentes com as

642
Este trabalho é resultado do desenvolvimento de um projeto de Mestrado dentro do programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da UNESP – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, com
contribuições a partir das discussões realizadas na disciplina “Seminário de Pesquisa I”, em que o projeto de
mestrado foi discutido.
1340
exigências impostas pela Convenção Americana, substituir as medidas provisórias do caso
e fazer o pagamento de reembolso de despesas.
No caso Dacosta Cadogan vs. Barbados, a Corte estabeleceu que o Estado violou
os direitos da vítima garantidos nos artigos 1.1, 4.1, 4.2, 5.1, 5.2, 8.1, 8.2.c, 8.2.f e 25.1 da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, impondo uma sentença que consiste em
adotar medidas legislativas e de outra natureza para garantir que a Constituição e Leis
internas se adequem a Convenção Americana, garantir que todas as pessoas sentenciadas
a pena de morte sejam informadas e tenham direito à avaliação psiquiatra disponibilizada
pelo Estado, a pena de morte não deve ser levada adiante e deve ser realizada uma nova
audiência para definir a pena adequada à vítima, além de pagar o montante fixado para
reembolso de custos e despesas da vítima.
Em ambos os casos, a CtIDH relatou que o Estado cumpriu plenamente com o
pagamento de reembolso de custos e despesas da vítima cumpriu parcialmente as outras
medidas da sentença.

GRANADA

Granada ingressou ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos em 1975,


assinou e ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 17 de julho de
1978. O país recebeu 2 petições no período compreendido entre 2006 e 2016, contudo,
no que abrange 1970-2015, foram processados 7 casos e publicados 10 relatórios (de
admissibilidade, de arquivamento e de mérito).
Os temas relacionados às violações são: (a) Pena de morte (aproximadamente
42,85%); (b) Tortura e/ou tratamento desumano e degradante (aproximadamente 14,28%);
(c) Apreensão de passaporte (aproximadamente 14,28%); (d) Violação da liberdade de
pensamento e expressão (aproximadamente 14,28%); (e) Violação do devido processo legal
e das garantias judiciais (aproximadamente 14,28%).
Ao analisar o perfil dos peticionários, nota-se que as 3 petições (Casos 11.743,
12.028 e 12.158) sobre pena de morte foram feitas pelo escritório de advocacia de Londres,
Simons, Muirhead & Burton, bem como a petição sobre violação do devido processo legal
e das garantias judiciais (Caso 11.765). Em relação aos outros casos, nota-se que os
peticionários são pessoas físicas ou não consta a informação no relatório.

1341
BAHAMAS

Embora Bahamas não tenha assinado a Convenção Americana, o país integrou o


Sistema Interamericano de Direitos Humanos em 1982. Nos últimos 10 anos (2006-2016),
foram recebidas 7 petições pela CIDH. No que tange o período de 1970 a 2015, foram
divulgadas no sítio da Comissão 11 relatórios – sendo eles de admissibilidade, de
inadmissibilidade e de arquivamento – pertinente a 9 denúncias de violação de direitos
humanos contra o Estado categorizados como: (a) Pena de morte (77,77%); (b) Tortura
e/ou tratamento desumano e degradante (11,11%); (c) Migração, refugiados e apátridas
(11,11%).
Em relação ao perfil dos denunciantes contra Bahamas de forma geral,
aproximadamente 88,88% dos denunciantes são escritórios de advocacia de Londres,
sendo eles: McKenna & Co., Burton Copeland, Cameron McKenna, Lovell White Durant
e Arnold and Porter, e cerca de 11,11% são organizações: Centro pela Justiça e o Direito
Internacional (CEJIL) e Open Society Institute. Dessa forma, as organizações são
responsáveis pela petição referente à migração, refugiados e apátridas; e os escritórios de
advocacia de Londres, pelas outras denúncias, inclusive dos casos de pena de morte.

TRINIDAD E TOBAGO

Trinidad e Tobago integrou o SIDH em 1967, não assinou a Convenção


Americana, mas a ratificou em 03 de abril de 1991 e posteriormente a denunciou no dia
26 de maio de 1998. Nos últimos anos (2006-2016), foram recebidas 8 petições pela
CIDH. Nessa pesquisa, foram analisados os 25 casos e 29 (de admissibilidade, de
inadmissibilidade, de mérito e de arquivamento) relatórios divulgados pela Comissão
datados entre 1970 a 2015.
Os principais temas de denúncias identificados em Trinidad e Tobago são: (a) Pena
de morte (72%); (b) Tortura e/ou tratamento desumano e degradante (20%); (c) Violação
do devido processo legal (8%). É importante ressaltar que uma das denúncias de “tortura
e/ou tratamento desumano e degradante”, o caso 12.269, é decorrente da comutação de
uma pena de morte para uma sentença de 75 anos de trabalho forçado.
É notável que o perfil dos denunciantes é composto majoritariamente por
escritórios de advocacia de Londres, compondo 92% dos casos, destacando: Simmons &
Simmons; Herbert Smith; Slaughter and May; S. Rutter y Co.; Mishcon de Reya Solicitors;

1342
Collyer & Bristow; Lovell, White, Durrant; Reynolds Porter Chamberlain Abogados;
Simons Muirhead & Burton; Oury Clark; Ashurst Morris Crisp; Russell, Jones y Walker.
Ademais, 4% corresponde a organizações (como a INTERIGHTS) e 4% pessoas físicas
(como Saul Lehrfreund, membro do The Death Penalty Project).
Todos os casos de pena de morte foram peticionados por firmas de advocacia londrina,
exceto a petição 11.718, que foi feita por Saul Lehrfreund, enquanto a INTERIGHTS foi
responsável pela petição de tema “tortura e/ou tratamento desumano e degradante”
(Petição 12.187). Além disso, a CtIDH divulgou em seu sítio 25 relatórios – referentes a
Mérito, reparação e custos; cumprimento de sentença; e medida provisória – e todos eles
dizem respeito às sentenças de pena de morte impostas pelo Estado.

BELIZE, SANTA LÚCIA, CUBA E COSTA RICA

Belize integrou o SIDH em 1991, no entanto, não assinou a Convenção Americana


sobre Direitos Humanos. No período entre 2006 e 2016, a CIDH recebeu 3 petições
contra o Estado, sendo que 2 delas foram processadas e foram publicados 3 relatórios,
sendo 2 de admissibilidade (Caso 12.053 e P.633-04) e 1 de mérito (Caso 12.053). O tema
da denúncia contra Belize em ambos os casos é violação do direito à propriedade privada.
Santa Lúcia incorporou no Sistema Interamericana de Direitos Humanos em 1979
e, assim como Belize, não assinou a Convenção Americana. A Comissão recebeu apenas
1 petição entre 2006-2016, no entanto, só há 1 caso analisado e publicado pela CIDH, em
que a petição é datada de 1997. O tema da denúncia diz respeito à violação do direito à de
liberdade de pensamento e expressão.
Apesar de também não possuir casos de pena de morte em Cuba, é válido ressaltar
que dentre as petições contra o Estado encontra-se denúncias de execução. Apesar da
revogação da resolução que excluía a participação do Governo de Cuba no SIDH ter
acontecido apenas em 2009, no período entre 2006 e 2016, a CIDH recebeu 56 petições643
denunciando violações de direitos humanos por parte de Cuba. Foram analisados 30 casos
publicados – referentes a aproximadamente 40 relatórios de admissibilidade, de
inadmissibilidade, de mérito e de arquivamento – que compreende o período de 1970 a
2015.


Grifo nosso

1343
Os principais temas de denúncias contra Cuba foram: (a) Tortura e/ou tratamento
desumano e degradante (40%); (b) Violação do devido processo legal (16,66%); (c)
Detenção irregular (10%); (d) Violação do direito de residência e trânsito (10%); (e)
Detenção arbitrária (6,66%); (f) Execução (6,66%); (g) Perseguição, morte e abandono
vindos do governo (3,33%); (h) Violação do direito à vida (morte) e o direito à justiça
(3,33%); (i) Detenção ilegal (3,33%).
Quanto ao perfil dos denunciantes, essa informação não consta em 86,66% dos
relatórios, pessoas físicas abrangem 6,66% e organizações (Comité Cubano Pro Derechos
Humanos, Grupo de Trabajo de Disidencia Interna, Cuban American Bar Association e
Directorio Democrático Cubano) englobam 6,66% dos relatórios. Os dois casos de
execução são coletivos, ou seja, envolvem mais de uma vítima e estão relacionados à
políticos.
Costa Rica, por outro lado, ingressou no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos em 1889, assinou a Convenção Americana em 22 de novembro de 1969 e
ratificou a mesma em 02 de março de 1970. Entre 2006 e 2016, a Comissão recebeu 681
petições denunciando violações de direitos humanos por parte do Estado. Já entre 1970 e
2015, a Comissão divulgou 42 relatórios (de admissibilidade, de inadmissibilidade, de
mérito e de arquivamento) e CtIDH 19 relatórios (de Mérito, reparação e custos;
cumprimento de sentença; e medida provisória). Embora Costa Rica não apresente
denúncias sobre pena de morte, destaca-se violações como violação dos direitos e garantias
judiciais, migração e/ou deportação; tortura e/ou tratamento desumano e degradante e
proteção familiar.

CONCLUSÃO

Através do diagnóstico dos países da América Central e do Caribe apresentados


(Barbados, Belize, Granada, Santa Lúcia, Cuba, Bahamas, Costa Rica e Trinidad e
Tobago) é notável que quatro (Estados Unidos, Trinidad e Tobago, Bahamas e Barbados)
dos nove países discutidos apresentam mais de 50% das petições recebidas categorizadas
como pena de morte, enquanto Granada apresenta mais que 40% e Belize, Santa Lúcia,
Costa Rica e Cuba não apresentam nenhuma, embora exista duas denúncias contra Cuba
categorizadas como execução.
Foi possível perceber também o ativismo das organizações com competência
jurídica no SIDH sobre a pena de morte, tanto nos Estados Unidos, onde é presente

1344
Faculdades de Direito, escritórios de advocacia pro Bono e associações de profissionais do
direito e assistência judiciária e legal, quanto nos países centro-americanos e caribenhos,
onde é presente predominantemente escritórios de advocacia de Londres.
A presente pesquisa apresentou os resultados preliminares de uma análise
qualitativa e quantitativa dos casos de violação de direitos humanos publicados pela
Comissão e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pretende-se ampliar a
pesquisa e analisar o perfil de todos os países centro-americanos e caribenhos e, assim,
explorar a presença britânica nesses países, bem como entender a ausência de grandes
organizações especializadas em direitos humanos como a Anistia Internacional, Human
Rights Watch, entre outros. Ainda, almeja-se avançar na discussão sobre as redes de
ativismo sobre a pena de morte no Sistema Interamericano de Direitos Humanos.

REFERÊNCIAS

CORTE IDH. Historia de la Corte IDH. 2017. Disponível em:


<http://www.corteidh.or.cr/index.php/es/acerca-de/historia-de-la-corteidh>. Acesso em: 12
de set. 2017.

CORTE IDH. Mapa interactivo. 2017. Disponível em:


<http://www.corteidh.or.cr/index.php/en/mapa-interactivo>. Acesso em: 12 set. 2017.

FERREIRA, Marrielle Maia Alves; ROMANZINI, Isabela Gerbelli Garbin. O Sistema


Interamericano de Direitos Humanos na Promoção da Justiça de Transição nos Estados
Sulamericanos. X Encontro da ABCP, Belo Horizonte, p. 4-7, 2016.

FERREIRA, Marrielle Maia Alves; KOERNER, Andrei; MACIEL, Débora Alves. Os


Estados Unidos e os Mecanismos Regionais de Proteção dos Direitos Humanos. Lua
Nova, São Paulo, n. 90, 2013, p. 271-29

LIMA, Rodrigo Assis; MAIA, Marrielle. Denúncias de Violação de Direitos na CIDH


Contra Os Estados Unidos: Acolhimento, Processamento e Respostas às Petições. In: Os
Estados Unidos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos: denúncias,
interações, mobilizações. Funag. 2017. pg 42-58.

MACIEL, Débora Alves. Água mole em pedra dura... Direitos humanos, confronto
político e ativismo transnacional: O caso norte-americano. In: Os Estados Unidos e a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos: denúncias, interações, mobilizações.
Funag. 2017. pg 136-156.

OEA. Carta da Organização dos Estados Americanos, 2016. Disponível em:


<http://www.oas.org/dil/port/tratados_A-
41_Carta_da_Organiza%C3%A7%C3%A3o_dos_Estados_Americanos.htm>. Acesso em:
15 set. 2016.

1345
OEA. Estadisticas, 2016. Disponível em:
<http://www.oas.org/es/cidh/multimedia/estadisticas/estadisticas.html>. Acesso em: 17 set.
2016.

OEA. Estados Membros. 2017. Disponível em:


<http://www.oas.org/pt/estados_membros/estado_membro.asp?sCode=BAR>. Acesso
em: 13 set. de 2017.

OEA. Mandato e Funções. 2017. Disponível em:


<http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/funciones.asp>. Acesso em: 10 de set. 2017.

OEA. O que é a CIDH? 2016. Disponível em:


<http://www.oas.org/pt/cidh/mandato/que.asp>. Acesso em: 15 set. 2016.

1346
DIREITOS HUMANOS, SUBJETIVIDADE E PRÁTICAS POLÍTICAS:
REPRESENTAÇÕES DE DOENÇA MENTAL NO CENTRO DE
ATENÇÃO PSICOSSOCIAL EM ARARAQUARA

Luiz Ricardo de Souza PRADO644

Resumo: Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) se compõem, junto às residências


terapêuticas, enquanto principal estratégia da reforma psiquiátrica no Brasil. Com foco em um
atendimento integral, visa uma forma de tratamento que busca reintegrar seus usuários a seus
contextos de origem/existência, referidos pela categoria território. Para isso, procura mobilizar uma
diversidade de recursos e redes, de modo a incluir a rede de apoio – categoria nativa que se refere
àqueles que investem cuidado para seus usuários nos contextos extra-instituição, sendo estes
principalmente familiares – no tratamento. O presente trabalho constrói-se a partir de uma pesquisa
etnográfica realizada no CAPS II em Araraquara, procurando observar quais os efeitos da
participação dos familiares – em sua maioria, pertencentes às classes populares – nas práticas
terapêuticas e representações destes em relação aos usuários do CAPS II. Por meio dos estudos da
antropologia da saúde (como Paula Montero, Maria Andréa Loyola, Luiz Fernando Dias Duarte),
da teoria da mediação intercultural e das contribuições de Michel Foucault buscamos analisar os
processos de subjetivação que ocorrem, a partir da hipótese que a participação destas camadas da
população neste tipo de serviço permite a apropriação de um conjunto de práticas terapêuticas e
discursos sobre a doença mental ali veiculados.

Palavras-chave: CAPS. Doença Mental. Subjetivação.

INTRODUÇÃO

Procuro desenvolver neste trabalho645 uma análise sobre a influência dos Centros
de Atenção Psicossocial nas categorias de doença mental utilizadas por parte dos familiares
dos usuários destes mesmos centros, em especial os relativos ao CAPS II de Araraquara,
onde nos foi possível desenvolver o trabalho de campo durante a realização de uma
monografia sobre os grupos de familiares que eram ali realizados (PRADO, 2017). A
hipótese que norteou o trabalho foi de que haveria uma incorporação dos discursos e
práticas ali veiculados em relação à doença mental dentro dos sistemas de referência das
populações atendidas por esta instituição de saúde pública, havendo uma apropriação
específica das terapêuticas ali realizadas para suas formas de vida particulares. Procuro
realizar essa análise por meio dos estudos da antropologia da saúde com foco nas classes
populares como Paula Montero (1985), Maria Andréa Loyola (1984), Luis Fernando Dias


Grifo nosso.
645
Para a realização do trabalho de campo do projeto, já temos contato com a equipe do Centro de Atenção
Psicossocial de Araraquara, que se mostrou aberta para nos auxiliar nos procedimentos éticos e burocráticos
necessários à pesquisa. Além disso, contamos com um termo de Consentimento Livre e Esclarecido já
desenvolvido para utilização na pesquisa.
1347
Duarte (1986), das contribuições de Michel Focault (2000) sobre poder e subjetividade e
da teoria da mediação intercultural de Montero (2006). A partir do desenvolvimento destes
pontos, procuro discorrer sobre as possibilidades de produção de cidadania e autonomia
neste espaço, na análise das perspectivas éticas presentes nas práticas da equipe técnica da
instituição como nas práticas terapêuticas dos familiares.
Para isso, pretendo realizar uma breve discussão sobre as representações de saúde
das classes populares, e as relações destas com os sistemas oficiais de saúde. Ao final,
abordarei aquilo que pretendo realizar com o projeto, fazendo um balanço crítico do
produzido até aqui e dos desenvolvimentos futuros da pesquisa. Pretendo abordar na
última sessão parte da minha etnografia realizada durante o trabalho de monografia
(PRADO, 2017), e como o projeto ético-político que está na base das políticas públicas de
saúde mental contemporâneas no país é elaborado no CAPS II de Araraquara.

CENTROS DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL: DO HOSPITAL À ATENÇÃO NO


TERRITÓRIO

Inicialmente no Brasil os cuidados destinados aos portadores de transtornos


mentais eram restringidos à sua contenção em lugares como porões de Santas Casas ou
prisões, especialmente aqueles que manifestavam um comportamento agitado ou agressivo,
muitas vezes vindo a falecer devido às péssimas condições em que eram enclausurados
(RIBEIRO, 1999). A partir do século XIX, os portadores de transtornos mentais passam
a ser direcionados para hospitais psiquiátricos, que serão o modelo vigente até a reforma
psiquiátrica (MATEUS, 2013).
Segundo Mário Dinis Mateus (2013), a crítica aos clássicos hospitais psiquiátricos
ocorre por três motivos: um financeiro, em relação aos altos custos gerados por estes; um
clínico, sobre a incapacidade de resolução da doença pelos hospitais e a “cronificação
institucional” que sofriam os pacientes devido aos grandes períodos de internação; outro
ético, em que se via a prática do isolamento como desrespeito aos direitos civis e às
liberdades individuais.
Do desenvolvimento dessas críticas e da atividade política de alguns grupos ligados
aos serviços de saúde mental – como associações de usuário, de familiares e de
trabalhadores dos próprios serviços de saúde – se tem uma transformação no modelo de
atenção à saúde mental, de modo que:

1348
A mudança do modelo chamado hospitalocêntrico para o outro
nomeado comunitário (SZMUKLER; THORNICROFT, 2001) tornou-
se premissa básica no que se convenciona chamar reforma da assistência
psiquiátrica, cunhando-se o termo desinstitucionalização para as políticas
caracterizadas por: a) evitar admissões de casos novos em hospitais
psiquiátricos, através de alternativas de tratamento na comunidade; b)
devolver à comunidade todos os pacientes institucionalizados que
tenham recebido a adequada preparação para essa mudança; e c)
estabelecer e manter um sistema de suporte e reabilitação na
comunidade para as pessoas com transtornos mentais graves (MATEUS,
2013, p. 59).

Com a Lei nº 10.216, de 6 de abril de 2001 – resultado de um movimento conjunto


de associações de usuários de serviços de saúde mental, familiares e profissionais – são
garantidos direitos ao portador de transtorno mental, de modo a assegurar sua não
discriminação por sua condição de portador de transtorno mental grave. Assim, assegura
direitos aos usuários, como de acesso à saúde conforme suas necessidades, livre acesso
quanto às informações sobre sua condição, e garantias quanto à internação, sendo apenas
mobilizada enquanto último recurso terapêutico disponível. Aponta-se para uma mudança
nas práticas terapêuticas em relação ao portador de transtorno mental, de modo que o foco
se dá não mais em um tratamento voltado para a condição biomédica da loucura, mas
enquanto sujeito biopsicossocial, visando sua reintegração ao meio social que pertence,
explicitado no Artº4, §º1: “O tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção
social do paciente em seu meio” (BRASIL, 2001). Neste processo, a participação dos
familiares e o relacionamento do usuário com seu contexto social de existência toma
importância, como está presente no artigo 3º da lei 10.216:

Art. 3º: É responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de


saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos
portadores de transtornos mentais, com a devida participação da
sociedade e da família, a qual será prestada em estabelecimento de saúde
mental, assim entendidas as instituições ou unidades que ofereçam
assistência em saúde aos portadores de transtornos mentais (BRASIL,
2001).

Esse conjunto de mudanças resultará nas transformações das políticas públicas de


saúde mental, que se direcionam para duas formas institucionais: os Centros de Atenção
Psicossocial (CAPS) e as residências terapêuticas.

1349
Os CAPS iniciam de forma experimental de 1987 a 1991, como serviços ligados a
iniciativas políticas sensibilizadas pela reforma psiquiátrica. De 1991 até 2002, começam a
surgir repasses financeiros às secretarias que implantassem serviços de tratamento
psiquiátricos alternativos aos hospitais, como os CAPS, Núcleos de Atenção Psicossocial
ou hospitais dias. Somente a partir da portaria nº 336, de 2002, inicia-se a chamada terceira
fase, que é a formalização do CAPS enquanto peça chave na montagem da rede de
assistência, configurado como serviço ambulatorial de atenção diária que funcione segundo
a lógica do território. Podem ser classificados de três formas, em CAPS I, CAPS II ou
CAPS III, podendo o CAPS II também ser direcionado para populações específicas como
crianças – CAPSi – e pessoas com problemas ligados ao uso de drogas e álcool – CAPSad
(MATEUS, 2013), da forma que “as três modalidades de serviços cumprem a mesma
função no atendimento público em saúde mental, devendo estar capacitadas para realizar
prioritariamente o atendimento de pacientes com transtornos mentais graves e
persistentes”(MATEUS, 2013, p. 141).
Enquanto política pública de saúde, os CAPS646 se compõem como uma tentativa
de desinstitucionalização do atendimento psiquiátrico às assim chamadas doenças mentais,
procurando realizar o tratamento ambulatorial e integral aos portadores de transtornos
psíquicos, evitando sua internação por longos períodos de tempo. Deste modo, sua equipe
técnica compõe-se de uma diversidade de especialistas da saúde, como psicólogos,
psiquiatras, terapeutas ocupacionais, farmacêuticos e assistentes sociais, voltados a uma
ação direcionada para o usuário deste tipo de serviço de saúde mental que proporcione
sua reinserção social.
Segundo o documento “Saúde Mental no SUS: Os Centros de Atenção
Psicossocial” (BRASIL, 2004), os CAPS são definidos como:

[...] instituições destinadas a acolher os pacientes com transtornos


mentais, estimular sua integração social e familiar, apoiá-los em suas
iniciativas de busca da autonomia, oferecer-lhes atendimento médico e
psicológico. Sua característica principal é buscar integrá-los a um
ambiente social e cultural concreto, designado como seu “território”, o
espaço da cidade onde se desenvolve a vida quotidiana de usuários e
familiares. Os CAPS constituem a principal estratégia do processo de
reforma psiquiátrica (BRASIL, 2004, p. 09).


Grifo nosso

1350
O CAPS se coloca como uma instituição principal dentro das políticas de saúde
contemporâneas, uma vez que tenta adquirir centralidade sobre os modos contemporâneos
de tratamento das diversas formas de sofrimento e transtorno psíquico. Opera a partir de
uma ideia de rede com a articulação em diversas instâncias como o Programa Saúde da
Família, Hospitais Gerais e Atenção Básica em Saúde, de modo que:

Para constituir essa rede, todos os recursos afetivos (relações pessoais,


familiares, amigos etc.), sanitários (serviços de saúde), sociais (moradia,
trabalho, escola, esporte etc.), econômicos (dinheiro, previdência etc.),
culturais, religiosos e de lazer estão convocados para potencializar as
equipes de saúde nos esforços de cuidado e reabilitação psicossocial
(BRASIL, 2004, p. 11).

Para além do modelo manicomial, o CAPS foca-se em constituir uma atenção diária
a seus pacientes portadores de transtornos mentais graves, de modo que a condução do
processo terapêutico também os reabilite para a inclusão social, fortalecendo vínculos com
o grupo familiar e com sua comunidade. Assim, para além das diversas formas de
tratamento oferecidas (terapias psicológicas, medicação, consultas com psiquiatras), a
instituição também promove grupos de familiares e grupos de pacientes, com o intuito de
aproximar os familiares do tratamento e transmitir conhecimento sobre os transtornos
emocionais e psíquicos.
Dentre suas obrigações, além de oferecer terapias aos usuários diretos de seu
serviço, tem também foco em atender a família dos usuários e reinseri-los em seus
contextos sociais, como é colocado nos itens e e f do Artigo 4.4 da portaria nº 336, de 19
de fevereiro de 2002, que estabelece as competências do CAPS, nesse caso em especial as
do CAPS II:

Artigo 4.2.1 - A assistência prestada ao paciente no CAPS II inclui as


seguintes atividades:
a - atendimento individual (medicamentoso, psicoterápico, de
orientação, entre outros);
b - atendimento em grupos (psicoterapia, grupo operativo, atividades de
suporte social, entre outras);
c - atendimento em oficinas terapêuticas executadas por profissional de
nível superior ou nível médio;
d - visitas domiciliares;
e - atendimento à família;
f - atividades comunitárias enfocando a integração do doente mental na
comunidade e sua inserção familiar e social;

1351
g - os pacientes assistidos em um turno (04 horas) receberão uma refeição
diária: os assistidos em dois turnos (08 horas) receberão duas refeições
diárias (BRASIL, 2002) .

O CAPS nos aparece como importante espaço de análise no momento em que se


coloca como uma das principais instituições na reforma psiquiátrica brasileira, tendo papel
atuante não apenas no campo da saúde como também no processo de educação da
sociedade em geral e dos próprios servidores da atenção básica em saúde para com
questões de saúde e doença mental, na forma da organização de eventos e simpósios sobre
o tema. A instituição procura familiarizar parte da população com suas terapêuticas, de
modo a incorporar para seus tratamentos setores da população que possam vir a ter certa
distância das práticas terapêuticas oficiais, o que é especialmente pertinente quanto às
classes populares, uma vez que as relações entre classes populares e medicina, muitas vezes
se colocava na forma de antagonismo ou resistência, sendo que a abordagem psicossocial
desta instituição de saúde procura inculcar - dada à própria necessidade de sua forma de
trabalho e operação - suas categorias de doença e saúde metal, ou seja, produzir uma maior
incorporação dos conceitos e categorias da medicina oficial.

AS CLASSES POPULARES E A MEDICINA OFICIAL NO BRASIL

Entendemos aqui por classes populares a parte da população brasileira que mesmo
heterogênea quanto a sua inserção no processo produtivo, preferências religiosas e
tradições regionais, mostra-se homogeneizada em sua condição de vida, pobreza e
exclusões relativas, o que as leva a desenvolver um conjunto de práticas cotidianas – que
são culturais, no sentido antropológico do termo - que perpassam esse segmento social,
como aponta Alba Zaluar (2001) e também Montero (1985), ao abordar que esse segmento
da sociedade constitui-se essencialmente por sua exclusão dos meios de produção e dos
instrumentos de apropriação simbólica transmitidos principalmente no ensino escolar.
Como diz Duarte (1986), essa parte da população constitui-se especificamente pela
presença de valores como primazia do núcleo familiar, valorização do mundo do trabalho
e forte ligação com a localidade de existência.
Mesmo que alguns autores percebam que atualmente existem certas relações de
força e hegemonia dos modelos terapêuticos médicos-científicos – enquanto modelos que
seriam considerados as formas de terapêuticas corretas, em que se deve fazer alguma
referência a sua incapacidade ou ineficácia ante a determinados problemas de saúde para

1352
dar legitimidade às práticas de saúde que não estão/não são reconhecidas pelos sistemas
oficias de saúde – para com as classes populares, essa relação não se deu assim desde o
surgimento da medicina oficial no país, como aponta Montero (1985). Segundo a autora,
a medicina científica tem grandes dificuldades para se instaurar no país principalmente até
o final do século XIX e início do século XX, havendo a primazia de serviços terapêuticos
criados pelas camadas populares da sociedade, com o uso de curas e remédios religiosos e
que se utilizam saberes do campo. De início, o campo da saúde estava dominado por
saberes e práticas camponeses e rurais, como a profusão de ervas, usos de chás, havendo
até mesmo dificuldade por aqueles formados em escolas de médicas europeias de
exercerem a profissão por aqui (MONTERO, 1985). Deste modo, havendo um número
restrito de moléstias, as quais estavam ligadas à rotina da vida cotidiana e tinham eficácia
suficiente para o combate dos males recorrentes, as terapêuticas populares e mágico-
religiosas resguardavam sua hegemonia frente a um pensamento médico que vinha da
Europa. A medicina científica só irá ganhar força com o advento das vacinas, com a
diversificação das morbidades que surgem devido aos problemas urbanos e da
incapacidade de resposta dos métodos tradicionais de cura e tratamento para resolver os
novos problemas de saúde. Assim, abre-se um espaço para a concorrência entre medicina
científica e as formas de terapêuticas populares que com o tempo (e sua criminalização
como curandeirismo) serão suplantadas.
O processo saúde-doença não pode ser separado das condicionantes históricos e
sociais que o afetam, da forma que a relação entre saúde e sociedade se estabelece de como
cada grupo social faz da sua classificação de normal e patológico, selecionando aquilo que
pode ser encarado como doentio ou não. Desta forma, categorias específicas são
mobilizadas para que seja possível curar aquilo que é visto como doença. Assim, como nos
diz Paula Montero:

Autores como Canguilhem, Foucault e Boltanksi, na França, e Guilon,


Loyola, Madel Luz e Guimarães, no Brasil, tem tentado demonstrar que
o ‘estar doente’ por um lado, e os sistemas de cura, por outro, não
consistem simplesmente em uma ação técnica e objetiva sobre um
complexo biofisiológico, mas consubstanciam, ao contrário, uma
realidade mais complexa que as representações simbólicas, a organização
social e a lógica dos interesses econômicos determinam, para além do
biológico, os limites, o modo de aparecer do fenômeno mórbido e os
meios escolhidos para a cura (MONTERO, 1985, p. 65).

1353
Doença pode ser algo que está para além das formas apreendidas pela medicina
oficial, como diz Marina Cardoso que “os fenômenos mórbidos podem inserir-se em um
campo de significações extremamente amplo e qualitativamente diferente do da medicina”
(CARDOSO, 1999, p. 204).
Maria Cecília Minayo (2006), ao abordar os processos adoecimento, afirma que
doença, saúde e morte não se reduzem a uma evidência orgânica, natural e objetiva, mas a
forma pela qual é vivenciada pela pessoa doente e pelos grupos sociais está intimamente
ligada às formas de organização social e cultural de cada sociedade. Logo, o doente é
também um personagem social, sua experiência e a experiência do grupo em relação aos
parâmetros que contribuem para a construção da doença enquanto realidade objetiva.
Desse modo, os processos de saúde e doença não estariam isentos dos modos de produção,
das desigualdades sociais e as redes de apoio nas quais estes sujeitos se encontram
presentes.
Foucault (1972) demonstra como o processo de transformação da loucura em
doença mental ocorre no decorrer da história do Ocidente, passando de uma visão na era
clássica da loucura entendida como processo humano e erro, até o período de surgimento
da sociedade moderna, no qual ela se torna problema social e vai à prisão, junto a outras
categorias de socialmente perigosos. Com o avanço de um racionalismo o qual pode
colocar a razão como imperativo humano, se teve as condições segundo as quais loucura
pode vir a ser doença, possibilitando sua apreensão enquanto fenômeno patológico pelas
ciências médicas.
Como observado por Montero (1985), Loyola (1984) e Helaysa Kurtz Gressler
(2014), os distintos grupos sociais produzem concepções de saúde e doença com bases em
referenciais próprios, levando a terapêuticas alternativas e complementares às da medicina
oficial. As três autoras (as duas primeiras, mais profundamente), em pesquisas que
perpassam a relação entre religião e serviços de saúde (no caso de Pires, entre umbanda e
depressão, mais especificamente), notam a necessidade de indivíduos, que muitas vezes
não são plenamente atendidos pela medicina oficial, recorrerem a terapias mágicas e
religiosas, com o intuito de conseguir cura. É possível perceber, a partir desses estudos, o
quanto o sistema religioso é capaz de fornecer uma organização da experiência do
sofrimento psíquico, a qual permite lidar com este mesmo sofrimento. Assim, os processos
patológicos ganham possibilidade de interpretação dentro de um esquema próprio da
umbanda (a oposição dialética entre mundo espiritual e mundo material, estabelecendo
uma superioridade do polo espiritual, que vem a condicionar o material) de modo a serem

1354
solucionados dentro desse mesmo esquema interpretativo, ou seja, é concedida uma
linguagem própria a qual permite que o indivíduo interprete e repense esta experiência.
Ainda assim, não se pode afirmar que as questões de bem-estar “psicológico”
apareçam apenas em uma realidade social onde já existe uma ciência médica apta a
apreender fenômenos mórbidos desta forma. Como havia observado Cardoso (1999), as
representações sobre os transtornos e desajustamentos psíquicos e emocionais também
aparecem na fala de seus entrevistados em Itamarandiba/MG, em formas específicas como
“doenças da cabeça” e “doença dos nervos”, dentro de uma forma específica de apreensão
do corpo (um sistema de oposição de forte e fraco, quente e frio) e da saúde. No caso
estudado pela autora, com um processo de migração dessa população de antiga condição
rural para uma nova situação urbana, iniciou-se um processo de diálogo entre os sistemas
médico público daquela cidade e estas mesmas representações e formas, as quais se tornam
passíveis de serem medicalizadas através de instrumentos da medicina científica com a
inclusão das formas de assistência psiquiátrica à comunidade. Deste modo, não se pode
pensar que as questões referentes ao que seria uma “saúde” e “doença mental” apenas
surjam em um contexto onde a medicina psiquiátrica e a psicologia estejam instaladas, mas
sim que estas duas são capazes de dialogar e transformar formas pré-existentes de se pensar
estes problemas, como as pessoas “ruins de cabeça” ou aqueles que têm “problemas de
nervos”, cada vez mais medicalizadas (CARDOSO, 1999).
As questões de saúde e doença mental, como já abordamos, estão vinculadas a um
contexto histórico e social específico. Como percebe Loyola (1984), cada classe social
produz suas representações de corpo e saúde a partir de seu habitus e lugar próprio no
plano do espaço social, ou seja, as representações e práticas sobre saúde não estão isentas
dos elementos do poder, principalmente em sua necessidade de serem reconhecidas
enquanto formas legítimas de cura/tratamento frente ao problema da saúde ou da doença.
Deste modo, ao lidar com as formas populares647 de cura, surgia uma constante a referência
à medicina oficial, seja para se colocar em uma posição complementar (“até os médicos
reconhecem”), seja até mesmo para se colocar em relação de oposição à medicina oficial
(“nem mesmo os médicos conseguiram resolver”). Assim, as representações sobre o
normal e o patológico não ficam isentas dos efeitos das relações de poder entre grupos

Ao utilizar o termo terapias populares estamos fazendo referência às práticas terapêuticas fora dos circuitos
647

oficiais da medicina – como benzimentos, garrafadas, rezas-, que, pelo menos na bibliografia, mostravam
amplamente presentes no meio urbano, principalmente nos grupos mais marginalizados e com menos acesso
aos sistemas oficiais de saúde, seja por motivos geográficos, econômicos ou até mesmo culturais. Assim, não
propomos uma dicotomia entre “medicina oficial” x “terapêutica popular”, mas uma análise sobre como as
práticas terapêuticas de cada grupo social irá se inserir
1355dentro de seus sistemas locais de saúde.
sociais – ainda que não se reduzam apenas a este aspecto-, o que permite que as práticas
médicas dentro do sistema oficial de saúde se coloquem em hegemonia frente a práticas
populares de cura e tratamento.
Pois então, o habitus, para Bourdieu, é conceitualizado como estrutura
disposicional, estruturando as práticas e representações dos agentes sem, contudo,
determiná-las. Incorporado a partir de uma experiência social específica, o habitus tem um
caráter principalmente coletivo, e responde a um modo de ser, agir e pensar de um grupo
social. Para refletir sobre nossa problemática, o habitus pode ser entendido enquanto
conceito chave para pensar como um grupo a partir de sua experiência social específica
cria representações e práticas sobre corpo, mente, saúde e doença em afinidades com suas
condições concretas de existência. Logo, as representações sobre mente e saúde mental
produzidas por um grupo social a partir de sua experiência específica – as classes populares
em comparação com as classes médias urbanas, por exemplo - remetem a seu modo de
existência, da forma que suas concepções de saúde – devido a particularidade das
condições matérias e políticas de produção dessas representações – muitas vezes diferem
das formuladas pelos agentes da medicina científica. Deste modo, o conceito de práticas –
ação social informada pelo habitus - e representação nos fornece base teórica e
metodológica para se pensar como ocorre a incorporação de categorias de doença vindas
de um campo médico científico as quais não estava presente anteriormente na literatura
como Cardoso (1999), Duarte (1986), Loyola (1984), Montero (1985), principalmente em
um contexto urbano, onde os processos de diferenciação dentro de um espaço social se
intensificam, havendo possibilidade de predomínio de um sistema terapêutico sobre o
outro.
Assim, o que queremos colocar é que como observado por autores como Loyola
(1984), Pires (2014), Duarte (1986), Eunice Nakamura (2007), Lépine (1992), Minayo
(2006), Cardoso (1999), José Quirino dos Santos (2013), os distintos grupos sociais
produzem concepções etiológicas e nosológicas próprias com bases em suas experiências,
levando a terapêuticas alternativas e/ou complementares às da medicina oficial. Deste
modo, para além das terapêuticas desenvolvidas, a diversidade de representações de
doença está ligada a modos de vida e experiências sociais específicas, condição da própria
existência dessas primeiras.
Entretanto, com a transformação do sistema público de saúde, sua ampliação e
consequente reformulação, nosso problema coloca-se em um novo contexto, de trocas
simbólicas entre grupos distintos, ou seja, um contexto de mediação cultural, nas palavras

1356
de Montero (2006). Tomamos como referencial a teoria da mediação intercultural de
Montero - a qual está presente na obra Deus na Aldeia - entendemos por mediação
intercultural o processo em que agentes de universos simbólicos distintos coexistindo em
um mesmo universo de relações realizam um processo de tradução do discurso do outro
para seus próprios termos - o que não excluí as relações de poder e dominação nesse
contexto, mas busca-se a criação de um consenso mínimo sobre os significados em jogo:
“a ênfase se põe, pois, nas lógicas práticas investidas nessas relações e em seu modo de
agenciar os sentidos para produzir um acordo circunstancial sobre a ordem do mundo cujo
formato não pode ser antecipado de antemão” (MONTERO, 2006, p. 23).
Buscamos então observar se há possibilidade de criação de formas de consenso, os
quais podem gerar novas formas de percepção e explicação das doenças, advindas da
prática terapêutica médica em contexto de atendimento público, que pode vir a produzir
alteração nas representações portadores por estes agentes sociais, um processo de tradução
das categorias locais de transtorno mental - "louco", "mal da cabeça" ou nervoso,
constantemente presentes na bibliografia – para as categorias médicas ali veiculadas.
Nossa hipótese principal direciona-se no sentido de uma incorporação da ideia de
doença mental e categorias de doença da medicina psiquiátrica – como depressão,
esquizofrenia, psicose, e demais categorias possivelmente veiculadas nestes centros de
atenção – dos agentes das classes populares atendidos no CAPS, havendo uma
transformação das antigas práticas terapêuticas que antes se realizavam com uma
complementaridade entre cura mágica648 e cura médica, transformando em um novo tipo
de cura.
A pesquisa com familiares se faz necessária uma vez que nosso objetivo, para além
de compreender como o doente/transtornado compreende e resolve a sua situação, busca
compreender como se dá o processo de interpretação e atribuição de doença a um
indivíduo pertencente ao grupo, seja em nível familiar, ou em nível comunitário. Deste
modo, ainda que esperamos que a experiência do sofrimento se mostre como um universal

648
Entendemos por cura mágica as práticas mágicos-religiosas que buscam realizar uma finalidade terapêutica
de controle das morbidades psicofisiológicas através de sistemas simbólicos, especialmente os religiosos,
como nos é apresentado por Lévi-Strauss (1996) em sua discussão sobre xamanismo e processos terapêuticos,
assim como autores que trabalharam com práticas terapêuticas presente nas classes populares como Montero
(1985) e Loyola (1984), que incluíam rezas, benzimentos, simpatias, assim como ritos religiosos do
catolicismo popular e da umbanda. Como encontrado nessa literatura, esse conjunto de práticas se mostram
amplamente presentes no meio urbano, e principalmente presentes nas classes populares – ainda que não só
nestas. Desta forma, muitos dos recursos terapêuticos utilizados por estas classes envolviam especialistas que
1357
estão fora dos circuitos médicos e terapêuticos reconhecidos pelo Estado, como benzedeiras, curandeiros,
pais-de-santo, etc.
- seja nas categorias nosológicas como depressão, esquizofrenia, bipolar, borderline, ou nas
categorias “populares” de nervoso, loucura, etc. – ou seja, exista uma percepção ampla
dessa forma de sofrimento, nossa atenção se volta também para como se dá o
enfrentamento frente a crises mais graves ou casos mais singulares de manifestação da
doença, os quais são atualmente enquadradas dentro de categorias nosológicas específicas.
Enquanto a bibliografia aponta que a relação das classes populares com a medicina
se deu em forma de resistência ou antagonismo, com a apropriação de alguns de seus
instrumentos para usos próprios – como um uso pragmático da medição psicotrópica,
descolado de um quadro autorreconhecido de “neurose” ou “psicose” em específico, como
nos aponta a leitura de Cardoso – é necessário rever se estas mesmas posições se mantêm
frente a novas formas de atendimento psiquiátrico como são os Centros de Atenção
Psicossocial, uma vez que, dada a natureza de sua proposta de acompanhar a
individualidade do paciente e a capacidade dessa instituição de articular-se a outras redes
que não apenas de saúde – quando necessário – aponta para uma mudança nas formas
concretas das políticas públicas de saúde e uma capacidade de inclusão destas populações
no Sistema Único de Saúde, que antes lhe ofereciam resistência.

A ETNOGRAFIA EM UM CENTRO DE ATENÇÃO: O GRUPO DE FAMILIARES


NO CAPS II DE ARARAQUARA

Com o objetivo de apreender um hipotético processo de incorporação das


categorias psiquiátricas mobilizadas nesse centro de atenção à clientela ali atendida, realizei
etnografias entre novembro de 2016 e fevereiro de 2017 no CAPS II de Araraquara,
participando de algumas das reuniões de equipe, mas principalmente das reuniões com
familiares de usuários, o chamado grupo de familiares. A partir do que foi levantado no
trabalho de campo, foram entrevistadas duas familiares de usuários do CAPS II em Abril
de 2017, procurando desenvolver nas entrevistas algumas das questões, como qual o
impacto da instituição na visão que se têm sobre o tratamento; como chegaram ao CAPS;
se já fizeram uso de alguma outra forma de terapia que não as reconhecidas pelo Estado;
etc.
Os grupos de familiares aconteciam em um local mais ao fundo do prédio da
instituição, em uma área coberta ao lado de um pequeno pátio, pelo qual algumas vezes
transitavam usuários do CAPS II. A reunião se desenvolvia sem um roteiro específico,
geralmente com uma introdução daquelas que coordenavam o grupo sobre a especificidade
do mesmo e qual sua função. Nas vezes observadas, as coordenadoras do grupo eram

1358
psicólogas ou terapeutas ocupacionais, as quais eram responsáveis por manter a ordem das
falas, organizar os relatos, direcionar as discussões e dar algum esclarecimento às perguntas
ali realizadas. Geralmente ocorriam em roda, com algumas das técnicas responsáveis pelo
grupo nas extremidades, e os familiares espalhados pelas cadeiras; duravam
aproximadamente uma hora e meia, indo das 10h até 11h30 muitas vezes.
O intuito do grupo de familiares era, segundo seus realizadores, a troca de
experiências, realizada através da conversa entre estes e as terapeutas, ou entre os familiares
entre si. A partir do incentivo inicial das organizadoras do grupo, que era geralmente
perguntar para alguns dos presentes sobre o estado atual dos usuários em suas casas, dar
algum informe sobre um evento específico como passeios e outras atividades recreativas,
ou abordar os problemas como falta de medicamentos na rede pública, um conjunto de
questões ia se desenvolvendo nas falas dos presentes, como a resistência de um usuário a
tomar medicação, ou a pressão social feita por parentes e amigos sobre a família em relação
ao tratamento, ou a transformação de perspectiva em relação a algumas questões ali tratadas
como delicadas, como a necessidade de internação em surto ou mesmo sobre a doença e
o tratamento.
Percebi que muitos desses problemas comuns eram agenciados pela equipe técnica
em torno de problemáticas como “direito a cidadania”, “bem-estar”, “autonomia” e outras
categorias que remetem a uma constituição a um sujeito autônomo, capaz de autogoverno.
Muito do que era falado ali remetia a um projeto ético-político que perpassava a instituição,
onde se incentivava, por exemplo, que não se poderia haver um cuidado excessivo do
usuário do CAPS II, uma vez que o objetivo do projeto terapêutico não é deixa-lo
dependente de alguém, mas capacitá-lo para que o mesmo fosse capaz de tomar conta de
sua própria vida. A discussão sobre “direitos” também aparecia nas falas das organizadoras
do grupo de famílias, como em situações onde discutia-se sobre a falta de medicamento e
a ida ao ministério público para consegui-los; discussões sobre a estrutura e qualidade do
hospital utilizado para internações em quadros agravados; e das condições de acesso aos
serviços de saúde em geral.
Quando cheguei às entrevistas, descobri que o itinerário terapêutico tinha um
grande peso nas considerações sobre a efetividade ou não do tratamento: o CAPS II de
Araraquara foi classificado como um local de acolhimento, capaz de incorporar as
demandas trazidas pela família, de tornar estes sujeitos como parte do tratamento, e não
meros acompanhantes. Como apareceu nessa fala de uma das familiares de usuários:

1359
[Benedita]649 Por isso que eu te falo o CAPS mental hoje... é... o
atendimento hoje, eles abraçaram a causa, porque a gente não ia
conseguir o resultado que nós estamos tendo hoje, porque se a pessoa
com toda essa bagagem [ao se referir aos problemas enfrentados pela
filha no decorrer de sua história de vida] não for acolhida, ela não vai te
dar um resultado bom, ela não vai querer vir, querer frequentar, que foi
o que aconteceu lá atrás [se referindo a um episódio anterior onde sua
filha e a família haviam sido mal-atendidos na instituição - por um
profissional que não está mais presente – devido a condição transgênero
da filha], quando eu pedi pra ser atendida aqui.
[L.R.] Então, só pra esclarecer, o que você chama de adotar a causa?
[Benedita] O que eu digo que é adotar a causa? Eu digo assim, é você
olhar com os olhos que o problema é nosso também, é olhar com
carinho, com respeito, entendeu. Não que não... há não... abraçar a causa
é assim: tô ganhando pra fazer isso, vou fazer e pronto; não, é você ter
amor mesmo, ter respeito por aquela família, por aquele indivíduo que
tá aqui. É ter respeito, ter amor pelo próximo mesmo, que senão cê
num... num consegue. [...] (Benedita, mãe de usuária, auxiliar de
escritório, Abril/2017).

Logo, uma das constantes nas falas sobre quais seriam as mudanças trazidas pela
instituição no modo de visão da saúde e doença mental eram termos que se referiam a uma
mudança subjetiva de perspectiva: “eu aceitei”, “agora eu entendo”, “aprendi a lidar”.
Como nesse outro trecho de entrevista, com outra entrevistada:

[Antônia] A pessoa que tem paciente assim precisa de muita ajuda, muita
ajuda.
[L.R.] Por que precisa de ajuda?
[Antônia] Por exemplo, uma pessoa tá com febre, cê sabe que ela tá
doente... agora cê olha pra uma pessoa, ela tá te olhando estranho, cê
num sabe o que tá passando naquela cabeça. Entendeu? E vocês
[referindo-se a equipe do CAPS] esclarecendo a gente, como eu tenho
recebido aqui no CAPS, porque na hora que a gente mais precisa, a gente
lembra do que ouviu. Porque não dá pra gente sair correndo atrás de um
profissional na hora, né? Então a gente ouve o que vocês dizem, e na
hora que a gente vê aquele olhar estranho pro lado da gente, a gente já
sabe o que fazer. Antigamente não, antigamente eu derrubava a casa
também. Ele chegou a vim com faca pra mim, eu pegava outra e nós ia
na, na.... era feio, muito feio. Aqui a gente entendeu que na cabeça dele,
embora a gente sabe, não dá pra gente se por no lugar, a gente não
consegue se por no lugar da pessoa. É difícil demais. Fala ‘Gente, você
num tá vendo, que não é outra pessoa, sou eu?’. É duro, é muito difícil.
Então o resultado: tem gente que tem essa doença e ninguém percebe.
Passa, né... só vai perceber quando acontecer o desastre, né. O acidente,
o incidente. Ai ‘nossa, ninguém nunca desconfiou? Ele nunca deu
motivo, era uma pessoa boa, tudo’. Mas a cabeça dele ninguém nunca
conseguiu ver (Antônia, irmã, aposentada, abril/2017).

649
Devido às questões ética que envolvem o campo de pesquisa, quaisquer nomes que possam vir a aparecer
aqui são trocados, no intuito de preservar a privacidade e os direitos dos sujeitos da pesquisa.

1360
Deste modo, não se pode colocar que a participação dos familiares em espaços
como esses acontecem sem que exista alguma agência ou forma de elaboração daquilo que
é passado para a constituição de práticas terapêuticas e categorias de saúde mental próprias,
relativas a seus contextos particulares de existência. Assim, o projeto ético-político do
CAPS II é repensado pelos familiares de usuários que vem a colocar seus próprios pontos
enquanto agentes que articulam o passado na instituição com o contexto social de existência
dos usuários. Por exemplo, em uma das entrevistas, nossa interlocutora colocava que não
poderia “soltar” o usuário pelo qual investia cuidado650 uma vez que o mesmo poderia
causar determinados danos que demandariam muito esforço para serem recuperados; ou
então, outra entrevistada que colocava que a instituição “abraçou a causa”, que se referia a
capacidade da mesma de lidar com o transtorno psíquico de sua filha não só como a oferta
de um tratamento enquanto obrigação do Estado, mas como parte de uma ação de
reabilitação que trata os sujeitos ali presentes para além de sua condição de “doente”.
Coloca-se que aquilo que Sartori (2011) havia observado sobre o CAPS Esperança
aparece de forma próxima no CAPS Araraquara, onde o processo de “cura” se mostra
como produção de vida subjetiva. Logo, é notado que, ao mesmo tempo em que se tenta
vincular os sintomas às causalidades biopsicológicas controladas por meio de medicação,
existe um esforço por parte da equipe técnica de incentivar práticas que façam os usuários
enquanto sujeitos para além da “doença”, como passeios, atividades lúdicas e festas, como
quando, por exemplo, em uma das assembleias realizadas onde comumente se organizam
os grupos de familiares foi observada uma presença ativa dos usuários dos CAPS nas
discussões.
A passagem pela instituição pode ser colocada como uma experiência que permite
a elaboração de práticas e discursos sobre saúde e doença mental, realizando-se assim uma
síntese entre as concepções próprias de seus contextos de origem sobre mente e doença
mental e as vinculadas no CAPS II, de modo a produzir práticas que estivessem de acordo
com suas condições concretas - simbólicas, materiais, culturais, sociais - de existência. Se o
projeto ético-político da equipe técnica se dá em torno de categorias como autonomia,
direito a saúde, reabilitação psicossocial, o intuito dos familiares era a reconstituição da
vida dos usuários que investiam cuidado, trazendo as leituras das concepções
biopsicossociais da doença mental para as narrativas de vida, a reorganização dos laços

650
Em vista de melhor se adequar ao repertório nativo que coloca o tratamento não como um processo de
tutela, mas como construção coletiva de “saúde” e “autonomia”, procuro utilizar, ao invés de familiar de
usuário, a expressão familiares que investem cuidado, no sentido de demarcar uma relação específica entre
os usuários do CAPS II e os membros de sua rede de apoio, que muitas vezes são familiares.
1361
familiares e a constituição de dispositivos de cuidados que, ainda que influenciados pelo
que ocorre na instituição, não são puro efeito disto, mas inovações próprias aos contextos
locais de existência dos usuários dessa política de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão antropológica pode contribuir para um exercício duplo neste contexto


de políticas públicas de saúde e doença mental: em primeiro lugar, é capaz de desconstruir
ontologias e categorias, humanizar sujeitos, e dar materialidade a regimes de conhecimento
que estão em contato com os sistemas de saúde públicos, os quais respondem a formas de
vida e concepções de saúde específicas, como no caso da umbanda e suas curas mágicas
(PIRES, 2014); por outro lado, a discussão antropológica sobre as políticas de saúde
permite que se observem quais os retornos destas mesmas à sociedade, suas possibilidades
atendimento a demandas, e as novas subjetividades formadas a partir dos sentidos
agenciados por estas mesmas políticas.
Deste modo, a aproximação etnográfica nos permite pensar os diversos registros
que a experiência de saúde e doença mental perpassam, devendo vir a ser incluída em sua
especificidade nas políticas públicas, respeitando, assim, a multiplicidade de sujeitos
presentes dentro destas instituições, os quais, por fim, precisam ter seu direito à saúde e
sua humanidade respeitados. Assim, podemos nos indagar quais as capacidades de
agenciamento que essas representações de saúde e doença adquirem no nosso mundo
contemporâneo, uma vez que, como nos mostrou Lévi-Strauss (1996), há uma necessidade
do pensamento humano de significar: na participação no culto da umbanda a própria
realocação de si em um universo simbólico o qual permite a resolução de um estado
mórbido através de significação dentro de um contexto cosmológico maior seria o que
permitiria a cura, como mostrou Pires (2013).
A partir do que foi exposto, procurei mostrar como, com a mudança no paradigma
de tratamento que sai do modelo hospitalar e volta-se para uma forma de atenção
psicossocial, a instituição busca incorporar o contexto social de existência do usuário no
tratamento que é oferecido, de modo a operar sobre as representações e a noção de pessoa
dos familiares que acompanham o tratamento. Ainda assim, as representações que surgem
desse processo não eram puramente aquilo que estava sendo informado pela instituição,
mas resultado de uma síntese entre os elementos trazidos pela equipe técnicas nas consultas
e nos grupos de famílias com as representações locais e as possibilidades concretas de sua
execução. Desse modo, os familiares fazem uma leitura do processo terapêutico dentro

1362
dos consensos estabelecidos no CAPS, construídos ao longo do acompanhamento na
instituição, como as consultas com a psiquiatra e no contato com outros membros da
equipe, na participação de eventos e nos grupos de familiares; buscamos dar ênfase na ação
criativa desses agentes, que a partir do que vivenciam na instituição, podem constituir novas
práticas, discursos e concepções de si.

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1365
A ATUAÇÃO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS
HUMANOS EM FACE DA VIOLAÇÃO DE DIREITOS NOS
CÁRCERES BRASILEIROS: O EXEMPLO DO PRESÍDIO URSO
BRANCO

Stéfani Pupulin DESINDE651

Danilo Garnica SIMINI652

Resumo: O Brasil está entre os países com maior população carcerária do mundo, bem como
apresenta preocupantes índices de superlotação nos estabelecimentos prisionais e um preocupante
aumento de sua política de encarceramento. Em razão de tal contexto, a violação de direitos
humanos no sistema carcerário brasileiro é uma realidade. Inúmeros episódios ocorridos em
diversos estabelecimentos prisionais, localizados em variadas cidades brasileiras, demonstram uma
sistemática violação dos direitos daqueles que se encontram privados de sua liberdade. Os autores
de tais violações muitas vezes sequer foram punidos de forma efetiva, tal como ocorreu no Massacre
do Carandiru ocorrido em 1992. A ineficiência por parte das autoridades nacionais em punir os
responsáveis pelas violações de direitos humanos das pessoas privadas de liberdade no Brasil fez
com que o país fosse acionado internacionalmente perante o denominado Sistema Interamericano
de Direitos Humanos, composto por dois importantes organismos, quais sejam, a Comissão e a
Corte Interamericana de Direitos Humanos. O Brasil, portanto, se torna réu internacionalmente
em razão das violações de direitos humanos ocorridas em seu sistema penitenciário, condutas que
afrontam tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo próprio país
nos últimos anos. Dentre vários os casos que repercutiram ao longo do tempo, além do Massacre
do Carandiru, pode-se citar o caso do Presídio Urso Branco, em Porto Velho, Rondônia, onde
trinta e sete pessoas privadas de liberdade foram assassinadas entre janeiro e junho de 2002. O
presente trabalho visa discutir a atuação do Sistema Interamericano de Direitos Humanos no que
diz respeito às violações de direitos humanos das pessoas privadas de liberdade no Brasil.
Inicialmente será realizada uma apresentação da situação de violação sistemática de direitos
humanas nos estabelecimentos prisionais brasileiros. Posteriormente, serão apresentados os
tratados e convenções internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil que tratam, direta
ou indiretamente, dos direitos das pessoas privadas de liberdade. Por fim, será apresentado o caso
do Presídio Urso Branco como forma de se discutir as potencialidade e limites da atuação do
Sistema Interamericano de Direitos Humanos no que diz respeito à situação carcerária no Brasil.

Palavras-chave: Cárceres. Direitos Humanos. Presídio Urso Branco. Sistema Interamericano de


Direitos Humanos.

651
Aluna do curso de Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). E-mail:
stedesinde@gmail.com
652
Docente no curso de Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP), Doutorando
em Ciências Humanas e Sociais (UFABC), Mestre em Direito (UNESP) e pesquisador do Núcleo de Estudos
e Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP) onde coordena a
pesquisa “O Estado brasileiro como violador de direitos humanos no Sistema Interamericano”. E-mail:
danilosimini@gmail.com 1366
INTRODUÇÃO

O sistema regional interamericano se caracteriza por dois sistemas principais: a


Organização dos Estados Americanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos, os
quais são essenciais para garantir e fiscalizar os direitos humanos nos Estados-parte. Mas
os órgãos que merecem destaque pela adequação do assunto conforme passado os anos
são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
O presente artigo trata da atuação destes órgãos no Brasil na quanto às infrações
dos direitos humanos se faz presente, principalmente quando diz respeito ás pessoas
privadas de liberdade que começou com o caso do massacre que ocorreu em 1992 na Casa
de detenção de São Paulo, no bairro do Carandiru. Dentre vários os casos que
repercutiram ao longo do tempo, um que tomou destaque é caso do Presídio Urso Branco,
em Porto Velho, Rondônia onde trinta e sete internos foram assassinados entre janeiro e
junho de 2002, pela brutalidade estabelecida a Comissão, neste caso, acionou a Corte que
ordenou a adoção de medidas provisórias, como citado por Flávia Piovesan (2008). Não
só por isso, mas as sequências de mortes que foram ocorrendo ao longo dos anos mesmo
que o caso já estava em curso, descumprindo as medidas indicadas.
Não só o seu histórico que se repete de infrações como os dados do sistema
prisional brasileiro já são alarmantes, ele é o quarto país com maior população carcerária
e o campeão de superlotação, além de estar nesta posição é o único que apresenta uma
política de aumento do encarceramento de 2004 a 2014 cresceu 67%, enquanto os outros
colocados apresentam uma diminuição.

UM BREVE PANORAMA SOBRE O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO

O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (INFOPEN) de junho


de 2014 compara em números a realidade brasileira com outros países que resulta a
classificação do Brasil com a quarta maior população prisional, neste ranking se encontra
em primeiro lugar os Estados Unidos, seguido por China e Rússia. Ainda aponta algumas
características marcantes do Brasil, como a quinta maior taxa de ocupação dos
estabelecimentos prisionais, com 161%; apresenta a quinta maior taxa de pessoas privadas
de liberdade sem julgamento, 41% deles e o mais marcante é o crescimento de 136% na
taxa de aprisionamento o colocando em segundo lugar mundialmente.

1367
Dentro deste panorama que coloca o Brasil em um papel alarmante, deve se
analisar o seu histórico, como colocado por Adorno (1991) o crescimento da criminalidade
urbana ocorreu na década de 80, período marcado pela entrada da democratização na
política e uma maior exigência pelas agências de contenção da criminalidade, resultou que
tais agencias seguissem um caminho de maior autoridade e mudando sua forma de operar
fazendo com que houvesse um aumento das prisões já que não puderam rever suas rever
as suas regras institucionais, sendo assim uma crise dentro deste sistema seja por parte do
arbítrio policial como na capacidade do poder judiciário.
Para explicar este crescimento da criminalidade o autor Fernando Salla (2006) o
coloca como uma consequência que foi aplicada em outros países, as políticas penais mais
severas.

A criminalização da miséria, a repressão às ilegalidades e estratégias de


sobrevivência das camadas pobres e o combate ao tráfico de drogas
compõem os principais ingredientes que explicam a explosão nas taxas
de encarceramento em praticamente todos os países do mundo
ocidental. O Brasil parece representar um bom exemplo desta linha de
análise (SALLA, 2006, p. 289).

O autor assim apresenta que o sistema penitenciário foi responsabilizado pela


ineficiência do controle e retenção da criminalidade, sendo apresentado como critério que
acentua ainda mais este cenário, apesar de que isto é conseqüência da crise das agencias de
contenção da criminalidade. Com isso, o sistema penitenciário quebra qualquer
similaridade com um sistema de ressocialização e adquire de uma vez seu papel punitivo e
como um sistema precário.

Não são poucos os indicadores que espelham a precariedade do sistema


penitenciário brasileiro. Embora as condições de vida no interior dessas
“empresas de reforma moral dos indivíduos” sejam bastante
heterogêneas quando consideradas sua inserção nas diferentes regiões
do país, traços comuns denotam a má qualidade de vida: superlotação;
condições sanitárias rudimentares; alimentação deteriorada; precária
assistência médica, judiciária, social, educacional e profissional; violência
incontida permeando as relações entre os presos, entre estes e os agentes
de controle institucional e entre os próprios agentes institucionais;
arbítrio punitivo incomensurável (ADORNO, 1991, p. 70-71).

Esse sistema precário será o grande influenciador para as grandes rebeliões nos
presídios brasileiros, até os dias atuais, uma penalização árdua fará com que o número

1368
continue aumentando de encarceramento e uma demora para o julgamento de tantos
casos.

O SISTEMA REGIONAL INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

De acordo com André de Carvalho Ramos (2012) os direitos humanos no plano


internacional nascem de duas formas, primeiro de forma natural através dos anos por meio
de diversas conferências internacionais e modificações que resultaram em novo tratado
internacional de direitos humanos e em um segundo momento que se dá a partir de
construções jurisprudenciais dos tribunais internacionais de direitos humanos que ampliam
os velhos direitos e adicionam novas esferas sociais protegidas. Dessa forma, os direitos
humanos possuem duas formas de elaboração jurídica: legislativa e a jurisprudencial.

[...] é notório que os direitos humanos, via de regra, apresentam-se como


princípios jurídicos, que são normas caracterizadas pela vagueza,
abstração e abertura. Para que sejam aplicados a um caso qualquer, é
necessária uma imprescindível atividade judicial que concretiza o
conteúdo das normas de direitos humanos. [...]O princípio da soberania
dos Estados sofre cada vez mais com a internacionalização dos direitos
humanos, uma vez que os compromissos internacionais são genéricos e
vagos, como normas de direitos humanos que são. As centenas de
condenações de vários Estados tidos como democráticos e respeitadores
de direitos humanos pela Corte Europeia de Direitos Humanos, por
exemplo, por certo não foram previstas por seus líderes. Além disso, a
temática dos direitos humanos, por sua indeterminação, é apreciada em
foros não tradicionais, como se vê nas dezenas de casos de direitos
humanos do Tribunal de Justiça da União Europeia, vocacionado para
a implementação do Direito da Integração, entre outros (RAMOS, 2012,
p. 25-28).

O autor, Ramos (2012), ainda desenvolve que sua terminologia não tem
delimitação, pois corresponde à evolução do próprio conceito de proteção de direitos
essenciais do indivíduo que foi sendo alterada. Aponta também que existe uma
diferenciação dos termos usados pelo Direito Internacional e o presente nas Constituições
e leis internas, respectivamente são: “direitos humanos” e “direitos fundamentais”.
No que diz respeito á sua presença nos tratados internacionais, pode se colocar que
sua internacionalização se deu em 1945 com a Carta de São Francisco, tratado
internacional que criou a Organização das Nações Unidas (ONU), primeiro tratado de
alcance universal para todos os seres humanos e principalmente por declarar o
compromisso de promover os direitos humanos por parte dos Estados signatários e ser à

1369
base da Organização. Mesmo que 1945 seja um marco, houve a proteção de alguns direitos
específicos antes desta data, como apontado por Ramos (2012) a Organização
Internacional do Trabalho em 1919, proteção dos trabalhadores e a proibição da
escravidão.
Na propriedade de especificar os “direitos humanos” prevista na Carta, foi
aprovada em 1948 a Declaração Universal de Direitos Humanos e foi critério para
impulsionar a adoção em 1966 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais os quais juntos são
denominados a Carta Internacional dos Direitos Humanos, apesar de todos serem
oriundos da ONU, tem alcance universal e vários direitos.
O Direito Internacional dos Direitos Humanos teve um desenvolvimento
acentuado a partir de 1960, os quais seguiram determinada classificação no âmbito das
Nações Unidas

Em primeiro lugar, os tratados gerais, que tem alcance universal e


abordam vários direitos humanos, como os Pactos Internacionais acima
mencionados. Após, surgem os tratados sobre temas específicos,
destacando-se a Convenção sobre a Prevenção e Repressão do Crime de
Genocídio, a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de
Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, a Convenção sobre a
Proteção de todas as Pessoas contra a Tortura e outras Penas e
Tratamentos Cruéis, entre outras. Em terceiro lugar, há os tratados que
protegem certas categorias de pessoas, como, por exemplo, a Convenção
e o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados, as duas Convenções
sobre a Apatridia, a Convenção sobre os Direitos da Mulher Casada, a
Convenção dos Direitos da Criança, entre outros. Finalmente, em quarto
lugar, surgem os tratados contra a discriminação como a Convenção para
a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção
para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher, a Convenção sobre a Repressão ao Crime de Apartheid, entre
outras (DURÁN apud RAMOS, 2012, p. 51).

Sendo assim, o sistema internacional apresenta diversos instrumentos de proteção


dos direitos humanos, como foram colocados alguns dos instrumentos das Nações Unidas,
ainda em convivência com estes é apresentado mecanismos regionais de proteção dos
direitos humanos, que podemos caracterizar: o sistema interamericano, europeu e africano.

Cada um dos sistemas regionais de proteção apresenta um aparato


jurídico próprio. O sistema interamericano tem como principal
instrumento a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969,
que estabelece a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a

1370
Corte Interamericana. Já o sistema europeu conta com a Convenção
Européia de Direitos Humanos de 1950, que estabeleceu
originariamente a Comissão e a Corte Européia de Direitos Humanos.
[...] Por fim, o sistema africano apresenta como principal instrumento a
Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos de 1981, que por sua
vez, estabelece a Comissão Africana de Direitos Humanos, mediante um
Protocolo à Carta, em 1998 (PIOVESAN, 2008, p. 239).

Mesmo com a vigência dos direitos humanos no sistema global, se faz necessário a
atuação de sistemas regionais para uma maior vigilância, sobre os Estados, traçando um
trabalho em conjunto entre eles e de proteção dos direitos humanos. No que diz respeito
ao Brasil, o sistema interamericano é o sistema que se aplica.
Segundo André Carvalho Ramos (2016), o sistema interamericano no que diz
respeito à proteção dos direitos humanos é formado principalmente por quatro
instrumentos normativos devido a sua importância, são eles: a Declaração Americana dos
Direitos e Deveres do Homem, a Carta da Organização dos Estados Americanos, a
Convenção Americana de Direitos Humanos e o Protocolo de San Salvador. Nesta
estrutura há dois atores fundamentais, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a
Convenção Americana de Direitos Humanos.
A Organização dos Estados Americanos tem por base a Carta da Organização dos
Estados Americanos (OEA), que trata de sua criação em 1948 e reformulações ao longo
do tempo com o intuito de adequar seus propósitos aos temas que foram se tornando de
extrema importância, como os direitos humanos, e a Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem decretada em dezembro do mesmo ano. Considerada um
organismo regional pelas Nações Unidas, ratificada em 1948 por 21 países membros e
gradativamente o ingresso de outros Estados, hoje todos os países independentes
Americanos fazem parte. Este órgão tem como finalidade garantir paz e segurança,
promover a democracia representativa, prevenção e soluções pacíficas de conflitos e
problemas políticos, jurídicos e econômicos entre Estados membros, promover
desenvolvimento por meio de cooperação e erradicação da pobreza crítica.
Adicionado em 1967, pelo Protocolo de Buenos Aires, na Carta da OEA, foi
estabelecida um de seus órgãos principais: a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos. Esta comissão originou de um movimento gradativo dentro da instituição
devido á fragilidade dos direitos humanos que vinham sendo corrompido durante a Guerra
Fria, período que marcou as ditaduras na América Latina e um dos principais Estados
membro, os Estados Unidos, como financiador.

1371
Haverá uma Comissão Interamericana de Direitos Humanos que terá
por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos
humanos e servir como órgão consultivo da Organização em tal matéria.
Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabelecerá a
estrutura, a competência e as normas de funcionamento da referida
Comissão, bem como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria
(CARTA DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS,
1967).

Além da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, há outros mecanismos


responsáveis pelo funcionamento da OEA, o Conselho Interamericano de
Desenvolvimento Integral, como explicitado por André de Carvalho Ramos (2016), em
junção com a Comissão pode ser classificado como mecanismos coletivos quase judiciais e
a Assembléia Geral da OEA, o Conselho Permanente da OEA, a Reunião de Consulta
dos Ministros das Relações Exteriores seriam mecanismos coletivos políticos.
No que diz respeito à Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada na
Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica,
em 22 de novembro de 1969, celebrada pela OEA. Caracterizada como principal
instrumento do sistema interamericano reconhece os direitos essenciais do homem e os
amplia em um catálogo semelhante á outros instrumentos já vigentes. Os direitos
protegidos que devem ser destacados, são: direito a personalidade jurídica, direito à vida,
proibição da escravidão e da servidão, direito à liberdade pessoal, garantias judiciais,
liberdade de pensamento e de expressão, direitos da criança, igualdade perante a lei e
proteção judicial.
A Convenção apresenta alguns pontos que convergem com a OEA: a Convenção é
financiada por ela; no seu artigo 35 coloca que todos os membros da OEA são
representados na Convenção e conta como ponto principal a participação da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos.
Os órgãos competentes da Convenção, colocados como meios de proteção e
reconhecem os assuntos competentes e assumidos por ela, são: a Comissão Interamericana
de Direitos Humanos e a Corte Interamericana.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) surgiu como a Carta da
OEA e a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, sendo inserida em 1967 como
órgão principal e autônomo da OEA. Essa autonomia se dá devido os seus membros não
representarem seu Estado de origem, já que é uma obrigação de atuarem desvinculados
deles, pois não podem participar da discussão, investigação ou deliberação. Sua

1372
composição se caracteriza por sete membros de carreira reconhecida na área de direitos
humanos e eleitos pela Assembleia Geral da OEA, a duração do cargo é de quatro anos e
só podem se reeleger apenas uma vez.
Sua principal função se caracteriza pela promoção, garantia e supervisão dos
direitos humanos no sistema interamericano.

A Comissão tem como função principal promover a observância e a


defesa dos direitos humanos, e no exercício do seu mandato: a) Receber,
analisar e investigar petições individuais que alegam violações dos
direitos humanos, segundo o disposto nos artigos 44 a 51 da Convenção;
b) Observar o cumprimento geral dos direitos humanos nos Estados
membros, e quando o considera conveniente, publicar as informações
especiais sobre a situação em um estado específico; c) Realizar visitas in
loco aos países para aprofundar a observação geral da situação, e/ou para
investigar uma situação particular. Geralmente, essas visitas resultam na
preparação de um relatório respectivo, que é publicado e enviado à
Assembleia Geral; d) Estimular a consciência dos direitos humanos nos
países da América. Além disso, realizar e publicar estudos sobre temas
específicos como, por exemplo, sobre: medidas para assegurar maior
independência do poder judiciário; atividades de grupos armados
irregulares; a situação dos direitos humanos dos menores, das mulheres
e dos povos indígenas. e) Realizar e participar de conferencias e reuniões
com diversos tipos de representantes de governo, universitários,
organizações não governamentais, etc... para difundir e analisar temas
relacionados com o sistema interamericano de direitos humanos. f) Fazer
recomendações aos Estados membros da OEA acerca da adoção de
medidas para contribuir com a promoção e garantia dos direitos
humanos. g) Requerer aos Estados membros que adotem “medidas
cautelares” específicas para evitar danos graves e irreparáveis aos direitos
humanos em casos urgentes. Pode também solicitar que a Corte
Interamericana requeira “medidas provisionais” dos Governos em casos
urgentes de grave perigo às pessoas, ainda que o caso não tenha sido
submetido à Corte. h) Remeter os casos à jurisdição da Corte
Interamericana e atuar frente à Corte em determinados litígios. i)
Solicitar “Opiniões Consultivas” à Corte Interamericana sobre aspectos
de interpretação da Convenção Americana (COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 1967).

Os procedimentos que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos realiza


podem ser classificados em três fases: requisitos de admissibilidade, fase da conciliação ou
solução amistosa e fase do primeiro informe ou relatório. Segundo André de Carvalho
Ramos (2016), há a explicação destas fases, como nos requisitos de admissibilidade:
esgotamento de recursos interno, ausência da mesma petição ou caso sendo julgado ou
pendente em outra instância internacional e a falta de representação na transcursão de seis
meses de prazo no que diz respeito a petição perante a Comissão. A fase de conciliação ou
solução amistosa é uma proposta já colocada em prática pela Comissão, sempre de acordo

1373
com os princípios da Convenção, como forma de solução do caso, se aceita é feito um
relatório sobre ele pela Comissão e encaminhado para as partes e ao Secretário-Geral da
OEA.
Conforme explicitado por Flávia Piovesan (2008), a fase do primeiro informe ou
relatório é dada se não ocorrer nenhuma solução amistosa, com isso a Comissão irá
compor um relatório com os fatos já apresentados e recomendações ao Estado-parte, o
qual terá um prazo de três meses para executar o que se foi recomendado. Dentro deste
período de tempo podem ter duas opções de solução: a primeira será a solução por meio
das partes e a outra é o encaminhamento direto e automático do caso à Corte
Interamericana de Direitos Humanos. Contudo, se nenhuma dessas opções foi realizada a
Comissão poderá emitir a sua própria conclusão e opinião caso seja aceita em votação pela
maioria dos votos.
A Corte Interamericana de Direitos Humanos é uma instituição judicial autônoma
que entrou em vigor em 1978 após a 11º ratificação da Convenção, a Corte se encontra
prevista no artigo 33. Assim como a Comissão, ela é autônoma, contudo faz parte apenas
da Convenção Americana de Direitos Humanos. Sua composição se dá através de sete
juízes derivados de Estados membros da OEA e apresenta uma função jurisdicional e
consultiva.
Seu caráter de instituição judicial autônoma se vê prejudicada quando é analisado
que para as reclamações cheguem até ela é obrigatório que apenas Estados-partes e a
Comissão têm sinal verde para processar um Estado. Outro aspecto que denigre esta
caracterização da Corte é a questão de casos individuais, que a colocam como dependente
da Comissão, pois a vítima não tem contato com a Corte para dar curso com petição nela.

Artigo 61:1. Somente os Estados Partes e a Comissão têm direito de


submeter caso à decisão da Corte. 2. Para que a Corte possa conhecer
de qualquer caso, é necessário que sejam esgotados os processos
previstos nos artigos 48 a 50 (CONVENÇÃO AMERICANA SOBRE
DIREITOS HUMANOS, 1978).

A partir destes princípios há também a questão que a Comissão pode enviar uma
solicitação para a Corte pedindo medidas provisórias se analisado que é para proteger
futuras vítimas. Mesmo com as limitações da Corte, os papéis da Comissão, a Convenção
Interamericana de Direitos Humanos, apresentam função primordial na prevenção dos
direitos humanos, os assegurando e faz com que este quesito apresente um avanço que se

1374
torna crucial em um continente que tem um histórico de instabilidade na promoção dos
direitos humanos.
O histórico de mudanças que cercam a América Latina e o Sistema Internacional
como um todo, suas cobranças e a entrada de novos papéis destinados á sociedade e ao
Estado fizeram com que houvesse uma acumulação de direitos, como colocado por Paulo
Bonavides (1993) apud André de Carvalho Ramos (2012) há uma abertura de uma nova
dimensão com a entrada de novos direitos, possibilitando uma melhor interpretação e
realização. Nesta abertura foi promovido a proibição da tortura e das penas ou tratamentos
cruéis, desumanos ou degradantes onde deve se observar que se encontra presente em
diversos tratados generalistas, instrumentos e normas de direitos humanos, como por
exemplo, ás Convenções de Genebra de 1949, a Convenção Americana sobre Direitos
Humanos e com destaque para a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a
Tortura que aplica em seu artigo 5°:

Não se invocará nem admitirá como justificativa do delito de tortura a


existência de circunstâncias tais como o estado de guerra, a ameaça de
guerra, o estado de sítio ou de emergência, a comoção ou conflito
interno, a suspensão das garantias constitucionais, a instabilidade política
interna, ou outras emergências ou calamidades públicas. Nem a
periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do
estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura
(CONVENÇÃO INTERMAERICANA PARA PREVINIR E PUNIR
A TORTURA, 1985).

Neste artigo retrata a proibição do delito da tortura em todas as circunstancias e


principalmente na situação dos detidos ou condenados no estabelecimento carcerário ou
penitenciário. Com esse plano de inclusão de novos direitos e sua delimitação, foi
necessário definir os conceitos de tortura, como apresentado no artigo 2° da mesma:

Para os efeitos desta Convenção, entender‐se‐á por tortura todo ato pelo
qual são infligidos intencionalmente a uma pessoa penas ou sofrimentos
físicos ou mentais, com fins de investigação criminal, como meio de
intimidação, como castigo pessoal, como medida preventiva, como pena
ou com qualquer outro fim. Entender‐se‐á também como tortura a
aplicação sobre uma pessoa, de métodos tendentes a anular a
personalidade da vítima, ou a diminuir sua capacidade física ou mental,
embora não causem dor física ou angústia psíquica (CONVENÇÃO
INTERMAERICANA PARA PREVINIR E PUNIR A TORTURA,
1985).

1375
O tratamento dos detidos e presos sofreu da mesma delimitação sendo citado em
diversos tratados e comitês, de maneira universal e regional, como apresentado “a
prevalência da tortura e outros tratamentos ilícitos das pessoas privadas de liberdade está
bem patente na jurisprudência [...]” (SECRETARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2003,
p.256), ainda assinalando o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, n° I e o
Comitê dos Direitos do Homem nos artigos 7° e 10°. Neste ponto entende se por “privação
de liberdade”:

Qualquer forma de detenção, encarceramento, institucionalização ou


custódia de uma pessoa, por razões de assistência humanitária,
tratamento, tutela ou proteção, ou por delitos e infrações à lei, ordenada
por uma autoridade judicial ou administrativa ou qualquer outra
autoridade, ou sob seu controle de facto, numa instituição pública ou
privada em que não tenha liberdade de locomoção. Incluem‐ se nessa
categoria não somente as pessoas privadas de liberdade por delitos ou
infrações e descumprimento da lei, independentemente de terem sido
processadas ou condenadas, mas também aquelas que estejam sob a
custódia e a responsabilidade de certas instituições, tais como hospitais
psiquiátricos e outros estabelecimentos para pessoas com deficiência
física, mental ou sensorial; instituições para crianças e idosos; centros
para migrantes, refugiados, solicitantes de asilo ou refúgio, apátridas e
indocumentados; e qualquer outra instituição similar destinada a pessoas
privadas de liberdade. (PRINCÍPIOS E BOAS PRÁTICAS PARA A
PROTEÇÃO DAS PESSOAS PRIVADAS DE LIBERDADE NAS
AMÉRICAS, 2009).

O Secretariado das Nações Unidas (2003) baseando-se no artigo 15° da Convenção


contra a Tortura pontua o papel fundamental do Estado para assegurar esses direitos
humanos já citados, cabe a ele: prevenir, investigar e reparar tudo o que diz respeito aos
atos de tortura e outras formas de maus tratos.

O CASO DA PENITENCIÁRIA URSO BRANCO NA CORTE


INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Considerada a maior unidade prisional da região norte do país, localizada no estado


de Rondônia, a Casa de Detenção José Mário Alves (mais conhecido como presídio Urso
Branco) foi construída no final da década de 1990 a princípio sua função era de abrigar os
presos que ainda não foram condenados e depois disso seriam locados para uma
penitenciária, contudo ela se tornou a entrada do sistema penitenciário de Porto Velho,
pois toda essa região passou a encaminhar todos os homens detidos para essa unidade
prisional.

1376
Com isso gerou uma série de consequências sobre a sua estrutura, segundo dados
do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (2016) sua capacidade é de
450 pessoas e até a data da visita realizada constava com 667 presos, demonstrando a
superlotação presente; a superlotação prejudica a locação dos presos nas celas; a
insalubridade das celas, com falta de ventilação, acomodação e higiene são fatores que se
juntam e potencializam as rebeliões. Quando se trata de formas para conter momentos de
crise dentro desta unidade prisional o uso da força é assinalado como a saída explorada
pelo Estado e pelos agentes dentro dela, fazendo deste cenário propício para tratamentos
cruéis, desumanos e tortura.

Na oportunidade pode constatar-se que a estrutura da unidade é


precária, com celas superlotadas, onde os presos encontram-se com
precária assistência à saúde, sem assistência jurídica, e sobrevivendo em
condições degradantes, não revelando significativo avanço em relação a
problemas graves diagnosticados em relatórios anteriores de outros
órgãos (MECANISMO NACIONAL DE PREVENÇÃO E
COMBATE À TORTURA, 2016, p. 46).

Neste contexto foram instaurados diversos momentos de crise, como apontados no


estudo sobre a Penitenciária Urso Branco pela Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de
Porto Velho e da Justiça Global (2007), o primeiro foi em 2000 com uma rebelião que
resultou na morte de três presos e o incêndio na área administrativa da unidade; logo após
vieram mais mortes em 2001 pelo não cumprimento de reformas previstas a unidade. Mas
foi em 2002 que aconteceu a grande chacina na penitenciária, começando por causa de
realocação de presos e os colocando com rivais até depois por motivos de irem contra o
ordenamento imposto, o que ficou marcado foi à demonstração de ineficiência e falta de
documentação dos presos, pois o número e quais eram os presos que foram mortos foi
possível pela falta que os parentes sentiram quando foram realizadas as visitas. Desde o ano
2000 em um período de seis anos sucederam diversas mortes violentas em seu interior,
rebeliões e chacinas além do depoimento de tortura, chegando a mais de 100 pessoas
mortas de 2001 a 2007.
No aspecto das violações tem destaque a “Operação Pente Fino”, como colocado:

Por derradeiro, não se pode olvidar a questão da “operação Pente Fino”,


ocorrida no período de 02 a 07 de outubro de 2006, que foi marcada
por diversos atos de violência: os presos foram retirados de suas celas e
colocados, despidos, na quadra de futebol da unidade, ao longo de todo
o dia. Foram obrigados a passar seis dias dormindo ao relento, no chão,

1377
fazendo suas necessidades fisiológicas ali mesmo. A exposição contínua
ao sol ocasionou graves queimaduras nos detentos. Ademais, os
familiares, que não podiam visitar os internos, também foram agredidos
pelos agentes penitenciários, revelando a absoluta falta de controle da
situação por parte do Estado (INSTITUTO DE
DESENVOLVIMENTO DE DIREITOS HUMANOS; CLÍNICA DE
DIREITOS HUMANOS DA UNIVERSIDADE DA REGIÃO DE
JOINVILLE, p. 05).

À partir da chacina em 2002 o Estado se mostrou ineficaz para cumprir medidas


para interromper o ciclo de violência que se iniciava, então foi acionada a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos a qual solicitou ao Estado brasileiro medidas
cautelares que tinham por objetivo a proteção, a integridade e a vida das pessoas privadas
de liberdade que foram anuladas pois foram suscetíveis as mortes dentro da Penitenciária
Urso Branco.
Com a sequência de descumprimento e continuação dos atos, assinalou a gravidade
do que estava acontecendo então a Comissão solicitou medidas à Corte Interamericana de
Direitos Humanos.

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) outorgou em


14 de março de 2002, medidas cautelares ao Estado brasileiro, e em
seguida, "sob o fundamento de inadequação das em medidas adotadas
pelo Estado brasileiro a fim de garantir provisórias a Corte
Interamericana de Direitos Humanos, em 18 de junho de 2002 a Corte
adotou as medidas provisórias (MECANISMO NACIONAL DE
PREVENÇÃO E COMBATE À TORTURA, 2016, p. 26-27).

Com isso a Comissão solicitou à Corte que ela ordene ao Brasil:

1) Adotar de imediato as medidas que sejam necessárias para proteger a


vida e a integridade pessoal de todos os detentos da Casa de Detenção
José Mario Alves, “Penitenciária Urso Branco”, localizada na cidade de
Porto Velho, Estado de Rondônia, Brasil. 2) Adotar de imediato as
medidas que sejam necessárias para apreender as armas que se
encontram em poder dos internos da mencionada penitenciária; e 3)
Informar à Honorável Corte Interamericana de Direitos Humanos em
um prazo breve, que a própria Corte determinar, em relação às medidas
específicas e efetivas adotadas (CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS; 2002; p. 04)

Então em 18 de junho de 2002 a Corte requereu:

1378
1. Requerer ao Estado que adote todas as medidas que sejam necessárias
para proteger a vida e integridade pessoal de todas as pessoas recluídas
na Penitenciária Urso Branco, sendo uma delas a apreensão das armas
que se encontram em poder dos internos. 2. Requerer ao Estado que
investigue os acontecimentos que motivam a adoção destas medidas
provisórias com o objetivo de identificar aos responsáveis e impor-lhes
as sanções correspondentes. 3. Requerer ao Estado que, dentro do prazo
de 15 dias contando a partir da notificação da presente Resolução,
informe à Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre as medidas
que tenha adotado em cumprimento da mesma e apresente uma lista
completa de todas as pessoas que se encontram recluídas na
Penitenciária Urso Branco; e ademais, à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos que apresente suas observações a dito relatório
dentro do prazo de 15 dias a partir de seu recebimento.4. Requerer ao
Estado que continue informando à Corte Interamericana de Direitos
Humanos, cada dois meses, sobre as medidas provisórias adotadas e que
apresente listas atualizadas de todas as pessoas que se encontram
recluídas na Penitenciária Urso Branco, de maneira que se identifique as
que sejam postas em liberdade e as que ingressem a dito centro penal; e
ademais, à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que
apresente suas observações a ditos relatórios dentro do prazo de dois
meses a partir de seu recebimento (CORTE INTERAMERICANA DE
DIREITOS HUMANOS; 2002; p. 07).

No mesmo ano foi reportada a Corte o continuo descaso com os presos do Urso
Branco após a resolução de 18 de julho, onde não havia tido ainda a visita de agentes do
Estado, nem obras para a melhoria da infraestrutura e outros centros penitenciários, em
descumprimento à legislação nacional ainda apresentavam policiais militares dentro do
presídio, sem nenhum indiciamento aos crimes já cometidos e principalmente as mortes
que ainda ocorreram exacerbando ainda mais o descumprimento as resoluções. Essa
sequência se sucedeu ao longo de 2002, onde ocorreram mais mortes e a ações da polícia
com grande violência os expondo a tratamentos cruéis.

CONCLUSÃO

A violação de direitos humanos na América Latina apresenta um longo histórico,


com isso a atuação de um sistema regulador se faz de estrema necessidade e ainda com
mais um somatório que é a questão carcerária. No policiamento realizado, infelizmente,
ainda é encontrado (além de ser objeto de procura por vítimas, Estados e instituições) o
rompimento dos direitos humanos, mas principalmente o das pessoas privadas de
liberdade e com destaque para o Brasil um dos maiores países com população carcerária
e a que mais cresce.

1379
Um dos casos que merece destaque é o da Penitenciária Urso Branco, que apesar
de ir para a Comissão e a Corte Interamericana de Direitos Humanos ainda houve
sucessivos massacres. Desse modo, ao menos no que diz respeito ao caso apresentado,
pode-se dizer que a atuação do Sistema Interamericano não foi eficaz na melhoria das
condições da população carcerária no Brasil, sendo que os direitos dessas pessoas
continuam sendo violados cotidianamente.

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em: 01 jun. 2017.

1382
O DIREITO A MIGRAR: A PERCEPÇÃO DA MIGRAÇÃO
HAITIANA PARA O BRASIL ATRAVÉS DA ANÁLISE DE
COMENTÁRIOS EM REPORTAGENS ONLINE

Cinthia Xavier da SILVA653

Resumo: O presente trabalho é parte da pesquisa de doutorado em Ciências Sociais que investiga
a migração haitiana para o Brasil com o objetivo de entender como é estabelecida e quais as
características da relação entre imigrantes e população local, especialmente na cidade de São José
do Rio Preto - SP. Para relacionar a dimensão micro da pesquisa de campo com um contexto mais
amplo acerca da acolhida de migrantes haitianos para o Brasil foram coletadas reportagens sobre o
tema através do buscador Google, com os termos de busca “Haiti” e “haitianos” entre 2015 e início
de 2017 e analisados os comentários. Das 27 reportagens coletadas, 11 possuíam comentários, em
sua maioria reportagens de 2015. Estes foram analisados através do método documentário de
Mannheim. Segundo Mannheim, é possível analisar o objeto através de três níveis de sentido, o
objetivo, o expressivo e o documentário. Sobretudo no sentido da ação documentada que, de
acordo com Mannheim, é possível compreender como o homem comum pensa, quais os meios
pelos quais ele pensa e a qual visão de mundo ele está inserido. Nesta análise separamos os
comentários entre aqueles que se manifestaram a favor da migração haitiana e aqueles que se
manifestaram contra esta migração. Foram destacados os termos que possuíam grande repetição
ou destaque significativo dentro dos comentários e agrupados em temas. Podemos evidenciar que
os temas relacionados à nacionalidade, preconceito e racismo, trabalho e desemprego além do
contexto político deste período delineiam a perspectiva de recepção ou não dos migrantes haitianos
na visão dos comentadores.

Palavras-chave: Acolhida. Comentários. Migração haitiana.

INTRODUÇÃO

A migração haitiana é um fenômeno importante na história da ilha caribenha. No


último século a migração fez parte de todas, ou em grande parte, das famílias haitianas.
Podemos dizer que o início desta migração mais sistemática se deu com a ocupação
americana em 1915, mas teve seu boom com a ditadura dos Duvalier de 1957 a 1986 654.
Apesar de a migração neste país ter estado relacionada a questões políticas durante longos
períodos, o fluxo migratório para o Brasil teve início com um evento climático-ambiental,
o terremoto de 2010 (SILVA; ASSIS, 2016).
Mas este fluxo migratório não se iniciou aleatoriamente. Segundo Sassen (2010),
apesar da intensificação da migração no último século, e de sua relação intrínseca com a

653
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Unesp/Araraquara; CAPES;
cinthiaxsilva@hotmail.com.
Uma história do Haiti pode ser consultada em: METZ, Helen Chapin. Dominican Republic and Haiti:
654

rd st
country studies . 3 ed. 1 impressão. Washington D.C.: Federal Research Division, Library of Congress,
2001.
1383
globalização, os fluxos migratórios têm origem e destino em países que mantêm relações
diplomáticas, militares ou econômicas anteriores. Neste sentido, devemos ressaltar a
relação entre Brasil e Haiti através da Missão das Nações Unidas para a Estabilização do
Haiti – Minustah, desde 2004 até o presente ano, 2017. A migração que se inicia pela rota
marítima e terrestre concentrou a entrada de haitianos em Brasiléia, Tabatinga e Assis
Brasil no Norte do Brasil até 2015, quando o abrigo humanitário foi desativado. Após a
crise humanitária nestas cidades e a retirada dos migrantes pelo governo do Acre com
destino a outras capitais do Brasil, principalmente São Paulo, o governo brasileiro
aumentou o número de concessões de vistos diários em Porto Príncipe e uma nova rota
foi traçada diretamente para as capitais dos estados, novamente se concentrando em São
Paulo.
Neste artigo vamos apresentar parte de nossa análise sobre a recepção de imigrantes
haitianos pelos brasileiros, que integra a tese de doutorado em desenvolvimento sobre o
tema. Como forma de ampliar a compreensão geral do fenômeno migratório haitiano no
Brasil e pelo impacto que tiveram as primeiras reportagens da situação em que estes
enfrentaram ao chegar aqui é que realizamos esta análise. Inicialmente pensávamos em
analisar os comentários de redes sociais, mas seria muito mais difícil delinear os
comentários pela multiplicidade de páginas, pelo fato de os comentários estarem diluídos
em páginas de pessoas imigrantes ou não, e pelo recurso de “deletar” comentários. A ideia
de analisar os comentários se fortaleceu após a leitura do artigo de Couto “Do Caribe para
a Amazônia: a migração fomentando a conexão entre duas regiões” (2016), no qual no final
do artigo a autora cita alguns comentários de leitores de reportagens publicadas em jornais.
Então, como havíamos realizado desde o começo da pesquisa em 2015 um levantamento
de reportagens online com os termos de busca “Haiti” e “haitianos”, retornamos aos sites
das reportagens arquivadas para coletar também os comentários. A partir de reportagens
também buscamos nos veículos de comunicação outras reportagens sobre o assunto. Esta
análise não tem como objetivo evidenciar o tipo de público ou o viés de abordagem de
cada jornal, mas concentrar a análise nos comentários dos leitores das reportagens sobre a
migração haitiana e identificar e relacionar termos que são recorrentes ou se destacam pelo
contexto histórico-social a fim de perceber traços da mentalidade coletiva sobre a migração.

O MÉTODO DOCUMENTÁRIO
Para a análise dos comentários recorremos ao método documentário de
Mannheim, desenvolvido no capítulo “On the interpretation of weltanschauung”, no livro

1384
“Essay on the sociology of knowledge” (1952). O método, segundo Mannheim, tem como
objetivo compreender a visão de mundo de determinado grupo em determinada época.
Neste livro, entre outros, o autor busca entender como os homens comuns pensam, ou
seja, não saber sobre como o pensamento funciona, ou como funciona para alguns homens
ilustrados, mas como os homens pensam e orientam suas ações. Neste método, Mannheim
analisa as ações dos indivíduos em três níveis, o sentido “objetivo”, o sentido “expressivo”
e o sentido “documentário”. O sentido objetivo é a forma como a ação é apresentada a
nós, é como ela é conhecida. O exemplo que o autor se refere no texto é sobre o ato de
seu amigo dar moedas a um mendigo. Em termos da natureza fisiológica do ato não há
nada que interesse para as ciências sociais, o ato de dar esmolas não pode ser analisado em
suas características fisiológicas. Mas dentro de um contexto social tem o significado de
caridade, de assistência. Este é o sentido objetivo da ação, aquele que nos é dado a
conhecer.
O sentido expressivo é a forma como o sujeito da ação a expressa. Segundo o autor,
no ato de dar moedas ao mendigo seu amigo também quis transmitir um sentimento de
simpatia para com ele ou com o mendigo. Neste caso além do sentido objetivo da ação que
é a assistência, está vinculado o sentido expressivo que pode ser chamado de compaixão
(MANNHEIM, 1952, p. 46). O sentido expressivo está relacionado com a subjetividade
do sujeito da ação. No entanto, não nos é possível conhecer o sentido expressivo pela
subjetividade interna do sujeito, mas através de sua expressividade do ato e da recorrência
deste ato.
Já o sentido documentário é a forma como o espectador percebe a ação, não no
seu sentido psicológico de interpretação do sujeito, mas no seu sentido cultural. Como se
trata de um sentido totalmente diferente do sentido objetivo e do sentido expressivo,
segundo o autor, é possível sem uma análise acurada do sentido expressivo, poder
interpretar o sentido documentado.
O autor exemplifica o método com uma análise de obras de arte, e demonstra como
a obra pode ser analisada em seu sentido documentado sem uma análise do seu sentido
expressivo, ou seja, de todo o processo pelo qual o artista realizou a obra. Uma escultura
ou uma pintura pode documentar traços específicos de uma época em um único
fragmento, em uma única obra, e pode ser capturado a partir de um olhar sensível quanto
ao que foi documentado. Como parte da análise, o pesquisador ainda deve buscar
evidências em outras obras, não para completar a análise, pois cada parte pode dar a
compreensão do todo, mas para corroborar o sentido documental com outras instâncias

1385
homólogas (MANNHEIM, 1952, p. 57). É desta forma que podemos dizer que
determinadas obras tem o estilo “Goetheano”, “Shakespeariano”.
Ainda é preciso dizer que, segundo o autor, o sentido documentário de um mesmo
objeto pode mudar de sentido conforme o contexto histórico no qual a interpretação é
realizada e em que o intérprete está inserido, devendo ser realizada novamente em cada
novo período (MANNHEIM, 1952, p. 61).
No Brasil a socióloga Weller (2002) é atualmente a principal representante no
estudo do método documentário e em aplicá-lo em diversos objetos de pesquisa. Weller
se refere tanto a Mannheim quanto a Bohnsack, que segundo a autora fez o esforço de
desenvolver o método documentário para outras áreas a partir da análise e reconstrução
do “sentido dessa ação no contexto social em que ela está inserida” (WELLER, et al. 2002,
p. 377).
Assim, nosso objetivo é compreender num âmbito mais amplo através da análise
destes comentários qual a visão de mundo que orienta a forma como a migração haitiana
é percebida pelos brasileiros. Ainda que apenas uma parte dos leitores dispõe-se a
comentar as reportagens vamos considerar, assim como pensa Mannheim, os comentários
como um todo.

ANÁLISE DOS COMENTÁRIOS

Foram coletadas através do buscador Google655 vinte e sete reportagens das quais
onze possuíam comentários que foram analisados. As outras dezesseis reportagens ou não
tinham comentários ou o site ou blog não possibilitavam o registro de comentários.
Observamos que algumas temáticas eram recorrentes, como: a ascendência imigrante
(italianos, alemães, portugueses, principalmente); as cotas e o programa bolsa família; e o
desemprego, a pobreza e o governo. Estes temas, embora encontrados dentro de um fato
específico, a migração, recuperam elementos importantes da história brasileira como a
imigração, a escravidão e o racismo. Somados a este contexto histórico-social mais amplo
temos o contexto político do país, as investigações sobre corrupção e o processo de
impeachment da presidente da república.
Na análise selecionamos termos que percebemos como recorrentes e significativos
no desencadeamento dos comentários e destacamos em cores os termos que apresentavam

655
Coletamos as primeiras reportagens que apareciam na página do buscador.

1386
alguma relação entre si. Desta forma achamos mais fácil visualizar os temas e poder
relacionar os termos destacados. Separamos os comentários entre aqueles que se
manifestavam 1) a favor da migração haitiana e 2) aqueles que se manifestavam contra a
migração haitiana. Classificamos como sendo contra a migração haitiana também aqueles
comentários que se valeram de migrações anteriores da história brasileira para justificar
posição contrária à migração atual dos haitianos e, os comentários que ressaltavam o
momento político e econômico de crise como desfavoráveis. Os comentários que se
referiam a outras questões tratadas nas reportagens e aqueles que não conseguimos
perceber se estavam a favor ou contra migração foram separados como “indefinidos” e não
foram analisados aqui. No entanto, a linha que separa os comentários a favor e contra a
migração haitiana é tênue e nossa interpretação está vinculada à literatura estudada na
pesquisa e no desencadeamento das discussões nos comentários. A exposição a seguir foi
dividida, então, a partir dos temas observados nas discussões.

SOBRE O TERMO “FILHO”

A palavra filho, de modo geral, tanto é mencionada para se posicionar a si próprio


ou a outros como filhos de imigrantes e para se referir ao futuro de seus próprios filhos.
Também há nos comentários a favor da migração menção ao acolhimento dos imigrantes
como a ação de deixar um exemplo para seus filhos. O termo “filhinho” foi mencionado
uma vez nos comentários a favor da migração, como podemos ver a seguir: “E médico que
entre uma aula e outra estupra colegas de classe e fuma maconha? Todos sabem que isto
é praxe nas faculdades de medicina de luxo exclusiva pra filhinhos de papai aqui no Brasil”
(p. 0/ n. 0).
Foi desencadeado em uma discussão sobre as cotas raciais e o comentador está
respondendo a este comentário: “Eu jamais procuraria os serviços de um
engenheiro/arquiteto, que tenha entrado na faculdade através de cotas .... médico cotista
????? ....NUNCAAAAAAAAAA !!!! (p. 19/ n. 15).

A discussão sobre as cotas raciais é um dos assuntos mais comentados, como vamos
ver. O uso do termo “filhinho” se remete tanto a expressão “filhinho de papai”, aquele que
não precisa trabalhar, aquele que será protegido pelos pais, quanto o diminutivo no
contexto das discussões expressa a tentativa de diminuir a importância de determinado
grupo social.

1387
Nos comentários contra a migração haitiana, o termo “filho” também aparece para
mencionar a ascendência a migrações anteriores. No entanto, quando fazem menção a seus
filhos é no sentido de preocupação com a possível falta de algo para eles.

É realmente haitiano aqui no brasil está sendo um problema


principalmente aqui em minha região estão formando algum tipo de
sindicato já tem até templo evangélico com os seguintes dizeres Templo
Evangélico………..dos Haitianos tbem pudi ver uma mulher em uma feira
livre discutindo muito com vendedor deu para perceber que era uma
haitiana por observar que falava muito pouco a Língua Portuguesa o que
tenho a dizer o Brasil não tem condições de recolher outro país dentro
dele o que si vê por aqui é haitiano em todos os lugares em albergue em
quitinete em toda parte mesmo é hora do Governo ver isto e procurar
dar um basta nisto nosso povo é humilde mas humildade tem limite estão
acabando com alimentos de nossos filhos nossos netos aonde vai parar
isto

Isso ainda é pouco, tem mãe brasileira perdendo a vaga do filho na


creche para filhos de haitianos...isso deixa claro que o Estado não
comporta mais pobreza vindo de fora (p. 10/ n. 3).

Dias atrás um grupo de mulheres haitianas estava com uma leva de filhos
para colocá-los em uma creche, por fim várias mães brasileiras da
pobreza nacional não conseguiram vagas para seus filhos, pois haviam
perdido as vagas para a pobreza estrangeira (p. 20/ n. 6).

Os comentários acima evidenciam o acesso ao direito como algo limitado. O


sentido documentado é um anúncio de que no futuro essa migração trará problemas, mas
que já pode ser sentido no fato de “nossos filhos” serem prejudicados em favorecimento
dos “filhos dos outros”. Outro fator mencionado é o da visibilidade. Estes comentários
apresentam um desconforto e uma evidência de que estamos vendo-os por toda parte, eles
estão na igreja, estão no sindicato, estão na feira, estão na escola. A reclamação é de que
estamos os vendo demais, isso é um problema. Ainda há a questão de ter “uma leva de
filhos”. A quantidade de filhos no Brasil é associada aos estratos mais pobres de forma
pejorativa. Quando os migrantes possuem “muitos filhos” são associados com o estrato
considerado mais “atrasado” na sociedade.
Ainda sobre o termo filho, vimos que nos comentários a favor da migração foi
usado o seu diminutivo masculino na expressão “filhinhos de papai”. Nos comentários
considerados contra a migração foi usado o seu diminutivo feminino, “filhinha”, se
referindo a um comentador que critica o comentário anterior. A sequência dos
comentários está exposta a seguir:

1388
[...] essa gente só vem trazer AIDS e roubar, aqui em SC tá cheio desses
aí, enchem os hospitais, enchem as creches, enchem as ruas, porquices,
e por aí vai, daí chegam e já ganham direito de votar aqui, e pra quem
eles vão votar? (p. 108/ n. 43).

Quero lembrar que xenofobia e racismo são crimes e que se vc está


achando que se esconde atrás de uma página de internet está
completamente enganado. Em dois tempos te acham até no inferno,
internet deixa rastros e os criminosos são punidos ainda mais rápido (p.
72/ n. 9).

[...]656, não é so em SC esse problema. Em São Paulo já tem até quadrilha.


Engraçado que para o Rio e nordeste eles não vão (p. 13/ n. 4).

[...] - xenofobia todo bem, mas racismo não, não me lembro de ter citado
ofensas ou injurias por aqui, acho que você precisa é parar de se meter,
só falo verdades aqui meu amigo, não gostou? então adote um haitiano
pra morar com você (p. 18/ n. 1).

[...], podia ter dormido sem essa ... (p. 10/ n. 1).

[...] de preferência cm a esposa e a filhinhas dele.. (p. 5/ n. 0).

Enquanto o termo “filhinhos” se refere à expressão “filhinhos de papai”, o termo


“filhinhas” expresso logo após a palavra “esposa” alude à expressão “filha da mãe”. Em
ambos os comentários o termo no diminutivo foi usado para diminuir a relevância do
interlocutor, mas as expressões que se referem têm, dentro do contexto social, significados
diferentes, quase que opostos. “Filhinho de papai” é mais comumente usado para se referir
a pessoas que tem benefícios por hereditariedade, e “filha da mãe” ou mesmo “filho da
mãe” é usado como uma ofensa social em momentos em que se pretende despersonalizar
ou “despessoalizar” alguém aludindo à generalização da progenitora.

SOBRE AS “NACIONALIDADES”

Nos comentários a favor da migração as nacionalidades aparecem geralmente como


uma advertência sobre o passado migrante dos brasileiros. A nacionalidade mais
mencionada depois da haitiana é a italiana na qual desencadeia uma longa discussão que
acessa o imaginário coletivo de uma divisão do Sul com o restante do Brasil. Os
comentários expressam tanto a concepção daqueles que pensam que os moradores do sul
do Brasil se sentem superiores ao restante do país quanto àqueles que defendem que a

656
Suprimimos o nome dos comentadores quando foram citados em comentários.

1389
população do sul é receptiva, que está ajudando os migrantes, e que esta é uma visão
superficial, midiática do que acontece no sul do país.

É importante tocar nessa ferida. Moro no norte do RS, em uma cidade


com forte colonização italiana. Os relatos de racismo são numerosos.
Conheci um rapaz de origem senegalesa, que iniciou seu próprio
negócio, e sofreu com o racismo e tentativas de sabotagem de uma
empresa que o via como concorrente (empresa aliás que se considera
dona da cidade...) (p.7/ n.0).

[...] aqui em SP os mais racistas e que bradam contra programas sociais,


são os descendentes de italianos
[...] já falei isso aqui no DCM e fui taxado de xenófobo
[...] a ironia é que os italianos ganharam lotes dos governos, se fizeram
ou tiveram seu caminho facilitado por isso, enquanto os negros libertados
30 anos antes, não ganharam nada, e hoje ainda são alvo por causa das
cotas, que tentam reparar esta injustiça social (p.3/ n.0).

Nos comentários contra a migração haitiana a nacionalidade é novamente ressaltada


como origem, o que pode ser percebido principalmente nas discussões sobre trabalho e
emprego se referindo à imigração da passagem do século XIX para o XX, principalmente
de italianos e alemães. Apesar de o termo Haiti/haitiano aparecer várias vezes nos
comentários, alguns destes são significativos, pois adjetivam estes termos, objetificando um
imaginário sobre o Haiti na pessoa haitiana.

Veja como é o haiti, e daí se conclui como será o Brasil com os haitianos
(p. 2/ n. 1).

EU JÁ TIVE VIZINHOS AFRICANOS. OS QUE EU JÁ TIVE


FICAVAM TODO O TEMPO NA RUA EM FRENTE A CASA.
PARECEM NÃO GOSTAR DE AMBIENTES INTERNOS. NA
RUA FAZIAM BARULHO, JOGAM BOLA NOS PORTOES DOS
VIZINHOS, SOLTAM BOMBAS, ETC. QUANDO RECLAMEI
COMEÇARAM A JOGAR PEDRA NA MINHA CASA. NÃO É A
COR QUE GERA O ÓDIO. É O COMPORTAMENTO DE
DESRESPEITO. SE EU TIVESSE JAPONESES VIZINHOS QUE
TIVESSEM ESSES COMPORTAMENTOS QUE CITEI TERIA
AVERSÃO A ELES TAMBÉM (p. 26/ n. 4).

Junto com os haitianos entram africanos também e devido a falta de


controle sanitário, entram pessoas contaminadas com o vírus zica
(originário da África) que são picadas pelo mosquito Aedes Egypt e o
resultado está aí! O vírus espalhado pelo Brasil! Virou problema de
saúde pública! Endemia! E o governo vem com esta 3. História que o
vírus veio com a Copa do Mundo! O governo pensa apenas em arrecadas
votos nas eleições! Estão pouco preocupados com a saúde da população
(p. 18/ n. 4).

1390
A relação entre haitianos e doenças aparece também em outros comentários. O
que deve ser ressaltado é a personificação da doença com a nacionalidade e a cor.
Principalmente após o terremoto de 2010 aumentou o número de doenças contagiosas e
infecciosas no Haiti, pelo seu sistema de saúde precário e pela destruição de redes de
esgoto e de água tratada, principalmente da cólera, fato que rendeu grande hostilidade à
Minustah pelos haitianos naquele momento. Também podemos observar no comentário
a relação entre haitiano e africano. É uma relação constante que demonstra a falta de
conhecimento da população quanto às nacionalidades, mas que por outro lado demonstra
a associação primeira com a cor. Nesta relação entre haitianos e africanos (numa
generalização, como é mencionado) destaca-se os casos de ebola no Brasil por parte da
população autóctone657.
Alguns se referem à migração no sentido de anúncio de uma possível epidemia
quando, por exemplo, fazem referência aos migrantes com o termo “praga”.

Fiquem no seu pais seus sapohha! essaracinha enche o brazil ... fora que
ainda trás um monte de doenças junto.... (p. 4/ n. 9).

Pragas...nada mais do que isso... (p. 6/ n. 17).

SOBRE OS TERMOS RELACIONADOS À RECEPÇÃO

Os termos bem-vindo, solidariedade, humanitário, humano, ajuda, amor e deus


aparecem principalmente nos comentários a favor da migração ou ainda associados com
“meus queridos” ou “queridos”. Nos comentários contra a migração as palavras aparecem
relacionadas como: deus nos ajude; pelo amor de deus.
Em quase todos os sites o comentário pode ser avaliado pelos demais leitores como
positivo ou negativo. Muitos comentários a favor da migração recebem mais avaliações
negativas, enquanto percebemos que comentários contra a migração recebem mais
avaliações positivas. É algo que vamos destacar no comentário a seguir, o qual recebeu 18
avaliações como positivo e 50 como negativo.

657
http://g1.globo.com/pr/oeste-sudoeste/noticia/2014/10/apos-suspeita-de-ebola-haitianos-enfrentam-
preconceito-em-cascavel.html

1391
Tenho orgulho de morar em um país, no qual recebe imigrantes, e
aumenta cada vez mais a nossa cultura, proporcionando maior
diversidade (p. 18/ n. 50)

Nos comentários contra a migração não há manifestações de boas vindas para os


migrantes haitianos. Alguns comentários enfatizam que a ajuda tem que acontecer no Haiti,
mas muitos comentários demonstram neste sentido ser totalmente contra a permanência
dos migrantes. Basicamente, nestes comentários aparece de forma mais clara a rejeição a
esta migração.
O conteúdo de deportação e de controle das fronteiras aparece de forma bem clara
em alguns comentários. Nestes há praticamente um diálogo com o governo pedindo
controle da imigração, construção de cercas nas fronteiras e até um pedido de “Trump
presidente”.

DEVEM SER TODOS (TODOS) EXPULSOS IMEDIATAMENTE

D E P O R T A Ç Ã O - U R G E N T E, o Brasil não é manicômio do


planeta. Já tem doido demais por aqui.

O solução para o planeta acre, seria cria uma cerca grande e alta cm 500
volts... (p. 5/ n. 2).

Desgraça. Tem que mandar essas pragas de volta pro inferndo de onde
vieram. Trump presidente! (p. 9/ n. 20).

o estado de sp , podia fazer igual o eua com o mexico , colocar logo umas
cerca dividindo o territorio das outras fronteiras (p. 45/ n. 19).

Também há um ressentimento em relação ao governo, no sentido de que os


governantes não estão percebendo que já há problemas demais no Brasil, principalmente
em relação à pobreza e que não é o momento para oferecer ajuda humanitária.

Ser ministro encerra a emissão de vistos e deporta a maioria que tá aqui


ilegal! No entanto o sr aumento o numero de vistos?osr tá declarando
guerra contra os brasileiros? (p. 40/ n. 16).

Eu fico mepetguntandooq esse. povo vem acrecentar no brasil?? No


minimo trazer mais pobreza para o pais!!! Fecha a fronteira e manda todo
mundo de volta de onde veio!! (p. 159/ n. 32).

E os milhões de brasileiros que estão na mesma situação dos haitianos


,precisando de ajuda por questões humanitárias nenhum país do mundo
abre suas portas para recebe-los (p. 77/ n. 6).

1392
até que enfim uma ótima noticia .....já basta que os portugueses deixaram
com os navios negreiros (p. 6/ n. 6).

JA QUE O GOVERNO DILMA QUER AJUDAR PORQUE NAO


PROMOVE NO HAITIAJUDAS A ESSES HAITIANO,ARABES E
OS NORDESTINOS POIS ELES FICARIAM BEM MELHOR
PROXIMO DO LUGARES QUE NASCERAM, POIS AQUI SO
IRAO SOFRER DISPUTAS PARA CONSEGUIR TRABALHOS E
SOBRECARREGAR A SECRETARIAS. BEM ESTAR, SAUDE,
SEGURANÇA ETC

Este comentário, por exemplo, demonstra uma visão superficial dos problemas que
possam levar pessoas a migrar. É fato que poucas pessoas migram porque podem escolher
migrar. No entanto, ainda que haja concomitantemente uma política de desenvolvimento
ou assistência em regiões degradadas, não se pode cobrar que estas pessoas permaneçam
no mesmo lugar até que se resolvam os problemas. Isto porque muitas migrações são
iniciadas por governos de outras regiões para conseguir suprir demanda por trabalhadores,
ou governos de outras regiões que causam degradação em uma área para conseguir extrair
minérios, água, e todos os tipos de recursos, portanto, não sendo causadas por seus
próprios moradores.

SOBRE OS TERMOS REFERENTES A “COTAS” E POLÍTICAS SOCIAIS

Os termos cotas, cotistas, bolsa família, bolsa imigrante aparecem relacionados.


Este assunto foi o mais comentado, principalmente em uma reportagem do G1,
Globo.com, “Nº de haitianos que entram no Brasil pelo Acre cai 96% em 12 meses”,
(08/01/2016) no qual recebeu 379 comentários. Neste site os comentários podem ser vistos
como “recentes” ou “populares”, isto porque é possível responder a comentários.
Analisando o horário de postagem dos comentários é possível dizer que provavelmente a
maior parte dos comentários da reportagem citada acima pode ter sido desencadeada após
este comentário:

Tenho uma amiga que perdeu a chance de cursar a faculdade porque


perdeu a vaga para um preto cotista, passou alguns meses o animal
deixou de estudar.... a moça foi prejudicada por um método racista do
governo onde se vê a cor da pele e não a capacidade (p. 616/ n. 278).

É importante destacar que 616 leitores o avaliaram como positivo e 278 como
negativo, ou seja, 68,9% das pessoas que opinaram validam a opinião deste comentador.

1393
A partir de então se desencadearam vários comentários sobre as cotas para negros,
sobre as cotas para alunos de escola pública e sobre o programa bolsa família. Também foi
mencionada a “bolsa imigrante” em São Paulo, se referindo provavelmente às ações da
prefeitura de São Paulo, da “Coordenação de Política para migrantes” da Secretaria de
Direitos Humanos. Dentre os comentários a favor da migração incluímos aqueles que se
posicionaram de certa forma a favor dos programas de cotas e de bolsas assistenciais, ou
contra o comentário mencionado acima relacionado-o com o racismo e o preconceito.

[...] as cotas não só para negros, são para alunos oriundos do ensino
publico seja branco ou negro, índios e etc. esse cara ai não passa de um
covarde racista querendo criar discórdias. o que mais me deixa nervoso
e não poder vê-lo pessoalmente (p. 6/ n. 11).

Qtos playbas estão curtindo a vida na europa às custas do ciência sem


fronteiras, mas todos acham lindo mantê-los com nosso dinheiro, no
entanto, qdo se trata do sistema cotista, cuja pessoa tem que empenhar
para conseguí-lo ficam esses mentes atrofiadas aqui escrevendo besteiras
(p. 6/ n. 11).

Nos comentários que consideramos como contra a migração haitiana também


colocamos aqueles que são contra as cotas por estar associados à discussão de que os
haitianos estão migrando para o Brasil com direito à bolsa e que conseguirão também
entrar no sistema de cotas por serem negros. Ainda estão associados a uma crítica ao
governo e ao bolsa família, como vamos ver a seguir.

Enquanto o seu filho rala o ano todo para tentar entrar numa
universidade e não consegue o governo libera bolsa para estudantes
estrangeiros para ganharem 2 a 4 mil para estudar em universidades
federais no país. Procurem saber sobre o PEC-G !!! (p. 106/ n. 24).

É a coisa mais racista do mundo. Beneficiar alguem pela sua Cor! Acho
as cotas válidas não pela cor, mas sim da condição social da pessoa (p.
36/ n. 4).

TAMBÉM VÃO DIZER QUE SEUS ANTEPASSADOS FORAM


ESCRAVOS NO HAITI E POR ISSO TEM DIREITO A COTAS
NO BRASIL. ETC.ETC.ETC. PASSAM O DIA INTEIRO
BEBENDO E JOGANDO BARALHOS E DEPOIS TEM MAIS
FACILIDADE PRA ENTRAR NUMA FACULDADE FEDERAL (p.
19/ n. 3).

Aqui eles têm a bolsa imigrante e, já não chega termos que sustentar os
nossos improdutivos, ainda mais esse achaque (p. 21/ n. 4).

1394
O comentário sobre as cotas desencadeou uma discussão sobre os termos “branco”,
“negro” e “preto”. De forma geral, o termo “preto” é usado de forma pejorativa, e
consideramos estes comentários como sendo contra a migração. Consideramos como
comentários a favor da migração aqueles que criticam o uso desta forma pejorativa, por
exemplo, há uma denúncia de racismo por parte de um comentador e desencadeia uma
discussão sobre se chamar de preto é ser racista.

[...]...estou te denunciando agora no SAFERNET ORG BR não adianta


apagar entra lá espertão (p. 25/ n. 57).

O comentário a seguir é, talvez, um dos mais ofensivos. Foi postado em um blog


da revista Veja, e não possibilita a avaliação de positivo e negativo, também não é possível
saber se ele está respondendo a alguém, mas provavelmente ao próprio autor do texto.

Leva todos esses pretos feios, vagabundos e fedorentos pra sua casa seu
merda

O próximo comentário é tão contrastante que nos leva a pensar que possa ser
irônico. Mas o apelido do comentador só aparece uma vez nos comentários, então não é
possível compará-lo com os outros do mesmo autor para dizer se é uma ironia. Se formos
considerá-lo como uma afirmação está presente tanto o desejo de aniquilação dos negros
quanto de outro lado a valorização dos migrantes europeus. De qualquer forma, sendo
ironia ou não, o que está documentado é uma divisão entre os migrantes aceitáveis e não
aceitáveis, uns chamados europeus, os outros chamados pretos.

É ISSO MESMO, ESSES PRETOS TEM QUE MORRER


SE FOSSEM EUROPEUS, TUDO BEM, NÃO FICARIAMOS
INDIGNADOS

O termo “branco” aparece nos comentários contra a migração como desvalorizado


dentro da política de cotas ou como um denominador comum, ou seja, há racismo tanto
para branco quanto para negro.

O PT esta reforçando suas bases trazendo mais bandidos para o brasil,


estes haitianos vagabundos, que já descobrirão, que no brasil não precisa
trabalhar. Qual pais africano e produtivo, só em natalidade mesmo., Para

1395
que o resto do mundo continuem tendo peninha deles., porque sera que
só os negros e índios precisa de cotas porque nós os brancos não temos
o mesmo direito, será que somos mais que eles.É preciso nos dar estes
mesmos direitos porque somos brancos e não nos deram o direito de
escolher nossa cor de pele. deve esta sobrando cotas por isso tem que
trazer mais negros pra cá.

Coitado do jovem branco que mora na periferia. Ele não tem direito a
cota (p. 59/ n. 3).

Pois é, ser branco, trabalhar, ter uma casa e um carro, tornou-se ofensa
racial, e o suficiente para ser mal visto pelo governo (p. 3/ n. 1).

ESTATISTICAMENTE OS NEGROS MATAM MAIS OS


BRANCOS DO QUE O CONTRARIO (p. 8/ n. 6).

Nestes comentários o negro também aparece como uma ameaça social: são os que
mais matam brancos, o que nesta explicação justificaria uma política mais ostensiva em
relação aos negros e não aos brancos.

SOBRE “PRECONCEITO”, “RACISMO” E “XENOFOBIA”

Os termos preconceito, racismo e xenofobia aparecem quase sempre associados. É


interessante observar que existe mais um reconhecimento em ser preconceituoso e
xenófobo, e uma recusa em ser considerado racista. Nos comentários a favor da migração
encontramos principalmente aqueles que estão rebatendo comentários que consideram
preconceituosos, racistas e xenófobos.

Olhem os índios dando uma de xenófobos europeus. Depois reclamam


quando são maltratados na Europa ao tirarem selfie a esmo. Conheço
alguns Este crime hediondo é resultado da propaganda à intolerância e
preconceito veiculado diariamente pelas redes sociais, onde pobre,
negro, índio, nordestino, gay, petista e comunista são passíveis de
extermínio. Já vimos esse "filme" de terrror no nazi-fascismo europeu...
Essa é a "democracia" da mediocridade! (p. 0/n. 0).

Nos comentários que consideramos contra a migração os termos racismo e


xenofobia estão associados à discussão sobre cotas e apresentam justificativas para as
acusações de racismo feitas por comentários que são a favor da migração.

Ele não exagerou, oras, ele pode até racista, mas não demonstrou isso
aqui. A grande maioria dos negros, fazem questão que os chamem de

1396
preto, negro lembra muitas coisas que nós, referimos à algum mal. E ele
ainda finaliza, dizendo que quem é racista, é o governo. Onde houve
exagero? (p. 48/ n. 14).

Querem igualdade mas querem quotas. Discordar, não gostar não é


racismo. Racismo é barrar, impedir. Vão estudar seus burros (p. 36/ n.
12).

Ahhclichezinhoridiculo esse de xenofobia e racismo [...]...Então faça


algo útil á eles adote um haitiano ou uma familiahaitiana e pronto.. (p. 6/
n. 1).

Os comentários tendem a reiterar que racismo é só quando há agressão, caso


contrário se trata de uma livre expressão de pensamento. Em outros comentários há uma
referência explícita entre a história do Haiti e os haitianos, mas quando se trata do nosso
histórico de racismo os comentadores buscam não serem relacionados a esta característica.
Sua posição política sobre o assunto é deslocada do contexto histórico-social e
exemplificada como uma característica individual e isenta.

SOBRE OS TERMOS REFERENTES AO GOVERNO

Além da questão das cotas e das bolsas, a política esteve presente de diferentes
formas nos comentários. Apenas para mencionar a palavra “governo” e suas derivações
incluindo “desgoverno” foi referida 12 vezes nos comentários a favor e 60 vezes nos
comentários contra a migração haitiana. Dentre as questões políticas nos comentários a
favor da migração destacamos:

É [...] vocês não toleram a política de inclusão social do PT. Pobre


viajando de avião; pobre na faculdade; no ciência sem fronteira;
comendo em restaurantes; andando de carro; tendo casa para morar.
Para vocês pobre só tem que servir vocês. Veremos no Juízo final! (p. 2/
n. 14).

Nos comentários contra a migração existe uma associação da migração haitiana com
o governo do PT e de que os migrantes seriam potenciais eleitores, com a Minustah e com
termos que se referem a um imaginário da esquerda na América Latina: há referência ao
MST, ao bolivarianismo, ao castrismo, ao comunismo, ao “exercito de Stédile”, ao Foro
de São Paulo e à guerrilha armada.

1397
O país não tem emprego nem para quem é daqui, imagina para
imigrantes.
A verdade é que essa onda de imigrantes haitianos é tudo culpa do Lula.
Com a sua ambição para que o país tenha um assento permanente no
Conselho de Segurança da ONU (algo que já é ridículo, pois dá poder
absoluto para poucos países), o “ex”-presidente decidiu mandar tropas
brasileiras para o Haiti (como se aqui já não tivessem poucos problemas,
junto com a propaganda falsa do PT. O resultado é esse (imigrantes
iludidos pela propaganda petista).
PS: Algum socialsita poderia me responder o motivo dos haitianos
enfrentarem isso tudo para chegar ao Brasil se o “paraíso” socialista
(Cuba) fica praticamente colado ao Haiti?
http://1.bp.blogspot.com/-
LSTpiBik1OY/T26oEVh__0I/AAAAAAAAGN8/zMBkVix1zLA/s16
00/mapa-haiti.gif

Mts deles já conseguiram documentos e nacionalidade ilegalmente e


ninguém faz isso sem uma contrapartida. Não vai me espantar se tiver
um político facilitando isso, e para conseguir votos vale tudo neste país
(p. 1/ n. 1).

A grande maioria em Sao Paulo, fazendo parte do "exercito do Stedile".


Recebendo pao com mortadela mais 35 reais para engrossarem as
anêmicas manfestacoes contra o impeachment. É para isso que sao
trazidos (p. 11/ n. 5).

Destes comentários podemos observar que o momento político também se tornou


justificativa para se posicionar contra a migração haitiana e pode até mesmo ter aumentado
a proporção de pessoas a comentarem as reportagens, mas para isso seria necessário
analisar os comentários em outros contextos políticos. Mas há uma proporção muito maior
de comentários criticando o governo do PT do que do PSDB. O PSDB é citado duas vezes
e o PMDB uma vez nos comentários contra a migração reclamando o fato de que o PT
estaria enviando haitianos para lugares governados pelo PSDB para desestabilizar o
governo. Mesmo o termo “coxinha” é usado apenas três vezes por comentadores a favor
da migração. Há, no entanto, uma gama de termos mais amplos para se referir ao então
governo e ao comunismo e à guerrilha armada.

SOBRE OS TERMOS REFERENTES AO “TRABALHO”

Outro tema bastante mencionado foi quanto à questão do trabalho, emprego e


desemprego. Este tema foi assunto principalmente entre os comentários da reportagem do
site de notícias Diário do Centro do Mundo, “O racismo dos filhos de imigrantes no Brasil
contra os haitianos”. Esta reportagem teve 115 comentários. É importante mencionar que

1398
dentre os 228 comentários selecionados como a favor da migração, 83 foram desta
reportagem, ou seja, o equivalente a 36,4% do total.
Dos comentários a favor da migração existem duas principais linhas de
argumentação: a de que os migrantes haitianos são fortes e gostam mais de trabalhar do
que os brasileiros; e uma discussão sobre a imigração italiana e alemã para o sul do Brasil
no início do século XX, no qual alguns defendem que naquela imigração havia necessidade
de mão de obra, e outros evidenciam que havia mão de obra, a dos escravos libertos, mas
de que o governo incentivou a migração italiana e alemã como uma política de
branqueamento da população.

Estou muito feliz com essa notícia, espero que cada vez mais cheguem
haitianos ao Brasil e à São Paulo. Os haitianos ajudam São Paulo a
alavancar seu desenvolvimento econômico e social, pois os imigrantes
centro africanos trazem consigo vigor de um povo adepto ao trabalho e
no viés social os haitianos nos brindam com a multiculturalidade. A
multiculturalidade é inerente as civilizações humanas, nada mais rico do
que a diversidade humana (p. 2/ n. 3).

(...) Quando os europeus chegaram, faltava mão de obra(...). Na verdade


essa é uma grande falácia contada com o objetivo de justificar o racismo..
Existia mão-de obra: negros libertos, alforriados, que exerciam diversas
funções especializadas (sapateiros, doceiros, canoeiros). O que se tentou
com a imigração europeira foi o embranquecimento da população com
o slogan de dar ares de "civilidade a população". O resultado vemos todos
os dias no Brasil: a posição marginal em que o negro se encontra (p. 20/
n. 0).

Nos comentários contra a migração o principal argumento é que não há emprego,


o país vive uma crise, e já há muita mão de obra desqualificada no Brasil.

Nada disso. Vistos de entrada deveriam ser dados baseado em


qualificação educacional e profissional. O Brasil não pode virar
recipiente de todo e qualquer haitiano desesperado pela falta de
perspectiva em seu país. Temos que aceitar aqueles que possam, após
um curto período de adaptação, ganhar o seu próprio sustento e
contribuir para a sociedade brasileira. De que adianta receber essas
pessoas não qualificadas, que nem português sabem ler ou escrever ?
(Bem, considerando que o nosso ex-presidente também não sabe,
enfraquece a minha argumentação) Serão somente mais alguns a
engrossar o MST, MTST, ou receber 35 reais para participar de
manifestações pró-governo.

Eu teria orgulho se fossem imigrantes qualificados. Doutores,


pesquisadores, profissionais habilidosos, artistas. Peão acho que a gente
tem pra exportação (p. 15/ n. 4).

1399
A relação mais direta presente nos comentários contra a migração é que o Brasil
pode permitir migrantes, mas altamente qualificados, que irão desempenhar uma função
específica no país. Ainda que muitos comentários a favor da migração evidenciem que
muitos migrantes haitianos são qualificados e que uma vez empregados também se tornarão
consumidores, recolhendo impostos, e gerando demanda, o argumento contrário que
persiste é que estamos importando pobreza o que já existe em excedente no Brasil.

CONCLUSÕES

Para finalizar, podemos ainda mencionar uma característica importante nos


comentários, principalmente contra a migração, a desinformação e a confusão de fatos e
datas. Existe uma leitura dos jornais, mas não uma confrontação dessas informações com
a busca pelos dados disponíveis em outros sites. Também podemos observar que existe
por parte daqueles que são contra a migração três grandes medos: o de perderem o
emprego; o de que migrantes votem; e o de perderem benefícios pelas cotas. Mesmo que
estes três medos não representem uma ameaça iminente a toda população, no imaginário
das pessoas que se posicionaram contra a migração eles existem de fato e são associados a
uma ameaça e por isso devem ser combatidos totalmente com a deportação e com a
proibição.
Observamos que os comentários a favor da migração usam muitas vezes um certo
tom de ironia, estão em menor quantidade comparados aos comentários contra a migração
e muitas vezes aparecem como respostas a estes. Nestes comentários há uma religiosidade
inerente dentro da perspectiva de ajudar, de compartilhar, e aparecem ainda alusões a um
provável “juízo final” onde as injustiças serão enfim reparadas. E que, no geral, por
influência da pesquisadora ou pelo desencadeamento da discussão são também os
comentários menos agressivos.
Além disso, devemos reforçar que percebemos que os momentos político e
econômico tiveram influência na posição dos brasileiros quanto à recepção de migrantes
reforçando estereótipos e o racismo. Esta análise nos possibilitou uma interpretação mais
ampla da forma de recepção da migração haitiana no Brasil e assim como traçar um quadro
geral das características que constituem o “espírito de uma época” como sugere Mannheim
(1952). Ou seja, posicionamentos em relação ao pertencimento ao grupo, à nacionalidade,
aos direitos, à posição social, à política, ao governo.

1400
REFERÊNCIAS

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duas regiões. In: SILVA, Sidney A.; ASSIS, Gláucia O. Em busca do Eldorado: O Brasil
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Preto e Araçatuba TV TEM, 10 ago. 2015. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-
paulo/sao-jose-do-rio-preto-aracatuba/noticia/2015/08/haitiano-tem-ataque-de-furia-e-
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1401
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tipicas-haitianos-mudam-a-cara-do-glicerio.shtml. Acesso em: 04 ago. 2015.

1402
A CRISE DE REFUGIADOS NA EUROPA: PERCEPÇÕES DO
COSMOPOLITISMO E NACIONALISMO

Roberta CAVA658

Suellen Manzato Della Coletta CARROLL659

Resumo: Os recentes conflitos civis no Oriente Médio, especialmente na Síria, apresentam como
uma de suas consequências mais notórias a entrada em massa de refugiados muçulmanos na
Europa. Ao mesmo tempo, têm ascendido no continente europeu movimentos de cunho
nacionalista, trazendo consigo a islamofobia. Este artigo considera a hipótese de que os movimentos
migratórios que têm a Europa como destino estimulam a ascensão e popularidade de partidos
políticos de extrema direita, que são anti-imigração, recorrendo às contribuições das teorias do
nacionalismo e cosmopolitismo. A perspectiva cosmopolita defende que todos os indivíduos são
dotados de igualdade perante uns aos outros, o que permite a suposição de que os refugiados
podem ser parte de qualquer sociedade. Entretanto, os fatos divulgados referentes à crise de
refugiados muçulmanos apontam para a difusão de um forte discurso islamofóbico, incentivando
movimentos nacionalistas influenciados pela ascensão da extrema direita europeia. Nesse sentido,
cabe recorrer à teoria nacionalista para refletir acerca do cenário em que se encontram os refugiados
na Europa, uma vez que, por serem majoritariamente muçulmanos, são vistos como invasores e
terroristas, contrapondo-se, então, à teoria cosmopolita. Propõe-se, portanto, uma reflexão da crise
de refugiados à luz da teoria nacionalista com vistas a relacionar a entrada descontrolada de
refugiados na Europa com uma possível ascensão dos movimentos nacionalistas, e da teoria
cosmopolita, de modo a articular o lugar que o refugiado ocupa na sociedade a uma das principais
hipóteses da teoria, a de que nenhum ser humano é diferente do outro. Vale ressaltar que ambas
as teorias estão intimamente relacionadas, haja vista a disposição do movimento nacionalista em
tentar diferenciar o estrangeiro do nacional, dispensando um tratamento diferente a cada um, ao
passo que a teoria cosmopolita propõe que todos recebam o mesmo tipo de tratamento,
independente da nacionalidade.

Palavras-Chave: Cosmopolitismo. Nacionalismo. Europa. Islamofobia. Refugiados.

INTRODUÇÃO

Em vista das conturbações políticas e socioeconômicas constantemente presentes


no Oriente Médio, muitos de seus cidadãos buscam a Europa como destino, já há alguns
anos. Entretanto, quando se trata da atuação da comunidade internacional a respeito desse
cenário, são frequentes as falhas na negociação, adoção e implementação de medidas que
podem aliviar a situação do Oriente Médio.
As ações da Organização das Nações Unidas (ONU), que em geral manda seus
enviados para os locais de conflito, não é capaz de alcançar armistícios ou acordos de

658
Doutoranda em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências e Letras da Unesp Araraquara, bolsista
CAPES. E-mail: roberta_cava@yahoo.com.br.
659
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade do Sagrado Coração. E-mail:
suecoletta19@gmail.com.
1403
cessar-fogo. Essa atuação falha se deve ao fato de que o Conselho de Segurança da ONU
possui em sua composição o motivo que causa sua ineficiência: seus membros
permanentes, com poder de veto nas votações, raramente têm a mesma opinião ou os
mesmos interesses. Dessa forma, como os conflitos e a miséria na região não conseguem
se aproximar de soluções minimamente viáveis, os indivíduos que ali residem buscam
refúgio em outras localidades.
Cabe ressaltar que a Europa, mesmo tendo uma alta taxa de desemprego em alguns
países devido à crise do Euro, é o principal destino escolhido pelos indivíduos em busca
de refúgio, tendo em vista a proximidade do continente europeu e as realidades mais
estáveis dos países que foram menos atingidos pela crise de 2008.
Entretanto, não é simples chegar à Europa, e a maioria dos refugiados depende de
algum meio de transporte e intermediadores para levá-los até lá. Dessa forma, muitos
traficantes lucram com o desespero alheio, e as tragédias envolvendo barcos ou botes que
transportavam refugiados são frequentes.
Muitos dos que buscam refúgio conseguem concluir o percurso, mas o número de
refugiados é cada vez maior, apresentando um aumento alarmante a partir do segundo
semestre de 2015, e a Europa, tanto economicamente, tendo em conta a crise financeira
de 2008 que atingiu fortemente a zona do Euro, quanto psicologica e ideologicamente, não
apresenta condições de responder à chegada das massas de estrangeiros de maneira
organizada ou sempre pacífica. De fato, ao passo que muitos europeus podem ser
acolhedores, também são tangíveis o preconceito e resistência de outros setores da
sociedade europeia.
Assim, este artigo recorre à teoria nacionalista como uma via de reflexão acerca da
entrada crescente de refugiados na Europa, atrelando-a a uma possível ascensão dos
movimentos nacionalistas.
Ao mesmo tempo, busca-se amparo na teoria cosmopolita, com vistas a relacionar
o lugar que o refugiado ocupa na sociedade a uma das premissas fundamentais desse
campo teórico, qual seja, a de que nenhum ser humano é diferente do outro. Abre-se
espaço, então, para refletir acerca da sociedade internacional contemporânea como parte
ou não da sociedade cosmopolita idealizada por Immanuel Kant.
Ambas as teorias se relacionam intimamente, haja vista a proposta nacionalista de
diferenciar o estrangeiro do nacional, sobrepondo o primeiro ao segundo, ao passo que a
teoria cosmopolita defende que o mesmo tratamento seja dispensado a todos os indivíduos,
a despeito de suas nacionalidades. Dessa forma, tendo em vista a valorização da identidade

1404
nacional presente em alguns movimentos nacionalistas e o apoio ao multiculturalismo
proposto pelo cosmopolitismo, qual corrente teórica melhor se adequa ao cenário de
refúgio em massa e às possíveis situações futuras dos refugiados muçulmanos na Europa?
Como referencial teórico desta pesquisa de metodologia qualitativa, o amparo
teórico fundamental recai nas proposições de Immanuel Kant em A Paz Perpétua, nas
premissas de David Held sobre o cosmopolitismo e nas percepções de Alexander Motyl
acerca do nacionalismo.

PERCEPÇÕES NACIONALISTAS E COSMOPOLITAS ACERCA DO “OUTRO”

Nação ou o nacionalismo são termos intimamente articulados entre si, sendo difícil
determinar qual deles foi cunhado primeiro. Há nações que são formadas a partir do
nacionalismo e há nacionalismos que são formados dentro de uma nação já estabelecida
há séculos. Dois argumentos tentam explicar as causas do nacionalismo: os argumentos
primordialista e modernista (MOTYL, 2000, pp. 272-273; 508-509).
O argumento primordialista é baseado na teoria da evolução das espécies de
Charles Darwin. Sua perspectiva define o nacionalismo como um reflexo de uma tendência
evolucionária que permite que seres humanos se organizem em grupos distintos baseados
nas semelhanças de sua origem. Portanto, esta teoria do nacionalismo o define como o
resultado de uma evolução, na qual os seres humanos passam a se identificar e se reunir
com indivíduos que possuem as mesmas características entre si, como por exemplo um
grupo étnico.
Já o argumento modernista apresenta o nacionalismo como um fenômeno recente,
fruto das sociedades modernas caracterizadas por uma economia industrial que garante o
sustento da sociedade, uma autoridade central capaz de manter a ordem e a unidade da
nação e uma (ou mais) comunidade de pessoas que possuem uma língua em comum.
Não convém escolher apenas um dos argumentos para explicar o nacionalismo ao
passo que ambos são válidos. O trabalho parte, então, da suposição que o nacionalismo é
de fato um fenômeno que se inicia com o surgimento do Estado moderno, e seus
elementos, tais como o etnocentrismo, fazem parte da história da civilização humana desde
os tempos dos povos antigos gregos e hebreus, que se sentiam superiores aos outros povos.
A teoria nacionalista pressupõe a existência de vários tipos de nacionalismo, como
o nacionalismo de esquerda, anticolonial, cívico, étnico, ultranacionalismo, entre outros.

1405
O nacionalismo de esquerda tem como objetivo promover a igualdade social, a
autodeterminação, e a soberania popular, além de apresentar aversão ao imperialismo dos
países de primeiro mundo como os Estados Unidos da América.
Seguindo a linha do pensamento imperialista, surge o nacionalismo expansionista,
comum na época de glória do continente europeu no período de colonização e extensa
exploração do continente africano no século XIX. Também é expresso na doutrina do
Destino Manifesto dos Estados Unidos, e no interesse de Adolf Hitler em invadir países
europeus para aumentar o território que, de acordo com ele, deveria ser da Alemanha.
Ao contrário do nacionalismo expansionista, existe o nacionalismo anti-colonial
que fomentou o processo de descolonização em muitos países de terceiro mundo da África
e Ásia no período pós-guerra.
O nacionalismo cívico (MARQUES, 2013) é uma forma não preconceituosa do
nacionalismo que afirma que a nação consiste de todas as pessoas que voluntariamente
aceitam a ideologia política do país, sem levar em conta a raça, religião ou idioma destes
indivíduos. Este tipo de nacionalismo é comum em países que foram construídos por
imigrantes de vários países, como os Estados Unidos e Brasil. Contudo, suas características
pacíficas contradizem a suposição de que o nacionalismo surge a partir de um problema e
em muitas situações podem causar violência.
O nacionalismo étnico, por sua vez, define a nação por caráter de uma etnicidade,
idioma, religião e costumes em comum. Para os nacionalistas étnicos, não é o Estado que
cria a nação, e sim a nação que cria o Estado. O que mantém os membros desta nação
unidos são as características étnicas pré-existentes (MARQUES, 2013)
O ultranacionalismo é um nacionalismo étnico mais radical, adotado
principalmente pela extrema direita, com teor populista e até mesmo fascista. Uma das
suposições do ultranacionalismo é a de que uma nação deve possuir homogeneidade étnica
para poder conduzir com êxito a manutenção da ordem política e socioeconômica do país
(MARQUES, 2013).
Foi uma perigosa combinação de ultranacionalismo com nacionalismo
expansionista que fez com que a Alemanha na Segunda Guerra Mundial perseguisse,
torturasse e matasse milhões de pessoas que eram consideradas inferiores à raça ariana,
além de ter invadido vários países como a Polônia e a Rússia para conquistar territórios.
O nacionalismo étnico e o ultranacionalismo são as duas principais formas de
nacionalismo utilizadas nos âmbitos desta monografia. A ascensão destes movimentos é
impulsionada pela globalização e os efeitos negativos que ela proporciona no mundo.

1406
No que diz respeito ao cosmopolitismo, esta teoria apresenta os humanos como
seres iguais, a despeito de sua nacionalidade. Immanuel Kant idealizava uma sociedade
internacional governada por uma entidade republicana, que formulasse e colocasse em
vigor uma lei cosmopolita que seria válida para todas as pessoas do mundo. David Held,
por sua vez, utiliza os processos da globalização para explicar o cosmopolitismo.
Sua relevância para este artigo relaciona-se com a visão que algumas pessoas têm
sobre o refugiado, que é caracterizado como um invasor que não merece ter os mesmos
direitos que os nacionais do país onde ele busca refúgio.
Assim, Immanuel Kant, em A Paz Perpétua, propõe condições que possibilitam a
existência da paz permanente no mundo (KANT, 2003, pp. 12-25). Esta paz permanente,
perpétua, deve atingir os povos a nível global. É diferente do que vivemos hoje. Por mais
que seja difícil dois países ou mais entrarem em conflito bélico direto, percebemos o
aumento e a disseminação das guerras civis entre o governo (na maioria das vezes,
autoritário) de um país e sua população, como a Síria. Este é o principal fator que contribui
para a entrada descontrolada de refugiados do Oriente Médio na Europa, tema central
deste trabalho.
A primeira condição defendida por Kant estabelece que a constituição civil dos
Estados deve ser republicana, pois convém a separação daquele que executa as leis e
daqueles que as elaboram, ao contrário de uma constituição despótica onde só uma pessoa
ou um grupo de pessoas elaboram e executam as leis (KANT, 2003, p. 12). A constituição
republicana não deve ser confundida com a democrática, pois a mera sugestão da formação
de uma constituição democrática pressupõe a existência de um poder conduzido por todos,
onde todas as pessoas poderiam formular leis.
E, ainda, Kant acredita que em uma constituição onde o súdito não é um cidadão
(ou seja, uma constituição que não é republicana), a guerra torna-se algo simples e banal:

Pelo contrário, numa constituição em que o súbdito não é cidadão, e que


portanto não é uma constituição republicana, a guerra é a coisa mais
simples do mundo, porque o chefe do Estado não é um membro do
Estado, mas o seu proprietário, e a guerra não lhe faz perder o mínimo
dos seus banquetes, das suas caçadas, dos palácios de recreio, das festas
cortesãs, etc., e pode, portanto, decidir a guerra como uma espécie de
jogo por causas insignificantes e confiar indiferentemente a sua
justificação por causa do decoro ao sempre pronto corpo diplomático
(KANT, 2003, p. 13, tradução livre).

1407
A segunda proposta defende que a sociedade internacional deve ser fundada numa
federação de Estados livres, uma federação de paz composta de Estados republicanos que
supere o estado de natureza internacional onde o mais forte sempre prevalece. Esta
federação distingue-se de um tratado de paz (ou tratado de armistício) que tem o objetivo
de por fim em uma única guerra. A federação visa acabar com todas elas, colocando um
fim no estado de guerra e instituindo a paz perpétua (KANT, 2003, pp. 15-19).
Immanuel Kant propõe ainda a formação do direito cosmopolita, um
complemento necessário às leis nacionais e internacionais que dá ao ser humano a
capacidade de se manifestar e ser ouvido pelas comunidades políticas sem uma delimitação
e restrição artificial como as fronteiras dos países. Esta teoria foi mais tarde desenvolvida
por David Held.
Held propõe uma abordagem do cosmopolitismo a partir de três tipos difererentes.
O primeiro deles foi desenvolvido pelos estóicos,660 os primeiros no mundo a se definirem
como cosmopolitanos, tentando substituir o papel político da polis na sociedade pela
política dos cosmos, possibilitando que a humanidade vivesse em harmonia HELD, 2010).
Esta política dos cosmos se refere a uma política universal e pode ser resumida da seguinte
forma: ao invés de cada área, cada território ter suas leis específicas, por que não ter uma
única política universal para todos? Kant toma como base este argumento para sugerir que
embora o mundo tenha países diferentes, ao final todos os indivíduos são habitantes do
mesmo lugar: a Terra.
Por mais que os indivíduos vivam no mesmo planeta, não existe liberdade plena de
circulação. A existência de países diferentes pressupõe a existência de regras diferentes, e
qualquer país tem a autoridade de permitir ou negar a entrada de um nacional de outro
país em seu território.
Aqui, é possível recorrer ao Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perpétua de Kant,
que estabelece que o direito cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade
universal. A hospitalidade traduz-se no “direito de um estrangeiro de não ser tratado com
hostilidade em virtude da sua vinda ao território estrangeiro”. Este território pode admitir
o estrangeiro em seu território ou não, mas “enquanto o estrangeiro se comportar
amistosamente em seu lugar, o outro não o deve confrontar com hostilidade” (KANT,
2003, pp.21-21).

660
Os estóicos fundaram o Estoicismo, uma escola de pensamento elenístico fundada em Atenas no século
III AC.

1408
Kant afirma que não existe um direito de hóspedes que possa assistir estes
estrangeiros, mas há um direito de visita baseado no conceito de propriedade comum da
superfície da Terra que encontra força no argumento de que o fato de alguém ser um
habitante da Terra garante a ele o direito de poder circular livremente por ela. Esse
argumento, a princípio, não leva em consideração a soberania de um Estado em aceitar ou
negar quem nele deseja entrar.
Na transição entre a verdadeira política mundial e os princípios do cosmopolitismo,
há um conjunto de ideias denominadas de “direito público democrático”, o que, segundo
David Held, é uma “pré-condição para a existência de uma ordem cosmopolita” (HELD,
2017, p. 17). Para discutir-se estas ideias, é preciso primeiro redefinir o conceito de
soberania aceito atualmente nas relações internacionais. Nesta concepção, o Estado possui
total controle de um território unificado.
De acordo com Held, após a Segunda Guerra Mundial e o estabelecimento do
regime dos direitos humanos, surge um modelo liberal de soberania que redesenha essa
relação entre o Estado e seus cidadãos, baseando a legitimidade política deste Estado na
proteção e garantia dos direitos humanos básicos. Contudo, as relações internacionais
atuais sugerem uma revisão deste conceito porque nem todas as soberanias aderem a esta
concepção liberal (HELD, 2010, p. 18). Pelo contrário, temos Estados que condenam
outros Estados a violarem os direitos humanos, mas estes primeiros sequer assinaram a
Declaração de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas.
Logo, David Held sugere que este modelo de soberania liberal seja substituído por
um modelo cosmopolita que vai redefinir a “atribuição do poder político legítimo como
um todo”, uma abordagem que desafia o conceito de fronteiras fixas e territórios
governados somente pelo Estado. Neste modelo, a comunidade política perde seu lugar
como poder central e as políticas democráticas e os processos de tomada de decisão fazem
parte de uma estrutura muito maior de interação política, na qual as decisões são
influenciadas por fatores que vem de dentro e de fora do Estado-nação (HELD, 2010, pp.
19-19).
Este modelo é chamado de soberania cosmopolita, uma soberania que perde o
controle de fronteiras estabelecidas e territórios governados somente por Estados. No lugar
dela, existe um quadro de relações políticas e atividade regulatórias que são moldadas e
formadas por uma estrutura cosmopolitana. É uma concepção na qual o Estado-nação se
definha, o que, no entanto, não sugere que os Estados sejam redundantes.

1409
Nesta perspectiva, os Estados não seriam mais definidos como fontes centrais e
legítimas de poder dentro de suas fronteiras. Os Estados precisam, então, se relocar para
uma estrutura cosmopolita abrangente que faria com que as leis dos Estados-nações
focassem em questões como desenvolvimento legal, reflexão política e mobilização
(HELD, 2010, pp. 100-101).
Os problemas que o cenário internacional enfrenta hoje, como mudanças
climáticas, crises financeiras e as constantes ameaças de grupos terroristas, chamam a
atenção para a adoção de uma política comum que seja capaz de lidar e combater estes
problemas. Segundo Held, o cosmopolitismo não pode ser considerado mais uma maneira
pela qual o Ocidente pode estender seu imperialismo e sua ideologia para o resto do
mundo (HELD, 2010, p. 19). Sem esta estrutura, as decisões serão tomadas com base no
poder político e econômico dos atores envolvidos, ou, pior ainda, as decisões nem serão
tomadas devido aos conflitos de interesses.
A segunda concepção do cosmopolitismo surge quando o termo “cidadão global”
é introduzido no Iluminismo no século XVIII e utilizado nas obras de Immanuel Kant,
que relacionou o conceito de cosmopolitismo com o conceito do “uso público da razão”
(HELD, 2010, p. 15). Para este teórico, as pessoas são confinadas nas organizações da
sociedade civil e não têm a oportunidade de explorar novos limites e crenças. E, como
membros de uma sociedade cosmopolita, eles podem e devem gozar de usar a sua razão
livremente e sem restrições, numa esfera livre de uma autoridade ditatorial.
É importante mencionar que este direito pode ser estendido ao intercâmbio de
bens e ideias entre pessoas de outros países, mas não se relaciona à estadia permanente de
um indivíduo em outro país. O direito cosmopolita está relacionado com o direito de visita,
também mencionado por Kant em Paz Perpétua, mas não diz respeito à aquisição de
residência permanente ou nacionalidade em outro território. Isto limita a utilização do
cosmopolitismo para argumentar que o refugiado deve ter direito de asilo político, mas a
teoria ainda é válida para discorrer sobre o tratamento que os refugiados muçulmanos
recebem na Europa.
A terceira e última concepção do cosmopolitismo é composta por três elementos.
O primeiro deles propõe que o maior exemplo de unidades de interesse moral são os seres
humanos e não os Estados ou alguma outra forma de organização humana. A humanidade
pertence a um único domínio moral onde cada indivíduo merece ser igualmente
respeitado, não importa a sua origem e lugar onde foi criado. Este elemento é baseado no
princípio do individualismo igualitário (HELD, 2010, pp. 44-45).

1410
O segundo elemento é chamado de princípio de reconhecimento recíproco, e
enfatiza que uma pessoa tem o mesmo valor que a outra e que todos têm igual participação
no domínio ético universal, devendo, portanto, respeitar o status das outras pessoas “como
uma unidade básica de direito moral”. Para este elemento ser estabelecido na sociedade, é
necessário que todas as pessoas gozem de um status de igualdade tendo respeito às
instituições tomadoras de decisões de suas comunidades. A aceitação destas políticas deve
ser derivada do debate público e, se alguém for excluído deste processo, esta pessoa sofrerá
uma desvantagem com relação aos outros por participarem menos das decisões que têm
influência direta em suas vidas (HELD, 2010, p. 45).
O terceiro elemento enfatiza que os dois primeiros elementos (status de igualdade
e reconhecimento recíproco) exigem que cada pessoa deve gozar do tratamento imparcial
de sua reivindicação, ou seja, um tratamento “baseado em princípios sobre os quais todos
poderiam agir” (HELD, 2010, p. 46). O cosmopolitismo define como injustas, portanto,
todas as práticas e instituições que são baseadas em princípios que nem todos podem
adotar.
O autor cita ainda outros elementos necessários para formar uma comunidade
cosmopolita além do elemento que caracteriza todos os habitantes da Terra como iguais.
Dentre eles estão o princípio de agência ativa, de consenso, tomada de decisões coletivas
sobre assuntos públicos que envolva processos de votação, inclusão, evitar sérias injúrias e
sustentabilidade (HELD, 2010, p. 69).
É muito difícil chegar a uma conclusão e muitas vezes uma minoria pode não
aprovar a solução e travar uma decisão que tem grande importância para um determinado
grupo da sociedade. Portanto, é necessário que seja adotada a regra majoritária onde
prevalece a decisão da maioria. Se o Conselho de Segurança da Organização das Nações
Unidas utilizasse esta regra ao invés da regra de unanimidade, talvez o órgão pudesse ser
mais ativo e participativo do que é atualmente.
Embora o cosmopolitismo seja concebido por muitos estudiosos como uma ideia
futurística e talvez utópica, algumas de suas ideias de fato são presentes nas Relações
Internacionais, ao passo que muitos países já foram pressionados a adotarem direitos,
cumprir obrigações e fazer parte de regimes como o regime de direitos humanos que leva
em consideração muito mais que a nacionalidade de alguém.
Há, porém, algumas razões que tornam o estabelecimento de uma sociedade
cosmopolita difícil e improvável, pois a teoria não leva em conta a distribuição de poder e
desigualdade num mundo controlado pelo comércio e finanças. A teoria não considera

1411
também o argumento que a globalização inclui e exclui os seres humanos de seus benefícios
simultaneamente, pois ao passo que alguns países enriquecem cada vez mais,
desenvolvendo-se científica e tecnologicamente, outros empobrecem cada dia mais devido
à exploração do sistema capitalista, já que um país desenvolvido compra uma matéria prima
de um país pobre e depois revende este produto transformado em outro a um preço muito
maior. Assim, muitos países lucram absurdamente com o comércio e suas populações
ainda sofrem com o subdesenvolvimento enquanto apenas uma minoria toma conta do
capital.
Também é difícil tornar a teoria cosmopolita algo verídico em todos os seus
aspectos simplesmente pelo fato de que está intrínseco na mente do ser humano que não
somos todos iguais e, pior ainda, algumas características faz um povo acreditar que ele é
melhor que o outro.
Para David Held, o direito cosmopolita de Immanuel Kant é muito fraco para
argumentar sobre a liberdade de movimento de pessoas e ideias, pois de fato o ser humano
tem o direito de visitar qualquer lugar do mundo, mas este direito é muito limitado pois
depende de vários outros fatores. A hospitabilidade universal de Kant também é colocada
em cheque quando as pessoas envolvidas não são meros turistas, mas sim refugiados.
Em muitos lugares, uma pessoa que procura refúgio em um país por estar fugindo
de um conflito mortífero e devastador em sua terra natal é vista como um invasor e
consumidor dos recursos públicos limitados, um sanguessuga de direitos sociais. Nas
palavras do autor:

Pois num mundo onde bens e serviços possuem maior oportunidade de


locomoção do que as pessoas, o direito cosmopolita por si só não abrirá
portas o suficiente para estranhos e estrangeiros com necessidade de
entrada, refúgio ou residência em outro país (HELD, 2010, pp. 53-54,
tradução livre).

No entanto, o cosmopolitismo não é composto de ideais utópicos que devem ser


considerados para uma outra era. Pelo contrário, a teoria se vê presente em diversos
regimes e instituições como a Declaração Universal de Direitos Humanos que, embora
não seja aceita por todos os Estados, se relaciona diretamente com o direito cosmopolita
ao passo que tanto a declaração como a concepção de Immanuel Kant defendem
primordialmente a igualdade do ser humano independente de cor, religião ou
nacionalidade.

1412
Para Held, os desafios globais que enfrentamos atualmente serão melhor discutidos
numa ordem cosmopolita legal formada por quatro instituições: legal, política, econômica
e sociocultural.
Uma ordem cosmopolita legal requer o estabelecimento de um sistema global legal
interconectado que lide com os elementos criminais, de direitos humanos e leis ambientais
e também é necessário que os países se submetam à jurisdição da Corte Internacional de
Justiça (CIJ) e ao Tribunal Penal Internacional (TPI), além de criar uma nova corte
internacional para os direitos humanos e outra para o meio ambiente.

A SITUAÇÃO POLÍTICA E SOCIOECONÔMICA NA ÁFRICA E ORIENTE MÉDIO E O


CENÁRIO DOS REFUGIADOS NA EUROPA

Muitos são fatores históricos ocorridos no continente africano e Oriente Médio que
podem ser tomados como desencadeadores dos movimentos migratórios em busca de
refúgio ao longo dos anos. Este artigo destaca, tendo em conta a atual situação dos
refugiados nessas regiões, movimentos da sociedade civil em defesa de mudanças
estruturais, como a Primavera Árabe iniciada em 2011, durante a qual os povos de países
árabes pediam o fim da ditadura e instauração da democracia.
Um dos palcos do fenômeno da Primavera Árabe é a Síria, localizada no Oriente
Médio, mas que, ao contrário dos países que conseguiram estabelecer regimes
democráticos por meio desses movimentos, presenciou a deflagração de uma guerra civil,
até então não finalizada e que soma mais de 400 mil civis mortos.
Em março de 2011, na cidade de Deraa, protestos movidos pela população a favor
da instituição da democracia na Síria culminaram com a prisão e tortura de adolescentes;
a força militar também abriu fogo contra as pessoas que estavam protestando. Em seguida,
a população síria começou a exigir a resignação do presidente Bashar al-Assad.
Meses depois, a oposição começou a se armar e a lutar contra as forças do governo
de Assad. A violência aumentou e logo a oposição e as forças pró-Assad estavam
guerreando pelo controle para controlar as cidades do país (SYRIA..., 2015). Além da
característica política do conflito, existe também o fator religioso, pois a oposição
caracteriza-se como sunitas, enquanto o presidente e seus guerrilheiros são alauítas. Os
muçulmanos sunitas e alauítas compartilham da mesma religião – o Islamismo – mas os
rituais e a interpretação da lei islâmica diferem entre os dois grupos.
Até agosto de 2015 cerca de 250 mil pessoas foram mortas no conflito sírio, número
que em 2017 alcançou a marca de 400 mil vítimas. Em agosto de 2014, os Estados Unidos

1413
declararam que interviriam no país, mas dada a falta de apoio política da comunidade
internacional, notadamente dos governos europeus, essa intervenção não se concretizou.
Atualmente, o governo norte-americano fornece armamento para os rebeldes sírios que
fazem oposição ao governo de Assad.
Um dos pontos cruciais do conflito civil na Síria se assenta na participação do
governo russo, que, de acordo com a mídia ocidental, tem sido um forte aliado do
presidente sírio, apoiando a capital do país, Damasco, econômica, política e
diplomaticamente, fornecendo ainda armamentos ao governo da Síria para combater tanto
os opositores quanto o grupo terrorista Estado Islâmico, que luta pelo controle do território
sírio sem estar ao lado dos opositores do governo de Assad mesmo sendo um grupo
islâmico sunita (STANDISH, 2015).
O Estado Islâmico, que se intitula como Estado porque os terroristas que
fundadores “declaram formalmente o estabelecimento de um califado – um Estado
governado de acordo com a lei islâmica, ou Sharia, pelo substituto de Deus na Terra, ou
califa” (WHAT..., 2015), age com extrema brutalidade, e também pode ser considerado
como outro responsável pela migração descontrolada de refugiados muçulmanos na
Europa.
A Convenção de Refugiados da Organização das Nações Unidas, de 1951, define
como refugiado aquele que:

[...] temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade,


grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua
nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer
valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se
encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em
consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido
temor, não quer voltar a ele (ACNUR, 1951).

Este instrumento legal faz recomendações ao tratamento de refugiados, determina


que a convenção deve ser aplicada sem discriminação por raça, religião, sexo e país de
origem. Inclui também o princípio de não-devolução (non-refoulement), o qual determina
que o Estado Contratante (o que recebe o refugiado) não pode expulsá-lo ou devolvê-lo
contra a sua vontade para um território onde o refugiado sofra perseguição.
Para atender às mudanças internacionais, devido ao surgimento de novos tipos de
conflitos, e para incluir novos fluxos de refugiados sob a proteção da Convenção (já que a
Convenção só incluía eventos datados de até 1951 e desde então surgiram novas categorias

1414
de refugiados que não se enquadravam na Convenção), em 1966 foi criado o Protocolo
relativo ao Estatuto dos Refugiados. Sendo assim, a Convenção e o Protocolo são os
principais instrumentos internacionais que determinam o status de refugiado.
A força de controle das fronteiras externas da Europa (FRONTEX), que monitora
as diversas áreas de entrada de refugiados no continente, estima que só em 2015, no
período entre janeiro e outubro, mais de 710 mil refugiados atravessaram as fronteiras
europeias (MIGRANT..., 2015). Grande parte destes refugiados estão fugindo da guerra
civil da Síria e da violência propagada pelo Estado Islâmico. Assim, eles entram na Europa
com a intenção de conseguir asilo político.
As principais rotas de entrada pelo sul da Europa são a Espanha, Itália e Grécia.
Entre janeiro e agosto de 2015, pela Espanha entraram cerca de 7892 refugiados. A maioria
era da Síria, Guiné e Algéria. Pela Itália, de janeiro a setembro, 128619 refugiados entraram
na Europa, vindos da Eritreia, Nigéria e outros países da África subsaariana não
especificados. Pela Grécia, também entre janeiro e setembro, 359171 refugiados da Síria,
Afeganistão e Iraque. Sendo assim, estima-se que pelo menos a metade do total de
refugiados são originalmente da Síria.
Apesar de entrarem na Europa pelos países do sul ou leste e passarem algum tempo
neles, o destino principal dos refugiados é a Alemanha, Áustria e Suécia. Entretanto, a
entrada descontrolada de refugiados no continente é objeto de desavenças políticas e sociais
e pode ser um fator que ameace a integração europeia.
Por se tratar de um continente devastado pelas guerras e para impedir que outra
guerra eclodisse, a Europa foi capaz de promover um processo de integração invejável que
até hoje caracteriza-se como o bloco mais avançado em termos de integração, a União
Europeia. No entanto, ao mesmo tempo que a integração traz benefícios, ela também traz
desafios. A mais recente crise econômica foi iniciada nos Estados Unidos em 2008,
resultado de um grande movimento de especulação bancária, e a Europa foi uma das
regiões mais afetadas pela crise. Em particular os países do sul europeu foram os que mais
sentiram os efeitos dela, como Portugal, Espanha, Itália e principalmente a Grécia.
Dentre estes países, a Grécia é a principal porta de entrada de refugiados do Oriente
Médio e de outros lugares da África na Europa, que estão fugindo da miséria e de conflitos
envolvendo o governo de um país e seus cidadãos e de conflitos com o Estado Islâmico,
um grupo terrorista que é completamente contra a presença do Ocidente no Oriente
Médio.

1415
Enquanto muitos europeus são bem receptivos e tratam refugiados como se fossem
alguém da família, outros acreditam que a presença de tantos refugiados na Europa só vai
piorar ainda mais a situação socioeconômica do continente afetado pela crise. Alguns países
possuem altas taxas de desemprego e não conseguem garantir o suficiente para seus
próprios cidadãos.
Mesmos nos países que não foram tão afetados pela crise financeira, como a
Alemanha, o grande número de refugiados no país está sobrecarregando os sistemas sociais
do país. A mera presença dos refugiados na Alemanha e no resto da Europa, especialmente
os que são muçulmanos, é o suficiente para causar o desgosto de uma parte da população
porque os muçulmanos passaram a sofrer muito preconceito após os ataques de 11 de
setembro de 2001 contra os Estados Unidos.
Esta aversão aos muçulmanos é chamada de islamofobia. Vários países na Europa
tiveram manifestações e posicionamentos islamofóbicos, como as manifestações do grupo
PEGIDA, em Dresden, na Alemanha, que reuniram milhares de pessoas. O próprio nome
do grupo tenta alertar sobre a “islamização” da Europa.
Percebe-se, então, que a parte da população descontente com os fluxos migratórios
decorrentes da busca por refúgio em massa apresenta características nacionalistas, em que
o grupo se revolta contra seu Estado por admitir refugiados no país, exaltando não só sua
nacionalidade em detrimento da nacionalidade do refugiado mas também sua etnia e
religião.
Estes grupos também pertencem à extrema direita. Uma das fortes características
desta ideologia é a xenofobia, a aversão à presença de imigrantes em seus países. Alguns
partidos políticos da extrema direita têm ganhado relevância na Europa por conta da
migração descontrolada de refugiados para o continente. Os líderes destes partidos
posicionam-se fortemente contra a política de distribuição de refugiados entre os países
europeus para amenizar a situação de países onde o número destes imigrantes é muito
elevado.

ISLAMOFOBIA E A ASCENSÃO DA EXTREMA DIREITA NA EUROPA

A Europa possui uma associação antiga com o Islã, pois a religião existe na região
dos Balcãs, na Península Ibérica, Chipre e Sicília há séculos. Mas a maioria dos
muçulmanos presentes na Europa chegaram no continente após o avanço econômico da
década de 1960. Mais tarde, nos anos 1990, vieram os refugiados. Outro fator que

1416
influencia na migração de muçulmanos para a Europa são as ligações imperiais que os
países europeus possuíam com suas colônias no Oriente Médio (WINKLER, 2006, p. 24).
As características étnicas dos grupos de muçulmanos interferem diretamente nas
suas atitudes e práticas da religião, além de influenciar no modo em como os grupos
interagem com pessoas que não são muçulmanas. Grande parte dos muçulmanos na
Europa são sunitas, com uma minoria xiita e outras divisões como alevis e sufis
(WINKLER, 2006, p. 26).
Os ataques terroristas cometidos no dia 11 de setembro de 2001 contra os Estados
Unidos pela organização terrorista Al-Qaeda, o atentado na Espanha em 11 de março de
2004, o ataque ao produtor holandês Theo Van Gogh e os ataques de Londres em 2005
fizeram com que o mundo todo passasse a acreditar que o objetivo principal do Islã é
destruir o Ocidente. Assim, muitas pessoas acreditam que todos os muçulmanos
compartilham deste mesmo ideal, quando na verdade é uma pequena minoria que
promove ataques terroristas e realmente quer a destruição do ocidente.
A aversão ao islamismo aumentou quando o Estado Islâmico começou a ganhar
prominência na mídia ocidental. Como os outros, o grupo também luta contra a presença
do Ocidente no Oriente Médio, mas nenhum fator é capaz de justificar a brutalidade
extrema dos integrantes, que destroem tudo o que encontram pela frente, estupram e
matam crianças, mulheres e idosos em suas áreas de influência, principalmente no Iraque
e na Síria.
A presença do Estado Islâmico na região fez com que muitas pessoas fugissem para
se proteger. Eles buscaram refúgio na Europa e a grande onda de refugiados entrando no
continente incitaram a ascensão do nacionalismo étnico e do ultranacionalismo na região.
No nacionalismo étnico, é perfeitamente claro o racismo e a islamofobia presente
nos discursos dos europeus. Este discurso, no entanto, apesar de ofensivo não chega a ser
violento ou incitar a violência contra os muçulmanos. As pessoas “simplesmente” valorizam
sua identidade nacional, seu idioma, e não quer que pessoas “de cor” e de outros lugares
manchem sua cultura.
Já o ultranacionalismo, a forma violenta do nacionalismo étnico, incita o ódio e a
violência contra um grupo em favor do próprio país. O ultranacionalismo tem discursos
anti-imigração e é aderido por pessoas que possuem uma ideologia de direita. Neste
sentido, conforme destaca a autora Beate Winkler, “pode-se concluir que muçulmanos são
potencialmente afetados pela discriminação, o que por sua vez, pode colocá-los em risco
de alienação da sociedade na qual eles vivem” (WINKLER, 2010, p. 35, tradução livre).

1417
Este fato pode ser comprovado ao se levar em conta o fato de que na França e na Suécia,
refugiados ou não, a maioria dos muçulmanos estão aglomerados em bairros da periferia
e não interagem muito com o resto da população.
Outro assunto relacionado à islamofobia é o fato de que alguns países da União
Europeia proíbem ou pelo menos discutem proibir as mulheres muçulmanas em seus
países de usarem em lugares públicos (inclusive escolas) a hijab, tecido utilizado para
esconder o cabelo da mulher e a burka, que cobre o corpo todo da mulher, exceto os
olhos. A discussão baseia-se no argumento de não permitir que as pessoas usem artigos
religiosos considerados “extravagantes”, incluindo itens cristãos grandes (como crucifixos)
e vestimentas judaicas.
Quanto ao nível de desemprego entre a comunidade muçulmana na Europa,
Winkler aponta que em países como Alemanha, França e Bélgica, pesquisas confirmam
que a taxa de desemprego entre os muçulmanos é mais alta que entre os nativos. Logo, é
coerente afirmar que eles sofrem discriminação inclusive no momento de arrumar um
emprego.
Os dados analisados por Winkler mostram ainda que nem todos os migrantes em
um país sofrem racismo e discriminação no emprego, mas os muçulmanos são o grupo
principal afetado. E as mulheres muçulmanas ainda enfrentam “discriminação dupla” por
serem mulheres e pela questão de sua etnicidade e religião (WINKLER, 2010, p. 48).
Observa-se, assim, que o grande número de imigrantes nos países sobrecarrega os
sistemas de serviços sociais e cria uma crise de identidade cultural entre parte da população
nativa e, nesta crise de identidade cultural, há o choque e a indignação quando o europeu
vê pessoas com o tapete estendido orando na calçada porque a mesquita já está muito
cheia, tantas pessoas com uma cor de pele diferente, idiomas diferentes sendo falados em
toda parte da cidade.
Floresce, então, o sentimento de afronta, e quando alguém com influência política
que compartilha as mesmas ideias, prezando pela valorização da cultura e nacionalidade
daquele país, querem mandar aquelas pessoas de volta para o lugar de onde vieram,
construir cercas e muros altos e extensos para impedir que outros entrem.
Apesar de alguns países europeus serem menos dificultosos acerca da entrada de
refugiados em seus países, como na Alemanha, outros dificultam até mesmo o trânsito das
pessoas pelo território, como a República Tcheca. É de comum acordo entre alguns
autores que a União Europeia “harmonizou” as leis de refúgio no bloco para dificultar a
entrada e permanência dos refugiados.

1418
Quando os países que não têm condições de dar assistência a tantos estrangeiros,
mesmo já tendo recorrido à comunidade internacional por ajuda, a Agência da ONU para
Refugiados (ACNUR) trabalha para ajudar estes países. Entretanto, devido ao fato de que
a arrecadação financeira da ONU que diminuiu, todas as suas agências sofrerão cortes em
seus orçamentos. Há assentamentos de refugiados ainda no Oriente Médio que já fazem
racionamento de comida.
Para o Alto Comissário da ACNUR, a comunidade internacional demorou demais
para notar a situação do Oriente Médio e do continente africano. Isto só aconteceu quando
os refugiados chegaram na Europa. O Oriente Médio e a África possuem altos números
de refugiados que estão indo embora diariamente para a Europa. A falta de assistência na
região, seja pelas agências da ONU que não têm dinheiro suficiente, seja pela comunidade
internacional, aumentará ainda mais o fluxo de refugiados entrando na Europa.
Por ser compostas de países, existe a concepção de que a ONU é uma unidade
federativa que representa todos os povos, algo proposto pela teoria cosmopolita que visa a
criação de uma entidade supranacional que coloque um fim na anarquia do sistema
internacional e crie uma lei universal dos seres humanos, tal qual a Declaração Universal
dos Direitos Humanos que é aplicável a todos.
No entanto, nem a ONU e nem instituições como a União Europeia e o Tribunal
Penal Internacional, por exemplo possuem supranacionalidade. Umas são frutos do
relacionamento entre países, outras apresentam uma função de complementaridade, outras
não são vinculativas. Assim, cabe afirmar que, ao contrário do que é defendido por alguns
autores, não estamos inseridos num sistema internacional cosmopolita, mas sim num
sistema internacional de ordem unimultipolar, com a presença de uma superpotência
(Estados Unidos) e outras potências menores. Os Estados ainda não estão prontos para se
sujeitarem a um órgão supranacional.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fluxo de entrada de refugiados do Oriente Médio na Europa aumenta


gradativamente desde a crise que teve início em 2015, e agora quase diariamente são
divulgadas notícias sobre refugiados, sejam elas para anunciar quantos deles chegaram ao
continente esta semana, ou infelizmente, quantas pessoas se afogaram quando a
embarcação ou bote cheios de refugiados afundou no caminho à Europa.

1419
Sabia-se que havia uma possibilidade que o fluxo migratório faria com que os
movimentos nacionalistas ganhassem força, visto que a Europa não se recuperou
totalmente da crise financeira de 2008. O problema, porém, vai mais além de
simplesmente não querer receber o outro porque o meu país está com pouco dinheiro;
logo, é necessário priorizar os nacionais do meu país ao invés de priorizar eles.
O nacionalismo pode ser caracterizado como o amor à pátria, mas o sentimento
nacionalista geralmente nasce com o surgimento de um problema e ele pode incitar a
violência. Ele é representado por um grupo de brasileiros que atiram em imigrantes
haitianos porque eles “irão roubar nossos empregos”.
Observa-se que o fenômeno europeu realmente é um fruto do nacionalismo e não
do simples patriotismo. No continente, o nacionalismo é caracterizado pelos europeus que
não querem que seus respectivos países concedam refúgio às pessoas fugindo da guerra
porque não há recursos suficientes para tal, ou porque a religião e etnia delas é prejudicial
aos valores cristãos e ocidentais.
Portanto, é válido caracterizar os movimentos nacionalistas europeus como
nacionalismo étnico e ultranacionalismo, por valorizarem a etnia europeia em detrimento
da etnia do “outro” e por incitar o ódio racial, o preconceito contra muçulmanos, além de
permitir que partidos de extrema direita ganhem prominência e influenciar os
ultranacionalistas a atacarem os abrigos de refugiados, os próprios refugiados e os políticos
pró-imigração.
A principal razão que leva os europeus a não aceitarem a presença de refugiados
em seus países deve-se ao fato de que a maioria deles são muçulmanos. A islamofobia, a
aversão aos praticantes da religião islâmica, aumentou muito após os atentados terroristas
contra os Estados Unidos da América. Assim, é comum ver pessoas em diversas redes
sociais, até mesmo quem não é europeu, dizer que parte dos refugiados na Europa são
membros do Estado Islâmico e outras organizações terroristas, e que a entrada destas
pessoas na Europa que estão supostamente fugindo de conflitos na Síria e demais países
árabes, faz parte do plano das associações terroristas de espalhar o Islã pelo mundo.
Além da teoria nacionalista e considerando os avanços e efeitos negativos
proporcionados pela globalização, foi analisada a teoria do cosmopolitismo com vistas a
comparar a sociedade cosmopolita idealizada por Immanuel Kant com a sociedade
internacional baseada nos princípios do Direito Internacional.
Para Kant, todos os cidadãos do mundo são considerados absolutamente iguais uns
aos outros, possuindo os mesmos direitos e obrigações, porque mesmo que sejamos

1420
americanos, africanos e argentinos, somos em primeiro lugar habitantes da Terra. A partir
disso, deveria ser elaborada uma lei universal (como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos) que garantiria estes direitos e obrigações a toda e qualquer pessoa do planeta,
além de criar uma unidade federativa republicana e supranacional que seria responsável
por todas os Estados e pessoas do mundo.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, como já foi mencionado, não é
vinculativa. A Síria é apenas um dos países que assinaram a declaração e violam os direitos
humanos diariamente, pois as próprias forças do Estado sírio bombardeiam hospitais que
abrigam feridos e voluntários. Se a declaração fosse respeitada, não existiriam milhões de
refugiados no mundo todo fugindo de guerras, perseguição política, fome e miséria.
Melhor ainda, se todos os indivíduos fossem membros de uma sociedade
cosmopolita onde todas as pessoas do mundo seriam consideradas iguais, não estaríamos
debatendo se os refugiados, não importa onde estejam, merecem ter os mesmos direitos
que nós temos e ter acesso às mesmas oportunidades.
Levando em consideração todos os fatores analisados neste trabalho, a constatação
da ascensão de movimentos nacionalistas e o aumento na popularidade da extrema-direita
europeia, é possível afirmar que a corrente teórica que melhor explica o tratamento de
refugiados muçulmanos na Europa, não só por autoridades políticas, mas também pela
população em geral, é a teoria nacionalista. Grande parte dos europeus ainda vê o refugiado
muçulmano como o outro, como um invasor que quer matar todos em nome do Islã.
A soberania dos Estados ainda tem muito poder para uma sociedade internacional
cosmopolita ser estabelecida. Os próprios princípios e regras positivadas do Direito
Internacional não são genuinamente respeitados, mesmo sendo formulados e negociados
em conjunto. Não há qualquer interesse em criar uma entidade republicana supranacional
para fazer com que a lei seja cumprida. Assim, para que eventualmente sejam alcançadas
etapas da proposta cosmopolita de Kant e Held, há que, necessariamente, aprender a
reconhecer o “outro” e trata-los efetivamente como seres humanos.

REFERÊNCIAS

ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS.


Convenção relativa ao estatuto dos refugiados (1951). Disponível em:
<http://www.acnur.org/t3/fileadmin/scripts/doc.php?file=t3/fileadmin/Documentos/portug
ues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados>. Acesso em: 12 set. 2017.

1421
HELD, David. Cosmopolitanism: Ideals and Realities. 1. ed. Cambridge: Editora Polity,
2010.

KANT, Immanuel. Perpetual Peace: A Philosophical Sketch. 1. ed. Indianapolis: Editora


Hackett, 2003.

MARQUES, Thomas. Nacionalismo. Ordem ou Regresso. Disponível em:


<http://ordemouregresso.blogspot.com.br/2013/08/nacionalismo.html>. Acesso em: 11
set. 2017.

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2015. Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-europe-34131911> Acesso em 23
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Press, 2000.

STANDISH, Reid. Russian troops are in Syria and we have the selfies to prove it. Foreign
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are-in-syria-and-we-have-the-selfies-to-prove-it/>. Acesso em: 23 ago. 2017.

SYRIA: The story of the conflict., BBC, Londres, 9 out. 2015. Disponível em:
<http://www.bbc.com/news/world-middle-east-26116868>. Acesso em: 20 ago. 2017.

WHAT is Islamic State. BBC, Londres, 8 out. 2015. Disponível em:


<http://www.bbc.com/news/world-middle-east-29052144>. Acesso em: 23 ago. 2017.

WINKLER, Beate. Muslims in the European Union: discrimination and islamophobia.


European Monitoring Center on Racism and Xenophobia, 2006.

1422
CIDADANIA LÍQUIDA E CORPOS DESOBEDIENTES: SOBRE
VIVÊNCIA TRANS NO BRASIL

Alex KREIBICH661

Resumo: O trabalho tem como objetivo compreender o acesso das pessoas trans à cidadania. Para
tanto, foi realizada revisão bibliográfica, com o artigo dividido em duas partes: corpo e cidadania.
Um corpo não é apenas um corpo. É também o seu entorno. Além de um sistema de significados
e significantes, o corpo é a parte mais elementar da existência individual. É nele que a sociedade vê
o indivíduo e é a partir dele que o indivíduo interage com a sociedade. Com isso, o corpo está
inserido num contexto político, do dito e do produzido, do poder e do ser, ou do não. Assim, o
Estado se incorpora em todos, seja pelo macro ou pelo micropoder. Todos os corpos, suas ações
e identidades são autorizados ou negados por ele. Constrói-se um corpo legal (o corpo dócil), e
tudo o que foge disso se torna perverso, periférico e agressivo. Assim, o biopoder se torna uma
ferramenta de justificação a partir da qual se constrói o corpo normal, ou, ainda, o corpo natural.
É nesse sentido que os corpos trans são classificados como transtornados, anômalos, doentes. São
corpos que contestam, transformam e transgridem as estruturas mais fundamentais da nossa
sociedade, como a divisão sexual do trabalho. Existe, contudo, um avanço tímido de inclusão de
pessoas trans graças a movimentos sociais. O nome social, por exemplo, ainda é uma ferramenta
de cidadania precária, já que só se dá no campo do falado, como se fingissem que as identidades
existem, sem de fato haver mudança no registro, no civil, no real. Já no caso da Retificação dos
documentos, as terapias hormonais ou as cirurgias, é necessário um laudo psiquiátrico atestando
doença. E nesse jogo estatal que ora reconhece e ora autoriza (que, obviamente, não é acessível à
maior parte da população trans), é que a cidadania da população trans se demonstra: é uma
cidadania precária, líquida e que pode retroceder a qualquer momento, especialmente
considerando os avanços de bancadas religiosas no cenário político brasileiro.

Palavras-chave: Biopoder. Cidadania. Corpos Dóceis. Nome social. Vivência Trans.

INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva discutir e analisar o acesso das pessoas trans à cidadania,
além de entender como os corpos são produzidos, marginalizados e apagados. Para isso,
foi feito um levantamento bibliográfico com textos, livros e discussões sobre o tema. É
ainda um esforço preliminar de um projeto em andamento.
O texto está dividido em seis partes. A primeira, com caráter introdutório,
apresenta-se o tema e alguns conceitos relevantes para a discussão. Na segunda, será
desconstruída a visão biologizante e natural do corpo, além de entender sua dimensão
social. Na seguinte, o poder ganha o foco: analisar-se-á a docilização do corpo a partir de
instituições sociais e políticas. Na quarta, o tema em voga é a periferização e a produção da
exclusão dos corpos trans. Em seguida, depois de percorrer e entender como os corpos

661
Cursando Graduação em Ciência Sociais na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
4lex.kreibich@gmail.com

1423
são criados e excluídos, será discutido o acesso das pessoas trans à cidadania. Por fim, será
apresentado as conclusões finais do texto.
O corpo, de início, pode ser entendido como a estrutura biológica; apenas o
conjunto de ossos, vísceras, pele, músculos, órgãos, como também os reflexos e as
sensações. Entretanto, no decorrer do texto, ganhará um entendimento muito mais
complexo; é aquele que pensa, que se pensa e que se é pensado. Aquele que se modifica,
transforma, se integra e batalha para estar dentro da moda, do social, do falado, do
saudável, do belo, do desejado e do normal.
A transgeneridade é entendida, durante o texto, como a quebra da relação sexo-
gênero, ou seja, são todas as pessoas que transgridem as barreiras das normas sociais, não
apenas se vestindo e agindo como o gênero “oposto”, como também sendo.
O conceito de Cidadania Líquida aqui é construído como uma referência à
Modernidade Líquida, de Zigmunt Bauman (2004), que seria “um mundo repleto de sinais
confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”, da mesma forma como
a cidadania é experienciada pela população trans: é uma cidadania incompleta, que ora é
permitida e ora é autorizada (e tem momento que é negada).
Cidadania é entendida como apenas a esfera de direitos humanos, a luta pela
igualdade e o direito à diferença. Não coube nesse artigo, portanto a discussão e a
conceituação sobre o que é cidadania.

O CORPO NÃO É NATURAL

O corpo, numa análise superficial, é visto como mero substrato biológico, um


produto da natureza e do natural e apenas isso. Porém, ao buscar compreender de forma
mais profunda, é possível ver sua produção cultural. As próprias noções sobre os corpos já
são completamente carregadas do social662. Inclusive, até mesmo as classificações do que é
um corpo saudável663, bonito ou ideal (consideradas aqui como efêmeras, já que dependem
do tempo e do espaço nas quais são produzidas664), já fazem parte do entendimento do
corpo, isto é, a própria linguagem é também produtora e criadora. Ao nomear, definir

662
Existe, também, um debate muito mais visível sobre as modificações corporais. Para isso, ver PIRES, 2003.
663
A própria noção de saúde contemporânea já traz que o corpo, em seu aspecto estrutural, já está obsoleto
numa era em que existem próteses, implantes e cirurgias. Para uma discussão sobre saúde, corpo e
cibercultura, ver COUTO, 2013.
664
Pegando exemplos de corpos considerados sadios e belos em diferentes tempos, veja a obra de Francois
Boucher, Mars and Venus (1754). Umberto Eco, nos livros “História da Beleza” (2012) e “História da
1424 desses conceitos nas sociedades ocidentais.
Feiura” (2007), faz uma retrospectiva histórica e a variação
normas e categorizar, produz-se sentidos665. Ela não é apenas veículo para expressar
relações, poderes e lugares, como também os institui, produz e fixa essas diferenças666. Essa
compreensão do corpo é “perceber sua provisoriedade e as infinitas possibilidades de
modificá-lo, aperfeiçoá-lo, significá-lo e ressignificá-lo”667.
A forma como nos apresentamos, seja pelas vestimentas, jeitos e gestos, isto é, o
nosso corpo e corporalidade, adquiriu caráter fundamental na cultura contemporânea668,
de forma a ser o centralizante da nossa identidade. É, portanto, entendido como o meio
termo, o porta-voz entre nossa individualidade (interna) e a sociedade (externa)669. É nele
que a sociedade vê o indivíduo e é a partir dele que o indivíduo interage com a sociedade.
Assim, já não basta ser saudável: tem que, também, ser jovem, ser magro, ser malhado, ser
bonito, estar na moda e ser ativo670.
Nesse sentido, Norbert Elias (1990; 1993) foi precursor nos estudos sobre a origem
sócio-histórica de comportamentos. Num processo que ele denomina de processo
civilizador, descreve como os manuais de etiqueta tiveram papel importantíssimo nas
sociedades europeias. A nobreza, de forma a querer se destacar da burguesia crescente (e,
posteriormente, a burguesia a querer se destacar do resto da população), criou uma série
de códigos de etiqueta, e, toda vez em que as pessoas começaram a se comportar daquela
determinada maneira, os códigos já não eram mais suficientes para diferenciá-los. Então
desenvolveu-se uma nova característica necessária para se tornar “civilizado”, para poder
viver em sociedade como uma pessoa “de verdade”, uma pessoa “civil”.
Inicialmente, era necessário saber usar garfo e faca. Depois, garfo, faca e colher.
Então veio o guardanapo. E mais novos tipos de garfos. E facas. E colheres. E, da mesma
forma como a brincadeira da feira (usada para aprimorar habilidades mentais), essa
acumulação cada vez maior de habitus faz com que seja mais longo a fase de preparar as
crianças para as funções adultas671. Além disso, Elias (1994) lembra que, nesse processo, o
ser civilizado é aquele que detém maior domínio sobre seus instintos, aquele que possui
maior auto regulação. Também que existe uma estrutura biológica propícia, mas é somente

665
GOELLNER, 2013, p. 31.
666
LOURO, 2014, p. 69.
667
FIGUEIRA, 2013, p. 126.
668
GOELLNER, 2013, p. 31.
Norbert Elias (1994) tenta conceituar a sociedade, superando as ideias dicotômicas de sociedade versus
669

indivíduo. Assim, utiliza a parábola das estátuas pensantes (p. 80) para explicar a visão de isolamento do
indivíduo, com a estátua adquirindo o papel do corpo.
670
FIGUEIRA, 2013, p. 126. 1425
671
ELIAS, 1994, p. 28.
no meio social que consegue desenvolver suas funções psíquicas672, ou seja, é necessário
estar dentro das relações sociais para isso. Logo, para se tornar humano em seu sentido
pleno, se torna imprescindível estar inserido nessa rede de relações de poder.
Foucault propõe um novo ponto de vista sobre o poder. Ao invés de imaginar como
um poder centralizado, na mão de um (ou alguns) que detém a posse, e é apenas este que
manda, com todos os outros apenas sendo mandados, devemos olhar para o poder como
sendo exercido em muitas e variadas direções, como uma teia de relações que se constitui
por toda a sociedade673. Além disso, o poder é “uma rede de relações sempre tensas, sempre
em atividade”, sendo o próprio corpo mergulhado num campo político. Por isso, “o
próprio corpo é investido pelas relações de poder”674. O corpo está inserido num contexto
político, do dito e do produzido, do poder e do ser, ou do não.

O CORPO É PRODUZIDO

Assim, existe uma série de pedagogias em circulação. Seriados, filmes, músicas,


livros acabam por ensinar tanto pelo que mostram quanto pelo que deixam de mostrar. A
mídia acaba por ter um papel importantíssimo na formação identitária, principalmente pois
os jovens atuais já nasceram imersos nas tecnologias675. A interpretação contemporânea de
corpo implica entender que o reconhecimento de marcadores sociais, sejam eles de
gênero, raça, faixa etária, classe e de sexualidade676, atuam na produção desses corpos pela
determinação de posições e de modos de ser677.
Aqui, tanto quanto a fala, o silenciamento tem um papel importantíssimo na
garantia da norma. Ao não se falar a respeito deles, a pretensão é eliminá-los, ou, ao menos

672
Usa, aqui, o exemplo da linguagem: por natureza, todas pessoas possuem a estrutura do aparelho fonador,
aquilo que lhe permite a fala, mas apenas estando imersas num ambiente social que a habilidade da fala é
desenvolvida (ELIAS, 1994, p. 33).
673
LOURO, 2014, p. 42.
674
FOUCAULT, 1987, p. 27; 29.
675
A televisão, por exemplo, acaba por ser uma pedagogia dominante, formando o diferente. Para entender
diálogos entre a televisão e diferentes práticas educativas em ambiente escolar na juventude atual, ver SILVA;
SOARES, 2013.
Não que a sexualidade esteja localizada no corpo, mas no sentido de que o rompimento das normas de
676

gênero vigentes é lida, de forma geral, como pessoas1426gays e lésbicas, já que vinculamos gênero e sexualidade.
“O ato de cruzar a fronteira do comportamento masculino ou feminino apropriado [...] parece, algumas
vezes, a suprema transgressão” (WEEKS APUD LOURO, 2014, p. 84. Grifo nosso). Assim, a vigilância e a
censura tentam garantir a normalidade, tendo ela sempre como o par heterossexual.
677
QUADRADO, 2016, p. 28-31.
fazer com que os normais não possam conhecê-los e desejá-los. Assim, só podem se
reconhecer como desviantes, indesejados e ridículos678.
A escola acaba se tornando um dos principais espaços de normalização679. A partir
do que é discutido e o que se deixa de discutir, ela não apenas transmite conhecimentos e
os produz, como também fabrica sujeitos e identidades680. Aqui, em nome da família, e a
partir da norma, do exame e da punição se controla os corpos e os domina, a partir da
fiscalização, regulada e definida na essência da prática do ensino681. É o micropoder em sua
faceta mais visível682.
A discussão proposta por Foucault sobre corpos dóceis aqui é exatamente isso. A
partir desses processos de produção de corpos e identidades, as pessoas são docilizadas.
Eis que aprendem os modos apropriados de ser, estar, agir e falar683. A postura, a conduta
e a etiqueta684 vão produzir corpos que têm boas maneiras, ou seja, corpos obedientes.
O poder, ou melhor, as relações de poder, utilizam desses mecanismos
profundamente. A partir dessa docilização, o poder induz comportamentos, aumenta a
utilidade econômica e diminui a força política dos indivíduos685. Assim, o corpo obediente
é aquele que tem a maior produtividade possível, faz melhor uso do seu tempo, controla
seus instintos, é civilizado e não se organiza coletiva e politicamente, afinal, pessoas isoladas
não revolucionam, não exigem direitos, não tencionam a rede de poderes. Existe um
interesse político e financeiro no controle das pessoas.
O Estado também institui lugares e comportamentos. A partir de suas leis e normas,
a partir de seus códigos e penas, o Estado regula, é incorporado686 por todos. Mesmo que
um indivíduo fuja do que é considerado normal e tente resistir às pressões sociais687, ainda
existe uma esfera legal do que é permitido e negado. Com isso, o macropoder instaura

678
Aqui, Louro (2013, p. 71-72), se refere a estudantes gays e lésbicas, mas pode ser aplicado a diversos outros
grupos, como trans, bissexuais e, inclusive, negros.
679
Inclusive, desde seu surgimento, foi um espaço institucional de distinção. Seu papel era separar os sujeitos
entre aqueles que tem acesso ou não, e, internamente, também categorizou, ordenou e hierarquizou os que
já estavam lá (LOURO, 2013, p. 61).
680
LOURO, 2013, p. 89.
681
BERMEO; PINHEIRO; TAVARES, 2012, p. 11-12.
682
O próprio Foucault (1987) colocava as escolas (e aqui, qualquer instituição que tem o poder de determinar
condutas, como hospitais, colégios, asilos, quartéis etc) como os centros das micropráticas ou práticas
discursivas.
683
LOURO, 2013, p. 45.
684
E todo o processo civilizador, nessa nova leitura, se torna a internalização das micropráticas, já que é a ideia
1427
central é a produção de auto-regulação e de controle dos instintos.
685
MACHADO APUD LOURO, 2013, p. 44.
686
Usamos, aqui, incorporar em seu sentido morfológico: trazer ao corpo, revestir-se de, integrar ao próprio
corpo.
687
E aqui, as pressões sociais não apenas dos olhares, mas dos xingamentos, dos ataques, das expulsões dos
lugares.
comportamentos tanto quanto o micropoder688689. Um corpo docilizado, portanto, se torna
um corpo legal. E existem poderes suficientes para expurgar indivíduos, para eliminá-los
de espaços, ou ainda, para isolar os corpos destoantes690.

CORPOS DESOBEDIENTES

Constrói-se, então, a loucura691 e a marginalidade692. O louco se torna aquele que


não desenvolveu suas funções psíquicas, patologicamente falando. É aquele que o processo
civilizador não foi eficaz, a auto-regulação dele não desempenha o papel que deveria
desempenhar, acabando por não ter essa “camada” de controle, sendo, então, desinibido
e impulsivo. Já o marginal, é aquele que vive à margem das relações sociais. Já não tem
nada a perder. A margem de decisão, aquilo que Elias chama de poder, é restrita, no que
tange a liderança, no máximo ao posto de “chefe dos ladrões”, sendo a única oportunidade
de eles tomarem uma iniciativa pessoal693.
O biopoder, com tudo isso, acaba por se instaurar como ferramenta de justificar
normas e desvios e a punição para esses desviantes. O poder é dado à biologia como aquela
que descreve a natureza nua e crua694, quando na verdade produz a natureza a sua imagem
e semelhança695. Assim, mesmo estando imersos nas relações sociais, seus cientistas podem
determinar quem é saudável e quem não é, quem é normal e quem não é.
A diferença é sempre construída a partir de um referencial. Por exemplo, ao se
afirmar a diferença entre homens e mulheres, geralmente se diz “as mulheres são diferentes
dos homens”, ou seja, elas diferem deles (e eles devem ser tomados como norma). É nesse
contexto que Beauvoir afirma que “ninguém nasce mulher; torna-se mulher”. A mulher é
sempre o outro, é o não homem. O que define o que é a mulher é “o conjunto da

688
Para entender melhor sobre as dinâmicas de micropoder, suas estruturas e funcionamentos, ver
FOUCAULT, 2014a.
689
Mesmo que se pareça, o macro e o micropoder não devem ser levados como opostos, justamente pelo
contrário. Um complementa o outro. O que um instaura, o outro rege. O que um determina, o outro fiscaliza.
Os dois acabam por produzir indivíduos e também punições para aqueles que não obedecerem as regras e
as normas vigentes.
690
No livro Vigiar e Punir (1987), Foucault traz a discussão sobre as prisões como mecanismo de repressão.
Enquanto o micropoder vigia, o macro, pune.
691
Para entender mais sobre a Loucura como produto social e uma retrospectiva histórica, ver FOUCAULT,
2014b.
692
Howard Saul Becker, em seu livro “Outsiders: Estudos
1428 de sociologia do desvio” (2008) traz sua pesquisa
sobre o desvio, um campo da sociologia que discute os corpos marginalizados e periféricos.
693
ELIAS, 1994, p. 42.
694
Louro (2013), ao discutir biopoder e naturalização, faz uma provocação: “É possível separar cultura e
biologia?”.
695
BENTO, 2008, p. 178.
civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que
qualificam de feminino”696. Constrói-se, primeiramente a imagem do masculino com
modos de agir específicos, e tudo o que se faz que não seja aquilo, é considerado feminino,
subversivo e errado. A mulher é o desvio697.
Como já foi dito, o biopoder serve como ferramenta de justificação. Diversas teorias
já foram criadas para “provar” distinções, sejam elas diferenças estruturais, psíquicas ou
hormonais, para se determinar espaços698. As próprias diferenças anatômicas entre os sexos
só passaram a ser enxergadas e estudadas quando se tornou politicamente importante
diferenciá-los, mediante o uso do discurso científico699.
Ao analisar a sexualidade, os discursos hegemônicos também produzem formas
de ser e fazer. O homem, com sexualidade ativa, conquista as mulheres, passivas, que
precisam ser protegidas700701. Esses ideais parecem influenciar mesmo quando se aborda um
relacionamento entre dois homens. Muitas pessoas afirmam que “o problema não é ser
gay, é ser afeminado”. A própria bíblia punia apenas a sexualidade passiva masculina702. O
problema com afeminados, talvez, é de que estes estariam abdicando de sua masculinidade
e superioridade e indo a um nível inferior, pois tudo o que é feminino é considerado pior,
negativo, inferior. Afinal, o problema não é ser gay, é parecer com uma mulher. Já com as
Lésbicas o problema é o contrário. Elas negam sua inferioridade e subversão feminina aos
homens que se dá pelos relacionamentos heterossexuais e demonstram muito bem não
precisar deles.
Entretanto, a transgeneridade traz uma nova dimensão ao debate: a corporal.
Mesmo que as identidades não estejam vinculadas ao corpo, a transgeneridade é entendida
como pessoas que desvinculam sexo e gênero. Ou seja, são pessoas que negam que a
relação homem-pinto e mulher-vagina, dominante na biologia, é verdadeira. Dessa forma,
as pessoas trans703 não apenas quebram as barreiras do que é determinado como normal,
como também incorporam essas subversões.

696
BEAUVOIR, 2009, p. 9.
697
É nesse sentido que Deus faz primeiro o homem, e, a partir de sua costela, faz a mulher.
698
LOURO, 2014, p. 49.
699
BENTO, 2008, p. 25.
700
ENDSJØ, 2014, p. 69.
701
E isso é tomado como verdade absoluta: “é assim que as coisas são, são apenas fatos”, “mas os homens e
as mulheres se comportam assim, mesmo” e “não é a minha opinião, é apenas biologia”.
702
“Com homem não te deitarás, como se fosse mulher;
1429abominação é” (Levítico 18:22).
703
Trans é usado como um termo guarda-chuva, que engloba Homens e Mulheres Transexuais, Travestis,
Transgêneros e Pessoas Trans Não-Binárias.
Com isso, manifesta-se e desenvolve-se novos mecanismos sociais de controle. A
psicologia, junto com a medicina, passou a tratar como corpos doentes. Surge, então, a
patologização dessas identidades704. A partir de códigos, manuais e classificações705706, a
transexualidade707 passa a ser diagnosticada708, analisada e curada709. A própria inclusão da
transexualidade como transtorno mental não foi respaldada por nenhum teste. Não há
exames clínicos das ciências psi (psicologia, psiquiatria e psicanálise) e do saber médico
que comprovem que vivenciar o gênero em desacordo com as normas hegemônicas seja,
de fato, um transtorno710. A definição do diagnóstico dos manuais médicos definem a
transexualidade711 como pessoas que vivem as experiências do gênero “oposto”: brincam
das outras brincadeiras, vestem as outras roupas, agem das outras formas e pedem os outros
pronomes. É sempre usado como referência sempre as normas de gênero vigentes, ou seja,
demonstra que é fruto da esfera coletiva e social.
Esses corpos acabam por ser marginalizados no campo da linguagem,
estigmatizados no campo da saúde e periferizados nas relações sociais. É nesse sentido que
os corpos trans são classificados como transtornados, anômalos, doentes. São corpos que
contestam, transformam e transgridem as estruturas mais fundamentais da nossa sociedade,
como a divisão sexual do trabalho. A partir do rompimento da norma sexo-gênero, deixa
de existir essa divisão, afinal, se ela não é nada mais do que algo passível de ser superado,
seu sentido se perde, se esvai. A marginalização, talvez, venha em resposta a isso: existe
uma rede de poderes e interesses por trás, que tencionam as esferas sociais para impedir a
própria existência de corpos trans, tornando-os corpos abjetos.

704
Laqueur (2001) faz uma retrospectiva histórica sobre os estudos dos corpos e dos sexos e o surgimento de
estudos sobre a diferença deles.
705
Aqui a linguagem se manifesta como principal produtora dos corpos.
706
São eles: Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM); Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10); e Normas de Tratamento da
HBIGDA (State of Care/SOC). A partir disso, Bento (2008) faz um levantamento da forma como o tema é
abordado nos três manuais.
707
Inclusive, a própria área da saúde não reconhece nem a existência da transgeneridade, apenas destina-se a
pesquisar a transexualidade (que são as pessoas que “cruzam” o sexo, num binário de gênero: homem
transexual e mulher transexual). Desta forma, sempre que se vincular à discussão do campo da saúde,
usaremos o termo “transexualidade”.
708
O saber medicinal, inclusive, tenta diagnosticar e encontrar o “transexual de verdade”, aquele que
realmente é transexual, construindo uma única forma 1430
de se experienciar a transexualidade e vivenciar como
trans.
709
O Manual de Diagnóstico e Estatísticas de Distúrbios Mentais (DSM), inclusive afirma que é possível
reverter (ou seja, curar) a transexualidade.
710
BENTO, 2014, p. 175.
711
O termo utilizado é transexualismo, com o sufixo ismo categorizando como doença ou transtorno. É,
também, definida como “Transtorno de Disforia de Gênero”.
Os limites da construção e formação de um sujeito ficam expostos nas fronteiras da
vida corporal destes corpos, deslegitimados a ponto de deixarem de contar como
“corpos”712. “Acaba-se produzindo uma hierarquia das mortes: algumas merecem mais
atenção do que outras”713. A morte acaba por não só perder a comoção, como também
ganha um caráter punitivo. “Quem mandou se comportar assim?”714.

CORPOS SEM NOME

As experiências relatadas por pessoas trans são cheias de terror, medo e violência715.
No contexto escolar, as violências são tão enormes que, de modo geral, ocorre a evasão.
Na verdade, é importante diferenciar a evasão da expulsão. Existe um desejo de se eliminar
e excluir aqueles que contaminam o espaço escolar. O processo acaba sendo o de expulsão
desses espaços716.
Poucos dados são levantados para se entender a marginalização das pessoas trans,
já que não há interesse político em discutir um tema como esse. Entretanto, ainda assim,
90% da população Trans se encontra na prostituição717718 e tem uma expectativa de vida de
35 anos719, afinal, o Brasil é o país que mais os mata no mundo720721 (mesmo considerando
apenas as mortes oficiais, já que tem muitas outras que não são contadas pois não se tinha
família, nome ou importância. Além disso, há uma morte muito mais subjetiva, e muito
mais difícil de se contar: o suicídio, a expulsão de seu próprio corpo).
A experiência e a identificação como trans não é hegemônica. Diferentemente do
que o biopoder determina, existe uma imensidão de formas de ser trans, já que é apenas
uma parte da construção identitária individual. Assim, dificilmente é verdade um postulado
que se define como universal. Nem todas pessoas trans têm interesse na cirurgia de

712
BUTLER, 2000, p. 124.
713
BENTO, 2008, p. 164.
714
Além disso, costuma-se dizer que as pessoas trans morrem duas vezes: na primeira, perdem a vida,
enquanto na segunda, perdem sua existência, sempre sendo apagadas e tendo suas identidades negadas.
715
Bento (2006) narra e descreve histórias de vida de pessoas Trans que mudaram o corpo, cirurgicamente
ou não. Conta, assim, as opressões, as violências, os ataques sofridos pela família, colégio e sociedade em
geral.
716
BENTO, 2008, p. 166.
717
CRUZ, 2017.
718
Marcos Benedetti, em seu livro “Toda Feita: O corpo e o Gênero das Travestis” (2005), faz uma etnografia
de algumas Travestis vivendo da prostituição na cidade
1431de Porto Alegre, e narra as vivências, as experiências
e os comportamentos delas.
719
BORTONI, 2017.
720
BRASIL, 2017.
721
Coincidentemente, o Brasil é também o país que mais consome pornografia trans no mundo (CAPARICA,
2016).
redesignação sexual, ou interesse em cirurgias em geral. Nem todas as pessoas trans
definem como prioridade a hormonização. Dessa mesma forma, nem todas as pessoas
trans se sentem incomodadas com o nome que lhes foi dado, mesmo que ele seja
classificado como sendo de um determinado gênero do qual a pessoa não pertence.
Entretanto, de modo geral, existe a necessidade de alteração de nome, sim. O
Brasil, contudo, não é um país produtor e assegurador de políticas públicas que visam a
cidadania para as minorias. O nome social, por exemplo, é muito recente e ainda é uma
ferramenta de cidadania muito precária. A partir do decreto nª 8727, de 28 de Abril de
2016, o nome social foi sancionado como obrigatório, e é usado para redefinir a existência
civil e para se adequar a identidade da pessoa.
De forma geral, as legislações em outros países normatizam as cirurgias de
redesignação sexual e auxiliam na retificação do nome nos documentos. Mas, no Brasil, o
nome social (a única lei que auxilia a existência trans nesse sentido), só existe nas esferas
micro: nas repartições públicas, em algumas universidades, em bancos722. Além disso, ao se
alternar a esfera, o nome social deixa de existir. Os documentos, ou seja, o registro, o
oficial, permanecem no nome de registro . Por isso, acabam por passar por inúmeras
723

situações vexatórias e constrangedoras724.


Existe, além disso, uma dificuldade em se requerer. Além do difícil acesso aos
locais para fazer o pedido e constrangimento em fazê-lo, nem sempre ele é autorizado. No
Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), por exemplo, houve uma queda de 26% do
número total de pessoas que conseguiram o uso do nome social no ano de 2017 para o de
2016. Mesmo que 694 pessoas tenham requerido, menos da metade (303) conseguiram
deferimento725. Assim, é visível que ainda existe uma dificuldade no acesso ao uso do nome
social.
É importante lembrar que há questões jurídico-institucionais que auxiliam na não
aceitação desse novo nome, já que os documentos continuam a ser confeccionados com
base no registro civil. O nome social, então, é percebido como “nome fantasia” (campo do
abstrato, do irreal), já que o nome “verdadeiro” (campo do registro, do real) é o estampado
nos documentos726. Ao que tudo parece, a verdade do sujeito está em seu sexo727. Assim, só

722
BENTO, 2014, p. 2.
723
Termo utilizado para se referir ao nome pelo qual a pessoa foi registrada, em contraste com o nome social.
724
Por isso, Berenice Bento (2014) acaba por conceituar o nome social como “gambiarra legal”, um jeitinho
brasileiro de se fazer legislação. Faz, também, uma análise sobre legislações sociais e as potencialidades do
nome social.
725
LUCON, 2017.
726
GUARANHA; LOMANDO, 2013, p. 55. 1432
727
FOUCAULT apud GUARANHA; LOMANDO, 2013, p. 56.
se dá no campo do falado, como se fingissem que as identidades existem, sem de fato haver
mudança no registro, no civil, no real.
Já no caso da retificação dos documentos, é necessária uma batalha judicial
exaustiva e que dificilmente resulta em notícias boas. Normalmente é necessário já ter
passado pelas cirurgias, mas já existem algumas pessoas que conseguem êxito sem suas
realizações. Em abril de 2012, Sandra dos Santos foi autorizada pela justiça de Boa Vista a
trocar os nomes nos documentos sem a cirurgia. Entretanto, dois documentos ainda a
identificam como masculino728. A lógica da cidadania precária aqui opera: “Qual o sentido
de permitir a alteração do nome e manter o sexo? É uma forma de continuar condenando
a pessoa a uma morte em vida”729.
Faz-se necessário, então, a cirurgia, que é ainda mais dificultada: a equipe que avalia
a demanda deve ser multidisciplinar (cirurgião plástico, clínico geral, endocrinologista,
psiquiatra, psicólogo e fonoaudiólogo). Como requisitos, estão: Acompanhamento
psicológico por no mínimo dois anos730; Terapia hormonal já iniciada e regularizada; “Teste
da vida real” (viver como o gênero identificado, isto é, ter vestimentas e trejeitos
adequados); Teste de personalidade, para garantir que a pessoa não tem algum tipo de
“Transtorno Específico de Personalidade”; e Exames de rotina731. Ainda assim, a equipe
pode, unilateralmente, decidir que o caso não é transexualidade732.
O debate legislativo da transgeneridade acaba por funcionar desta maneira: em
alguns momentos, se reconhece (de forma a compreender a esfera dos direitos humanos,
já que se reconhece a transgeneridade como conflito identitário) e em outros, se autoriza
(aqui como uma visão bem patológica, como se fossem corpos doentes que são permitidos
a existir)733.

CONCLUSÕES

Existe a discussão de que a transgeneridade é um fenômeno muito recente, e


sempre que se fala sobre crianças trans, surge a afirmação: “não existiam crianças trans
antigamente”. Ora, com toda essa marginalização e com essa expulsão dos espaços, elas

728
ARAÚJO, 2012.
729
BENTO, 2014, p. 14.
Que lhe atestará se é mesmo doente e precisa ou pode fazer a cirurgia, ou melhor, a autoriza.
730

731
Alguns deles: “Hemograma, Triglicérides, Glicemia, TGI-TGO, Bilirrubinas, Sorologia para vírus da
Hepatite C, Testosterona livre, Contagem de colônias (urina e anti-biograma), Cariótipo, Ultrassonografia do
testítulo e próstata/pélvico ou endovaginal, entre outros” (BENTO, 2008, p. 186).
732
BENTO, 2008, p. 187. 1433
733
BENTO, 2008, p. 146.
realmente não existiam ou eram levadas a não existir? Elas não estariam lá porque a
transgeneridade é um fenômeno recente, contemporâneo e pós-moderno, ou porque se
construiu um sistema inteiro de expulsão de espaços, marginalização, prostituição e
apagamento, inclusive mesmo depois de mortas?
Mesmo que exista avanços inegáveis na luta pelos direitos que já estão assegurados
por lei, como o direito à vida, à segurança e à dignidade, ainda existe um longo caminho
legislativo para o reconhecimento desses direitos e para a adoção de políticas públicas que
reintegrem as pessoas trans à sociedade.
A sociedade que produz corpos periféricos é a mesma que os condena, ataca e
mata. Os corpos são docilizados, aprendem a obedecer e a se auto-regular, com os micro
e macropoderes tencionando para isso. Produz-se um corpo legal e um corpo abjeto. É
necessário, então, políticas públicas para garantia da cidadania plena.
O nome social ainda é uma ferramenta de cidadania precária, já que só se dá no
campo do falado, como se fingissem que as identidades existem, sem de fato haver
mudança no registro, no civil, no real. Já no caso da Retificação dos documentos, as terapias
hormonais ou as cirurgias, é necessário um laudo psiquiátrico atestando doença.
E nesse jogo estatal que ora reconhece e ora autoriza (que, obviamente, não é
acessível à maior parte da população trans), é que a cidadania da população trans se
demonstra: é uma cidadania precária, líquida e que pode retroceder a qualquer momento,
especialmente considerando os avanços de bancadas religiosas no cenário político
brasileiro.

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1436
A ATUAÇÃO DOS REGIMES INTERNACIONAIS DE DIREITOS
HUMANOS NA PROTEÇÃO DOS DIREITOS LGBTI

Iago LOURENÇO734

Danilo Garnica SIMINI735

Resumo: O período após a 2ª Guerra Mundial é o palco do surgimento dos denominados Regimes
Internacionais de Direitos Humanos. Atualmente, encontram-se estruturados o regime global ou
onusiano e os regimes regionais, quais sejam, o europeu, o interamericano e o africano. Os regimes
internacionais de direitos humanos passaram a se preocupar com os mais variados direitos, entre
eles os direitos LGBTI, pois em nenhum momento da história a trajetória dos integrantes do grupo
LGBTI foi simples. Os poucos direitos, recentemente conquistados, foram frutos de muitos anos
de luta e de movimentos sociais ativos visando os direitos LGBTI no âmbito da proteção do Estado.
Este que na maioria das vezes manteve-se imparcial e deixou essa pauta de lado, mesmo sabido
que este grupo é um dos que mais sofrem, uma vez que fogem do modelo majoritário e da
heteronormatividade que a sociedade ainda impõe, ficando expostos ao preconceito, a
discriminação, ao abandono pelos familiares, a marginalização, e nos piores casos, a agressão e a
morte. O presente trabalho visa discutir a atuação dos regimes global e interamericano no que diz
respeito à proteção e implementação dos direitos LGBTI a fim de que se possam tecer
considerações acerca de suas potencialidades e limitações em termos de proteção dos direitos em
estudo. Inicialmente, será realizada uma apresentação do contexto histórico que permitiu o
surgimento dos regimes internacionais de direitos humanos. Posteriormente, serão apresentados
os principais documentos internacionais que tratam dos direitos LGBTI e os casos analisados pelo
Conselho de Direitos Humanos da ONU e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Espera-se que por meio da análise dos precedentes possa se discutir as potencialidades e os limites
dos regimes global e interamericano em termos de proteção e aplicação dos direitos LGBTI.
Assim, os regimes internacionais de direitos humanos podem constituir uma alternativa em termos
de proteção e efetiva aplicação dos direitos LGBTI.

Palavras-chave: LGBTI. Direitos Humanos. Regime global.

INTRODUÇÃO

Sabe-se que o Direito Internacional dos Direitos Humanos há pouco tempo se


atentou as pessoas LGBTI. A própria Organização das Nações Unidas (ONU), pela
primeira vez, em junho de 2011, declarou que os Direitos LGBTI são considerados
Direitos Humanos. Anteriormente, a pauta era tratada de maneira pontual, como em 2003,
ano em que o Brasil apresentou uma resolução a respeito dos Direitos Humanos,
Orientação Sexual e Identidade de gênero, sendo retirada por pressão dos países islâmicos.
Percebe-se que a garantia de tais direitos é heterogênea, pois poucos países garantem e

734
Aluno do curso de Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). E-mail:
iago_lourenco@hotmail.com
735
Doutorando em Ciências Humanas e Sociais (UFABC), Mestre em Direito (UNESP) e docente no curso
de Relações Internacionais da Universidade de Ribeirão Preto (UNAERP). E-mail: danilosimini@gmail.com
1437
asseguram, na integralidade, os Direitos LGBTI, enquanto grande parte dos países
repreende e pune o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo.
O presente trabalho, inicialmente, propõe-se esclarecer e diferenciar cada vertente
do grupo LGBTI, a fim de contribuir com o fim da desorientação que a sociedade tem a
respeito dos mesmos; entender e diferenciar cada sexualidade e gênero é o primeiro passo
para os resultados aqui procurados, o respeito e a compreensão. Por fim, o mesmo busca
compreender também como o Sistema Global de Proteção aos Direitos Humanos age no
resguardo dos direitos LGBTI, considerados Direitos Humanos, e como o Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos, também foco da pesquisa, auxilia na
proteção dos direitos LGBTI, a partir de estudos de casos e suas resoluções.

GRUPO LGBTI: SUAS VARIAÇÕES E DEFINIÇÕES.

Entende-se a sigla LGBTI como “lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e


intersexuais”. Esse termo é usado para designar indivíduos que mantém relações com
indivíduos do mesmo sexo. Ao longo da história tal grupo foi discriminado e perseguido
por parte da sociedade. Tal perseguição foi gerada por conta da orientação sexual dos
mesmos; como orientação sexual entende-se: “[...] Uma componente da sexualidade
enquanto conjunto de comportamentos relacionados com a pulsão sexual e com sua
concretização” (BORRILLO, 2010, p.23). O autor entende que se a atração sexual é
canalizada para pessoas do mesmo sexo, define-se como ‘homossexualidade’, se ela é
canalizada para pessoas do oposto, define-se como ‘heterossexualidade’, e se o sexo do
companheiro for indiferente define-se como ‘bissexualidade’ (BORRILLO, 2010).
No que tange a identidade de gênero esta “[...] independe aos órgãos genitais e de
qualquer outra característica anatômica, já que a anatomia não define gênero [...]” (DIAS,
2014, p. 42). Por seu turno, a identidade de gênero não está ligada ao órgão sexual com
que a pessoa nasce, e sim com o qual a pessoa se reconhece, seja homem, mulher, este e
aquele ou nenhum (DIAS, 2014).
É incorreto usar o termo opção sexual, uma vez que não se pode considerar a
orientação sexual uma escolha. “[...] A única escolha que o homossexual pode tomar é a
de viver a sua vida de acordo com a sua verdadeira natureza, ou de acordo com o que a
sociedade espera dele [...]” (MALUF apud DIAS, 2014, p. 42). O mesmo autor considera
que o correto a se utilizar é orientação sexual, uma vez que expressa que o desejo sexual
está relacionado a certo gênero. Relatar a homossexualidade como uma escolha é

1438
desconsiderar a confusão e obscuridade que um homossexual passa ao descobrir sua
orientação sexual. É desumano supor que tais indivíduos escolheriam algo que os
deixassem a mercê do julgamento da sociedade e submetidos ao desprezo e abandono por
parte de sua família e amigos.
Nesse ínterim, faz-se necessário conceituar alguns conceitos que nortearão o
trabalho. Homossexuais são homens ou mulheres da qual orientação sexual e afetiva se
destina a pessoas do mesmo sexo (NUNAN, 2015). Por sua vez, bissexuais são homens ou
mulheres que sentem interesse e estima por pessoas de ambos os sexos; seja ao mesmo
tempo, ou em fases diversas de suas vidas (DIAS, 2014). A contrapartida, “[...] transexuais
são indivíduos que, via de regra, desde tenra idade, não aceitam o seu gênero [...]” (DIAS,
2014, p. 43). A autora entende que os transexuais se sentem incoerentes psiquicamente e
emocionalmente para com seu sexo biológico, com os órgãos genitais que nasceram; e, de
toda forma, procuram se moldar com seu sexo psicológico, aquele com que realmente se
identifica (DIAS, 2014). Já os travestis “[...] são pessoas que independente da orientação
sexual, aceitam o seu sexo biológico, mas se vestem, assumem e se identificam como do
gênero oposto [...]” (DIAS, 2014, p. 43).
Dias aponta que travestis não almejam e necessitam recorrer a cirurgias para
redesignação dos órgãos sexuais, de maneira oposta, os travestis não sentem abominação
por suas genitálias, até porque encontram satisfação com o seu sexo biológico (DIAS,
2014). Por fim, “[...] os intersexuais – conhecidos como hermafroditas ou andrógenos –
são pessoas que possuem genitais ambíguos, com características de ambos os sexos [...]”
(DIAS, 2014, p.44). Nesse sentido, Dias pontua que indivíduos intersexuais podem se
distinguir como homem ou mulher, independente de suas características físicas. O gênero
não está indispensavelmente conectado a anatomia. Foi por este panorama que inúmeros
países já adotaram a inclusão levada a efeito, deste segmento na sigla: LGBTI (DIAS,
2014).

OS DIREITOS HUMANOS E OS DIREITOS LGBTI

No que tange os Direitos Humanos, Ramos (2016) afirma que:

[...] O Direito Internacional dos Direitos Humanos possui características


singulares: 1) trata de direito de todos, não importando a nacionalidade,
credo, opção política entre outras singularidades; 2) os Estados assumem
deveres em prol dos indivíduos, sem a lógica de reciprocidade dos

1439
tratados tradicionais; 3) os indivíduos têm acesso a instâncias
internacionais de supervisão e controle das obrigações dos Estados,
sendo criado um conjunto de sofisticados processos internacionais de
direitos humanos (RAMOS, 2016, p. 32).

No que toca a Declaração Universal dos Direitos Humanos, Piovesan (2008)


assegura:

[...] A Declaração Universal de 1948 objetiva delinear uma ordem


pública mundial fundada no respeito à dignidade humana, ao consagrar
valores básicos universais. Desde seu preâmbulo, é afirmada a dignidade
inerente a toda pessoa humana, titular de direitos iguais e inalienáveis.
Vale dizer, para a Declaração Universal a condição de pessoa é o
requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos [...] A dignidade
humana como fundamento dos direitos humanos e valor intrínseco à
condição humana é concepção que, posteriormente, viria a ser
incorporada por todos os tratados e declarações de direitos humanos,
que passaram a integrar o chamado Direito Internacional dos Direitos
Humanos (PIOVESAN, 2008, p. 137).

Desta maneira, “[...] os direitos humanos constituem um complexo integral, único


e indivisível, no qual os diferentes direitos estão necessariamente inter-relacionados e são
interdependentes entre si” (PIOVESAN, 2008, p. 142). A autora explana que a Declaração
Universal não é um tratado; seu pressuposto é alavancar o reconhecimento universal dos
direitos humanos e das liberdades fundamentais. A Declaração se cria como um código de
conduta aos Estados que fazem parte da comunidade internacional (PIOVESAN, 2008).
Em suma, pode-se dizer que a Declaração Universal dos Direitos Humanos confere
direitos aos indivíduos. Como se pode perceber nos primeiros artigos: “Todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos [...]” (art. 1º, DUDH).
Ou como no segundo artigo:

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades


estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja
de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição (art. 2°, Declaração Universal dos Direitos Humanos).

No terceiro artigo: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal” (art. 3°, DUDH). No sexto artigo: “Todo ser humano tem o direito de ser, em
todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei” (art. 6°, DUDH). No artigo
sétimo: “Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual

1440
proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole
a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação” (art. 7°. DUDH).
No entanto, mesmo amparados pelas leis do Direito Universal dos Direitos
Humanos, os indivíduos homossexuais sofrem com a homofobia: “[...] formação reativa
que se manifesta no desdém e no desrespeito com que alguns se referem aos
homossexuais” (DIAS, 2014, p. 91). Independentemente do termo ‘homofobia’ abraçar
todos os segmentos do grupo LGBTI, costuma-se nomear o ataque contra a orientação
sexual de lésbicas, como lesbofobia, de bissexuais contra bisfobia e de transexuais como
transfobia (DIAS, 2014).
Sabe-se que a sociedade brasileira é destacada por descriminar os desiguais. As
minorias, como o grupo LGBTI, mulheres, indígenas, negros, portadores de necessidades
especiais, são postas a prova e a discriminação da sociedade. Os homossexuais são o grupo
que mais sofrem. Por fugir da heteronormatividade imposta e do modelo majoritário, os
mesmos são alvos de preconceito e descriminação. A sensação que se tem é a de não viver
em uma sociedade democrática, onde todos devem viver sob os mesmos direitos. É
necessário dispor uma atenção especial ao grupo LGBTI, uma vez que as demais minorias
encontram o apoio da família, já o grupo discutido não. (DIAS, 2014). “[...] a própria
família o rejeita. Por isso precisa ser acolhido pela sociedade, tutelado pela lei e protegido
pela Justiça [...]” (DIAS, 2014, p. 98).
Como se faz necessário uma lei que regulamente todos os direitos dos indivíduos
LGBTI, a Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, em companhia das Comissões instaladas nos Estados e Municípios,
apresentou a Proposta de Emenda constitucional, que busca “[...] promover o bem de
todos, sem preconceitos de origem, etnia, raça, sexo, gênero, orientação sexual ou
identidade de gênero [...]” (DIAS, 2014, p. 345) e elaborou o Estatuto da Diversidade
Sexual, que “[...] trata-se de um microssistema, moderna forma de legislar, que traz
definições princípios e regras, e impõe a adoção de políticas públicas [...]” (DIAS, 2014, p.
98).
No que diz respeito aos avanços conquistados na temática LGBTI, Dias (2014)
acrescenta que:

[...] se devem aos movimentos sociais, extremamente ativos e atuantes na


luta pelos direitos da população LGBTI, exercendo decisivo papel para
inserção do segmento homossexual no âmbito da proteção do Estado.
De forma articulada tem subsidiado a implementação de enorme

1441
número de políticas públicas no âmbito do Poder Executivo (DIAS,
2014, p. 99).

No âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República foi


criada a Coordenação Geral de Promoção dos Direitos LGBT, uma iniciativa no rumo do
fortalecimento do Programa Brasil sem Homofobia, que foi o primeiro programa que
visou promover a cidadania e os direitos humanos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais, lançada em 2004. A Coordenação geral de Promoção dos Direitos LGBT é a
corporação responsável em sistematizar ações a fim de atingir os objetivos do programa,
que são promover a capacitação no país e ofertar apoio ao desenvolvimento de projetos
dos governos estaduais, municipais e organizações não governamentais que buscam
implantar centros de referência de combate à homofobia. Os atendimentos basilares são
no âmbito jurídico, psicológico e social às vítimas de preconceito e descriminação (DIAS,
2014).
Nesse ínterim, em 2010 foi adotada no Sistema Único de Saúde – SUS – a Política
Nacional de Saúde Integral de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Além disso,
em 2014, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e o Conselho Nacional
de Combate a Discriminação, designaram diretrizes de acolhimento da População LGBTI
em instituições prisionais. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB – concebeu a
Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB, que instalou mais
de 100 comissões em todo o país; uma associação de Juristas e de representantes de
movimentos sociais elaborou o esboço do Estatuto da Diversidade Sexual, que tem como
objetivo o reconhecimento dos direitos já assegurados em sede jurisprudencial e
administrativa ao gripo LGBTI (DIAS, 2014).
Fruto de todos estes movimentos:

[...] o mais significativo avanço foi à decisão do Supremo Tribunal


Federal que, por unanimidade, reconheceu a união homoafetiva como
entidade familiar, assegurando os mesmos e iguais direitos e deveres da
união estável homossexual. A partir deste julgamento, que dispõe de
eficácia contra todos e efeito vinculante, ninguém pode mais negar
direitos aos casais do mesmo sexo. Depois disso o Conselho Nacional
de Justiça proibiu a qualquer autoridade pública negar acesso ao
casamento, à união estável e sua transformação em casamento (DIAS,
2014, p. 102).

Entretanto, a união afetiva dos LGBTI é realidade que até hoje não mereceu
atenção e respeito do legislador pátrio. Um Estado que se posiciona como Democrático

1442
de Direito não deveria afrontar seus princípios fundamentais, o mesmo deve assegurar a
realização das garantias, direitos e liberdades que legitima a sua população, havendo a
possibilidade de comprometer sua própria soberania (DIAS, 2014).
Tendo em vista o preconceito e a perseguição que gays, lésbicas, bissexuais,
transexuais, travestis e intersexuais sofrem e da violência de que são vítimas não se tem
como saber o número exato de indivíduos que pertencem ao grupo LGBTI. Tornou-se
um novo ramo do Direito o Direito Homoafetivo. O ponto de partida para tal feito foi o
reconhecimento das uniões de pessoas do mesmo sexo no âmbito do Poder Judiciário. Os
ideais de igualde e liberdade devem reger a sistematização deste novo ramo (DIAS, 2014).
Desse modo, o Estatuto da Diversidade Sexual, reconhece uma sequência de
prerrogativas e direitos a gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais
(DIAS, 2014). A partir dele, “[...] é assegurado o reconhecimento das uniões homoafetivas
no âmbito do Direito das Famílias, sucessório, Previdenciário e Trabalhista [...]” (DIAS,
2014, p. 168).
Nota-se, a partir do exposto que, passo a passo os indivíduos membros do grupo
LGBTI estão conquistando seus direitos frente à sociedade conservadora. Direitos que
deveriam ser intrínsecos e invioláveis, mas que infelizmente, estão sendo lhes dados
tardiamente. Pode-se perceber o Direito vem dando um suporte no que diz respeito aos
direitos LGBTI. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), que tem
como competência alcançar todos os Estados-partes consagrados e promover a observância
e a proteção dos Direitos Humanos na América (PIOVESAN, 2008) terá grande relevância
na pauta, a ser discutida no próximo item.

O SISTEMA INTERNACIONAL DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

O desenvolvimento da universalização dos direitos humanos leva em si a


indispensabilidade de implementação desses direitos, através da constituição de uma
sistemática internacional de monitoramento e controle – a chamada international
accountability. É válida a ressalva de que a Carta da ONU de 1945, em seu art. 55, faz uma
ressalva que os Estados-partes têm como dever estimular e vivificar as liberdades
fundamentais e a proteção dos direitos humanos. Contudo, contendo uma vertente
legalista, a Declaração Universal, não apresenta força jurídica obrigatória e vinculante.
Sendo assim a mesma não apresenta forma de tratado, e sim, declaração, autenticando o

1443
reconhecimento universal de direitos humanos fundamentais, sancionando um código
comum entre os Estados signatários (PIOVESAN, 2008).
Piovesan (2008) aponta que à luz desse raciocínio e tendo em vista a exiguidade de
força jurídica vinculante da Declaração, após seu reconhecimento, em 1948, colocou-se
em pauta uma discussão sobre qual seria maneira mais eficaz de propiciar e certificar a
condecoração dos direitos nela previstos. Precedeu a cognição de que a Declaração deveria
ser “juridicizada”, na forma de um tratado internacional, sendo juridicamente obrigatório
e vinculante no âmbito internacional. Tal processo de “juridicização” teve início com a
estruturação de dois tratados internacionais eminentes – o Pacto Internacional dos Direitos
Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais –
que passaram a fazer parte dos direitos constantes da Declaração Universal. Com o início
da elaboração desses pactos, se forma a Carta Internacional dos Direitos Humanos,
International Bill of Rights, que foi assimilada pela Declaração Universal de 1948 e pelos
dois pactos internacionais de 1966.
Piovesan (2008) pontua que no que tange o Pacto dos Direitos Civis e Políticos, o
mesmo, logo em seus primeiros artigos, assegura que os Estados-partes devem propiciar e
afiançar os direitos nele elencados a todos os indivíduos que estejam sob sua jurisdição.
“[...] A obrigação do Estado inclui também o dever de proteger os indivíduos contra a
violação de seus direitos perpetrada por entes privados [...]” (PIOVESAN, 2008, p.161).
Dessa forma, entende-se que compete ao Estado-parte determinar e instaurar um sistema
legal que seja qualificado a responder com eficiência e validez às violações de direitos civis
e políticos. A contrapartida, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, que tem como objetivo incorporar os dispositivos da Declaração Universal sob
a forma de normas juridicamente imprescindíveis e vinculantes.
Piovesan (2008) expõe que o Pacto dos Direitos Civis e Políticos prescreve direitos
destinados aos indivíduos, enquanto o Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
prescreve direitos destinados aos Estados. “[...] Enquanto o primeiro Pacto determina que
“todos têm direito a...”, o segundo Pacto usa a fórmula “os Estados-partes reconhecem o
direito de cada um a...” [...]” (PIOVESAN, 2008, p.175).
Nesse ínterim, “[...] A Carta Internacional dos Direitos Humanos inaugura, assim,
o sistema global de proteção desses direitos [...] nos âmbitos europeu, interamericano e,
posteriormente, africano [...]” (PIOVESAN, 2008, p.158). Diferentemente dos tratados
internacionais tradicionais, os tratados internacionais de direitos humanos não tem como

1444
propósito estabelecer o equilíbrio de propensões entre os Estados, mas assegurar o
exercício de direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos (PIOVESAN, 2008).
É formado o sistema normativo global de proteção dos direitos humanos, no
âmbito das Nações Unidas. Tal sistema é incorporado por instrumentos de alcance geral,
os citados Pactos internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais (1966), e por instrumentos de alcance específico (GOMES;
PIOVESAN, 2000).
Por instrumentos de alcance específicos:

[...] Como as convenções Internacionais que buscam responder a


determinadas violações de direitos humanos, como a tortura a
discriminação racial, a discriminação contra as mulheres, a violação dos
direitos das crianças, dentre outras formas de violação (GOMES;
PIOVESAN, 2000, p. 20).

Ressalta-se que o Direito Internacional dos Direito Humanos não substitui o


sistema nacional, ao revés, ele encontra-se como direito subsidiário e complementar ao
direito nacional (PIOVESAN, 2008). Piovesan (2008) coloca que no Sistema Internacional
de proteção dos Direitos Humanos, os Estados têm incumbência primária pela proteção
dos direitos citados, já a comunidade internacional tem a responsabilidade secundária. Por
conseguinte, “[...] Os procedimentos internacionais têm, assim, natureza subsidiária,
constituindo garantia adicional de proteção dos direitos humanos, quando falham as
instituições nacionais [...]” (PIOVESAN, 2008, p. 159).
Em conjunto com o sistema normativo global, manifesta-se o sistema normativo
regional de proteção, que tem como intuito a internacionalização dos direitos humanos no
plano regional, especificamente na Europa, América e África. Este e aquele caminham em
conjunto, o sistema global integrado pelos instrumentos das Nações Unidas, e o sistema
regional, por sua vez, integrado pelos sistemas americano, europeu e africano. Cada sistema
regional de proteção citado apresenta um aparato jurídico próprio, o sistema americano,
foco deste trabalho e posteriormente aprofundado, tem como principal instrumento a
Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, que estabelece a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana. O sistema europeu conta
com a Convenção Europeia de Direitos Humanos de 1950, que estabelece a Corte
Europeia de Direitos Humanos. Enfim, o sistema africano expõe com principal

1445
instrumento a Carta Africana de Direitos Humanos de 1981, que estabelece a Comissão
Africana de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2008).

A CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O SISTEMA


INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

É sabido que o movimento de internacionalização dos direitos humanos foi


constituído em um movimento muitíssimo recente, no pós-guerra, como resposta aos atos
de desumanidade e repulsa cometidos durante o nazismo (GOMES; PIOVESAN, 2000).
“[...] Se a 2.ª Guerra Mundial significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra
deveria significar a sua reconstrução [...]” (GOMES; PIOVESAN, 2000, p.18). Gomes e
Piovesan (2000) apontam que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada
em 10 de dezembro de 1948, foi considerada o marco maior do processo de reconstrução
dos direitos humanos. Inclusa nela está à concepção de direitos humanos, caracterizada
pela universalidade e indivisibilidade dos mesmos, permitindo a formação de um sistema
normativo internacional de proteção destes direitos.
Nesse sentido Gomes e Piovesan pontuam:

[...] Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos


humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único
para a dignidade e titularidade de direitos. Indivisibilidade porque a
garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos
direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é
violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem assim
uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada [...]”
(GOMES; PIOVESAN, 2000, p. 18).

Conforme tratado no item 2, além do sistema normativo global, há também o


sistema normativo regional, que busca propagar a internacionalização dos direitos humanos
no plano regional. Tais sistemas normativos regionais são: o americano, tratado nessa
pesquisa, o europeu e o africano (PIOVESAN, 2008).
A Convenção Americana de Direitos Humanos, composta apenas por Estados-
membros da Organização dos Estados Americanos, é o instrumento de maior importância
no sistema interamericano. É ela que “[...] reconhece e assegura um catálogo de direitos
civis e políticos similar ao previsto pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
[...]” (GOMES; PIOVESAN, 2000, p. 30).
Dentre os direitos, destaca-se:

1446
[...] o direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito à não ser
submetido à escravidão, o direito à liberdade, o direito à a um julgamento
justo, o direito à compensação em caso de erro judiciário, o direito à
privacidade, o direito à liberdade de consciência e religião, o direito à
liberdade de pensamento e expressão, o direito à resposta, o direito à
liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à nacionalidade, o
direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar do
governo, o direito de igualdade perante a lei e o direito à proteção
judicial [...]” (GOMES; PIOVESAN, 2000, p. 30).

Tendo em vista essa listagem de direitos, cabe ao Estado-membro da Convenção


Americana atender e garantir o livre e pleno exercício dos direitos e liberdades, sem
discriminação. É ainda responsabilidade do Estado-membro empregar medidas
legislativas, ou qualquer outra necessária a fim de conferir efetividade aos direitos e
liberdades citados (GOMES; PIOVESAN, 2000).

A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O SISTEMA


INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO OS DIREITOS HUMANOS

Gomes e Piovesan (2000, p.33) apontam que “[...] a competência da Comissão


Interamericana de Direitos Humanos alcança todos os Estados-partes da Convenção
Americana, em relação aos direitos humanos nela consagrados [...]”. A principal função da
Comissão Interamericana é promover a observância e a proteção dos direitos humanos na
América (GOMES; PIOVESAN, 2000).
Por isso, cabe a comissão:

[...] fazer recomendações aos governos dos Estados-partes prevendo a


adoção de medidas adequadas à proteção destes direitos; preparar
estudos e relatórios que se mostrem necessários; requisitar aos governos
informações relativas às medidas por eles adotadas concernentes à efetiva
aplicação da Convenção; submeter um relatório anual à Assembléia
Geral da Organização dos Estados Americanos [...]” (GOMES;
PIOVESAN, 2000, p. 34).

É da alçada da comissão averiguar as comunicações, enviadas por indivíduos ou


grupos destes, que incluam denúncia de violação aos direitos consagrados pela Convenção.
Em caso de denúncias sobre violação aos direitos humanos consagrados na Declaração
Americana de Direitos do Homem, cabem também à comissão receber e examinar as
petições, sejam de estados membros da Convenção ou não (PIOVESAN, 2008).

1447
No que tange o âmbito procedimental, ao ter em mãos uma petição, a Comissão
Interamericana, de início, resolve sobre sua admissibilidade. Caso a petição seja
considerada admissível, a Comissão solicita ao Governo denunciado mais informações
sobre o caso. Uma vez que tais informações são recebidas, a Comissão analisa se existem
ou não motivos para a petição; caso não haja, a Comissão decretará que o caso seja
arquivado, caso haja, a Comissão realizará, com o conhecimento de ambas as partes, um
exame detalhado sobre o assunto e, se oportuno, exigirá que os fatos sejam investigados.
Uma vez que o exame da matéria tenha sido feito, a Comissão se esforçará para buscar
uma solução amistosa as partes, denunciante e Estado, e se a solução for aceita, a Comissão
produzirá um informe e enviará ao peticionário e aos Estados-partes da Convenção,
posteriormente sendo comunicado à Secretaria da Organização dos Estados Americanos.
Mas no caso da solução não ser aceita de forma amistosa, caberá a Comissão compor um
relatório contendo os fatos e as conclusões apropriadas ao caso e, possivelmente,
recomendações ao Estado-parte. A este o relatório é enviado, e terá o prazo de três meses
para atribuir cumprimento às recomendações feitas. Nesse período de três meses o caso
pode ser resolvido pelas partes envolvidas ou encaminhado à Corte Interamericana de
Direitos Humanos (PIOVESAN, 2008).

A CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS E O SISTEMA


INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS

A Corte Interamericana, “[...] órgão jurisdicional do sistema regional, é composta


por sete juízes nacionais de Estados membros da OEA, eleitos a título pessoal pelos
Estados partes da Convenção [...]” (PIOVESAN, 2008, p. 254). A mesma apresenta
competência consultiva e contenciosa (PIOVESAN, 2008).
No plano consultivo:

[...] Qualquer membro da OEA – parte ou não parte da Convenção –


pode solicitar o parecer da Corte em relação à interpretação da
Convenção ou de qualquer outro tratado relativo à proteção dos direitos
humanos nos Estados americanos. A Corte ainda pode opinar sobre a
compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos
instrumentos internacionais, efetuando, assim, o “controle da
convencionalidade das leis” [...]” (PIOVESAN, 2008, p. 255).

No plano contencioso:

1448
[...] a competência da Corte para o julgamento de casos é, por sua vez,
limitada aos Estados-partes da Convenção que reconheçam tal jurisdição
expressamente [...] Todo Estado-parte da Convenção passaria a
reconhecer como obrigatória, de pleno direito e sem convenção especial,
integralmente e sem restrição alguma, a competência da Corte em todos
os casos relativos à interpretação e aplicação da Convenção [...]”
(PIOVESAN, 2008, p. 258).

De acordo com Gomes e Piovesan (2000, p.45) “[...] A decisão da Corte tem força
jurídica vinculante e obrigatória, cabendo ao Estado seu imediato cumprimento [...]”. Se a
corte firmar uma indenização a vítima, a decisão da mesma valerá como título executivo,
em concordância com os métodos internos relativos à execução de sentença desfavorável
ao Estado. No entanto, é necessário que o Estado reconheça a jurisdição da corte
(GOMES; PIOVESAN, 2000).
A partir do exposto, considerando o desempenho da Comissão e da Corte
Interamericana, o Sistema Interamericano está se consolidando como uma estratégia de
proteção importante, operativa e conveniente aos direitos humanos, ao passo que as
instituições nacionais se apresentam falhas ou omissas (PIOVESAN, 2008).

O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS (SIDH) E A


CONVENÇÃO INTERAMERICANA CONTRA TODA FORMA DE
DISCRIMINAÇÃO E INTOLERÂNCIA

Em 05 de junho de 2013, foi aprovado a “Convenção Interamericana contra Toda


Forma de Discriminação e Intolerância”.
Por ela, entende-se que:

[...] A aprovação histórica [...] cristalizou o zeitgeist subjacente à


aprovação das resoluções contra a homofobia e transfobia, coligadas com
as declarações da CIDH de repúdio à discriminação e violência contra
pessoas LGBTI [...] (CONPEDI, 2014, p. 13).

A convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância


apresenta os princípios de discriminação e discriminação indireta.
Por discriminação:

[...] é qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência, em qualquer


área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de
igualdade, de um ou mais, direitos humanos e liberdades fundamentais

1449
consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados
Partes. A discriminação pode basear-se em nacionalidade, idade, sexo,
orientação sexual, identidade e expressão de gênero, idioma, religião,
identidade cultural, opinião política ou de outra natureza, origem social,
posição socioeconômica, nível educacional, condição de migrante,
refugiado, repatriado, apátrida ou deslocado interno, deficiência,
característica genética, estado de saúde física ou mental, inclusive
infectocontagioso, e condição psíquica incapaciente [...]” (art. 1°,
Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e
Intolerância).

Por sua vez, a discriminação indireta:

[...] ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando um


dispositivo [...] tem a capacidade de acarretar desvantagem partícula para
um grupo específico [...]” (art. 1°, Convenção Interamericana contra
Toda Forma de Discriminação e Intolerância).

No que tange a intolerância, é possível compreende-la como um conjunto de


atitudes que caracterizam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade, convicções ou
características distintas entre o coletivo. A intolerância está presente em qualquer esfera da
vida pública ou privada, podendo ser manifestada através da marginalização e exclusão de
grupos sociais (art. 1°, Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e
Intolerância).
Vale a ressalva de que “[...] todo ser humano é igual perante a lei e tem direito à
igual proteção contra qualquer forma de discriminação e intolerância [...]” (art. 2°,
Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância). Além
disso, todo ser humano tem pleno direito ao reconhecimento, usufruto e a preservação dos
direitos humanos e liberdades fundamenteis (art. 3°, Convenção Interamericana contra
Toda Forma de Discriminação e Intolerância).
No art. 4° da Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e
Intolerância é elencada uma sequência de deveres a serem cumpridos pelos Estados-partes
para prevenir, eliminar, proibir e punir todos os atos discriminação e intolerância, como:

[...] apoio público ou privado a atividades discriminatórias, ou que


promovam a intolerância, incluindo seu financiamento; publicação,
circulação ou difusão, por qualquer forma e/ou meio de comunicação,
inclusive a internet, de qualquer material que: defenda, promova ou
incite o ódio, a discriminação e a intolerância, e tolere, justifique e
defenda atos que constituam ou tenham constituído genocídio ou crimes
contra a humanidade, conforme definidos pelo Direito Internacional

1450
[...]” (art.4°, Convenção Interamericana contra Toda Forma de
Discriminação e Intolerância).

De acordo com a Secretaria de Assuntos Jurídicos, do departamento de Direito


Internacional da Organização dos Estados Americanos, Antígua e Barbuda, Argentina,
Brasil, Costa Rica, Equador e Uruguai foram os primeiros a assinar a Convenção
Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de
Intolerância; e Argentina, Brasil, Equador e Uruguai os primeiros a assinar a Convenção
Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância.

O SISTEMA GLOBAL NO ÂMBITO DOS DIREITOS HUMANOS LGBTI

A orientação sexual e a identidade de gênero se encontram protegidas na


Declaração Universal no art. 3°, vide: “Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à
segurança pessoal” (art. 3°, DUDH).
Gorisch (2013) afirma que considerando a orientação sexual como inerente ao ser
humano, ou seja, tendo o ser humano nascido homossexual, ou transexual, o mesmo tem
o direito ceifado não só a vida, mas sim, o direito ceifado à livre expressão. Uma vez que,
há uma morte da sexualidade quando esta não pode ser expressada e nem praticada. É
imprescindível que haja o reconhecimento que a sexualidade integra a própria condição
humana, uma vez que nem uma pessoa pode-se realizar como ser humano se não houver
seu exercício da sexualidade respeitado e assegurado.
Gorisch (2013) vai além e afirma que os Direitos Humanos, também chamados de
Direitos Fundamentais, são os direitos inatos e naturais aos seres humanos, e especificados
na Declaração dos Direitos dos Homens, implementados no decorrer da Revolução
Francesa. Com a industrialização, manifestam-se os direitos sociais, de igualdade,
denominados direitos fundamentais de segunda geração. Sendo o grupo LGBTI objeto de
ataques homofóbicos, pode-se considerar tal grupo como minoria sexual. Dito isso, os
mesmos necessitam de proteção estatal e internacional.
Ainda no que tange o art. 2°da Declaração Universal:

Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades


estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja
de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza,
origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra
condição (art. 2°, DUDH).

1451
Sendo assim, a citada “qualquer outra condição”, pode ser aplicada no que diz
respeito à orientação sexual ou a identidade de gênero, já que é direito do ser humano
exercer o livre exercício de sua sexualidade inata, e ser respeitado e assegurado pelo sistema
global (GORISCH, 2013).
Na parte II, art. 2°.1 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, também
há proteção contra a discriminação:

Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e


garantir a todos os indivíduos que se achem em seu território e que
estejam sujeitos a sua jurisdição os direitos reconhecidos no presente
Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo. língua,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
situação econômica, nascimento ou qualquer condição (parte II, art.2°.1,
Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos).

Gorisch (2013) coloca que este pacto tem uma particularidade importante aos
Direitos Humanos LGBTI. Em algumas situações, mesmo sendo excepcionais, que é
permitido aos Estados-partes derrogar obrigações decorrentes do Pacto, tal derrogação não
atinge determinados direitos, que se conservam inderrogáveis em quaisquer circunstâncias.
Dentre eles, “[...] destaca-se a proibição da tortura, do tratamento desumano e o direito à
vida [...] bem como o art. 26, do Pacto, que trata da não discriminação de qualquer
natureza, bem como a igualdade perante a lei e reconhecimento de direitos [...]”
(GORISCH, 2013, p. 55).
Já a parte II, art. 5°.2 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais, aponta:

Não se admitirá qualquer restrição ou suspensão dos direitos humanos


fundamentais reconhecidos ou vigentes em qualquer país em virtude de
leis, convenções, regulamentos ou costumes, sob pretexto de que o
presente Pacto não os reconheça ou os reconheça em menor grau (parte
II, art.5°.2, Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais).

Neste caso, Gorisch (2013) coloca que considerados os Direitos Humanos


universais, a questão cultural, política, e até mesmo religiosa, podem ser relativizadas, uma
vez que não atinjam os Direitos Humanos Fundamentais. Sendo o direito à vida
fundamental, e que a expressão da sexualidade engloba o conceito da vida, pois surge de

1452
forma inata ao ser humano, dessa forma conclui-se que não há relativização à proteção ao
grupo LGBTI.
Não foram encontrados casos de violação aos Direitos LGBTI enviados a
Organização das Unidas (ONU).

CASOS DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

A seguir, dois breves com casos com pautas LGBTI enviados a Corte
Interamericana de Direitos Humanos serão explicitados.

CASO KAREN ATALA E FILHAS VS. CHILE

No dia 17 de setembro de 2010 a Corte Interamericana de Direitos Humanos


recebeu um caso contra o Chile, relacionado à orientação de Atala e a guarda de suas filhas.
Em 2003, o marido de Karen Atala deu início a um processo requerendo a guarda de suas
filhas, alegando que a mãe, Karen Atala, a primeira juíza do Chile a se assumir lésbica, não
poderia ter a guarda das filhas, uma vez que seria prejudicial às crianças viver com a mãe e
sua companheira. Em primeira e segunda instância houve sentença favorável a Karen Atala,
no entanto, houve um regresso do recurso que gerou um acórdão irrecorrível.
O pai das crianças alegou que além dos efeitos que a convivência entre as duas
mulheres poderia causar no bem-estar e desenvolvimento psíquico e emocional das
crianças, a falta de uma figura masculina geraria uma situação de risco para o
desenvolvimento integral das crianças. Após esta declaração, Karen Atala iniciou uma
denúncia contra a República do Chile, contra atentados momentosos aos Direitos
Humanos, dado que todo ser humano tem direito à igualdade e não discriminação.
Após três anos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
constatou que o Chile infringiu os direitos de Karen Atala, tirando a guarda de suas filhas
pela orientação sexual.
A CIDH enviou recomendações ao Chile para recompor ao dano causado a
família, além de reparar integralmente Karen Atala por ter tido seu direito de viver sem
discriminação violado. Além disso, o Chile deveria adotar uma legislação, polpticas
públicas e programas a fim de suprimir discriminação com case em orientação sexual. O
governo chileno foi condenado a indenizar Karen Atala em US$ 72,000 (setenta e dois mil
dólares) (GORISCH, 2013).

1453
CASO MARTA LUCIA ALVARES GIRALDO VS. COLÔMBIA

Maria Giraldo, detenta no sistema prisional da Colômbia, foi proibida de receber


visitas íntimas de sua companheira. A mesma alegou estar sofrendo violações em seus
direitos, e que sua integridade pessoal, honra e igualdade encontra-se abalada, uma vez que
a penitenciária não autoriza visita íntima por conta de sua orientação sexual. A República
da Colômbia declara que autorizar visitas íntimas a homossexuais afetaria a moral das
penitenciárias, tendo em vista que a homossexualidade não é bem vista na América Latina.
O mesmo foi além, e afirmou que caso autorizasse a visita íntima, estaria descumprindo a
própria regra interna do sistema carcerário do país. A Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, neste caso, determinou que o caso é admissível. Isso posto, o mesmo continuará
em análise (GORISCH, 2013).

CONCLUSÃO

Até o momento conclui-se que o grupo LGBTI, ao longo da história, passou por
momentos penosos e sofridos. A sociedade machista, homofóbica e transfóbica, vendada
pela heteronormatividade fizeram com que o cada integrante do grupo matasse sua
sexualidade, já que viver sem poder expressa-la é o mesmo que matá-la. Foi um caminho
árduo que o grupo passou até seus primeiros direitos serem reconhecidos, direitos
conquistados após muitos anos de luta e determinação.
Tendo em vista a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Direito
Internacional aponta os direitos humanos como indivisíveis e invioláveis, sendo assim, o
grupo LGBTI encontra-se amparados e assegurados por estes direitos, podendo exercer o
livre gozo do mesmo sem temer sua própria vida por questões relacionadas a gênero e
identidade.
Baseado nos casos expostos, seções 2.4.1 e 2.4.2, percebe-se que o caminho está
meio andado. Enquanto um país deu ganho de causa para uma mulher lésbica poder ter a
guarda de suas filhas, outro país impediu uma detenta de receber visitas íntimas de sua
companheira. Alguns aspectos melhoram na vida dos LGBTI’s, no que tange conquistas
de Direitos Humanos básicos, que até então somente heterossexuais possuíam, no entanto
há ainda muito que melhorar. Caminhando nos Direitos Fundamentais que qualquer ser
humano possui é possível acreditar em um futuro no qual todas as pessoas possam nascer
livres e iguais em direitos e dignidade.

1454
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RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 5. ed. São


Paulo: Saraiva, 201, p. 31.

1456
O PAPEL DO ESTADO E SOCIEDADE CIVIL NA CONSTRUÇÃO
DE POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE DA III CONFERÊNCIA
DE DIREITOS HUMANOS LGBT NO AMAPÁ

Luana Darby Nayrra da Silva BARBOSA736

Valdinei Castro de ARAÚJO737

Resumo: O presente trabalho procura contemplar a III Conferência Estadual dos Direitos
Humanos LGBT, realizada no Estado do Amapá em março de 2016, objetivando a dimensão da
participação de representantes civis dos LGBTs dos municípios e das instituições do Estado e
Município, que contou com a presença das Secretarias de Saúde, Segurança Pública, de Inclusão e
Mobilização e organizações da sociedade civil. A reunião conferiu na construção do Plano Estadual
de Direitos Humanos LGBT, com a participação de ONGs em prol da causa. Sucedidas de
plenárias, a montagem do Plano Estadual de Direitos Humanos foi feita através de mesas redondas
e de grupos de trabalho desenvolvidos pelos representantes de associações, das secretarias do
Estado e convidados, que teve o acompanhamento dos acadêmicos da Universidade Federal do
Amapá para a sistematização das principais propostas. Na ocasião, foram definidas as principais
diretrizes para formulação de políticas que implicam na garantia dos direitos sociais e no
fortalecimento do debate de temas transversais na educação e na saúde, além de postular a
importância do reconhecimento dos grupos frente às instituições. Durante o encontro, foram
escolhidos 17 representantes que levaram suas propostas até a Conferência Nacional em Brasília-
DF. Buscou-se sintetizar as principais ações estaduais para o combate à LGBTofobia, a incluir o
debate sobre a diversidade sexual na educação; a afirmar a identidade de gênero e ampliar o
atendimento na área da saúde, bem como a promoção da igualdade no convívio social, no
cumprimento da Lei 7.388/2010 que estabelece as atribuições do Conselho Nacional de Combate
à Discriminação na apresentação de dados relativos aos membros da comunidade.

Palavras-chave: Cidadania. Direitos Sociais. Diversidade. LGBT. Participação.

INTRODUÇÃO

As demandas sociais são frequentemente aludidas com políticas e programas de


intervenção, que intensificam projetos e condições de acesso à saúde, educação, trabalho,
renda, segurança e proteção do acesso à cultura, como é proporcionado na relação com a
sociedade no atendimento das necessidades da população.
O entrelaçamento do Estado e Sociedade Civil veio como proposta de
descentralização dos núcleos por reivindicações, ora intensificadas pelos movimentos
sociais e sindicatos, que abrangera a esfera da sociedade política através do Estado e dos
planos para a execução em termos sociais estruturantes na execução de leis, projetos e

736
Graduanda do curso de Licenciatura e Bacharelado em Ciências Sociais; UNIFAP. Email:
darbyn_luana@hotmail.com.
737
Graduando do curso de Bacharelado em Ciências Sociais; UNIFAP. Email: valdineyaraujo96@gmail.com.
1457
articulações que viabilizam a participação social e o exercício da cidadania, com respeito
aos princípios declarados no documento que institui a declaração dos direitos humanos.
A III Conferência dos Direitos Humanos LGBT, realizado no Estado do Amapá
é fruto de uma experiência vivida entre as instituições e a sociedade, colocando em pauta
o aproveitamento das demandas para a conclamação dos direitos civis e nas ordens de uma
vida social mais justa e igualitária, por ações, leis e projetos que provoquem mudanças
necessárias, que tem por objetivo serem gradativamente feitas após as discussões, a ampla
participação e a intensificação da representação das minorias sociais.

CONSIDERAÇÕES SOBRE OS DIREITOS HUMANOS: DIREITOS


UNIVERSAIS, REPRESSÕES E LUTAS NO BRASIL

A concepção dos direitos civis vem da base dos ideais iluministas na luta contra o
absolutismo monárquico, elaboradas após as revoluções francesa e inglesa, que advém do
direito positivo em detrimento dos direitos naturais, movido a interesses da burguesia,
criado pelos homens para estabilidade e boa convivência em sociedade, aderindo aos
princípios de preservação das liberdades individuais e da propriedade privada
(TRINDADE, 2011), como exprime a Declaração Universal dos Direitos do Homem e
do Cidadão, promulgada na França em 20 de agosto de 1789 em seus primeiros artigos.

Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções


sociais só podem fundamentar-se na utilidade comum.
Art. 2º. A finalidade de toda associação política é a conservação dos
direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são a
liberdade, a propriedade a segurança e a resistência à opressão [...] (USP,
s/da)

Os direitos humanos foram constituídos a partir da assembleia geral da Organização


das Nações Unidas (ONU), em 10 de dezembro de 1948, em detrimento da Segunda
Guerra Mundial, com o intuito de dar abertura aos campos de lutas dos grupos sociais –
negros, mulheres, indígenas, gays, lésbicas e na manifestação cultural dos povos – mais
tarde sendo incrementadas as reivindicações sobre os direitos das crianças, idosos, pessoas
com deficiência, famílias camponesas e dos defensores do meio ambiente.
O principal autor a versar sobre essa linha foi o sociólogo Thomas Humphrey
Marshall que considera essencial o reconhecimento da cidadania para o reconhecimento
“A cidadania é um status concedido àqueles que são membros integrais de uma

1458
comunidade. Todos aqueles que possuem um status são iguais com respeito aos direitos e
obrigações perante ao status” (MARSHALL, 1967, p. 76)
O intelectual britânico indicou três divisões distintas sobre os processos de
cidadania: Dos direitos civis, que seria a preservação das liberdades individuais e consensos
coletivos do acesso à propriedade privada; dos direitos políticos, entendendo que a
participação da sociedade civil nas relações de poder se manifestam de modo a operar na
reivindicação de melhores condições na vida social, na ampliação dos mecanismos
democráticos; o terceiro seria a cumprimento dos direitos sociais na construção e
manutenção da sociedade na boa execução de premissas básicas universais– na saúde,
educação, lazer e seguridade, que se estabelecem como essenciais para o direcionamento
das políticas públicas para as populações mais pobres e minorias.
Portanto, os direitos humanos têm em vista ampliar a participação de grupos
minoritários, estabelecendo-se frente às concepções de justiça social e de igualdade,
respaldando-se de práticas de intolerância como racismo, violência contra a mulher,
preconceito contra LGBTs e com pessoas com deficiência. O Estado tem como dever
garantir os mecanismos de inserção e a participação dos grupos para a congratulação dos
equipamentos sociais.
No Brasil, no entanto, a plena execução se elabora a partir do Estado, na
representatividade dentro da política, que visa estabelecer a diversidade, a tolerância e a
expressão das opiniões, passando pela democratização que vem por estabelecer a garantia
de bens e serviços básicos à população, criticada por ser vista como uma cidadania de
direitos por concessões, pois só é manifestada pela atribuição de papéis do Estado frente à
formação de uma sociedade civil, como salientado a seguir:

[...] a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar


presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade,
participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no
Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem servido de parâmetro para o
julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento
histórico. Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis,
políticos e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três
direitos. Cidadãos incompletos seriam os que possuíssem apenas alguns
dos direitos (CARVALHO, 1998, p. 9).

A inseguridade social foi provocada pela instauração da Ditadura Militar em 1964,


por pressão das camadas da classe média e das elites militares, que provocou o golpe contra
o presidente João Goulart, justificado por instrumentos de ordem jurídica e organização

1459
civil pela segurança nacional. O discurso ante a “onda vermelha” comunista no país
motivou os militares, elites e classe média ascendente a tratarem como problemas de
conduta moral e ética para a preservação da propriedade e do patrimônio, fazendo com
que grupos sociais fossem marginalizados naquele período.
Relatórios criados por comissões apontaram em tom de denúncia a perseguição e
repressão de gays, lésbicas e travestis, como aconteceu nas ruas de São Paulo a partir do
regime, nas ações do DOI-CODI738 sob a supervisão de delegado que usavam da força da
lei e do poder da farda para retirar os grupos da cena noturna paulistana, com o intuito de
fazer uma “limpeza” de pessoas que trabalhavam na prostituição, pessoas em situação de
rua, usuários de drogas, também aprisionando pessoas em sua condição sexual, tido como
desvio de conduta, usando da violência e a constatação de uma ficha criminal por
“perturbar o sossego” em determinação da família, da moral e dos bons costumes
(BRASIL, 2014).
O surgimento dos sindicatos consolidou grandes centros de consolidação dos
grupos de pressão contra a repressão do Estado, composto por intelectuais, artistas e
indivíduos contrários ao regime, assim como a grande concentração estudantil durante os
anos de chumbo. A consolidação das associações e partidos de esquerda entre os anos
1970 e 1980 trouxe as reivindicações sobre o tratamento econômico e social, visto a
situação de desigualdade enfrentados no país, com a incontingência política manifestada
pelas elites dominantes.
O sistema democrático possibilitou a inserção das características da sociedade
brasileira – como das classes menos favorecidas e as dificuldades em desempenhar as
atividades de cunho civil-social, com o processo de crescimento que o país teve da década
de 1930 até os anos 1980, deixando a situação social de lado, negligenciando alguns fatores
essenciais da vida humana.
Desta forma, grupo se organizam desde então, tentando aproximar-se da esfera
pública e pressionar as instituições, que manuseiam o aparelho estatal sem se comprometer
sem a associação direta da população, que na democracia representativa delega o
cumprimento das funções aos representantes dos entes governamentais. A
redemocratização do país abriu portas para tratar de pontos os direitos civis como legítimos
e iguais para todos, que na promulgação da Constituição de 1988 trouxe nos adendos para

738
O Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) foi
um órgão operado pelo exército em 1970 durante Regime Militar com o intuito de reprimir ações políticas
contra o governo ditatorial culminando na prisão e repressão de interventores contrários ao regime.
1460
o exercício da democracia, fortalecendo o papel da população e dos grupos organizados
para a via da cidadania.
O País executou dois Planos Nacional dos Direitos Humanos (PNDH) - sendo a
primeira etapa feita em entre 1994 a 1998 -, executada no governo de Fernando Henrique
Cardoso conferiu o papel das ONGs na execução de projetos e ações nas diversas áreas da
atmosfera social, prevendo os direitos civis, políticos, culturais e econômicos. Na segunda
etapa, realizada entre 1998 a 2002, o plano avança na inclusão da proteção à saúde mental,
cuidados com os portadores de HIV, meio ambiente, cultura, moradia, alimentação e da
cultura negra (ADORNO apud ENFELMANN; MOREIRA, 2015, p. 628).
No ano de 2003, com a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, as políticas sociais
tiveram o propósito a transformação social a partir de uma sociedade, tendo em vista a
desigualdade econômica e o não reconhecimento pleno da diversidade cultural. Naquele
momento foi definido a introdução das políticas transversais na III etapa do PNDH a partir
de 2004 com a criação da Secretaria de Direitos Humanos (SDH/PR), que desenvolve
ações voltadas para o respeito e atenção os grupos que se encontram no estado de
vulnerabilidade social, que alçou na criação do Programa Brasil Sem Homofobia na
promoção da cidadania, combate à discriminação e violência contra LGBTs.
A primeira conferência a ser realizada utilizava a nomenclatura GLBT, que
identificavam até então Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais sendo realizado
entre os dias 6 e 8 de junho de 2008, contou com a participação dos representantes das
secretarias do governo, dos ministérios, sociedade civil e da frente parlamentar pela
formação cidadã, fazendo parte da implantação do Programa Brasil Sem Homofobia,
promovido pelo Governo Federal. Neste mesmo encontro, os representantes resolvem
mudar as siglas para LGBT, dando notoriedade à luta das mulheres lésbicas.
O documento que serviu como texto base para a I Conferência apresenta os
objetivos das ações que se seguem nos anos posteriores, objetivando sua finalidade,
expressando as dificuldades do seguimento em emergir sua luta por conta do preconceito
e de práticas conservadoras sob a ótica social e política:

Um Estado democrático de direito não pode aceitar práticas sociais e


institucionais que criminalizam, estigmatizam e marginalizam as pessoas
por motivos de sexo, orientação sexual e/ou identidade de gênero. A
prática sexual entre adultos do mesmo sexo é um direito de foro íntimo
bem como o é a apresentação do sentimento de pertencimento a um
determinado gênero, independente do sexo biológico (BRASIL, 2008,
p. 4).

1461
A discussão na reunião foi acerca da cobrança na tramitação das leis que
criminalizam a homofobia e que promovem a união civil homoafetiva, que esteve parado
desde 1995, aprovado pela Comissão de Constituição de Justiça somente em 2017. Os
desígnios do respeito à dignidade, integridade física, liberdade sexual, do reconhecimento
dos gêneros, de raças e o direito à cidadania foram os preceitos iniciais eminente no
documento, se tornando ações norteadoras nos próximos eventos.
A construção da demanda constitucional levou em consideração as estruturas
sociais e o suporte das instituições para a promoção da diversidade e do combate à
discriminação, bem como a situar o funcionamento das políticas pelos municípios, Estados
e das secretarias responsáveis pela implantação.
O texto da II Conferência, utilizando as siglas LGBT, ocorrida entre 16 a 18 de
dezembro de 2012, enfatiza o fortalecimento do combate à violência contra LGBTs, como
a criação do Disque 100 para denúncias de agressões, discriminações e assédios, do reforço
no papel das identidades de gênero e na garantia dos direitos civis, tal como é indicado à
união estável homoafetivo como um ganho importante nos últimos anos para a
comunidade.
A Criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos
Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT),
direcionado pela última conferência, estabeleceu a regulação do conselho deliberativo e
consultivo para a estruturação das propostas de intervenção para a formação das políticas
públicas estabelecido pelo decreto nº 7383/10.

O ENTRELAÇAMENTO DO ESTADO E SOCIEDADE CIVIL: OS CONCEITOS


QUE EQUILIBRAM A REPRESENTAÇÃO NAS INSTITUIÇÕES

O conceito de sociedade civil está entrelaçado a um processo de racionalização por


meio do decurso histórico, isto é, representa na luta de classes a acentuação da trajetória
de embates, onde funções do Estado se viabilizam através da emancipação da sociedade
política e sociedade civil nas decisões, conformação que engloba na concepção
gramsciana739, como deixa evidente uma tendência de mudanças nas relações:

739
Termo alcunhado para designar o pensamento do autor italiano Antônio Gramsci (1891-1937), apresentado
na teve como principal obra “Cadernos do Cárcere: Vol 1” (1948), onde concebeu através de sua filosofia
política o entendimento do Infraestrutura e Superestrutura no desenvolvimento das relações do Estado e
Sociedade Civil.
1462
O Estado não é um fim em si mesmo, mas um aparelho, um
instrumento; é o representante não de interesses universais, mas
particulares; não é uma entidade suposta à sociedade subjacente, mas é
condicionado por essa e, portanto, a essa subordinado; não é uma
situação permanente, mas transitória, destinada a desaparecer com a
transformação da sociedade que lhe é subjacente (BOBBIO, 1982, p.
23).

Apresenta-se um entendimento da associação da sociedade civil com o Estado no


Brasil como iniciativa privada sustentada a partir do modelo de estado mínimo em 1995
no governo de Fernando Henrique Cardoso, onde viabiliza a criação das entidades
filantrópicas como interventores na relação com o Estado, recebendo o apoio financeiro
por parte de doações e o apoio para sua regularização por parte do governo, servindo
também como interventores no meio político, enquanto que esfera política obtém por
intermédio da camada popular finalidade o apoio para determinadas ações
governamentais.
A desenvoltura da modelagem das políticas para a população LGBT chama a
atenção pelo seu caráter de emancipação. As plenárias e as delegações montadas nos
conselhos municipais e estaduais no seguimento discutem as propostas para as próximas
ações e o fortalecimento do movimento contra atos de discriminação, machismo,
homofobia e direito à saúde, educação e segurança, assim respaldando-se para a efetividade
dos direitos e contemplando enquanto representantes da sociedade civil, os grupos de
função intermediária ajudam na criação de centros, projetos, programas e materiais que
estimulem o debate social e acolham pessoas em situações de desamparo.
Porém, no entendimento dos agrupamentos de representação dentro do Estado,
suas associações são estratégicas para a consolidação dos direitos civis e da introdução das
temáticas transversais na sociedade, pondo-se de frente a uma corrente conservadora e
patriarcal, baseada em aspectos signatários do elitismo na formação social e da religião na
união civil, na regulação dos corpos e no enfrentamento das convicções heterormativas.
O desenrolar da trajetória histórica dos LGBTs no país é vista nas condições de
oferta na saúde, educação, segurança pública e relações sociais, onde há uma deficiência
no atendimento à população, que sofre com o descaso no tratamento de doenças e nas
denúncias sobre algum tipo de violência. Na educação, busca-se uma ampliação do
conhecimento sobre a diversidade, sendo adotada nas disciplinas de base curricular das
escolas e em projetos desenvolvidos pelos professores pautas que abordem o

1463
conhecimento e o respeito ao grupo. As reivindicações inclinam aos princípios do Direitos
Humanos, considerando os expostos:

Artigo 2º Toda pessoa tem capacidade de gozar dos direitos e as


liberdades estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer
espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião pública ou de
outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou
qualquer outra condição [...]
Artigo 6ºToda pessoa tem o direito de ser, em todos os lugares,
reconhecida como pessoa perante a lei [...] (USP, s/d).

A sociedade evidencia o debate quando se mostra dividida quanto a abordagem da


ampliação dos direitos sociais e civis LGBT dentro da política e ao respeito com as
expressões de identidade de gênero. Segundo o relatório do Grupo Gay Bahia (2016), no
ano foram verificados 343 assassinatos contra LGBTs no Brasil, com aumento das mortes
violentas Norte do país com 28 casos no Amazonas e no Centro-Oeste com 49 casos em
São Paulo; espera-se que o número alarmante seja observado com atenção pelos órgãos de
segurança para que possam executar medidas de proteção e resguardo às vítimas.
O procedimento singular realizado pelos grupos dentro dos centros de apoio,
associações e organizações não governamentais constitui um entendimento das demandas
que norteiam a pessoa LGBT no direito à cidadania, contra ações preconceituosas e
discriminatórias. O dispositivo é encarado como um dos propósitos de dimensão ética e
do respeito à integridade, trazidas pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde
foram colocadas diretrizes para uma convivência pacífica para a diminuição e erradicação
dos problemas sociais gerados pelas guerras mundiais.
Os direitos humanos foram advogados por várias nações através do Direito
Internacional. Os grandes preceptores do dimensionamento da dignidade humana e do
bem estar, sendo lugar-comum o apoio às assistências humanitárias e a articulação de países
para a disponibilidade financeira para ajudar os locais devastados pelas guerras e desastres
naturais.
Esses princípios são exportados para os países com suas definições muito bem
acertadas, fazendo com que as intervenções sejam bem amplo em cada região, como a
cobertura da Organização dos Estados Latino Americano (ODE) e Organização das
Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) na América Latina.
Portanto, é sugerido que atingindo seu patamar de emancipação em caráter universal,
eleva-se seu aspecto político que traz consigo a presença de sua representação no território.

1464
Os resultantes dessas ações visam na colaboração dos meios de representatividade
do Estado e das organizações de origem social, como os movimentos de luta. A situação é
acentuada com a constituição de 1988, havendo aberturas para a execução de
procedimentos de intervenção em consonância com as metas a serem atingidas pelos
órgãos de execução, nesse sentido, a ONU tem promovido campanhas como “Livre e
Iguais”, promovendo a igualdade de direitos às pessoas LGBTIQ, articulando parcerias
com prefeituras municipais e governos no Brasil para projetos e programas na educação,
cultura e saúde pública (ONU, 2017).
As demandas sociais são atendidas através da construção de políticas públicas e
ações voltadas para a cidadania e melhoria no atendimento aos serviços básicos, uma vez
se tratando do público que é socialmente invisibilizado, que passar por dificuldades de
aceitação social pelo estigma causado por fatores de construção histórica, é perseverante a
luta dos movimentos sociais e nomes que acentuam sua preocupação com a causa. As lutas
que acendem a identidade de gênero passam a ter maior proporção a partir das
organizações da sociedade civil e em intervenções feitas nas redes sociais, que ganhou o
apoio de vários grupos e pessoas públicas.

O FORTALECIMENTO DAS POLÍTICAS DE DIVERSIDADE ESTADO DO


AMAPÁ: A III CONFERÊNCIA DE DIREITOS HUMANOS LGBT NO ESTADO
DO AMAPÁ

A conferência foi realizada nos dias 8 e 9 de março, tendo como tema “Por Um
Brasil que Criminalize a Violência Contra LGBT”, foi realizado com o apoio do poder
executivo, do Governo do Estado, composta por membros das pastas do governo, de
associações e ONGs que compõem a sociedade civil como a Associação de Mulheres
Lésbicas e Bissexuais do Amapá (ALBA), Grupos de Homossexuais Thildes do Amapá
(GHATA), Federação Amapaense LGBT (FALGBT), Rede LGBT Pró-Vida, Rede Trans
e Rede Juventude Alexandre Ivo, que com a aprovação da lei na Assembleia Legislativa, se
organizaram para as estratégias de luta na consolidação da cidadania LGBT, como agendas
para os dias alusivos em comemoração à trajetória dos grupos, assim como sua
representação dentro do contexto político.
A participação política teve um avanço nos últimos anos, visto a primeira
candidatura de uma travesti para disputa eleitoral no ano de 2004 no Estado em um
partido. A candidata do pleito na época falou sobre as conquistas durante os anos de luta
pelo reconhecimento social:

1465
[...] isso começou a mudar com a organização da Parada do Orgulho Gay
em 2004. É bom que se entenda uma coisa: este movimento já acontecia
desde 2000 e tinha o nome de Marcha da Cidadania. Porém, a partir de
2004 o movimento resolveu adotar uma nova tática para integrar outros
setores da sociedade na luta contra a discriminação contra os
homossexuais e dar mais visibilidade ao movimento. Esta parada teve
grande apoio do poder público e da iniciativa privada. Por conta disso,
foi uma das maiores paradas do orgulho gay da história do movimento
no Amapá e também se transformou num divisor de águas porque
depois dela houve uma explosão da aceitação do movimento (PORTAL
VERMELHO, 2008).

Suas participações foram se intensificando na medida em que as leis vigoraram na


área da educação, saúde e cultura, como o apoio das instituições à Parada do Orgulho Gay
(hoje em dia nomeada como LGBT) e no reconhecimento dos direitos civis como a união
estável, a adoção de crianças por casais homoafetivos e a presença de pessoas LGBT dentro
do cenário político, disputando cargos eletivos, assim como a ampliação do atendimento
na saúde pública, como o tratamento e prevenção de DSTs e HIV.
Foram feitos painéis temáticos com palestrantes no segundo dia, além da
organização de grupos de trabalho divididos em delegados governamentais e delegados da
sociedade civil, que discutiram as propostas para as áreas da saúde, educação, segurança
pública e cultura, sendo 17 propostas aprovadas e levadas por dois representantes do
Amapá para a Conferência Nacional em Brasília-DF que ocorreu nos dias 24 a 27 de abril.

QUADRO 1: EIXOS TEMÁTICOS DA III CONFERÊNCIA LGBT


EIXOS PROPOSTAS

Articulação de Políticas de Promoção dos Direitos Fomentar os debates para a participação política de
Humanos de LGBTs pessoas do movimento LGBT; criação de delegacia
especializada de combate ao racismo e intolerâncias
correlatas; implementar a Vara de Crimes
Especializados no Poder Judiciário; Garantia da
representação da Amazônia na Conferência
Nacional.

1466
Direito à Educação e a Valorização da Política de Paz Criação da rede de denúncias através da instalação
de uma ouvidoria específica em parceria com a
Secretaria de Educação; Inclusão de projetos
político-pedagógicos que incluam a formação
especializada para educadores sobre orientação
sexual e diversidade de gênero; Incentivar a inclusão
dos gêneros e diversidades no componente
curricular das escolas e universidades com a inclusão
do nome social de estudantes, profissionais da área,
travestis e transexuais e uso de espaços como
banheiros em conformidade com sua identidade de
gênero; Implementação de cursos continuados;
estruturar políticas de inclusão social.

Direito à Saúde: Assegurando o Tratamento Não houve propostas, contidas apenas no plano
Equânime estadual.

O Direito ao Trabalho e a Geração de Renda: Incentivo ao trabalho e renda através de cursos


Garantindo a Garantia de Acesso e Promoção e não profissionalizantes para os profissionais de rua
discriminação por Orientação Sexual e Identidade de LGBT, inclusão de pessoas LGBT em ações de
Gênero economia solidária para o apoio ou criação de
empreendimentos econômicos; ampliação do
alcance de programas e projetos para a juventude
LGBT em em situação de vulnerabilidade e risco
social, combater a exploração sexual de crianças e
jovens LGBTs, criação de editais que contemplem a
eventos, programas, estudos e pesquisas,
envolvendo a poder público com a sociedade civil.
Fonte: Relatório Final da III Conferência de Direitos Humanos no Estado do Amapá. Secretaria
de Mobilização e Inclusão Social (2016)

A composição da mesa do primeiro dia do evento contou com a presença de


representantes das ONGs, do gabinete civil do governador e nas figuras dos ocupantes dos
cargos do legislativo e do executivo. Nas falas foram apontadas a importância de definições
de políticas focalizadas no grupo, trazendo dados relativos à participação dos Estados na
consolidação dos direitos LGBT e no estímulo à construção do sujeito atuante dentro das
esferas de representação.

Quando falamos o tema da conferência, por uma Brasil que criminalize


a LGBTfobia, estamos falando em defesa da vida, então também
estamos falando em saúde, de qualidade de vida… o Brasil ocupa hoje
lugar vergonhoso no ranking mundial, é campeão de assassinatos das
travestis e transexuais assassinadas, dado extremamente alarmante.
Precisamos todos - poder público e sociedade civil - dar as mãos em
defesa dessas pessoas; as políticas públicas de educação, saúde,
segurança pública e assistência social deveriam implementar uma rede
de proteção às pessoas com vulnerabilidade social, é dever do Estado

1467
brasileiro, garantido na Constituição, que todos e todas tem os mesmos
direitos [...] (AMAPÁ, 2016a)

Na primeira palestra foi dado conhecimento sobre a aplicação de questionários


sobre a execução das leis específicas para a comunidade LGBT no Estados, sendo
direcionadas aos governados de cada território: O nome social só foi garantido em 55% e
somente 25% tem ações pautadas na promoção dos direitos LGBT e 44% compuseram
conselhos estaduais; nos municípios a realidade é bem distanciada, pois apenas 0,6%
alguma política voltada para a causa, sendo em feita em 0.4% dos casos alguma conferência
a respeito da demanda LGBT.
Os palestrantes na sequência expuseram dados relativos à violência contra LGBTs,
ressaltando a importância de tratamento das denúncias pelo Disque 100, para o
recebimento das queixas, ajudando na autuação dos agressores; a segunda palestrante
chama a atenção pela inclusão das transexuais e travestis nas intervenções feitas na
Conferência “O corpo que morre, que é matado, oprimido, excluído da sociedade ainda é
das travestis e transexuais. Quando assumimos para nossos pais nossa homossexualidade
‘que dizem é ‘seja, mas não se vista como mulher’; tem a primeira negação do gênero”
(AMAPÁ, 2016b).
A mesa de debate contou com 8 expositores, onde na primeira fala foi ressaltada a
importância da criação do comitê de segurança, colocando situações ocorrentes entre os
companheiros de luta, como a violência física, simbólica e preconceito social no trabalho
e destacou que o Estado deve intervir com medidas protetivas; na segunda abordagem,
colocou-se que o apoio à Parada do Orgulho LGBT, sobre a adoção da temática nas
escolas e o difícil enfrentamento com os núcleos conservadores das repartições públicas.
No atendimento na área da saúde é observada a precarização pela falta de preparo
dos funcionários, na ação da segurança pública na recepção de ocorrência como o racismo
e homofobia, além de tratar da conquista por meio do poder judiciário sobre o casamento
homoafetivo, fechando assim o primeiro dia de comunicação.
O segundo dia apresentou o painel de eixos temáticos, com a apresentação de 3
representantes, logo após sendo feitas as discussões com os grupos de trabalho para a
colocação de propostas e definições sobre as próximas ações a serem acolhidas. Pela tarde
foi feita a Plenária Final, com a palestra de representantes do Tribunal de Justiça do Estado
e na presença de um delegado da sociedade civil. Foi feita a leitura de uma nota de repúdio
da forma como foi composta a Comissão dos Direitos Humanos LGBT no Estado,
deixando de fora uma representante ativa dos grupos de mobilização.

1468
Foram estabelecidas metas para o desenvolvimento das políticas públicas voltadas
para a comunidade, assim como na garantia da cidadania, visto que o Estado brasileiro tem
possibilitado com as demandas fossem efetuadas, partindo agora para a ação nos espaços
públicos na transformação do pensamento discriminatório e preconceituoso, além de
ampliar os programas e projetos de vínculo educacional e cultural do jovem ao idoso
LGBT, lembrados nas propostas de construção conjunta.
Entretanto, há um diálogo combate com as próprias instituições de apoio, seja pelo
não atendimento por parte dos entes federativos ou por grupos que se manifestam
contrários às expressões de gênero, tem sido um dos enfrentamentos por parte da
sociedade civil e integrantes dos movimentos. A bancada conservadora dentro das câmaras
tem dificultado a tramitação de leis e decretos que circunstanciam a atividade, inclusão e
acessibilidade da pessoa LGBT, alegando que isto poderá influenciar o jovem ou não haver
distinções por parte das categorias sociais.
Tem-se reportado aos direitos humanos a ampliação da temática assim como sua
identificação pelo público LGBT para que se somem à luta. No Amapá, a reivindicação
de pessoas e grupos tem servido de potência para o combate da violência e a sustentação
da bandeira da cidadania.

Queremos que o travestir possa ter atendimento no posto de saúde, que


esteja inserido na escola, que o homossexual possa estar na rua andando
com seu companheiro de mãos dadas. Para isso é necessário que a gente
tenha políticas de promoção da defesa a cidadania dessas pessoas [...]
(G1, 2017).

A ocasião apresentou a trajetória de lutas dos representantes LGBTs do Estado,


que fundamentaram a importância da abrangência da temática na composição das
instâncias sociais, como o debate na câmara municipal, assembleia legislativa e na área
educacional, onde se propôs os estudos sem referência de gênero nas escolas públicas de
Macapá740.
Foi chamado a atenção de que poucos representantes do Estado compareceram no
evento, colocada na fala de uma das delegadas, que enfatizou “[...] nós da sociedade civil
temos um grupo grande que pode falar sobre qualquer tema. A minha sugestão é que

740
Disponível em: <http://g1.globo.com/ap/amapa/noticia/2015/06/camara-aprova-plano-de-educacao-sem-
referencias-genero-em-macapa.html/>. Acesso em: 15 set 2017.

1469
qualquer trabalho que sejam chamadas as pessoas ligadas ao movimento LGBT no estado
[...] (AMAPÁ, 2016c).
A sistematização das propostas dos GTs contou com apoio dos acadêmicos de
Ciências Sociais e Sociologia da Universidade Federal do Amapá (UNIFAP), que
auxiliaram nas redações das ponderações feitas pelos representantes de diversas entidades,
sendo feitos relatos das principais sugestões no final da mesa.
No final foi feita a escolhos dos 17 delegados que levaram propostas para o
encontro nacional, sendo a de maior ganho conjunto e já feito em compromisso com o
Estado a garantia do nome social nas instituições públicas e do fortalecimento do combate
à LGBTfobia.

Figura 1: Mesa de abertura composta por representantes do Governo do Estado, do poder


executivo e da Sociedade Civil na abertura da III Conferência no Amapá
Fonte: <https://www.diariodoamapa.com.br/2016/03/09/enfrentamento-a-homofobia-e-
prioridade-na-em-conferencia-estadual/>

1470
Figura 2: Discurso inicial da III Conferência dos Direitos Humanos LGBT no Amapá
Fonte: <http://www.conlgbt.ap.gov.br/noticia.php?id=5573/>

No dia 21 de março de 2016, foi publicada no Diário Oficial da União a Lei nº


1.999/2016, promulgada pelo governador do Estado que consolidou a criação do Conselho
dos Direitos da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais do
Estado do Amapá (CELGBT), projeto de lei incorporada na competência da Secretaria
de Inclusão e Mobilização Social (SIMS), que irá dispor da A atuação dos grupos da
sociedade civil representados neste conselho de natureza deliberativa e da representação
política dentro da Assembleia Legislativa, que dentre outras finalidades, tem como
principais objetivos:

I - desenvolver ação integrada e articulação com o conjunto de


Secretarias e demais órgãos públicos, visando à implementação de
políticas públicas comprometidas com a superação das discriminações e
desigualdades, devido à orientação sexual e à identidade de gênero;
II - articular e definir políticas públicas de promoção da igualdade de
oportunidades e de direitos para a população LGBT;
III - prestar assessoria ao Poder Executivo, emitindo pareceres,
acompanhando, monitorando, fiscalizando e avaliando a elaboração e
execução de programas de governo no âmbito estadual, bem como
opinar sobre as questões referentes à cidadania da população LGBT;
IV - estimular, apoiar e desenvolver o estudo e o debate das condições
em que vive a população LGBT urbana e rural, propondo políticas
públicas, objetivando eliminar todas as formas identificáveis de
discriminação; (...) (AMAPÁ, 2016d)

1471
As ações promovidas desde então foram a tramitação do decreto que dá direito à
Carteira de Registro de Identidade Social (RIS), no reconhecimento da identidade de
gênero nas instituições, que conformou com o mês da diversidade sexual, como retrata um
dos representantes do conselho: “Queremos resgatar o direito à vida e a cidadania por
meio de políticas públicas que realmente deem respostas positivas e eficientes a nossa
sociedade. Vamos reivindicar e fiscalizar nossos direitos junto aos órgãos do poder público”
(AMAPÁ, 2017).
Na ocasião, forma empossados os conselheiros estaduais de representação da
sociedade civil. Na escolha da composição institucional, foram 10 escolhidos entre os
representantes poder público e mais 2 para cada seguimento representativo da comunidade
LGBT.
QUADRO 2: COMPOSIÇÃO DO CONSELHEIROS ESTADUAIS

Órgãos de Articulação Política Nº de Representantes

Secretaria de Turismo 1
Secretaria de Planejamento e Coordenação 1
Secretaria do Trabalho e Empreendedorismo 1
Secretaria de Inclusão e Mobilização Social 1
Secretaria de Educação 1
Secretaria de Justiça e da Segurança Pública 1
Secretaria de Saúde 1
Secretaria do Gabinete Civil do Governador 1
Secretaria da Cultura 1
Defensoria Pública 1
Sociedade Civil 2
Disponível em: <http://www.al.ap.gov.br/ver_texto_lei.php?iddocumento=55474/>.

CONCLUSÕES

A presença da sociedade civil no Estado teve o intuito de fortalecer as políticas


dentro das instituições sociais, uma vez que sociedades associativas se responsabilizam por
suas orientações e o Estado tem por dever executá-las, considerando que sua criação através
do aparelho estatal germinou os interesses dos gestores em articular com os núcleos
excluídos das leis, identificando o atendimento adequado à população, onde os direitos
humanos atuam como referência de proteção e seguridade como iniciativas pautadas para
o tratamento das desigualdades sociais.

1472
A realização da conferência permitiu reconhecimento das necessidades deste
grupo, que serve como palco de lutas para além da pressão das mobilizações sociais, onde
a participação se manifesta nas representações conferidas pela sociedade organizada dentro
do comando estatal implica na importância para o atendimento da ordem social, assim
como das leis que enfatizam o reconhecimento da pessoa LGBT, à exemplo do reforço
sobre o entendimento e acolhimento da identidade de gênero nas instituições, da
visibilidade das trans, que nos últimos anos tem passado por um processo de ascensão pela
manifestação cultural.
A institucionalizam dos Direitos Humanos auxiliam na promoção dos direitos civis,
apontando indicadores para a atuação das entidades responsáveis no desempenho da
construção social com justiça social e inclusão, que vem mostrar que sua efetividade deve
ser encarada como princípio de desenvolvimento, havendo um constante diálogo entre
governança e corpo social, respeitando os princípios democráticos.

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Vermelho, Amapá, 05 ago 2008. Disponível em:
http://www.vermelho.org.br/noticia/38941-1. Acesso em: 14 set 2017.

1474
NOTAS SOBRE O MECANISMO DE REVISÃO PERIÓDICA
UNIVERSAL DA ONU E OS INSTRUMENTOS DE
PLANEJAMENTO DO GOVERNO FEDERAL SOB A LUZ DAS
QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Thais Aparecida DIBBERN741

Milena Pavan SERAFIM742

Resumo: Este estudo analisa de que forma os instrumentos de planejamento - os Planos Plurianuais
de 2008, 2012 e 2016 - do Governo Federal incorporam as recomendações oriundas do mecanismo
de Revisão Periódica Universal da Organização das Nações Unidas (RPU/ONU) sobre direitos
humanos fundamentais, especialmente no que diz respeito às recomendações que tratam sobre as
questões de gênero e sexualidade. Metodologicamente, fora realizado revisões bibliográficas acerca
do debate e conceito dos direitos humanos, assim como da própria formação da ONU e a evolução
de suas preocupações com esta temática. Além disso, através da coleta e análise de dados
secundários, identificamos as recomendações dos ciclos do mecanismo RPU correspondentes aos
anos supracitados, que foram incorporadas (ou não) nas ações governamentais. Como resultado
obteve-se que grande parte das recomendações dos dois primeiros ciclos do mecanismo foram
incorporadas nos PPAs analisados, havendo uma diferença entre as recomendações incorporadas
de forma direta e indireta. Estas últimas, por sua vez, não combatem propriamente os problemas e
desafios elencados nas recomendações recebidas, porém fazem referência ao tema geral da mesma.
Dessa forma, ao notar uma influência mínima por parte da ONU no âmbito da adoção das
recomendações pelos Estados-membros, questiona-se como o mecanismo analisado interfere em
sua atuação, a qual visa contribuir com o cenário dos direitos humanos fundamentais no âmbito
dos Estados soberanos.

Palavras-chave: Ações Governamentais. Brasil. Direitos Humanos. Revisão Periódica. ONU.

INTRODUÇÃO

O debate acerca dos direitos humanos ganhou força preeminente a partir do


reconhecimento das violações cometidas durante a II Guerra Mundial. A partir deste
cenário, o qual é marcado por milhares de mortes e a devastação de dezenas de países, foi
possível a criação de uma organização supranacional com o objetivo declarado de manter
o diálogo entre seus membros, garantir a segurança internacional, bem como o
desenvolvimento mundial. Tal organização, fundada oficialmente em 24 de outubro de
1945, composta por países que se reuniram voluntariamente, é conduzida por princípios e
valores acordados que possibilitaram grandes conquistas relacionadas a maiores

741
Mestranda do Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais Aplicadas;
Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp/Limeira. E-mail: dibbern.thais@gmail.com.
742
Doutora em Política Científica e Tecnológica; Departamento de Política Científica e Tecnológica da
Unicamp/Campinas. E-mail: milenasefarim@gmail.com.
1475
responsabilidades, por parte de seus Estados-membros, na proteção e promoção dos
direitos humanos. Por sua vez, ainda que haja algumas deficiências por parte de seu
Sistema, esta tornou-se um fator essencial para prosperar princípios éticos, bem como
direitos humanos fundamentais (LAFER, 1995).
Sendo assim, partindo de uma visão contemporânea dos direitos humanos,
considerando-os como um conjunto de direitos essenciais para uma vida humana, a qual é
pautada na liberdade, igualdade e dignidade (RAMOS, 2014) e, seguindo os preceitos
positivados na Constituição Federal de 1988 e tratados internacionais, o Brasil reconhece
que os direitos humanos existem para legitimar garantias mínimas para a vida, num
contexto de harmonia social e justiça, considerando os princípios de liberdade, igualdade
e desenvolvimento do ser humano.
Todavia, ainda que sejam positivados interna e externamente, estes direitos não
ganharam existência real para grande número de brasileiros. Desníveis regionais,
marginalização social e a discriminação social e econômica surgem com a distorção de
preceitos legais e a não-aplicação de princípios da C.F./88. Destaca-se que esta situação foi
agravada na década de 1990 quando o governo brasileiro adotou a linha neoliberal,
priorizando objetivos econômicos e financeiros em detrimento aos objetivos de cunho
social (DALLARI, 2010).
Nesse sentido, considerando-se que ainda existe uma grande defasagem em relação
às ações governamentais que visam a promoção e proteção desses direitos e, reconhecendo
a importância atribuída a eles, a ONU surge com recomendações no campo dos direitos
humanos que podem derivar de suas 30 agências especializadas, dezenas de tratados
internacionais, cinco órgãos principais, o Sistema de Direitos Humanos, além do
mecanismo de Revisão Periódica Universal (RPU), o qual será abordado neste artigo. Tal
mecanismo surge como um instrumento cooperativo, tendo como objetivo a identificação
de “boas práticas”, bem como “desafios” que visam direcionar as necessidades dos Estados
em consonância com a sustentação de suas competências nacionais no campo dos direitos
humanos (BELLI, 2009).
À vista disso, o objetivo deste trabalho consiste em analisar de que forma os
instrumentos de planejamento – os Planos Plurianuais – do Governo Federal incorporam
as diretrizes e recomendações oriundas do mecanismo RPU sobre direitos humanos
fundamentais, especialmente no âmbito das questões de gênero e sexualidade. Para tanto,
considera-se duas possibilidades: ao receber as recomendações, o Estado pode ou não as

1476
aceitar; em caso positivo, as recomendações podem ou não ser incorporadas em seus
instrumentos de planejamento.
Para cumprir com tal objetivo, dividimos o artigo em duas seções, além desta
introdução e considerações finais. Na primeira delas abordaremos o histórico da ONU e
suas influências perante os Estados-membros, além da apresentação do mecanismo RPU.
Na seção seguinte, apresentaremos o levantamento e análise dos PPAs de 2008, 2012 e
2016 em consonância às recomendações de ambos os ciclos de tal mecanismo, tratando
sobre as questões supracitadas. Convém destacar que esta pesquisa utilizou de uma
metodologia aplicada através de um estudo exploratório e descritivo analítico, sendo
realizada por meio de revisões bibliográficas e análise de dados secundários, constituindo-
se como parte integrante de uma pesquisa já finalizada.

A ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E O MECANISMO DE REVISÃO


PERIÓDICA UNIVERSAL (RPU)

Anteriormente ao advento da I Guerra Mundial, a instituição de uma Organização


Internacional com fins políticos e fundamentada através da continuidade e permanência
por meio do gerenciamento conjunto de interesses comuns, já constituía uma ideia que
perpassava o sistema internacional. No decorrer do pós-guerra, com a evidência de mais
de nove milhões de mortos, houve a condução do posicionamento dos Estados Unidos no
centro do mundo político internacional, em um contexto onde a Europa encontrava-se
dividida entre Estados fascistas, Estados capitalistas liberais e a Rússia comunista. A entrada
dos Estados Unidos reverberou na última fase da Guerra e no pós-guerra em um papel
decisório diante da construção de um projeto antecedente a ONU (XAVIER, 2007).
Em 08 de janeiro de 1918, o então presidente dos Estados Unidos, Woodrow
Wilson, direcionou-se ao Congresso Nacional para proferir seus “quatorze pontos” para a
restauração da paz. A partir dos pontos apresentados, foi fundado um Pacto que, durante
a Conferência de Paz de 1919 foi integrado pelo Tratado de Paz de Versalhes e, apesar de
se tratar de uma tentativa de restauração da paz, o Pacto foi às ruínas e, diante disso, os
Países Aliados743, durante a II Guerra Mundial, trabalharam para uma nova
institucionalização de uma Organização Internacional com um viés particularmente
universal. Através desse contexto, surge a Carta do Atlântico em 1941, sendo constituída

743
No comando estavam os Estados Unidos, o Reino Unido e a antiga União Soviética. Entretanto, outros
países também integravam este grupo como forma de combate aos Países do Eixo, composto pela Alemanha
nazista, Itália fascista e o império do Japão.
1477
em uma declaração conjunta entre o Primeiro-Ministro Britânico, Wilson Churchill e o
Presidente dos Estados Unidos, Roosevelt, abrangendo seis princípios fundamentais
(XAVIER, 2007). De acordo com Ribeiro (1998, p. 33) os seis princípios declarados
foram:

(i) o direito de todos os povos à segurança das suas fronteiras; (ii) o direito
dos povos de escolherem a forma de governo sob a qual desejam viver;
(iii) a igualdade de todos os Estados, vitoriosos e vencidos, de acesso às
matérias-primas e de condições de comércio; (iv) a promoção da
colaboração entre as nações com o fim de obter para todos melhores
condições de trabalho, prosperidade e segurança social; (v) a liberdade
de navegação; (vi) o desarmamento.

Em 01 de janeiro de 1942, houve a adesão de 26 Estados à Carta do Atlântico,


sendo motivados pelo combate ao eixo Hitleriano. A partir desse momento, foi assinada a
Declaração das Nações Unidas, em Washington, cujo nome serviu de inspiração para a
nova Organização Internacional que seria institucionalizada a posteriori. Até março de
1945, outros 21 Estados uniram-se à Carta e se comprometeram a empenhar-se a favor
destes princípios (XAVIER, 2007).
A Declaração de Moscovo, assinada em novembro de 1943, afirmava a necessidade
de uma Organização Internacional fundamentada pelos princípios de igualdade entre os
Estados, assegurando a manutenção da paz e a segurança internacional e, através desta,
entre agosto e outubro de 1944 foi possível a apresentação de um projeto de Organização
na Conferência de Dumbarton Oaks, resultando em um projeto denominado “Plano de
Dumbarton Oaks” (XAVIER, 2007). Dando continuidade, ficou acordado a convocação
de uma Conferência Internacional a ser realizada em São Francisco, estando presente as
três potências vencedoras da II Guerra Mundial e a China, assim como outras nações que
decretaram guerra ao Eixo Hitleriano antes de março de 1945. Tal conferência teve início
em 25 de abril e término em 26 de junho do mesmo ano (XAVIER, 2007).
É por meio desta Conferência Internacional que surge a Carta das Nações Unidas,
a qual foi assinada em 26 de junho e passou a vigorar em 24 de outubro de 1945744. Através
deste cenário, a Carta das Nações Unidas, assinada por 50 países, é o documento que
marca a fundação da Organização das Nações Unidas - ONU -, indicando uma delimitação
do poder dos Estados-soberanos e, ao mesmo tempo, constitui-se em uma manifestação
de anseio pela paz. A Carta transmite um teor ético à Organização Internacional, referindo-

744
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/carta/>. Acesso em 02 de janeiro de 2016.

1478
se a valores que vão além da concepção de que a paz é uma mera ausência de guerra,
abrangendo os direitos humanos, a tolerância, a democracia, a cooperação e o anseio pelo
desenvolvimento econômico (LAFER, 1995). Por se tratar de um tratado ambicioso e
amplo, a ONU visava cumprir com seus quatro propósitos fundamentais descritos na Carta
(ONU, 1945): (i) manter a paz e a segurança internacionais; (ii) desenvolver relações
amigáveis entre as nações, sendo baseadas no respeito aos princípios de igualdade e
autodeterminação dos povos; (iii) desenvolver uma cooperação internacional a fim de
solucionar problemas de cunho econômico, social, cultural ou humanitário e, o
desenvolvimento e o incentivo em face ao respeito aos direitos humanos; (iv) tornar-se um
centro dedicado a harmonização de ações das nações para alcançar objetivos em comum.
Com efeito, a ONU foi fundada oficialmente em 24 de outubro de 1945, composta
por países que se reuniram voluntariamente, surgindo neste cenário com o objetivo
declarado em trabalhar pela paz e pelo desenvolvimento mundial745. Seus princípios e
valores foram acordados pelos Estados-membros, os quais comprometeram-se à maiores
responsabilidades referentes à proteção e promoção dos direitos humanos fundamentais,
a fim de reconhecer e respeitar a dignidade da pessoa humana746.
Criada também em 1946, a Comissão de Direitos Humanos (CDH), projetou uma
estratégia para o trabalho da ONU a partir do conceito de Carta Internacional dos Direitos
Humanos, a qual englobava a produção de uma Declaração Universal, uma Convenção de
Direitos Humanos e, também, a designação de medidas de implementação.
De acordo com Guerra e Oliveira (2009, p. 5),

A Comissão de Direitos Humanos contava com alguns grupos de


trabalhos que tinham por finalidade a apresentação de estudos e atuação
efetiva em vários assuntos relativos aos direitos humanos, tais como: i)
Grupo de trabalho sobre detenção arbitrária; ii) Grupo de trabalho
encarregado para a elaboração de um protocolo adicional para o Pacto
Internacional sobre Direitos Econômicos, Culturais e Sociais; iii) Grupo
de trabalho para elaboração de projeto relativo ao direito dos povos
indígenas; iv) Grupo de trabalho sobre detenção arbitrária; v) Grupo de
trabalho sobre o direito ao desenvolvimento.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos – DUDH -, adotada em 10 de


dezembro de 1948, é considerada um marco histórico e apresenta o repúdio aos regimes

745
Atualmente, a ONU conta com 193 membros, ganhando maior representatividade pela diversidade política
e cultural.
746
Disponível em: <http://nacoesunidas.org/conheca/historia/>. Acesso em 02 de janeiro de 2016.

1479
totalitários, além de representar um reconhecimento de que todos os indivíduos possuem
dignidade e são sujeitos de direitos, os quais devem ser assegurados. A Declaração foi
elaborada por representantes de diversos países e incorpora os direitos civis e políticos,
econômicos sociais e culturais; obteve 48 votos a favor e 8 abstenções e é considerada uma
inspiração para inúmeras constituições de alguns Estados (LAFER, 1995). Um exemplo
próximo, é a Constituição Federal (C.F.) de 1988, onde o Brasil manifesta uma
preocupação evidente ao instituir direitos e garantias fundamentais à população.
No entanto, a elaboração da Convenção de Direitos Humanos tornou-se
problemática por conflitos ideológicos e dificuldades nas negociações, convertendo-se na
elaboração de dois instrumentos que passaram a compor a Carta Internacional dos Direitos
Humanos. Dessa forma, dois Pactos foram desenvolvidos, o primeiro refere-se aos Direitos
Civis e Políticos, em conjunto com o Protocolo Opcional e o segundo, refere-se aos
Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Ambos foram adotados pela Assembleia Geral
em 1966 e, somente em 03 de janeiro de 1976 reuniram número satisfatório de ratificações
para então poder entrar em vigência. Dessa forma, a Carta Internacional dos Direitos
Humanos passou a ser composta pela DUDH e pelos Pactos citados acima. Ao aderir os
Pactos, os Estados assumem duas obrigações: abstencionista (Pacto sobre Direitos Civis e
Políticos) e adotar medidas para o cumprimento desses direitos (Pacto sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais) (LAFER, 1995). Além da Carta Internacional, a ONU
incorpora diversos instrumentos e tratados sobre direitos humanos, como a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres de 1979 e
a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, dentre outros.
Em 2006, a ONU criou um Conselho para suceder a Comissão de Direitos
Humanos (CDH), cuja razão fora a adulteração que o mesmo sofreu no decorrer de seus
trabalhos, assim como pelas influências políticas de seus membros e equipes que
comprometeram os princípios fundamentadores da DUDH (BELLI, 2009). Vale ressaltar
que durante muitos anos, o debate acerca dos direitos humanos ficou sob o controle de
países mais poderosos, direcionando as atividades da Comissão para assuntos que
estivessem diretamente ligados a suas intenções políticas, omitindo-se em relação à diversas
violações ocorridas em todos os países (GUERRA; OLIVEIRA, 2009). Para fins
ilustrativos, “nunca foi adotada nenhuma resolução condenando os abusos no Tibet e nada
foi feito com relação à situação dos detentos na Baía de Guantánamo” (GUERRA;
OLIVEIRA, 2009, p. 6).

1480
Em vista disso, a partir da descrença em relação ao comprometimento dos
membros da Comissão e a consequente perda de credibilidade, houve a necessidade de
renovar os trabalhos deste Órgão. Para tanto, fora aderida a Resolução 60/251 em maio de
2006, instituindo o Conselho de Direitos Humanos, contando com a aprovação de 170
países747 (GUERRA; OLIVEIRA, 2009). Ao mesmo tempo, tal resolução determinou a
instauração do mecanismo de Revisão Periódica Universal - RPU ou Universal Periodic
Review, UPR -, caracterizando-se como um instrumento cooperativo e que denota um
processo construtivo, possibilitando projetar e emitir recomendações pontuais acerca do
“compromisso com o sistema internacional de proteção de direitos humanos e sobre a
situação interna de violações e práticas de proteção” (ANNONI; DOS SANTOS, 2015, p.
23).
Dessa forma, diante deste mecanismo, os Estados-membros passam a ser obrigados
a responder as recomendações emitidas a cada novo ciclo, podendo ser derivadas tanto
dos dados apresentados pelo próprio Estado sujeito à RPU, quanto por informações
levantadas pela ONU e, também, pela sociedade civil (ANNONNI; DOS SANTOS,
2015). Este mecanismo impõe que todos os Estados-membros da ONU sejam submetidos
a esta revisão a cada quatro anos e meio, mensurando o compromisso assumido por cada
Estado em se fazer cumprir os direitos humanos.

A RPU é um exercício entre pares, ou seja, são os Estados que fazem


perguntas e recomendações ao país que está sendo revisado durante
sessão denominada “Diálogo Interativo” em Genebra (...). São 3 os
documentos base da RPU: relatório oficial enviado pelo Estado sob
revisão (EsR), relatório com informações dos órgãos e mecanismos da
ONU sobre o EsR e uma compilação preparada pela ONU a partir das
contribuições enviadas pela sociedade civil748.

À vista disso, tal mecanismo é caracterizado como um processo cíclico, sendo


composto por três etapas fundamentais: (i) revisão da situação dos direitos humanos acerca
do Estado-membro analisado; (ii) implementação das recomendações recebidas e
compromissos assumidos pelo Estado-membro no período de quatro anos e meio; (iii)
elaboração de um relatório acerca da implementação das recomendações e compromissos
assumidos pelo Estado-membro para basear a próxima revisão. Vale ressaltar que uma

747
Entretanto, demais países votaram contra a criação do Conselho, como EUA, Israel, Ilhas Marshall e Palau.
Houve também três abstenções oriundas da Venezuela, Iran e Belarus (GUERRA; OLIVEIRA, 2009).
748
Disponível em: <http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/1-o-que-e-a-revisao-periodica-
universal>. Acesso em 04 jun. 2016.
1481
recomendação consiste em uma sugestão realizada para o Estado-membro que está sendo
analisado, a fim de contribuir com a real situação dos direitos humanos. Dessa forma, tal
revisão ocorre através de um grupo de trabalho em Genebra/Suíça, sendo composto por
todos os Estados-membros da ONU e dirigido pelo presidente do Conselho de Direitos
Humanos. A partir desse momento, a revisão inicia-se com a apresentação do Estado que
está sendo revisto, seguido pela discussão acerca da situação dos direitos humanos, o qual
possui o direito de resposta em caso de questionamentos. Este processo tem duração de
3,5 horas, constituindo-se em uma ferramenta de avaliação das obrigações assumidas pelo
Estado, tanto no que diz respeito à Carta Internacional dos Direitos Humanos, quanto nos
tratados ratificados pelo mesmo749.
De acordo com a Secretaria Especial de Direitos Humanos750,

[...] o Governo brasileiro considera a adoção do mecanismo uma


conquista histórica para a proteção dos direitos fundamentais por
possibilitar, pela primeira vez na esfera internacional, que todos os
Estados Membros da ONU sejam examinados (...) quanto à situação dos
direitos humanos no plano interno.

Em vista disso, em 2008, o Brasil passou pelo primeiro ciclo da RPU em Genebra,
recebendo quinze recomendações de diversos países, comprometendo-se em cumprir com
todas as sugestões recebidas, além de voluntariar-se em criar um sistema nacional de
indicadores de direitos humanos, assim como elaborar um diagnóstico anual acerca da
situação dos direitos humanos no país (CONECTAS, 2010). Em 2012, o país passou pelo
segundo ciclo da RPU, recebendo 170 recomendações sobre direitos humanos. Todavia,
o detalhamento e análise acerca de ambos os ciclos podem ser visualizados na sessão
seguinte, a qual pretende apresentar de que forma as recomendações oriundas deste
mecanismo são incorporadas nos instrumentos de planejamento do Governo Federal
(PPAs).

ANÁLISE DA INCORPORAÇÃO DAS RECOMENDAÇÕES DA ONU NAS


AÇÕES GOVERNAMENTAIS

Como explicitado anteriormente, para a realização da análise da incorporação das


recomendações do mecanismo RPU nos instrumentos de planejamento do Governo

749
Disponível em: <http://www.upr-info.org/en/upr-process/what-is-it>. Acesso em 04 jun. 2016.
750
Disponível em: <http://www.sdh.gov.br/assuntos/atuacao-internacional/programas/mecanismo-de-revisao-
universal-das-nacoes-unidas-rpu>. Acesso em 04 jun. 2016.

1482
Federal (PPAs), foram consideradas duas possibilidades: ao receber as recomendações, os
Estados podem ou não as aceitar; em caso positivo, estas podem ou não ser incorporadas
diretamente nos instrumentos de planejamento. Ou seja, se incorporadas diretamente, a
ação governamental contida no PPA corresponderá com a recomendação recebida, de
forma com que o desafio levantado esteja sendo enfrentado com precisão. À vista disso,
podemos observar na Tabela abaixo a quantidade de recomendações do ciclo I que foram
incorporadas nos instrumentos de planejamento analisados.

TABELA 1 - ANÁLISE DA INCORPORAÇÃO DAS RECOMENDAÇÕES DO


CICLO I DO MECANISMO RPU NOS INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO
DO GOVERNO FEDERAL
Quantidade %

Recomendações aceitas 15 100,00%

Recomendações incorporadas no PPA 2008 10 66,67%

Recomendações diretamente incorporadas no PPA 2008 8 80,00%

Recomendações incorporadas no PPA 2012 14 93,33%

Recomendações diretamente incorporadas no PPA 2012 11 78,57%

Fonte: Elaboração própria a partir da análise das recomendações do ciclo I em paralelo aos
objetivos e diretrizes dos PPAs 2008-2011 e 2012-2015

O ciclo I do mecanismo RPU, realizado em 2008, gerou um montante de quinze


recomendações. O Estado brasileiro, por sua vez, aceitou todas (100%). Entretanto, apenas
dez recomendações (66,67%) puderam ser identificadas no PPA do ano de 2008. Dessas,
somente oito recomendações foram incorporadas diretamente (80%), ou seja, combatem
propriamente os problemas e desafios elencados nas recomendações recebidas. No que
diz respeito à análise das recomendações do ciclo I em relação ao PPA do ano de 2012,
catorze recomendações (93,33%) puderam ser identificadas neste instrumento. Dessas,
apenas onze foram diretamente incorporadas (78,57%).
Especificamente, no âmbito das questões de gênero e sexualidade, foram
identificadas apenas duas recomendações que tratavam, respectivamente, sobre a avaliação
de resultados de políticas relativas à violência contra a mulher e, a integração da perspectiva
de gênero no processo de acompanhamento do mecanismo RPU. Destaca-se que a
primeira fora incorporada parcialmente no âmbito dos instrumentos de planejamento do
Governo Federal de 2008 e 2012, enquanto que a segunda, por apresentar uma perspectiva
de adequação em relação aos próximos ciclos de avaliação do mecanismo, não fora
incorporada em nenhum instrumento de planejamento analisado. Verifica-se, contudo,

1483
que houve um aumento significativo de recomendações que tratavam sobre os direitos das
mulheres, bem como da população LGBT no âmbito do Ciclo II de tal mecanismo. Tais
recomendações serão melhor apresentadas no decorrer deste trabalho.
No que diz respeito ao ciclo II do mecanismo RPU, realizado em 2012, este gerou
um montante de cento e setenta recomendações. Diferentemente do ciclo I, o Estado
brasileiro rejeitou apenas uma recomendação (99,41%), a qual diz respeito à separação de
polícias militares com o intuito de reduzir as execuções extrajudiciais. Dessa forma, fora
possível identificar o atendimento de cento e trinta e quatro recomendações (78,82%).
Dessas, apenas oitenta e oito recomendações (51,76%) atenderam diretamente os desafios
e problemas elencados. Na Tabela abaixo podemos identificar tal relação.

TABELA 2 - ANÁLISE DA INCORPORAÇÃO DAS RECOMENDAÇÕES DO


CICLO II DO MECANISMO RPU NOS INSTRUMENTOS DE PLANEJAMENTO
DO GOVERNO FEDERAL

Quantidade %

Recomendações aceitas 169 99,41%

Recomendações incorporadas no PPA 2016 134 78,82%

Recomendações diretamente incorporadas no PPA 2016 88 51,76%

Fonte: Elaboração própria a partir da análise das recomendações do ciclo II em paralelo aos
objetivos e diretrizes do PPA 2016-2019.

No que concerne às recomendações que tratam sobre gênero e sexualidade, pode-


se identificar trinta e duas sobre os direitos humanos das mulheres e, apenas duas
recomendações sobre os direitos humanos da população LGBT. Tais recomendações
podem ser consultadas no quadro abaixo.
QUADRO 1 – RECOMENDAÇÕES DO CICLO II DO MECANISMO RPU QUE
TRATAM SOBRE QUESTÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADE

Incorporada Incorporada
# Recomendação
parcialmente integralmente
Continuar a combater desigualdades no acesso ao emprego e condições
Direitos humanos das

de trabalho baseadas em gênero e raça, como assinalado pelo Pacto


X
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).
mulheres

Desenvolver um sistema que permita a colaboração efetiva entre os


setores de saúde, seguridade social, educação e turismo para combater de
X
forma adequada todas as formas de exploração sexual no país.

1484
Continuar a abordar a injustiça contra e empoderar os grupos vulneráveis,
particularmente mulheres, crianças, povos indígenas e afrodescendentes,
reduzindo as discrepâncias entre o meio urbano e rural e promovendo
acesso igualitário a oportunidades para todos, especialmente acesso à X
saúde, educação, emprego, moradia e seguridade social.

Dar seguimento à recomendação da OIT para continuar seus esforços a


fim de garantir a completa igualdade de oportunidades e tratamento às
X
mulheres, afrodescendentes e indígenas.

Continuar as políticas favoráveis com iniciativas concretas destinadas aos


grupos mais vulneráveis, como mulheres, crianças e minorias. X

Continuar a combater desigualdades no acesso ao emprego e condições


de trabalho baseadas em gênero e raça, como assinalado pelo Pacto
X
Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC).

Tomar as medidas necessárias a fim de promover a igualdade de gênero e


eliminar a violência doméstica e familiar no país X

Prover treinamento sistemático a juízes, promotores, e advogados sobre os


direitos das mulheres e violência contra a mulher, incluindo sobre a
X
implementação da Lei Maria da Penha sobre violência doméstica e
familiar contra a mulher (Lei 11340).
Continuar os esforços para implementar políticas para elevar a proteção
das mulheres contra violência. X

Tomar medidas no sentido de implementar completamente as


recomendações do Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de
X
Discriminação contra a Mulher (CEDAW).

Analisar a possibilidade de aplicar políticas de ação afirmativa a fim de


garantir uma maior representação da mulher no poder legislativo,
X
executivo e judiciário.

Desenvolver mais a legislação que permitiria o exercício dos direitos da


mulher à privacidade e confidencialidade durante investigações policiais e
a garantia do direito à presunção da inocência, devido processo e defesa X
legal.

Tomar medidas legais e práticas para eliminar a violência e discriminação


contra a mulher, especialmente na zona rural e outras áreas remotas do
X
Brasil.

Intensificar os esforços para promover a participação das mulheres em


atividades socioeconômicas. X

Avançar em seus esforços a fim de garantir igualdade plena e tratamento


igualitário às mulheres e continuar a implementar um plano nacional de
X
desenvolvimento.

1485
Avançar em seus esforços a fim de garantir igualdade plena e tratamento
igualitário às mulheres e continuar a implementar um plano nacional de X
desenvolvimento.
Aumentar os esforços para plena implementação a Lei Maria da Penha
X
relativamente aos direitos das mulheres vítimas de violência doméstica.
Continuar a promover a igualdade de gênero em todos os campos. X
Continuar a combater a violência contra a mulher. X
Adotar medidas para igualdade entre homens e mulheres e lutar contra a
X
violência contra as mulheres.
Continuar os esforços para eliminar a pobreza extrema e incluir em suas
políticas sociais aqueles em condições de maior vulnerabilidade, em
X
especial as mulheres, as crianças, os afrodescendentes, os povos indígenas,
os idosos e as pessoas com deficiência.
Continuar avançando no desenvolvimento da Rede Cegonha e no Sistema
Nacional de inscrição, vigilância e acompanhamento para a mulher
X
grávida, a fim de prevenir a mortalidade materna, no contexto da política
de assistência integral à saúde da mulher.
Reduzir a mobilidade e mortalidade materna, infantil e de crianças
promovendo medidas de assistência efetivas durante a gravidez e no X
momento do parto.
Fazer esforços adicionais para melhorar as condições em lugares de
detenção, de acordo com os padrões internacionais, especialmente
X
incluindo desenvolver políticas sensíveis a questões de gênero e programas
para mulheres.
Atuar para melhorar as condições prisionais, particularmente para
melhorar as condições de detenção das mulheres de acordo com os
padrões internacionais e garantir o respeito e proteção aos direitos X
humano de todos os presos, incluindo as garantias do devido processo
legal e proteção contra tratamento cruel e desumano.
Melhorar a situação nos centros de detenção, especialmente nas prisões
X
femininas.
Dar atenção às necessidades especiais das mulheres encarceradas
X
considerando a implementação das Regras de Bangkok.
Ratificar as convenções Nº 189 e Nº87 da OIT relativas, respectivamente,
ao trabalho decente de trabalhadores e trabalhadoras domésticas e à X
liberdade e proteção do direito sindical.
Adotar de medidas eficazes no mercado formal de trabalho, a fim de
X
acelerar a eliminação da segregação ocupacional.
Fortalecer a cooperação doméstica entre atores relevantes, assim como a
cooperação internacional, a fim de combater o tráfico e a exploração de X
crianças e mulheres no âmbito interno e internacional.
Adotar e implementar, conforme o direito internacional pertinente, uma
legislação nacional para combater o tráfico contínuo de mulheres e
X
crianças a fim de condenar os traficantes de pessoas e colocar em prática
medidas efetivas para por fim ao turismo sexual.
Combater o tráfico de seres humanos, os “esquadrões da morte”, a
X
violência e a exploração sexual.
pop. LGBT

Emendar a legislação para garantir o reconhecimento legal para casais do


X
Direitos

mesmo sexo.
Adotar medidas para abordar crimes de homofobia e transfobia, incluindo
X
a criação de um sistema para o registro de tais crimes.

1486
Fonte: Elaboração própria a partir da análise das recomendações do ciclo II do mecanismo RPU

Como pôde ser observado, quanto às recomendações que tratam sobre os direitos
humanos das mulheres, vinte recomendações foram incorporadas no instrumento de
planejamento do Governo Federal relativo ao ano de 2016. Logo, em relação aos direitos
humanos da população LGBT, apenas uma recomendação fora incorporada
integralmente.
Faz-se necessário destacar que o aumento considerável do número de
recomendações entre ambos os ciclos, passando de 15 para 170 foi derivado,
principalmente, pelo aumento do número de Estados-membros que participaram do II
ciclo do mecanismo RPU. No primeiro ciclo as recomendações foram derivadas de 44
países, enquanto que no segundo, oriundas de 78 países. Da mesma forma, este aumento
de recomendações foi possível através da incorporação de outros temas no processo de
acompanhamento do RPU, assim como derivado da centralização do debate sobre a
aplicação das recomendações direcionadas ao país durante o I ciclo. Dessa forma, ressalta-
se que todos os temas das recomendações do I ciclo apareceram no II ciclo desta Revisão,
de modo com que estes fossem acompanhados e revisados.
No que diz respeito à análise das recomendações individuais de ambos os ciclos,
percebeu-se que algumas apresentam-se de forma complexificada, elencando diversos tipos
de direitos. Em outras, foi necessário recorrer a documentos secundários para balizar a
análise, como exemplo podemos citar as recomendações que se referem ao
estabelecimento de uma Instituição Nacional de proteção aos direitos humanos que siga os
Princípios de Paris. Tal recomendação esteve presente em ambos os ciclos.
Ademais, grande parte das recomendações se assemelham e, muitas vezes, várias
recomendações acabaram sugerindo um mesmo encaminhamento para a solução de um
único desafio ou problema identificado. Estas, por sua vez, poderiam passar por um
processo de sistematização, onde fosse possível utilizar de apenas uma recomendação que
contemplasse os problemas identificados. Em contrapartida, a quantidade de
recomendações direcionadas a um determinado tema, caracteriza o grau de importância e
complexidade do desafio reconhecido. Ressalta-se que a maioria das recomendações do
ciclo I referenciavam-se à “situação de pessoas privadas de liberdade” e a “atuação policial
e segurança pública”, enquanto que grande parte recomendações do ciclo II diziam
respeito à “legislação, políticas públicas, instituições e boa governança” e aos “direitos
humanos de mulheres”, este último tema, como dito anteriormente, possui relação com

1487
uma das recomendações do ciclo I, a qual recomendava que fosse incorporado a
perspectiva de gênero no processo de acompanhamento da Revisão Periódica.
Dessa forma, podemos dizer que, ainda que tenha ocorrido um aumento
significativo do número de recomendações e temas entre ambos os ciclos, estas tornaram-
se mais genéricas e repetitivas. No entanto, mesmo diante da imprecisão de diversas
recomendações, o Estado brasileiro incorporou grande parte delas em seus instrumentos
de planejamento, como pode ser revisto nas tabelas acima. De todo modo, é importante
ressaltar que o PPA é apenas um instrumento de planejamento, não implicando
necessariamente na efetivação das políticas públicas contidas no Plano.

CONCLUSÕES

A ideia central que perpassa o debate acerca dos direitos humanos, consiste na
proteção da dignidade da pessoa humana, o que significa dizer que há o reconhecimento
de que todos somos sujeitos de direitos. À vista disso, as políticas públicas tornaram-se
essenciais para garantir estes direitos, os quais são positivados em âmbito interno e externo.
Dessa forma, partindo do pressuposto de que tais direitos não ganharam existência
real para grande parte dos brasileiros e que há ainda hoje uma marginalização econômica
e social, bem como desníveis regionais agravados pela adoção da linha neoliberal pelo
Governo Federal em 1990, torna-se visível a não aplicação e distorção de preceitos legais
da Constituição Federal (DALLARI, 2010), assim como dos tratados e obrigações
internacionais assumidas.
Nesse sentido, a ONU, ao surgir com recomendações de diversas fontes, busca
modificar o cenário dos direitos humanos no âmbito dos Estados-membros, a fim de
contribuir para a proteção da dignidade da pessoa humana. Dessa forma, o mecanismo de
Revisão Periódica Universal tornou-se um instrumento reconhecido como “inovador”,
sendo introduzido pelo Conselho de Direitos Humanos, o qual analisa e avalia a situação
dos direitos humanos e o cumprimento das obrigações assumidas.
Entretanto, ainda que recomendações sejam direcionadas aos Estados-membros,
estes podem ou não as aceitar, não sendo obrigatórias. O Brasil, ao participar de dois ciclos
desta Revisão, aceitou quase todas as recomendações, todavia, nem todas estas foram
incorporadas diretamente em seus instrumentos de planejamento e gestão estratégica, ou
seja, não combatem propriamente os problemas e desafios elencados nas recomendações
recebidas. Ademais, no que diz respeito às recomendações incorporadas diretamente, estas

1488
podem não ter relação direta com as recomendações recebidas, uma vez que podem ser
fruto de debates internos, bem como prioridades atribuídas pelo próprio governo. Da
mesma forma, estas podem não ter sido efetivadas em sua totalidade, uma vez que
analisamos apenas um instrumento de planejamento do Governo Federal.
No âmbito das questões de gênero e sexualidade, verificou-se que apenas no ciclo
II de tal mecanismo a incorporação da temática dos direitos humanos das mulheres pode
ser melhor aprofundada, sendo pouco examinado os direitos humanos da população
LGBT. Contudo, apesar de seu caráter repetitivo e, muitas vezes, subjetivo das
recomendações, grande parte destas puderam ser identificadas diretamente no âmbito dos
instrumentos de planejamento do Governo Federal.

REFERÊNCIAS

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Unidas e a Revisão Periódica Universal: o que mudou no Brasil em matéria de política
pública de segurança para o sistema prisional após dois ciclos de monitoramento? Revista
de Estudos Internacionais, v. 6, n. 1, p. 22-39, 2015.

BELLI, Benoni. A Politização dos Direitos Humanos: o Conselho de Direitos Humanos


das Nações Unidas e as Resoluções sobre Países. São Paulo: Perspectiva, 2009.

BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Ministério da Justiça e Cidadania.


Participação na Revisão Periódica Universal (RPU): Processo universal realiza revisão do
cumprimento das obrigações e compromissos do Estado. Disponível em:
http://www.sdh.gov.br/assuntos/atuacao-internacional/programas/mecanismo-de-revisao-
universal-das-nacoes-unidas-rpu. Acesso em 04 jun. 2016.

BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Ministério da Justiça e Cidadania.


Observatório de Recomendações Internacionais sobre Direitos Humanos. Disponível
em: http://www.observadh.sdh.gov.br/portal. Acesso em 04 fev. 2016.

CONECTAS DIREITOS HUMANOS. O que é a Revisão Periódica Universal? 2010.


Disponível em: http://www.conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/1-o-que-e-a-
revisao-periodica-universal. Acesso em 04 jun. 2016.

DALLARI, Dalmo de Abreu. O Brasil rumo à sociedade justa. In: SILVEIRA, Rosa
Maria Godoy, et al. Educação em Direitos Humanos: fundamentos teórico-
metodológicos. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, p. 29-49, 2010.

GUERRA, S. C. S.; OLIVEIRA, C. L. Da Comissão ao Conselho de Direitos Humanos:


uma mudança mais que institucional? Revista de Direito da Unigranrio, v. 2, n. 1, 2009.

LAFER, C. A ONU e os direitos humanos. Estudos Avançados, v. 9, n.25, p. 169-185,


1995.

1489
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Acesso em 02 de janeiro de 2016.

ONU. A História da Organização. Disponível em:


http://nacoesunidas.org/conheca/historia/. Acesso em 02 de janeiro de 2016.

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Saraiva, 2014.

UNITED NATIONS. Database on the Universal Periodic Review recommendations and


voluntary pledges. Disponível em: http://www.upr-info.org/database/. Acesso em 12 mar.
2016.

XAVIER, Ana Isabel. ONU: A Organização das Nações Unidas. In: XAVIER, Ana
Isabel; RODRIGUES, Ana Luísa; OLIVEIRA, Filipe; OLIVEIRA, Gonçalo;
COELHO, Inês; COUTINHO, Inês; MATOS, Sara. A Organização das Nações
Unidas. Coimbra: Humana Global – Associação para a Promoção dos Direitos
Humanos, da Cultura e do Desenvolvimento, p. 9-174, 2007.

1490
OCUPANDO AS RUAS: MULHERES NEGRAS NO GRAFFITI

Bianca Dantas Gomes da SILVA751

Resumo: Esta comunicação objetiva apresentar reflexões acerca da produção de graffiti e


apropriação do espaço urbano por mulheres negras. Ao considerarmos que o fluxo de informações
aos quais os indivíduos estão submetidos interfere nas relações emocionais dos (as) habitantes
desses espaços, intensificando a individualidade, ao mesmo tempo em que o entendemos enquanto
local público nos indagamos sobre as possibilidades que os sujeitos têm de fazerem parte desse
espaço, ao transformar e serem transformados por este. Com o surgimento do movimento Hip
Hop no Brasil notamos um novo modelo de interação com o meio urbano, são produções culturais
que se utilizam dos aparelhos da cidade como mecanismo. Um de seus elementos, o graffiti, surgiu
mediante a atuação de indivíduos que expressavam nos muros elementos de suas construções
identitárias. Por anos este ambiente foi considerado masculino, entretanto as mulheres que antes
eram vistas apenas como companheiras afetivas dos grafiteiros (WELLER, 2005), passam a
reivindicar o direito de ocupar o espaço público, expressar suas próprias demandas, suas visões de
mundo e demonstrar suas vivências no espaço urbano, à medida que assumem a condição de
agentes da produção cultural. Neste sentido, propomos uma reflexão sobre como mulheres negras
ao realizarem o graffiti se apropriam do espaço público e contrapõem o ideário de que esse local é
de pertencimento das representações masculinizadas, rompem com os estigmas racistas e com a
invisibilidade gerada pela herança do período colonial no Brasil. Pensaremos a problemática nos
atendo a produção de duas grafiteiras negras: Negahamburguer (São Paulo/Brasil) e Criola (Belo
Horizonte/Brasil) produtoras de cultura e possíveis propulsoras de transformações sociais. Ambas
vivem em regiões de grandes centros urbanos, iniciaram seus trabalhos no universo do graffiti por
afinidades com o movimento e utilizam suas expressões para contestar padrões de cultura
veiculados pelas grandes mídias.

Palavras-chave: Mulheres negras. Graffiti. Produção cultural. Teorias de gênero.

INTRODUÇÃO

O espaço urbano pode ser compreendido enquanto o local em que a economia, a


política e os sistemas de troca se concentram. O fluxo de informações aos quais os
indivíduos estão submetidos interfere nas relações emocionais dos (as) habitantes desses
espaços, intensificando a individualidade. A impessoalidade presente nos centros urbanos
origina a atitude blasé, em que segundo Simmel (1973) o prazer individual é exaltado e a
subjetividade é “altamente pessoal”. Mas ao pensarmos no espaço urbano enquanto um
local público, nos indagamos sobre as possibilidades que os sujeitos têm de fazerem parte
desse espaço, ao transformar e ser transformado por este.

751
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras de
Araraquara, Universidade Estadual Paulista (UNESP/FCLAr); Pesquisadora do Núcleo de Estudos de
Gênero de Araraquara (NEGAr/UNESP/FCLAr) e membro do AKOMA Grupo de Estudos em
Africanidades, Culturas, Diversidade & Memórias/CLADIN/LEAD/NUPE/UNESP Araraquara. CNPq.
dantasbianca@outlook.com
1491
Embora os centros urbanos estejam cada vez mais dinâmicos no âmbito
desenvolvimentista, aqueles e aquelas que diariamente percorrem os longos trajetos para
realizar suas atividades – contribuindo para a manutenção da engrenagem mecânica da
sociedade –, possuem necessidades que transpõem os limites econômicos. Essa capacidade
transformadora presente nos agentes sociais demonstra que não só de acúmulo e gasto de
energia se faz o ser humano. Estes são dotados de necessidades antropológicas socialmente
definidas (LEFEBVRE, 1991), que consistem em ouvir, ver, tocar, degustar e reunir
diferentes percepções de mundo.
Em contraponto ao indivíduo blasé, o ato de se apropriar da cidade na perspectiva
de torná-la um ambiente de troca de vivências e não meramente um local de passagem, em
que os indivíduos são agentes das transformações e responsáveis por propor soluções para
os problemas urbanos, demonstra outra possibilidade de viver a cidade. Lefebvre (1991)
aponta a necessidade de que haja uma apropriação do espaço, pois assim o(a) agente estaria
exercendo o direito a cidade. Segundo o autor, apenas os grupos sociais poderiam realizar
soluções para os problemas urbanos, principalmente a classe trabalhadora, por ser a única
capaz de combater a segregação dirigida a ela. A arte é vista como uma importante
ferramenta para esse processo, ao complementar as contribuições da ciência, promoveria
a “meditação sobre a vida como drama e fruição” (LEFEBVRE, 1991, p. 116).

A música mostra a apropriação do tempo, a pintura e a escultura, a


apropriação do espaço. Se as ciências descobrem determinismos
parciais, a arte (e a filosofia também) mostra como nasce uma totalidade
a partir de determinismos parciais. Cabe à força social capaz de realizar
a sociedade urbana tornar efetiva e eficaz a unidade (a “síntese”) da arte,
da técnica, do conhecimento (LEFEBVRE, 1991, p. 116).

O graffiti enquanto movimento cultural oriundo do Hip Hop752, se propõe a


dialogar com a cidade, participando e transformando o espaço público. Enquanto o
indivíduo blasé é indiferente à realidade em que vive, as(os) grafiteiras(os) interagem com
a multidão das cidades, reagem e provocam novas sensações ao deixarem suas reflexões
sobre o cotidiano nos muros por onde passam (LIMA, 2013). As grafiteiras
Negahamburguer (São Paulo) e Criola (Belo Horizonte) atuam segundo a perspectiva de

752
O graffiti compõe um dos elementos do movimento Hip Hop, acompanhado pelo o rap, expressão musical
realizada pelos MC’s, o break em que as b-girls e os b-boys manifestam as contestações através do corpo e o
DJ, responsável por mixar músicas de diferentes gerações, promovendo o resgate e o diálogo com seus
antepassados.
1492
difundir representações de corpo que contrapõem os padrões de beleza veiculados pelas
grandes mídias.
Evelyn Queiróz, a grafiteira que criou a Negahamburguer, começou a desenhar na
infância e adentrou o universo do graffiti ainda na adolescência – período em que
desenvolveu os traços das personagens encontradas em seus graffiti. Fruto de suas
experiências, seus desenhos estão em constantes transformações, incorporando discussões
sobre a violência contra as mulheres, feminismos, racismo e machismo, bem como
evidenciando a pluralidade das mulheres que não se encaixam em modelos pré-
estabelecidos. Tainá Lima apresenta em seus trabalhos contestações aos padrões
hegemônicos de beleza, trazendo em seus graffiti representações oriundas de matrizes
africanas. Considera que a importância de seu trabalho consiste em recriar a imagem da
população negra, à medida que rompe com a figura inferiorizada, ressalta seus significados
e sua beleza. Para Nilma Gomes, a herança ancestral africana recriada no Brasil orienta e
traz inspiração para os negros da diáspora (GOMES, 2003, p.79), mesmo que de forma
inconsciente. Sendo assim, das regiões periféricas aos centros das metrópoles, as grafiteiras
se apropriam da cidade para expor suas ideias e visões de mundo.

O GRAFFITI NO CONTEXTO BRASILEIRO

O graffiti emerge na década de 1960 nas periferias de Nova York, como um dos
elementos que compõem o Hip Hop, mediante a atuação de jovens negros, hispânicos e
caribenhos, que expressavam nos muros suas construções identitárias. No Brasil, o
movimento surge nos anos 1970, trazendo o graffiti como uma nova forma de expressão.
Nelson Triunfo é uma das referências desse período para o movimento Hip Hop,
articulando encontros no centro de São Paulo, no intuito de promover a valorização da
cultura negra e periférica por meio de alternativas de lazer que dialogavam com as questões
de identidade e pertencimento.
O Hip Hop no Brasil teria o caráter de promoção de um autoconhecimento, à
medida que oferece elementos para que se reconstrua a identidade negra, perdida em meio
a ideologias oriundas do mito da democracia racial, e ao contribuir para a compreensão
acerca da diáspora africana no novo mundo (MAGRO, 2003) resgata a ancestralidade por
meio da oralidade, da expressão corporal, musical e visual, fomentando a difusão das
histórias de seus antepassados.

1493
Compreender as contribuições das culturas de matrizes africanas proporciona um
melhor entendimento sobre a história da sociedade brasileira (GOMES, 2003). Ao
considerarmos que as referências aos conhecimentos ou influências africanas foram por
muito tempo rechaçadas – e permanecem, quando nos atemos as recorrentes perseguições
aos terreiros de Umbanda e Candomblé – percebemos a relação com um passado racista
em que a ordem dominante colonial definia os padrões a serem aceitos, tanto no âmbito
político-econômico, quanto nas noções de sociabilidade, cultura e estética.
Nesse sentido, nos perguntamos: qual a atuação das mulheres negras no universo
do graffiti? Como enfrentam o racismo e o machismo ainda presentes na sociedade atual?
Para nos auxiliar com tais reflexões, nos atemos às contribuições epistemológicas do
Feminismo Negro (GONZALEZ, 1982, 1984; CARNEIRO, 2011; RIBEIRO, 2015), bem
como a proposta elaborada pela historiadora, filósofa e pesquisadora Lélia Gonzalez acerca
da observação da presença e participação das mulheres negras na História, investigando
suas ações enquanto agentes do processo de construção e transformação cultural. Segundo
a autora, esse exercício contribuiria para a compreensão da formação e desenvolvimento
das estruturas sociais do país.

MULHERES NEGRAS GRAFITEIRAS

Ao nos indagarmos sobre a produção cultural de mulheres negras no graffiti, nos


perguntamos se esse campo seria ocupado apenas por representações masculinizadas,
devido ao contingente de pesquisas acadêmicas que revelam a participação de sujeitos
masculinos, bem como a cobertura midiática que ao longo dos anos apresenta figuras
masculinizadas como um grupo majoritário no universo do graffiti (WELLER, 2005). A
primeira pesquisadora a investigar a produção de graffiti realizada por mulheres foi Viviane
Magro (2003), com um trabalho empírico e analítico, acompanhou o cotidiano de jovens
grafiteiras em uma região periférica de Campinas. As participantes da pesquisa relataram
os inúmeros desafios presentes no ato de ser grafiteira, desde os altos valores dos materiais
até a falta de reconhecimento de seus trabalhos perante os grafiteiros, associada a uma
deslegitimidade devido ao fato de serem mulheres.
Por não desconsiderarmos a origem do graffiti no movimento Hip Hop, vale nos
atermos a reflexão de como as mulheres, sobretudo negras, vivenciam esse universo.
Rebeca Freire e Alinne Bonetti (2014), ao pesquisarem as mulheres presentes no
movimento Hip Hop soteropolitano, observam que as participantes da pesquisa atribuem

1494
um quinto elemento ao movimento, que consiste em assumir o caráter militante e
questionador. As jovens hip-hoppers evidenciam que esse é um ambiente que deve ser
experenciado por mulheres e pedem respeito a suas participações dentro desse universo.
Elas contestam a necessidade de se vestir com roupas masculinizadas para serem ouvidas,
reivindicando que sejam reconhecidas por seus trabalhos e que possam se vestir de acordo
com sua identidade de gênero. Nesse sentido, ao serem questionadas se este se tratava de
um Hip Hop feminista, a rapper e b-girl Conceição aponta que

Entendo por feminismo uma forma coletiva de se lutar por direitos iguais
entre homens e mulheres. Entendo feminismo também não só a história
do feminismo da Europa, mas a história do feminismo de como se
configurou aqui entre as mulheres negras também, no Brasil. E aí vem a
discussão de que [sic] se é movimento de mulher ou feminismo?
Acredito, por exemplo, que as irmandades que existiam aqui, que
lutavam e juntavam dinheiro pra comprar alforria do escravo, eu entendo
isso como feminismo [sic] Essas mulheres organizadas em prol de uma
causa assim, eu entendo como feminismo (CONCEIÇÃO, in FREIRE;
BONETTI, 2014, p. 115).

As pesquisadoras apontam que há uma forte crítica a importação de elementos


estrangeiros para a prática do Hip Hop soteropolitano. Embora reconheçam que tanto o
Hip Hop quanto o feminismo são oriundos de fora, os adaptam à realidade local sob a
motivação e interesse de luta por justiça social (FREIRE; BONETTI, 2014, p. 112).
Ressaltam que essa luta não condiz apenas com a participação das mulheres e reforçam
que a discussão sobre gênero no movimento deve ser realizada também pelos homens.
Observam o feminismo enquanto um cuidado de si e de suas companheiras.

(...) as noções sobre feminismo apontam para uma politização para além
do comportamento ou estilo de se vestir das hip hoppers. Com a mesma
forma crítica que se envolveram com o Hip Hop, estas jovens vêem o
feminismo como um conjunto de discussões em torno dos aspectos de
classe, raça e sexualidade, que mapeiam a própria história das mulheres
e a história do feminismo (FREIRE; BONETTI, 2014, p. 113).

Margarida Morena (2011) ao investigar o graffiti produzido por mulheres no


contexto de Salvador/Bahia apresenta que havia inúmeras situações em que uma figura
masculina tentava cercear a participação das grafiteiras: devido a preocupações com a
segurança – à medida que elas se arriscariam ao transitar pela rua, muitas vezes em regiões
com pouca iluminação e trânsito de pessoas –; por se sentirem enciumados com a presença

1495
de suas companheiras afetivas em ambientes com outros grafiteiros; e pelo receio de as
grafiteiras ganharem mais notoriedade que eles. Desse modo, enquanto algumas grafiteiras
necessitavam cuidar dos filhos, casa e marido, outras se propunham a dialogar com seus
colegas na tentativa de lhes mostrarem que o ato de se apropriar das ruas, fazer parte do
espaço público, também lhes era direito. Em entrevistas concedidas a portais virtuais, as
grafiteiras Negahamburguer e Criola apontam os desafios de vivenciar o universo do graffiti,
em meio ao ambiente masculinizado e permeado de machismo e sexismo.
Negahamburguer relata que sua presença era associada a interesses afetivos aos grafiteiros,
quando na realidade se propunha a produzir sua arte e mostrar sua visão de mundo.

No graffiti tinha muito homem. Quando eu quis começar, tem uns cinco
anos [2014]... você vai num evento de graffiti e tem uns caras – não eram
do meu ciclo – (....) acham que você tá lá pra pintar por causa deles, pra
se mostrar pra eles, sabe? Ahh... ela tá aqui no nosso rolê, sabe? Ou ela
quer se mostrar pra gente, ou ela quer parecer que é melhor que a gente,
ou ela quer dar pra gente. Não consideram que você está lá porque gosta
de pintar também (NEGAHAMBURGUER, 2014)753.

Criola observa que as atitudes machistas estão ligadas direta ou indiretamente a


estruturas de dominação. Nesse sentido, Bourdieu (1999) aponta que o lugar de
assembleia, ou seja, o ambiente público é constantemente compreendido enquanto um
espaço masculino. Às mulheres são atribuídas as tarefas mais depreciativas e que devem
ser realizadas no âmbito do privado, no intuito de reforçar a ideia de desvalorização de
suas atividades, sob uma dominação simbólica em que o dominador, enquanto figura
masculina reforça seu poder como uma forma de manter o status quo. Esses papeis sociais
atribuídos a cada sexo teriam o intuito de determinar o que seriam as práticas cidadãs ou
não cidadãs, entendendo o cidadão enquanto aquele que participa da vida pública754.
Tratava-se de legitimar os lugares de dominação dos homens e de dominadas das mulheres,
consistindo assim em um habitus incorporado no pensamento social. Em contraponto a
esse ideário, Criola propõe que os homens reflitam sobre suas próprias atitudes, afim de
compor o questionamento a tais padrões sociais. Ao ser indagada sobre ter sido alvo de
preconceitos, a grafiteira aponta:

753
Entrevista concedida ao Portal Capitolina. Disponível em <http://www.revistacapitolina.com.br/capitolina-
entrevista-negahamburguer/ > . Acesso 20 jun 2017.
754
As mulheres por serem destinadas aos espaços privados, não participavam das tomadas de decisões da
pólis, bem como das discussões presentes na ágora, ou seja, não eram reconhecidas enquanto cidadãs.
1496
Sim. Sinto, mas não exclusivamente por conta do meu trabalho ou por
conta dos colegas em si. E sim porque vivemos numa sociedade
estruturalmente machista, homofóbica e racista. Os homens, dessa
forma, são desde cedo ensinados em sua esmagadora maioria a nos
silenciar a todo momento, a não escutarem, a interromperem a nossa
fala, ridicularizando e questionando a validade do que apresentamos
enquanto mulheres (...). É importante que ao se reconhecerem parte de
uma estrutura machista os homens tenham humildade e consciência
necessária para se calarem e escutar o que temos a dizer, já que essa
desconstrução masculina parte de um processo primeiramente de escuta
e ser um homem que apoia o feminismo já te obriga a ter essa postura.
Quando isso não ocorre talvez seja necessário rever e refletir sobre a sua
real empatia a causa feminista (CRIOLA, s/d)755.

As grafiteiras ocupam um espaço socialmente designado a representações


masculinas, e ao fazerem isso, participam do espaço público reconhecido pelo local de
encontro, troca de experiências, debate e vivência da vida pública. As mulheres negras ao
deixarem o âmbito do privado, expõem suas perspectivas acerca de suas experiências
enquanto agentes. Negahamburguer ao grafitar representações de múltiplas mulheres, de
corpos, sexualidades e etnias distintas, exprime o universo de significados presente em seu
campo simbólico. Por meio de diferentes expressões da arte de rua, como graffiti, lambe e
sticker, Negahamburguer demonstra que além de ocupar o espaço público, propõe o
respeito a diversidade de etnias, sexualidades e corpos. Ou seja, sua perspectiva enquanto
mulher negra, devido às diversas experiências que essa identidade acarreta (COLLINS,
2016) evidencia sua ótica atenta à diversidade.

755
Disponível em <http://projetocuradoria.com/criola/>. Acesso 29 jun 2017.

1497
Figura 1: Me perder para me encontrar.
756
Fonte: Negahamburguer .

Criola propõe um resgate a cultura de matrizes africanas à medida que seus grafites
revisitam uma ancestralidade negra construída em processo de diáspora. Por esse motivo,
se trata de um aspecto simbólico elaborado socialmente, ou seja, esse resgate a uma África
inventada reflete o processo da construção da identidade negra no Brasil, em meio ao
contexto em que muitas histórias foram perdidas nas travessias do Atlântico, revelando a
tentativa de resgate de suas origens e demonstrando uma das estratégias de sobrevivência
da população afrobrasileira, ao criar a ideia de uma África, de uma origem, de uma
comunidade. Ao levar essas construções para as ruas, Criola compartilha com o espaço
público esses aspectos e essas narrativas por meio de seus graffiti.

756
Disponível em < http://cargocollective.com/olanegahamburguer/Graffiti>. Acesso 10 ago 2017.

1498
757
Figura 2: Criola ao lado de seu graffiti .

Sendo assim, notamos que as grafiteiras produzem trabalhos que contestam os


padrões de cultura e oferecem novas óticas para se observar o mundo. Em meio a um
contexto em que a imagem é amplamente valorizada, promovem novas representações de
corpos que não correspondem aos modelos midiáticos. Tanto os graffiti de
Negahamburguer – ao evidenciar a beleza real758 de diferentes mulheres –, quanto as
referências ancestrais de matrizes africanas e brasileiras presentes nas criações de Criola,
ultrapassam os limites dos muros e geram repercussões na opinião pública, à medida que
evidenciam a importância dos corpos simbolizarem diferentes identidades sociais e
valorizarem as marcas de suas vivências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, nos propusemos a refletir sobre a apropriação da cidade realizada


pelas grafiteiras negras, ao romperem com as esferas da vida privada e expressarem pelas

757
Disponível em < http://www.conexaocultural.org/blog/2014/11/criola-do-preconceito-a-arte-urbana/> .
Acesso 10 ago 2017.
758
Beleza Real é o nome do projeto em que Negahamburguer reuniu histórias de mulheres que passaram por
violências simbólicas e físicas relacionados aos padrões estéticos e de gênero. Fruto de um trabalho
independente perpassou pelo graffiti, mídias digitais, diferentes intervenções urbanas e ilustrações.
1499
ruas suas visões de mundo. Notamos que o graffiti atua na contramão do indivíduo blasé
quando objetiva despertar a inquietação, curiosidade e o questionamento àqueles/as que
transitam pelos centros urbanos, proporcionando uma interação, ainda que momentânea,
entre o espaço público e o indivíduo. Quando este se enxerga parte do meio urbano, se
identifica ou mesmo se incomoda com o graffiti na parede, nos questionamos se esta seria
uma aproximação com a ideia de arte defendida por Lefebvre, por despertar as
necessidades antropológicas dos sujeitos e provocá-los/as a se apropriar do direito à cidade.
No entanto, o ato de se apropriar nos remete a noção de tomar para si algo que
embora seja seu por direito, não lhe é permitido ser experienciado. Nos perguntamos se
esse seria o caráter ilegal do graffiti, presente no movimento de ocupar um espaço que lhe
é negado devido as diferentes políticas de segregação das cidades, como os altos valores do
transporte público e a concentração de atividades culturais nas regiões centrais. O graffiti
seria uma tentativa de retomada do espaço público? Segundo o dicionário da língua
portuguesa759, o verbete ocupação é definido como: Estar ou ficar na posse de; Invadir,
conquistar; Tomar ou encher (algum lugar no espaço); Preencher (FERREIRA, 2001).
Nessa perspectiva, o graffiti tomaria posse da cidade, ao se apropriar de muros que
ocasionalmente lhes são concedidos, para enfim preencher um lugar no espaço? Segundo
Criola, o graffiti consiste em uma arte democrática760, à medida que possibilita o contato
com as pessoas na rua, em ambientes abertos. A grafiteira ressalta a importância de a
sociedade estar em contato com o graffiti, principalmente aquelas que não possuem
condições materiais para frequentar museus ou galerias de arte.

Vejo muitas pessoas definindo o que é [graffiti], o diferenciando de


[pixação], sem ao menos considerar as definições dos próprios autores.
As pessoas parecem ter doutorado quando o assunto é street art,
principalmente depois da ação do prefeito de São Paulo, sem procurar
entender essa manifestação urbana. Levando em consideração a origem
do termo graffiti, que não pode ser traduzido por grafite: (...) se eu fizer
sem pedir autorização ao morador ele é irregular. Mas se eu for
autorizada, ele deixa de ser graffiti e passa a ser um mural. Isso porque a
essência conceitual do [grafitti] é marginal e ilegal (CRIOLA, 2017)761.

759
FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda, Minidicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2001.
760
Entrevista a TV Campos de Minas. Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Ky7QadcdomE>.
Acesso 28 jun 2017.
761
Entrevista concedida ao portal Tão Feminino. Disponível em <
http://www.taofeminino.com.br/cultura/entrevista-grafiteiras-nina-pandolfo-taina-lima-criola-s2136247.html>
Acesso 20 jun 2017. 1500
As grafiteiras ao se apropriarem dos espaços urbanos para promoção da arte,
rompem com estigmas racistas e com o histórico processo de invisibilidade herdado do
período colonial, demonstrando seu protagonismo na criação e produção cultural, bem
como nos processos de transformações sociais. A cultura pode ser compreendida como
um mapa convencional que orienta o comportamento dos indivíduos em sua vida social,
ultrapassa as esferas de um conceito acadêmico, pois condiz com as vivências concretas dos
sujeitos, à variabilidade de formas de conceber o mundo, às particularidades e semelhanças
construídas pelos seres humanos ao longo do processo histórico e social (GOMES, 2003,
p. 75). Desse modo, o papel social das grafiteiras tange no sentido de proporcionar formas
de vivenciar o meio urbano, pois a cultura oferece subsídios para que as pessoas se adaptem
ao meio e adaptem o meio a si mesmas, para enfim transformá-lo.
Segundo Nilma Gomes (2003), a vida coletiva se faz de representações das
figurações mentais de seus componentes construídos historicamente e originados do
relacionamento dos indivíduos e dos grupos sociais e, ao mesmo tempo, regulam esse
relacionamento (GOMES, 2003, p. 76). Nesse sentido a autora demonstra que a
hierarquização racial no Brasil parte de um sistema de representações construído
socialmente por meio de tensões, conflitos, acordos e negociações sociais. A cultura negra
é construída em contato com outras culturas existentes no país e desprezar esse fato a
essencializa e a coloca num processo de cristalização ou de folclorização. Deve ser
considerado a consciência cultural do povo negro, se atentando para o uso auto-reflexivo
dessa cultura pelos sujeitos (GOMES, 2003, p. 79), ao observar como as pessoas vivem as
tradições culturais de matrizes africanas em sua vida cotidiana.
Nesse sentido, essas grafiteiras transformam o espaço urbano à medida que
compartilham nos muros as experiências e singularidades de serem mulheres negras no
universo do graffiti. Ao abordarem questionamentos sobre os padrões estéticos, violências
de gênero, resgate cultural as matrizes africanas, sexualidades, relações étnicas/raciais e
identidades, evidenciam suas múltiplas perspectivas acerca das problemáticas sociais, se
posicionando enquanto questionadoras de debates muitas vezes desprezados ou evitados
pelos indivíduos blasés, pois não se propõem a representar apenas figuras negras e sim a
lançar a discussão acerca do respeito aos diversos corpos, culturas, religiões e relações
afetivas, evidenciando suas atuações enquanto cidadãs participantes do debate público.

1501
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1504
O IMPACTO DAS PRÁTICAS RACISTAS NA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE DO DISCENTE

Maiza da Silva FRANCISCO762

Mônica da Silva FRANCISCO763

Bianca Cristina TRINDADE764

Luciano Marques da SILVA765

Resumo: O presente trabalho ancora–se em reflexões que ocorrem nas escolas voltadas o processo
de interação de jovens afro-brasileiros nos lócus escolares. É sabido que a escola é o espaço
multicultural na qual possui vários povos de diversas etnias. Essa pluralidade de ideias entra em
conflito devido possuirmos predominantemente o modelo hegemônico na escola gerando
hierarquização de pensamentos. Com ideia da valorização da cultura hegemônica, outras culturas
foram subalternizadas desvalorizando diversos grupos étnicos. O cotidiano escolar tornou –se os
lócus de conflito étnicos para os discentes que são de cor, diferentemente dos discentes não negro
no qual é privilegiado no espaço escolar pela sua cor de pele. Neste trabalho objetivamos apresentar
o impacto que as práticas racistas vivenciadas nas escolas podem contribui desvalorização da
Identidade do aluno. A metodologia utilizada para essa pesquisa foi através de pesquisas
bibliográficas e trajetórias como professores de instituições de ensino.

Palavras–Chave: Discentes. Escola. Multiculturalismo. Racismo.

INTRODUÇÃO

Este estudo tem como objeto discutir a temática “O Impacto das Práticas Racistas
na Construção da Identidade do Discente”, que está diretamente relacionado a
aplicabilidade da Lei 10.639/03 que foi ampliada para 11.645/08. Em prol de uma
educação antirracista capaz de combater o preconceito e as discriminações raciais no
cotidiano escolar e promover ações educativas.

Mestranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e


Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e-mail;
maizafrancisco@hotmail.com
763
Doutoranda e Mestre em Educação na UFRRJ no curso de Educação, Contextos Contemporâneos e
Demandas Populares (2013-1). E-mail: amonicafrancisco@gmail.com
764
Mestranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e
Demandas Populares (PPGEduc) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ. E-mail:
biaartes@yahoo.com.br
765 1505
Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos
e Demandas Populares (PPGEduc) da UFRRJ. E-mail: Lucianomarks@gmail.com
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica com objetivo de discutir a importância do
combate ao racismo, a discriminação racial dentro do locus escolar. Refletindo sobre as
práticas racistas são reproduzidas de forma sutil por meio valores culturais, religiosos,
estéticos que estão embutidos através de matérias didáticos utilizados na sala de aula.
Para nortear a nossa pesquisa, utilizamos de vários referencias teóricos e
renomados especialistas em educação étnico-racial, multiculturalismo para fundamentar as
nossas pesquisas. O objetivo dessa pesquisa é apresentar o racismo no cotidiano escolar
através de matérias impressos, auditivos, como veículo de combate ao racismo,
discriminação racial e violência que a criança não branca sofre dentro do espaço escolar.
Apresentando o racismo como um processo histórico e que suas práticas no ambiente
escolar contribui a baixa autoestima da criança negra.
A pesquisa é dívida em três partes a primeira parte nomeamos como Racismo para
tratarmos dos conceitos de discriminação racial, preconceito no ambiente escolar e como
esses conceitos estão enraizados na sociedade e muitas vezes naturalizados. A segunda
parte tratamos da desconstrução do Estereotipo no ambiente Escolar, nesta parte temos
como objetivos desconstruímos os estereótipos que são criados e fomentados pela
literatura, artes dentro dos parâmetros da ocidentalização. Propondo uma educação que
contemple outras etnias e povos. O terceiro abordaremos sobre as ações que foram feitas
nas escolas para propormos uma educação que contemple de forma significativa todas
etnias.

RACISMO

Partindo da tomada da consciência da realidade, sabemos que a escola é o


primeiro momento que o discente possui contato fora da esfera familiar, sendo o espaço
de comunicação, interação com os colegas, possibilitando entender seu papel na
sociedade. A instituição de ensino possui o papel fundamental no desenvolvimento da
criança, pois possui vários projetos que estimulam os alunos, ampliam seus
conhecimentos relacionados a outras culturas, informação, tornando o micro- universo da
criança.
A escola como uma parte extensora da sociedade prolifera, (re) produção das
práticas racistas no ambiente escolar. Neste sentido é comum nas escolas, os alunos de
origem africana sofrerem discriminação racial dentro de sala de aula, sendo ofendidos pela
sua cor da pele, apelidados pelos seus colegas, sofrendo toda forma de agressão seja por

1506
parte dos colegas ou através do próprios matérias visuais, áudio visuais que carregam o
mesmo conteúdo viciados e depreciativos em relação a cultura não ocidental. Podemos
entender que o Racismo

[...] como ideologia manifesta-se através práticas que reproduzem um


processo de desumanização, gerando a exploração entres os povos. Que
podem operar desigualdades sociais, o racismo cumpre funções mais
amplas de dominação como ideologia de hegemonia ocidental que
transmite e reproduz o processo desumanização dos povos dominados
(NASCIMENTO 2003, p. 58).

Para o professor e cientista social cubano-jamaicano Carlos Moore (2009, p.38) o


racismo é um fenômeno eminentemente histórico ligado a conflitos reais ocorridos na
história dos povos. Munanga (2004, p. 8) define o racismo é a ideologia que postula a
existência de hierarquia entre grupos raciais humanos. É um conjunto de ideias e imagens
vinculadas a grupos humanos, baseadas na existência de raças superiores e inferiores (...)
Paullette Marquer em seu livro As Raças Humanas diz a origem da palavra racismo
vem de raça vem do italiano razza, que significa família ou grupo de pessoas. Por outro
lado, continua palavra razza vem do árabe ras, que quer dizer origem ou descendência
(SANT’ANA p. 57 apud DUNCAN,1988, p. 15).
Podemos definir raça como:

A definição de raça, como um conceito biológico –ou pelo menos como


uma noção sobre diferenças, biológicas, objetivas, (fenótipos) entre seres
humanos-escondia tanto caráter racialista das distinções de cor, quanto o
seu caráter construído, social, cultural. Se a noção de “raça” referia-se a
diferença biológicas, hereditárias e precisas então, segundo esse modo
de pensar, a “cor “ não podia ser considerada uma noção racialista, posto
que não teria remissão hereditária única e inconfundível, mas seria
apenas um fato concreto e objetivo. Poder-se-ia, assim, rejeitar a noção
biológica de “Raça” (...) (GUIMARÃES, 2008, p. 89).

Nesse sentido a raça é utiliza como caráter determinante através das diferenças
fenótipos. Tornando os povos ocidentais como sendo a norma de padrão de beleza,
inteligência as outras culturas como diferentes e atrasadas, não civilizatórias. Contribuindo
para a Discriminação racial dentro do ambiente escolar.
De acordo com Lopes, a Discriminação racial é atitude ou ato de distinguir, separar,
as raças tendo por base ideias preconceituosas. A discriminação racial é conceituada como
uma negação dos direitos e posições a alguém pelo simples fato de pertencer a um conjunto

1507
de indivíduos portadores de características inatas que os estigmatiza socialmente. Santos,
(2005,43). Contundo a discriminação tem como caráter a supervalorizar determinadas
culturas, dando à ideia que seja superior a outra desenvolvendo no discriminado o
sentimento de inferioridade em relação a outro grupo étnico. De acordo com o Programa
Nacional dos direitos humanos podemos definir discriminação como:

É o nome que se dá para a conduta (ação ou omissão) que viola direitos


das pessoas com base em critérios injustificados e injustos, tais como a
raça, o sexo, a idade, a opção religiosa e outros. A discriminação é algo
assim como a tradução prática, a exteriorização, a manifestação, a
materialização do racismo, do preconceito e do estereótipo. Como o
próprio nome diz, é uma ação (no sentido de fazer deixar fazer algo) que
resulta em violação do direito (Programa Nacional de Direitos
Humanos, op. cit., p. 15).

Neste sentido a discriminação pode causar danos irreparáveis para que sofre tal
praticas principalmente para alunos de origem africana, pois sofrem discriminações raciais
pela sua cor de pele. A discriminação racial tem o conceito estabelecido pelas Nações
Unidas como qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferências baseadas em raça, cor,
descendência ou origem nacional ou étnica (...) (Idem, ibidem).
Neste sentido o padrão de cultura, estético, da sociedade estabelecidos que
valoriza apenas uma etnia através das mídias, meios de comunicação, principalmente nos
materiais impressos prevalecendo e (re) afirma a valorização da cultura ocidental
invisibilizando e criando estereótipos negativos para outras culturas. Podemos definir os
Estereótipos como

[...] uma tendência à padronização, com a eliminação das qualidades


individuais e das diferenças, com a ausência total do espírito crítico nas
opiniões sustentadas (Idem, ibidem, p. 2). Segundo Lise Dunningan, o
“estereótipo é um modelo rígido e anônimo, a partir do qual são
produzidos, de maneira automática, imagens ou comportamentos”
(Idem, ibidem, p. 2-3).

Na realidade os estereótipos geram preconceitos promovendo a exclusão do


indivíduo que não pertencentes tais grupos. Como afirma Silva (2008, p.17). Promovendo
a exclusão, a cristalização do outro em funções e papeis estigmatizados pela sociedade,
auto- rejeição e a baixa auto- estima que dificultam a organização política do grupo

1508
estigmatizado. E necessário refletirmos até que ponto os estereótipos criados pela cultura
Ocidental como padrões podem influenciar na invisibilidade de outras etnias.

A DESCONSTRUÇÃO DO ESTEREOTIPO NO AMBIENTE ESCOLAR

É sabido que a literatura proporciona a criança o desenvolvimento do conhecimento


social e a construção de conceitos, proporcionando o leitor uma transferência do mundo real
para o mundo do personagem. Vivenciando todas as sensações, sentimentos, que ocorre na
estória tornando o sujeito. As imagens ilustradas nas histórias, fabulas, também constroem
enredos e cristalizam as percepções sobre aquele mundo imaginado. Se examinadas como
conjunto, revelam expressões culturais de uma sociedade (LIMA, 1998.p. 14).
Neste sentido as obras literárias infanto-juvenis oferecem ao leitor vários tipos de contos,
fabulas que podemos enumerá-las, em sua grande maioria temos uma princesa e o príncipe que
viveram felizes para sempre. Ao refletimos esses contos podemos constatar que perguntas
simples podem ser respondidas quem são as princesas/ os príncipes? Como são essas princesas
/esses príncipes? Onde eles vivem? Logo deduzimos que esse grupo descrito nas fabulas são
povos de origens ocidentais que merecem viver felizes para sempre.
Quando buscamos questionamentos para responder tais implicações que estão
constantemente nos livros, nas estórias, contos, etc. Que apresentamos aos nossos alunos como
construção de saber, muitas das vezes utilizamos essas obras literárias para propor o ensino de
forma lúdica. Sem uma reflexão sobre os valores culturais, valores religiosos, padrão estético,
que estão embutidos dentro da história.
Deste modo os valores tantos culturais, religiosos e estéticos descrita nos livros valorizam
e potencializam a cultura eurocêntrica. Criando na criança não –branca uma desvalorização o seu
próprio estereótipo e a sua cultura. Em contra partida a cultura não Ocidental, os seus valores
e costumes e principalmente a criança negra é ilustrada nos livros como inferiorizada, excluída
não possuindo nomes próprios, nem família, criando a ideia que os negros não possuem
capacidade para ocupar um lugar de prestigio na sociedade. Conforme afirma Castilho,

A literatura infantil que os alunos leem nas escolas com maior frequência
raramente mostra famílias negras felizes e bem-sucedidas, personagens negras
bem vestidas; raramente há príncipes, reis, rainhas de cor negra, assim como
também não é comum ver um negro na capa de um livro, ou sendo o
personagem principal (CASTILHO, 2003, p. 109).

1509
A autora Heloisa Pires Lima em seu artigo Personagens Negros: Um breve perfil
na literatura infanto-juvenil nos convida a reflexão da maneira que os personagens de
origens africana aparece na literatura infanto Juvenil, mencionando da importância da
literatura na formação do educando, pois através dos livros, contos, que o aluno tem a
possibilidade de conhecer a história de outras culturas e povos. Uma vez que a história de
determinado cultura seja relatada de forma errônea colabora que o leitor transfira opinião
negativa respeito daquele ambiente, daquele tipo de pessoa ou sentimento. Neste sentido
a importância de como os autores, editores, roteirista, etc. Irão vincular a imagem de forma
depreciativa de determinado povos, pois a mesma age como instrumento de dominação
real por meio de códigos embutidos em enredos racialistas, comumente extensões e
representações das populações colonizadas. Autora ainda exempla a de como a forma
vinculada do negro em relação ao processo escravagista ocorrido no Brasil, aparecem
sendo naturalizadas, reforçando os sentimentos da dor, da condição de subalternização,
mantendo marca da condição de inferiorização pela qual a humanidade negra passou.
Assim, cristalizar a imagem do escravo de escravo torna-se uma das mais eficazes de
violência simbólica. Reproduzi-la intensamente marca, numa única referência toda a
população negra naturalizando-se, assim uma inferiorização datada.
Dentro dessa perspectiva a imagem do negro nas obras literárias são retratadas de
forma negativa que possibilita a disseminação do racismo, preconceito estimulando uma
valorização sobre a cultura dominante. Como afirma Silva:

Ao veicular o estereótipo que expandem uma representação negativa do


negro uma representação positiva do branco (...) está expandindo
ideologia que alimenta outras ideologias das teorias e estereótipos de
inferioridade/superioridade raciais, as quais se conjugam com a não
legitimação, pelo Estado dos processos civilizatórios indígenas, africanos
entre outros constituintes da identidade cultural da nação (SILVA, 2008,
p. 19 apud SILVA,1989, p. 57).

O estereótipo construído dentro das obras literárias a partir do olhar da ideologia


que representa a classe hegemônica, agindo como símbolos/ padrões, tem como propósito
inviabilizar outros sujeitos participantes dentro da sociedade. Tais pensamentos
estabelecidos de forma sutil na literatura brasileira contribui para que a imagem do negro
como feio, assustador, ausente de beleza, de forma animalizada ou até mesmo bestificada
bem diferente que apresentado da cultura ocidental com o sinônimo da inteligência, povos
civilizados. Segundo Andrade (2008, p. 116), a ausência de referência positiva na vida da

1510
criança e da família e nas obras literárias e nos demais espaços que esgarça os fragmentos
da identidade da criança negra, que muitas vezes chega na fase adulta com total rejeição a
sua origem racial, que lhe traz prejuízo à sua vida cotidiana.
Do ponto de vista educativo, a escola tem que proporcionar uma educação que
contemple todos os sujeitos envolvidos, entretanto, alguma obra literária vem carregadas
de preconceitos. Comprometendo a formação da criança como afirma Castilho,

Do ponto de vista educativo, esse processo pode estar comprometendo


tanto a formação da criança negra quanto da formação da criança branca.
Para a criança branca essas obras literárias podem reforçar a ideologia da
superioridade e supremacia de sua “raça”, por outro lado, pode
subestimar; estigmatizar e em muitos casos fragmentar a autoestima da
criança não-negra (CASTILHO, 2004, p. 109).

Diante desse modelo apresentando na literatura como lócus de (re) produção do


pensamento hegemônico tornando apagamento de outras culturas. Como a poesia, os
textos descritos pelos autores sobre outras culturas. Partem da ótica do colonizador. Como
descreve Homi Bhabha, sobre o discurso poético do colonizado, não encena “O direito
de significar, como também questiona o direito de nomeação que é exercido pelo
colonizador sobre o colonizado e seu mundo (EVARISTO, 2007, p. 7 apud BHABHA,
1998, p. 321).
Partindo dessa ´premissa, como professores precisamos trabalhar com a
diversidade étnica-racial é composta nosso país, buscando descolonizar a escola e propor
uma literatura que possibilite a desconstrução dos estereótipos. Transgredindo o sentido
da história oficial, apresentando fatos novos que constam no discurso do colonizador,
buscando imprimir uma autoria negra a sua história, onde se lê apenas a marca opressora
do Dominador (EVARISTO, 2007, p. 13).
Nesse sentido enquanto professores podemos buscar bibliografias que discutem a
temática raciais, propondo nossos alunos uma educação voltadas para pluralidades de
sujeitos que são compostas na escola, dentro dessa perspectiva faz necessário que a escola
seja um espaço multicultural que compreenda essa pluralidade de raça e padrões culturais.
Hall define o multiculturalismo sendo

O termo "multiculturalismo" é substantivo. Refere-se às estratégias e


políticas adotadas para governar ou administrar problemas de
diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades multiculturais.
Uma sociedade multicultural na qual descreve o autor é uma sociedade

1511
majoritária que se baseia na cidadania que individualiza as suas práticas
culturais privilegiando a identidade das questões econômicas (HALL,
2003, p. 51).

De acordo com Siss,

O multiculturalismo constitui-se como uma característica fundamental e


intrínseca às sociedades que se constituem como culturalmente
estratificadas e nas quais essa diversidade é percebida como um dos
principais elementos de tensão dos processos de construção da unidade
nacional. Nas sociedades assim estruturadas, os grupos sociais “excluídos
dos centros de decisão por questões econômicas e, sobretudo por
questões culturais” problematizam e contestam de forma veemente a
unidade nacional. É por isso que o multiculturalismo é geralmente
concebido como problemático por aquelas sociedades que, sendo
culturalmente diversificadas representam-se como monoculturas (SISS,
1998, 2002, p. 137).

De acordo com esses autores o multiculturalismo busca a integração das sociedades


multiétnicas buscando promover o fim da desigualdade social e conflito gerado pela
diversidade étnica existente. Reconhecendo a diferença e promovendo diversidades
culturais de todos os povos que vivem na mesma sociedade. Permitindo leituras
diversificadas de seus significados e estruturação, dependendo do tipo da sociedade no qual
ele se apresenta e do contexto sócio- histórico do momento em que ele emerge (Siss766,
2002, p. 137). Neste contexto existem vários tipos de multiculturalismo que irão manifestar
de formas distintas em determinados países. Stuart Hall define alguns tipos de
multiculturalismo: pluralista, comercial, liberal, pluralista, corporativo, crítico, conservador,
dentre esses multiculturalismos apresentado o que mais identifica com o contexto histórico,
relacionados das desigualdades, preconceitos, discriminações raciais que tem no Brasil,
portanto dotar o multiculturalismo critico na construção das políticas educacionais que
compreenda a diversidade étnica, reconhecendo as a polissemia de vozes existentes.
Canne afirma que:

O multiculturalismo crítico ou perspectiva intercultural crítica busca


articular as visões folclóricas a discussões sobre as relações desiguais de
poder entre as culturas diversas, questionando a construção histórica dos
preconceitos, das discriminações, da hierarquização cultural (CANNE,
2003, p. 93).

766
Siss, Ahyas, Caderno PENESB, Relações raciais e educação, Iolanda de Oliveira .2002, p.137

1512
O multiculturalismo crítico tem o papel fundamental na construção das políticas
educacionais (MCLAREN, 1994, p. 67). Buscando articular debates sobre a relação de
poder entre culturas. Canne, explica que,

O multiculturalismo é um termo polissêmico que engloba desde visões


mais liberais ou folclóricas, que tratam da valorização da pluralidade
cultural, até visões mais críticas, cujo foco é o questionamento a racismos,
sexismos e preconceitos de forma geral, buscando perspectivas
transformadoras nos espaços culturais sociais e organizacionais
(CANNE, 2004, p. 67).

Portanto, o multiculturalismo surge como movimento nas sociedades multiétnicas


que luta por igualdade e respeito. Nessa perspectiva a educação multicultural propõe
ambiente escolar que reformule toda a sua estrutura, possibilitando uma reelaboração dos
conceitos anteriores construídos na instituição de ensino. Cabe a escola reconhecer a
diversidade étnica e identificá-la como parte de um processo educacional investindo na
superação de qualquer tipo de discriminação e incluindo as outras culturas no currículo
escolar, rompendo o privilégio da leitura hegemônica.
Podemos concluir faz necessário uma instituição de ensino que contemple as
diversidades étnicas e identificá-las como parte de um processo educacional investindo a
superação, de qualquer tipo de discriminação e incluindo as outras culturas.

AÇÕES NO COTIDIANO ESCOLAR

As ações ao combate as práticas racistas no ambiente escolar estão relacionadas


com diversos fatores que são possíveis identificar que envolve o projeto político
pedagógico, os professores, os diretores, os país e responsáveis pelos discentes, os
coordenadores pedagógicos, os funcionários, todos devem estar envolvidos para que ações
sejam realizada no interior da escola.
É de suma importância em trabalhar com a Lei 10.239/03 nos ambientes escolares
de Ensino Fundamental e Ensino Médio tendo como objetivo apresentar os aspectos
históricos, políticos e sociais do negro no contexto escolar para a promoção de uma
educação étnico-racial. As Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira vigente desde
1996, modificada pela Lei 10.639 em 2003, ampliada pela Lei 11.645/2008, no seu Artigo
26ª, passou a ter a seguinte redação:

1513
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,
públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o
índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história
do Brasil.
§ 2o os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e história brasileira.

O Artigo acima ao introduzir a história e cultura afro-brasileira e dos povos


indígenas no currículo escolar coloca a necessidade de se (re) pensar a educação nacional,
nos diferentes níveis de ensino, no contexto de uma sociedade plural, estratificada,
hierarquizada e marcada por contradições e conflitos como é a sociedade brasileira
(FERNANDES, 2012).
Estudos feitos registram que as ações pedagógicas voltadas para o cumprimento da
Lei nº 10.639/03 e suas formas de regulamentação se colocam nesse campo. A sanção de
tal legislação significa uma mudança não só nas práticas e nas políticas, mas também no
imaginário pedagógico e na sua relação com o diverso, aqui, neste caso, representado pelo
segmento negro da população.
Todas ações realizadas pelos professores, orientadores pedagógicos, com apoio de
todo o corpo escolar que proporcione uma Educação voltada para relações étnico-raciais,
com a finalidade de produção de conhecimentos que envolve o direito de aprendizagem
de diversas etnias como forma de exercício à cidadania partindo do (re) conhecimento de
diversas culturas e sua pluralidade, garantindo a valorização de identidade, na busca da
consolidação da democracia brasileira.
Nesse sentido que apresentarmos a importância de trabalhar com a diversidade na
escola no cotidiano tornando o trabalho que desenvolva as atividades diárias no currículo,
contribui para erradicação do racismo e todas as práticas discriminatórias no âmbito
escolar.

1514
PROJETOS

Esse projeto foi desenvolvido em uma escola particular (XXX) no município de


São João de Meriti e outra Escola Estadual no município de Queimados ambas no Estado
do Rio de Janeiro, no qual tivemos uma parceria da direção da escola de desenvolvermos
o trabalho continuo sobre as diversidades étnico–racial.
Deste modo podemos relatar a nossa experiência enquanto docente em uma escola
acima citada iniciando pela escola localizada em São João de Meriti que realizamos o
projeto Vários Olhares realizado pela professora Maiza Francisco, tinha como objetivo
através da ótica do aluno apresentar a construção de pensamento do discente e a formação
que o educando estava tendo no a ambiente escolar.
A justificativa para realização do projeto foi a partir da aula do sexto ano que a
professora da disciplina História, mencionou a escravidão no império romano, o aluno
identificou que os povos romanos não poderiam ser escravos porque eles eram brancos.
Para alguns alunos não existia a possibilidade da escravidão para pessoas da cor de pele
branca, somente para os negros.
Diante dessa discussão ocorridas em sala de aula, começamos a inserir em nossos
conteúdos outras culturas para que os alunos conseguissem ter um parâmetro e pudesse
participar do projeto Vários olhares. Utilizamos vários autores relacionados ao tema para
que os alunos pudessem obter fundamentos para que eles conseguissem realizar a sua
pesquisa.
O tema proposto através de sorteio foi o continente africano, no qual os alunos
buscaram através de pesquisas relacionados a alguns países, o tema dentro do continente
eles poderiam escolher a turma dividiu em quatro partes, tivemos alimentação, poesias, os
deuses africanos, máscaras africanas, deuses africanos.
Quando o aluno perguntou poderiam falar sobre os Deuses africanos cultuados no
Brasil, ficamos muito felizes, entretanto conversarmos com os outros alunos as inúmeras
possibilidades de culturas, povos, deuses.
Após toda essa discussão anterior o Projeto vários olhares, o aluno apresentou o
trabalho com trajes africanos e contou contos africanos para os demais alunos. A
reprodução do aluno do conhecimento originarias da cultura africana que é vinculada a
oralidade, está sempre presente na vida dos afrodescendentes, pois sempre tem histórias
que a mãe, avó, o país, etc. Contava que não estava vinculada em nenhum livro de estória.
Na alimentação, foi apresentado pratos africanos, os alunos ficarão entusiasmado diante de

1515
tanta comida diversificada e algum bem conhecidas, fortalecendo no imaginário dos
discentes a contribuição dos povos africanos na culinária brasileira. As máscaras africanas
os educandos falaram da arte apresentando os modelos da arte africana em cada
continente, os alunos confeccionaram, fizeram, esculturas e perceberam que no continente
africano possuía vários (as) artistas. Principalmente romperam com o modelo de arte
ocidental conhecendo outros moldes de arte. Na poesia, buscamos trabalhar com a
poesia atual negra pegamos autores como a Conceição Evaristo, Ele Semog, Solano
Trindade, na qual apresentamos a relevância de outras poesias, o interessante que os alunos
além de expor a poesia montamos o cantinho da poesia na qual cada aluno que visitava o
espaço tinha que criar uma poesia, tornando o espaço de interação. Apresentamos outras
leituras sobre a poesia.
Nesse projeto conseguimos trabalhar com a aplicabilidade da Lei 10.639/03 em
várias disciplinas, pois tivemos a colaboração de vários professores, de várias disciplinas
para que o projeto Vários Olhares conseguisse tornar viável.
Outro projeto desenvolvido na Escola do Estado (XXX) intitulado “Um Olhar
sobre a Diversidade - Gincana: A Cor do Brasil”, neste projeto, que foi criado pelos
professores Bianca Cristina Trindade e Gilton Rocha.
Teve como objetivo estimular o desenvolvimento dos pilares da educação, voltada
para uma educação Cultural e para valorização das relações étnico- raciais. Promover a
integração entre estudantes, professores, funcionários, pais e comunidade oportunizando
a integração escola, família e comunidade.
A Maratona Cultural será uma apresentação de diversas culturas através de uma
GINCANA. As gincanas escolares são sempre momentos lúdicos onde é possível exercitar
competitividade, espírito de equipe, planejamento e levar o conhecimento. Teremos como
padrinhos de cada turma três professores. Que poderão incentivar as turmas para o
cumprimento das tarefas, auxiliar os alunos e torcer por seus afilhados.
Modelo das tarefas da Gincana:
 Cada turma deverá fazer cartazes sobre a diversidade étnico-raciais;
 Levar para escola objetos, trajes ou artesanatos que representem uma região
brasileira;
 Cada equipe deverá apresentar a mesa julgadora um prato de uma comida típica
de sua região;
 Levar um livro muito antigo. (O livro mais antigo apresentado, a turma ganhará
pontos extras);

1516
 Apresentação de uma dança típica;
 Levar uma moeda ou cédula mais antiga;
 Escolher uma poesia ou uma música para homenagear a cultura afro – brasileira;
 Apresentar um traje típico da região, do estado ou país representado.
 Cada turma deverá escolher um ou dois alunos, para desfilar e concorrer ao título
de beleza afro-brasileira;
 Levar um responsável, para contar uma história que contemple todas as etnias ou
ler uma poesia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O racismo está inserido no sistema capitalista moderno e na construção da


sociedade, são pautadas por uma ideia hegemônica na qual criou-se uma hierarquização
das raças, na qual denominou-se os povos de oriundos da cultura ocidental civilizados e
outras culturas subalternas. Nessa pirâmide na qual determina o grande poder de
conhecimento, cultural e estrutura civilizatória encontram–se indivíduos de cor branca. As
demais culturas que não atendem a essa ocidentalização projetada estão subalternizadas.
A escola como elemento essencial da sociedade reflete o mesmo mecanismo que
gera preconceito e diferença no tratamento do aluno não-branco. Como está inserida nos
padrões culturais da sociedade reflete essa postura no cotidiano escolar, embora seja
composta em seu espaço físico diversas culturas étnicas, ainda permanecesse essa barreira
que impede o rompimento com os pensamentos hegemônicos.
Deste modo temos uma escola que reconhece a composição dos seus atores sociais,
e percebe que o modelo estabelecido não consegue administrar os conflitos étnicos,
religiosos, culturais, estéticos de determinados grupos que são gerados devido a
multiplicidade de grupos distintos.
A escola reconhece que necessita de mudanças nas políticas educacionais
pedagógicas, o currículo que contemple a diversidade e o combate as práticas
discriminatórias. A instituição de ensino através da Lei 10.639/03 que foi amplificada para
a Lei 1.645/08, que consta em seu artigo 26 da Leis Diretrizes Básicas da Educação. De
acordo com o Parecer do CNE/CP 03/2004 que aprovou as Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileiras e Africanas; e a Resolução CNE/CP 01/2004.

1517
Deste modo, a escola necessita trabalhar com o projeto político pedagógico que
envolva uma educação étnico–racial, mais também incluir no currículo tema que
contemple a diversidade étnica que compõe o nosso país.
Assim, através de o trabalho voltado para uma educação é o reconhecimento de
educar para a diversidade não significa apenas reconhecer o outro como diferente, mas
refletir sobre as relações e os direitos de todos e a escola é o espaço sociocultural em que
as diferentes identidades se encontram, caracterizando-se, portanto, como um dos lugares
mais importante para se educar com vias ao respeito à diferença.

REFERENCIAS

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escolar: fundamentos, representações e ações. São Carlos (SP): EDUFScar, 2011.

BRASIL. Lei n. 9394, de 20.12.96. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação


Nacional. Brasília, 1996.

BRASIL. Lei 10.639, de 09.01.03: altera a Lei 9394/96 para incluir no currículo
Oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática: “História e Cultura Afro-
Brasileira”.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Secretaria de Educação


Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CAVALLEIRO, Eliane (Org.). Racismo e Anti-Racismo na Educação: Repensando nossa


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GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo. São Paulo: Editora 34,
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Gerais para um Currículo Afrocentrado. Revista África e Africanidades, Ano 3, No. 11:
01-16, Nov. 2010.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. O sortilégio da cor: identidade raça e gênero no Brasil.


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PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estud. av.


[online]. 2004, vol.18, n.50, pp. 161-193.

1518
A IMAGEM DA MULHER NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO: NOVA
PERSPECTIVA PARA UMA EDUCAÇÃO ÉTNICO-RACIAL NO
LIVRO DE HISTÓRIA

Bianca Cristina da Silva TRINDADE

Maiza da Silva FRANCISCO

Mônica da Silva FRANCISCO

Luciano Marques da SILVA

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar A Imagem da Mulher Negra no Livro
didático: Nova Perspectiva Para Uma Educação Étnico-Racial No Livro De História, a partir do
livro didático Estudar História: das Origens do Homem à era digital, da Editora Moderna, voltado
para 7º ano do Ensino Fundamental referentes ao Programa Nacional do Livro Didático 2010. O
Objetivo central que norteou essa pesquisa foi a verificação de como a mulher negra é representada
no livro didático. O referencial teórico utilizado são os estudos de vários autores sobre as
diversidades étnico-raciais e reflexões de uma sociedade voltada para o movimento multicultural
que propõe uma relação de conhecimento entre as culturas. Na conclusão, apontamos ás
necessidade de novas publicações de livros didáticos que contemple vozes femininas, com
conteúdos focados em uma educação que contemple as pluralidades de vozes existentes na cultura
brasileira étnico-raciais e reflexões de uma sociedade voltada para o movimento multicultural que
propõe uma relação de conhecimento entre as culturas.

Palavras –Chaves: Educação Étnico-racial. Livro Didático. Mulher Negra. Racismo.

INTRODUÇÃO

A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o
mundo.
Nelson Mandela

Este estudo tem como objetivo analisar a imagem da Mulher Negra no Livro
didático: Nova Perspectiva Para Uma Educação Étnico-Racial No Livro De História, este
estudo está diretamente relacionado com os Parâmetros Curriculares Nacionais da
Educação Étnicos Raciais, a Lei 10639/2003 que definiu a obrigatoriedade do ensino de
História da África e Cultura Africana e Afro-Brasileira na Educação, e suas Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Parecer CNE
01/2004). A Lei 10639/2003 e suas Diretrizes buscam modificar os equívocos em relação
à história dos povos de origem africana, possibilitando oportunidade de trazer outras
leituras sobre o continente africano e a cultura afro-brasileira nos livros didáticos. Essas
modificações estão sendo realizadas nos materiais didáticos em prol da valorização da
cultura negra e de uma educação antirracista capaz de combater o preconceito e as

1519
discriminações raciais no cotidiano escolar e promover ações educativas que abrangem
conteúdos programáticos e o currículo.
Trata-se de uma pesquisa bibliográfica com objetivo de discutir a importância do
livro didático no combate ao racismo no contexto da Lei 10.639/2003. O referencial
teórico utilizado são os estudos de vários autores sobre as diversidades étnico-raciais e
reflexões de uma sociedade, voltada para uma relação multicultural que propõe uma
relação de conhecimento entre as culturas.
Dentre tantas disciplinas teremos como referência o livro de História que possibilita
ao homem a oportunidade de conhecer o seu passado, sua origem, sua cultura e tornando
sujeito participante. A História pode o resgatar a origem de um determinado povo ou
região através de aspectos culturais, políticos, sócio econômicos. Neste sentido a finalidade
da Lei 10.639/2003 é um resgate da história de um povo africano que foi renegado e que
hoje estar no livro didático para o (re) conhecimento de todas as etnias.
A pesquisa centrou-se na análise crítica do conteúdo programático voltado para
estudantes do 7º ano, do Ensino Fundamental, o livro História da Editora Moderna
Estudar História Das Origens do homem à era digital especificamente o Capítulo III, África
antes dos europeus. Onde percebemos que a imagem da mulher negra é pouco divulgada,
nos livros didáticos de História, o que transmite ou manifesta a ideologia dominante, isto
é, o pensamento hegemônico, reproduzindo as relações de poder existente desde os
tempos da colonização europeia, é um dos fatores que norteia a nossa análise deste material
didático. Nosso interesse por esta temática se deu após recordamos do tempo de escola,
das aulas de História, em que o professor enfatizava que os negros levavam várias chibatas,
tinha apenas uma vantagem em relação o povo indígena gostava de trabalhar por esse
motivo eram escravos. Diante dessa experiência buscamos pesquisar quais eram
argumentos que os professores utilizavam para mencionar tais crueldades em sala de aula,
causando para nos alunos negros insatisfação por estar naquele espaço escolar. Não éramos
convidados para participar de nenhum evento na escola, mas nas datas da comemorativas
de Libertação dos escravos, éramos convidados para as peças teatrais com os seguintes
personagens escravos, sem falas ou apenas única fala: Viva a escravidão! Deste modo
percebemos que as práticas racistas são corriqueiras no ambiente escolar.
Apresentando o racismo como um processo histórico e que suas práticas no
ambiente escolar contribui a baixa autoestima da mulher negra, A pesquisa aborda a
exclusão do negro nas escolas e discute uma política de combate ao racismo e uma
educação que para todas étnico–raciais.

1520
O primeiro abordará o combate ao Racismo no Brasil Pós-Lei 10.639/ 2003
aspectos culturais históricos e políticos, a pesquisa, tratar as culturas negadas não de forma
reduzida dedicando apenas uma pequena parte para explicitar como ocorreu esse processo
de exclusão do negro no ambiente escolar, mencionar contra os preconceitos na escola e
levantar um possibilidade na educação multicultural apresentando uma perspectiva do
multiculturalismo crítico como norteador para o caminho para uma educação étnico –
racial.
No segundo momento, falaremos sobre o Livro didático e o combate ao racismo
no contexto da Lei 10.639 / 2003 apresentam o livro didático como elemento difusor do
racismo, pois a sua ideologia racista reproduz na sala de aula através de mensagens- verbais
e não- verbais, embora o livro didático apresente esse instrumento capaz de alcançar todos
os níveis da sociedade, podemos utilizá-lo para combater o racismo em todos os âmbitos,
e a valorização da imagem da mulher negra.
O terceiro momento vem com a discussão intitulada “O Livro Didático de História
na Perspectiva da Lei 10.639/2003”, onde apresentaremos a leitura com bases os
Parâmetros Curriculares Nacionais e a referida Lei. Percebemos que nos livros didáticos
persiste visão hegemônica em seus conteúdos programáticos. A imagem que se refere ao
continente africano sempre com uma ótica ocidental, quando descreve o continente
africano como povos não civilizados, essas tais colocações no que refere à cultura do outro.
Mesmo com a obrigatoriedade da Lei o livro didático possibilita desconstruir para construir
um novo olhar para o estudo dos povos africanos.
A pesquisa justifica-se pela importância de se discutir a história das mulheres na
história da humanidade, bem como compreender a representação da identidade feminina
construída no livro didático, que se configura em um instrumento metodológico importante
no ensino de história no ambiente escolar.

COMBATE AO RACISMO NO BRASIL PÓS-LEI 10.639/2003: ASPECTOS


HISTÓRICOS, POLÍTICOS E SOCIAIS

Esta parte tem como finalidade ressaltar alguns aspectos históricos, políticos e
sociais no combate ao racismo no Brasil após-Lei 10.239 nos ambientes escolares de
Ensino Fundamental e Ensino Médio tendo como objetivo apresentar os aspectos
históricos, políticos e sociais do negro no contexto escolar. Convidando a uma reflexão
para uma educação étnico-racial.

1521
As Leis de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira vigente desde 1996,
modificada pela Lei 10.639 em 2003, ampliada pela Lei 11.645/2008, no seu Artigo 26ª,
passou a ter a seguinte redação:

Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,


públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da
população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o
índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas
contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história
do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos
povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o
currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de
literatura e história brasileira767.

O Artigo acima ao introduzir a história e cultura afro-brasileira e dos povos


indígenas no currículo escolar coloca a necessidade de se (re) pensar a educação nacional,
nos diferentes níveis de ensino, no contexto de uma sociedade plural, estratificada,
hierarquizada e marcada por contradições e conflitos como é a sociedade brasileira
(FERNANDES, 2012).
O combate ao racismo na escola não é uma tarefa fácil tendo em vista que a educação
como lugar de formação humana é carregada por tensões e conflitos onde uma luta
permanente contra o racismo é travada cotidianamente. O enfretamento do racismo no
cotidiano escolar conforme preconizado por esta Lei e pelas suas Diretrizes pressupõe
repensar na educação para as relações étnicos -raciais, isto é, uma educação que combata
as discriminações com base no preconceito racial em que os alunos negros e mestiços estão
submetidos na instituição educacional devido à cor da pele e o estereótipo768.
Embora o país seja constituído por uma população multiétnica, o racismo ainda é
um grande desafio a ser enfrentado, pois encontra-se enraizado em nossa sociedade. Para

767
Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm. Acesso em 16/07/2013.
768
Jones (1973) explica que os estereótipos representam uma atitude negativa coma relação a um
grupo ou uma pessoa, baseando-se num processo de comparação em que o grupo do individuo é
considerado como ponto positivo de referencia. JONES apud SILVA, Ana Célia, Superando o
Racismo naEscola ,2008, Brasílip.20 (org.) KabengeleMunanga.
1522
que o mesmo seja extirpado faz necessária uma educação que contemple todas as etnias
respeitando a pluralidade de cada indivíduo e grupo.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnicos Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, formuladas no ano seguinte
da promulgação da Lei 10.639, em 2004, formam um conjunto de orientações, princípios
e fundamentos que visa o planejamento, a execução e a avaliação da educação, conforme
projetos empenhados na valorização das histórias e culturas dos povos africanos, afro-
brasileiros, comprometidos com uma educação positiva para as relações étnico-raciais.
O Plano Nacional de Implementação dessas Diretrizes Curriculares Nacionais para
Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira
e Africana769 traz um conjunto de ações com a finalidade de institucionalizar uma educação
para as relações étnico-raciais, surgindo à atuação dos diferentes níveis de governo (federal,
estadual e municipal), os sistemas de ensino (secretarias e conselhos de educação) e as
instituições escolares, no sentido de fazer cumprir essas Diretrizes.
A Educação das Relações Étnico-Raciais (ERE) é algo que deve ser ainda
construído como um processo que possibilita ao indivíduo uma (re) educação de valores e
posturas em relação ao outro. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação
Étnico-Raciais e para Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e


produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores
que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os
capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a
todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca
da consolidação da democracia brasileira.

Para tanto, a educação Étnico-Racial deve ser pensada como um processo que
envolve o direito de aprendizagem de diversas etnias como forma de exercício à cidadania
partindo do (re) conhecimento de diversas culturas e sua pluralidade, garantindo a
valorização de cada uma delas. Deste modo a Educação para as Relações Étnico-Raciais
assume a atitude de uma educação antirracista.

769
Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das
Relações Étnicos-Raciais para o Ensino de História E Cultura Afro Brasileira
http://www.ifrj.edu.br/webfm_send/271( Acesso no dia 28/07/2013.
1523
O LIVRO DIDÁTICO E O COMBATE AO RACISMO NO CONTEXTO DA LEI
10.639/2003

“Não que eu seja racista, mas existem certas coisas que só os NEGROS
entendem”...
“Que poucos ainda possam entender”
Éle Semong

O livro didático possui o papel de auxiliar o professor no processo educacional e


tem como propósito fornecer conhecimentos, informações, aprendizagem e cultura. Neste
capítulo apresentaremos o Livro didático como ferramenta ideológica podendo contribuir
no combate racismo. Este pode ser entendido como um instrumento que auxilia o
professor no processo de ensino-aprendizagem atuando como mediador de conhecimento.
Como afirma Stefanello770

O livro didático é tido como insubstituível e se caracteriza como o


instrumento adequado para transformar a mensagem científica em
mensagem educativa, pois o único recurso capaz de transmitir
sistematicamente um corpo de conhecimento. Possuindo um aspecto
importante na formação do educando, pois contribui na formação
intelectual e social (STEFANELLO, 2008, p. 84).

Este é instrumento utilizado pela escola servindo de mediação entre o professor e


aluno, possibilitando a troca de conhecimento de diversas temáticas educativas. Nos dias
atuais o livro didático é material pedagógico muito utilizado, sendo uma ferramenta que
envolve professores, alunos e a escola.
A ideologia do material é vista como o sistema de ideias concebidas partindo de
uma visão de uma classe dominante, que se torna ponto de referência de toda sociedade.
Possui o poder de diluir seus valores dentro da sociedade através da escola, das ciências
exatas, ciências humanas, as artes e a religião. Neste sentido, Chauí (1981, p. 113), define
que ideologia “[...] é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (idéias
e valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da
sociedade o que devem pensar e como devem pensar o que devem valorizar e como devem
valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem
fazer”.

770
STAFELLO, Ana Clarissa (ORG) Metodologia do Ensino da História e Geografia - Didática e Avaliação
da Aprendizagem no ensino de Geografia. Volume2 , editora IBEX,2008,p.84

1524
É entendido que a ideologia e um difusor de conceitos na sociedade no qual a tende
a valorização de um único povo (hegemônico) fortalecendo a relação de poder entre etnias.
No Livro Didático possui aspectos ideológicos frutos de uma elite dominante que (re)
produzindo materiais didáticos, voltados a toda a uma cultura eurocêntrica que são
utilizados para disseminar conceitos na sociedade.
Os livros didáticos são escritos com base na história hegemônica que se fortaleceu
através de uma teoria cientista desenvolvida no século XIX na Europa por Charles Darwin,
e considerava a raça como fator biológico, para explicar desigualdade entre os povos.
Essas ideias racistas no Brasil seguiam em larga medida ao pensamento dominante
europeu, na qual a elite da época que não queria ser conhecida como raça inferior, mas a
essência do seu país era tomada por mestiços. Para solucionar esse problema no país os
pensadores da época resolveram buscar uma forma de resolver a questão racial. Esse
pensamento incomodava a elite social intelectual da época, que considerava branca.
Como afirma Sílvio Romero

O povo brasileiro como hoje não apresenta, se não constitui uma só em


raça compacta distinta, tem elementos para acentuar – se com força e
torna-se ascendente original nos tempos futuros. Talvez tenhamos ainda
de repensar na América um grande destino histórico-cultural (apud
Guimarães, 1999, p. 53).

O pensador brasileiro João Batista Lacerda, acreditava que a mestiçagem seria a


solução para a mestiçagem existente no país e o processo de branqueamento, o cruzamento
entre as raças, seria fundamental para erradicar o desaparecimento total do índio, do negro
e do mestiço poderia na futura miscigenação incluir parceiros brancos para uma futura raça
hegemônica.
Os intelectuais Silvio Romero e João Batista Lacerda almejavam solucionar o
problema da mestiçagem do Brasil por meio fusão racial entre todas as etnias a fim de
tornar o Brasil um pais civilizado. Existia a preocupação elite brasileira em apagar passado
escravocrata no país partindo de uma erradicação de raças, almejando o fim de várias etnias
e apresentando uma única etnia. Neste sentido a integração europeia foi incentiva entre
1814 até 1913 coma chegada de vários europeus no Brasil, essa migração tinha o caráter
emergencial para solucionar o problema da mestiçagem no país.
Deste modo o livro didático foi construído com base de rejeição os mestiços,
negros, no país, logo correspondem uma classe dominante de escritores na qual predomina

1525
a cultura ocidental. Enquanto ferramenta ideológica, o livro infelizmente, torna-se um
espaço que ainda representado por uma elite europeia. Esse poderia ser usado como um
instrumento em uma ferramenta ideologia que combata o racismo e suas práticas.

A IMAGEM DA MULHER NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO

Fonte:
http://s2.glbimg.com/Kvkf3TUq9FtyHKbP2PdPbuBI4gU=/620x465/s.glbimg.com/jo/g1/f/original
/2017/03/20/

A imagem social dominante do negro começa a ser construída e veiculada por


meios como a imprensa e a literatura é uma imagem de uma pessoa ameaçadora rude,
fisicamente forte, ignorante atrasada bárbara e supersticiosa(...) (SALLES; SOARES, 2005,
p. 114). A figura da mulher negra foi construída carregada de estereótipos e desvalorização
de todo grupo étnico de acordo a visão ocidental de superioridade do branco em relação
à outra etnia.

1526
Fonte:http://3.bp.blogspot.com/-gQ2lOpPHriY/TtdrEzCe-
AI/AAAAAAAABhg/6y_mgHJPIQ8/s320/debret.bmp

Essa ideia apresentada no livro didático expressa na historiografia obedece à visão


hegemônica de superioridade entre as outras culturas. Criando com a falsa superioridade
cultural, racial e histórica dentro do imaginário coletivo, uma vez que retira dos povos
negros a importância nos processos civilizatórios. Munanga menciona que “a história da
população negra contada nos livros didáticos aparece dentro de uma ótica humilhante e
pouco humana” (MUNANGA, 2005, p.15)771.
As mulheres negras são apresentadas com frequência, como domésticas, amas de
leite ou objeto sexual é representada nos livros literários como, por exemplo, “Gabriela,
Cravo e canela”, obra de Jorge Amado.
Segundo Proença Filho772,

(...) A propósito, a ficção do excepcional romancista baiano Jorge Amado


contribui fortemente para a visão simpática e valorizadora de inúmeros
traços da presença das manifestações ligadas ao negro na cultura
brasileira, embora não consiga escapar das armadilhas do estereótipo.
Basta recordar o caso do ingênuo e simples Jubeba, do romance do
mesmo nome, lançado em 1955, e da infantilizada e instintiva Gabriela,
de Gabriela, cravo e canela (1958), para só citar dois exemplos. A seu
favor, o fato de que, na esteira da tradição do romance realista do século
passado no país, a maioria de suas estórias insere-se no espaço da

771
MUNANGA, Kabengele (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: MEC/SECAD, 2005 p.16
772
Proença Filho, DOMÍCIO. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estud. av. [online]. 2004, vol.18,
n.50, pp. 161-193. ISSN 0103-4014.
1527
literatura-espelho e, no caso, refletem muito do comportamento
brasileiro em relação às mulheres que privilegia.

A figura da mulher negra é apresentada nos materiais didáticos como sem família,
não possuindo nomes próprios. Essas ilustrações podem influenciar de forma negativa no
imaginário ao indivíduo criando a ideia que essas mulheres negras não possuem capacidade
para ocupar um lugar de prestígio na sociedade, enquanto para o negro essas coisas podem
influenciá-lo e começar a internalizar que os papéis de destaque na sociedade são para
pessoas brancas. Entretanto, as ilustrações que apresentam a imagem da mulher negra no
material didático possibilitam a disseminação do racismo, preconceito estimulando uma
valorização sobre a cultura dominante e criando conceitos para macular a imagem dessas
mulheres. De acordo com os PCN’s

[...] os livros didáticos e paradidáticos mostram que há materiais nas


escolas que continuam a associar a imagem do negro com percepções
negativas, como por exemplo, maldade, feiúra, tragédia e a sujeira. Esses
estudos mostram que o branco ainda é apresentado como condição
humana natural; as mulheres negras continuam sendo associadas ao
estereótipo da empregada doméstica; e os livros são produzidos
pressupondo, exclusivamente, como leitores crianças e jovens brancos
(2010, p. 31).

As imagens que são reproduzidas no material enquanto linguagem não-verbal


utilizada nos conteúdos textuais abordados no livro didático, possuem a finalidade de
valorização a cultura ocidental ignorada e pejorativa de outras culturas.

1528
Fonte:
imgsapp2.uai.com.br/app/noticia_133890394703/2015/11/23/174381/20151123095806488644i.j
pg

Assim, a representação da mulher enquanto gênero feminino está ligada à sua


história e aos diversos acontecimentos sociais que os determinaram. Antes de discorrermos
sobre a história das mulheres e os fatores que no decorrer do tempo configuraram o gênero
feminino, faz-se relevante identificar o conceito de identidade e como o mesmo é
construído. No contexto desse trabalho a compreensão do conceito de identidade é um
fator imprescindível para compreender a representação da mulher. E a importância desta
mulher no livro didático.
Quando investigamos o passado observaremos que de uma forma geral a mulher
sempre viveu uma subordinação à dominância masculina e quase não aparece na história,
não que não tivesse sido importante para a mesma, mas principalmente por esse estado de
subordinação que eleva o homem sempre coube a categoria de ser superior à mulher.
Dentro dessas perspectivas podemos afirmar que a Lei 10.639/2003 foi um
momento histórico da educação do nosso país, que busca refletir e orientar os princípios
democráticos da inclusão. Possibilitando através da educação superar as diversidades
étnicas existentes. A Lei possibilitara inserção dos conteúdos de história e cultura afro-
brasileira e africana em algumas disciplinas especificas embora possa ser trabalhada por
todos profissionais da educação e contribuir com a recuperação da identidade e seus
valores étnicos, possibilitando o fortalecimento da cultura negra.

1529
Com o decreto da referida Lei passa a existir a necessidade de uma revisão nos
currículos e materiais pedagógicos em todas as séries iniciais chegando todos os níveis de
ensino. Essa medida emergencial foi empregada em todos os livros didáticos que possam
estar adequados conforme preconiza a Lei.

CONCLUSÃO

Podemos concluir, que a partir da implementação da Lei 10.639 ocorreram


mudanças nos livros didáticos que começaram a apresentar por meio de imagens o negro
na escola, com famílias e possuindo nomes próprios. Os livros didáticos após a referida lei
têm como finalidade o resgate da história e cultura dos povos africanos. E a reversão da
história que foi escrita através de um olhar hegemônico sufocando e oprimindo sujeito
africano, almejando torná-lo um sujeito aculturado tentando eliminar identidade cultural.
Neste sentido a Lei 10.639/2003 veio para resgatar a História e Cultura Afro-brasileira.
Acreditamos ser a disciplina de História é extremamente importante no currículo
escolar, pois contribui para compreensão das questões sociais que se configuraram ao longo
da história da humanidade em virtude das transformações que sofreram por meio da ação
e do trabalho do homem. Inicialmente, discutimos que de uma forma geral e especialmente
em um determinado período do fazer histórico, a ciência História retratou apenas os feitos
e ações dos “grandes homens” (brancos e europeus). Assim, falar da mulher na história
pressupõe compreender as questões que permearam a sua história e os fatores que
contribuíram para construção da sua identidade como tal.
Inicialmente as discussões promovidas nos primeiros capítulos não problematizam
a condição das mulheres, de submissão, segregação e violência que essas sofreram ao longo
da história e que contribuíram significativamente para a construção da identidade do gênero
feminino.
O livro de história deve abordar a História da África dentro de uma perspectiva
africana reconhecendo os valores culturais da sociedade, a diversidade e analisando todo
processo histórico. Segundo, Renato Nogueira Júnior, “A história deve ser tratar as relações
entre os mais diversos povos, sempre ocupando de histografias que desmamarem o
eurocentrismo” (SANTOS JUNIOR, 2010773). Neste sentido faz necessário que os livros

773
SANTOS JÚNIOR, Renato Noguera dos. Afrocentricidade e Educação: os Princípios Gerais para um
Currículo Afrocentrado. Revista África e Africanidades, Ano 3, No. 11: 01-16, Nov. 2010.

1530
didáticos de história escritos estejam voltados para revelar o berço africano, a cultura
africana e os seus princípios legais, imagens de mulheres e homens negros, assim como
traços de sua cultura.
Podemos afirmar a importância de um novo olhar em relação ao estudo da História
entre as outras culturas, ou seja, através de nova evidencia, bem como a importância de
conteúdos que contemplem a sociedade e nos currículos que sejam voltados para uma
educação antirracista.
O racismo está inserido no sistema capitalista moderno e na construção da
sociedade é pautado por praticadas de submissão e interiorização de outros grupos e
comunidades. A escola como elemento essencial da sociedade reflete os mesmos
mecanismos que geram preconceito e diferença no tratamento do aluno negro. A escola,
como está inserida nos padrões culturais da sociedade reflete essa postura no cotidiano
escolar, embora possuam em seu espaço físico diversas culturas étnicas, ainda existe uma
barreira que impede o rompimento com as bases hegemônicas.
O livro didático é um instrumento de comunicação e mediação entre professor e
aluno, que contribuem para o aprendizado do educando. Um ponto crucial que a análise
da pesquisa foi à importância do livro didático, para desconstrução da imagem negativa do
negro e começar a construir uma história dos povos africanos.
A análise foi realizada no livro didático “Estudar a História Das Origens do homem
à era digital”, da autora Patrícia Ramos Braick e, o que nos chamou a atenção foi o fato de
que, apesar da Lei, no livro didático ainda falta à quebra de paradigma com a cultura
hegemônica, pois ainda permanecem os valores culturais ocidentais e, ainda nos dias atuais,
o livro de História continua negando e anulando a existência dos povos africanos e
principalmente favorecendo o apagamento da imagem de mulheres negras, ainda que não
problematize essas questões, o que compreendemos como sendo extremamente
importante e um primeiro passo para quebra de paradigmas e inclusão consistente da
mulher na escrita da história da humanidade. Desta forma, nós educadores precisamos
buscar livros de história que atendam a Lei para proporcionarmos aos alunos e alunas
negros/negras e não-negros/negras, o conhecimento da temática, e mostrar que a escola é
um espaço que contempla todas as diferenças.

REFERÊNCIAS

ALI, A. História Geral da África. VIII África de 1935. São Carlos (SP): Editora UFSCar,
2010.

1531
BRASIL. Ministério da Educação. Guia de livros didáticos PNLD 2008. Brasília:
MEC, 2007.

BRASIL. Lei n. 9394, de 20.12.96: estabelece as Diretrizes e Bases da Educação


Nacional. Brasília, 1996.

BRASIL. Lei 10.639, de 09.01.03: altera a Lei 9394/96 para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática: “História e Cultura Afro-
Brasileira”.

BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Secretaria de Educação


Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998.

CAVALLERO, Eliane (Org.) Racismo e Anti-Racismo na Educação: Repensando nossa


escola. Rio de Janeiro: Editora Selo Negro, 2001.

HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea.


São Paulo: Selo Negro, 2005.

GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. Racismo e Anti-Racismo. São Paulo: Editora 34,
1999.

SANTOS JÚNIOR, Renato Nogueira dos. Afrocentricidade e Educação: os Princípios


Gerais para um Currículo Afrocentrado. Revista África e Africanidades, Ano 3, No. 11:
01-16, Nov. 2010.

SAVIANI, Dermeval. Educação e Colonização: as idéias pedagógicas no Brasil. In:


STEPHANOU, Maria; BASTOS, Maria Helena Câmara. Histórias e Memórias da
Educação no Brasil – Vol. I – Séculos XVI-XVIII. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.

PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estud. av.


[online]. 2004, vol.18, n.50, pp. 161-193.

ROSEMBERG, Fúlvia; BAZILLI, Chirley; SILVA, Paulo Vinicius Baptista da. Racismo
em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão da literatura. Revista Educação
e Pesquisa, São Paulo, v. 29, n. 1, p. 125-146, jan./jun., 2003.

1532
INFÂNCIA E POLÍTICAS PÚBLICAS: UMA ANÁLISE CRÍTICA DAS
CONCEPÇÕES SOCIOJURÍDICAS DE INFÂNCIA NO BRASIL774

Monique Roecker LAZARIN775

Resumo: Este trabalho busca refletir sobre as concepções sociojurídicas de infância a partir de uma
análise das principais políticas públicas voltadas a infância ao longo da história do Brasil, mesclando
um olhar crítico referenciado teoricamente nos estudos em Sociologia da Infância. Mostra-se que
a Sociologia historicamente pouco abordou a temática da infância, todavia, desde a década de 1980
e 1990 vem aumentando o número de estudos da denominada Sociologia da Infância, que vem
abordando, de diversas maneiras, a inter-relação entre infância, crianças e sociedade, ao partir da
ideia de que a infância constitui um fenômeno social. Nesse sentido, uma das noções mais
recorrentes entre os atuais sociólogos da infância é a de que esta difere de acordo com o período e
o local, o que implica a existência de variações do que é infância ao longo da história e das culturas.
Pensar a infância enquanto parte integrante da sociedade, permite também pensar que não existe
uma neutralidade na concepção jurídica sobre ela. Nesse estudo, busca-se, portanto, entender a
infância como uma construção social, que se altera historicamente, o que significa,
concomitantemente, entender que as políticas a elas destinadas estão inseridas em contextos, que
também são modificadas com o desenrolar das mudanças sociais. Dentre os principais destaques,
ressalta-se a situação de subalternidade da infância tanto em termos da elaboração jurídica em si —
aspectos simbólicos da conceituação, representação e construção —, quanto no processo histórico
brasileiro de se lidar com as crianças. O trabalho também mostra que mais recentemente esforços
vêm pautando e conquistando novos direitos para as crianças, orientadas por um olhar mais positivo
sobre a infância. Toma-se como fundamental uma análise crítica desse processo histórico de
construção das identidades das crianças enquanto sujeitos de direito no Brasil para se pensar nas
possibilidades de avanços das políticas futuras.

Palavras-chave: Infância. Sociologia da Infância. Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

Desde a década de 1980 e 1990 vem aumentando o número de estudos da


Sociologia da Infância (MONTANDON, 2001), uma área da sociologia que busca
compreender a criança como ser não só psicológico e biológico, como também social.
Nesse sentido, uma das noções mais recorrentes entre os atuais sociólogos da infância é a
de que esta difere de acordo com o período e o local, o que implica a existência de
variações do que é infância ao longo da história e das culturas. Nessa medida, a negação de
uma infância única e de essência comum leva também à negação da infância como
determinada exclusivamente pelo fator biológico e psicológico, como se ela fosse

774
O trabalho consiste em parte de um projeto maior, da monografia em Ciência Sociais defendida em 2016
na Universidade Federal do Rio Grande do Sul: “Do Lugar Social ao Lugar Sociológico da Infância: um
percurso reflexivo”.
775
Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos, bolsista CAPES, e-mail:
moniquelazarin@gmail.com
1533
simplesmente um período de imaturidade; o componente sociocultural fica, então, em
evidência.
Para conceituar tal percepção, o termo “construção social” passa a ser uma das
características do que se denomina teoricamente por “infância”. Um dos clássicos estudos
que aborda essa temática do que é infância em tempos distintos da história é o livro História
Social da Criança e da Família (ARIÈS, 1973). Nele o autor analisa a infância na Idade
Média e na passagem para a sociedade industrial, através de interpretações de pinturas das
épocas, e cria a tese de que o sentimento de infância era inexistente na sociedade medieval.
Também as análises da Antropologia da Criança têm refletido o que é ser criança em
diferentes culturas.

Em outras culturas e sociedades, e ideia de infância pode não existir, ou


ser formulada de outros modos. O que é ser criança, ou quando acaba a
infância, pode ser pensado de maneira muito diversa em diferentes
contextos socioculturais, e uma antropologia da criança deve ser capaz
de apreender essas diferenças (COHEN, 2005, p. 22).

Em suma, a Sociologia da Infância, ao pensar analiticamente a categoria Infância,


tem se pautado num olhar compartilhado também, e principalmente, pela história e pela
antropologia. Isso porque não se pode perder de vista a noção que tal conceito não possui
concepção única. Num mesmo período, mas em diferentes sociedades, ou mesmo em
diferentes culturas numa mesma sociedade, pode-se ter percepções muito diferentes do
que é a infância.
Uma das possíveis análises para se compreender as diferentes concepções sociais
de infância passa por pensar que ela está inserida numa rede de estruturas, as quais
possuem influências umas nas outras, ou seja, a infância é uma categoria na estrutura social:
uma categoria geracional (QVORTRUP, 2010). Sarmento (2005), reflete essa ideia da
seguinte maneira:

A infância é historicamente construída, a partir de um processo de longa


duração que lhe atribuiu um estatuto social e que elaborou as bases
ideológicas, normativas e referenciais do seu lugar na sociedade. Esse
processo, para além de tenso e internamente contraditório, não se
esgotou. É continuamente actualizado na prática social, nas interacções
entre crianças e nas interacções entre crianças e adultos. Fazem parte do
processo as variações demográficas, as relações económicas e os seus
impactos diferenciados nos diferentes grupos etários e as políticas
públicas, tanto quanto os dispositivos simbólicos, as práticas sociais e os
estilos de vida de crianças e de adultos. A geração da infância está, por

1534
consequência, num processo contínuo de mudança, não apenas pela
entrada e saída dos seus actores concretos, mas por efeito conjugado das
acções internas e externas dos factores que a constroem e das dimensões
de que se compõe (SARMENTO, 2005, p. 365).

Na medida em que mudanças sócio históricas se alteram, elas modificam também


a concepção de infância; tal mudança, também implica em alteração em outras áreas,
como, por exemplo, na concepção sociojúridica e, por conseguinte, nas políticas destinadas
às crianças. Ou seja, pensar a infância enquanto parte integrante da sociedade significa
pensar que não existe uma neutralidade na concepção jurídica sobre ela, pois esta
relaciona-se à concepção social vigente. Mostra-se, portanto, de fundamental importância
que a sociologia busque compreender a concepção de infância refletida nas leis.
É sobre essa temática que o presente artigo pretende refletir. Para tanto, a seguir
será abordado as concepções sociojúridicas de infância a partir das reflexões críticas da
Sociologia da Infância, para, subsequentemente, especificar a construção de infância
refletida nas políticas públicas brasileiras. Assim, a metodologia utilizada constitui-se de
análise bibliográfica e documental; este último referindo-se especificamente às leis nº
13.257/2016 (Marco Legal da Primeira Infância), e nº 8.069/1990 (Estatuto da Criança e
do Adolescente).

A INFÂNCIA ENQUANTO CATEGORIA SOCIOJURÍDICA

Sarmento (2005) é um autor problematiza a subjugação da infância na ordem das


leis. Segundo ele, existe um “princípio de negatividade”, que vê a criança como o “menor”,
que precisa de intervenção, ou, como revela a própria etimologia das palavras a ela
relacionada: é o aluno, sem luz; é a infância, em latim infanti, que significa incapaz de falar.
Na área jurídica, tal princípio pode ser observado a partir do prefixo de negação no
termo a que elas se destina: “inimputáveis”; ou, de maneira mais substancial, pelas
interdições sociais impostas às crianças (não podem votar, não podem trabalhar, etc.).
Sarmento (2005), contudo, ressalta, que não está em questão a abolição total desses
elementos, que foram conquistas trazidas pelos avanços civilizatórios, mas sim a
compreensão dos efeitos simbólicos na conceituação e representação sóciojurídica da
infância. Para o autor, essa representação pelo princípio da negatividade, reflete na
elaboração de políticas públicas para a infância.

1535
Quanto a essa negatividade, Abramowicz e Rodrigues (2014) a ponderam em
termos de subalternidade, tomando por base o conceito utilizado por Spivak (2014) —
aquele cuja voz não é escutada. Para Spivak o discurso é uma prática, uma ação, e a
subalternidade é justamente um estado de silenciamento. Para as Abramowicz e Rodrigues,
isso se deve a uma lógica adulta (“adultocêntrica”) de pensar, na qual as crianças são vistas
em comparação ao grupo dominante, os adultos. Por não possuir muitas das características
destes, elas acabam sendo representadas pelo viés da falta. O argumento das autoras segue
válido ao se refletir sobre as políticas públicas, pois ressaltam não o que as crianças podem,
mas o que precisam.

Há uma negatividade constituinte da infância, que, em larga medida,


sumariza esse processo de distinção, separação e exclusão do mundo
social. A própria etimologia encarrega-se de estabelecer essa
negatividade: infância é a idade do não-falante, o que transporta
simbolicamente o lugar do detentor do discurso inarticulado,
desarranjado ou ilegítimo; o aluno é o sem-luz; criança é quem está em
processo de criação, de dependência, de trânsito para um outro. Como
consequência, as crianças têm sido sobretudo linguística e juridicamente
sinalizadas pelo prefixo de negação (são inimputáveis; juridicamente
incompetentes) e pelas interdições sociais (não votar, não eleger nem ser
eleitos, não se casar nem constituir família, não trabalhar nem exercer
uma actividade económica, não conduzir, não consumir bebidas
alcoolócicas etc.). Certamente que estas interdições se sustentam numa
prática de protecção, constituem, quase todas elas, avanços civilizatórios
e não está em causa a sua radical abolição. Apenas se sublinha, aqui, um
efeito simbólico de conceptualização e representação sóciojurídica da
infância pela determinação dos factores de exclusão e não,
prioritariamente, pelas características distintivas ou por efectivos direitos
participativos: em última análise, a negatividade constitutiva da infância
exprime-se na ideia da menoridade: criança é o que não pode nem sabe
defender-se, o que não pensa adequadamente (e, por isso, necessita de
encontrar quem o submeta a processos de instrução), o que não tem
valores morais (e, por isso, carece de ser disciplinado e conduzido
moralmente. (SARMENTO, 2005, p. 368).

Assim, a dimensão mais privilegiada nas políticas públicas destinadas à infância é a


da intervenção — para provisão e proteção. A infância, uma construção social, é produzida
de diversas maneiras, em especial pelas normatizações jurídicas (ABRAMOWICZ;
RODRIGUES, 2014). Tal construção, todavia, estabelece um ideal de infância, que acaba
por agir como um dispositivo de poder, nos termos de Foucault (1977), que determina e
modela a criança. Por isso, exemplificam as autoras, a criança pobre é vista como sem
infância.

1536
Nessa perspectiva, Sarmento e Pinto (1997) afirmam que os direitos das crianças
são compostos por “três p”: proteção, provisão e participação. O primeiro é referente à
luta contra os maus tratos, violência, contra o trabalho infantil, etc.; o segundo, à garantia
de elementos essenciais, como alimentação, saúde, educação; o último, à possibilidade de
decisão sobre questões que tocam às suas vidas. Entre esses três, é este último que vem
sendo mais renegado como fundamental ao direito da criança, devido justamente à
concepção e representação pelo viés da negatividade da infância.
Esta dimensão parece ser menosprezada pela vulnerabilidade que Mesquita e
Sierra (2006) afirmam provir de características subjetivas das crianças. Essas autoras
explicam que como atores sociais as crianças participam diferentemente dos contextos
sociais e resistirem a eles, o que pode torná-las suscetíveis a riscos específicos. Assim, elas
elencam uma série de fatores de vulnerabilidades, entre os quais estão os riscos “inerentes
à dinâmica familiar”, o lugar de moradia, a saúde, os riscos do trabalho infantil e os riscos
“inerentes à própria criança ou adolescente” (MESQUITA; SIERRA, 2006, p. 152).
Quanto ao último fator, as autoras, relembrando a teoria de Perrenoud (1999),
afirmam que nele está em questão a “competência”, ou seja, a capacidade de mobilizar as
faculdades cognitivas para enfrentar eficientemente e com pertinência as situações socais.
No sentido de conseguir enfrentar tal fragilidade, três competências seriam imprescindíveis,
pois levariam à aquisição de autonomia: a competência social, a emocional e a cognitiva. A
primeira teria relação com o comportamento em público; a segunda com o saber lidar com
as emoções; e a última seria “a capacidade intelectual de saber fazer uso do conhecimento”
(MESQUITA; SIERRA, 2006, p. 153). Para Mesquita e Sierra (2006), “estas competências
envolvem o domínio de práticas sociais que podem ser reproduzidas nos diferentes
ambientes sociais” (p.152); no entanto, para desenvolvê-las, as condições de vida são
imprescindíveis. Dessa forma, para as autoras, as políticas públicas, embasadas nas noções
sobre vulnerabilidades, devem ter o objetivo de propiciar condições adequadas ao bem-
estar das crianças, não devendo priorizar somente a renda das famílias, mas também a
relação entre seus membros.
Para Sarmento e Pinto (1997), a participação da criança é alvo de controvérsia em
razão de um pensamento paternalista predominante, o qual reafirma a necessidade do
direito de proteção e provisão, baseado na crença da imaturidade da criança, num apego a
essas vulnerabilidades inerentes às crianças. O que esse paternalismo não permite perceber
é que a proteção e provisão, por vezes, diminui o desenvolvimento das competências para
adquirir autonomia e, portanto, para superar essa fragilidade; uma vez que nega o direito

1537
de participação e apenas reitera a necessidade de cuidados sociais específicos. Isso reflete
a situação de subalternidade da criança, na qual se constata a negação seu potencial de ação:

Esta perspectiva [paternalista] [...] retira às crianças o estatuto de actores


sociais, destinando-lhe a função exclusiva de destinatários das medidas
protectoras dos adultos, inerentemente "sábios, racionais e maduros". [...]
Com efeito, o que está em causa na controvérsia sobre a natureza dos
direitos das crianças é o juízo sobre a infância como categoria social
constituída por actores sociais de pleno direito, ainda que com
características específicas, considerando a sua idade, ou, ao invés, como
destinatários apenas de cuidados sociais específicos. A primeira
concepção implica uma interpretação holística dos direitos, no quadro
da qual – ao contrário da segunda – não apenas é erróneo, como pode
ser perverso, o centramento dos direitos da criança na protecção e
(mesmo) na provisão de meios essenciais de crescimento, sem que se
reconheça às crianças o estatuto de actores sociais e se lhes atribua de
facto o direito à participação social e à partilha da decisão nos seus
mundos de vida (SARMENTO; PINTO, 1997, p. 5).

Para garantir o direito à participação, é preciso que se leve em conta tal


vulnerabilidade, que provém de características das crianças, mas que se evidencia na
relação com o grupo geracional dominante: os adultos. Logo, essa vulnerabilidade revela-
se também uma propriedade da interação no convívio social. A dimensão da participação
exigiria das instituições que tradicionalmente se ocupam das crianças a percepção de que,
apesar das competências para adquirir autonomia ainda estarem em construção nesses
sujeitos, tal condição não gera o impedimento de dar credibilidade ao pensamento e às
vontades das crianças. Ao contrário, essa seria justamente uma forma de enfrentar tal
vulnerabilidade: é um exercício de aperfeiçoamento das competências social, emocional e
cognitiva das crianças, imprescindíveis para se adquirir autonomia — condição justamente
tida como correlativa à participação.
Nessa lógica reflexiva, Mesquita e Sierra (2006) argumentam que, ao se relacionar
vulnerabilidade e direitos para as crianças, a ideia central não é a de evidenciar a fragilidade
ou a dependência; mas, a de “criar condições para sua superação com base no exercício
de uma cidadania especial, que compreende uma concepção mais complexa de bem-estar”
(p. 154). As autoras apontam que “[...] se é na interação que eles podem correr riscos, é na
sociedade mesma que eles podem encontrar proteção, já que existe a alternativa de que
um outro seja testemunha de alguma violação” (p. 151). A infância se torna, então, não só
uma problemática referente à família, mas também ao Estado e à sociedade em geral, sendo
que, para garantir seu bem-estar, é necessário um comprometimento geral.

1538
A INFÂNCIA NAS POLÍTICAS BRASILEIRAS

Quanto à temática especificamente no Brasil, alguns autores já abordaram as


relações entre infância e políticas públicas no país, como Passeti (2007), Rizzini (2011) e
Moruzzi e Tebet (2010). Todos privilegiam um entendimento histórico e social, na busca
em analisar como as concepções de infância e as políticas públicas foram sendo
transformadas no decorrer dos acontecimentos históricos. A diferença consiste no fato de
Moruzzi e Tebet (2010) terem como foco central as instituições de educação, enquanto
Rizzini (2011) busca o significado social dado à infância na passagem do regime
monárquico para o republicano, e Passetti (2007) abarca um período maior, que vai desde
o início da Republica até a década de 1990, quando foi instituído o ECA.
Em geral, os autores destacam que a criança passa a ser vista como uma questão do
Estado a partir do final do século XIX, com a era industrial capitalista. Antes, era vista
como uma questão particular e familiar, que ficava restrita à família e à Igreja (RIZZINI,
2011). Nesse sentido, segundo Moruzzi e Tebet (2010), a primeira instituição brasileira
destinada às crianças foi a Roda dos Expostos, uma instituição total776, que, já existente na
Europa, chegou ao país por volta de 1726. As rodas consistiam em um compartimento
situado nas paredes externas das Santas Casas de Misericórdia, onde a criança abandonada
era colocada e acolhida pela irmandade sem revelar a identidade da pessoa que a
abandonava.
Todavia, junto à Proclamação da República surgem novas ideias de nação, nas quais
a criança passa a ser vista como chave para o futuro. Nesse contexto encontram-se
acontecimentos chaves, tais como a Lei do Ventre Livre, a Abolição da Escravatura e o
ingresso de mulheres no mercado de trabalho (MORUZZI; TEBET, 2010). Com a Lei do
Ventre Livre, em 1871, há um significativo aumento do número de crianças deixadas nas
Rodas dos Expostos. Mesmo com a Abolição da Escravatura, em 1888, as mães, antes
escravas, encontraram dificuldades no cuidado de seus filhos, pois agora, com o trabalho
livre, além de ganharem pouco, não tinham onde os deixar durante a jornada de trabalho.
Ainda segundo as autoras, com a industrialização muitas mulheres ingressaram no mercado
de trabalho, o que contribui para um aumento no número de abandonos. Se as crianças

776
Segundo Goffman "uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde
um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por
considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (1974, p 11).
1539
não eram abandonadas, ficavam nas ruas sem cuidados específicos, o que era visto como
um berço para a marginalidade. Assim, surge a necessidade de instituições parciais
assistencialistas voltadas às crianças, cujo o objetivo era diminuir o número de abandonos
e evitar a marginalização dessas crianças.
Outro fato de importância no tocante aos direitos das crianças foi a greve geral de
1917 (PASSETTI, 2007). Tal acontecimento se deu no contexto de imigração dos italianos
e espanhóis ao Brasil, já que estes, primeiramente vindos para trabalhar na agricultura,
indignam-se com as condições de trabalho no campo e mudam para a cidade. Todavia,
também nas fábricas esses imigrantes encontram uma situação precária, o que, juntamente
com as ideias anarquistas que traziam na bagagem, acabou por motivar uma série de greves
por direitos trabalhistas, culminando em uma greve geral. De acordo com Passetti (2007),
junto às várias denúncias feitas pelos grevistas estava a da exploração do trabalho infantil,
realidade que acaba sendo veiculada por jornais de esquerda da época, fazendo o assunto
ganhar grande repercussão. Em reação, o Estado age repressivamente sobre os grevistas;
entretanto, passa a elaborar políticas sociais voltadas às crianças.
Assim, é a partir dessa conjuntura que o Estado passa a ver a criança como um
problema social. Para Rizzini (2011), o Estado descobre a infância com potencial para ser
modelada. Todavia, uma dualidade permeava a concepção de infância: por um lado ela
era tida pelo viés da esperança nacional, “o futuro da Nação”, mas por outro, se perdia a
ideia de inocência da criança, vendo-a também como delinquente, ou, como afirma a
autora, “em perigo de o ser”. Assim, cria-se um aparato médico-jurídico-assistencial cujo
objetivo estava envolto nas ideias de prevenção, educação, recuperação e repressão, o que
representava, segundo Rizzini (2011), uma postura salvacionista.
É também nesse sentido, que Moruzzi e Tebet (2010) denunciam o forte caráter
moralizador das instituições infantis, sobretudo aquelas voltadas às crianças pobres. Educar
era um meio de formar um “homem civilizado”, o que refletia as ideias colonizadoras da
época: “Esse era o modelo de educação proposto pela medicina-higienista, a fim de
controlar a população carente — entenda-se os negros e pobres — e proteger a honra, a paz
e a integridade da elite” (MORUZZI; TEBET, 2010, p. 27).
Em 1927 é criado o primeiro Código de Menores (PASSETTI, 2007), no qual o
Estado estabelece por lei a imputabilidade dos menores de 18 anos, proíbe a Roda dos
Expostos, e passa a recorrer à internação de abandonados e delinquentes; o que, para o
autor, significou escolher “educar pelo medo”. Essa preocupação com a educação e o
controle evidenciada por Passetti (2007) é ressaltada com a constituição de 1934, na qual

1540
o artigo 149 estabelece o direito de todos à educação, incumbindo à família e ao Estado
por sua responsabilidade.
No Estado Novo, há uma preocupação com a “governamentalização”, orientada
por um paternalismo assistencial. Nesse período, no Rio de Janeiro, é criado o Serviço de
Assistência a Menores (SAM), com o objetivo de organizar a assistência aos menores
desamparados e delinquentes. Com o advento da Ditadura Militar, a Fundação Nacional
do Bem-Estar do Menor (Funabem) é criada. Junto a ela surgem as Fundações Estaduais
do Bem-Estar do Menor (Febems), com o intuito de institucionalizar para reverter a
“cultura da violência”, mas que, segundo Passetti (2007), acabam se mostrando como um
depósito de crianças marginalizadas. Em 1979 um novo Código de Menores é editado, no
qual ressalta-se o processo de fortalecimento do assistencialismo aos menores baseado na
política de internação.
Em suma, percebe-se que, na passagem do século XIX para o XX, com a era
industrial capitalista, a concepção jurídica de infância é de pouco em pouco alterada, pois
a criança passa a ser uma questão social, competente ao Estado (RIZZINI, 2011). No
entanto, a proteção que o Estado garantia era em muito pautada na ideia de menoridade,
fruto da associação entre pobreza e delinquência (PASSETTI, 2007; RIZZINI, 2011),
priorizando o cuidado a partir de internações. Esse princípio orientador do olhar sobre a
criança só será questionado no Brasil a partir do fim da Ditadura Militar.
Com a “reabertura democrática”, uma série de movimentos sociais ganham força,
levando, inclusive, à elaboração da Constituição Federal de 1988. Nesse fluxo, em 1990, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é decretado lei federal (8.069/1990). Fonseca
(2004) sugere que o ECA não é fruto somente de uma conjuntura nacional e relembra que
mundialmente o tema da infância gerava importantes debates; exemplo máximo disso é a
Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas, de 1989, que, em pouco tempo,
foi pactuada por 191 países.

Não apenas era um assunto de grande importância, como a maneira de


lidar com os problemas do bem-estar da criança seguia uma tendência
igualmente global, erigindo o judiciário como o instrumento principal de
reforma social (FONSECA, 2004, p. 2).

O ECA foi considerado um dos maiores marcos nacionais do direito das crianças
e é, ainda hoje, a base orientadora dos direitos das crianças brasileiras.

1541
Recomendado como um documento “digno do Primeiro Mundo”, e até
“mais avançado”, em alguns aspectos, do que os direitos da criança da
Convenção das Nações Unidas, o ECA foi visto por muitos ativistas
como um marco histórico que mudaria o destino das crianças brasileiras
(FONSECA, 2004, p. 2).

O fundamento do ECA é estabelecer as normas para a “proteção integral à criança


e ao adolescente”, conforme estabelecido logo no Artigo 1º. Assim, o estatuto decreta que
os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes devem ser assegurados tanto pelo
poder público como pela sociedade em geral. Direitos esses que tangenciam múltiplos
aspectos: “direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária” (artigo 4º).
Outra importante mudança trazida pela lei foi a substituição do termo “menor” –
que, estigmatizado, “reduzia a criança pobre a uma categoria jurídica penal” (FONSECA;
CARDARELLO, 1999, p. 10) – para o “criança e adolescente”. O estatuto também pauta
a diferenciação entre a criança abandonada e autora de ato infracional (FONSECA;
CARDARELLO, 1999), definições conceituais que antes apareciam concatenadas. Por
fim, vale ressaltar também a reorientação na busca de garantir os direitos das crianças
através da filosofia de proteção integral, ao invés de controlá-las pela política tutelar. Assim,
segundo Passetti (2007), passa a ser priorizada a assistência em âmbito aberto, enquanto a
internação só é recomendada em últimos casos. No entanto, Fonseca (2004) ressalta – sem
negar a importância do estatuto – que é sempre necessário manter o olhar crítico que possa
aperfeiçoá-lo:

O ECA (assim como qualquer outro documento de direitos humanos)


não deve ser tratado como Bíblia. Ao pensar esse documento, antes,
como produto de certas pessoas em certa época, abrimos o caminho para
uma avaliação honesta de seus resultados -- (o que implica em) uma
análise aguda da realidade brasileira -- e a possibilidade de reformulações
que propiciam a realização dos princípios básicos de justiça no contexto
específico em que vivemos (FONSECA, 2004, p 8).

A autora repensa o ECA a partir do exemplo do costume brasileiro da prática do


“filho de criação”, já que muitas crianças são criadas por um vizinho, pela madrinha, pela
avó, entre outros. Dada a sua existência e considerando que as leis em princípio deveriam
contemplar a realidade local era de se esperar que o assunto fosse abordado pelo estatuto.
Todavia, não há qualquer menção ao termo “família de criação”; a única questão

1542
contemplada, da qual se pode depreender alguma relação a isso, é a da adoção. Evidencia-
se, portanto, que nem sempre as práticas sociais são representadas e levadas em
consideração nas leis, afirmando a existência do que chamou de “cegueira jurídica”, que
também acometeria o ECA. Tal “cegueira” é ainda mais recorrente quando a lei em
questão aborda princípios “universais”, como é o caso, uma vez que há dificuldades em se
instituir princípios universais respeitando concomitantemente as diversas diferenças
culturais (FONSECA, 2004).
Outra singular análise que Fonseca e Cardarello (1999) fazem refere-se a dois
princípios do ECA que por vezes são contraditórios777: o estabelecido no artigo nº 19 — de
que a criança/adolescente têm direito a ser criado e educado em sua família — e o nº4 —
que, como dito anteriormente, estabelece o direito ao acesso à estruturas consideradas
essenciais, como à saúde, ao esporte e à alimentação. O questionamento que emerge do
confronto desses dois ideais perpassa pela família em situação socioeconômica
desfavorecida e pela família negligente: de que maneira é possível conciliar e avaliar o caso
da criança cuja família não tem condições de garantir os direitos que o ECA determina?
De acordo com a lei federal (8.069/1990), a família estaria sendo negligente; entretanto, a
criança tem o direito de estar com ela, e não é por vontade própria que seus familiares não
lhe fornecem as condições de vida perspectivadas para as crianças.

A passagem do “problema sócio-econômico” para a “negligência” revela


uma mudança de enfoque na visão da infância pobre e da sua família no
Brasil. Se em 1985 considerava-se que motivos como “mendicância”,
“maus tratos”, “desintegração familiar” e “doenças do menor” eram
decorrência direta de “problemas sócio-econômicos”, hoje, mais do que
nunca, a família pobre, e não uma questão estrutural, é culpada pela
situação em que se encontram seus filhos. É ela que é “negligente”,
maltrata as crianças, as faz mendigar, não lhes proporciona boas
condições de saúde, enfim, “não se organiza” (FONSECA;
CARDARELLO, 1999, p. 23).

O que a autora denuncia é a culpabilização da família pobre, já que esta acaba sendo
mais vulnerável a ser reprimida; abrandando o papel do poder público e da sociedade em
geral sobre a situação na qual a criança — e a família — se encontra.
Por fim, vale destacar o recente “Marco Legal da Primeira Infância”. A Lei
nº13.257, ou “Marco Legal da Primeira Infância”, tem como ponto de origem dentro dos

777
Isso ocorre em casos em que a família da criança é pobre e não pode garantir o seu acesso aos direitos
essenciais.

1543
limites estatais o ano de 2011, quando foi instaurada a Frente Parlamentar da Primeira
Infância. Com mais de 200 parlamentares, e junto à Rede Nacional Primeira Infância (rede
de articulação de diversas organizações sociais da sociedade civil, governamental e do setor
privado que atuam em prol das crianças), a Frente promove debates acerca dos direitos das
crianças.778 Em Dezembro de 2013, como resultado da iniciativa, foi apresentado à Câmara
dos Deputados o Projeto de Lei da Primeira Infância, PL 6.998/2013, tendo como relator
o deputado federal Osmar Terra; em 2015, como PL 14/2015, o projeto foi aprovado no
Senado; por fim, em 13 de Março de 2016, a referida lei foi sancionada como aquela de
nº13.257.
Trata-se de regulamentação contendo quarenta e três artigos e que promoveu
alteração em cinco leis anteriormente decretadas: (1) a Lei nº 8.069 (Estatuto da Criança e
do Adolescente); (2) o Decreto-Lei nº 3.689 (Código de Processo Penal); (3) o Decreto-
Lei nº 5.452 (Consolidação das Leis do Trabalho); (4) a Lei nº 11.770 (Empresa Cidadã);
(5) e a Lei nº 12.662 (Declaração de Nascido Vivo). O Marco ressalta como prioridade
absoluta do Estado a garantia dos direitos das crianças, dos adolescentes e dos jovens —em
consonância ao ECA — e tem por fundamento estabelecer os princípios e diretrizes das
políticas públicas voltadas às crianças desde o período gestacional até os seis anos de idade.
Segundo artigo 4º, tais políticas devem estar centradas nos seguintes princípios:

I - atender ao interesse superior da criança e à sua condição de sujeito


de direitos e de cidadã; II - incluir a participação da criança na definição
das ações que lhe digam respeito, em conformidade com suas
características etárias e de desenvolvimento; III - respeitar a
individualidade e os ritmos de desenvolvimento das crianças e valorizar
a diversidade da infância brasileira, assim como as diferenças entre as
crianças em seus contextos sociais e culturais; IV - reduzir as
desigualdades no acesso aos bens e serviços que atendam aos direitos da
criança na primeira infância, priorizando o investimento público na
promoção da justiça social, da equidade e da inclusão sem discriminação
da criança; V - articular as dimensões ética, humanista e política da
criança cidadã com as evidências científicas e a prática profissional no
atendimento da primeira infância; VI - adotar abordagem participativa,
envolvendo a sociedade, por meio de suas organizações representativas,
os profissionais, os pais e as crianças, no aprimoramento da qualidade
das ações e na garantia da oferta dos serviços; VII - articular as ações
setoriais com vistas ao atendimento integral e integrado; VIII -
descentralizar as ações entre os entes da Federação; IX - promover a
formação da cultura de proteção e promoção da criança, com apoio dos
meios de comunicação social (BRASIL, 2016).

778
http://marcolegalprimeirainfancia.com.br/video/introducao/ <<acessado em 23 de outubro de 2016>>

1544
Assim, a partir da ideia de especificidade da primeira infância, a Lei aborda a
criança a partir de uma visão holística. Ou seja, destaca a necessidade de políticas
intersetoriais de atendimento integral e integrado com a criança, que respeitem a
individualidade e valorizem as diversidades, prezando a participação da criança e da
sociedade, e que atuem no combate às desigualdades e às publicidades mercadológicas.
Tal lei aborda diversos fatores que influenciam a vida da criança, como o atendimento
àqueles que dela cuidam:

O Marco Legal reflete em diversas áreas que envolve a criança desde a


concepção até os seis anos de idade, mas o mais importante são as ações
que estão voltadas para atender aqueles que cercam esta criança até seus
seis anos de idade, através do atendimento às gestantes e às famílias com
crianças na primeira infância (SANMARTIM; BITENCOURT, 2016,
p. 11).

Um exemplo é ampliação de cinco para vinte dias da licença paternidade,


ressaltando a importância da figura paterna e estabelecendo a corresponsabilidade do pai
e da mãe no cuidado da criança. Além desse cuidado com os vínculos afetivos, entre outros
aspectos significativos, o Marco Legal da Primeira Infância dá importância ao ato de
brincar, estabelecendo ser um direito da criança ter acesso a espaços lúdicos e propícios
para tal, e garante a qualificação dos profissionais que trabalham com infância.
Assim, por abranger significativas dimensões que perpassam a vida na primeira
infância, dando importância à pequena criança enquanto sujeito de direitos, a referida lei
foi recebida positivamente por várias entidades que atuam na área, como a Rede Nacional
Primeira Infância779, a Pastoral da Criança780, a Childhood Brasil781, o Radar da Primeira
Infância782, e a São Paulo Carinhosa783; sendo que esta última chegou a afirmar constituir-se
o Marco como a regulamentação jurídica mais avançada do mundo sobre políticas para a
primeira infância.

779
http://primeirainfancia.org.br/rnpi-celebra-a-sancao-do-marco-legal-da-primeira-infancia/
780
https://www.pastoraldacrianca.org.br/noticias2/3906-marco-legal-da-primeira-infancia-passa-a-valer-em-
todo-o-pais
781
http://www.childhood.org.br/o-que-e-o-marco-legal-da-primeira-infancia
782
https://www.radardaprimeirainfancia.org.br/lei-13-257-marco-legal-da-primeira-infancia-texto-completo/
783
http://www.saopaulocarinhosa.prefeitura.sp.gov.br/index.php/o-marco-legal-da-primeira-infancia-e-o-plano-
nacional-pela-primeira-infancia/ 1545
CONCLUSÃO

Entender a infância como uma construção social, que se altera historicamente,


significa, concomitantemente, entender que as leis a ela destinadas estão inseridas num
contexto e que, portanto, também são modificadas com o desenrolar das mudanças sociais.
As referências anteriormente citadas mostram que a partir da análise das leis pode-se
compreender as concepções jurídicas de infância da época vigente, sendo que estas se
alteram conforme as transformações sociais. Ou seja, evidencia-se que as leis representam
uma concepção social de infância de sua época.
Em síntese, a bibliografia tem ponderado os reflexos de uma visão paternalista,
pautada no “princípio da negatividade”, na concepção jurídica de infância. No Brasil essa
é uma realidade que preponderou durante a maior parte de sua história. Exemplifica-se
isso com o fato do termo “menor” só ter sido alterado com o ECA. Também as políticas
públicas em sua dimensão punitiva, em preocupação com a “criança problema”, se
mostraram uma constante nas políticas públicas que abordavam a temática da infância.
Assim, vale questionar a invenção da lógica que definiu a “criança problema”, vista como
ameaça à ordem social: na realidade, ela é o fruto, e não a origem, de problemas sociais —
uma definição social que mascara a desigualdade invertendo a lógica do processo (LOPES,
2003). Essa lógica nos adverte ainda para a seletividade das políticas públicas: em sua
prática, por vezes, acabam reiterando as desigualdades sociais, que se refletem nas
diferentes infâncias que as crianças podem atravessar a depender de seus contextos
socioeconômicos.
Mais recentemente as políticas públicas demonstram que a concepção sociojurídica
de infância vem sendo modificada, principalmente a partir do ECA. A política de proteção
integral é simbólica dessa alteração, uma vez que passa a ressaltar a criança como sujeito
de direitos, respeitando a especificidade geracional. Assim, a ideia do estatuto, da criança
como titular de direitos tem evidente alteração em relação ao Código de Menores de 1979,
que priorizava a políticas paliativas, mais voltadas a questão de segurança social do que do
direito da criança em si.
Também o Marco Legal da Primeira Infância traz contribuições significativas, uma
vez que ressalta a importância da participação das próprias crianças na elaboração e
avaliação das políticas públicas a elas destinas. Isso se mostra uma alteração relevante à luz
do que Sarmento e Pinto (1997) discorreram: entre proteção, provisão e participação, este
último é o aspecto do direito das crianças que vem sendo mais renegado. Isso reflete uma

1546
alteração na concepção de infância, já que a participação implica no entendimento de que
as crianças são sujeitos ativos e que, dentro de sua especificidade, devem ser ouvidas.
Em suma, como o presente artigo pode-se compreender o discurso jurídico como
reprodutor e construtor de significações sobre o que se entende como infância.
Historicamente esses direitos estiveram pautados num olhar marcado pela subalternidade
da criança em relação ao adulto. Todavia, as políticas públicas vêm mostrando que há um
esforço nas redefinições dos direitos da infância em acordo ao novo entendimento sobre a
criança como sujeito de direitos. Isso, é claro, não pode negar um olhar crítico sobre como
essas políticas públicas vem sendo feitas; afinal, vimos que existem valores que são
gradualmente construídos e modificados por trás delas. Sem esse olhar crítico, torna-se
impossível perceber os defeitos dessas políticas, assim como, portanto, conseguir
aperfeiçoá-las. Se como ponto central está a criança e o seu bem-estar, não se pode furtar
esforços na melhoria da definição sociojurídica de infância e, consequentemente, das
políticas públicas a ela destinada.

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1548
QUEM MORRE E QUEM MATA: PERFIL E REPRESENTAÇÃO DO
CRIMES DE FEMINICÍDIO784

Ana Julieta Parente BALOG 785

Resumo: A tipificação do feminicídio como crime hediondo no Brasil, em 2016, deu-se após um
longo e permanente período de luta pelos direitos das mulheres e da erradicação da violência
doméstica e familiar da qual elas são as principais vítimas. A mídia tem desempenhado um
importante papel em prol desses direitos e na problematização dessa modalidade de violência, ao
tempo que contribui contribuído para minimizar a gravidade dos fatos, quer quando trata a
violência contra a mulher como algo localizado e pontual ou quando a normaliza. O presente
trabalho tem como objetivo entender o perfil da vítima e do agressor e as representações veiculadas
nos jornais cearenses acerca do assassinato de mulheres, o feminicídio, a partir da análise das
notícias veiculadas. Para tanto, realizou-se uma análise documental: foram selecionadas as notícias
sobre esse tipo de homicídio impressas nos jornais de maior circulação do estado, O Povo e Diário
do Nordeste, publicados entre março e setembro de 2015, totalizando 428 periódicos. Visando
caracterizar a forma como as notícias são veiculadas foi feita uma análise de conteúdo temática, na
qual as mesmas foram agrupadas a partir dos seguintes parâmetros: idade, tipo de relacionamento,
existência de filhos, local do crime, horário do crime etc. Posteriormente, foi realizada análise com
base nos parâmetros estabelecidos por Bardin (1977): pré-análise, exploração do material e
tratamento dos resultados e interpretações. Foi utilizando também a teoria das representações
sociais de Moscovici (2005) e Jodelet (2001). Assim, após sistematizar e analisar as representações
implícitas nas notícias, concluiu-se que elas normalizam o comportamento dos agressores e não
problematizam os casos veiculados; os feminicídios são representados como crimes excepcionais,
realizado por homens covardes, negando a realidade desta violência, que é praticada por homens
comuns, moldados dentro de uma cultura machista. Destarte, ao serem impressas dessa forma, tais
notícias, corroboram a perpetuação da violência contra a mulher.

Palavras-chave: Representação. Mídia. Notícia. Feminicídio.

INTRODUÇÃO

A violência é o meio mais comumente utilizado para legitimar a força e o poder ao


longo da história da humanidade. Trata-se de compelir alguém seja pela força física,
psicológica ou intelectual, a fazer algo contra sua vontade; “constranger, incomodar, tolher
a liberdade de alguém; impedir outra pessoa de manifestar sua vontade, sob pena de ser
gravemente ameaçada, espancada ou até mesmo morta” (BASTOS, 2011. p. 52). Este
fenômeno acomete a homens e mulher de forma diferente. Enquanto os homens são as
principais vítimas da violência urbana, as mulheres são da doméstica, aquela que ocorre no
âmbito privado.

784
Este trabalho é parte dos resultados obtidos na minha monografia, apresentada em 2016 à Universidade
Estadual do Ceará.
785
Aluna do Mestrado em Ciências Sociais da UNESP/FCLAr. Bolsista CAPES. E-mail:
julietaparente@yahoo.com.br
1549
As mulheres, em sua maioria, são vítimas da violência de gênero, que é um tipo de
violência orientada pelo gênero da vítima, mas não as únicas. Este tipo de violência acomete
tanto mulheres, como homossexuais, transexuais e travestis. A violência contra a mulher,
por sua vez, é apenas uma das facetas da violência de gênero e, apesar de serem tratadas
como se fossem a mesma coisa e dos debates que envolvem sua definição, elas não são a
mesma coisa.
Segundo Saffioti (1995), a violência de gênero é uma categoria mais geral, que
abrange a violência doméstica e a violência intrafamiliar. Ela pode ser perpetrada tanto pelo
homem contra a mulher, como pode ocorrer no sentido contrário ou até mesmo entre
gêneros ou sexos iguais. O que define ser violência de gênero é a sua motivação pelo gênero
da vítima, e não está relacionada diretamente ao gênero da pessoa agressora. A violência
contra a mulher, por sua vez, afunila percepção a quem essa violência é induzida – a
mulher, no caso –, seja ela perpetrada por homem ou mulher.
Qualquer conduta permissiva ou omissiva, de caráter discriminatório, constituindo
uma agressão, coação ou coerção, que cause morte, dano, constrangimento, limitação,
perda patrimonial ou sofrimento de qualquer natureza, resultante da condição da vítima
ser do sexo feminino (PINTO, 2007) é violência contra a mulher.
Essa violência seria resultado de uma dominação masculina e patriarcal que é
reproduzida tanto por homens como por mulheres.

A ação violenta trata o ser dominado como “objeto” e não como


“sujeito”, o qual é silenciado e se torna dependente e passivo. Nesse
sentido, o ser dominado perde sua autonomia, ou seja, sua liberdade
entendida como “capacidade de autodeterminação para pensar, querer,
sentir e agir” (IZUMINO; SANTOS, 2005, p. 3).

Assim, espera-se que a mulher seja para o outro e não com o outro, concebendo-
as como seres dependentes e desprovidos de autonomia para pensar e agir. Cria-se a ideia
que mulher não tem suas próprias vontades e deve apenas agradar. São definidas como
mãe, filha, irmã e esposa, algo que para os homens acontece ao longo da vida, para elas é
um papel estabelecido do que devem ser hoje e no futuro. Uma mulher que não se casa é
considerada uma mulher fracassada, focando toda sua vida em como ela se relaciona com
os outros e não em como se relaciona consigo mesma. Com isso, um discurso sobre as
mulheres e de como elas devem se comportar enquanto seres do sexo feminino é

1550
produzido e disseminado, separando-as entre “boas” e “más”, as virtuosas e as perdidas.
(FRENCH, 1992).

A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL

O Brasil, por sua vez, figura entre as nações que mais violentam e matam mulheres
no mundo, ocupando o 5º lugar no ranking internacional de homicídios femininos no
mundo com uma alarmante taxa de 4,8 homicídios a cada 100 mil mulheres. É um país
com suas origens fincadas no patriarcalismo, com uma cultura explicitamente misógina,
onde ser mulher é sinônimo de “punição”. Não obstante, uma legislação específica para
este tipo de crime é ainda muito recente, apesar da grande quantidade de casos de violência
contra a mulher.
Problemática também é a forma como esses tipos de abusos são retratados pela
grande mídia, sendo em sua maioria noticiados como “crimes passionais” e raramente
como um assassinato, de fato, em razão do gênero da vítima.
Com uma rápida pesquisa em qualquer site de buscas, utilizando-se dos dizeres
“inconformado com o fim do relacionamento”, encontra-se uma infinidade de casos de
feminicídio, onde é possível confirmar que morrer pelas mãos do ex-companheiro é
noticiado como um ato de paixão ensandecida e não de uma violência em si. Exemplo
disso, também, são as inúmeras novelas que insistem em disseminar a ideia de que quem
ama “cuida”, porém cuida perseguindo e dominando.
Os dados desse tipo de violência ao redor do mundo são alarmantes e vão desde
mulheres faltantes da Ásia, até crimes “em nome da honra” no mundo mulçumano. O
Brasil ocupava até 2012 a sétima posição do ranking de homicídios femininos
(WAISELFISZ, 2012), com uma taxa de 4,4 homicídios a cada 100 mil mulheres.
Atualmente, subiu no ranking internacional e figura a quinta posição (WAISELFISZ, 2015)
entre as nações que mais matam mulheres no mundo, com uma alarmante taxa de 4,8
homicídios a cada 100 mil mulheres. O país só fica atrás de El Salvador, Colômbia,
Guatemala e da Federação Russa e chega a ter uma violência 24 vezes maior do que países
como Dinamarca e Irlanda, tidos como civilizados (WAISELFISZ, 2015).
A nível nacional, o Ceará ocupava, até o ano de 2012, a vigésima segunda posição
com 4,0 homicídios femininos a cada 100 mil mulheres – uma taxa que se assemelhava a
média brasileira. Atualmente, encontra-se na assustadora oitava posição, com 6,2

1551
homicídios femininos a cada 100 mil mulheres786. Entre os municípios com mais de 100
mil habitantes, a nível nacional, a cidade de Senador Pompeu, no Ceará, encontra-se em
quinto lugar, sendo considerada a cidade que mais mata mulheres no estado.
Até o ano de 2012, a capital cearense – Fortaleza – ocupava a décima sexta posição
entre as capitais do país, com uma taxa superior à média nacional, com 5,8 feminicídios a
cada 100 mil mulheres. Contudo, os casos de homicídios femininos aumentarem
substancialmente daquele ano até o de 2015, tornando a capital cearense a quarta mais
violenta do Brasil, com 10,4 assassinatos a cada 100 mil mulheres. Na cidade de Fortaleza
mata-se a mais quase o dobro de mulheres da média nacional, que corresponde a 5,5. É o
Nordeste, aliás, a região em que as taxas de homicídio mais cresceram (79,3%) nos últimos
anos. Salta aos olhos o aumento substancial no número de assassinato de mulheres em
razão do gênero que ocorreram no último ano não só no país, mas, principalmente, no
estado do Ceará e sua capital.

A LEI MARIA DA PENHA E O FEMINICÍDIO

Maria da Penha Maia Fernandes, duas vezes vítima de tentativa de assassinato pelo
marido, Marco, é quem dá nome a lei 11.340; em 2006, quatro anos após a condenação
de Marco pelas duas tentativas de assassinato contra a ex-mulher, após longos anos de luta
por parte de movimentos dos direitos humanos e feminista, a Lei Maria da Penha foi
sancionada, criando-se junto a ela um forte aparato para o combate à violência doméstica
e familiar.
A lei define violência doméstica e familiar contra a mulher como “qualquer ação
ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou
psicológico e dano moral ou patrimonial” e destina-se a proteção de mulheres que sofreram
algum tipo de violência no âmbito privado, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto
(BRASIL, 2006).
Ela também inova em outros aspectos como o reconhecimento das várias
‘orientações’ sexuais que não a heteronormativa – garantindo com isso a proteção da
mulher em qualquer tipo de relação afetiva –, o reconhecimento da violência doméstica e

786
Não obstante a todos os dados apresentados, é preciso ressaltar a necessidade de uma análise mais profunda
no que se refere aos dados obtidos entre os anos de 2003 a 2013, período este de vigência do governo do
PT, onde houveram vários avanços não só no Brasil, mas majoritariamente no nordeste, com a abertura de
hospitais, postos de saúde, programas de saúde etc., que podem dar a falsa impressão de aumento da violência
em algumas regiões, quando na verdade o que pode ter ocorrido é um aumento de notificações devido ao
aumento de meios por onde fazê-las. 1552
familiar contra a mulher como a violação dos direitos humanos e o reconhecimento das
várias formas de violência praticada contra a mulher que não a física, a saber: física,
psicológica, sexual, patrimonial e moral.
Determina ainda medidas que visam a prevenção da violência, por diferentes
meios, seja por meio da integração do Poder Judiciário, do Ministério Público e da
Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, saúde, educação,
trabalho e habitação, pela promoção de estudos e pesquisas para compreender o fenômeno
da violência contra a mulher e, por conseguinte, buscar um meio de evita-lo etc. (BRASIL,
2006)
Estabelece também que atendimento deve ser prestado à vítima caso ela venha a
necessitar de assistência, como a polícia deve atender a mulher agredida, que tipos de
medidas protetivas a vítima tem direito, bem como ao atendimento multidisciplinar nos
juizados. Para tanto, foram criadas as delegacias e juizados de violência doméstica e familiar
contra a mulher, juntamente a articulação desses setores jurídicos a outros órgãos do
governo, do poder judiciário e de setores organizados da sociedade civil.
Não obstante, a luta no enfrentamento a violência contra a mulher continuou em
debate na sociedade brasileira, culminando no reconhecimento de outras formas de
violência, bem como na criação ou aperfeiçoamento de outras leis que coíbam qualquer
tipo de abuso para com as mulheres, a saber a inclusão e tipificação do feminicídio – em 9
de março de 2015 – entre os agravantes do crime de homicídio, outro marco na luta pelo
fim da violência contra a mulher.
A aprovação desta lei deu-se após muita luta por parte do movimento feminista,
que junto a outros movimentos sociais, levaram o judiciário brasileiro a aprovar a lei
13.104/15 (BRASIL, 2015) que inclui e tipifica – como qualificador entre os crimes de
homicídio – o feminicídio no código penal brasileiro. Após quase dez anos da criação da
Lei Maria Penha, que foi um grande marco político aos direitos das mulheres à época, o
feminicídio veio para auxiliar no combate a violência contra a mulher, tornando mais dura
a pena para quem mata mulheres em razão de seu gênero, na maioria das vezes decorrente
de um continuum de violência doméstica e familiar. As mudanças implementadas
alteraram o § 2º-A, e a ele foi acrescentado

[...] como norma explicativa do termo "razões da condição de sexo


feminino", esclarecendo que ocorrerá em duas hipóteses: a) violência
doméstica e familiar; b) menosprezo ou discriminação à condição de
mulher; A lei acrescentou ainda o § 7º ao art. 121 do CP estabelecendo

1553
causas de aumento de pena para o crime de feminicídio. A pena será
aumentada de 1/3 até a metade se for praticado: a) durante a gravidez
ou nos 3 meses posteriores ao parto; b) contra pessoa menor de 14
anos, maior de 60 anos ou com deficiência; c) na presença de
ascendente ou descendente da vítima. Por fim, a lei alterou o art. 1º da
Lei 8072/90 (Lei de crimes hediondos) para incluir a alteração,
deixando claro que o feminicídio é nova modalidade de homicídio
qualificado, entrando, portanto, no rol dos crimes hediondos (BRITO,
2015).

Ou seja, a nova lei torna o homicídio em razão do gênero da vítima um crime


hediondo, fazendo com a pena prevista aumente de 6 anos (podendo chegar a 12 anos)
para até 30 anos ou mais, dependendo das outras qualificadoras presentes no crime.
Vale ressaltar que apesar de extremamente importante para o combate aos
homicídios de mulheres, como uma forma de garantir que o agressor seja responsabilizado
por seus crimes, só a lei não é suficiente para transformar uma cultura que menospreza
mulheres. A construção de uma sociedade igualitária para ambos os sexos se inicia na
educação e perpassa todas as esferas da sociedade e, como previsto na Lei Maria da Penha,
são necessárias ações do estado de promoção da igualdade de gênero em conjunto com a
sociedade civil – o projeto barrado pela bancada evangélica que incluía o ensino sobre
igualdade de gênero nas escolas, por exemplo – para prevenir essas violências e construir
uma sociedade menos desigual.
O feminicídio representa a forma última de um continuum de violências que
podem ocorrem com uma mulher. É a morte em decorrência do seu gênero, ou seja,
porque são mulheres. É a expressão máxima de violência contra a mulher. Por definição,
é “o assassinato misógino de mulheres cometido por homens. Um fenômeno social ligado
ao sistema patriarcal, em que as mulheres estão predispostas a serem assassinadas, seja
porque são mulheres, seja porque não o são da boa maneira” (FRAGOSO, 2002).

Estes crimes são geralmente perpetrados por homens, principalmente


parceiros ou ex-parceiros, e decorrem de situações de abusos no
domicílio, ameaças ou intimidação, violência sexual, ou situações nas
quais a mulher tem menos poder ou menos recursos do que o homem
(GARCIA et al., 2013).

Nesse sentido, pode-se afirmar que os meios de comunicação possuem um poder


importantíssimo na forma como estes crimes são representados e compreendidos pela
sociedade, bem como na promoção de uma sociedade mais igualitária; seja a partir de
discussões em artigos de jornais ou a partir de novelas, a mídia pode transformar inserir e

1554
divulgar temas que visem não só a igualdade de gênero, mas a promoção de uma sociedade
mais justa.

FEMINICÍDIO E MÍDIA

A necessidade por comunicação é tão intrínseca ao homem quanto a sua


alimentação. Ela, a comunicação, é comumente definida como o processo da troca de
experiências para que se torne patrimônio comum, pois modifica a disposição mental das
partes envolvidas e inclui todos os procedimentos por meio dos quais uma mente pode
afetar outra. (ALEXANDRE, 2001). Ela é responsável não só para a comunicação em si,
mas para toda a forma de conhecimento que temos, uma vez que a própria produção de
conhecimento necessita de divulgação – seja por meio da escrita e/ou outros meios – para
chegar a outras pessoas e, com isso, se fortalecer ou não. É a comunicação a responsável
por viabilizar, dar suporte, permitir a produção de conteúdo (formas) (MARCONDES
FILHO, 2005).
A sociedade se constitui por meio da comunicação. Sendo o conteúdo da
comunicação a expressão da vida da sociedade: passado, presente, futuro etc. e o resultado
disto, o compartilhamento de vivências entre as pessoas de todas as gerações. Esse processo
comunicacional possibilita os avanços progressivos da sociedade, sempre em níveis cada
vez mais complexos (GOMES, 2016).
Desta forma, dada a singularidade da pessoa humana, por meio do fenômeno da
cognição, cada indivíduo observa, percebe e reage de uma forma própria e a soma dessa
percepção forma o sentimento coletivo (CRUZ, 2009, p. 22). Todavia, mesmo o fenômeno
da cognição sendo individual, o ser depende do que lhe é informado para formar sua
opinião e a notícia, por vezes não faz o seu papel de informar o leitor da melhor maneira
possível, seja não indo a fundo à sua investigação, ou porque o grupo ao qual está ligada
defende interesses que vão de encontro, ou não, ao que noticia, ao mesmo tempo que
enquanto produto comercial, é produzido para que sua venda seja fácil e rápida, podendo
fazer com que alguns informes sejam mais exagerados do que realmente são, como forma
de chamar atenção. A notícia é, assim, uma

[...] informação transformada em mercadoria com todos os seus apelos


estéticos, emocionais e sensacionais: para isso a informação sofre um
tratamento que a adapta às normas mercadológicas de generalização,
padronização, simplificação e negação do subjetivo. Além do mais, ela é

1555
um meio de manipulação ideológica de grupos de poder social e uma
forma de poder político (MARCONDES FILHO, 1986, p. 13).

Atualmente, a mídia utiliza-se do seu poder de alcance para além de informar,


formar opiniões sobre determinados assuntos – algumas vezes, se não maioria, em
detrimento de outros assuntos. A mídia se apropria de conteúdos e os trabalha por meio
dos processos de significação e socioculturais, movimento este que acontece dentro dos
contextos dos processos midiáticos (GOMES, 2016).
Fica clara a naturalização e espetacularização do fenômeno da violência por parte
da mídia. Não importa mais a informação, mas o quanto o elemento violência é capaz de
ser mantido a fim de expiar a angústia dos indivíduos (CARVALHO; FREIRE; VILAR,
2012).
Além disso, a forma como tais notícias são transmitidas também é bastante
problemática. O título de uma notícia diz muito sobre como ela será recebida, interpretada
e representada pelo leitor. Em casos de violência contra a mulher, por exemplo, a forma
como a transmissão é realizada diz muito sobre como a social enxerga e continuará
enxergando tais crimes. Chamar de passional um crime que é claramente de ódio trata-se
de minimizar a violência praticada, ou usar termos que possam colocar em dúvida a
denúncia de agressão, desqualificar a voz de uma mulher agredida, como se o que ela fala
não fosse real ou ainda caracterizar o ofensor como “um monstro”, sem problematizar as
causas sociais desses crimes. E isso acontece todo dia.
No processo de comunicação dos crimes, há circulação de conteúdos que,
elaborados socialmente, produzem resultados práticos e simbólicos. Existem relações
diretas, imediatas, e relações indiretas, mediadas pela mídia nos seus processos de
significações sociais; Um processo de significação que contempla a construção do discurso
nas suas diversas configurações – tanto construções verbais como não verbais, por imagens,
gestos e ações (GOMES, 2016).
A mídia, enquanto veículo que possui um papel de extrema importância na
divulgação desses crimes, tem o poder de transformar as representações já existentes dos
mesmos, de produzir uma discussão que colabore para o fim do machismo ou de
contribuir para a permanência do imaginário social sobre a motivação e justificação dos
crimes. Logo, o indivíduo não é o único responsável por construir uma dada representação;
existem relações que mantém essa representação, neste caso, a mídia. (GOMES, 2016).

1556
Na presente pesquisa, realizada com jornais dois jornais que circulam no estado do
Ceará, do período mensal de março a setembro de 2015, foram analisados um total de 428
periódicos, sendo 214 do jornal “O Povo” e os outros 214 do “Diário do Nordeste”. Ao
total, foi possível coletar 70 notícias relativas a casos de feminicídio reportados pelos jornais
em território cearense.

METODOLOGIA

O presente trabalho busca investigar como o assassinato de mulheres – o


feminicídio – é representado nos jornais cearenses, a partir da caracterização de vítima e
pessoa agressora veiculada. Para tanto, admite-se a necessidade da categoria “representação
social” para entender o fenômeno em questão.
O conceito de representação social, que possui origem na sociologia de
Durkheim787, pode ser definido como sistemas de interpretação que regem a relação dos
sujeitos com o mundo e com os outros, podendo ser produtos tanto de ideias socialmente
reproduzidas quanto de modificações ocorridas por intervenções históricas e sociais
(CAVALCANTI; GOMES; MINAYO, 2006). É um tipo de conhecimento que

[...] faz parte da vida cotidiana das pessoas, através do senso comum, que
é elaborado socialmente e que funciona no sentido de interpretar, pensar
e agir sobre a realidade. É um conhecimento prático que se opõe ao
pensamento científico, porém se parece com ele, assim como aos mitos,
no que diz respeito à elaboração destes conhecimentos a partir de um
conteúdo simbólico e prático (ALEXANDRE, 2004, p. 6).

Para as Ciências Sociais, por exemplo, as representações são categorias que


expressam a realidade, explicando-a, justificando-a ou questionando-a. Não há um
consenso geral entre os sociólogos clássicos sobre o que é representação social. Na síntese
das ideias mais aceitas pelos autores clássicos, as representações sociais se manifestam em
palavras, sentimentos e condutas e se institucionalizam. Podem e devem ser analisadas a
partir da compreensão das estruturas e dos comportamentos sociais, não sendo um simples
reflexo do real, mas algo que ultrapassa o ser, como fenômeno coletivo que é:

787
Durkheim cunhou o termo “representações coletivas” para elaborar sua teoria da religião. Na psicologia
social – disciplina de caráter misto, situada entre as ciências psicológicas e ciências sociais – o conceito tornou-
se bastante empregado para dizer da forma como indivíduos e grupos expressam a realidade.
1557
[...] em palavras, sentimentos e condutas e se institucionalizam, portanto,
podem e devem ser analisadas a partir da compreensão das estruturas e
dos comportamentos sociais. Sua mediação privilegiada (...) é a
linguagem, tomada como forma de conhecimento e de interação social.
Mesmo sabendo que ela produz um pensamento fragmentário e se limita
a certos aspectos da experiência existencial, (...) possui graus diversos de
claridade e de nitidez em relação à realidade (MINAYO, 2002, p. 108).

Não são obrigatoriamente conscientes, podendo até ser elaboradas em


determinado período histórico, mas perpassa, o conjunto da sociedade, como algo anterior
e habitual. Ademais, “podem ser consideradas matéria-prima para a análise do social e
também para a ação pedagógico-política de transformação, pois retratam e refratam a
realidade segundo determinado segmento da sociedade” (MINAYO, 2002, p. 110).
Sabendo que as representações possuem desdobramentos que podem acabar por
naturalizar fenômenos sociais como o da violência doméstica e familiar contra a mulher e
contribuir para o seu crescimento, eu entendi ser necessária uma discussão sobre que
representações estão sendo transmitidas à população por meio das notícias veiculadas
diariamente nos jornais.
A pesquisa que empreendi se caracteriza como documental. Busquei realizar uma
análise de conteúdo, utilizando um conjunto de técnicas de análise das comunicações,
objetivando alcançar, por meio de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do
conteúdo de mensagens, parâmetros (quantitativos ou não) que permitiram “a inferência
de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas
mensagens” (BARDIN, 1977, p. 42).
Analisei as notícias de feminicídio veiculadas nos jornais O Povo e Diário do
Nordeste entre o período de março de 2015 (mês da criação da qualificadora de
feminicídio) e setembro de 2015, totalizando 428 periódicos pesquisado. Selecionei 70
notícias788 nesses dois jornais de grande circulação no Estado do Ceará, para extrair destas
notícias informações que pudessem caracterizar o perfil socioeconômico tanto da vítima
quanto do agressor. Utilizei uma câmera fotográfica para registrar a imagem da notícia,
além do diário de campo, em que todas as peculiaridades e dificuldades encontradas no
campo foram anotadas.
Busquei, pois, vislumbrar como as diferentes formas de se transmitir uma notícia
afetam na sua recepção. Ao caracterizar o perfil da vítima e do agressor nos casos de
homicídio de mulheres, procurei observar se esses perfis se assemelhavam aos estudos já

788
De todos os periódicos analisados, foi possível encontrar 70 notícias que falavam sobre feminicídio.

1558
conhecidos sobre violência contra a mulher ou se destoavam destes segundo as análises das
fontes. As seguintes perguntas serviram de base para isso: a) A qual classe social pertence
os envolvidos?; b) Em que faixa etária se situavam?; c) As vítimas possuíam filhos com os
agressores? d) Se sim, quantos?; e) Qual o tipo de relacionamento entre a vítima e o
agressor?; f) Qual a escolarização deles?; e, por último, g) Em que bairro residiam?
Os dados foram organizados em tabelas, feitas em programas específicos de
estatística, sendo eles SPSS e Microsoft Office Excel 2007.

AS FONTES DA PESQUISA

Como a pesquisa que se propôs a estudar as representações sociais dadas ao


assassinato de mulheres, escolhi dois jornais de grande circulação em todo o Estado do
Ceará. Selecionei os jornais O Povo e o Diário do Nordeste. O primeiro, criado há quase
90 anos pelo jornalista Demócrito Rocha

[...] nasceu como jornal político, com finalidade de denunciar os


desmandos do então Presidente do Ceará, o desembargador Moreira da
Rocha. O jornal também chega a apoiar a Coluna Prestes, a Revolução
de 30, o “governo provisório” de Getúlio Vargas e a criação da Ação
Libertadora Nacional. Declarou-se contra o Golpe de 1937 e o Estado
Novo (CUNHA, 2009, p. 3).

Atualmente conta com um Portal Online, além da edição impressa, sendo um dos
jornais mais importantes da região.
O Diário do Nordeste começou a circular há 35 anos. Foi criado pelo Sistema
Verdes Mares de Comunicação, um dos grupos de comunicação mais influentes da região.
Mesmo recente, ele é o único que possui total abrangência no Estado do Ceará,
considerando sua distribuição por todo o território cearense.

OS PERFIS VEICULADOS

Buscou-se realizar um perfil socioeconômico da vítima e do agressor envolvidos


nos crimes noticiados, de forma que as seguintes informações foram encontradas: Em 16%
dos casos é informado que as vítimas tinham entre os 15 e 20 anos de idade, seguidas por
13% que estavam entre a faixa etária de 21 a 26 anos. Enquanto que a idade do agressor
não é informada em 58% dos casos e, quando informada, em 16% estão na faixa de 45

1559
anos ou mais, seguidos de 10% na faixa etária de 21 a 26 anos e 39 a 44 anos,
respectivamente.
FIGURA 1: IDADE DA VÍTIMA

13%

Não informa
32%
10% 15 a 20 anos
21 a 26 anos
27 a 32 anos
6%
33 a 38 anos
39 a 44 anos
10%
45 anos ou mais

16%
13%

Fonte: Elaboração própria a partir de dados colhidos nos jornais O Povo e Diário do Nordeste.

FIGURA 2: IDADE DO OFENSOR

16%

Não informa
10% 21 a 26 anos
33 a 38 anos
39 a 44 anos
6% 58%
45 anos ou mais

10%

Fonte: Elaboração própria a partir de dados colhidos nos jornais O Povo e Diário do Nordeste.

Ocorre, pois, uma violência que atinge majoritariamente a população feminina em


idade reprodutiva e produtiva, causando consequências não só econômicas, mas efeitos

1560
onerosos na socialização dos filhos dessas vítimas, seja por presenciarem a violência ou por
conviverem com a mãe em frequente situação de violência.
Quanto a relação que a vítima possuía com o ofensor, em 26% dos casos é
informado que agressor e vítima eram casados, seguido de 16% que eram ex-
companheiros/ex-marido e em apenas 6% dos casos eram desconhecidos. Em 25% dos
casos a vítima possuía filhos com o agressor.

FIGURA 3: TIPO DE RELACIONAMENTO QUE A VÍTIMA POSSUÍA COM O


OFENSOR

10%

3%

Não informa
36%
Casado
16%
União Estável
Desconhecido
Ex-companheiro/marido
Namorado
6%
Outros
3%

26%

Fonte: Elaboração própria a partir de dados colhidos nos jornais O Povo e Diário do Nordeste.

A vítima, por inúmeros motivos, permanece na relação, seja por medo de perder a
guarda dos filhos, por considerar um constrangimento perante amigos e familiares deixar
a relação, por considerar-se a responsável por manter a relação, por dependência
emocional/afetiva ou financeira etc. (MIZUNO; FRAID; CASSAB, 2010).
No que diz respeito a classe social a qual os indivíduos pertencem, foi possível
constatar através dos dados colhidos que apesar de serem os casos que envolvem pessoas
pertencentes às classes mais abastadas os mais repetidos, é na classe mais baixa em que eles
são mais denunciados ou chegam aos olhos da sociedade.

1561
Quando havia a informação quanto à classe pertencente ao indivíduo, em 19% dos
casos as vítimas eram descritos como pobres, porque não possuíam o mínimo possível para
sua sobrevivência, em termos de educação, saúde, renda etc.

FIGURA 4: CLASSE SOCIAL DA VÍTIMA

13%

13% Não informa


Pobre

55% Classe média


Classe alta
19%

Fonte: Elaboração própria a partir de dados colhidos nos jornais O Povo e Diário do Nordeste.

Quanto ao ofensor, quando informado, em 13% dos casos estes também eram
pobres. Pessoas cujas situações sociais são de vulnerabilidade, não só de violência
doméstica, mas todas as outras formas a que são submetidas ao longo da vida.
Os outros 13% pertencentes a classe alta, reflete um maior número de informações
sobre o ofensor quando este pertence à uma classe abastada, o que não ocorre quando o
mesmo pertence à classe mais baixas.

FIGURA 5: CLASSE SOCIAL DO OFENSOR

Fonte: Elaboração própria a partir de dados colhidos nos jornais O Povo e Diário do Nordeste.

1562
Nota-se que a maioria dos dados ausentes diz respeito ao ofensor. E, quando estas
informações eram transmitidas na matéria, na maioria das vezes eram de indivíduos
pertencentes a classe alta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo foi que exposto, é possível notar que o perfil socioeconômico da vítima
na notícia é de uma mulher jovem, pobre, com filhos, vitimada em local doméstico, que
possui ou possuía uma relação de afetividade com seu ofensor – caracterizando a
domesticidade da violência. Detalhes sobre sua escolarização, situação de trabalho, local
de moradia e uso de psicoativos pouco aparecem nas notícias. Levando-se em consideração
a classe social dessas vítimas, é fácil deduzir uma situação de vulnerabilidade.
Quanto ao ofensor, há menos informações na notícia que permitem formar seu
perfil. As únicas informações precisas dizem respeito a sua faixa etária e classe social de
pertencimento; um homem adulto, pobre, com filhos e que possuía uma relação afetiva
atual ou anterior com a vítima.
A escassez de informações sobre o ofensor reflete não só o caráter de notícia-crime
da reportagem – visto que foi a primeira notícia sobre o crime, as primeiras informações
logo após a notificação –, mas corrobora a ideia do ofensor como o outro, o ser sem
características. Nas poucas vezes que informa algo sobre este – na maioria dos casos quando
o ofensor é de classe alta – sempre o caracteriza como o assassino, agressor, o monstro etc.
Cria-se com isto a representação de feminicídio como crimes excepcionais,
realizado por homens covardes. Negando a realidade desta violência, que é praticada por
homens comuns, moldados dentro de uma cultura machista onde veem a mulher como
objeto, logo passível de posse.
Contrapor dois casos como um que diz do ocorrido no dia 21 de agosto, isto é o
do marido que assassinou a mulher a facadas na presença dos filhos789 e outros ocorrido no
dia 24 de agosto, qual seja o do marido que matou a mulher e a filha utilizando-se de uma
arma de fogo790. Este último obteve mais atenção da mídia. Inicialmente, os dois crimes
foram brevemente noticiados no dia posterior a sua ocorrência, no entanto, o segundo –
ocorrido no dia 24 de agosto – obteve mais repercussão. Pode-se concluir que isso ocorreu

789
Notícia do dia 21 de agosto de 2015. Aparece uma única vez no jornal Diário do Nordeste. Não há
nenhuma citação do caso no jornal O Povo.
790
Notícia do dia 23 de agosto de 2015. É noticiada inúmeras vezes nos dias seguintes ao crime, tanto no
jornal Diário do Nordeste, como no jornal O Povo.
1563
devido o casal ser residente em Fortaleza, em bairro nobre da cidade, detentos de um
poder aquisitivo considerável e de escolaridade de nível superior. No crime ocorrido no
dia 21, o casal residia no interior do Estado, possuíam baixo poder aquisitivo, com
profissões pouco valorizadas do ponto de vista econômico – dona de casa e agricultor – e
escolarização precária.
O crime ocorrido no dia 24 de agosto se repetiu uma infinidade de vezes em cada
um dos jornais analisados, ocupando em média metade da folha do periódico, com
imagens dos envolvidos, descrições detalhadas de como se deu e como o crime estava
sendo investigado, buscando traçar um perfil do casal.
Em última análise, posso concluir que apesar de tais crimes ocorrerem diariamente
no Brasil, determinado perfil de vítima e agressor é escolhido para figurar no periódico de
forma mais recorrente: pessoas pertencentes às classes altas, com grau de escolarização
elevado, moradores de bairros nobres e com situação financeira relativamente estável791; os
crimes que merecem mais detalhes são os que retratam vítimas e criminosos de classe
econômica e cultural elevada. No entanto, mesmo que estes últimos sejam divulgados
reiteradamente, não há uma discussão mais ampla sobre a condição da mulher na
sociedade brasileira, sobre atitudes que podem diminuir os índices de violência, sobre a
cultura patriarcal e machista.
As matérias sobre as vítimas e agressores veiculados, reforçam representações
sociais que estigmatizam as camadas pobres da população e raramente fazem a ligação da
violência à construção social de homem e mulher. Tratam de espetacularizar essa violência
por meio da apresentação de casos que aparecem como excepcionais, de agressores como
“monstros”, cujo comportamento não é associado à realidade, ao contexto social em que
ele está inserido.
Constatei que a mídia exerce uma dupla função, tanto no que diz respeito à
construção social dos papéis de gênero, quanto a reprodução das relações de classe. Além
disso, corrobora a representação de feminicídios como crimes excepcionais, não
fornecendo dados sobre o agressor, caracterizando-o sempre como outro. Negando a
realidade desta violência, que é praticada por homens comuns, moldados dentro de uma
cultura machista onde veem a mulher como objeto, logo passível de posse.

791
Deduz-se isto pois apesar da ausência de dados quanto a escolarização, situação de emprego, local de
moradia etc., nas poucas vezes que informava era quando o caso envolvia indivíduos que tinha o perfil
supracitado.
1564
O trabalho em questão não procura ser uma verdade absoluta. É fundamental
ressaltar suas limitações, principalmente no que diz respeito à falta de informações precisas
nos jornais. É necessário, também, que pesquisas sobre a temática continuem sendo feitas,
para que haja uma melhor compreensão sobre como, por que e de que forma os
feminicídio ocorrem.
Destaco a necessidade premente de tais pesquisas a fim de que no exercício da
reflexão se busque encontrar soluções para uma remodelação do sistema de ideias
presentes na sociedade, além de políticas públicas que possibilitem prevenir e coibir casos
de agressão, que culminam em feminicídio.
Sem um debate necessário, tratando esses crimes como casos sui generis, a mídia
pouco contribuirá para transformar as representações sociais sobre o feminicídio e as
relações de gênero que o determinam. A julgar pelo potencial que as notícias de feminicídio
possuem em chamar a atenção de leitores de jornais, parece urgente que eles se empenhem
menos em espetacularizar os casos e mais em difundir ideias que contribuam para coibir a
violência de gênero da qual a mulher é vítima.

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1567
DIAGNÓSTICO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO MEIO RURAL:
TIPIFICAÇÃO E REGISTRO DE DENÚNCIAS

Beatriz de Paula AZEVEDO792

Resumo: O presente trabalho possui a finalidade de estudar a violência doméstica contra a mulher
no meio rural. Deste modo, foram levantados dados e referências bibliográficas sobre a temática,
como, por exemplo, o estudo proporcionado pela revista WHOMulti-countryStudyon
Women’sHealthand DomesticViolence, citado pelos pesquisadores Parry Scott, Ana Cláudia
Rodrigues e Jeíza Saraiva, que mostra que no Brasil, os índices de violência doméstica são maiores
nas zonas rurais. Não obstante, o país consta na lista dos sete países com maior número de violência
contra a mulher no meio rural (SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 73 e 74). Todavia,
chama a atenção o fato de que não são muitas as estatísticas de ocorrências de violência de gênero
no meio rural, o que levanta a possibilidade de uma subnotificação. Em razão disso, foram
efetuadas visitas de campo no Assentamento Bela Vista do Chibarro, localizado no município de
Araraquara (SP), que, a partir de entrevistas, com questionários do métodos survey, junto a
entrevistas em profundidade, foi possível confirmar a hipótese de que há uma subnotificação de
denúncias, através da visita de campo realizada no dia 10 de fevereiro de 2017, onde foram
executadas 05 entrevistas com mulheres rurais. Destas 05 mulheres entrevistadas, todas sofreram
algum tipo de violência, sendo que 04 das mulheres relataram que sofreram agressões física, e
somente uma levou o caso à denúncia. Já no dia 17 de fevereiro, das 03 mulheres entrevistadas,
todas afirmaram que sofreram violência moral, 02 afirmaram que sofreram violência física,
psicológica, sexual e patrimonial. Outras 02 afirmaram sofrer cárcere privado, e 01 afirmou que
sofreu assédio sexual e estupro. Somente uma vítima denunciou o ex-companheiro à polícia, por
agressão física. Mesmo que, de acordo com a vítima, o atendimento no local tenha sido efetivo, o
agressor ficou preso somente por 02 dias, voltando a assediar constantemente a sua ex-parceira.
Desta forma, pode-se ver que existe uma subnotificação da violência doméstica. Assim, o trabalho
propõe o levantamento dos índices de violência de gênero no meio rural, como também, a
tipificação de violências, que correspondem a nove tipos segundo a Secretaria Nacional de
Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. E, por fim, a investigação sobre a ausência de
denúncias das agressões sofridas pelas vítimas aos seus respectivos agressores.

Palavras-chave: Assentamento Bela Vista do Chibarro. Tipificação da violência. Violência rural


contra as mulheres.

INTRODUÇÃO

Segundo o 3º Artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos793, todas as


pessoas têm direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. No entanto, quando se diz
respeito à temática da violência, sobretudo, contra a mulher, estes direitos não estão sendo
assegurados na prática. A "Violência contra a mulher", conforme a ONU (2006), é todo

792
¹ Graduanda de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos, pesquisa financiada pela ProEx
(Pró-Retoria de Extenção). e mail: biah-azevedo@hotmail.com
793
Artigos da Declaração de Direitos Humanos disponível em
<http://www.unidosparaosdireitoshumanos.com.pt/what-are-human-rights/universal-declaration-of-human-
rights/articles-01-10.html>
1568
ato de violência exercido derivado de questões de gênero dirigidos contra qualquer mulher.
O conceito de gênero, neste trabalho, remete-se à explicação da historiadora norte-
americana, Joan Scott (1989), que pressupõe o gênero como "um elemento de relações
sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos. Uma primeira forma de significar
as relações de poder" (SCOTT, 1989, p. 21). Assim, esta explicação parte-se da premissa
de que existem relações nas sociedades ocidentais, cujas características são norteadas por
poderes estabelecidos historicamente e culturalmente entre os gêneros, em prol de uma
construção normativa que beneficia o gênero masculino em muitas instâncias.
O Brasil não é uma exceção a esta “regra” histórica e cultural. Aliás, este tema é
posto em evidência, uma vez que os números das notificações são extremamente elevados.
Conforme o DataSenado, houve crescimento nos dados relacionados à violência contra a
mulher. Em 2015, por exemplo, 56% das mulheres brasileiras afirmaram conhecer alguma
mulher que já sofreu algum tipo de violência, sendo esta doméstica ou familiar, praticada
por algum homem. Já em 2017, o percentual subiu para 71%. Não obstante, no ano de
2016 foi realizada uma pesquisa pelo Datafolha, onde constatou-se que 40% das mulheres
com mais de 16 anos sofreram diversos assédios, sendo 36% dos casos relacionados a
comentários desrespeitosos ao andar na rua, 10,4% de assédio físico em transporte público,
e 5% de beijos e/ou agarros sem consentimento, equivalente ao número de 20,4 milhões
de vítimas neste período.
As agressões vivenciadas pelas mulheres não se restringem aos ataques físicos. Em
concordância com a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres
(2011), existem 13 tipificações de práticas que concretizam a violência, diferentemente da
lei nº 11.340/2006 - Lei da Maria da Penha794 - na qual são englobados 05 tipos de violência
doméstica e familiar contra a mulher, incluindo qualquer variedade de ações ou omissões
fundadas no gênero que lhe cause lesão, morte, sofrimento físico, psicológico, dano moral
ou patrimonial.
Através de pesquisas realizadas, tornou-se possível visualizar que a violência de
gênero ocorre em diferentes circunstâncias, entretanto, existem casos que são tratados
como singulares, e não, precisamente, como um problema social. Um exemplo disto é a
violência doméstica, que, por sua vez, fica restrita ao âmbito privado e reconhecida como
um problema familiar. A pesquisa “Violência e Assassinato de Mulheres” (Data
Popular/Instituto Patrícia Galvão, 2013) relatou que 70% da população brasileira acredita

794
Lei 11.340/2006. (2006). Lei Maria da Penha. Brasília: Secretaria Especial de Políticas Públicas para as
Mulheres da Presidência da República.

1569
que as mulheres sofrem mais no ambiente familiar, em relação aos espaços públicos. Algo
que se confirma com os índices levantados em 2011, pelo Mapa da Violência, os quais
revelam que duas a cada três pessoas atendidas no SUS, em decorrência de violência
doméstica ou sexual, são mulheres, abrangendo também, 51,6% de casos de atendimentos
registrados com reincidência na prática de violência contra a mulher. Ainda no mesmo
ano, o SUS atendeu mais de 70 mil mulheres vítimas de agressões, sendo 71,8% dos casos
ocorridos na esfera doméstica. Segundo a mesma instituição, 50,3% dos homicídios de
mulheres são ocasionados por familiares, abrangendo 33, 2% de ex-parceiros e parceiros
responsáveis pelas mortes. Assim, o território nacional conta com uma taxa de 4,8
homicídios para cada 100 mil mulheres. E, de acordo com a Organização Mundial da
Saúde (OMS), é a quinta maior taxa do mundo de um total de 83 países listados. Contudo,
embora as estatísticas falem por si, ainda emerge no senso comum, a ideia liberal de que
em “briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. A violência contra a mulher,
conforme a diretora-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka (2015), é a
“violação de direitos humanos mais tolerada no mundo”.
Desta forma, abrem-se caminhos para a subnotificação da violência sofrida pelas
mulheres, em razões de culpabilização e falta de acesso à informações e direitos. A situação
se agrava à medida que existem lugares isolados à sociedade; cujo serviço, a princípio, é
fornecer serviços que atendam à procedência da violência. A zona rural exemplifica isso, à
proporção que está distante às instituições públicas que existem em prol da segurança das
vítimas de violência.
Assim, analisando o tema da violência de forma mais profunda, chama a atenção
um aspecto desse problema, que é a violência sofrida pela mulher do campo. Estudo da
WHO Multi-country Study on Women’s Health and Domestic Violence against Women
citado pelas pesquisadoras Parry Scott, Ana Cláudia Rodrigues e Jeíza Saraiva, onde
mostra-se que no Brasil os índices de violência doméstica são maiores nas zonas rurais, e,
além disso, o país figura na lista dos sete países com maior número de violência contra a
mulher no meio rural (SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 73 e 74). Todavia,
chama a atenção o fato de que não são muitas as estatísticas de ocorrências de violência de
gênero no meio rural, o que levanta a possibilidade de uma subnotificação dos casos. Esses
dados ajudam a reforçar a necessidade de atenção às áreas rurais.

1570
TIPIFICAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER

A palavra violência, do Latim, significa “violentia” e deriva de “veemência e


impetuosidade”, relacionada à “violação”. A violência contra a mulher, no Brasil, ganhou
força social e jurídica apenas nos dois últimos séculos, em decorrência da visibilidade deste
problema no século XX, em escala mundial. Deste modo, em 1993, na Conferência das
Nações Unidas sobre Direitos Humanos, a violência contra a mulher adquiriu
reconhecimento formal, com sua tipificação como uma violação dos direitos humanos
(SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 64). Esta “nova” violação formulada, tem
como objetivo oferecer destaque às agressões sofridas pelas vítimas que, anteriormente,
não possuíam visibilidade alguma. Já no contexto nacional, em 1994, houve a “Convenção
de Belém do Pará” (BARSTED, 2006, p. 249), onde foi deliberado de que a violência
contra a mulher é “qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou
sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na
privada”795. Assim, vê-se que o conceito de violência contra as mulheres é bastante amplo.
A Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres reconhece os
diversos tipos desta prática e as tipifica da seguinte maneira:
Primeiramente, há a violência doméstica, que pressupõe qualquer espécie de ação,
ou omissão, baseada em qualquer dano que possa causar à mulher, como as lesões, as
mortes, o sofrimento sexual, o físico e o psicológico, como também, danos morais ou
patrimoniais que se atuem na esfera doméstica, no núcleo familiar, ou “em qualquer
relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida,
independentemente de coabitação (Lei nº 11.340/2006)” (SPM; SNEVM, 2011, p. 22).
Em seguida, há a violência moral, que pode se tornar real a partir de difamação, calúnia e
/ou injúria. A violência sexual, por sua vez, ocorre quando uma mulher mantém contatos
sexuais, verbais e físicos, em razão do uso da força, da coerção, ameaça e/ou manipulação
com alguém. Seria, sobretudo, a desconsideração do limite pessoal que pode ser
apresentado pela vítima num contexto anterior à prática. A violência sexual também é
materializada com expressões verbais ou corporais que provocam desagrado; “toques e
carícias não desejados; prostituição forçada; participação forçada em pornografia; relações
sexuais forçadas - coerção física ou por medo do que venha a ocorrer” (TAQUETTE,

795
Artigo I da Convenção Interamericana Para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher:
Adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em 06 de junho de 1994 e ratificada
pelo Brasil em 27/11/2005.
1571
2007). Já a violência física, se perpetua em qualquer tipo de prática e conduta que possa
ofender a integridade e/ou saúde corporal da mulher (SPM; SNEVM, 2011, p. 22). Por
outro lado, a violência psicológica se limita às funções cognitivas. Se refere a todas as
práticas que causem danos emocionais, “ou que lhe prejudique o pleno desenvolvimento
ou que vise degradar ou controlar suas ações” (SPM; SNEVM, 2011, p. 22), como também,

Os comportamentos, as crenças e as decisões, mediados pela vigilância


constante, perseguição, ridicularização, exploração ameaça, humilhação,
manipulação, como também, pelo constrangimento, isolamento,
perseguição“ e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio
que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação” (SPM;
SNEVM, 2011, p. 22).

A violência patrimonial está vinculada às condutas que presumem a subtração e a


destruição parcial, ou até mesmo o total de seus objetos, incluindo ferramentas de trabalho,
documentos pessoais, direitos e recursos econômicos. Existe também a violência
institucional, que é aquela praticada por ação e/ou omissão, nas instituições prestadoras de
serviços públicos (TAQUETTE, 2007). As vítimas de agressões são “por vezes,
‘revitimizadas’ nos serviços quando: são julgadas; não têm sua autonomia respeitada; são
forçadas a contar a história de violência inúmeras vezes” (SPM; SNEVM, 2011, p. 23). O
Tráfico de Mulheres, cujo conceito adotado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres
da Presidência da República do Brasil (SPM/PR), vincula-se à perspectiva dos direitos
humanos das mulheres e ao Protocolo de Palermo, nos quais, existem elementos centrais

1. movimento de pessoas, seja dentro do território nacional ou entre


fronteiras; 2. uso de engano ou coerção, incluindo o uso ou ameaça da
força ou abuso de autoridade ou situação de vulnerabilidade; e, 3. a
finalidade de exploração (exploração sexual; trabalho ou serviços
forçados, incluindo o doméstico; escravatura ou práticas similares à
escravatura; servidão; remoção de órgãos; casamento servil). Toda vez
que houver movimento de pessoas por meio de engano ou coerção, com
o fim último de explorá-la, estaremos diante de uma situação de tráfico
de pessoas. Importante ressaltar que, para fins de identificação do tráfico
de pessoas, o uso de engano ou coerção inclui o abuso da ‘situação de
vulnerabilidade’, mencionada na definição do Protocolo de Palermo.
Isso significa dizer que não importa que a pessoa explorada tenha
consentido em se transportar de um local a outro, desde que esteja em
seu local de origem em situação de vulnerabilidade que a faça aceitar
qualquer proposta na busca de encontrar uma oportunidade de superá-
la. Exploração Sexual de Mulheres – Segundo o Código Penal Brasileiro
em seu Capítulo V – do Lenocínio e do Tráfico de Pessoa para fim de
Prostituição ou outra forma de Exploração Sexual no Artigo 227 diz que
exploração sexual “é induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem” e

1572
no Artigo 228 fala que é “induzir ou atrair alguém” (SPM; SNEVM,
2011, p. 23).

Segundo as duas Secretarias, a exploração sexual comercial de mulheres, a


exploração sexual comercial de crianças e adolescentes³, conhecida pela sigla ESCCA,
também é considerada como uma violência contra às mulheres, pois é uma violação à
declaração dos direitos humanos, precisamente, ao direito de desenvolvimento de uma
sexualidade saudável, “bem como uma ameaça à integridade física e psicossocial” (SPM;
SNEVM, 2011, p. 23-24).
O assédio sexual e moral também são considerados como práticas violentas. O
primeiro concretiza-se na abordagem não esperada ou apreciada pelo outro/outra, com
infrações sexuais ou abuso de poder, por parte de alguém com posição privilegiada, que a
utiliza como vantagem para obter favores sexuais de seus “inferiores” ou dependentes.
Assim, o assédio sexual é um crime, segundo o art. 216-A, do Código Penal, com redação
dada pela Lei nº 10.224, de 15 de maio de 1991 (SPM; SNEVM, 2011, p. 24). O segundo
assédio, que é o moral, corresponde a qualquer comportamento abusivo que,
intencionalmente, possa ferir a dignidade e a integridade física ou psíquica de qualquer
pessoa. E por último, não menos importante, o cárcere privado, que, segundo o Art. 148
do Código Penal Brasileiro, desenvolve-se em circunstâncias onde alguém é privado de sua
liberdade e mantido em algum local contra a sua própria vontade (SPM; SNEVM, 7962011,
p. 24).

VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES RURAIS

Como apontado anteriormente, o tema da violência contra a mulher rural não é


muito explorado. Schiavini (2002), do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa
Catarina, realizou uma pesquisa com 514 mulheres, mostrando que 34% das entrevistadas
conhecem alguma mulher que já foi estuprada, sendo que 25% disseram que aconteceu na
comunidade. Ademais, 15% das mulheres agricultoras entrevistadas já foram espancadas
pelos seus maridos ou namorados; 53% já se sentiram violentadas por palavras ou dizeres;
34% disseram terem sido humilhadas por serem agricultoras; 64% das entrevistadas
disseram que não têm liberdade de tomar decisão sem pedir licença e 52% das mulheres
agricultoras declaram que normalmente pedem licença ao marido para tomar qualquer

796
Estatuto da Criança e do Adolescente e do Código Penal Brasileiro, com as modificações de 2004.

1573
decisão797.
Em consequência destas razões citadas acima, que sempre se fizeram presente no
meio rural, a pauta da violência contra a mulher rural vem ganhando força em seu contexto,
sendo reivindicada nos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais. Em 1983, ocorreu
um episódio que originou um evidente movimento. Houve o assassinato de Margarida
Alves, sob comando dos latifundiários, e então, eis que surgiu “A Marcha das Margaridas”,
cuja reivindicação era “Contra a Fome, a Pobreza e a Violência Sexista”. Ocorreu em três
anos, sendo estes, respectivamente: 2000, 2003 e 2007. De acordo com os três autores
Parry Scott, Ana Cláudia Rodrigues e Jeíza Saraiva, em 2007, a maior pauta foi destinada
às políticas públicas com a especificidade voltada à violência contra a mulher no campo
(SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 66), evidenciando as denúncias múltiplas
de agressões que ocorreram na zona rural. Ainda na pauta estavam a luta por terras, por
melhores condições de trabalho e também o pedido da legalização trabalhista e benefícios
previdenciários.
Outro dado apontado nos estudos que mostra o contraste entre áreas rurais e
urbanas são os “motivos” das agressões: um exemplo é o motivo apontado na Zona da
Mata para o fato das mulheres não cumprirem suas tarefas domésticas é responsável por
5% dos casos de agressões, enquanto em São Paulo esta cifra é de 1%. “Na área rural, o
espaço da casa ainda é considerado o espaço da mulher, no qual ela precisa exercer e
cumprir tarefas, mas o homem opera vigiando para ver se as tarefas são cumpridas”
(SCHRAIBER et. al., 2007). Na área rural existe uma forte divisão sexual do trabalho, na
qual o homem é o “chefe de família”, responsável pela renda econômica, e as mulheres,
por outro lado, são responsáveis pelos afazeres domésticos e pela reprodução. À proporção
que os homens possuem o poder econômico e as mulheres são desprovidas de autonomia
financeira e se tornam dependentes econômicas de seus companheiros. A inércia e a
conformidade de muitas mulheres que vivenciam a violência doméstica constantemente se
concretizam ao passo que as mulheres não encontram saídas para a fuga dessa realidade.
Pois, a dependência emocional e financeira em relação aos homens cultiva o medo de a
mulher formalizar denúncias (SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 71).
Além destas causas “circunstanciais”, há algo maior que isto, que é a legitimização
da violência, ou seja, a cultivação desta prática masculina. Bourdieu e Passeron (1975),

797
Pesquisa Violência Contra a Mulher Rural: uma realidade cruel e invisível, realizada por RosaniSchiavini
do Movimento de Mulheres Camponesas de Santa Catarina. Disponível em
http://www.violenciamulher.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=820 &catid=1:artigos
assinados&Itemid=5.)
1574
trabalham com a “violência simbólica”, cuja teoria é sustentada pela afirmação de que toda
sociedade possui um sistema estrutural de relações de força material entre grupos e/ou
classes:

Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor
significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de
força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é,
propriamente simbólica, a essas relações de força" (BOURDIEU;
PASSERON, 1975, p. 19).

Assim, os autores explicam que a violência simbólica se concretiza à medida que a


violência material - voltada ao plano simbólico - se reproduz e dá à luz ao reconhecimento
da dominação, ao passo que a legitima, através da dissimulação de seu caráter (cuja
finalidade é de violência explícita). Logo, a dominação econômica (violência material), que
é executada pelos grupos dominantes, corresponde à violência simbólica e se perpetua na
dominação cultural (BOURDIEU; PASSERON, 1975, p. 27). No caso do Brasil, esta
“violência simbólica”, também se faz presente, uma vez que há a dominação econômica
pelo “poder masculino”, como também a cultivação da cultura do estupro e da violência
de gênero.
A violência doméstica rural não se restringe ao território nacional. De acordo com
uma pesquisa efetuada por Lozano e Ibarra (2008), em Cuba, os casais rurais que
concederam entrevista revelaram uma alta frequência de episódios de violência, sobretudo
psicológica, na qual estava presente ameaças, acusações e controle. O Brasil, de acordo
com o Mapa da violência (2009), ocupa o 12ª no ranking de violência contra a mulher
doméstica na escala mundial, com um índice de 37%. Todavia, conforme Sagot (2007),
através de pesquisas realizadas na América Latina, pôde-se estimar que existem
subnotificações de violência. Na pesquisa em questão, de violência intrafamiliar, constatou-
se que apenas 15 a 25% das agressões são de fato denunciadas. Na esfera da violência
doméstica rural também há dificuldade no acompanhamento dos números reais, pois,
diferentemente das áreas urbanas, nas quais as instituições buscam categorizar os índices
de violência, tanto quanto suas tipificações, as áreas rurais são distantes e oferecem um
suporte jurídico inferior às vítimas, uma vez que estas vítimas estão longe, sem suporte, e
nem sempre podem se locomover com autonomia, (SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA,
2010, p. 66). Isto pode ser conferido no seguinte relato:

1575
No Seminário sobre Violência contra as Mulheres no Meio Rural,
ocorrido em novembro de 2007 em Brasília, há um depoimento que
sintetiza bem a situação das mulheres rurais frente à violência: “na roça
ninguém ouve o grito de socorro da mulher, a mulher não tem como
buscar ajuda, não tem transporte, o povoado fica distante 40, 50 km. Não
tem delegacia, não tem nada” (Maria Nice Machado - Conselho Nacional
dos Seringueiros). Segundo outra participante do seminário, “essa
violência a gente vive desde que nasce e dura pela vida inteira”. Estes
depoimentos reafirmados pelos resultados da pesquisa de Rosani
Schiavani (2002) mostram que o meio rural padece de políticas efetivas
de enfrentamento para diminuir as desigualdades existentes (SCOTT;
RODRIGUES; SARAIVA,2010, p. 71).

Conforme os autores, políticas de apoio às mulheres rurais padecem de atenção,


pois apresentam desafios, em comparação à vida urbana. Primeiramente, porque a
distância é um fator cuja relevância prevalece. A escassez de recursos e a indisponibilidade
de funcionários também contribuem para o insucesso destas medidas, proporcionando,
assim, o sentimento de impotência e “o sentimento de esquecimento sistemático”
(SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 73) nas mulheres rurais. Há a ausência de
recursos para a melhora da qualidade de vida destas mulheres. Muitas delas nem sabem os
direitos que possuem, ou as novas políticas implementadas, como a Lei Maria da Penha
(SCOTT; RODRIGUES; SARAIVA, 2010, p. 66). Os estudos realizados na Zona da Mata
Pernambucana demonstram que 1.188 das entrevistadas, 644 destas afirmaram ter
ocorrido algum episódio de violência, sendo este distribuído entre violência psicológica
(48,9%), violência física (33,7%) e violência sexual (14,1%), sempre com percentuais mais
altos em comparação a zonas metropolitanas. Na hora de procurar socorro, as mulheres
da área rural recorrem mais a familiares (especialmente pais e irmãos) e a outras pessoas
próximas (SCHRAIBER; D´OLIVEIRA, 2002, p. 56). Os serviços mais formais (polícia,
líderes religiosos, médicos e conselheiros) se mostram em torno de quatro ou mais vezes
menos procurados nas áreas rurais, com a exceção do caso da procura de médicos, o qual
se mostra como o caminho formal mais aberto para as mulheres no campo.

ASSENTAMENTO BELA VISTA DO CHIBARRO

A cidade de Araraquara se localiza no interior do Estado de São Paulo, cuja


população, segundo o IBGE (2016), é estimada no número de 228.664 habitantes. Em
2013, conforme a mesma instituição, 202.802 das pessoas habitavam a zona urbana,
enquanto 5.923 viviam na zona rural. A cidade contém três projetos de assentamentos

1576
rurais, incluindo o Assentamento Bela Vista do Chibarro, que será o local da pesquisa a
ser efetuada. Esta zona é de responsabilidade do INCRA – Instituto de Colonização de
Reforma Agrária, e está circunscrita em terras que, num período anterior, pertenciam à
Usina Tamoio; uma usina de açúcar. No assentamento Bela Vista do Chibarro, em 2009,
havia 203 famílias e o mesmo número equivale aos lotes agrícolas. Neste assentamento,
7,5% dos titulares, são mulheres, que apresentam uma média de 49 anos de idade
(FERRANTE, 2009 p. 06). Em 2016, o número aumentou para 272 famílias.
Através da pesquisa de campo realizada no dia 10 de fevereiro de 2017, pôde-se
constatar que existe um centro do assentamento, cuja denominação é “Agrovila”, e é
composto pelas casas rurais, habitadas pelos (as) agricultores (as), pela “Unidade de saúde
da Família: Dr. Elias Zakaib – Bela Vista”; cujo funcionamento é das 07h30min às
16h30min, como também, pelo INCRA e uma escola primária para as crianças locais. Ao
chegar ao local, foi percebido, imediatamente, que não há sinal de rede de celulares em
todos os locais. Na verdade, mesmo que este seja encontrado em alguns locais, nota-se que
há dificuldade na ação. Este fato torna-se relevante à medida que as mulheres precisam de
sinal de rede para pedir socorro em eventuais circunstâncias de violência doméstica. Em
relação às estruturas presentes no local, foi que constatado que, o INCRA, por exemplo,
não possui funcionários e, tampouco uma infraestrutura adequada. Neste instituto precário,
se reúnem as componentes da Associação das Mulheres, sendo estas; Maria Aparecida
(Vice-presidenta), Silvia (Tesoureira), Lucélia, Aline (Secretária da associação) e Édna
(Presidenta da associação), com o intuito de promover melhorias às mulheres rurais.

PESQUISAS REALIZADAS COM AS MULHERES RURAIS DO


ASSENTAMENTO BELA VISTA DO CHIBARRO

Em pesquisas de campo realizadas no mês de fevereiro de 2017, pôde-se colher


dados de violência doméstica, no Assentamento Bela Vista do Chibarro. No dia 10 de
fevereiro, foram realizadas cinco entrevistas com a aplicação do questionário, que inclui
todos os tipos de violência exemplificados. Destas 05 mulheres entrevistadas, todas
sofreram algum tipo de violência, 04 sofreram agressão física, sendo que somente uma
levou o caso à denúncia. No dia 17 de fevereiro, das 03 mulheres entrevistadas, todas
afirmaram que sofreram violência moral, 02 afirmaram que sofreram violência física,
psicológica, sexual e patrimonial. Além disso, uma vítima, Rochele (nome fictício) sofreu
violência familiar, pelo pai, anteriormente ao seu relacionamento com o ex-agressor.
Segundo o seu relato, uma das questões para ter saído de casa, foi para fugir das agressões

1577
paternas, entretanto, ao morar com ex-companheiro, passou a sofrer situações físicas
semelhantes, com acréscimo das outras 12 violências. Neste mesmo dia, outras 02
afirmaram sofrer cárcere privado, e 01 afirmou que sofreu assédio sexual e estupro.
Somente uma vítima denunciou o ex-companheiro à polícia, por agressão física, entretanto,
de acordo com a vítima, embora o atendimento no local tenha sido efetivo, o agressor ficou
preso somente por 02 dias, voltando a assediar constantemente a sua ex-parceira. Já no dia
08 de Setembro, das duas entrevistadas, uma sofreu todos os 13 tipos de violência,
incluindo a violência institucional, no ato da denúncia. Após o processo jurídico, a vítima,
Rose (nome fictício), teve de viver no mesmo lote de seu agressor durante 01 ano. A
segunda entrevistada, sofreu violência moral e assédio sexual. Rose, ao sofrer diversas
violências, contou que apanhava todos os dias, durante mais de uma década, afirmou em
suas palavras: “Desde que eu obedecesse, não apanhava”, “Sofri todos os tipos de violência
que alguém pode imaginar”.
No entanto, mesmo que a violência seja uma prática recorrente deste contexto
geográfico, não existe suporte profissional específico às vítimas. Há uma Unidade de Saúde
da Família, entretanto, através do relato e das informações obtidas pela enfermeira Iara
(nome fictício), foi sabido não há profissionais da área de psicologia, psiquiatria e
ginecologia, na USF, para promover um atendimento adequado às mulheres. Os casos de
violência doméstica, de acordo com a enfermeira, são freqüentes. A profissional afirmou
que já recebeu muitas vítimas de agressões físicas, verbais e psicológicas. Não obstante, a
enfermeira observou que no mês de fevereiro havia 97 tipos de medicamentos em falta, ou
seja, muitas pessoas da região foram prejudicadas por isto. Incluindo mulheres que após as
agressões sofridas precisavam e precisam de medicamentos específicos. Assim, os dados
que são obtidos de violência rural representam somente os registrados formalmente, sendo
que, em contrapartida, podem existir inúmeros a mais, sob estas. Desta forma, vê-se a
importância de se desenvolver pesquisas sobre o tema em contextos geográficos
específicos, como o Assentamento Bela Vista do Chibarro, no qual, em apenas um dia de
pesquisa de campo, foi constatado que as estatísticas do município de Araraquara não
remetem a realidade.

CONCLUSÕES

Através das pesquisas de campo feitas no Assentamento Bela Vista do Chibarro,


tornou-se perceptível as estatísticas referentes à violência doméstica, que no município de

1578
Araraquara, não são equivalentes à realidade, uma vez que muitas mulheres rurais, do
Assentamento Bela Vista do Chibarro não denunciaram seus agressores. O pedido de
assistência aos órgãos públicos não ocorreu por dificuldades vivenciadas e citadas
anteriormente, ao longo do texto, pelas mulheres camponesas. Além disso, é necessário
enfatizar que quando não existe o reconhecimento da agressão sofrida, ou quais órgãos
públicos existem para tais fins, ações frente a estas situações são dispensadas em razão da
desinformação. A partir de entrevistas executadas nos dias 10 e 17 de fevereiro de 2017 e
08 de Setembro, tornou-se possível concluir que as vítimas acreditam que a violência
doméstica limita-se à agressão física. Sendo assim, quando sofrem as demais violências, tais
como a psicológica, patrimonial, sexual, entre outras, não tomam ciência das mesmas, logo,
tornam-se vítimas “inconscientes”. Isso se tornou visível à proporção que nós, alunas da
Universidade Federal de São Carlos; Beatriz Azevedo, Larissa Leal798 e Priscila de Jesus799,
com a supervisão da professora Dra. Sylvia Iasulaitis800, teve-se de exemplificar situações
que correspondiam às violências formais, para que as vítimas pudessem compreender e,
conseqüentemente respondessem às questões. Não obstante, quando as vítimas
expressavam suas respostas às perguntas exemplificadas, podia-se ver uma “naturalidade”,
ao contarem, por exemplo, que o parceiro chegou a algumas situações, rasgar suas roupas
por ciúmes. Dessa forma, o problema se torna mais agravante, pois, se as mulheres
soubessem distinguir o que é violência e o que não é, poderiam, assim, buscar alternativas
para o fim deste ciclo.

REFERÊNCIAS

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http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossie/violencias/violencia-domestica-e-familiar-
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Pará, dez anos depois. In UNIFEM (Org.), O progresso das mulheres no Brasil (pp. 246-
289). Brasília: United Nations Development Fund for Women.

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FERRANTE, Vera Lucia Silveira Botta. Tecendo Novos Modelos Agroalimentares: uma
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798
Graduanda de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos
799
Graduanda de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Carlos
800
Doutora em Ciência Política pela Universidade Federal de São Carlos
1579
LOZANO, D. M. F.; IBARRA, M. L. G. (2008). Violencia psicológica de género en
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TAQUETTE, Stela R. (Org.) Mulher Adolescente/Jovem em Situação de Violência.


Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2007.

1580
MULHERES, SUJEITO OU OBJETO DE DIREITO? ESTUDO DE
CASO DO MUNICÍPIO DE SÃO BERNARDO DO CAMPO

Eliane Cristina de Carvalho Mendoza MEZA801

Resumo: A preocupação com a proteção da pessoa humana não é algo recente, data de desde antes
de Cristo; entretanto, somente no século XX com a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
passou-se a ter um entendimento de que ninguém pode ser discriminado por sexo, raça ou cor.
Esse entendimento foi, aos poucos, sendo incorporado às Cartas Magnas dos países signatários dos
documentos expedidos por essas entidades. No Brasil, a Constituição Federal de 1988, em seu
artigo 5º, também fala sobre a igualdade de todos perante a lei, sem discriminação de qualquer
tipo. Acontece que na prática cotidiana podemos observar que não é essa a realidade das mulheres
no Brasil: além dos casos de violência de gênero, observamos sua sub-representação nos espaços
públicos. A Criação da Lei 11.340 de 2006 (Lei Maria da Penha) foi um marco no combate à
violência contra a mulher, entretanto, sua aplicação pelo Poder Judiciário está longe da ideal.
Apesar da Lei trazer o protagonismo da mulher, o Judiciário demonstra resistência em aplicá-la de
forma integral, dando, ainda a credibilidade à palavra do homem. Essa atitude é uma violação aos
direitos humanos das mulheres, pois elas não têm um julgamento justo e imparcial, sendo
revitimizada no momento das audiências. O presente artigo analisou 150 sentenças (de um total de
245) proferidas pelos juízos criminais de São Bernardo do Campo nas ações designadas como
violência doméstica; essa análise trouxe um panorama dos julgados na comarca em relação às
mulheres, demonstrando a dificuldade do Judiciário em reconhecer os chamados “novos direitos”.

Palavras-chave: Aplicação da Lei Maria da Penha. Gênero. Judiciário. Novos direitos.

INTRODUÇÃO

Apesar de a preocupação com os direitos humanos sempre ter existido, sua violação
tem sido constante ao longo da história da humanidade. Um dos primeiros registros de
direitos da história, como o código de Hamurabi, já continha disposições voltadas aos
direitos humanos, mesmo contendo severas disposições regulamentadoras. Na Inglaterra,
os direitos humanos foram positivados pelo Bill of Right, que procurava proteger seus
súditos limitando os poderes do monarca; na Franca, a Revolução Francesa resultou em
uma declaração dos direitos do homem e do cidadão e nos Estado Unidos as discussões
acerca das novas Constituições demonstrava a preocupação com os direitos fundamentais
dos cidadãos.
No século XX, essa preocupação se intensificou e logo após a Primeira Guerra
Mundial foi criada a Liga das Nações e a Organização Internacional do Trabalho, para que
os direitos mínimos relacionados à dignidade humana fossem garantidos. Nesse período,
embora tivessem surgido Constituições de cunho social, como a Constituição Mexicana de

801
Advogada, mestra em políticas públicas pela UFABC; e-mail: elianecarvalhomeza@yahoo.com

1581
1917 e Constituição alemã de Weimar de 1919, o mundo ainda não tinha conseguido
manter a eficácia e aplicabilidade dessas normas, oscilando entre pequenos avanços e
grande retrocessos (LEMBO, 2007).
Após a Segunda Guerra Mundial o mundo se viu consternado com as atrocidades
que foram cometidas sob o manto do direito positivo. Assim, em 1945, foi criada a ONU
(Organização das Nações Unidas) e em 1948 foi promulgada a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Segundo Piovesan (2015), a Declaração de 1948 introduziu uma nova
concepção de direitos humanos, na qual os “princípios da universalidade e indivisibilidade”
ganharam centralidade, visto a necessidade premente que esses direitos fossem universais
e, ao mesmo tempo, “respeitassem a pessoa humana como um ser único, titular de
dignidade e de direitos indivisíveis e irrenunciáveis”. A partir daí, começou a se desenvolver
o Sistema Internacional de Direitos Humanos, cujo escopo foram os vetores contidos nessa
Declaração.
Apesar de sua importância, a força valorativa da Declaração de 1948 consistia em
uma série de princípios que serviam apenas como vetores para a elaboração de tratados e
convenções, uma vez essa Resolução da ONU era desprovida de caráter coercitivo, de
modo que, não havia como obrigar os países a cumprirem as normas dessa resolução; daí
a necessidade de vincular os países por meio de tratados e convenções internacionais.
Nesse sentido, foram celebrados diversos acordos por meios de tratados multilaterais,
resoluções e recomendações a fim de garantir a universalização e a manutenção dos direitos
humanos.
Embora no curso de sua implementação os direitos humanos tenham apresentado
inegáveis avanços, sua aplicação relativa à perspectiva de gênero ainda não tem
apresentando a mesma eficácia que os direitos genéricos. Diante disso, esse trabalho parte
de uma pesquisa quantitativa e qualitativa de decisões judiciais relativas a violência
doméstica a fim de verificar a eficácia e aplicabilidade das normas de direitos humanos
voltadas à política pública de combate à violência contra a mulher, partindo do
levantamento de ações judiciais com lastro na aplicabilidade da Lei Maria da Penha e
visando a verificação de sua eficácia enquanto medida protetiva contra a violência
experimentada pelas mulheres no município de São Bernardo do Campo, São Paulo.
A Pesquisa foi realizada nas Varas Criminais do Tribunal de Justiça do município
de São Bernardo do Campo, utilizando-se na busca a palavra-chave “violência doméstica”
na página de consultas de julgados de 1º grau no site do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, disponível em http://esaj.tjsp.jus.br/cjpg em agosto de 2017. Nesse período,

1582
utilizando-se esse parâmetro de busca, foram encontrados 245 processos no site do
Tribunal, relativos às varas criminais da comarca.
A partir disso, passou-se a leitura das sentenças para que por meio da análise do
conteúdo desses documentos fosse possível aferir os motivos que justificavam a
inaplicabilidade da Lei Maria da Penha. Assim, a pesquisa empírica selecionou 150
sentenças a fim de verificar seu conteúdo decisório. Dessa forma, esse trabalho se encontra
dividido em três partes: a primeira falando sobre a violência doméstica e criação da Lei
Maria da Penha, a segunda trata da aplicação e eficácia da lei Maria da Penha nas sentenças
analisadas e a terceira trata da análise das sentenças e da mulher como objeto de direito.

A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E A CRIAÇÃO DA LEI MARIA DA PENHA

Embora os direitos humanos da mulher tenham sido reconhecidos há muito


tempo pelo Estado Brasileiro, somente em 2006 foi editada uma lei para a sua
defesa (CONINGHAN, 2011, p. 32).

No Brasil, a violência contra a mulher no ambiente doméstico sempre ocorreu e


até pouco tempo era justificada por uma legislação que dava ao marido e ao pai plenos
poderes sobre a mulher, permitindo que a violência perpetrada contra as mulheres fosse
reforçada diante de sua impunidade. Mesmo com a revogação dessas leis, a violência
continua e, para Silva e Batista (2017), a violência doméstica tem sido um dos temas de
maior repercussão em nossa atualidade, tendo em vista que no Brasil ainda impera uma
cultura machista.
A definição de violência faz parte do corpo da Lei Maria da Penha em seu artigo
5º:

Violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou


omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico,
sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade
doméstica (...) ou em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor
conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de
coabitação (Art. 5 da Lei 11340/06).

Ao buscarem as instâncias judiciais de apoio, a maioria das mulheres não tem o


amparo legal previsto, o que acaba sendo uma proteção institucional meramente teórica.
Caso a agressão chegue até o judiciário, não existe garantia de punibilidade, pois em muitos
casos o agressor tem sido absolvido por falta de provas ou porque foi afastada a aplicação

1583
da Lei 11.340, de 7 de agosto de 2006, respondendo apenas pelo crime de lesão corporal,
tipificado no artigo 129 do Código Penal, ou por outro tipo penal escolhido pelo juiz (a).
Essa situação gera uma sensação de impotência que, muitas vezes, leva a mulher a
se sentir culpada pelo transtorno, pois além da agressão física, existe também a psicológica,
cujos efeitos são de muito mais difíceis reversão (SILVA; BATISTA, 2017).
Nos dias atuais, apesar da repercussão que os casos de violência doméstica têm
obtido, a legislação protetiva ainda não surtiu o efeito desejado, pois, como todas as leis
que garantem direitos aos indivíduos em situação de risco, se não houver empenho para
sua aplicação, pode acabar virando letra morta.
Achuti (2012) chama a atenção para isso, ressaltando que a ausência de integração
entre os órgãos que compõem o sistema protetivo como o Judiciário, o Ministério Público
e as instâncias administrativas responsáveis pelas medidas assecuratórias e preventivas
prevista na Lei, vêm deixando a mulher à sua própria sorte.
A Lei 11.340/06 só foi criada porque o Brasil foi considerado culpado junto à OEA
pelo descumprimento do tratado internacional assinado, ou seja, o país assinou a
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que envolvia países membros da
Organização dos Estados Americanos, para a garantia da proteção dos Direitos Humanos
e o descumpriu. Em 1983, Maria da Penha sofreu uma tentativa de homicídio do então
seu marido; ela sobreviveu, mas ficou paraplégica. Ele foi condenado, mas devido a vários
recursos interpostos no curso do processo, ele não ainda não tinha sido preso. Como o
Estado não conseguia resolver a demanda, em 1988 o CEJIL (Centro para a Justiça e o
Direito Internacional) e o CLADEM (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher), juntamente com Maria da Penha, enviaram o caso para a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA), por conta da demora em ter uma
decisão definitiva no processo. Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
responsabilizou o Brasil por negligência e omissão em relação à violência doméstica,
fazendo várias recomendações para que fossem tomadas medidas de proteção à mulher.
Com isso, a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (criada
pela Lei 10.683 de 2003- que foi transformado em Ministério das Mulheres, Igualdade
Racial e Direitos Humanos – criado pela Medida Provisória 696 de 2015 e atualmente
extinto) coordenou um grupo de trabalho formado por representantes de diversos
ministérios e um consórcio de ONGs para a elaboração de um projeto de lei de combate
à violência contra a mulher, resultando na Lei Maria da Penha.

1584
A APLICAÇÃO E EFICÁCIA DA LEI MARIA DA PENHA NAS SENTENÇAS
ANALISADAS

Nos dias atuais, mesmo após a edição da Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06), o
Brasil ainda assiste a um crescimento desmedido nos casos de violência doméstica. Embora
essa Lei tenha representado um avanço na defesa da mulher, sua efetividade vem sendo
questionado na medida em que o Judiciário afasta sua aplicação para aplicar outros delitos
tipificados no Código Penal, permitindo uma série de benefícios que a Lei 11.340/06
proíbe expressamente. Essa situação ocasiona uma sensação de impotência e violência
psicológica que reforça, na vítima, a violência que foi sofrida anteriormente (SILVA;
BATISTA, 2017).
Achuti (2012) argumenta que parte dessa ineficácia decorre da ausência de
integração entre os órgãos que compõem o sistema protetivo e da fragilidade da instrução
probatória do inquérito policial; o artigo 155 do Código de Processo Penal, entra em
conflito com a Lei Maria da Penha, que acaba não sendo aplicada pelo Judiciário. Essa
negligência institucional provoca uma situação de “revitimização” da mulher, que acarreta
reflexos sociais e psicológicos na medida em que a submete a uma segunda forma de
violência.
Mesmo tendo uma predição bastante progressista, a não aplicação da Lei Maria da
Penha tem motivos institucionais. Coningham (2011), afirma que “a Lei Maria da Penha
encontra muita resistência dentro do próprio meio jurídico e não raras vezes deparamo-
nos com arrazoados impregnados de fundamentos sexista e preconceituosos contra
mulheres”. Além das questões físicas de implantação dos Juizados de Violência Contra a
Mulher, podemos também entender essa resistência como fruto de um embate cultural,
visto que a mulher deixa de ser vítima na esfera privada e passa a ser contemplada com a
proteção do Estado (esfera pública). Conforme Jesus (2015), “a distribuição da violência
reflete a tradicional divisão dos espaços: o homem é vítima da violência na esfera pública,
e a violência contra a mulher é perpetuado no âmbito doméstico” (...) (JESUS, 2015).
Além do embate cultural, Jesus (2015) aponta outra dificuldade na aplicação da lei:
“a linguagem jurídica para o enquadramento das situações”. A Lei Maria da Penha trouxe
o combate à violência contra a mulher para o campo da polícia e do Direito, com uma
linguagem específica e trazendo modificações no Código Penal (o crime de feminicídio,
por exemplo). Essa mudança é recente e a falta de treinamento específico dos atores
envolvidos no atendimento desses casos tem gerado boletins de ocorrência que não

1585
atendem às exigências da lei, o que resulta na maior parte das vezes na atribuição da
inocência ao autor da violência.
A aplicabilidade de uma lei decorre de um processo de hermenêutica jurídica que
é feito não apenas no momento da aplicação da lei infraconstitucional, mas principalmente
na apreciação das normas constitucionais a fim de verificar sua eficácia e aplicabilidade.
Como as normas constitucionais são dotadas de abstração sua implementação muitas vezes
requer concretude por meio de normas infraconstitucionais e essas normas são
constantemente avaliadas se estão em consonância com o projeto desenhado pela
Constituição do Estado (BARROSO, 2009). No entanto, quando esse processo de
interpretação das normas jurídicas é relativo a normas internacionais a hermenêutica
jurídica ganha contornos de extrema complexidade, tendo em vista que muitas normas
apresentam lacunas e antinomias em relação as outras.
Segundo Barroso (2009), a ordem jurídica de cada Estado constitui um sistema
lógico, composto de elementos que se articulam harmoniosamente e por isso não podem
coexistir normas incompatíveis no ordenamento jurídico. Para resolver esses problemas os
sistemas jurídicos recorrem a três critérios: a hierarquia entre as normas, sua especialização
em relação as outras e o critério temporal que afirma que norma posterior revoga norma
anterior. Assim, pelo critério hierárquico,

Se a Constituição e uma lei ordinária divergirem, é a Constituição quem


prevalece. Se um decreto regulamentar desvirtuar o sentido da lei, será
inválido nesta parte. Se a resolução deixar de observar o teor do
regulamento, não poderá prevalecer [Segundo a especialização],
havendo uma regra geral e uma especial (ou excepcional), prevalece a
segunda pois, lex specialis derogat generalis (BARROSO, 2009).

Essa regra não se aplica entre as normas constitucionais, já que estas possuem o
mesmo status e embora, não raramente, os princípios fundamentais se choquem por
ocasião de sua aplicabilidade, normalmente um tem que ceder em detrimento do outro ou
ambos têm sua eficácia reduzida, já que se tratam de normas válidas e, portanto, passíveis
de aplicação. Quando se pensa em tratados sobre direito humanos está se falando
especificamente em normas de cunho constitucional cuja doutrina pátria

Evoca duas grandes correntes doutrinárias que disputam o melhor


equacionamento da questão: o dualismo, pregado no âmbito
internacional e adotado pelo Brasil por parte da doutrina e o monismo,

1586
desenvolvido por Hans Kelsen e seguido também por outra parte da
doutrina brasileira (BARROSO, 2009).

Essas correntes doutrinárias impactam especialmente na aplicação concreta das


normas de direitos humanos no cenário nacional, levando os tribunais a decisões
antagônicas que na maior parte das vezes representa a ineficácia dos direitos previstos em
tratados e convenções internacionais.
Esse fato se mostrou representativo, especialmente, no período que antecedeu a
publicação da Lei Maria da Penha quando a mulher que lhe deu o nome não conseguiu
fazer valer seus direitos no território nacional sem recorrer aos órgãos internacionais de
proteção aos direitos humanos. Apesar da promulgação de Lei Maria da Penha em 2006
e sua obrigatoriedade de aplicação no território nacional, verifica-se que ainda existem
fatores que levam alguns juízes a afastarem sua aplicação aos casos concretos,
fundamentando suas decisões em elementos fáticos, justificados na dilação probatória do
caso concreto, que na visão do magistrado afastam a aplicação da lei em detrimento das
regras gerais contidas no Código de Processo Penal brasileiro.
Um outro fator que também demonstrou influenciar na dificuldade de aplicação da
Lei tem sido a falta de capacitação de pessoal para o adequado atendimento às vítimas de
violência doméstica. Essa falta de preparo pode ser observada desde o atendimento na
delegacia, passando pelas (os) profissionais multidisciplinares e chegando até ao próprio
Judiciário. Um exemplo claro pode ser tomado em uma das sentenças analisadas, onde o
magistrado confirma a agressão, mas coloca que a vítima não comprovou a autoria do fato;
essa é uma postura não condizente com os novos procedimentos vislumbrados pela Lei
Maria da Penha, onde o depoimento da mulher tem um peso diferenciado.

ANÁLISE DAS SENTENÇAS, NOVOS DIREITOS E A MULHER COMO


OBJETO DE DIREITO

A pesquisa foi realizada nas Varas Criminais do Tribunal de Justiça do município


de São Bernardo do Campo, utilizando-se na busca a palavra-chave “violência doméstica”
na página de consultas de julgados de 1º grau no site do Tribunal de Justiça do Estado de
São Paulo, disponível em http://esaj.tjsp.jus.br/cjpg em agosto de 2017. Nesse período,
utilizando-se esse parâmetro de busca, foram encontrados 245 processos no site do
Tribunal, relativos às varas criminais da comarca.

1587
Nesse trabalho foram observadas 64 sentenças judiciais e nessas sentenças verificou-
se que há um índice muito baixo de aplicação da Lei Maria da Penha, pois na maioria dos
casos o Judiciário afastou o enquadramento do fato na Lei e aplicou a pena prevista para
os crimes tipificados no Código Penal, que aceitam substituição da pena por multa ou cesta
básica como, por exemplo, o de lesão corporal, disciplinado no artigo 109 deste dispositivo
legal. Esse enquadramento aceita também os benefícios disciplinados na Lei 9099/91 (Lei
que instituiu os Juizados Especiais), tais como a Suspensão Condicional do Processo e
Transação Penal, já que estes permitem ao acusado manter sua inocência desde que ele
cumpra determinados requisitos. Esses benefícios são expressamente afastados pela Lei
Maria da Penha, tendo em vista a gravidade e a natureza dos crimes cometidos contra a
mulher; com a aplicação da Lei 9099/95 o autor do delito pode acabar pagando apenas
uma cesta básica e ficar liberado, causando uma sensação de impunidade de seus atos e de
injustiça para a vítima.
Esse não enquadramento dos processos na Lei Maria da Pena tem fundamento no
Código de Processo Penal, que permite que o juiz (a), com fulcro no Princípio da Livre
Convicção, a possibilidade de escolher a legislação que será aplicada ao fato delitivo. Essa
discricionariedade na apreciação da prova e na aplicação da legislação ao fato delitivo tem
permitido ao juiz (a) afastar a aplicação da Lei Maria da Penha.
Assim, das sessenta e quatro sentenças selecionadas, 3% a punibilidade foi extinta
porque o juiz substituiu a Lei Maria da Penha pelos artigos 109 do Código Penal, passando
a ter a transação penal com base no artigo 89, § 5º da Lei 9099/95 e essa foi cumprida. Em
17% dos casos houve a absolvição do réu porque o juiz entendeu que o conjunto probatório
era insuficiente para a sua condenação, apesar de estar comprovado no inquérito policial
o fato delitivo, com provas colhidas, inclusive exame de corpo delito. Isso acontece porque
essas provas são consideradas apenas indícios, podendo o juiz (a) desconsiderá-las face a
outras provas colhidas na instrução criminal durante o curso do processo e tendo em vista
a demora no judiciário para julgamento dos feitos, as marcas das agressões podem já ter
desaparecido, restando o depoimento da vítima e testemunhas.
Na maioria das sentenças os juízes (as) desconsideraram o depoimento das vítimas
e suas testemunhas (que se tivesse sido aplicada a Lei Maria da Penha teria um peso
diferenciado), mesmo de estar comprovado o fato delitivo no inquérito policial. Em vista
disso, diversas decisões judiciais alegaram que, embora a materialidade do fato tenha sido
comprovada no inquérito policial, a autoria não tinha sido comprovada nos autos do

1588
processo; juntou-se a isso a negatória da autoria do fato pelo réu e a crença do juiz na
palavra do agressor, que em todos os processos analisados eram homens.
Em 13% dos casos os réus foram absolvidos porque reconheceu-se a prescrição e
o processo foi extinto sem o julgamento do mérito da ação e somente em 18% dos casos
os réus foram condenados com base na Lei Maria da Penha.
Em 66% dos casos houve condenação, desse total, apenas 7% foi com base na Lei
Maria da Penha, no restante dos processos o (a) juiz (a) aplicou penas alternativas de
direitos, sendo todas elas de prestação de serviço comunitário. A Lei Maria da Penha
proíbe a aplicação de penas alternativas aos casos de violência doméstica contra a mulher,
mas o Judiciário ainda não se conscientizou da necessidade da aplicação dessa lei
específica.
Apesar de a legislação de violência contra a mulher ter avançado muito no Brasil e
contar com o apoio do direito internacional para a sua aplicação, sua efetividade no plano
doméstico é muito baixa, pois isso decorre de uma série de motivos que vão desde
problemas culturais até problemas estruturais; esses impedimentos para a aplicação da Lei
Maria da Penha denota a objetificação da mulher pelo Poder Judiciário.
Para Gomes (2016), a Constituição Federal de 1988 positivou uma

Gama de novos direitos no que tange à situação jurídica da mulher, que,


tutelada em nível constitucional, passa a gozar de outro status como
sujeito de direitos [merecendo] tratamento diferenciado, porém não
discriminatório em função das especificidades de seu sexo (GOMES,
2016, p. 81).

A Lei 11.340/06 foi criada a partir do entendimento da posição vulnerável das


mulheres nas relações familiares, assim, sua estruturação foi feita de forma a trazer
equidade nessas relações no âmbito legal e isso trouxe, também, o vislumbre da mulher
como pessoa, cidadã. Quando o juiz (a) opta por não aplicar essa lei nas condenações, ele
(a) está desconsiderando essa posição de vulnerabilidade e reforçando o posicionamento
de pertencimento da mulher ao homem. Como exemplo podemos citar o artigo 6º do
Código Civil de 1916 – Lei 3071/16 (que somente foi revogado em 2002), que dizia que
“são incapazes relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer, II – as mulheres
casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal” (BRASIL, 1916). Esse artigo traz uma
ideia de que a mulher casada não tinha condição de representar a si mesma (capacidade
legal), ela seria representada por um homem e essa lei perdurou até 1962, quando a lei

1589
4.121 de 27 de agosto de 1962 – Estatuto da Mulher Casada - alterou o dispositivo
excluindo as mulheres como relativamente incapazes:

Art. 6º São incapazes relativamente a certos atos (art. 147, nº I), ou à


maneira de os exercer:
I - Os maiores de 16 e os menores de 21 anos (arts. 154 e 156).
II - Os pródigos.
III - Os silvícolas.
Parágrafo único. Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar,
estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida
que se forem adaptando à civilização do País (BRASIL, 1962).

Entretanto, o artigo 233, inciso I, manteve o homem como representante da família,


como se pode observar: “Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que
exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos (arts. 240,
247 e 251). Compete-lhe: I - A representação legal da família” (BRASIL, 1962). Essa
situação só se modificou com a publicação do Código Civil de 2002 (Lei 10406/02), ou
seja, somente após 14 anos da Constituição ter igualado homens e mulheres, é que os
legisladores modificaram esse artigo sobre a representação da família (incluindo a mulher)
caber ao homem.
Quando o (a) Juiz (a) opta por fundamentar o julgamento pelos artigos do Código
Penal excluindo a Lei Maria da Penha, ele (a) assume uma posição antagônica em relação
à Constituição Federal, que colocou a mulher na posição de sujeito de direito. Esse
posicionamento

CONCLUSÃO

A análise dos casos nos quais os juízes deixaram de aplicar a Lei Maria da Penha
demonstrou que ainda hoje existe uma resistência na implementação das medidas previstas
nela. Apesar de ela trazer diversas normas para a condenação efetiva dos agressores, a
concretização delas, muitas vezes, deixa de ocorrer porque acaba conflitando com outros
institutos jurídicos ou depende da discricionariedade do (a) julgador (a), o que acaba
inviabilizando sua plena efetividade.
Um fator muito importante que influencia nesse aspecto é a dificuldade de
produção de provas, já que os casos relacionados à Lei Maria da Penha geralmente
ocorrem no seio dos lares, onde não existem outras testemunhas senão os casais que
entram em atrito e os filhos deste que, muitas vezes, por serem menores, não podem

1590
prestar depoimento. Dessa forma, na maioria dos casos, as provas colhidas em audiência
são filtradas a partir do depoimento da vítima e da oitiva do réu, que normalmente nega as
agressões perpetradas.
Além disso, as provas colhidas no inquérito deixam de ser levadas em conta mesmo
instruídas com exame de corpo de delito, pois o Código de Processo Penal classifica as
provas colhidas na fase extrajudicial como mero indício. Assim, as provas colhidas nessa
fase são desvalorizadas em detrimento daquelas colhidas no Juízo, durante a Instrução
Criminal, levando a crer na esdrúxula situação de que a vítima teria que ser agredida
perante o (a) Juiz (a) para que a prova fosse levada em conta por ele (a).
Um aspecto também relevante encontrado nessas decisões judiciais diz respeito a
substituição pelo juiz do tipo penal aplicado ao caso concreto, pois ao passar a responder
pelo crime de lesão corporal o agressor tem afastado um elemento importante que é a lesão
à proteção do ambiente familiar, visto que o crime de lesão corporal se aplica a qualquer
pessoa seja homem, seja mulher, dentro ou fora do âmbito familiar. Além disso, o tipo
penal caracterizado por lesão corporal tem várias gradações permitindo ao réu diversos
benefícios previstos no próprio Código Penal e na Lei 9099/91 – Lei dos Juizados Especiais
Cíveis e Criminais. Esse acaba sendo, portanto, um dos principais fatores encontrados nas
sentenças que vem contribuindo para a inaplicabilidade tendo em vista que sempre caba
ao órgão julgador a escolha da legislação que será aplicada ao caso concreto.
Em todas as sentenças foi possível identificar os três pontos de dificuldade de
aplicação da lei: a questão cultural que reflete o machismo institucional da nossa sociedade
na qual o depoimento da mulher é desvalorizado em detrimento do masculino, atribuindo
à esse a veracidade da história; o excesso jurídico utilizado na linguagem das sentenças para
justificar as absolvições e a falta de aplicação da Lei Maria da Pena e, sobretudo, a falta de
capacitação dos juízes e juízas para aplicaram essa Lei de forma adequada, especialmente
quando submetem o caso concreto à norma, pois tal discricionariedade pode acarretar
resultados práticos diversos em situação parecidas.
A não aplicação da Lei Maria da Penha é um retrocesso, na prática, da posição das
mulheres como sujeito de direito, já reconhecido pela Constituição Federal de 1988.

REFERÊNCIAS

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1593
FEMINICÍDIO: O GÊNERO DE QUEM MATA E DE QUEM MORRE

Gabriela Catarina CANAL802

Naiara Sandi de Almeida ALCANTARA803

Resumo: A presente pesquisa, oriunda de um projeto de iniciação científica em andamento, é


fundamentada pela perspectiva de teóricas feministas e por obras de Direito Penal, Criminologia,
Antropologia e Sociologia Jurídica, analisa a criação do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), uma
qualificadora do delito de homicídio que prevê aumento das margens penais para determinadas
circunstâncias, incluindo a conduta no rol de crimes hediondos, aqueles que o estado considera de
extrema gravidade e, por isso, recebem sanções penais mais gravosas. Na letra da lei, feminicídio é
a morte de mulheres por razões da “condição de sexo feminino”, quando o crime envolve violência
doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Nesse sentido,
embora se reconheça que o fenômeno perpassa o ambiente doméstico e familiar, a análise aborda
a estreita relação entre violência doméstica e feminicídios perpetrados na esfera conjugal e/ou de
intimidade, especialmente entre casais cisgênero e heteroafetivos, pois é no entrecruzamento destas
categorias que ocorrem a maioria dos feminicídios. Objetiva, deste modo, demonstrar como as
relações de poder, que tornam homens e mulheres substancialmente desiguais, são capazes de
impulsionar e legitimar a posse e o controle sobre o corpo feminino através de agressões físicas,
verbais, emocionais, psicológicas, patrimoniais e sexuais. Por conseguinte, essa pesquisa tem como
escopo situar o feminicídio a partir de sua carga simbólica, ressaltando, contudo, que sua
importância vai muito além desta, ou seja, concebendo a nova qualificadora como o passo inaugural
para o reconhecimento da extensão da problemática, conferindo-lhe o status de referência para a
criação de políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero. Por fim, serão feitas
considerações sobre desejos punitivistas e a consequente demanda por judicialização das pautas
feministas no cenário nacional, ressaltando como a Lei do Feminicídio tem contribuído para
reascensão deste debate.

Palavras-chave: Feminicídio. Punitivismo. Políticas Públicas.

INTRODUÇÃO

A lei nº 13.104/2015, a chamada Lei do Feminicídio, alterou o art. 121 do Código


Penal, com a adição do feminicídio como circunstância qualificadora804 do crime de
homicídio, prevendo situações em que a pena é aumentada de um terço até a metade e
incluiu o delito no rol de crimes hediondos, aqueles que o Estado considera de extrema
gravidade e, portanto, recebem sanção penal mais gravosa. Na letra da lei, feminicídio é a
morte de mulheres por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolve

802
Graduanda em Direito pela Universidade Estadual de Maringá (UEM). E-mail:
gabrielacatarina11@gmail.com.
803
Pós-Graduanda no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá
(UEM). E-mail: nayara_sandy@hotmail.com.
804
São circunstâncias que, por aumentarem o grau de reprovabilidade de determinada conduta, dilatam as
margens penais do delito correspondente. 1594
violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher,
cujas margens penais são de 12 a 30 anos de reclusão.
Definir e nomear são os primeiros passos para reconhecer as dimensões do
problema, para que seja possível a criação de mecanismos de prevenção e enfrentamento.
O feminicídio configura-se como a morte de mulheres em contextos discriminatórios, que
remontam a arcaica concepção da hegemonia do sexo masculino.
A Lei 13.104/15 surgiu após a recomendação da Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito sobre Violência contra a Mulher (CPMI-VCM), que, ao propor a criação de uma
qualificadora ao crime de homicídio, por meio da PLS 292/2013, descreveu o feminicídio
como a forma extrema de violência de gênero que resulta na morte da mulher,
reproduzindo clássico conceito feminista que considera a conduta como um crime de ódio,
afinal, mulheres são mortas simplesmente por serem mulheres.
Originalmente, foram previstas três circunstâncias como qualificadoras: relação
íntima ou de afeto, isto é, violência doméstica e familiar; violência sexual; e mutilação ou
desfiguração da vítima. Todavia, após discussão no Senado Federal, redefiniu-se a
qualificadora como “contra a mulher por razões de gênero” e incluiu-se uma quarta
circunstância qualificadora, o emprego de tortura ou qualquer outro meio cruel ou
degradante. A Procuradoria da Mulher do Senado Federal, todavia, propôs um novo
projeto, limitando a qualificadora a apenas duas situações: violência doméstica e familiar;
e menosprezo ou discriminação à condição de mulher. E ainda, inovou ao propor o
aumento da pena em um terço à metade quando o crime é praticado: durante a gestação
ou nos três meses posteriores ao parto; contra pessoa menor de 14 e com mais de 60 anos;
e na presença de ascendente ou descendente.
Na Câmara, por pressão da bancada religiosa, substituiu-se a expressão “razões de
gênero” por “razões da condição de sexo feminino”, intentando, claramente, a exclusão de
mulheres transexuais e travestis da esfera de abrangência da lei. Esta definição legal de
feminicídio como a morte por razões da condição do sexo feminino representou um
retrocesso teórico em relação aos estudos feministas e de gênero, que desde a década de
50, especialmente a partir de Simone Beauvoir, romperam com a noção biológica e
dicotômica entre feminino e masculino (CAMPOS, 2015, p. 110).
As desigualdades de gênero, sejam elas sociais, políticas, econômicas, ou culturais,
além de limitarem o acesso das mulheres às mesmas oportunidades dos homens nos
campos acadêmicos, profissionais e políticos, também são responsáveis pela idealização,

1595
por parte de muitos destes, de um sentimento de posse capaz de torná-las meros objetos
sexuais, sob os quais acreditam ter poder e domínio.
É justamente essa situação de subordinação, na maioria das vezes agravada por
dependências emocionais e financeiras, a responsável pelos trágicos episódios de
feminicídio, que são as mais recorrentes manchetes nos jornais brasileiros. Os feminicídios
ocorrem, em sua grande maioria, no seio de relacionamentos afetivos ou de intimidade,
principalmente quando a mulher não quer mais prosseguir com o relacionamento. Deste
modo, infere-se que o feminicídio tem origem na infração das normas de superioridade
masculina que determinam a posse e o controle sobre o corpo feminino. Tratam-se de
crimes de poder, que visam a manutenção e reprodução deste (SEGATO, 2006, p. 4).
A tipificação da qualificadora, por conseguinte, consiste justamente em uma
estratégia para demonstrar as especificidades dos assassinatos contra mulheres, isto é, para
retirá-los do âmbito genérico de “homicídios”, e destacá-los como crimes oriundos do
patriarcado. Não se pode, todavia, acreditar que a criminalização será capaz de resolver o
problema. Os feminicídios representam o grau máximo da violência de gênero, logo, é de
se supor que ocorrem porque o sistema de prevenção e combate à violência é falho em
diversos aspectos.
Neste sentido, a proposta é situar o feminicídio para além da sua carga simbólica,
que tem sido utilizada para embasar as mais severas críticas à nova qualificadora. Sem
deixar de fazer considerações dogmáticas e político-criminais com relação ao aumento das
margens penais, bem como no que refere à contradição existente dentro dos próprios
movimentos feministas quanto a judicialização de suas pautas, pretende-se ressaltar o
inegável viés político da adoção da nova qualificadora, que pode ser concebida como
referência, em conjunto com a Lei Maria da Penha, para a concepção de políticas públicas
de enfrentamento à violência de gênero.

O GÊNERO DE QUEM MATA E DE MORRE

Para se compreender o feminicídio é preciso que a categoria analítica de gênero


seja utilizada como referencial. Para tanto, tomamos por base a definição de Joan Scott, a
qual é dividida em duas partes:

[...] o gênero é um elemento constitutivo das relações sociais baseado nas


diferenças percebidas entre os sexos, [...] é uma forma primeira de
significar as relações de poder. As mudanças na organização das relações

1596
sociais correspondem sempre à mudança nas representações de poder,
mas a direção da mudança não segue necessariamente um sentido único
(SCOTT, 1989, p. 21).

Em seguida, Scott aponta quatro elementos, relacionados entre si, que constituem
as relações de sociais fundadas sobre as diferenças entre os sexos: 1) os símbolos
culturalmente disponíveis que evocam representações geralmente contraditórias, tais como
Eva e Adão; 2) os conceitos normativos de teoria religiosas, jurídicas e científicas que
tomam forma de uma oposição binária que afirma categoricamente o que é masculino e o
que é feminino; 3) a dimensão política para uma visão mais ampla sobre gênero, que não
o considere exclusivamente ligado ao parentesco, mas também ao mercado de trabalho
sexualmente segregado, às instituições educacionais socialmente masculinas e o sistema
político excludente; e 4) o gênero enquanto identidade subjetiva, concluindo que o gênero
é “um meio de decodificar o sentido e de compreender as relações complexas entre
diversas formas de interação humana” (SCOTT, 1989, p. 23).
Neste diapasão, o panorama das relações de gênero exposto por Scott pode ser
estendido à ciência jurídica e a forma como a mesma influenciou e continua influenciando
as relações sociais e de gênero, ao se pautar nas enraizadas concepções de cunho sexista
presente no imaginário social brasileiro. No Brasil Imperial, por exemplo, admitia-se que
os maridos assassinassem suas esposas caso viessem a cometer adultério, ao passo que ao
homem era permitido viver uma relação extraconjugal de concubinato (FACHINETO,
2011, p. 111).
Construiu-se no imaginário social a ideia de que algumas vítimas são merecedoras
das violências sofridas. Nesse sentido, muitas vezes, o feminicídio era “abrandado”,
recorrendo-se para o critério de “violenta emoção” como forma de justificar os crimes
passionais, dando a entender que qualquer pessoa, sob as mesmas condições agiria da
mesma forma.
Isto se deu em razão da forma como o pensamento moderno foi estruturado: a
partir de dualismos fixos e sexualmente hierarquizados, como razão/emoção, ativo/passivo,
que intensificam a oposição entre o masculino e o feminino, de modo que, se o direito é
visto como universal, abstrato, objetivo e racional, é identificado com o polo masculino
(CAMPOS, 2011, p. 2).
O machismo enraizado às estruturas sociais age de forma tão intensa que as
agressões contra mulheres acabam minimizadas em nome do homem trabalhador, do pai
de família ou do bom amigo. Entretanto, atualmente, a desigualdade de gênero não fica tão

1597
evidente nos próprios dispositivos legais. Ela é perceptível quando se analisa o caso
concreto. Assim, ao se pensar na relação entre gênero e justiça, constata-se a disparidade
dos meios e condições de acesso à justiça para homens e mulheres.
Formalmente, as leis não fazem distinção de gênero, contudo, substancialmente, a
realidade misógina, patriarcal e sexista impõe que o acesso à justiça para as mulheres seja
mais gravoso, custoso e até mesmo constrangedor, afinal, as mesmas têm seus discursos
deslegitimados, desacreditados e ridicularizados por agentes estatais descapacitados.
Sem juízos de equidade, leis objetivas e neutras acabam produzindo e reproduzindo
desigualdades de gênero, demonstrando que o ideal de neutralidade científica é uma
falácia, e mesmo que fosse verdadeiro, não seria totalmente eficiente, por conta da grande
dificuldade em se alcançar a verdadeira justiça, aquela pautada no tratamento desigual para
desiguais com fins a eliminar os critérios que colocam os homens em posição
hierarquicamente superior em relação às mulheres.
A grande maioria dos feminicídios, tentados e consumados, são perpetrados por
companheiros no âmbito doméstico, mesmo quando as mulheres denunciam as
ocorrências, o que denota a grande falha da rede de atendimento à violência doméstica e
familiar em evitar as chamadas “mortes anunciadas”. O feminicídio, nestes casos,
geralmente ocorre após o ciclo vicioso próprio de relacionamentos abusivos, que incluem
agressões variadas, rompimentos, perdões, novas agressões, chantagens, e assim
sucessivamente, em um cenário de negligência estatal e pouca ou nenhuma punição aos
agressores.
Assim, de acordo com dados estatísticos, pode-se dizer que há uma intrínseca
relação entre o gênero de quem mata e de quem morre: em 2013, foram registrados 4.762
homicídios de mulheres, e 50.3% foram cometidos por pessoas que tinham ou tiveram
relações íntimas de afeto com a mulher - de acordo com o que estabeleceu a Lei Maria da
Penha -, sendo que em 33,2% destes casos, o autor do crime foi o parceiro ou ex-parceiro.
Os índices quanto ao meio empregado nos homicídios deixam claro o requinte de
crueldade próprio dos crimes motivados por razões de gênero: 73,2% dos homicídios
masculinos foram realizados mediante o uso de arma de fogo, ao passo que 51,2% dos
homicídios de mulheres ocorreram por meio de estrangulamento, sufocação, ou com
instrumentos cortantes, contundentes ou penetrantes.805

Mapa da Violência, 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil (Flacso/OPAS-OMS/ONU Mulheres/SPM,


805

2015). Disponível em: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/feminicidio/pesquisa/mapa-da-


violencia-2015-homicidio-de-mulheres-no-brasil-flacsoopas-omsonu-mulheresspm-2015/#a-casa-como-local-
de-morte-para-as-mulheres> Último acesso em 07 de set. 2017.
1598
Não há uma regra que permite identificar, clara e de inequivocamente, se o delito
foi ou não motivado pelo desprezo à condição feminina. O que se têm são parâmetros, os
quais só são percebidos e compreendidos quando se analisa os crimes sob uma perspectiva
de gênero. Contudo, de forma geral, é possível observar um padrão em que o corpo da
mulher apresenta marcas de violência sexual ou lesões em partes do corpo que remetam à
feminilidade, como o rosto, os seios e os genitais, os quais indicam o uso de extrema
violência e tortura.
A sede da ONU Mulheres no Brasil, em parceria com a Secretaria Especial de
Políticas Públicas para as Mulheres (SPM) adaptou o protocolo latino americano de
assassinato de mulheres por razões de gênero à realidade brasileira, dando origem às
“Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as
Mortes Violentas de Mulheres - Feminicídios”. De acordo com estas diretrizes,
feminicídios íntimos são aqueles cometidos por pessoas (não só homens, uma vez que o
polo ativo independe de gênero) com quem a vítima tinha, ou tenha tido vínculo íntimo.
Embora o ambiente doméstico/familiar e as relações íntimas de afeto sejam os principais
“lócus” dos feminicídios, estes crimes não ocorrem apenas nessas esferas, afinal também
existem feminicídios não íntimos, cometidos por desconhecidos em contextos variados.
Estes crimes, muitas vezes, têm suas razões de gênero ocultadas e acabam sendo
classificados como decorrentes da criminalidade e violência urbana.
Campos (2015) pontua que a categoria femicídio/feminicídio originou-se das teorias
feministas e que o termo femicídio (do inglês femicide806) foi atribuído à Diana Russel, em
1967, utilizando-o como contraponto à neutralidade do termo homicídio. Em 1990, Diana
Russel e Jane Caputi aprimoraram o significado do termo, atribuindo-lhe o sentido de
extremo de um padrão sistemático de violência, universal e estrutural, fundamentado no
poder patriarcal das sociedades ocidentais. Contudo, a expressão feminicídio foi cunhada
por Marcela Lagarde, em 2004, como forma de evidenciar o elemento político do conceito,
isto é, a responsabilização pela negligência do estado em punir a morte de mulheres.
Ressalta, ainda, que embora diferentes, os conceitos de femicídio e feminicídio são tidos
como sinônimos para as legislações latino-americanas e na literatura feminista.

A expressão inglesa femicide foi empregada pela primeira vez por Diana Russell perante o Tribunal
806

Internacional de Crimes contra Mulheres, realizado em Bruxelas no ano de 1976, no sentido de “homicídios
misóginos de mulheres por parte de homens”, e como alternativa ao uso do termo neutro homicídio.
(RUSSELL, Diana; RADFORD, Jill. Femicide: the politics of woman killing. New York: Twayne Publishers,
1992, p. XIV).
1599
Para Jill Radford e Diana Russel (1992, p. 3) femicide, a morte misógina de
mulheres por homens, é primordialmente, uma forma de violência sexual, termo que foca
no desejo masculino por poder, domínio e controle, que se insurgem quando mulheres
superam a opressão da sociedade patriarcal.
Este texto tende a concordar, no entanto, com Carvalho e Rosa (2016, p. 178), no
sentido de que o termo empregado pelas autoras supramencionadas, qual seja, femicídio,
é mais adequado para a tutela pretendida pela qualificadora, isto porque o termo
feminicídio remete a uma subcategoria do genocídio, ou seja, parece fazer alusão ao intuito
de destruição, por completo do gênero feminino. Femicídio, por seu turno, trata de delitos
em menor escala, e relação ao homicídio, mas que também é identificado como crime de
ódio e discriminação. Ademais, entende-se que a adoção, pelo ordenamento jurídico
brasileiro, do termo feminicídio, talvez tenha sido mais uma tentativa de ressaltar a
expressividade do fenômeno no cenário nacional.
Como visto, as autoras têm um alargado conceito quanto as diversas formas e
modalidades de femicídios. Em geral, todos os femicídios são cercados pela mitologia da
“mulher culpada” e podem assumir as formas de femicídio racista, lesbicídio807, femicídio
marital, femicídio perpetrado fora do ambiente doméstico por estranhos, femicídio em
série e femicídio em massa.
Assim, o conceito de femicídio vai além das definições legais, para incluir situações
em que mulheres morrem em resultado de atitudes misóginas e práticas sociais. Logo:

Femicídio está no extremo final de um terror anti-feminino contínuo que


inclui uma ampla variedade de abusos físicos e verbais, tais como
estupro, tortura, escravidão sexual (particularmente na prostituição),
abuso infantil incestuoso e extrafamiliar, chantagens físicas e emocionais,
assédio sexual (ao telefone, nas ruas, no escritório, na sala de aula),
mutilação genital (clitoridectomias, excisão, infibulações), operações
ginecológicas desnecessárias (histerectomias gratuitas),
heterossexualidade, esterilização e maternidade forçadas (pela
criminalização de contracepção e aborto), psicocirurgias, negação de
comida para mulheres em algumas culturas, cirurgias cosméticas e outras
mutilações em nome do embelezamento (RUSSELL; RADFORD,
1992, p. 15, tradução livre808).

807
Femicídio homofóbico: motivado pela orientação sexual da mulher (RUSSELL, Diana; RADFORD, Jill.
Femicide: the politics of woman killing. New York: Twayne Publishers, 1992, p. 7).
808
Femicide is on the extreme end of a continnum of antifemale terror that includes a wide variety of verbal
and physical abuse, such as rape, torture, sexual slavery (particularly in prostitution), incestuous and
extrafamilial child sexual abuse, physical and emotionol battery, sexual harassment (on the phone, in the
1600
streets, at the office, and in the classroom), genital mutilation (clitoridectomies, excision, infibulations),
unnecessary gynecological operations (gratuitous hysterectomies), forced heterossexuality, forced sterilization,
Para Segato (2006, p. 3), a intenção das autoras, com esse excerto, era desmascarar
o patriarcado como uma instituição que sustenta o controle sobre o corpo e a capacidade
punitiva sobre as mulheres, demonstrando a dimensão política de todos os assassinatos
destas, que resultam desse controle e capacidade punitiva, sem exceção. A relação
estratégica em politizar todos esses delitos é imprescindível e ocorre na medida em que
cumpre a função de enfatizar que tais relações resultam de uma sociedade em que poder
e a masculinidade são sinônimos, impregnando o ambiente social de misoginia: ódio e
desprezo aos atributos associados com a feminilidade. As autoras falam em “terrorismo
sexual”, para indicar as formas de coação da liberdade feminina que pressionam as
mulheres para permanecerem nas posições de submissão e subordinação, previamente
estipuladas pela dominação masculina.
A leitura da violência de gênero deve ser orientada por dois eixos: O primeiro é o
vertical, que vincula as posições assimétricas de poder, ou seja, entre agressor e vítima,
enquanto o eixo horizontal relaciona o agressor a seus pares (irmandade masculina). Assim,
para que haja simetria no eixo horizontal, será preciso simetria no vertical (SEGATO,
2006, p. 5).
Para Segato, essa dependência entre um eixo e outro produz uma relação de
cobrança de tributo por parte do eixo vertical para alimentação e estabilização do eixo
horizontal, o que resulta em um fluxo afetivo, e outros tipos de obediência intelectual,
produtiva e reprodutiva – sendo todos estes equivalentes simbólicos – que expressam a
permanente situação de redenção do que se conhece como “mulher” ou “feminino”
perante o masculino. Portanto, este esquema exemplifica o sistema patriarcal e mais do
que isso, demonstra a própria arquitetura das relações de gênero.

DA TIPIFICAÇÃO DO FEMINICÍDIO NO ORDENAMENTO JURÍDICO


BRASILEIRO

A tipificação do feminicídio no Brasil insere-se na continuidade do processo de


criminalização da violência de gênero, uma tendência latino-americana iniciada nos anos
90, a partir do reconhecimento da especificidade e naturalização dos delitos cometidos
contra mulheres, isto é, da violência de gênero, antes ignorada pelo Direito Penal
(CAMPOS, 2015, p. 105).

forced motherhood (by criminalizing contraconception and abortion), psycho surgery, denial of food to
women in some culture, cosmetic surgery, and other mutilations in the name of beautification.

1601
É notório o fato de que, logo após a promulgação da Lei do Feminicídio, diversas
críticas lhe foram endereçadas, tais como a instituição de parâmetros desiguais para
homens e mulheres, configurando afronta ao princípio constitucional da isonomia; falhas
técnicas e dogmáticas, além de impropriedades político criminais, no sentido da pouca ou
nenhuma efetividade da medida no combate à violência de gênero e, por fim, com relação
à ineficácia e falência do sistema penal para a solução da problemática.
No tocante à última das críticas apontadas, uma das mais contundentes
considerações foi realizada por Maria Lúcia Karam, em seu texto “Os paradoxais desejos
punitivistas de ativistas e movimentos feministas”, publicado na revista online Justificando,
em 2015. 809
Argumenta a autora que ativistas e movimentos feministas ou de direitos humanos
tem sido corresponsáveis pela “desmedida expansão do poder punitivo” que acaba
suprimindo direitos humanos por meio de violações aos princípios constitucionais e
garantias presentes em declarações internacionais.
Karam entende que, ao se reivindicar o rigor do sistema penal contra aqueles/as
que são apontados/as como responsáveis pela violência de gênero, ativistas e movimentos
feministas acabam, paradoxalmente, reafirmando a ideologia patriarcal, isto porque o
sistema penal promove violência, estigmatização, marginalização, sofrimento, desigualdade
e discriminação. Define, por exemplo, a Lei Maria da Penha como um lamentável exemplo
da cega adesão dos movimentos feministas ao sistema penal, pois considera que a sua
promulgação não promoveu nenhuma mudança quanto à prevenção de morte de mulheres
resultantes de agressões, expondo que os índices variaram muito pouco. Estende a sua
crítica à Lei nº 13.104/15, a Lei do Feminicídio.
A autora critica a crença na natureza simbólica das leis penais criminalizadoras,
defendida por ativistas e movimentos feministas argumentando que estes, parecem não
perceber ou não se importarem com o fato de que as leis simbólicas não têm efeitos reais,
pois não abalam as origens, estruturas e mecanismos produtores de qualquer problema
social. O apelo ao viés simbólico, para ela, consiste em mais uma tentativa de legitimar o
falido sistema penal, que promove a divisão entre “cidadão leal” à lei e “inimigo”, negando
a dignidade inerente a todos os indivíduos.
Nesse mesmo sentido, Vera Regina Pereira de Andrade (2016), na obra “Sistema
penal máximo x cidadania mínima: códigos de violência na era da globalização” defende

809
Disponível em: <http://justificando.com/2015/03/13/os-paradoxais-desejos-punitivos-de-ativistas-e-
movimentos-feministas/>

1602
uma inversão desta polarização: ao considerar que o sistema penal é ineficaz para proteger
as mulheres contra a violência, pois não possui o condão preventivo, tão pouco de
ressocialização e ainda, promove a vitimização feminina, por isso, entende necessário que
o Direito Penal perca força com a diminuição da criminalização e potencialização da
cidadania através dos mecanismos previstos na própria Constituição Federal.
Não há como negar a veracidade das críticas acima endereçadas. Por óbvio,
entende-se da mesma forma, que o sistema penal é falho em diversos aspectos, e que não
pode, portanto, ser apontado como uma solução “mágica” para a violência, e não é essa a
pretensão dos movimentos feministas e de ativistas por direitos humanos. A resposta a esta
crítica é justamente essa: nem a Lei Maria da Penha, nem a Lei do Feminicídio foram
criadas com a pretensão de solucionar, de imediato, a estrutural violência de gênero
presente no país. Configuram-se, na verdade, como estratégias de enfrentamento que dão
margem a criação de respostas não penais com teor preventivo e educativo, capazes de
impulsionar políticas públicas eficazes a partir do reconhecimento das peculiaridades dos
crimes cometidos nos contextos de violência doméstica, familiar e de gênero.
Além disso, é significativo ressaltar que a Lei do Feminicídio, tecnicamente, não
tipificou uma nova conduta. Antes de sua promulgação, é claro que os homicídios de
mulheres já estavam previstos na lei penal, encabeçadas nas demais qualificadoras do art.
121 do Código Penal. O que a nova qualificadora proporcionou foi, para além do viés
simbólico de um pretenso “efeito moral”, um efetivo teor político no sentido de esclarecer
que mulheres, todos os dias, morrem pelo simples fato de serem mulheres (ou se
identificarem com este gênero), e que o Direito Penal não podia continuar alheio a este
fato, contribuindo com a perpetuação de estereótipos de gênero, e a consequente
segregação social produzida por estes.
Há que se reconhecer, contudo, que a Lei do Feminicídio, na previsão das
hipóteses de aumento de pena, cometeu grave infração das normas dogmáticas,
principalmente no que se refere ao aumento relativo ao feminicídio praticado durante a
gestação ou nos 3 (três) meses posteriores ao parto (art. 121, §7º, inc. I): para que se
configure o dolo é necessário que o autor tenha consciência do fato. Neste caso, o agente
comete homicídio em concurso formal com o aborto sem consentimento da gestante (art.
125), cuja pena mínima é de 3 anos de reclusão. Assim, o réu não poderá ser condenado
pelo crime de aborto sem consentimento e feminicídio majorado, pois isso configuraria bis
in idem, repetição de uma sanção sobre mesmo fato (BARROS FILHO, 2015, p. 206).

1603
Porém, o argumento referente à violação do princípio da isonomia é totalmente
infundado: em 2013, o Brasil passou a ocupar a 5ª posição na lista de países com maiores
taxas de homicídios de mulheres, ficando atrás apenas de El Salvador, Colômbia,
Guatemala e Rússia. Em 3 anos, houve um aumento de 9% no número de assassinatos
registrados (MAPA DA VIOLÊNCIA, 2015).
É necessário salientar, todavia, que nem todos os crimes são levados ao
conhecimento das autoridades, pois se todos fossem catalogados com precisão, é possível
que o país ocupasse uma posição ainda superior à que encontra. No Brasil, os dados em
relação ao feminicídio são altos e deixam evidentes os resquícios históricos da dominação
masculina:

Um estudo feito pelo IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada


- demonstrou que entre 2009 e 2011, o Brasil registrou 16,9 mil
assassinatos de mulheres (feminicídios). Esse número indica uma taxa de
5,8 casos para cada grupo de 100 mil mulheres. A média é de 472
assassinatos de mulheres por mês. De acordo com os dados do
documento, o Espirito Santo é o estado brasileiro com a maior taxa de
feminicídios, 11,24 a cada 100 mil, seguido por Bahia (9,08) e Alagoas
(8,84). A região com as piores taxas é o Nordeste, que apresentou 6,9
casos a cada 100 mil mulheres, no período analisado. Estima-se que
ocorreram, em média, 5.664 mortes de mulheres por causas violentas a
cada ano, 472 a cada mês, 15,52 a cada dia, ou uma a cada hora e meia810.

Portanto, mulheres morrem mais. Infeliz e corriqueiramente, as mortes violentas


de mulheres chegam a ser legitimadas, direta ou indiretamente, porém, estas não possuem
o mesmo caráter que o assassinato de um homem, ainda que por motivo torpe.
As construções sociais acerca do que é feminino e do que é masculino criam os
chamados papéis de gênero, historicamente constituídos por relações hierárquicas. Assim,
discriminações, violências e concepções distorcidas acerca da condição de pertencimento
ao gênero feminino fomentam a transformação das diferenças em acentuados desníveis
entre homens e mulheres.
Outro aspecto que se deve chamar atenção é para o fato de que mulheres negras
morrem mais. Reunindo estatísticas de diversos órgãos de pesquisa do Brasil, o Dossiê
Feminicídio811 elencou o panorama da violência contra mulheres negras no país,
constatando que as mesmas constituem 28,86% das vítimas de violência doméstica, 53,6%

GELEDÉS, A tragédia do machismo no Brasil . Disponível em: <http://www.geledes.org.br/tragedia-do-


810

machismo-no-brasil-472-mulheres-assassinadas-por-mes-revela-ipea/#gs.KPr3emQ>
811
Disponível em: <http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/dossies/feminicidio/>
1604
das vítimas de mortalidade materna, 65,9% das vítimas de violência obstétrica, 68,8% das
mulheres mortas por agressão. Entre 2003 e 2013, houve uma queda de 9.8% no total de
homicídios de mulheres brancas, ao passo que os homicídios de mulheres negras
aumentaram 54,2%.
As mulheres negras morrem mais em razão do acúmulo de desigualdades e
discriminações. Estas, além de sofrerem com o machismo, sofrem com o racismo estrutural
e institucionalizado, opressões essas que são ainda mais expressivas se adicionados os
recortes de classe e de gênero. Soma-se tudo isso ao legado de colonização e escravidão,
aos indicadores sociais que denunciam desigualdades e posicionam as mulheres negras na
base da pirâmide salarial e de acesso a condições dignas de trabalho, a segregação
socioespacial, às dificuldades de acesso tanto à educação básica quanto à educação
superior, ao descaso com a saúde e o preconceito enraizado, e o resultado é um Estado
totalmente negligente, onde as instituições que deveriam garantir direitos fundamentais
acabam atuando como inibidores dos mesmos.
Deste modo, embora a qualificadora tenha intensificado a punição a estes crimes
de ódio, a “criminalização”, por si só, não terá sucesso no enfrentamento a violência
sistêmica contra às mulheres, uma vez que apesar dos avanços, o Direito Penal continua
sendo operado com base em expectativas sobre papéis de gênero, além das estigmatizações
referente à classe e etnia.
O que se espera da tipificação do feminicídio é proporcionar visibilidade para a
dimensão e os contextos dos feminicídios e identificar entraves para evitar “mortes
anunciadas”, aquelas que ocorrem após um longo ciclo de violências, que poderiam ser
evitadas, principalmente quando as mulheres estão amparadas pelas Medidas Protetivas da
Lei Maria da Penha. Além disso, pretende-se proporcionar um instrumento para evitar a
minimização destes delitos no sistema de justiça criminal, refutando as teses em relação aos
“crimes passionais” que invisibilizam o contexto discriminatório dos feminicídios. Por fim,
tem como escopo fomentar um processo de mudanças de práticas no processamento e
julgamento dos casos de feminicídio (DOSSIÊ FEMINICÍDIO, 2016).
Por conseguinte, como já exposto, mais do que um apelo ao direito penal
simbólico, o acolhimento do feminicídio, em uma tendência cada vez mais expressiva na
América Latina, tem como escopo desnudar a crueldade e a inescrupulosa motivação que
reveste os crimes motivados por razões de gênero.

1605
CONCLUSÕES

Inicialmente, fora feita uma análise sobre o processo de criação e sobre a adoção
do nomem iures de feminicídio à nova qualificadora do delito de homicídio, na qual se
ressaltou que a supressão do termo “gênero” pela Câmara dos Deputados não passou de
uma estratégia para excluir mulheres transexuais e travestis da esfera de abrangência da lei.
Em seguida, a investigação se debruça sobre os motivos político-criminais e também
que ensejaram a inserção do feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro, esclarecendo
que tais motivações extrapolam o chamado direito penal simbólico, pois a medida
apresenta-se como efetiva estratégia de enfrentamento à violência de gênero.
São feitas, deste modo, considerações sobre a importância da categoria analítica
gênero para se compreender o fenômeno do feminicídio, demonstrando porque o Direito
Penal, historicamente, tem perpetuado discriminações negativas em face das mulheres,
legitimando os chamados crimes “passionais” e atribuindo à vítima a culpa por sua própria
morte.
Neste sentido, chamou-se atenção para o fato de que os feminicídios são mais
comuns nas relações íntimas de afeto, majoritariamente entre casais cisgênero e
heteroafetivos, trazendo dados que revelam a discrepância entre as mortes de homens e
mulheres, e chamando atenção para os meios cruéis que são utilizados para ceifar as vidas
destas, o que certamente revela o desprezo à condição de pertencimento ao gênero
feminino.
Esclarece-se que, embora femicídio e feminicídio sejam utilizados como sinônimo
pelos movimentos feministas e palas legislações de países latino-americanos, o termo mais
correto para a tutela pretendida seria femicídio, pois feminicídio remete a uma subcategoria
do genocídio, o que faz emergir a interpretação de que o feminicídio seria uma prática que
busca o completo extermínio da população feminina.
Por fim, o estudo recaí sobre as principais críticas endereçadas à tipificação do
feminicídio, demonstrando porque algumas delas não fazem jus à realidade. A principal
delas, referente à falência e a ineficácia do sistema penal, a qual não é possível se contrapor,
é contornada esclarecendo que, ao adicionar à sua pauta de reivindicações, os movimentos
feministas e ativistas não tinham em mente a falsa ideia de que a medida poderia solucionar,
de imediato, as mortes de mulheres por razões de gênero.
Tendo em vista que a Lei Maria da Penha, por exemplo, é a lei mais conhecida por
brasileiras/os, é possível que, o tão criticado viés simbólico da Lei do Feminicídio possa

1606
fazer insurgir seu teor eminentemente político, presente desde sua concepção, para
embasar o contínuo movimento de enfrentamento às violências de gênero, dando a devida
visibilidade ao fenômeno.

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1608
OS CÁRCERES FEMININOS, DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL A
VIOLÊNCIA INSITUCIONAL DE GÊNERO

Jéssica Santiago CURY812

Paulo César Corrêa BORGES813

Resumo: Quando nos remetemos a palavra prisão, deparados com um espaço no qual as violações
de direitos são costumaz e inquestionáveis. Os cárceres brasileiros são marcados pela superlotação,
precárias infraestruturas e difícil acesso a saúde e educação. No que concerne às prisões femininas
a realidade é ainda pior. Ao adentrar no sistema prisional, a mulher é deixada em total descaso e
abandono, tanto por parte da família, como pelo Estado, que ao instituir um cárcere não pensou
em suas particularidades, bem como promove poucas políticas públicas de ressocialização e
assistência à egressa. Com isso, gera maior vulnerabilidade de reincidência, e, consequentemente
um total fracasso da pretendida reinserção social. Diante dessa realidade, somada ao aumento
sistemático do encarceramento feminino, que, conforme dos dados coletados pela DEPEN, houve
o incremento de 567,4%, nos anos de 2000 a 2014 (BRASIL, 2014), o presente trabalho objetivou
analisar o aprisionamento das mulheres brasileiras e como este fenômeno invisibiliza e violenta a
mulher ao promover violências estruturais e institucionais de gênero. Ademais, trabalho tentará
demostrar como o espaço prisional não se apresenta em crise ou em falência, mas realiza seu papel
de segregação e abando das vidas não rentáveis, e que as violências e violações são mecanismo para
a concretização de sua real função. A pesquisa foi realizada a partir de um recorte bibliográfico
acerca do tema e dos conceitos que constituem o objeto estudado (mulheres e prisões).

Palavras-chave: Cárceres. Violência de gênero. Feminino.

INTRODUÇÃO

Quando nos remetemos a palavra prisão, deparados com um espaço no qual as


violações de direitos são costumaz e inquestionáveis. Os cárceres brasileiros são marcados
pela superlotação, precárias infraestruturas e difícil acesso a saúde e educação. No que
concerne às prisões femininas a realidade é ainda pior.
Ao adentrar no sistema prisional, a mulher é deixada em total descaso e abandono,
tanto por parte da família, como pelo Estado, que ao instituir um cárcere não pensou em
suas particularidades, bem como promove poucas políticas públicas de reintegração e
assistência à egressa. Com isso, gera maior vulnerabilidade de reincidência, e,
consequentemente um total fracasso da pretendida reinserção social.

812
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito pela Faculdade de Direito de Franca – FDF/Franca-SP.
Mestranda em Direito pela Universidade Estadual de São Paulo – UNESP/FCHS; Franca/SP – Brasil E-
mail: jessiscury2310@gmail.com.
813
Graduado em Direito pela UNESP (1990), mestre (1998) e doutor (2003) em Direito pela UNESP -
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Pós-doutor pela Universidade de Sevilla - Espanha
(2012). Professor Assistente-doutor de Direito Penal do Departamento de Direito Público da UNESP;
1609
Promotor de Justiça. E-mail: pauloborges@franca.unesp.br
Diante dessa realidade, somada ao aumento sistemático do encarceramento
feminino, que, conforme dos dados coletados pela DEPEN, houve o incremento de
567,4%, nos anos de 2000 a 2014, o presente trabalho objetivou analisar o aprisionamento
das mulheres brasileiras e como este fenômeno invisibiliza e violenta a mulher (BRASILa,
2014).
Ao se estudar o sistema de justiça criminal, tanto a polícia, como o sistema penal e
prisional, nos deparamos as questões de gênero, raça e classe. Ademais é notório como o
sistema possui marcadores de gênero, e sua atuação segue na mesma lógica. No que
concerne ao exercício dos direitos individuais, principalmente os das mulheres, são
notórias a seletividade e a perversidade da atuação das instituições.
E é nesse interim que o presente artigo propõe uma reflexão inicial, que seria
desconfiar do direito, da normalidade, bem como duvidar das subjetividades que as
instituições (prisão, poder judiciário, escola, religião) produzem. Além disso, se buscou
perseguir uma pesquisa sob a ótica feminista proposta pela antropóloga Debora Diniz:

Uma pesquisa feminista parte do acaso da matéria, reconhece a sexagem


como um gesto inaugural do regime político do gênero, investiga a moral
patriarcal na vida e sobrevida das mulheres, desconfia das instituições
que movem a governança das mulheres no asilo, na esquina, no convento
ou na prisão (DINIZ, 2014, p. 19).

Assim, a presente pesquisa tem por objetivo fazer uma análise crítica do
aprisionamento da mulher brasileira, fazendo releituras de como foram realizadas tais
práticas.
Para tanto, foi realizado, primeiramente, um breve estudo do sujeito para darmos
visibilidade e forma à mulher presa. Demonstrando por meio de dados quantitativos quem
são os nossos sujeitos de pesquisa, no caso em tela, a mulher encarcerada. Previamente
pode-se afirmar que hoje as pessoas do sexo feminino que ocupam o espaço prisional são
em sua maioria negras, pobres, de baixa escolaridade e mães. Além disso, foi feito uma
análise histórica da criminalidade feminina, sendo verificado quais eram e são os crimes
cometidos com maior incidência e quais são as possíveis razões de seu cometimento, sendo
todo o estudo efetuado sob a ótica da criminologia crítica.
Posteriormente, foi feito um estudo histórico da prisão, em particular dos cárceres
femininos, dando enfoque às primeiras experiências no Brasil. Pode-se afirmar que as
prisões femininas sempre seguiram os princípios machistas e androcêntricas, pois os

1610
primeiros cárceres foram marcados pela normalização dos corpos femininos, pelo fato que,
a direção de tais estabelecimento eram realizados por institutos religiosos, regidos por
princípios que tentavam domesticar e normalizar as vontades femininas. Além disso, as
tarefas realizadas dentro dos espaços eram as atividades femininas por excelência.
E, por fim, tentou-se compreender como a instituição prisão é um local por
excelência de violações de direitos, de promoções de violência e desigualdade social. Desde
sua estrutura que é perceptível como violenta de forma perversa o ser humano, sendo
necessário reformas nos diferentes âmbitos como o no espaço físico, nos recursos humano
e até mesmo seu ambiente configurado (sendo locais fechados, com pouca luminosidade).
Ademais, o espaço prisional além de violentar o ser humano por causa de sua
péssima estrutura, submete as mulheres a sofrimentos ainda mais severos, uma vez que
foram instituídos para não as alocas. Sendo assim, as inviabilizam e não atendem as
necessidades particulares inerentes ao gênero feminino.
O trabalho foi realizado por meio de um recorte bibliográfico acerca do tema e dos
conceitos que constituem o objeto estudado (mulheres e prisões) com o propósito de
reunir ainda mais conhecimento para fundamentar a pesquisa, além de uma análise de
dados quantitativos e de fontes oficiais acerca da criminalidade feminina e seu
encarceramento.
Para a sua realização, foram cruciais algumas leituras que problematizam as
questões de gênero como Judith Butler, Olga Espinoza, Julita Lemgruber, entre outras
autoras e pesquisadoras na área. Também foi utilizado como referencial teórico Foucault,
no que concerne as reflexões sobre a consolidação do encarceramento como mecanismo
de punição do Estado e falácia da chamada “crise” do sistema carcerário. Ademais, também
foi de grande importância a leitura da pesquisa realizada pela Bruna Angotti, ao fazer um
estudo minucioso quanto as experiências de encarceramento feminino no Brasil.

MULHER E A CRIMINALIDADE

A criminalidade é um fenômeno complexo, que agrega uma série de variáveis que


influenciam o seu funcionamento, sendo praticamente impossível determinar um conceito
de caráter universal que englobe tanto os diferentes aspectos e perspectivas de análise do
desvio, quanto as dimensões estruturais, conjunturais e subjetivas do indivíduo
(PIMENTEL, 2008).

1611
Por isso, ao se estudar a criminalidade feminina principalmente sob a ótica da
criminologia crítica, é necessário a compreensão do sujeito estudado, método e as
características próprias do contexto em que se realiza a pesquisa. Nesse sentido Schecaira
(2000) afirma que a criminologia é “ uma ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa
do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social de comportamento
delitivo”
Assim, para uma melhor compreensão quanto a criminalidade feminina, será feito
um breve estudo sobre a temática, perpassando pelas teorias demonológicas, positivistas e
femininas.
As primeiras concepções teóricas quanto a criminalidade feminina foram criadas
pelos demonólogos da Igreja Católica. Eles desenvolveram suas teorias concomitantemente
ao próprio surgimento do poder punitivo, e mesclavam a criminalidade com o pecado,
punição e expiação. Proferiram discursos na qual justificavam a submissão das mulheres
como decorrência da vontade divina, assim legitimavam o controle do comportamento
feminino em favor do poder hierárquico e patriarcal, pautados nos valores cristãos.
O pensamento dos demonológicos se consolidavam na ideia estereotipada e
dualista da mulher, em que as submetiam entre os papeis de santa e criminosa, boa e
perversa. As mulheres, por sua vez sujeitaram-se à identidade feminina de inferioridade e
aos espaços sociais que lhes foram impostos, submetendo-se ao poder da dominação
masculina que perdurou por séculos (MURARO, 2007).
Posteriormente foram criadas as teorias positivistas, na qual retirava o viés da
religiosidade dos estudos, substituindo pela humanidade e trazendo o método
experimental como aquele que seria legítimo para a realização dos estudos científicos.
Em relação ao comportamento desviante da mulher, a primeira pesquisa realizada
foi a produzida por Cesare Lombroso e William Ferrero, por meio da obra La Donna
Deliquente (1895). Os estudos desenvolvidos por estes autores estavam intimamente
ligados aos pressupostos do determinismo biológico, no qual afirmavam que a
criminalidade estava intrinsicamente assemelhada a algumas características físicas,
biológicas e psíquicas de cada indivíduo, ignorando as questões sociais e contextuais do
fato delituoso.
Para tanto, desenvolveram seus primeiros estudos científicos a partir da análise dos
crânios, esqueletos e cadáveres de prostitutas e “mulheres criminosas” em comparação
com aquelas que não seriam desviantes. Assim, essa perspectiva determinista da

1612
criminalidade cria uma visão distorcida da realidade feminina, além de sustentar os
estereótipos que justificam a descriminação de gênero.
Porém foi em 1960, em que houve uma ruptura dos paradigmas vigentes e dos
padrões sociais impostos, que repercutiu também nas esferas sociais e das ciências
humanas. Assim iniciou-se ainda que, de uma forma tímida os estudos quanto a
criminalidade feminina com um viés crítico e pensado na realidade das mulheres.
Portanto, para o presente artigo será feito um recorde destes estudos em três
abordagens, sendo elas: a teoria dos papeis sociais, o movimento da libertação das
mulheres, a múltipla marginalização das mulheres.
Na primeira abordagem, em contraposição ao determinismo biológico, afirma que
o comportamento de qualquer pessoa está ligado as relações patriarcais inseridas em um
contexto de uma sociedade machista e hierárquica. Sendo as questões de gênero tão
importante quanto as condições econômicas, sociais e raciais.
Para tal teoria, a criminalidade feminina está ligada com sua formação social, uma
vez que as mulheres foram criadas para enquadrarem em determinados padrões nas quais
devem ser mais passivas e menos agressivas. Sendo tal afirmativa uma justificativa do baixo
encarceramento das mulheres em relação aos homens. Além disso, acreditam que a
historicidade e a contextualização da conduta da mulher, bem como sua formação e as
circunstâncias a sua volta são as que deixam mais ou menos vulnerável para praticar certos
fatos delituosos.
Porém, a autora Eileen Leonard (1982) crítica tais estudos pelo fato de ser
“incompleta no que concerne a análise crítica da origem das desigualdades entre os sexos,
permitindo que a análise seja interpretada como prova das características inerentes às
mulheres e induzindo a discussão sobre os problemas individuais decorrentes da
socialização inadequada, e não estruturais da sociedade”.
Em relação ao pensamento da libertação das mulheres, defendeu-se a ideia de que
com o aumento da inserção das mulheres na vida social, sua inclusão no mercado de
trabalho, a sua criminalidade também aumenta. Segundo esse pensamento afirmou
Lembruger (1983) “ à medida em que as disparidades sócio-econômico-estruturais entre
os sexos diminuem, há um aumento reciproco da criminalidade feminina”.
Em complementação a esses estudos a autora Clarce Feinman (1994), afirma que
não se pode reduzir o estudo da criminalidade quanto somente a libertação feminina, pois
os índices criminais apontam que as mulheres que são encarceradas a causa está mais
relacionada ao desemprego, o que sugere uma feminização da pobreza e não a sua

1613
libertação, sendo a tendência social de maior preponderância quanto ao estudo do
encarceramento feminino.
Além disso, outras pesquisas apontam no que há uma existência de continuidade
entre experiências de violências sofridas nas vidas das mulheres e sua inserção na
criminalidade (SOARES; ILGENFRITZ, 2002). Os estudos afirmam que as diversas
experiências de violência associada a pobreza, podem ser consideradas determinantes para
inserção da mulher em situação de marginalização e risco, sendo mais vulneráveis perante
a atuação do sistema de justiça.
Sendo assim, não se pode fazer afirmar qual a abordagem dos estudos feministas
está certo ou não, o que se tentou fazer com o artigo foram apresentar formas e maneiras
de como se pode estudar e compreender o universo da criminalização e criminalidade
feminina.
Após essa análise, questiona-se: quem são as mulheres brasileiras encarceradas?
Qual a sua origem, sua cor, classe social, sua escolaridade? Quais foram os crimes mais
cometidos e qual a razão disto? Enfim, de que mulheres se refere a pesquisa?
Analisando os dados coletados pelo DEPEN em julho de 2014, consegue-se formar
um perfil preliminar das mulheres presas no Brasil. A presente pesquisa informa que 50%
das mulheres presas possuem de 18 a 29 anos, 68% são negras, 57% são solteiras, 50%
possuem ensino fundamental incompleto (BRASIL, 2014). Diante dessa realidade
enfrentada pelos cárceres, pode-se concluir segundo Espinoza (2004, p. 126):

Os dados descritos reforçam a certeza de que a mulher reclusa integra as


estatísticas da marginalidade e exclusão: a maioria é não branca, tem
filhos, apresenta escolaridade incipiente e conduta delitiva, que se
caracteriza pela menor gravidade, vinculação com o patrimônio e
reduzida participação na distribuição de poder, salvo contadas exceções.
Esse quadro sustenta a associação da prisão à desigualdade social, à
discriminação e à seletividade do sistema de justiça penal, que acaba
punindo os mais vulneráveis, sob categorias de raça, renda e gênero.

No tocante aos delitos cometidos, o que está no topo constituindo 68% é o crime
de tráfico de drogas, depois vem os crimes patrimoniais, sendo 8% furto e 9% roubo.
Assim, percebe-se como a guerra às drogas afeta sistematicamente o
encarceramento feminino, constituindo o crime de maior incidência e vários são os fatores
que levam as mulheres ao cometimento deste delito.
Não se pode delimitar e afirmar, como verdade absoluta, as razões do cometimento
do fato delituoso, porém frente a diversas pesquisas realizadas na área, pode-se dizer que

1614
várias são as razões, dentre elas: o envolvimento de seu parceiro, bem como de seu filho.
Além disso, várias mulheres que estão encarceradas que cometem tal crime é devido a
tentativa de adentrarem nos estabelecimentos prisionais portando drogas. E, também veem
no tráfico uma forma de sustentar sua família, frente as desigualdades sociais sofridas por
elas, principalmente aquelas que chefiam famílias.
Em segundo lugar, depois do tráfico, o crime de maior incidência são os crimes
patrimoniais, como furto e roubo. Com isso, é demonstrável como o processo de
criminalização da mulher estar intrinsicamente ligado com o fator socioeconômico, sendo
encontrado também na incidência do tráfico, reafirmando, assim, as desigualdades sociais
enfrentadas pelas mulheres de classe subalterna. Portanto, constata-se como o sistema
penal e prisional atua de forma seletiva e discriminatória.

AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS DOS CÁRCERES FEMININOS

Para melhor compreensão acerca das prisões femininas e suas primeiras


experiências no Brasil, se fez necessário um breve recorte histórico sobre a sanção penal e
a consolidação do cárcere como mecanismo de punição e também dos primeiros projetos
dos estabelecimentos prisionais femininos.
Portanto, primeiramente é necessário destacar que na antiguidade o
encarceramento não tinha finalidade de punição ou sanção penal, ele servia como uma
medida assecuratória. Era uma forma de “contenção do acusado até a sentença e execução
da pena” (BITTENCOURT, 2011). Nessa época as penas se reduziam as penas corporais
e infamantes ou execução dos corpos.
No período feudal (século V a XV), a punição era predominantemente aplicada ao
corpo do indivíduo, sendo que as penas normalmente consistiam em morte, confissão
pública, banimento, açoite (FOUCAULT, 1998). Ademais, a estrutura dos locais onde
eram cumpridas as penas eram precárias, como em ruínas e torres (BITTENCOURT,
2011).
A partir do século XV, com o nascimento dos ideais iluminista a concepção de
punição aplicada nos corpos dos indivíduos transmuta-se para concepção de punições
pensadas em parâmetros racionais e com maior respeito a condição humana. No século
XVII, mediante a ascensão do capitalismo, os ideais hegemônicos, em especial da classe
burguesa, entendiam que a pena privativa da liberdade seria um meio de controle social

1615
das massas, constituindo desse modo os estabelecimentos prisionais como são vigentes
atualmente (MELOSSI, PAVARINI,2006).
Quando se analisa as prisões femininas no território nacional, os primeiros
estabelecimentos de recolhimentos das mulheres presas foram criados em meados da
década de 40. Destaca-se que no ano de 1937, foi instituído no estado do Rio Grande do
Sul, na cidade de Porto Alegre, o Reformatório de Mulheres Criminosas, que depois foi
chamado e Instituto Feminino de Readaptação Social, primeira instituição prisional
brasileira voltada especificamente para o aprisionamento de mulheres (ANGOTTI, 2012).
Ainda no início da década de 1940, outras penitenciárias femininas foram sendo
criadas nas principais capitais do Brasil. Em 1941, foi inaugurada em São Paulo, o Presidio
de Mulheres de São Paulo, foi instalada em antigas residências dos diretores no terro da
Penitenciária do Estado, no bairro Carandiru (ANGOTTI,2012). Assim, como o primeiro
estabelecimento criado no Rio Grande do Sul, este também nasceu de forma improvisada
e previamente adaptado para o recebimento das mulheres infratoras.
Além desses estabelecimentos, em 1942, foi instituído a Penitenciária de Mulheres
do Distrito Federal, na cidade do Rio de Janeiro, sendo considera um dos primeiros
estabelecimentos específicos para receber as mulheres presas.
Para compreender o funcionamento das primeiras prisões femininas e seu papel, é
de suma importância conhecer a congregação de Nossa Senhora da Caridade do Bom
Pastor d’Angers, pois essa irmandade foi responsável pela administração dos primeiros
presídios femininos no Brasil.
O instituto tinha como objetivo cuidar de “jovens, que o mundo, e alguma forma,
seduziu” (POINSENET, 1968, Op. Cit., ANGOTTI, 2012), além disso procuravam salvar
as almas e curar moralmente todas mulheres que estariam em abandono material e moral,
por meio da moral cristã (ANGOTTI, 2012). Afirmam que sua cura principal era da alma
e não dos corpos femininos.
Porém, não deixam de fazer trabalhos nos corpos femininos de forma a tentar uma
disiciplinarização das mulheres, para que se comportassem como honestas e castas. Para a
irmandade, o corpo higienizado era local ideal para uma alma moralizada, assim os
banheiros eram coletivos de forma que era de fácil fiscalização das madres quanto a higiene
na hora do banho. Com isso, percebe-se como a conferência do corpo nu é uma forma de
um olhar disciplinador, com o intuito básico de doutrinar todos os aspectos possíveis das
mulheres (ANGOTTI, 2012).

1616
Para a irmandade a ordem deveria ser mantida nos estabelecimentos prisionais, por
isso confiscavam e controlavam o tempo e o espaço, a organização não deveria se restringir
somente nos espaços físicos, mas também na organização do tempo prisional. Assim,
distribuíam cronologicamente um cotidiano de disciplinas para as presas (ANGOTTI,
2012), sempre com o objetivo de despertar nas mulheres o amor a família e o entendimento
quanto ao seu papel e deveres na sociedade.
Nas falas de uma das irmãs é nítido o objetivo pretendido com a Congregação de
domesticar as mulheres para que fossem uma boa mãe, mulher, esposa, cuidadora: “[...]
tornando-lhes calmas, pacientes. É um trabalho um tanto moroso, como disse, dosado,
porém eficiente para o objetivo que visamos – o soerguimento moral” (AE, junho de 1951,
Op. Cit., ANGOTTI, 2012).
Os trabalhos dentro dos cárceres nessa época eram concentrados em afazeres
manuais, como a costura, bordado e o artesanato, mas eram vistos como trabalhos de lazer.
As outras tarefas desenvolvidas pelas presas seriam para que elas exercessem na vida livre
que teriam, esses eram os trabalhos domésticos, como lavar, passar, cozinhar, trabalhos
vistos como tarefas femininas por excelência.
Desse modo, pode-se perceber como o controle era constante sobre as mulheres,
a impossibilidade de trabalho externo demostra como o tratamento das presas eram para
a o fim de domesticar dos corpos e vontades, pois eram recomendados durante o
tratamento silencio, recato, trabalho e dedicação. Para a irmandade trabalhar fora
significava uma contaminação do mundo externo e perigo para a reabilitação moral.
Diante disso, demostra-se como desde dos primórdios dos estabelecimentos
prisionais serviram como forma de manutenção e perpetuação de estigmas e desigualdades
de gênero. Ademais, é necessário ressaltar não é usual pensar em estabelecimentos
apropriados para mulheres, como visto, vários cárceres foram adaptados para recebe-las e
nunca pensados para elas, o que ainda é visto na realidade brasileira.
Conforme o disposto pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN),
apenas 7%, entre todos os presídios no território brasileiro, que são destinados apenas à
detenção de mulheres (BRASILa, 2014). Segundo tal pesquisa, a maioria dos
estabelecimentos penais femininos é mista, sendo que neles são adaptados alas e celas para
mulheres, entretanto, não há qualquer tipo de tratamento voltado para a reinserção das
presas, como creches ou berçários para seus filhos, evidenciando assim, mais uma maneira
de degradação da mulher.

1617
PRISÕES FEMININAS DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL AS VIOLAÇÕES
INSTITUCIONAIS DE GÊNERO

No tocando ao sistema prisional, quando se analisa aqueles que estão ali inseridos
percebe-se que se encontram em uma condição de completa exclusão social e
consequentemente marginalização do indivíduo. Na teoria, o Estado deveria, ao menos em
tese, garantir o mínimo de dignidade humana a todos e assegurar os direitos fundamentais
em todas as esferas da sociedade. Porém, quanto se remete ao cárcere os fatos apontam
diferentes conclusões.
Ainda na esfera das prisões, percebe-se como o sistema penal atua de forma
seletiva, produzindo a chamada “coisificação” do ser humano. Tal premissa, nega o
indivíduo enquanto ser humano dotado de dignidade e o transforma em um objeto
completamente descartável pelo sistema. Seguindo esse pensamento afirma Zaffaroni:

A prisão ou jaula é uma instituição que se comporta como uma


verdadeira máquina deteriorante: gera uma patologia cuja característica
mais evidente é a regressão, o que não é difícil de explicar. O preso é
levado a condições de vida que nada tem que ver com as de um adulto,
se priva de tudo o que usualmente faz um adulto ou faz com limitações
que o adulto conhece (fumar, beber, ver televisão, comunicar-se por
telefone, receber ou enviar correspondências, manter relações sexuais,
vestir-se etc.) (ZAFFARONI, 2009, p. 139).

No sistema prisional a realidade é bastante distante daquela proferida no


ordenamento jurídico, uma vez que o indivíduo ao adentrar nos cárceres tem seus vínculos
sociais rompidos bruscamente, além disso, seus direitos e garantias são violentados
cotidianamente.
Além das violações estruturais sofridas pelo encarcerado, o preso ainda sobre com
a perda de sua autodeterminação e despersonificação. Pois, o ingresso ao sistema
penitenciário, geralmente tem suas vestes padronizadas, cabelos cortados, estabelecimentos
desumanizados com isso gera a perda parcial da identidade.
Não é novidade que os presídios brasileiros se encontram em situação completa de
caos e de negação de valores humanos básicos, celas apertadas e com número superior de
pessoas para além do limite permitido em seu interior, higiene precária, prédios
envelhecidos e sem conservação. Além de outros fatores que afetam diretamente a saúde
e as condições de vida de cada indivíduo habitante daquele local, são realidades observadas
nos presídios atuais.

1618
Os locais destinados ao encarceramento dos indivíduos deveriam, em tese, ser
mecanismo de reinserção social, devendo proporcionar condições mínimas de segurança,
saúde e educação para o ingresso. Além disso deveriam promover ações e situações de
reintegração da pessoa delituosa na sociedade, mas a realidade é bem distante do que a
teoria indica. Quando se refere aos estabelecimentos prisionais femininos a realidade
vivenciada pelas mulheres são agravadas, uma vez que conforme Borges:

O tratamento para mulheres presas é pior que o dispensado ao homem,


que também sobre com as precárias condições na prisão, mas a
desigualdade de tratamento é decorrente de questões culturais e com
direitos ao tratamento condizente com as suas particularidades e
necessidades. Em nossa Constituição Federal possui um princípio na
qual regula tais necessidades, é o principio da individualização da penal,
conforme o artigo 5º, inciso XLVIII, segundo o qual “...a pena será
cumprida em estabelecimentos distintos, de acordo com a natureza do
delito, a idade e o sexo do apenado (BORGES, 2005, p. 87).

Corroborando as afirmações do autor, além de não se ter a chamada


individualização da pena conforme a natureza do delito e da idade e do sexo, as condições
observadas dentro das celas geralmente são marcadas pela presença de animas, como ratos
e baratas, responsáveis por proliferaram doenças, as assistências medicas e psicológicas são
precárias, especialmente para mulheres para as mulheres grávidas que são submetidas a
estas situações cotidianamente.
Além disso, vale ressaltar que no que tange às visitas íntimas, houve também uma
repressão da sexualidade feminina, sendo um reflexo da sociedade machista e
androcêntrica. Uma vez que a conquista a este direito foi tida tardiamente, bem como é
verificado certas burocracias e desigualdade de tratamento em comparação às visitas
intimas masculinas.
No que tange ao sistema prisional, a relação de dominação entre homem e mulher
é evidenciada com clareza e maximizada. Sendo um reflexo e uma continuidade do sistema
econômico vigente que aprofunda as desigualdades sociais repercutindo na aplicação e
formação do ordenamento jurídico penal, uma vez que as normas são completamente
seletivas quando impostas aos indivíduos.
Assim, percebe-se que o estereótipo da mulher criado antes do cárcere permanece
dentro das prisões reforçando sua exclusão e desigualdade de gênero. Com isso, é provado
como a dominação entre os sexos é mantida frente as mulheres encarceradas, submetendo-
as em situações de completo abandono descaso e vulnerabilidade.

1619
CONCLUSÃO

O escopo do presente trabalho foi realizar uma análise crítica no que tange ao
encarceramento feminino. A obra foi elaborada mediante um recorte bibliográfico acerca
do tema, sendo constatadas algumas breves considerações.
Inicialmente, pode-se afirmar que o aprisionamento de mulheres é um fenômeno
crescente no Brasil, como demonstrado pelos dados colhidos pela Departamento Nacional
Penitenciário e os espaços em que são recebidas tais mulheres são marcados por estruturas
indignas de serem vividas.
Para justificar as péssimas estruturas dos presídios brasileiro, o discurso inicial
proferido pela maioria das mídias e senso comum, bem como algumas pesquisas é que
sistema penitenciário brasileiro se encontra em crise, porém quando se remete a palavra
crise tem-se a ideia de estado temporário e que pode ser diagnosticado, o que não é
verificado nos cárceres.
Quando analisado com maior atenção a questão das prisões, pode-se constatar que
o sistema prisional não se encontra em crise e muito menos falido, mas cumpre seus reais
objetivos institucionais, sendo alguns deles: a confinação (sequestro de grupos sociais
vulneráveis) e conformação dos sujeitos (“adestramento e controle dos corpos dóceis”).
E no que tange as mulheres encarceradas, as instituições prisionais e penais, atuam
de forma ainda mais violenta, estigmatizadora e seletiva, pelo fato que possuem em seus
pilares princípios patriarcais e antropocêntricos. Ao estruturarem os estabelecimentos
prisionais inadequados, não sendo contemplados as especificidades das mulheres, o Estado
atua como agente criminoso e criminalizante, bem como promove a invisibilidade da
mulher e intensifica as desigualdades de gênero.
Ademais, é necessário ressaltar que a mulher ao ser encarcerada, ela é duplamente
punida, pois sofrem represália tanto das instâncias formais quanto das informais. Ou seja,
são condenadas primeiramente pelo sistema de justiça criminal, submetendo-as aos
cárceres e as tornando criminosas, bem como são castigadas novamente pela sociedade
que as estigmatizam uma vez que romperam com a ordem moral vigente não cumprindo
o seu papel pré-estabelecido socialmente (sendo este: o de ser uma boa mulher, mãe,
esposa).
E ainda, cabe ressaltar que quando se é presa e mãe, a violação sofrida é pior, pois
estas mulheres vivem no paradoxo de cumprir o papel da maternidade e do desvio da
criminalidade, nas palavras de Mendes (2015) “As mães acusadas e condenadas pelo

1620
sistema de justiça criminal vivem essa ambiguidade, encarnando a norma e o desvio,
desafiando a lógica binária da racionalidade jurídico-penal. Nesse cenário, a maternidade
encarcerada é um dispositivo de normalização da mulher tida como desviante, em busca
de uma subjetividade cada vez menos criminosa e cada vez mais maternal”.
Diante disso, inicialmente deve-se questionar o modelo de prisão que se tem na
atualidade. Sendo necessário pensar em novas formas de punições contrarias ao
encarceramento, baseados em um suporte social, como um instrumento para conter o
aprisionamento em massa, bem como frear as violações sofridas pelos presos. Uma vez
que conforme analisado na pesquisa, as prisões não atendem aos seus “objetivos
protelados” de diminuição da delinquência e violência, mas funciona como uma máquina
de propagação de violências e violações de direitos, e de assujeitamento dos indivíduos.
Além disso, pode-se, também, tentar requerer melhoria dos estabelecimentos, bem
como políticas públicas voltadas para a realidade prisional das mulheres como alternativa
inicial para diminuição das violências, porém é necessária cautela, esse mesmo discurso
tem que vir associado a questionamentos sobre as prisões e as questões de gênero que
permeia a sociedade.
São necessárias tais reflexões para que não ocorra o risco de que a prisão seja
naturalizada e vista como uma solução de política criminal, pois como advertiu Smart
(1989, p. 3), “o risco é [de que] o discurso jurídico se torne, frente às demandas feministas,
mais uma arma contra a mulher do que a favor do feminismo”.
Portanto, pode-se concluir que se deve discutir e repensar sobre a prisão como
mecanismo de punição por parte do Estado, bem como pensar em formas de
desencarceramento da população feminina presa e políticas públicas com recorte social
para que as atrocidades vivencias nos cárceres sejam amenizadas.

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1623
PRÁTICAS DE ESTADO E A GESTÃO DO “TRÁFICO DE
PESSOAS” MEDIANTE OS DIREITOS HUMANOS E PROCESSOS
DE SUBJETIVAÇÃO E IDENTIDADE DE TRABALHADORES DO
SEXO

Maíra PRADELLI814

Resumo: Este trabalho é parte de uma pesquisa de Iniciação Científica em andamento, cujo objetivo
é uma análise da gestão e administração do tráfico de pessoas, a partir dos discursos institucionais.
Primeiro, situamos o debate em torno do “tráfico de pessoas” enquanto um campo de disputa, e
para isso, apoiamo-nos em uma revisão bibliográfica de etnografias realizadas juntos aos
trabalhadores do sexo. Depois, situamos tal bibliografia como instrumento analítico e crítico não
só para observar e problematizar a compreensão que o Estado sobre o “tráfico de pessoas” e
questões concernentes ao mercado transnacional do sexo, mas sobretudo para centralizar os
discursos documentações institucionais da Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras
(ENAFRON). Por isso, fazemos uma análise de documentos institucionais do programa
ENAFRON (Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras), coordenado pela SENASP,
que visa o policiamento intensivo das fronteiras brasileiras, a fim de combater delitos
transfronteiriços como o tráfico de pessoas. Dessa forma, esse trabalho tem como prioridade
observar como são interpretadas e mobilizadas, tanto na esfera jurídica quanto policial, categorias
relacionadas ao debate sobre tráfico de pessoas, tais como exploração sexual, abuso de
vulnerabilidade, escravização e vítima815.

Palavras-Chave: Subjetivação. Exploração Sexual. Trabalhadoras do Sexo.

INTRODUÇÃO

O tráfico de pessoas, enquanto resultado de disputas éticas, morais e políticas, tem


adquirido grande relevância no debate atual sobre migração. Nesse sentido, torna-se
fundamental compreender a relação entre segurança e migração para refletir como as
práticas de governo têm atuado no combate a esse crime, bem como tem sido realizada a
assistência e o tratamento às vítimas, e até mesmo observar como as ações antitráfico,
mediadas por noções precisas acerca do que é tráfico de pessoas e prostituição, têm sido
colocadas em prática, tanto na esfera jurídica quanto policial.

814
Universidade Estadual Paulista - Faculdade de Ciências e Letras. Campus Araraquara. Graduanda em
Ciências Sociais. Bolsista de Iniciação Científica da FAPESP. Processo n° 2016/25485-5. Contato:
maira_pradelli@hotmail.com.
815
A categoria vítima é destacada em itálico, pois, adotada geralmente como fator determinante para o
fenômeno do tráfico pessoas, não será utilizada como uma categoria naturalizada, antes, será problematizada
ao longo do texto, de modo a ser evidenciado seu caráter
1624 político e ideológico.
Nessa conjuntura, permeada por intervenções jurídicas, estatais, policiais e
feministas, observamos o desenvolvimento de ações de combate e repressão ao crime do
tráfico de pessoas a partir do recrudescimento do controle de fronteiras, ou seja, do
controle migratório, dos fluxos de pessoas e mercadorias. Portanto, entre tensões e
divergências, apontaremos questões concernentes ao tenso e politizado universo –
institucional e simbólico – do tráfico de pessoas, de modo a analisar o papel dos programas
de segurança pública do Governo Federal no controle de fronteiras e na assistência às
vítimas de tráfico de pessoas.
Atualmente, o Brasil segue duas orientações político-legais que norteiam as ações
de combate ao tráfico de pessoas, sendo uma o Protocolo de Palermo – ou Convenção das
Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional – e a outra, o Código Penal, lei
n° 2.848, artigo 231 e 231a. O Protocolo de Palermo, principal condutor de ações globais
no combate ao crime organizado transnacional, foi elaborado em 2000 pela Assembleia
Geral da ONU e ratificado pelo Brasil em 2004. O documento assegura que

a) a expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte,


a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo
à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à
fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de
vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios
para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre
outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a
exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração
sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares
à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos (ONU, 2010).

O Código Penal brasileiro, lei n° 2.848, artigo 231, define o tráfico de pessoas por:
“Promover, intermediar ou facilitar a entrada, no território nacional, de pessoa que venha
exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercê-la no estrangeiro”. O artigo 231a,
na mesma esteira, abarca o crime de tráfico que possa ocorrer no território nacional. Vale
destacar que, na esfera legal, a tipificação do crime do tráfico de pessoas é definida por
qualquer atividade ligada à prostituição e que envolva terceiros.
Piscitelli (2008) desenvolve uma crítica às definições político-legais vigentes no
Brasil e aponta que não há uma única definição de tráfico de pessoas no âmbito jurídico-
legal, pois, se no Protocolo de Palermo ocorre a ênfase no deslocamento, a partir do
engano, para a finalidade de exploração sexual, no Código Penal brasileiro a tipificação do

1625
crime decorre da facilitação do deslocamento, independente do consentimento da vítima.
Essa dupla definição demonstra a multiplicidade que circunscreve o tema.
Venson e Pedro (2013) apresentam uma perspectiva histórica sobre o conceito de
tráfico de pessoas. As autoras pontuam que este aparece no século XIX e reaparece com
substancialidade no século XX. Contudo, o estabelecimento do conceito se deu a partir da
influência direta do direito penal, pois “nasceu dentro da discursividade da necessidade de
policiamento das fronteiras transnacionais” (VENSON, PEDRO, 2013, p. 63), não sendo,
portanto, um debate voltado para a proteção ou asilo à imigração, mas apresentando um
caráter estritamente jurídico.
Kempadoo (2005) reitera a historicidade do tema e afirma que em meados do
século XIX surge o debate público sobre o problema do tráfico de pessoas, em conjunto
com tratados e políticas antitráfico devido à preocupação moral acerca de dois fenômenos:
i) a migração de mulheres trabalhadoras que atravessavam fronteiras sozinhas e ii) mulheres
imigrantes em situação de prostituição que, vistas como vítimas, em condições de
escravidão, precisavam ser resgatadas.
As abordagens feministas, tanto teóricas quanto práticas, foram fundamentais para
a definição de políticas governamentais, tratados e acordos internacionais entre países no
que tange ao combate ao tráfico transnacional de pessoas. Contudo, diferenças de
posicionamentos presentes nos múltiplos olhares feministas816 – sobretudo no debate
estabelecido entre a vertente do feminismo radical, de caráter abolicionista, e o feminismo
transnacional – com relação a forma de compreender o que é tráfico de pessoas,
prostituição e comércio de sexo, determinaram sobremaneira os rumos das políticas
antitráfico de um modo peculiar (KEMPADOO, 2005, p. 58).
O feminismo radical surge no final do século XIX com uma proposta
abolicionista817 ao se posicionar veementemente contra a prostituição, centralizando sua
crítica em torno da questão do “Tráfico de Escravas Brancas”818 (KEMPADOO, 2005).

816
O debate feminista concernente ao tráfico de pessoas perpassa fundamentalmente pela divergência sobre
a questão do consentimento. Tais divergências podem ser analisadas a partir de duas posições de destaque:
a Coalision Against Trafficking in Women (CATW) que possui um viés abolicionista e considera toda forma
de prostituição coercitiva por demarcar a submissão das mulheres, enquanto classe, à dominação masculina,
e, por outro lado, a Global Alliance Against Trafficking in Women (GAATW) orientada pelo feminismo
transnacional e que, por sua vez, pontua que a prostituição, tal como um trabalho, apresenta condições
precárias devido a sua ilegalidade e a negligência de políticas estatais. (VENSON; PEDRO, 2013)
817
Piscitelli (2006) ao citar Chapkis (1977) afirma que “O termo 'abolicionistas' é êmico, isto é, é utilizado no
marco das discussões sobre prostituição, designando as perspectivas que consideram todas as formas de
1626
prostituição abusivas, e não apenas as que não são consensuais e/ou envolvem crianças”.
818
No final do século XIX e início do século XX, a questão do “Tráfico de Escravas Brancas” consistiu na
polêmica sobre mulheres que supostamente eram traficadas coercitivamente da Europa para a América, o
que gerou um caloroso debate pautado por preocupações morais marcados. Consequentemente, em 1904
Essa movimentação reaparece significativamente no final da década de 70 do século XX
ao destacar a existência de uma estrutura de opressão patriarcal presente em todas as
esferas da vida das mulheres, materializadas em instituições como o casamento, a
heterossexualidade e a maternidade compulsória, mas sobretudo na existência e na prática
da prostituição. Portanto, dentre as proposições de mais destaque, ressaltou-se a violência
inerente à prostituição. Segundo o pensamento abolicionista, a prostituição seria uma das
facetas essenciais na configuração de uma sociedade patriarcal e no controle das mulheres
pelos homens, uma vez que, análoga a um estupro pago, a prostituição concederia aos
homens a legitimidade e normalização do ato de comprar mulheres, transformando-as em
mercadorias (DWORKIN, 1974; MACKINNON, 1987).
A partir do que foi exposto acima, o feminismo abolicionista evidenciou e evidencia
um controle masculino que é social, psicológico, econômico e político. A indústria do sexo,
mediada pelo patriarcado e pelo capitalismo, condicionaria as mulheres coercitivamente à
prostituição, configurando, portanto, um quadro de escravização de mulheres que
precisavam ser libertas. Essa explicação, mesmo atualmente, vincula de forma pragmática
qualquer prática da prostituição à exploração sexual. Tal definição também prevê,
mecanicamente, que toda e qualquer forma de prostituição no mercado transnacional do
sexo é determinada, via de regra, como crime de tráfico sexual e, como tal, coerção e abuso
de vulnerabilidade.
Entretanto, é preciso destacar uma crítica contundente a essa associação automática
de qualquer forma de prostituição no exterior ao tráfico de pessoas, enfatizada pela
abordagem feminista transnacional ou do “terceiro mundo”. Essa perspectiva adota o
termo trabalhadoras sexuais, uma vez que considera a prostituição como um trabalho e se
baseia, sobretudo, em que

A ideia central é que o tráfico de pessoas não se vincula de maneira


automática à indústria do sexo, mas essa relação é favorecida pela falta
de proteção dos/as trabalhadores/as nesse setor de atividade. Nessas
perspectivas, considera-se que quem trafica se beneficia da ilegalidade da
migração e do trabalho sexual. Essa dupla ilegalidade é a fonte do poder
e controle que exercem sobre os/as migrantes. Nesses casos, as leis que
impossibilitam a migração e o trabalho sexual legais constituem os
principais obstáculos para os/as migrantes que se inserem na indústria do
sexo no exterior (PISCITELLI, 2008, p. 36).

surge “o primeiro instrumento internacional” com relação ao tráfico sexual, o Tratado Internacional para
Eliminação do Tráfico de Escravas Brancas (VENSON; PEDRO, 2013).

1627
O feminismo transnacional tem por objetivo acentuar que, contrariamente ao que
o outro movimento destaca, o patriarcado não é o único determinante das formas de vida
e existência das mulheres. Antes, há uma multiplicidade de desigualdades que se
interseccionam e delineiam o conjunto de opressões às quais as mulheres estão
subordinadas, seja o racismo estrutural, por exemplo, ou o imperialismo, dentre outras, e
o “tráfico de pessoas” pode ser compreendido como um resultado de estratégias de
sobrevivência que apresentam a “atuação e desejos das mulheres de darem forma às
próprias vidas” (KEMPADOO, 2005, p. 61).
Segundo Piscitelli (2009), a perspectiva abolicionista tem sido a mais aderida nas
políticas antitráfico e em tratados oficiais. Tal fato explica o porquê da maioria das
campanhas e políticas de combate ao tráfico de pessoas, no Brasil e no mundo,
apresentarem uma orientação que, mesmo atualmente, na segunda década do século
XXI819, remete ao feminismo abolicionista do século XIX: a compreensão de que os
indivíduos inseridos no mercado transnacional do sexo como um todo, o fazem por meio
de coerção e abuso de vulnerabilidade, extrapolando, assim, os limites do consentimento
de mulheres em situação de prostituição (PISCITELLI, 2006). Contudo, Piscitelli (2009),
citada por Dias (2014), alerta para o fato de que alguns grupos políticos se utilizavam da
perspectiva abolicionista por motivos estratégicos, não necessariamente por estarem
alinhados com essa perspectiva.
Como referência legal para a orientação de políticas migratórias, o Brasil tinha
como sustentáculo o Estatuto do Estrangeiro820 n° 6815, de 1980, implementado em um
contexto marcado pela ditadura militar. Porém, o referido estatuto não tinha como
proposta central a proteção social, garantias de Direitos Humanos ou sequer o suporte
humanitário aos imigrantes que chegassem no Brasil. Antes, sua intencionalidade, devido
à ditadura, visava a própria segurança nacional em detrimento de quaisquer questões
humanitárias que envolvessem a imigração (ACNUR, 2011). De acordo com Reis (2011),
a implementação do Estatuto objetivava a expulsão justificada de imigrantes que se
envolvessem politicamente e questionassem as políticas autoritárias vigentes.
Contudo, o Estatuto do Estrangeiro perdeu sua validade após a aprovação da Lei
de Migração 13.445, sancionada em maio de 2017. A nova lei é considerada uma das mais

819
A movimentação feminista radical contemporânea está diretamente associada ao feminismo de 1960.
Tanto no ativismo quanto na produção teórica, há o destaque de Kathleen Barry; Sheila Jeffreys; Melisa
Farley; Donna Hughes e Dorchen Leidholdt (KEMPADOO, 2016).
820
Para ler o Estatuto do Estrangeiro, acesse aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6815.htm.
Acesso em: 17 out. 2016.
1628
avançadas do mundo por enfatizar as proposições de acolhimento humanitário aos
imigrantes, requerentes de asilo, e vítimas de tráfico de pessoas. E, nesse contexto, o Brasil
tem sido um importante receptor de imigrantes e refugiados de várias nacionalidades821. Em
paralelo a isso, a preocupação com o tráfico e contrabando de pessoas se intensifica. Tal
fato se reflete nos inúmeros esforços empreendidos pelo Governo Federal em campanhas
antitráfico, acordos e parcerias internacionais que visam políticas de segurança pública para
o fortalecimento do controle fronteiriço, com a finalidade de coibir o tráfico sexual.
Nesse sentido, alguns esforços têm sido desenvolvidos pelo Governo Federal com
o propósito de reprimir e coibir o tráfico de pessoas. Em 2011, o Governo Federal, através
da SENASP (Secretaria Nacional de Segurança Pública) instituiu o ENAFRON – Plano
Nacional Estratégico de Fronteiras822 –, programa que tem como objetivo o policiamento
intensivo para combater delitos transfronteiriços, dentre estes, o tráfico de pessoas. Além
disso, há o Centro Internacional de Desenvolvimento de Políticas Migratórias823 – ICPMD
– que, por sua vez, é uma organização intergovernamental, instituição observadora da
ONU e criada em 1993 pelo governo da Áustria e da Hungria, contando atualmente com
quinze países-membros. Seu objetivo inicial consistiu em promover políticas migratórias
sustentáveis, mas atualmente, dentre as principais ações estipuladas pelo ICPMD, além de
sua atuação na resolução de migrações irregulares e indocumentadas, proteção e asilo,
consta o enfrentamento ao tráfico de pessoas, devido ao seu destaque dentro da
movimentação migratória.

ENTRE VÍTIMAS VULNERÁVEIS, EXPLORAÇÃO SEXUAL E O TRABALHO


DO SEXO COMO UM DIREITO

O debate sobre tráfico de pessoas costuma ser definido, centralmente, a partir de


noções como abuso de vulnerabilidade, coerção e exploração sexual. Contudo, segundo

821
“Em 10 anos, número de imigrantes aumenta 160% no Brasil, diz PF”. Disponível em:
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/em-10-anos-numero-de-imigrantes-aumenta-160-no-
brasildizpf.html. Acesso em: 28 de out. de 2016.
822
O Governo Federal instituiu o Plano Nacional Estratégico de Fronteiras em 2011, por meio do decreto nº
7.496/2011, que tem como objetivo principal o treinamento de policiais e agentes de Segurança Pública para
a
atuação policial em regiões de fronteira, no controle, prevenção, fiscalização e repressão de delitos
transfronteiriços. Para mais informações, acesse:
http://www2.camara.leg.br/atividadelegislativa/comissoes/comissoes-
permanentes/credn/audienciaspublicas/2011/acompanhar-e-esclarecer-asacoes-e-dificuldades-encontradas-
1629
para-prover-a-devida-protecao-asfronteiras-brasileiras-1/apresentacaoenafron. Acesso em: 12 de setembro de
2016.
823
Para mais detalhes sobre o ICPMD, acesse: http://www.justica.gov.br/sua-
protecao/traficodepessoas/cooperacao-tecnica-internacional/icmpd. Acesso em: 17 de outubro de 2016.
Piscitelli (2012), essas noções apresentam limites teóricos e práticos que precisam ser
enfatizados, pois o seu uso explicativo, para todo e qualquer contexto, acarreta na
vinculação automática de toda forma de prostituição exercida no exterior como coercitiva
e baseada no abuso, classificando, também, como “experiências idênticas”
(BLANCHETTE; SILVA, 2011) tanto a prostituição forçada e a exploração sexual infantil
quanto outras formas de prostituição que podem, dentro das possibilidades existentes, ser
decididas por meio de um cálculo racional e estratégico824. Segundo Blanchette e Silva

(...) a migração – inclusive a migração em função do trabalho sexual –


deve ser entendida como parte de uma estratégia racional maior que visa
à construção incremental da mobilidade social, e não necessariamente
uma “opção maluca”, fruto de uma decisão impulsiva (BLANCHETTE;
SILVA, p. 86, 2011, grifo meu).

Inúmeros pesquisadores reforçam tais críticas, como os ligados ao Grupo DaVida825


(2005), bem como autores como Blanchette e Silva (2011), uma vez que partem da
constatação de que há uma “confusão epistemológica” e uma “ideologização”
(MAYORGA, 2010) em torno do tema, pois a produção de fatos e dados sobre tráfico de
pessoas reflete, muitas vezes uma imprecisão qualitativa e quantitativa, informados por
órgãos governamentais e associações civis. Pelo tráfico de pessoas ser crime e, portanto,
uma atividade clandestina, sua apreensão, em termos estatísticos, é um tanto quanto
limitada. Porém, muitas pesquisas desenvolvidas não levam em conta que os resultados
disponibilizados variam completamente a depender das perspectivas analítica e
metodológica adotadas, embasadas na definição de “tráfico” que orientou a pesquisa.
Nesse sentido, se muitas pesquisas que se debruçam sobre o tema refletem a “natureza
multifacetada” dos discursos acerca do tráfico sexual; processos jurídico-legais fora de
contexto e dados com orientações políticas específicas, por sua vez, determinam os
resultados de pesquisas baseadas em uma junção de “diferentes visões epistemológicas”.
As narrativas hegemônicas sobre tráfico de pessoas, constituídas por mitos, quando
materializadas nos ativismos abolicionistas e nas campanhas e políticas antitráfico826,

824
Em meados de 1990, a ONU deixa de atuar majoritariamente junto ao feminismo abolicionista e em
conjunto com a GAATW, elaborou um relatório enfatizando as várias naturezas da prostituição, de modo a
diferenciar a prostituição que pode ser decidida, dentre algumas possibilidades, e a prostituição forçada.
(VENSON; PEDRO, 2013).
825
O Grupo DaVida é uma associação de cientistas sociais da Universidade Estadual de Campinas que se
propõe a estudar a prostituição a partir da perspectiva das trabalhadoras do sexo.
826
Sobre a padronização das campanhas antitráfico e1630a determinação do imaginário coletivo propagado sobre
o tráfico sexual, ver Andrijasevic (2007).
retratam o arquétipo de uma vítima que, via regra, são mulheres, hiperssexualizadas, nuas
ou seminuas, negras ou afrodescendentes, e em condições inquestionáveis de fragilidade e
coerção (BLANCHETTE, SILVA, 2011). Contudo, ainda que a prostituição em si esteja
atrelada a uma condição intrínseca de vulnerabilidade, em maior ou menor grau, partindo
do que Veena Das aponta, “ser vulnerável não é o mesmo que ser vítima” (DAS, 2011, p.
16).
O imaginário coletivo acerca das vítimas do tráfico está associado automaticamente
à mulheres pobres, de baixa escolaridade, “ligeiramente burra ou, minimamente, ingênua”,
remetendo a uma figura de “povão” no Brasil (BLANCHETTE; SILVA, 2011, p. 81), o
que implica em uma infantilização e inferiorização da sua “personalidade sexual e
emocional” (idem, p. 85). As “vítimas” raramente são pensadas como brancas ou claras ou
com algum nível significativo de escolaridade; antes, a tipificação da exploração sexual está
associada automaticamente às mulheres “pobres” ou do “terceiro mundo” que necessitam
de ajuda e intervenção (KEMPADOO, 2005). E, dessa forma, sua inserção no mercado
transnacional do sexo se dá de maneira absolutamente coercitiva.
No que tange à desmistificação da inserção no mercado transnacional do sexo,
Blanchette e Silva afirmam que

Pesquisas recentes entre as prostitutas e as travestis que migram em


função do trabalho entram em conflito com esse mito. Em primeiro
lugar, o grosso das mulheres e dos homens recrutados para o trabalho
sexual no exterior geralmente tem tido experiências prévias trabalhando
na indústria do sexo no Brasil antes de tentar a imigração. Aliás, a
imigração é entendida por eles como a conclusão lógica de uma carreira
de prostituição e não seu início: imigra-se, em muitos casos, somente
após se ter juntado economias e conhecimentos suficientes no Brasil
(BLANCHETTE; SILVA, 2011, p. 85).

Da mesma forma, pesquisas etnográficas (BLANCHETTE; SILVA, 2005, 2010,


2011; MAYORGA, 2011; PISCITELLI, 2008) mostram que o recrutamento, geralmente
associado a aliciadores, estrangeiros mal-intencionados e organizações criminosas, pode
ocorrer sobretudo pela vontade e iniciativa da pessoa em migrar por intermédio de redes
sociais que viabilizam deslocamentos. Essas redes, constituídas por amigos, parentes ou
conhecidos, se propõem principalmente a oferecer ajuda no processo migratório. A partir
disso, enquanto as narrativas hegemônicas enfatizam que as “vítimas” são apreendidas
levianamente por “recrutadores”, os resultados das pesquisas indicam que as trabalhadoras
do sexo têm estrategicamente procurado meios alternativos ou forjado vínculos românticos

1631
com estrangeiros no Brasil, com a finalidade de atravessar fronteiras de forma mais segura,
sem precisar recorrer a redes de cafetinagem, empréstimos ou ajuda de terceiros.
Entretanto, de acordo com a lei acatada pelo Brasil, essa situação é passível de ser
configurada como crime de tráfico de pessoas, ainda que evidentemente não se constitua
como tal, o que abre precedentes para a criminalização arbitrária, executada pela Polícia
Federal brasileira ou pela polícia estrangeira (PISCITELLI; LOWENKRON, 2015).
Piscitelli mostra-se extremamente importante aqui, no sentido de complexificar as
experiências diversas em torno da prostituição, bem como de mostrar as diferenças
existentes entre a exploração sexual, que remete à prostituição infantil e à prostituição
forçada de crianças e adultos, das experiências conscientes de adultos, trabalhadores do
sexo. É emblemático também o estudo que Piscitelli (2004) faz sobre casamentos e/ou
relacionamentos entre gringos e brasileiras, ou entre prostitutas e estrangeiros iniciados no
Brasil, principalmente porque mostra contextos de desigualdade – envoltos por
marcadores sociais – em que prostitutas agem e mobilizam situações a seu favor.
Para a autora (2012), o viés da exploração sexual determina de maneira homogênea
o que seria a forma da exploração, estritamente em termos de abuso de consentimento.
Contudo, é necessário sublinhar alguns limites teóricos e conceituais, pois tanto no que se
refere à prostituição quanto ao tráfico de pessoas, a noção de exploração além de ser
diferente, apresenta suas nuances. A partir disso, a autora apresenta dois pontos: que as
normativas legais brasileiras sobre tráfico de pessoas, historicamente tiveram implicações
sobre trabalhadores do sexo, e, segundo, estiveram atreladas à perspectivas feministas,
especialmente abolicionistas.
Piscitelli (2016) afirma que a palavra-chave para não equacionar o tráfico de pessoas
à prostituição está relacionada à perspectiva das economias sexuais. O tema das economias
sexuais remete a um amplo espectro teórico, a partir e a depender da perspectiva feminista
em questão. Aqui, priorizamos a abordagem das economias sexuais como intercâmbios
sexuais no qual há a troca de sexo por dinheiro, viagens ou uma variedade de bens de
consumo, a partir do entrelaçamento entre afetos, dinheiro e sexo (CABEZAS, 2009).
Considera-se que, mesmo em contextos de desigualdade, no qual o ato da escolha e
agenciamento são restritos, há jogos relacionais de interesse, nos quais trabalhadores do
sexo mobilizam estratégias com a finalidade de obter ganhos materiais e simbólicos.
Por isso Cabezas (2009), por exemplo, utiliza o termo “sexo tático”, bem como o
termo “economias sexuais afetivas”, quando se refere aos circuitos da prostituição na
República Dominicana e Cuba, entre mulheres e clientes locais ou estrangeiros. Outros

1632
autores, tal como Hunter (2002) aborda o termo “sexo transacional”, pertinente neste
contexto, pois sistematiza e amplia a noção da diversidade de experiências que não estão
necessariamente relacionadas à exploração sexual. Ou, segundo Olivar e Garcia, estamos
nos referindo a uma diversidade de relações, dentre as quais, longe de estarem circunscritas
dentro de um molde, entrelaçam “afetos, tempos, redes, espaços e economias
marcadamente diferentes” (OLIVAR; GARCIA, 2017, p. 149).
O antropólogo Didier Fassin (2012), ao analisar a condição de grupos
marginalizados sob a perspectiva das economias morais827 no contexto contemporâneo na
França, apresenta o fenômeno dos governos humanitários, resultante da introdução de
sentimentos morais nas práticas de governo contemporâneo. De acordo com o autor, a
empatia, compaixão, assistência e a benevolência têm ocupado um papel fundamental nas
técnicas da política contemporânea, pois tais sentimentos sustentam discursos e práticas,
sobretudo quando estes estão associados à grupos marginalizados. A forma como estes
sentimentos morais estão presentes na política, vinculado a afetos e valores, conduzem a
uma publicização generalizada do sofrimento daqueles que estão em condição de
vulnerabilidade.
Contudo, se por um lado a política do humanitarismo faz uma junção entre valores
e afetos para definir e justificar práticas de gestão do governo de vulneráveis, por outro lado
o autor mostra que a linguagem dos sentimentos morais tem sido frequentemente utilizada
para justificar a implementação de políticas que além de acentuarem a desigualdade social
e a restrição de direitos de imigrantes e refugiados, justificam operações militares.
Dessa forma, a tensão entre compaixão e repressão, característica central das
práticas dos governos humanitários, notada também por Agier (2011), promoveu uma
conjuntura permeada por intervenções promovidas por governos ou agentes humanitários
a partir da mobilização de discursos benevolentes para a gestão de populações ou grupos
marginalizados. Contudo, do ponto de vista institucional, foram criados mecanismos e
políticas específicas com o objetivo de afastar os “indesejáveis” da esfera de ação do Estado,
seja através da defesa e controle de fronteiras em sintonia com leis de migração cada vez
sofisticadas, até mesmo deportações em massa e obstáculos perceptíveis nas trajetórias de
imigrantes no acesso à cidadania e direitos básicos (AGIER, 2011).
Compreender, portanto, a condição de marginalização a partir da comoção e do
sentimentalismo implica, por sua vez, na secundarização do reconhecimento de direitos e

827
O termo economia moral, utilizado por Fassin, faz referência a um conjunto de ideias, práticas e
concepções – a nível individual e coletivo – que, por sua vez, determinam as práticas políticas.

1633
da justiça social, justamente pelo status de vítima ter centralidade a despeito do status de
sujeito de direitos. Dessa forma, Fassin afirma que além de “o discurso de afetos e valores
oferecer um alto retorno político” (FASSIN, 2012, p. 3, tradução minha), justifica ações
militarizadas e que violam direitos humanos a partir de ações que se colocam como
humanitárias.
Piscitelli e Lowenkron (2015) ao analisar as formulações teóricas de Fassin, as
colocam diante da questão do tráfico de pessoas, apontando que a junção dos discursos e
políticas humanitárias, pautadas na solidariedade e na compaixão, deslocam-se da “esfera
legal à moral” e produzem uma “essencialização da vítima” (PISCITELLI;
LOWENKRON, 2015, p. 37). Essa essencialização, seja em modelos fixos e generalizados,
estereótipos e rotulações acerca daqueles que se prostituem no exterior, não correspondem
às diversas experiências dos trabalhadores do sexo. Segundo as autoras, os resultados de
suas pesquisas etnográficas indicam que “a proximidade ou não dessas pessoas com a
“vítima modelo” era irrelevante” (PISCITELLI; LOWENKRON, 2015, p. 37).

DOCUMENTOS E PRÁTICAS DE ESTADO: SEGURANÇA, PROSTITUIÇÃO E


TRÁFICO DE PESSOAS EM QUESTÃO

Tendo como proposta uma análise das práticas estatais acerca da gestão e
administração do tráfico de pessoas, analisamos os discursos de documentos institucionais
de Segurança Pública. Utilizamos como suporte a etnografia de arquivos adensada por
Lugones (2012), Lowenkron e Ferreira (2014) e Adriana Vianna (2014). Dessa forma,
centralizamos a importância que os documentos portam, enquanto artefatos etnográficos,
por ter a potencialidade de informar a micropolítica – entre documentadores e
documentados – presente nas práticas de documentação (LOWENKRON; FERREIRA,
2014).
A partir do exposto acima, nossa finalidade é uma análise de instâncias estatais e
burocráticas (LUGONES, 2012), no que concerne ao aparato de Segurança Pública
brasileira.
Em ordem cronológica, então, temos o “Diagnóstico do tráfico de pessoas na região
de fronteira”, financiado pela Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) do Ministério da Justiça,
em parceria com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), tendo
como parceiro implementador o ICMPD. Esse projeto, que teve início em dezembro de
2012, foi disponibilizado em 2013, e abrangeu os 11 estados fronteiriços brasileiros. Jose
Miguel Olivar mostra que esse relatório veio à tona em um momento em que era enfatizada

1634
a vulnerabilidade e periculosidade das fronteiras e das regiões amazônicas, demarcando,
assim, tais preocupações na agenda antitráfico brasileira. Isso, também, teve como
implicação em uma série de discursos atrelando as fronteiras à “segurança” (OLIVAR,
2015).
O diagnóstico, no todo, não constrói um posicionamento ou uma compreensão
clara do que seria o tráfico de pessoas, mas incorpora as proposições do Protocolo de
Palermo como adequadas, o que por si só já é bastante emblemático. O Protocolo
considera o tráfico de pessoas constituído pela facilitação do deslocamento, via de regra
decorrente do engano, com a finalidade da exploração sexual. Torna-se explicitamente
irrelevante o consentimento ou qualquer agenciamento nos deslocamentos que tem como
finalidade o mercado do sexo, uma vez que não é feito a diferenciação entre a prostituição
consentida e livre, daquela realizada sob coerção. O tráfico de pessoas, segundo o
documento, está associado à condição de vítima vulnerável, raciocínio este que não
problematiza ou aborda as nuances e os pormenores do problema.
O documento em questão destaca inúmeras vezes o perfil de uma vítima,
remetendo sobremaneira à marcadores de gênero, “raça”, sexualidade, etnicidade,
nacionalidade e idade. Além disso, traz como fator adicional o fato de que mulheres,
negras, e não ocidentais, estão mais propensas, dentro de uma escala de vulnerabilidade, a
serem potenciais “vítimas” das grandes redes de máfia.
Ademais, é enfatizada a necessidade do recrudescimento do controle de fronteiras
como solução do problema do tráfico, ao afirmar que as fronteiras têm se enfraquecido
por uma ausência de Estado, devido às mobilidades resultantes da globalização. Carolina
Ausserer (2007) critica essa suposta “crise das fronteiras”, ao mostrar que, na verdade, o
que ocorre é a produção de medos que justificam aparatos de segurança e de controle cada
vez mais sofisticados. A partir disso, toda a comoção midiática, discursiva, performática e
governamental acerca do “tráfico de pessoas”, diretamente relacionado à suposta “crise das
fronteiras”, implicam em práticas de Estado que abrem precedentes para o
recrudescimento do controle de fronteiras, bem como da produção de criminalidade do
outro, marcado, rotulado e recortado por inúmeros marcadores identitários, alvos de
intervenção. E, finalmente, Ausserer afirma que a despeito de uma “crise das fronteiras” e
perda de controle do Estado de seus territórios, o próprio “tráfico” decorre dos dispositivos
de controle migratório.
De modo emblemático, o relatório aborda também um “perfil de aliciadores”,
redes de máfia e crime organizado, bem como o modus operandi do traficante/criminoso,

1635
normalmente do sexo masculino. Afirmam que tem sido comum a presença de mulheres,
amigas, vizinhas e conhecidas na participação de deslocamentos ilegais, contudo,
apresentam tal dado na chave da criminalidade, a despeito de todo o debate sobre as redes
de ajuda (PISCITELLI, 2009), o que tem implicado em práticas altamente criminalizantes,
afetando sujeitos aleatórios.
Estiveram sob análise também os cursos de capacitação e qualificação dos agentes
de Segurança Pública, atuantes nas fronteiras. Os projetos políticos pedagógicos da
formação policial estiveram o tempo todo ancorado nos aspectos jurídico-legais do
Protocolo de Palermo, e tinham como norteadora a mesma perspectiva do diagnóstico
anteriormente analisado.
Enfatizou-se sobremaneira um “perfil da vítima”, “perfil do aliciador” e a condição
de vulnerabilidade e vitimização que acompanha as “vítimas” em potencial do “tráfico” e
das grandes redes de crime organizado.
Já os relatórios referentes à pesquisa “Segurança Pública nas Fronteiras”,
consistiram em diagnósticos sistemáticos disponibilizados em 2016, no qual firmou-se uma
parceria entre a Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça e
Cidadania (SENASP/MJ), idealizador e financiador, com os grupos de pesquisa NECVU
e Retis, amobos da UFRJ, que, por sua vez, sistematizaram os dados quantitativos e
qualitativos de toda região de faixa de fronteira brasileira.
Os documentos, então, são separados pela equipe de pesquisa em Arco Norte,
Arco Central e Arco Sul. Apesar de problemas em comum, a separação, além de ser
necessária por motivos analíticos e metodológicos, destaca que cada região tem sua
peculiaridade, demandando, portanto, categorias de articulação concernentes às questões
históricas, sociais, políticas e geográficas.
No que tange as questões geográficas, em relação aos estados do Arco Central,
principalmente Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, por exemplo, devido a sua fronteira
com o Paraguai e a Bolívia, os atores institucionais enfatizaram em seus discursos sobre as
intensas passagens e circulação de drogas - sobretudo a maconha, cocaína e pasta-base –
que posteriormente são encaminhadas para outros estados brasileiros. A solução, via de
regra, passa por um maior policiamento e repressão nas fronteiras, a fim de coibir a
circulação de pessoas e mercadorias. Contudo, enfrenta-se a dificuldade de fixar os policiais
na faixa de fronteira, bem como empreender ações coordenadas, em sintonia com as
instituições de Segurança Pública.

1636
No Arco Sul, região fronteiriça com Paraguai, predominam questões que envolvem
o contrabando e o tráfico de drogas, principalmente a maconha, devido à proximidade com
o Paraguai. E, apesar dos discursos sobre a importância de controle migratório estarem
presentes nas falas dos atores institucionais das outras regiões analisadas, no Arco Norte,
por sua vez, além da ênfase ao tráfico internacional de drogas e ao contrabando, questões
concernentes à imigração ilegal, e, portanto, ao controle migratório, apareceram de forma
mais significativa e explícita. Nessa região, observa-se a peculiaridade da mineração e do
garimpo ilegal, o que, segundo o discurso institucional, propicia um intenso fluxo de
pessoas e mercadorias.
A exploração sexual e o abuso de vulneráveis apareceram recorrentemente nos
discursos de profissionais ligados ao Conselho Tutelar, e foram explicados ora como um
problema cultural e regional, ora como resultado de impunidade. A prostituição, por sua
vez, é abordada sempre como um problema e como resultado de um “ambiente ilícito”,
sendo uma consequência ou resultado de um ambiente repleto de criminalidade que, por
sua vez, determinaria que a prostituição fosse uma prática comum.

ALGUMAS CONCLUSÕES E VÁRIAS QUESTÕES

Dos discursos proeminentes provenientes dos atores de instituições de Segurança


Pública, é possível observar uma centralidade para a repressão ao tráfico de drogas, e
depois, para o contrabando de mercadorias, de modo que o tráfico de pessoas é
mencionado poucas vezes, e perde centralidade mediante problemas considerados
urgentes.
Comumente menciona-se a prostituição como um problema recorrente nos
municípios fronteiriços, porém, essa sempre é associada à exploração sexual e à
vulnerabilidade. Quando o problema do tráfico de pessoas é mencionado, o mesmo está
associado sobretudo à exploração sexual, tal como nos documentos anteriores. Conclui-se,
ainda que de forma preliminar, que as questões que concernem ao mercado do sexo, à
prostituição e ao tráfico e pessoas têm como vetor explicativo fundamentalmente a
exploração sexual e a vulnerabilidade dos indivíduos – determinados enormemente pela
periculosidade da fronteira.
Contudo, não é possível afirmar que os territórios de fronteira sejam peculiares e
especialmente enfáticos no que se refere aos indicadores de Segurança Pública. Ou seja,
por um lado os atores institucionais, via de regra, enfatizam a periculosidade das fronteiras,

1637
no que tange a altos índices de criminalidade e violência, mas por outro lado, na prática,
são municípios exceções que apresentam altos índices de violência.
Percebemos, então, que há um imaginário ou senso comum estatal que não
prioriza questões concernentes aos mercados do sexo em escala nacional e/ou
transnacional, e isso, por sua vez, se converte em estereótipos e desconhecimento acerca
do trabalho sexual, seus impasses, problemas, complexidades e a própria dinâmica
existente. O discurso policial, na verdade, legitima soluções como um aparato de segurança
que possa controlar os ilícitos transfronteiriços – incluindo a prostituição nessa chave – que,
segundo esse raciocínio, determina consequentemente a existência do tráfico de pessoas e
da prostituição.
É possível afirmar, finalmente, que no debate sobre tráfico de pessoas, sobretudo a
partir das categorias selecionadas de análise – como vítima, exploração sexual, abuso de
vulnerabilidade, escravização, consentimento –, vê-se que há uma continuidade discursiva
em torno da ênfase da exploração sexual e da vitimização em relação a prostituição, a
despeito das dinâmicas complexas e diversas em torno das experiências de trabalhadores
do sexo, bem como de pessoas em situação de exploração. Além disso, não há nenhum
esforço aparente de abordar tais questões de forma mais nuançada. Pelo contrário, o que
se vê, é um raciocínio automático e sem muita complexidade, que associa automaticamente
a prostituição ao tráfico de pessoas, e sobretudo, à exploração sexual.
Ademais, pode-se afirmar que há uma tendência do Estado, das ações
governamentais, ancoradas em uma “razão humanitária” (FASSIN, 2012), pois, no plano
discursivo há uma comoção e tendência, a partir de sentimentos morais, de abordar grupos
em situação marginalizada, tais como aqueles de indivíduos envolvidos na prostituição na
fronteira. Entretanto, na prática isso se traduz em mecanismos que preveem um maior
controle e repressão de fluxos de pessoas e mercadorias que não passam pela legalidade
do Estado. Finalmente, até o momento notamos que um aparato de segurança em nome
da proteção tem sido demandado, legitimado e utilizado para a restrição da mobilidade de
indivíduos inseridos no trabalho do sexo, mas tem violado direitos humanos e
negligenciado a subjetividade e a identidade de trabalhadores do sexo.

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1641
GT 08 – QUESTÃO AGRÁRIA, MEIO
AMBIENTE E
DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

1642
A MULHER AGRICULTORA FAMILIAR EM ARARAQUARA:
AGENTE DE REPRODUÇÃO SOCIOECONÔMICA

Camila BENJAMIM VIEIRA828

Resumo: Apoiado na escolha teórica e metodológica da sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu,


somados a sociologia econômica e sociologia rural, bem como na revisão bibliográfica, pesquisa de
campo e entrevistas de profundidade, o artigo consiste em um recorte das conclusões encontradas
na dissertação “O fazer a feira: a feira noturna da agricultura familiar de Araraquara-SP”
(BENJAMIM VIEIRA, 2017), na qual identificou a singularidade e a predominância das mulheres
no espaço social da feira e no desenvolvimento de atividades concomitantes. Garcia-Parpet (1984)
aponta a invisibilidade do trabalho da mulher e desta como agente nesse mercado nos anos 1970,
sendo dos homens (“chefes de família”) a função de decisão do plantio, compra e venda. A
obtenção da renda familiar também estava ligada à figura masculina, de forma que as atividades
desenvolvidas pelas mulheres estavam subordinadas ao aval do marido. Ao ser analisado
homologamente a mulher possui hoje (2017) visibilidade nesse comércio, dividindo com seus
cônjuges as responsabilidades da manutenção econômica da família. Porém uma característica do
passado se mantém: o cuidado com a casa e filhos ainda é de responsabilidade exclusiva da mulher.
Tal responsabilidade se configura como atividade não reconhecida enquanto trabalho verdadeiro
por não produzir renda (GARCIA-PARPET, 1992; HIRATA; KERGOAT, 2007; ZELIZER,
2009), ou seja, dentro da racionalidade econômica ortodoxa o trabalho que envolve a manutenção
da família (cuidados com limpeza, saúde e alimentação) fica em segundo plano. No entanto sua
relevância é primordial tanto para a dinâmica produtiva e reprodutiva desses agricultores familiares,
como nas escolhas de consumo das famílias, responsabilidades assumidas, sobretudo, pela mulher.

Palavras-chave: Agricultoras familiares. Mulheres. Reprodução social e econômica.

INTRODUÇÃO

O valor atribuído ao trabalho doméstico (limpeza da casa e da roupa; abastecimento


e preparação de refeições) e aos serviços de cuidar (cuidados diários com filhos, idosos e
cônjuges), que têm as mulheres como principais realizadoras, são tidos hierarquicamente
como inferiores quando comparados a outros trabalhos, ou mesmo, considerados como
não trabalho, por não gerar renda (ZELIZER, 2009a).
As novas configurações da divisão sexual do trabalho com as mulheres no mercado
de trabalho, não as tiram dessa responsabilidade, pelo contrário reforça a distinção de
funções, mas agora ainda mais atrelada às condições socioeconômicas dessa mulher
(HIRATA; KERGOAT, 2007). Essa distinção está entre aquelas que aumentam seus
capitais econômicos, culturais e sociais através do acesso ao mercado de trabalho, e que
passam a delegar os cuidados da “casa” para aquelas que tem, no campo dos possíveis,

828
Faculdade de Ciências e Letras, Unesp Araraquara. Mestre em Ciências Sociais. Agência de Financiamento
CNPQ. Email: benjamimcamila@gmail.com

1643
apenas trabalhos precários, em especial o de doméstica. Em suma, ocorre uma
externalização do trabalho doméstico na sua delegação para mulheres em posições
diferentes.
Dessa forma o modelo tradicional da divisão sexual do trabalho que atribui à
mulher o trabalho doméstico, mesmo na atualidade continua a atribuir a essa a
responsabilidade dos cuidados com a casa, e acrescentaria, com a família, mesmo sob
delegação.
O presente trabalho não tem a pretensão e nem maturidade para se desdobrar
sobre a grande área das Ciências Sociais de estudos de gênero, mas sim, baseados nos
resultados obtidos na dissertação “O fazer a feira: a feira noturna da agricultura familiar de
Araraquara-SP” (BENJAMIM VIEIRA, 2017)829, dar visibilidade a mulher como agente na
reprodução social e econômica, de famílias de agricultores que fazem parte de um circuito
de feiras na cidade de Araraquara.
O que chama a atenção é a predominância da mulher e de suas múltiplas funções
e responsabilidades, nesse espaço social de comércio que hora tem o reconhecimento
próprio e de suas famílias e hora não.
A questão do reconhecimento se faz relevante, principalmente levando em conta
que em um passado recente (anos 1960-1980) no qual a presença da mulher não era
reconhecida no espaço da feira e nem em outros espaços, bem como a importância de seu
trabalho na manutenção e reprodução socioeconômica da família.
Antes de apresentar os resultados obtidos com a dissertação faz-se necessário
apresentar brevemente o espaço social da feira noturna da agricultura familiar de
Araraquara- SP, no qual foi feita pesquisa de campo entre abril de 2016 e março de 2017,
bem como quem são seus agentes, perfil identificado com a realização de dez entrevistas
de profundidade com famílias de feirantes, sobre tudo mulheres, lembrando que essas não
eram o foco inicial pesquisa, mas que se destacaram na dinâmica da feira e análise dos
resultados.

O ESPAÇO SOCIAL DA FEIRA NOTURNA DA AGRICULTURA FAMILIAR DE


ARARAQUARA- SP

829
Dissertação defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unesp - Araraquara, em
10/04/2017.

1644
A feira em questão é parte do programa “Negócio do Campo” (lei 8.288/2014),
com a gestão da Secretaria Municipal de Agricultura, tendo o objetivo central830 de apoiar a
“comercialização, no varejo, de produtos hortifrutigranjeiros, conservas, doces, produtos
derivados do leite e da industrialização artesanal, artigos oriundos do artesanato, cultura e
lazer e outros gêneros alimentícios”, ficando proibida a venda de gêneros que a produção
e/ou extração danifiquem o meio ambiente.
Além da feira noturna da agricultura familiar, que acontece às quintas-feiras, esse
programa realiza a feira da agricultura familiar, que ocorre aos sábados no período da
manhã, as feiras diárias do Terminal de Integração e feiras em parceria com as padarias da
cidade que ocorrem de terça, quarta, quinta e domingo em frente a essas padarias. No
município de Araraquara junto com essas feiras também ocorrem feiras livres tradicionais
(com atravessadores), e mais duas feiras de produtores realizadas por iniciativas
particulares, somando o total de 25 feiras por semana na cidade.
Como parte do programa supracitado e prevista no Plano Municipal de
Desenvolvimento Rural e Sustentável (2014- 2017), a feira noturna da agricultura familiar,
foi motivada pela demanda dos agricultores familiares, em sua maioria assentados, em
escoar seus produtos sem o envolvimento de atravessadores e dispor à população da cidade
produtos frescos devido à proximidade entre o local de plantio e venda.
A feira ocorre desde 31 de julho de 2014 na plataforma da antiga estação ferroviária
da cidade831. A responsabilidade institucional fica a cargo da Coordenadoria Executiva da
Agricultura832, como forma de escoamento e de acesso da população a produtos frescos.
Nos documentos oficiais, essa atividade propõe aumentar a renda familiar dos pequenos
agricultores e diversificar as opções de produtos que chegam à mesa da população, tendo
em sua idealização, além da equipe técnica desta secretaria, as secretarias de Ciências,
Tecnologia, Turismo e Desenvolvimento Sustentável.
O local de realização da feira está no centro tradicional do município, possibilitando
o acesso tanto para quem possui carro (por estar próximo das vias centrais) como para os
usuários do transporte público, pois o terminal de integração (principal ponto de ônibus

830
Composto pelos objetivos periféricos “de facilitação do escoamento da produção agrícola de agricultores
familiares e de assentamentos rurais da cidade, bem como o aumento da diversificação dessa produção e do
emprego rural, oferecendo produtos de melhor qualidade e preços acessíveis que beneficiam o consumidor,
voltando-se para a preocupação com a segurança alimentar do município. ” (Texto da Lei municipal de
Araraquara 8.288/2014).
831
A plataforma é de responsabilidade da prefeitura municipal de Araraquara através de permuta com a união.
No local funciona parte de algumas secretarias municipais (da cultura, de direitos humanos e cerimoniais) e
também o Museu Ferroviário “Francisco Aureliano1645 de Araújo”.
832
Até 2016 ficava a cargo da extinta Secretaria de Agricultura.
da cidade) é próximo à estação ferroviária. A feira acontece uma vez por semana, às quintas-
feiras, com o horário oficial das 16:30 às 21:00 horas833, tendo a média de público de
oitocentos consumidores por feira.
A feira é composta por três comércios: hortifrúti, artesanato e alimentação, sendo
que a maior parte das barracas é de hortifrútis834. Os feirantes dessas últimas possuem o
pré-requisito de serem agricultores familiares, já a exigência para as barracas de artesanato
e alimentação é que os produtos finais vendidos sejam produzidos por eles. Segundo a
Secretaria de Agricultura municipal havia o cadastro de trinta e cinco feirantes, em abril de
2016, que faziam parte dessa feira.
Os agricultores familiares precisam confirmar sua categorização com a Declaração
de Aptidão ao Pronaf (DAP). A DAP é utilizada para identificação e qualificação da
unidade familiar de produção rural, sendo esta composta:

[...]pela família e agregados denominados, em seu conjunto, como


“agricultores familiares”, que exploram uma combinação de fatores de
produção com a finalidade de atender à demanda interna por alimentos
e outros bens que contribuem para o abastecimento da sociedade
brasileira e na geração de divisas. (Manual do agente emissor de DAP,
do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, Secretaria da
Agricultura Familiar – SAF, 2014).

Os feirantes não pagam aluguel pela utilização do espaço, que é fiscalizado pela
prefeitura municipal. Os itens de estrutura da feira, como barracas, balanças, uniformes
foram proporcionados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA) para os agricultores familiares (banca de hortifrúti). Já a estrutura das barracas de
alimentação e artesanato ficou a cargo dos feirantes.
As informações acima apresentadas pautam o locus da pesquisa, tendo no
horizonte que a feira se configura em um espaço social, ou seja, um lugar em que os agentes
atuam de forma relacional, baseados em suas posições sociais e trajetórias de vida, na co-
criação constante desse ambiente de interação.
O que compõe o espaço social são as relações entre os agentes, que variam
conforme seus capitais. Dentro do referencial teórico desta pesquisa, a Sociologia

833
O horário da feira em sua inauguração era das 18:00 às 22:00 horas, conforme a frequência do público e
a adaptação logística a feira ganhou esse novo período.
834
A disposição da feira verificada em pesquisa de campo em 30 de junho de 2016 estava da seguinte forma
3 barracas de artesanato, 10 de alimentação e 18 de hortifrútis. Mantendo essa média de disposição, a
quantidade de barracas varia conforme o dia de feira, quase sempre falta algum feirante por motivos variados:
escassez de produtos, doença, etc. 1646
Econômica, capital não se limita ao econômico, podendo ser, no caso dos feirantes, o
domínio sobre técnicas de produção agrícolas e comerciais, ou a proximidade com um
agente institucional fiscal da feira (capital intelectual e social, respectivamente).
Os feirantes como agentes desse espaço estão em concorrência, na venda de seus
produtos, ao mesmo tempo em que precisam cooperar para o funcionamento da mesma,
para a organização do espaço e no diálogo com as instituições públicas e com a população
local. Essas relações estão permeadas por disputas e afinidades que complexificam as
relações nesse ambiente econômico e social.
A pesquisa inicial visava a análise da feira noturna da agricultura familiar como
espaço de escoamento da produção dos feirantes enquanto possível estratégia de
reprodução econômica e social desses agentes.
Com essa possível estratégia de reprodução econômica e social entende-se que as
mudanças complexas no meio rural brasileiro, iniciado nos anos 1930 com a modernização
conservadora e intensificado nos anos 1970 com a Revolução Verde, contribuiu para a
concomitância de atividades diversas no campo, as quais correspondem às estratégias
familiares que levaram os agricultores escolherem algumas atividades, e não outras, para a
reprodução social e econômica de seu grupo (WHITAKER, 2003).
Na feira trabalham em média dois familiares por barracas, os quais participam de
cerca de três feiras por semana, o que exige uma alternância entre o trabalho na horta e o
trabalho na feira; mesmo em dia de feira sempre fica alguém “cuidando” da plantação na
propriedade, geralmente é um parente muito próximo como pais, tios e irmãos, e quem
“faz a feira” na maioria dos casos é o casal núcleo da família de entrevistados, as quais
possuem em média quatro membros. Dos entrevistados, duas famílias participavam de
associação, uma entre familiares e uma exclusiva para mulheres e duas tinham sociedade
entre parentes.
As entrevistas eram focadas nas famílias como um todo. Tendo como base a revisão
bibliográfica da sociologia econômica e sociologia rural o interesse estava discursos dos
familiares referente a relação desses com a plantação, a casa e a feira.
As idades dos feirantes entrevistados indicam que eles se encontram em uma faixa
etária na qual a maioria é adulta (três entre 30 a 49 anos e quatro entre 50 e 59 anos), sendo
dois jovens (24 a 29 anos) e um idoso (61 anos), proporção essa correspondente à idade
do total dos feirantes e do aparente observado entre os consumidores, sendo a maioria
adulta entre 30 e 50 anos.

1647
Todos os entrevistados são migrantes, sendo três de outras cidades do estado de
São Paulo, um maranhense e a maioria paranaense (seis deles). Relatam que a motivação
para a mudança para outro Estado, para além do corte de cana, foram as possibilidades de
estudo. Os entrevistados migraram com os pais, agricultores familiares. Em relação à
transferência dessa atividade, a maior parte possui a mesma profissão dos pais, iniciando o
trabalho na agricultura na infância, assim como seus pais.
A maioria dos pais835 dos feirantes possuí baixa escolaridade, referente até a quarta
série do ensino fundamental. Já entre os entrevistados, levando em conta cada membro do
casal, nove possuíam até o ensino fundamental, sete o ensino médio, um o ensino técnico
e três o ensino superior (sendo dois desses últimos não moradores do assentamento,
ficando os menores níveis de ensino entre os agricultores familiares moradores do
assentamento).
Entre os assentados, os casais mais velhos (mais de 40 anos) migraram juntos para
a cidade, já os que assentaram com menos idade, se casaram com alguém do assentamento.
E, diferente da manutenção da profissão de seus pais, os casais de feirantes entrevistados
com filhos (em média três), quando maiores de idade não tendem a seguir o trabalho com
a agricultura: possuem escolaridade até o ensino médio e ocupam profissões diversas
(técnico em enfermagem, vendedor, maquinista, montador de móveis).
Quando menores de idade, os pais priorizam os estudos, ao mesmo tempo em que
os familiarizam com as hortas e levam os filhos para a feira (principalmente nas férias
escolares); os entrevistados possuem um discurso de que gostariam que um dos filhos
seguisse com o negócio (agricultura/feira), ou que pelo menos herdasse a propriedade e
continuasse morando na área rural, alegando que a qualidade de vida ali é melhor (por
qualidade de vida eles se referem principalmente às características ambientais do rural,
como sons naturais, menor densidade populacional, menor custo de vida e melhor
qualidade do ar, etc.).
Com essa breve descrição do espaço social e identificação de quem são esses
agentes, temos como conclusões da pesquisa inicial que quem “faz a feira” é em sua maioria
agricultores familiares assentados, sobretudo, agricultores/feirantes nunca isolados, mas
parte de uma rede de relações familiares, econômicas, políticas e afetivas - fazem não só a
feira, mas um circuito de comércio desse tipo, apoiados em suas trajetórias e nos campos
dos possíveis.

835
Em um dos casos, o entrevistado não tinha o conhecimento de quem era seu pai biológico e um tio assumiu
essa figura paterna.

1648
A rede de relações familiares, bem como o acesso a terra por meio de projetos de
assentamentos e as ações da administração pública local possibilitam a reprodução
socioeconômica dessas famílias através das feiras. E dentro dessa rede de relações
familiares um agente em questão sempre se destacou seja pela grande quantidade de função
ou pela maioria numérica: a mulher.

O ESPAÇO DA MULHER: ENTRE A FEIRA, A TERRA E A FAMÍLIA

Garcia-Parpet (1984) em uma pesquisa sobre as feiras do agreste paraibano nos


anos 1970 afirmava que as atividades de agricultura e o “fazer feira” estavam ligadas aos
homens, que como chefes de família. Eles decidiam o que seria plantado, comprado ou a
forma que fariam a venda, sendo os ditos responsáveis pela maior parte da renda familiar.
Já na feira noturna da agricultura familiar em Araraquara a mulher ganha espaço e,
muitas vezes destaque (principalmente na “lida” com o público). Bem como na dinâmica
das esferas imbricadas da agricultura familiar (terra/trabalho/família)836, já que os casais
dividem as decisões, rendas e obrigações em relação à plantação e à feira, mas ainda fica
sobre a responsabilidade apenas da mulher (ou de filhas mulheres) o trabalho doméstico.
Há numericamente uma predominância de mulheres837 tanto entre os feirantes
como entre os consumidores, refletidos proporcionalmente entre os entrevistados dos
quais seis são mulheres e quatro homens. Entre os consumidores, são geralmente as
mulheres que fazem as compras; quando em casal, os homens costumam apenas carregar
as compras. Por exemplo, foi presenciada uma cena em que um homem pergunta o preço
dos pacotes de legumes, o feirante de uma barraca de alimentação diz o valor, os
responsáveis pela barraca estão sentados embaixo da barraca jantando, o consumidor fala
“Peraí que vou falar com a patroa.”, se referindo a sua esposa que estava em outra barraca.
Os feirantes do ramo de horticultura costumam dividir entre o casal o trabalho da
horta e da feira; na divisão desses afazeres chamou a atenção o fato de majoritariamente as
mulheres assumirem a responsabilidade pela feira e os homens a responsabilidade pela
horta, quase uma inversão do apontado por Garcia-Parpet nos anos 1970, de que as
mulheres não estavam presentes nas feiras ou sua presença parecia invisível.

836
A agricultura familiar é de forma abrangente definida como “uma unidade de produção onde trabalho,
terra e família estão intimamente relacionados” (CARNEIRO, 1999, p. 327)
837
A presença das mulheres é destacada também devido à existência de uma barraca pertencente a uma
Associação de Mulheres Assentadas (AMA Panificadora), sendo que todas as associadas que trabalham nessa
associação também são agricultoras.
1649
Já na família dos feirantes da alimentação, as mulheres são as responsáveis pelo
preparo; na maioria das vezes os homens assumem outras atividades acessórias (possuindo
outras fontes de rendimento, como a agricultura ou aposentadoria).
Esses relatos também estão ligados às referências de oportunidade ou ausência
delas, em migrar para outra atividade, já que quando questionada se teria outra profissão
uma feirante/agricultora respondeu "não sirvo pra trabalhar de faxineira na casa dos outros,
não me vejo fazendo faxina, minha irmã faz, ela trabalha aqui de vez em quando, quando
ela não tem faxina vem pra cá”; outra feirante deu uma resposta muito parecida: “se não
trabalhasse com agricultura teria que fazer faxina e isso eu não quero”.
Dessa forma, podemos relacionar que o que está no campo dos possíveis dessas
mulheres são trabalhos como doméstica, ou seja, se não for agricultora só lhes resta ser
doméstica, não havendo muita opção, dado a quantidade de capitais que possuem (escolar,
financeiro e social). Informações que reforçam o apontado por Hirata e Kergoat (2007)
sobre a divisão sexual do trabalho, sendo a divisão não só atrelada a figura da mulher, mas
a posição socioeconômica dessas.
Mulheres em posições mais baixas, como essas agricultoras familiares, sobretudo
as assentadas, costumam assumir não só dentro da família, mas quando por algum motivo
deixam a agricultura a profissão de doméstica.
Dentro do reconhecimento, o quesito prestígio é uma temática salientada Garcia-
Parpet (1984) sobre o papel da mulher na feira. Sua atividade passava pelo aval de seu
cônjuge e também pelo da comunidade, através da adequação da posição naquele espaço.
Por exemplo, a atividade culinária era designada às mulheres enquanto fazer socialmente
feminino.
Porém esse papel variava conforme a posição econômica dos consumidores,
enquanto predominantemente, nos anos 1970, eram os homens que estavam na feira, não
só como vendedores, mais também como consumidores, decidindo o que seria levado para
a casa. Para a população urbana de maior poder aquisitivo fazer feira era “coisa de mulher”,
ficando os homens dessa classe afastados desse espaço.
Já na feira estudada em Araraquara, mesmo o público da feira sendo diverso,
encontrei a predominância da presença de mulheres, como dito anteriormente. Essa
presença também pode estar relacionada ao fato de serem elas as maiores consumidoras
de verduras, frutas e legumes (IBGE, 2008-2009). Somando-se a isso, aparenta frequentar
a feira noturna um público com perfil diverso dos de supermercados e feiras livres, mas
essa afirmação exigiria uma outra pesquisa.

1650
O que podemos afirmar é que com as conversas aleatórias em pesquisa de campo
sobre trabalho e costumes alimentares, muitos dos consumidores afirmam manter hábitos
saudáveis, no sentido de evitarem produtos industrializados (com muito açúcar, sal e
gordura), ou ainda, que eram vegetarianos, tendo os alimentos da feira como base
alimentar. Grande parte dos consumidores possuía ensino superior. Aqueles com menor
nível escolar, que geralmente iam à feira na saída do trabalho, afirmam frequentar a feira
pelo baixo preço dos produtos em relação à qualidade e variedade.
De maneira geral há um público consumidor da feira com um alto capital escolar
(formal ou informal), mesmo que os capitais econômicos sejam baixos.
Um último dado que nos cabe ressaltar sobre a presença da mulher na feira é a
existência de uma associação exclusiva de/para mulheres que comercializa os produtos de
panificação (pães, bolos, doces, etc.). A barraca faz parte do nicho da feira de alimentação,
e além da feira noturna realizam também a mais duas feiras além de exporem seus produtos
à venda na cozinha sede da associação. A panificadora, que teve o apoio do orçamento
participativo municipal em sua criação (2007), é composta só por mulheres assentadas da
reforma agrária, e a sua sede fica no assentamento Monte Alegre (núcleo 6).
Das atividades que envolvem a feira enquanto espaço relacional de reprodução
socioeconômica de agricultores familiares na cidade de Araraquara, ou seja, a logística do
comércio, as escolhas e trabalhos na plantação, a organização e cuidados com a casa e filhos
a mulher está presente em todas, tendo sua presença mais forte na primeira e quase
exclusiva na última. Quando perguntado como essas se reconheciam a melhor resposta
que resume a expressão dos outros discursos é “sou um pouco de tudo”.
Entre as queixas sobre o excesso de obrigações e funções que nunca param, o
cansaço , falta de recursos financeiros, e falas sobre a satisfação e afetividade dessas na lida
com o público, sobre o ser agricultura, deter esse conhecimento e sobre a dedicação sem
medida aos filhos, está um sentimento compartilhado entre elas: a necessidade de
reconhecimento.
Ser reconhecidas em suas múltiplas funções e a importância dessas funções para a
reprodução socioeconômica da família, mostrou-se um valor para elas. Com uma análise
embebida na sociologia econômica, o valor do reconhecimento chega ultrapassar até
mesmo o econômico, conforme observado na dissertação (BENJAMIM VIEIRA, 2017).

1651
CONCLUSÕES

O observado com o desenvolvimento da pesquisa inicial de que em comparação


aos anos 1970, com o estudo de Garcia-Parpet (1984), a mulher agricultora familiar não
está mais “invisível” enquanto agente no processo produtivo, tem o porém do trabalho
doméstico, (organizar a despensa, fazer compras, cozinhar, cuidar da higiene na casa, filhos
e cônjuge) ainda continuar sendo “coisa de mulher” tanto antes como agora.
De forma que a mulher está nas esferas que envolvem a feira não só na posição de
comerciantes/agricultoras, mas como agente que dá suporte a essas famílias ao assumir a
responsabilidade do trabalho doméstico e do cuidado (alimentação e higiene) dos demais
familiares. Não só isso, são elas que estão também na outra ponta, fazem a opção por esse
comércio, enquanto consumidoras responsáveis pela alimentação familiar.
Além disso, o trabalho como doméstica apresentou-se como segunda profissão
entre as agricultoras familiares (sobretudo assentadas) entrevistadas. Elas assumem esse
papel do cuidar da casa (ZELIZER, 2009a) não só em suas famílias, mas, quando precisam
se afastar da agricultura, também em outras famílias.
Tais levantamentos apontam para a necessidade de problematizar e reconhecer a
mulher e suas múltiplas funções (mãe, esposa, agricultora, feirante, administradora,
responsável pelo cuidado com o lar, etc.) como agente na reprodução socioeconômica
dessas famílias. Aqui procuramos dar visibilidade a esse agente, a mulher e suas ações, no
contexto da agricultura familiar do município de Araraquara, em especial na feira noturna
da agricultura familiar da cidade.

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1654
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER DO CAMPO: UM
LEVANTAMENTO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS E DA REDE DE
ENFRENTAMENTO
Larissa Leal CRUZ838

Resumo: O projeto de pesquisa faz parte de uma iniciação cientifica sendo realizada na
Universidade Federal de São Carlos, que pretende realizar um levantamento sobre as políticas
públicas e a rede de enfrentamento à violência contra a mulher no campo, tendo como objeto de
pesquisa um contexto geográfico específico, o Assentamento de Reforma Agrária “Bela Vista do
Chibarro”, local de grande incidência de violência contra mulheres. Buscaremos avaliar como está
estruturada a rede de atendimento às mulheres vítimas de violência no meio rural, se essas mulheres
têm conhecimento e acessam esses serviços e equipamentos públicos como Centros de Referência,
Casas Abrigo, Delegacias, Defensorias, Juizados, Centros Regionais de Assistência Social, dentre
outros. Do ponto de vista metodológico, foi feito um levantamento bibliográfico, foi pensado uma
estratégia com base no objeto de pesquisa para elaboração e aplicação de um questionário,
podendo assim realizar uma entrevista de profundidade com as mulheres que residem no local,
com a vivência no campo e absorvendo grande parte das informações, identificando os maiores
indicadores de problemas e reclamações direcionou para uma segunda etapa que foi em realizar
roteiros de entrevistas com representantes das instituições públicas, como a Delegacia da Defesa
da Mulher, para identificar a percepção que essas instituições têm sobre esse local e os problemas
identificados. No presente artigo, procuramos mostrar a relação e as reações que se estabelecem
entre o Estado, as famílias assentadas e movimentos sociais, que se apresentam de forma importante
para concluir esse processo da obtenção da terra. A forma que está estruturada a vida camponesa
dentro dos assentamentos, a maneira que são colocados na ordem social do capitalista, e os suportes
que são ineficientes, as grandes diferenças entre o que está escrita em um papel e a realidade vivida.
E sobretudo, evidenciando o papel da mulher no decorrer desse processo.

Palavras-chaves: Políticas Públicas. Rede de Atendimento. Violência contra mulher. Zona Rural.

INTRODUÇÃO

No Brasil, a Lei nº 11.340/2006, conhecida por Lei Maria da Penha, foi


considerada um avanço quanto ao direito das mulheres, mas no que diz respeito da mulher
do campo, quais foram suas consequências reais e prática especificamente para as mulheres
que vivem no contexto rural? De acordo com a criação o Secretária de Políticas para as
Mulheres, foi também estruturada uma rede de atendimento e enfrentamento à violência
contra a mulher. Mas algumas questões que se colocam é: como essa rede de atendimento
está estruturada para atender as mulheres do campo? Essas mulheres possuem
conhecimento sobre essa rede de atendimento e acessam esses serviços? As mulheres do
campo denunciam as violências sofridas? Se não, quais fatores são decisivos para que ainda

838
Estudante de graduação na Universidade Federal de São Carlos, pesquisa financiada pela ProEx (Pró-
Retoria de Extenção). E-mail: cruz.larissaleal@gmail.com.

1655
muitas mulheres continuem em silêncio enfrentando praticamente sozinhas os abusos
diários de seus agressores? E até que ponto as instituições públicas negligenciam suporte a
elas?
A partir dessas perguntas que irá se desenvolver este trabalho, incluindo também
discussão sobre estruturas das políticas da reforma agrária, os movimentos e as maneiras
que foram se consolidando na sociedade. Durante esse processo as diferentes etapas que
caracterizam o processo de assentamento, o surgimento de uma série de problemas
decorrentes a ausência de políticas públicas efetivas para auxiliar as famílias assentadas. No
bojo desse processo a relação e as reações que se estabelecem entre o Estado, as famílias
assentadas e movimentos sociais, que se apresentam de forma importante para concluir
esse processo da obtenção da terra. A forma que está estruturada a vida camponesa dentro
dos assentamentos, a maneira que são colocados na ordem social do capitalista, e os
suportes que são ineficientes, as grandes diferenças entre o que está escrita em um papel e
a realidade vivida.
Este trabalho conteve a participação de algumas entrevistas de mulheres residentes
no assentamento do Bela Vista do Chibarro, localizado em Araraquara- SP, que contribuiu
para ilustrar a realidade social o que se passa nas discussões teóricas. A maneira que a
violência se perpetua no campo em volta da mulher, a forma que o trabalho da mulher que
muito das vezes é invisibilizado, de modo que se esquecem que elas também contribuem
na luta pela conquista da terra.

A POLÍTICA DE REFORMA AGRÁRIA E OS ASSENTAMENTOS RURAIS

As primeiras atividades econômicas de produção do Brasil se concentrou como


conhecemos como primário- exportador, em tantas mudanças no cenário social e político
que anteriormente, no começo da descoberta o país era visto somente como uma fonte de
extração de riquezas, e que ao decorrer dos anos mesmo após a ocupação do território
brasileiro a mentalidade de usar a terra como fonte de extração de recursos para a
exportação permaneceu, mas de forma mais agravada. A exploração não só continuou com
meio ambiente como da apropriação da mão de obra escrava (indígena e negros), a terra
passou a ter valor tanto econômico como político, porém, concentrado nas mãos de
pequenos grupos sociais – os latifundiários.
A disputa violenta pela terra se prolongou ao decorrer da história entre os grandes
proprietários e os pequenos grupos sociais conhecidos como camponeses, ou os “sem

1656
terra”, de acordo com A.U. Oliveira (2001)839, os importantes movimentos sociais serviram
como forma de pressão, para que houvesse alguma resposta das instituições públicas, que
resultou em grandes lutas pela liberdade no campo brasileiro, como Canudos, Contestado,
Trombas, entre outros, fizeram parte de muitas histórias de lutas para que resultassem em
criações de programas em pró da reforma agrária, com as reivindicações dos movimentos
sociais dos camponeses o governo Federal criou a Superintendência de Reforma Agrária
(Supra), que gerou fortes ondas de resistência, o senário político e social entrou em conflito
iminente até que houve o golpe militar em 1964. Logo no início, o regime militar, deu os
primeiros passos para a realização da reforma agrária e as propostas de desenvolvimento
da agricultura no país, uma estratégia para mediar os conflitos existentes. O Estatuto da
Terra foi estabelecido pela Lei nº 4.504, de 1964, e a partir disso, são criados o Instituto
Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário
(Inda), em substituição à Supra. Em meados dos anos de 1966, o Decreto nº 59.456
instituiu o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, que não saiu do papel. Em 9 de
julho de 1970, o Decreto nº 1.110 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária (Incra), que praticamente foi a fusão do Ibra e Inda. Continuando a análise do
autor,

[...] A Confederação dos Trabalhadores da Agricultura (Contag) foi


criada e o governo de João Goulart iniciou um processo de Reforma
Agrária, criando a SUPRA. Entretanto, a violência do golpe militar de 64
sufocou o anseio de liberdade do morador sujeito dos latifúndios
armados do Nordeste brasileiro e de muitos camponeses sem terra que
a crise do café e o início da industrialização estavam gerando. Os
militares extinguiram a SUPRA e criaram o Instituto Brasileiro da
Reforma Agrária (IBRA), mas Reforma Agrária, nunca fizeram, mesmo
depois de promulgarem o Estatuto da Terra, em novembro de 1964
(OLIVEIRA, 2001, p. 190).

A intenção de organizar o espaço geográfico e reorganização da estrutura fundiária


com o objetivo de promover a distribuição mais justa das terras, que dentro do Estatuto da
Terra o Estado teria a obrigação de garantir o direito ao acesso à terra para quem nela vive
e trabalha, em modo geral só ficou no papel, a reforma agrária que tinha como objetivo
de proporcionar a redistribuição das propriedades rurais, ou seja, efetuar a distribuição da
terra para realização de sua função social, nunca aconteceu efetivamente, e os pequenos

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em sua obra “A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos
839

sociais, conflitos e Reforma Agrária”. In: ESTUDOS AVANÇADOS 15 (43), 2001.

1657
movimentos que aconteceram através das elites brasileiras não permitiram que o Estado
implemente qualquer política de Reforma Agrária no Brasil de forma que contemplasse a
necessidade. Essas barreiras ficaram cada vez mais nítidas durante as reformas do governo
Collor-praticamente o programa de assentamento foi paralisado- durante o período, não
houve de forma significante uma mobilização de terra para fins de reforma agrária. E que
se prolongou durante o governo de Itamar Franco,

[...]referente aos assentamentos ano a ano entre 1995 e 2000, verifica-se


que há um crescimento no número de famílias assentadas até 1998,
quando se chegou a pouco mais de 83 mil, com redução significativa em
1999 (assentou-se pouco mais de 57 mil famílias) e 2000 (com o
assentamento de apenas 39 mil famílias. Há, portanto, segundo os dados
do Incra até 2000, uma política declarada de redução dos assentamentos
pelo governo FHC (OLIVEIRA, 2001, p. 201).

De modo geral, o que caracteriza um assentamento rural é basicamente um


conjunto de unidades agrícolas, instaladas pelo Incra, cada uma dessas unidades,
conhecidas também como lotes, é entregue pela instituição do Incra a uma família sem
condições econômicas para adquirir e manter um imóvel rural por outras vias. O tamanho
e a localização de cada lote são determinados pela geografia do terreno e pelas condições
produtivas que o local oferece, o que depende da capacidade da terra de comportar e
sustentar as famílias assentadas. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
(INCRA), é o órgão responsável pela formulação e execução da política fundiária nacional,
“o assentamento é o retrato físico da Reforma Agrária. Ele nasce quando o INCRA, após
se imitir na posse da terra (recebê-la legalmente) transfere-a para trabalhadores rurais sem
terra a fim de que a cultivem e promovam seu desenvolvimento econômico. O
assentamento é, portanto, razão da existência do INCRA” . No entanto, a forma pratica
840

da funcionalidade dos assentamentos rurais, depois que os trabalhadores rurais que


recebem o lote comprometem-se a morar no local e a explorá-la para seu sustento,
utilizando exclusivamente a mão de obra familiar. Teoricamente, eles deveriam contar
com créditos, assistência técnica, infraestrutura e outros benefícios de apoio ao
desenvolvimento das famílias assentadas. Até que possuam a escritura do lote, os
assentados e a terra recebida estarão vinculados ao INCRA. De maneira que sem portar a
escritura do lote em seu nome, os beneficiados não poderão vender, alugar, doar, arrendar
ou emprestar sua terra a terceiros. É importante pontuar também que os assentados pagam

840
Informações obtidas no portal do INCRA no site www.incra.gov.br (acessado em 2017).

1658
pela terra que receberam do Incra e pelos créditos contratados, em parcelas proporcionais
que conseguem produzir e que cabem no orçamento de cada família.
É um processo burocrático, a reforma agrária se dá pelo intermédio do Estado, que
busca ter medidas para promover a melhor distribuição da terra de acordo com regime de
posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social, desenvolvimento rural
sustentável e aumento de produção (Estatuto da Terra - Lei nº 4504/64), que, no entanto,
é

[...] o Estado é quem dita os passos e as técnicas para o assentamento das


famílias. É nesse processo que os problemas tomam corpo, como por
exemplo: morosidade no processo de desapropriação; lentidão das
demandas que se dão no âmbito judicial; demora na demarcação dos
lotes e construção das casas; lentidão na materialização de outras
infraestruturas necessárias; descompasso no sistema de créditos e
fragilidade – quando existem – dos programas de assistência técnica e
assistência à comercialização, o que dificulta efetivamente a construção
do assentamento em uma área de produção agropecuária841
(MITIDIERO JUNIOR, 2011, p. 7).

O encaminhamento do processo na avaliação das terras, a burocracia, a lentidão


das ações políticas, demostram que sem a existência dos movimentos sociais
reivindicatórios, não haveria assentamentos rurais por todo o território nacional, ou seja,
são os movimentos sociais que caracterizam o seguimento do processo, de maneira que as
próprias manobras políticas dos grandes fundiários tentam barrar o processo da
distribuição das terras, o que evidenciam, sem as lutas sociais e a disputa pela terra nesse
processo, não aconteceriam de forma efetiva,

[...] a sociedade civil organizada em movimentos sociais no campo é


quem pressiona o Estado para a realização de PAs (Programa para
Assentamento). Como costumam proferir muitos defensores dos
movimentos sociais: no Brasil não há reforma agrária, mas sim luta
organizada pela terra, ou seja, são as ações de reivindicação e luta pela
terra, organizadas pelos já populares ‘sem terra’, que produzem ações
institucionais de desapropriação de fazendas e áreas rurais que não
cumprem função social exigida pela Constituição Federal de 1988
(MITIDIERO JUNIOR, 2011, p. 5)842.

841
MITIDIERO JUNIOR, M. A., em sua obra Reforma Agrária no Brasil: algumas considerações sobre a
materialização dos assentamentos rurais. In: AGRÁRIA, São Paulo, No. 14, pp. 4-22, 2011.
842
MITIDIERO JUNIOR, M. A., em sua obra Reforma Agrária no Brasil: algumas considerações sobre a
materialização dos assentamentos rurais. In: AGRÁRIA, São Paulo, No. 14, pp. 4-22, 2011.
1659
Entre essas e outras evidencias, pode-se perceber nitidamente que as políticas
públicas para distribuir de forma “justa” e eficiente a concentração de terra, é retórica no
que está estabelecido na constituição, ou nas medidas que foram construídas para o projeto
de reforma agraria. E tona-se mais deficiente na medida que analisamos o processo de
estruturação para a fiscalização, na construção de infraestrutura para os assentamentos, o
acompanhamento das assistências técnicas, na liberação de créditos bancários para a
produção agrícola, em todos os aspectos deixa a desejar, de acordo com

O Atlas Fundiário Brasileiro, publicado pelo Incra, indicava que 62,4%


da área dos imóveis cadastrados fora classificada como não-produtiva e
apenas 28,3% como produtiva. Estas informações revelam, pois, a
contradição representada pela propriedade privada da terra no Brasil,
retida para fins não-produtivos. Inclusive na prática, o único
compromisso social que os latifundiários deveriam ter seria o pagamento
do imposto territorial rural (ITR), mas não é o que ocorre. Os dados
divulgados pela Receita Federal referentes a 1994 mostram que entre os
proprietários dos imóveis de mil a cinco mil hectares, 59% sonegaram
este imposto e entre os proprietários dos imóveis acima de cinco mil
hectares, esta sonegação chegou a 87%. (OLIVEIRA, 2001, p. 187)843.

E é dessa maneira que estamos diante de um grupo fundiário violentamente


concentrador e, que sonega impostos, que fazem todas as manobras possíveis para
defender seus interesses capitalistas. Que por outro lado, na medida de um
desenvolvimento capitalista deficiente que gera um enorme conjunto de pessoas retirantes
do campo para os centros ubarnos, pessoas em condições precárias de vida que precisam
lutar e muito para garantir seus direitos, no entanto, essa busca de condições melhores para
suas vidas que as pessoas se encontram na necessidade de fazer esse deslocamento, mais
conhecido como êxodo rural, porém é em uma porcentagem pequena que um grupo de
pessoas resistem e permanecem na luta para ficarem na zona rural.
A pesquisa do INCRA concluiu entre os anos de 2016/2017 que o estabelecimento
ou terras destinadas para assentamentos resultou em um montante de 346.914,33 de
hectares, aproximadamente 17.249 famílias vivem em cerca de 274 assentamentos nesse
momento no Estado de São Paulo. Dados do ano de 2009 do IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística) calculam que a situação agrária no Brasil em terras rurais,
permaneceu praticamente inalterada nos últimos 20 anos. Reflexo de séculos, que necessita
de uma reparação estrutural e histórica, por parte do Estado, e da conscientização dos

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de., em sua obra A longa marcha do campesinato brasileiro:
843

movimentos sociais, conflitos e Reforma Agrária. In: ESTUDOS AVANÇADOS 15 (43), 2001.

1660
grandes latifundiários.De modo, que boa parte dos assentamentos se localizam próximos
de cidades de médio ou grande porte, pois as assistências que são destinadas aos
assentamentos não seriam suficientes de manter essas famílias nesses locais. Sobretudo, de
acordo com a pesquisa José Graziano da Silva (2001) as pessoas que exercem atividades
agrícolas são as que geram menor renda, e que o número de famílias agrícolas está
diminuindo, pois elas não conseguem sobreviver apenas de rendas agrícolas, normalmente
elas fazem outras atividades para complementar a renda, isso quando não são pessoas
aposentadas ou que recebem algum auxílio do governo.
Alguns dados utilizados na pesquisa de A.U. Oliveira (2001) revelam que, a
maneira que esses camponeses são colocados na ordem capitalista competitiva é de forma
desleal, não possuem estrutura necessária para ter uma mobilidade social de forma
concreta, de modo que “há no Brasil mais de 32 milhões de brasileiros abaixo da linha da
miséria absoluta, ou seja, quase sete milhões de famílias (18% do total) são classificadas
como indigentes, e mais 38% delas, ou seja, mais 14 milhões, como pobres” Entre esses
844

motivos e outros demostram a real motivação para pessoas procurarem refúgios nas zonas
urbanas, por acreditarem que terá mais oportunidades para melhorarem as condições de
vida, por exemplo: o acesso ao trabalho com retorno de capital “suficiente” para
sobrevivência, e as outras facilidades de acesso na cidade, como: educação, saúde,
emprego, a informação, entre outros, esta infraestrutura oferecida motivam as pessoas a
deixarem as zonas rurais.
Quando se decide em lutar pela vida camponesa enfrentam dificuldades tanto pela
luta da terra, como em permanecer na terra. Não se pode negar que é nesse cenário que
as pessoas enfrentam grandes dificuldades e um meio extremamente violento. É desse
modo que fazemos os recortes para as famílias, as forças de diferentes lados que surgem
destacamos principalmente da mulher camponesa. A violência especificamente contra a
mulher do campo, é algo onde existe uma grande lacuna sobre o tema, poucas pessoas
discutem sobre, mas recentemente a violência contra a mulher vem sendo reivindicada
como pauta de discussão nos movimentos sociais de mulheres trabalhadoras rurais,
conforme apontam Scott, Rodrigues e Saraiva (2010). Isso pode ser percebido no tema
escolhido para três edições da Marcha das Margaridas que, em um primeiro momento
eram movimentos sociais com reivindicações à legalização trabalhista, que tinham na pauta
de reivindicações a luta contra a fome, a pobreza e benefícios previdenciários, mas

Ariovaldo Umbelino de Oliveira, em sua obra “A longa marcha do campesinato brasileiro: movimentos
844

sociais, conflitos e Reforma Agrária.”In: ESTUDOS AVANÇADOS 15 (43), 2001. Na pág 187.

1661
evidenciaram que também havia demandas existentes sobre um problema bastante
silenciado, o da violência contra a mulher. O Movimento Sindical de Trabalhadores e
Trabalhadoras Rurais (MSTTR) teve o diferencial político por terem as mulheres como
agentes participantes, na perspectiva também de avançarem e qualificarem o processo de
construção de políticas públicas para as mulheres e mostraram a necessidade de se prestar
mais atenção à violência nas áreas rurais.
Mesmo a mulher sendo inserida totalmente nesse mundo retratado masculinizado,
elas exibem grande representatividade, de maneira que lutam igualmente aos homens,
contudo, um relato de uma assentada nos retrata as dificuldades do campo, a experiência
de vida de algumas assentadas nos mostra como funcionava o processo

[...] tinha que em seguida acampar, que é pelo Movimento Sem Terra
né?!. Eu falei: Ah! Vamos lá, vamos tentar né?! A gente só arrendava
terra e o sonho da gente era ter um pedacinho né?! E ali começou,
tínhamos 4 crianças pequenas, ele foi ficou uns dias, e depois eu fui para
assentar lá (Z.)845.

A decisão em participar de uma reforma agrária em lutar pela terra, era algo que
envolvia a família inteira, tinham que envolver as crianças independentemente da idade,
um processo que exigia muita perseverança, pois infraestrutura não possuíam, as condições
dos acampamentos em comportar as pessoas eram precárias, a simplicidade e o básico para
continuarem a luta.

Pegamos um pedaço da casa, as casas era de muro pré-moldado, que eu


não sabia se ia conseguir a casa ou não né?!. A gente não sabia quando
ia conseguir pegar a terra, e lona sempre estoura, por isso a gente fez a
casa de muro pré-moldado. Ficamos nessa luta por 3 anos e meio, lá em
Promissão. Mas a gente teve um ganho no começo da nossa luta, que a
gente teve a sorte de não ser despejados né?! Que muitos companheiros
nosso eram despejados, eles não conseguiam ficar. A gente conseguimos
5 hectares emergencial, ficamos lá e continuamos a luta, com a
negociação do INCRA, com as entidades, até que a gente conseguisse
encontrar nossa terra definitiva (Z.).

A incerteza, os casos de despejo, a persistência pela luta, e sempre em negociação


com as instituições públicas, sempre está presente, nesse relato eram aproximadamente
350 famílias que estavam em negociação com INCRA.

845
As mulheres que deram entrevistas foram asseguradas de total sigilo, por este motivo os nomes serão
preservados para garantir o anonimato e a segurança dessas pessoas ao percorrer deste trabalho.

1662
Depois de 32 negociação, conseguimos vir pra cá (Araraquara). Nosso
grupo, agente acampou em 350 famílias, foram redivindindo, uns foram
desanimando, porque não é fácil, né?! Ter que ficar em baixo de barraca,
sem saber se amanhã a criança vai ter o que comer...[choro]....Aí, depois
já cansados de ficar lá, sem um tipo de pressão, de divulgar a luta, tivemos
que fazer uma caminhada para São Paulo. Gastamos 9 dias, a gente
dormia nas igrejas, comia nas estradas, e era companheiro nosso
assentado que dava comida para nós. E a comida nossa é uma comida
que nunca se esquece, era arroz, feijão, abobara madura com carne, as
vezes um pouquinho de carne moída ou quiabo com abobara (Z).

Podemos perceber que a luta sempre é em conjunto, “nossos companheiros”,


existiam pessoas que auxiliavam, uma corrente de solidariedade providenciava comida,
colchões, até meios de transportes para levar as crianças, ou pessoas que não conseguiam
andar, segundo a assentada, andavam aproximadamente 30 km por dia. Essa luta começou
por volta do ano de 1987, um grupo de pessoas que se reuniram para tentar adquirir a
terra.

Olha minha vida sempre foi assim: sempre trabalhei na roça, com
criança pequena né?! A gente era arrendatário, com muita dificuldade,
mas criança não atrapalhou de eu trabalhar, eu arrastava eles juntos para
roça né?! Eles ficavam em baixo da arvore, dentro de uma perua que a
gente tinha, então desde do começo do início da minha vida foi assim
(Z.).

A mulher camponesa por mais dificuldades que ela enfrenta no dia-a-dia, ela cria
suas estratégias para permanecer no trabalho e na luta, nesse relato, até as crianças eram
inseridas no contexto do trabalho da vida rural, não é só na esfera domestica que a mulher
teria que se preocupar com os cuidados dos filhos, nesse relato as crianças também
acompanhavam o trabalho diário de sua família. O estilo de vida camponesa que outra
assentada ressaltou “para ser camponês têm que nascer com sangue de camponês” (M.R.),
mesmo reconhecendo que é um desafio constante, quando se conseguem demostram um
sentimento de gratidão, mas a luta continua mesmo depois da conquista, existe uma luta
pela terra, e outra na terra. “Foi fácil? Não foi. É fácil? Não é. Porque viver na reforma
agrária, viver em si é um desfio né?! Porque a gente tem que pensar que é sempre uma luta
constante. Hoje com a experiência que tenho, permanecer na terra é mais difícil do que
conquistar ela” (Z.).

1663
BELA VISTA DO CHIBARRO: CARACTERIZAÇÃO DO ASSENTAMENTO
RURAL

O Assentamento Bela Vista do Chibarro, uma área rural localizado dentro da


cidade de Araraquara-SP, um local distante do centro da cidade, as condições das estradas
que se caracterizam típicas de interior sem infraestrutura, o solo de barro vermelho, com
muitos buracos e ondulações, já evidenciam indícios de dificuldade de acesso, uma região
que concentram pessoas carentes de investimentos e atendimento por parte da gestão
pública do Estado, dessa forma existe uma grande necessidade de encontrar instituições
básicas do Estado atuando na região para proporcionar assistência social no local, para que
haja um desenvolvimento social, econômico, cultural e consequentemente proporcionar
um bem estar e condições de vida melhores, criando condições justas para inserir esses
produtores rurais na ordem competitiva capitalista. Especificamente dentro do
assentamento do Bela Vista de Chibarro é possível encontrar rede pública de ensino como
Educação Infantil (creche e pré-escola) e Ensino Fundamental (1ª série até o 9° ano). Uma
unidade básica de saúde, que atendem parcialmente, pois os exames mais específicos têm
que ser feitos fora da região, ou seja, ainda precisam do deslocamento para suprir o que a
unidade não oferece. Contudo, foram equipamentos públicos conquistados em plenárias
do Orçamento Participativo, instrumento institucional que insere a participação social na
definição da aplicação da verba de investimento.
As entrevistas em profundidades se concentraram somente no público feminino,
pois a mulher do campo apresenta mais vulnerabilidades em comparação à mulher do
centro urbano, devido ao seu isolamento, dependência econômica, falta de infraestrutura
e ausência de políticas públicas no meio no qual estão inseridas, além de fatores como
menor nível de escolaridade e de acesso à informação, que muitas vezes implicam na falta
de ciência de seus direitos (SCHRAIBER; D´OLIVEIRA, 2002)846. Dessa maneira, através
dos relatos e da vivencia de vida delas foi possível identificar os principais problemas
presentes na região, como por exemplo na instituição da saúde, e que por sinal, são essas
mulheres que mais usufrui do serviço. Segundo os relatos e através das observações feitas
em campo, a unidade básica de saúde da região, estava com problemas como a falta de
alguns remédios, dificuldades de deslocamento para prestar socorro, gerador de energia
queimado, falta de profissionais de outras especialidades que deveriam estar presentes na

Esse foi um conceito elaborado por SCHRAIBER, Lílian; D´OLIVEIRA, Ana Flavia. Draft Country
846

Report: Who Multi Country Study on Women’s Health And Domestic Violence Against Women, Brazil.
W6/181/13. São Paulo, 2002.
1664
região, sem contar com o longo tempo de espera para o atendimento, e como bem
observado por uma das mulheres do assentamento, é um local no qual as providencias do
Estado muito das vezes não chegam.
Além disso, um dos resultados das grandes lutas constantes das pessoas que moram
na região é a conquista da Escola municipal Herminio Pagotto Prof Emef, que se tornou
referência na região pela qualidade do ensino, é uma das poucas escolas estabelecidas
dentro de um assentamento, no entanto, é uma outra luta constante para manter os
investimentos e ampliar atendimento para os alunos do ensino médio, que até o momento
não consta no planejamento curricular da educação da escola. Outro requisito que consta
na pauta de luta dos residentes do local é o estabelecimento de um EJA (Educação para
Jovens e Adultos), muitas mulheres expressam em suas falas a vontade de voltar a estudar,
o relato de uma das mulheres expressa a necessidade ao um ponto que elas não se
reconhecem em ser uma pessoa e perdem a identidade. “Eu queria ser alguém e estudar”
(V.P, 39 anos)847. A preocupação com a educação é presente nas falas dessas mulheres, não
somente como formação e meio de adquirir conhecimento, mas com diferentes objetivos,
umas usam a educação como feramente de distração, outras demonstra preocupação para
formação dos jovens como forma de capacitação e profissionalização para conseguir um
trabalho, de certa maneira como mobilização para ascensão social, um processo de busca
gradualmente condições de vida melhor. Não somente isso, mas ouvindo os relatos das
mulheres, constatamos algumas reclamações com os indícios do problema de consumo de
drogas que está crescendo na região e com isso a violência. A ausência de programas de
lazer tanto para os jovens como para as famílias, indica que eles sentem falta de cursos
profissionalizantes ou escolarização básica, como refúgio, em meio de um dos relatos a
pessoa acreditava que os jovens se encontrava nessa situação voltando-se para o uso de
drogas por “falta do que fazer”, dentro do assentamento não oferece perspectiva de vida
para essa nova geração, a falta de novas possibilidades de trabalho, de lazer, pelas razões
de viver só do sustento da terra estão cada vez mais difícil. “Aqui é bom, mas prefiro morar
na cidade para trabalhar, se aqui tivesse eu ficaria sim” (J. L, 15 anos). Relatos como esse
evidenciam uma tendência de êxodo rural por parte dos jovens por busca de condições de
vida melhores, mesmo demostrando o apreço pela vida camponesa, as condições da
realidade social não favorecem a permaneça desse público na região.

847
As mulheres que deram entrevistas foram asseguradas de total sigilo, por este motivo os nomes serão
preservados para garantir o anonimato e a segurança dessas pessoas.

1665
Outros fatores que desencadeiam a falta de outras perspectivas e oportunidades, o
que direciona em relação a questão da saúde da mulher no meio rural, fez com que os
indícios da depressão ficassem mais perceptível, em conjunto com as lesões sobre seus
corpos por conta do trabalho pesado, além de constatar relatos de violências físicas, verbais,
psicológicas e patrimoniais. Algo que se tornou latente de preocupação sobre a auto
declaração de depressão entre as mulheres do assentamento, não só ocasionada pela
violência, mas por outros motivos presentes na vida rural, muitas encontram refúgio na
cultivação do seu lote, outras no trabalho artesanal, mas muitas permanecem sofrendo
caladas dentro de suas casas. É evidente que muitas mulheres sentem e reconhecem a
necessidade da presença de um psicólogo, inclusive é uma das pautas que seria necessário
estar presente como reivindicação de direito para saúde da mulher na rede de saúde
pública do assentamento e no meio rural. “Só presa dentro de casa e não tem ajuda”/
“Fazer os serviços do lote distraí” (A. G, 26 anos). Outro aspecto que chama atenção é a
falta de orientação, de modo que, muito das vezes fazem com que essas pessoas deixem de
reivindicar e receberem seus direitos civis, e com a parceria do descaso dos poderes
públicos que dificultam mais ainda o acesso a informação e a resolução dos problemas.
Contudo, reforçando a ideia que umas das mulheres ressaltou “que permanecer na terra é
mais difícil do que conquistá-la”. A ausência de orientação, e a dificuldade da transmissão
da informação e a comunicação é um dos outros grandes problemas que consta no
assentamento, no caso de uma das mulheres entrevistadas chegou a perder um filho por
não saber o que era infecção urinária, foi diagnosticada e liberada para se cuidar em casa,
mas devido a sua situação não recebeu os devidos cuidados da rede de saúde pública trouxe
consequências graves para sua vida. “Eu estava com infecção, mas eu não sabia o que era
infecção” / “ Ninguém dá orientação” ( P. F., 22 anos).
A falta de orientação se torna um fator exacerbado na região, quando até casos de
violências física as mulheres se intimidam de fazer denuncia, em muitos casos, a violência
parte também das próprias instituições que deveriam proporcionar uma garantia de
segurança. Não é uma violência simbólica, é uma violência vivida, um dos casos relatados
evidenciam a falta de diligência dos processos que as mulheres chegam a fazer a denúncia,
de modo que depois que uma vítima de caso de violência física fez a denúncia e procurou
a Casa Abrigo, ficou aproximadamente 03 anos para obter alguma resposta da instituição.
“Se fosse para morrer, já teria morrido” (L.B 28 anos).
A falta de orientação desarticula a mobilização para o enfrentamento dos principais
problemas de violência, não só nesses casos, mas em outras pautas de lutas que consta

1666
dentro do assentamento. De modo que, em outro caso de violência doméstica enfrenada
por uma dessas mulheres ocasionou perda de contado com seus filhos, em meio ao seu
relato, por uma questão de sobrevivência foi obrigada a fugir de casa e deixar seus filhos
para trás, morando com seu agressor, não tinha como garantir nem a sua própria
sobrevivência como a deles também não, mais uma maneira de evidenciar que a
dificuldade de comunicação e informação deixa marcas desagradáveis na trajetória de vida
dessas mulheres. No entanto, retornando na questão da saúde da mulher, não só deixaram
marcas em seus corpos, como refletiram na questão da sua saúde mental, muito delas
desenvolveram depressão, hipertensão, tontura, entre outros.
A falta de orientação e informação, amplia nas questões de solicitar e resolver
documentação jurídicas, que é perceptível na fala delas a insegurança em dar seguimento
algum processo, que atinge até área de recorrer a pedir financiamentos de créditos rurais
ou a regulamentação dos proprietários das terras e até mesmo a solicitação de assistência
técnica rural dentro dos lotes, o que manifesta, que grande parte das famílias constam a
ausência de assistência técnica dentro dos lotes.
Entretanto, mesmo identificando os principais problemas e as reivindicações
dentro do assentamento como: as condições das estradas, os horários de ônibus; a
inflexibilidade dos horários para retirar tanto os medicamentos como as correspondências,
a falta de lazer, o desejo de implementação de cursos profissionalizantes para todos os
públicos, são os que mais ficam como as principais evidencias nas pautas dos residentes do
local. De modo que, além de todos os problemas constatados foi possível observar uma
mobilização das mulheres como meio de socialização entre elas, na criação de um Grupo
das Mulheres, tentaram se mobilizar na construção de uma Cooperativa só de mulheres.
Todavia, esse pequeno grupo trouxe impactos importantes na vida dessas mulheres,
oferecendo pequenas oficinas de artesanatos, cursos culinários como de panificadoras, de
instituto de beleza, entre outras atividades, como economia solidária dentro do
assentamento. O surgimento dessas atividades, articulando uma iniciativa de gerar a renda
própria dessas mulheres, a circulação de informações, um processo de socialização
terapêutica, que servem tanto para distração como empoderamento das mulheres,
fortalecendo esse público nas partes que as instituições públicas deixaram de atuar.

1667
MOMENTO DE RESISTÊNCIA

Mesmo a mulher não sendo do sexo frágil, ela também não é feita de ferro, mas
tem muita força e dignidade para não se deixar desanimar pela circunstância, é muito
comum ouvir delas que a “vida difícil, mas, boa” (S. H.), o foco delas é sempre “Lutar!
Lutar! Para ter um sonho a realizar” (M. L), e reconhecer que o “melhor momento foi
conseguir a terra” (M. L.), “o sonho de vencer” (N.F. 51anos), mesmo quando faltam
auxilio do governo, “não só faltou, como está faltando” (N. F.). Essas mulheres
permanecem resistentes, aos poucos se mobilizando para continuarem buscando
condições de vida melhores para suas famílias. A luta pela terra, pelo desejo de vencer é a
bandeira que elas carregam, “não é porque sou mulher que vou cruzar os braços, esperar
que o marido nos traga. Temos que lutar também” (N.F.). O empoderamento de algumas
mulheres fez chegar aonde estão hoje, as dificuldades de ficar acampadas com filhos, com
a família em geral, num local sem infraestrutura nenhuma, fizeram com que elas
persistissem, e continuassem lutando para permanecer na terra, de maneira que,
contribuíram para desenvolverem o pensamento como: “Oxê, quem disse que a mulher
não luta?!” / “Minha caneta era o cabo da inchada”/ “Não é a dificuldade que para nós” /
“ O que passei não foi em vão” / “eu fiz tudo com amor, faria tudo novamente” (M.). “
Cada nascer do sol eu agradeço à Deus” (N. F.), o sentimento de gratidão reforça mais
ainda o reconhecimento que elas fizeram parte dessa luta, e a recompensa que tiveram. As
faltas de orientações e as oportunidades e muito das vezes a ausência da manifestação dos
poderes públicos, não fez com que essas mulheres desistissem pela da terra e por
condições melhores para suas vidas e dos seus familiares, e o reconhecimento que a
reforma agrária é possível, quando existe um grupo unido em pró dessa pauta, a
necessidade da luta constante, de maneira que essas mulheres têm em abundância é
experiências de enfrentar grandes batalhas, cada uma delas travaram suas guerras e aos
poucos foram derrubando essas barreiras.

CONCLUSÃO

É em decorrência deste conjunto de razões, que bravamente e teimosamente os


camponeses lutam no Brasil de duas maneiras: uma para entrar na terra, para se tornarem
camponeses proprietários; e outra, que lutam para permanecer na terra como produtores
de alimentos fundamentais à sociedade brasileira. São, portanto, uma classe em luta

1668
permanente, e com todas circunstancias que se fazem parte na realidade do cenário rural
do Brasil, de modo que os diferentes governos não os têm considerado em suas políticas
públicas, deixam muito a desejar em requisito para prestar assistência e construir uma
infraestrutura para atender as necessidades e as perspectivas de vida do campo.
Dessa maneira voltamos a enxergar o papel social e a importância da mulher rural
nesse meio, de modo que a violência contra mulheres se constitui em uma das principais
formas de violação dos seus direitos humanos, atingindo-as em seus direitos à vida, à saúde
e à integridade física. A jornada de trabalho dessas mulheres é igual ou maior que a dos
homens, muitas se reconhecem como produtoras rural e ainda também são encarregadas
dos cuidados domésticos. E quando perguntam se seu trabalho é reconhecido, boa parte
diz que “NÃO ”ou “ÀS VEZES”. Entretanto, as mãos calejadas de tanto trabalho, saúde
debilitada por conta da atividade que exerceram por tantos anos, que produzem tanto para
comercialização como para o autoconsumo, a mulher camponesa se sente invisível por
toda parte, seu trabalho em certas ocasiões não sente que é reconhecido e quanto a atenção
das instituições públicas. Dessa maneira, quando se fala em reforma agraria e luta pela terra
não se pode e não deve invisibilizar a mulher, entre tantos os modos a mulher também luta
e batalha pela conquista da terra, como vemos no estudo de Costa (2005), em municípios
rurais do Rio Grande do Sul identificou que a violência contra a mulher no cenário rural é
considerada como “destino de gênero” pelos profissionais. Ou seja, a mulher é vista sob
uma percepção de “subordinação” e da “obediência”, que implica na responsabilidade
exclusiva pela reprodução biológica, afazeres domésticos e da lavoura, com pouca ou
nenhuma legitimidade para desconformidades, que em outras palavras, estão fadadas a
levarem suas vidas como subordinadas e enfrentando casos de violências e descaso. De tal
modo que a violência contra as mulheres também deve ser entendida e considerada na
dimensão de gênero, ou seja, a partir da construção social, política e cultural da
predominância da masculinidade sobre a feminilidade, assim como se constroem as
relações entre homens e mulheres no meio social, bem como no plano contextual das
relações desiguais de gênero, como forma de reprodução do controle do corpo feminino
numa sociedade sexista e patriarcal. Em um modelo de sistema patriarcal se verificam
relações desiguais de poder entre homens e mulheres, que atinge não somente a esfera
privada, mas também a pública. Contudo, a vida rural não é fácil, e as pessoas que
enfrentam os problemas dessa realidade social, passam por mais dificuldades por falta de
políticas públicas efetivas, assim como necessitam de orientações mais especificas, locais
que muito das vezes o Estado se ausenta e deixa de fornecer sua assistência, desprezando

1669
uma comunidade de pessoas carentes que passam por muitas dificuldades mas não deixam
de produzir e persistir pela luta de seus direitos, e a mulher rural não está isenta disso, pelo
contrário é protagonista desse movimento.

REFERÊNCIAS

COSTA, Heloisa. L.C. As mulheres e o Poder na Amazônia. Manaus: EDUA, 2005.

MITIDIERO JUNIOR, M. A. Reforma Agrária no Brasil: algumas considerações sobre


a materialização dos assentamentos rurais. In: Agrária, São Paulo, No. 14, pp. 4-22, 2011.

OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. A longa marcha do campesinato brasileiro:


movimentos sociais, conflitos e Reforma Agrária. In: Estudos Avançados 15 (43), 2001.

SCHRAIBER, Lílian; D´OLIVEIRA, Ana Flavia. Draft Country Report: Who Multi
Country Study on Women’s Health And Domestic Violence Against Women, Brazil.
W6/181/13. São Paulo, 2002.

SCOTT; Parry; CORDEIRO, R.; MENEZES, M. Gênero e geração em contextos rurais.


Santa Catarina: Ed. Mulheres, 2010.

SILVA, José Graziano. Velhos e novos mitos do rural brasileiro. In: Estudos Avançados
15 (43), 2001.

1670
DENTRE O RURAL E O URBANO: A DINÂMICA MIGRATÓRIA NAS
CIDADES DO AGRONEGÓCIO BRASILEIRO

Giovana Gonçalves PEREIRA848

Kelly C. M. CAMARGO849

Resumo: O presente estudo tem como objetivo analisar as relações entre os espaços rurais, urbanos
e intra-urbanos de pequenas e médias cidades brasileiras localizadas em regiões não-metropolitanas
e que possuem seu crescimento econômico, demográfico e populacional associado as atividades
agroindustriais presentes em seu quadro municipal. Neste contexto, trataremos de um estudo de
caso dos municípios de Lucas do Rio Verde/MT, Matão/SP e Sertãozinho/SP, respectivamente,
expoentes do agronegócio sojeiro, citrícola e sucroalcooleiro. Pretendemos explorar os
desdobramentos da atuação das agroindústrias na dinâmica populacional e migratória, bem como,
na reorganização do espaço intra-urbano destas municipalidades. Deste modo, a metodologia
consiste na exposição de informações obtidas em pesquisas de campo, realizadas via observação
direta, entre os anos de 2012 e 2015, nos Estados de São Paulo, Mato Grosso e Piauí, bem como,
na análise do mercado de trabalho formal através dos dados disponibilizados pela Relação Anual
de Informações Sociais (RAIS, MTE) e da dinâmica populacional e migratória destas localidades
a partir de informações do Censo Demográfico de 2010. Os resultados desta pesquisa apontam
para a convivência de distintos processos migratórios, alicerçados nos ciclos de expansão da
economia agroexportadora entre os séculos 19, 20 e 21, na composição populacional das cidades
do agronegócio, assim como, na articulação entre interesses públicos e privados na configuração
dos espaços intra-urbanos. Pretendemos, portanto, explorar as particularidades e as aproximações
dos municípios consolidados como lócus urbano privilegiados da atuação de grandes holdings
agrícolas internacionais tais como a BR Foods, a Citrosuco Paulista e a Biosev S/A.

Palavras-Chave: Cidades do Agronegócio. Espaços urbanos não-metropolitanos. Migração Interna.

INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é fomentar novas reflexões acerca das interfaces entre os
processos migratórios e o surgimento de espaços urbanos privilegiados (SASSEN, 1998)
associados à consolidação do modelo de desenvolvimento econômico agroindustrial
brasileiro, particularmente a partir dos anos finais da década de 1990.

848
Aluna de Doutorado Programa de Pós-Graduação em Demografia, Mestra em Demografia e Cientista
Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), integrante do Observatório das Migrações em
São Paulo (FAPESP/CNPq-NEPO/IFCH/UNICAMP) e parceira-externa do Núcleo de Estudos e Pesquisas
sobre Sociedade, Poder, Organização e Mercado (NESPOM-FCLAR/UNESP). Financiamento: CNPq. E-
mail: giovana.ggp@gmail.com
849
Assistente de Pesquisa no Projeto “A Política Nacional de Desenvolvimento Regional (PNDR) e as
Capacidades Governativas dos Entes do sistema nacional de governança” do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA). Mestra em Demografia e Cientista1671
Social pela Universidade Estadual de Campinas. E-
mail: kee.cmc@gmail.com
Ressalta-se sobre a migração que o século 21 se caracteriza pela mudança de
paradigma no campo de estudos migratórios, como apontam os estudos de Brito (2011),
Baeninger (2012), De Hass (2010) e Canales (2015). Segundo os autores, esse quadro se
identifica pela intensificação dos fluxos de curta distância, pelo aumento da circulação de
pessoas e convivência dos processos de imigração e emigração, pelo fortalecimento da
tendência de flexibilização e rotatividade da mão de obra, confeccionando características
do capitalismo moderno, baseado no advento da acumulação flexível (HARVEY, 2003).
Simultaneamente, cabe apontar sobre o advento dos espaços privilegiados
relacionados ao agronegócio, que as especificidades e desdobramentos da atuação deste
em pequenos e médios municípios paulistas e mato-grossenses foram também delineados
por ciclos econômicos, centrais na constituição da divisão territorial do trabalho no país
(SANTOS; SILVEIRA, 2005), ao que se destacam a expansão cafeeira, o processo de
modernização agrícola, e o avanço da fronteira agrícola nos séculos 19 e 20.
Assim, o quadro teórico desta pesquisa se apresenta através do diálogo de três
conceitos-norteadores que permitiram nossa compreensão dos espaços migratórios
(TARRIUS, 1994) constituídos nas cidades de Matão (SP)850, Sertãozinho (SP)851 e Lucas
do Rio Verde (MT)852.
Em primeiro lugar, destacamos que estes municípios e suas dinâmicas
socioeconômicas podem ser compreendidos através do conceito de cidade do agronegócio
(ELIAS; PEQUENO, 2006; 2007; ELIAS, 2013). Esta concepção se apresenta como
derivação do conceito miltoniano de cidade do campo, podendo ser entendido através da
inserção de pequenas e médias cidades na divisão internacional do trabalho graças à
instalação de importantes holdings agroindustriais em seu quadro municipal.
Deste modo, o crescimento econômico e o populacional, bem como as tendências
de espraiamento urbano das cidades analisadas, ocorreram entre as décadas de 1960 e

850
Pesquisa de campo realizada no âmbito do Projeto Temático “Observatório das Migrações em São Paulo”,
financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre os anos de 2010 e 2013, contando
com a presença das pesquisadoras Giovana G. Pereira e Lidiane Maria Maciel, sob a supervisão e
coordenação da Profa. Dra. Rosana Baeninger (IFCH-Unicamp).
851
Pesquisa de campo realizada no âmbito do Projeto Temático “Observatório das Migrações em São Paulo”,
sendo financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 2015,
contando com a presença da pesquisadora Giovana G. Pereira e dos pesquisadores Leonardo Reis e Osmar
G. Pereira, sob a supervisão e coordenação da Profa. Dra. Rosana Baeninger (IFCH-Unicamp).
852
Pesquisa de campo realizada no âmbito do Projeto
1672“Urbanização e processo de ocupação espacial do
cerrado: "Follow up" do caso de Lucas do Rio Verde (MT)”, financiada pelo Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 2015, contando com a presença das pesquisadoras
Carla Craice, Kelly de Camargo, Giovana G. Pereira e Sofia Furtado, sob a supervisão e coordenação do
Prof. Dr. Roberto do Carmo (IFCH-Unicamp).
1990 no contexto paulista, e nos anos 2000 no caso mato-grossense, representando
importantes momentos de expansão e desenvolvimento do agronegócio citrícola,
sucroenergético e sojeiro.
Já o segundo conceito diz respeito às modalidades migratórias (BAENINGER,
2012) associadas à conjuntura migratória característica do país no século 21. De acordo
com Baeninger (2011, 2012 e 2017), as migrações internas e internacionais ao serem
inseridas na lógica global tendem a se intensificar acompanhando o dinamismo da
mobilidade do capital, assim, ocorre uma “(...) redefinição da relação entre migração e
desenvolvimento” (BAENINGER, 2017, p. 13).
Como aponta Baeninger (2012), no século 19 e 20 concebíamos, dentro do campo
de estudos de mobilidade populacional, os deslocamentos associados às etapas do
desenvolvimento econômico nacional. Portanto, as migrações eram entendidas, no século
19, através de suas associações aos processos de expansão da economia cafeeira e de
emprego da mão de obra de imigrantes europeia (BASSANEZI, 1995; TRUZZI, 2000).
No século 20, as migrações eram traduzidas pelo tipo rural-urbano e pelo tipo urbano-
urbano, sendo vinculados aos processos de modernização agrícola (MÜLLER, 1985), de
urbanização (FARIA, 1991), de desconcentração industrial (CANO, 1988 e 1998) e de
substituição de importações (CANO, 1988; CANO, 2011). Já no século 21, os movimentos
migratórios internos e internacionais, de acordo com Baeninger (2012 e 2017) e Canales
(2015), se redesenham através de tendências conjunturais que mesclam as transformações
aos contextos gestados em níveis locais e globais.
Cabe-nos, então, entendermos que embora as migrações de piauienses,
maranhenses, paraibanos, pernambucanos, baianos e mineiros componham fluxos
migratórios históricos associados a ocupações rurais e urbanas safristas (MELLO, 1976;
OLIVEIRA, 1981; SILVA, 1999; MENEZES, 2010), suas trajetórias laborais e migratórias
(SANCHEZ, 2012) se reorganizam tanto temporalmente quanto espacialmente, em
sincronia com as mudanças e imperativos do capital agrícola internacional.
A convivência dos trabalhadores safristas - cujas trajetórias são delineadas ora pela
migração temporária (MELLO, 1976), ora pela “permanentemente” temporária (SILVA,
2008), ora pela permanente (MACIEL, 2016) - com as elites do agronegócio (ELIAS, 2003;
HEREDIA; PALMEIRA; LEITE, 2010) - que estão relacionadas aos processos
migratórios consolidados de sulistas, descendentes de imigrantes alemães e italianos em
Lucas do Rio Verde (MT), e dos descendentes de imigrantes italianos, portugueses e

1673
espanhóis em Matão (SP) e Sertãozinho (SP) - se expressa através do terceiro conceito-
chave desta pesquisa.
O conceito de espaço intra-urbano (VILLAÇA, 2012) traz-nos a dimensão espacial
das relações sociais presentes na sociedade do agronegócio (HEREDIA; PALMEIRA;
LEITE, 2010). Segundo Villaça (2012, p.15), “(...) há certos processos sociais nos quais
espaço e sociedade estão de tal forma imbricados que é impossível entender as relações
sociais sem uma visão espacial”. Deste modo, o objetivo é explorar os contextos de
formação e ocupação das periferias migrantes (PEREIRA; BAENINGER, 2016) destes
municípios, bem como enfatizar as articulações entre interesses público-privados na
constituição de bairros populares periféricos.
O artigo se dividirá, assim, em duas partes, a primeira explora a consolidação dos
municípios analisados como cidades do agronegócio (ELIAS; PEQUENO, 2006; 2007;
ELIAS, 2013). A segunda analisa a convivência das distintas modalidades migratórias
(BAENINGER, 2012) em seus espaços intra-urbanos (VILLAÇA, 2012).

ENTRE O CAMPO E A CIDADE: O SURGIMENTO DAS CIDADES DO


AGRONEGÓCIO

De acordo com Elias (2013 p. 202), “(....) o agronegócio globalizado se realiza


totalmente a partir da dialética entre a ordem global e a ordem local (...)”. Deste modo,
entendemos o agronegócio através da perspectiva de Gras e Hernández (2013), como
modelo de produção que preza pela priorização das demandas de um consumidor global,
pela intensificação do papel do capital nos processos de produção agrícola, pela
padronização das tecnologias utilizadas, e pela captação de terras para a produção em
grande escala. Kay (1997) aponta que as décadas de 1980 e 1990 simbolizaram a mudança
de produção do padrão agrícola latino-americano, associada às mudanças da área
financeira, organizacional e tecnológica requeridas pela exportação de produtos primários.
Mazzali (2000), ao estudar o processo de reorganização agroindustrial do complexo
citrícola e sojeiro brasileiros, destaca que nos anos finais dos anos de 1990 ocorreu não
uma “ruptura do modelo” de Complexo Agroindustrial (CAI), mas sim um
redirecionamento dos processos de integração e exclusão dos agentes produtivos. Desta
forma, como frisa o autor, mas também a partir dos estudos de Cano (2011), Elias (2013),
Gras e Hernandes (2013), Riella, Túbio e Lombardo (2013), observou-se um processo de
globalização conjugado às especializações produtivas.

1674
Neste contexto, as cidades de Matão (SP), Sertãozinho (SP) e Lucas do Rio Verde
(MT) se apresentam como verdadeiros laboratórios de estudo dos desdobramentos da
lógica global em níveis locais e regionais. Os municípios paulistas e suas redes urbanas
foram amplamente beneficiados pelos processos de expansão da economia cafeeira
(PACHECO, 1988) e pela modernização da agricultura (MÜLLER, 1985; MARTINE,
1991; GRAZIANO DA SILVA, 1993; CANO, 1988), assim como pela abertura
econômica brasileira (TAVARES, 1993; SILVA, 2003). Enquanto que no caso do
município mato-grossense, temos um amplo beneficiamento através da fronteira agrícola
(MARTINE, 1992), e pela expansão do agronegócio do complexo carne/grãos. Esses
condicionantes históricos, sociais e econômicos influem diretamente na dinâmica
populacional dos locais analisados.
Verificamos pelas Tabelas 1 e 2 que Matão e Sertãozinho apresentaram
crescimento populacional expressivo, entre os anos de 1970-80 e 1980-91, seguindo a
tendência do Estado de São Paulo e do Brasil853. Possuindo, respectivamente, taxas de
crescimento populacional de 5,68 a.a. e 4,76% a.a. em Matão, e de 5,19% a.a. e 3,93% a.a.
em Sertãozinho. No caso de Matão, o crescimento populacional associou-se à
implementação e início das atividades da Citrosuco Paulista em 1964 (ELIAS, 2003;
PEREIRA, 2015), cujo principal fundador foi Carl Fischer, um imigrante alemão, em
conjunto da Pasco Packing Company – produtora de sucos norte-americana – e da Eckes
– importador estabelecido na Alemanha. A grande guinada da empresa ocorreu com a
aquisição das primeiras fazendas e packinghouses nas cidades paulistas de Limeira e
Bebedouro e, posteriormente, em 2011, com a fusão854 com a Citrovita (Grupo
Votorantim), tornando a empresa líder mundial no setor de produção e exportação de suco
concentrado de laranja.
Sertãozinho, por sua vez, de acordo com Santos (2013), beneficiou-se do
crescimento do setor sucroalcooleiro através da Política do Proálcool, vigente entre os anos
de 1970 e 1990, que colaborou para o crescimento da Usina Santa Elisa, administradas por
uma família tradicional da cidade, a Biagi. Assim, a usina se tornou um dos maiores grupos

853
É fundamental, contudo, que se considere que neste mesmo período o país passava pelo processo de
urbanização e pela Transição Demográfica, ou seja, pelos declínios das taxas de mortalidade e fecundidade,
o que corrobora para o crescimento populacional. Ainda assim, as altas taxas de crescimento apresentadas
pelos municípios paulistas correlacionam-se, particularmente, a processos tocantes à urbanização e a
modernização agrícola, bem como, a reorganização das relações entre campo e cidade.
854
De acordo com nossos levantamentos em campo, a fusão entre as empresas tratou-se, em realidade, de um
casamento entre os herdeiros das indústrias matonenses
1675 processadoras de suco concentrado de laranja.
Atualmente, a família Fischer permanece como acionistas majoritários.
financeiros-industriais do Estado de São Paulo855. O município passou, então, a ser
conhecido nacionalmente como capital do açúcar e álcool. Santos (2013) também aponta
que esse contexto se tornou possível graças à reorganização dos espaços urbanos e rurais
regionais, ao que se destacam: a mudança da estrutura judiciária beneficiando a
concentração de terra, a absorção e consequente subjugamento da pequena e média
burguesia agrária aos interesses do capital agroindustrial comandado pelos usineiros, a
imposição da usina como categoria político-econômica no campo e na cidade e, por fim,
a criação de um quadro industrial de sustentação do agronegócio.
Tais configurações também foram observadas em Matão (ELIAS, 2003; PEREIRA,
2015), com o destaque da ampla presença de descentes de imigrantes na construção do
quadro industrial municipal.
Já nos anos de 1991-00 e 2000-10, as cidades paulistas apresentaram uma tendência
de declínio nas taxas de crescimento, passando da ordem de 1,35% a.a. para 0,62% em
Matão, e de 2,06% para 1,52% em Sertãozinho. Os últimos sete anos, conquanto,
apresentaram uma pequena recuperação em suas taxas de crescimento populacional. A
diminuição da taxa de crescimento populacional, porém, não aponta para inexistência de
migrações para estas cidades. Mas sim, como afirma Baeninger (2012, p.79), evidenciam
“(...) diversificação das modalidades migratórias e dos deslocamentos de população em
suas espacialidades”. Deste modo, como aponta Harvey (2003), Baeninger (2012) e
Canales (2015), percebe-se que estas localidades ao se inserirem cada vez mais na lógica
global de produção de commodities apresentam maior flexibilidade, fluidez e rotatividade
das mãos de obras associadas aos processos migratórios.
Por sua vez, o município Lucas do Rio Verde (MT), fundado em 1982, no contexto
de implantação de Projetos de Assentamento Conjunto (PACs) na área de influência da
BR163, apresenta comportamentos similares em termos de crescimento populacional.
Com o intenso crescimento da produção de soja, milho e algodão na década de 1990 no
município, os produtores locais associados na cooperativa Cooperlucas e inseridos também
na administração pública municipal, avaliaram que Lucas do Rio Verde podia potencializar
sua produção com a implantação de empresas agroindustriais (CAMARGO, 2014). Assim,
na década de 2000, indústrias de beneficiamentos de grãos e produção de defensivos

855
A BIOSEV nasceu em 2009 através da fusão entre a usina Santelisa Vale e a Louis Dreyffus Commodities
(LDC), tornando-se uma das maiores produtoras de cana de açúcar no país. Maiores informações:
http://www.unica.com.br/empresa/34804993/biosev-por-centoE2-por-cento80-por-cento93-santa-elisa-
(Acesso em Setembro de 2017)
1676
agrícolas como a Fiagrill, Cargil, Bunge, Amaggi e ADM se instalaram na cidade.
Simultaneamente, o Complexo Agroindustrial BRFoods, uma das maiores companhias de
alimento do mundo, abriu uma filial em Lucas do Rio Verde, impulsionando a pecuária e
a consequente simbiose entre os complexos de soja e carne no município.
Pelas Tabelas 1 e 2, notamos que Lucas do Rio Verde apresentou um intenso
aumento populacional em números absolutos entre 2000 e 2010 (26.240 novos residentes),
por mais que o município demonstre maior incremento populacional em termos
percentuais entre 1991 e 2000, 12,5% a.a, o que representou um acréscimo de 12.623
moradores. Pode-se inferir que essa situação decorreu do fato de que na década de 1990 a
economia municipal se baseava na produção de grãos, que é pouco intensiva em mão de
obra nos espaços rurais (CAMARGO, 2014). A inovação materializada na forma de técnica
na produção de grãos é responsável por alterações nas características da força de trabalho,
pois a revolução tecnológica, de acordo com Bernardes (2015), se baseou na criação de
riqueza, mas não na geração de postos de trabalho. Já na década de 2000, a economia
municipal esteve alicerçada na agroindústria da cadeia carne/grãos, cuja demanda por mão
de obra migrante destacou-se frente aos momentos econômicos anteriores (CAMARGO,
2014).
Em relação às migrações associadas às agroindústrias, Pereira e Demétrio (2014, p.
19) apontam que os municípios paulistas analisados apresentaram, no século 20 e 21,
intensa circulação populacional na dinâmica intra-regional e intra-estadual, ao mesmo
tempo que continuaram recebendo fluxos migratórios cada vez mais rotativos do Nordeste
brasileiro. De acordo com as autoras, “a importância desse fluxo guarda relações com a
importância dos trabalhadores nordestinos principalmente no corte da cana e, por
conseguinte, com a forma com que essa commodity entra em cada um dos espaços
selecionados” (PEREIRA; DEMÉTRIO, 2014, p. 19).

TABELA 1: POPULAÇÃO RESIDENTE EM MATÃO, SERTÃOZINHO, LUCAS


DO RIO VERDE, NO ESTADO DE SÃO PAULO E DO MATO GROSSO, E NO
BRASIL, EM 1970, 1980, 1991, 2000, 2010 E 2017

Unidade Geográfica 1970 1980 1991 2000 2010 2017


Matão/SP 21.953 38.133 63.613 71.753 76.786 82.307
Sertãozinho/SP 31.066 51.543 78.776 94.664 110.074 122.643
Lucas do Rio Verde/SP - - 6.693 19.316 45.556 61.515
Estado do Mato Grosso 1.597.009 1.138.918 2.027.231 2.505.245 3.035.122 3.344.544
Estado de São Paulo 17.770.975 25.042.074 31.588.925 37.035.456 41.262.199 45.094.866
Brasil 93.134.846 119.011.052 146.825.475 169.872.856 190.755.799 207.660.929

1677
Fonte: Censos Demográficos de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010 e Projeção de 2017
disponibilizada pela Diretoria de Pesquisas - DPE - Coordenação de População e Indicadores
Sociais – COPIS (FIBGE).
Nota: O município de Lucas do Rio Verde/MT foi fundado em 1982, o que justifica a ausência de
dados.

TABELA 2: TAXA DE CRESCIMENTO GEOMÉTRICO856 DE MATÃO,


SERTÃOZINHO, LUCAS DO RIO VERDE, NO ESTADO DE SÃO PAULO E DO
MATO GROSSO E NO BRASIL, 1970-80, 1980-91, 2000-10 E 2010-17

Unidade Geográfica 1970-80 1980-91 1991-00 2000-10 2010-17


Matão/SP 5,68 4,76 1,35 0,68 1,00
Sertãozinho/SP 5,19 3,93 2,06 1,52 1,56
Lucas do Rio
Verde/SP - - 12,50 8,96 4,38
Estado do Mato
Grosso -3,32 5,38 2,38 1,94 1,40
Estado de São Paulo 3,49 2,13 1,78 1,09 1,28
Brasil 2,48 1,93 1,63 1,17 1,22
Fonte: Censos Demográficos de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010 e Projeção de 2017
disponibilizada pela Diretoria de Pesquisas - DPE - Coordenação de População e Indicadores
Sociais – COPIS (FIBGE).
Nota: O município de Lucas do Rio Verde/MT foi fundado em 1982, o que justifica a ausência de
dados.

Cabe ainda destacarmos a mudança do perfil migratório paulista como indicam os


trabalhos de Silva (2008 e 2012), de Pereira (2015) e Maciel (2016). Se nos anos de 1990
esses municípios e suas redes urbanas eram receptores de trabalhadores rurais oriundos
dos Estados de Minas Gerais, de Pernambuco, da Paraíba, do Paraná e da Bahia, nos anos
2000 e 2010 eles apresentam majoritariamente fluxos provenientes dos Estados do Piauí e
do Maranhão.
Lucas do Rio Verde não escapa dessa lógica, pois as transformações produtivas
evidenciadas pela agroindustrialização durante a década de 2000, implicaram em mudanças
na forma de ocupação demográfica do município (BERNARDES, 2015). Altera-se o perfil
da mão de obra que se dirige para essas regiões, que não abrange apenas os trabalhadores
vindos do campo, mas caracteriza-se, em especial, por trabalhadores oriundos de espaços
urbanos metropolitanos e não-metropolitanos. Além disso, como nas cidades paulistas, as
migrações de trabalhadores do Norte e Nordeste do país apresentaram um aumento de
representatividade. Ainda assim, todavia, a migração sulista continua sendo uma estratégia
presente, principalmente em decorrência da manutenção de redes migratórias e em razão

856
A taxa de crescimento geométrico populacional se refere ao percentual médio anual da população residente
em um determinado período e espaço geográfico. Este indicador nos permite a apreensão do ritmo de
crescimento populacional, sendo condicionada aos comportamentos da mortalidade, da fecundidade e da
migração.
1678
das matrizes das agroindústrias instaladas em Lucas do Rio Verde serem, em sua maioria,
sulistas e incentivarem a alocação de seus empregados para a planta do município
(CAMARGO, 2017).
Ademais, a articulação e desdobramentos das relações entre os espaços urbanos e
rurais municipais podem ser representadas, nesta pesquisa, através do acompanhamento
da evolução temporal do grau de urbanização dos municípios (Tabela 3). É perceptível que
a partir de 1991, as cidades paulistas apresentam graus de urbanização superiores à média
nacional e a média estadual. Todavia, o momento de maior crescimento do grau de
urbanização das cidades ocorreu no período de 1970 a 1991, reflexo claro das políticas de
incentivo a modernização agropecuária.
Não obstante, Lucas do Rio Verde também acompanhou o processo de expansão
urbana, de forma que em 2000, o mesmo possuía grau de urbanização maior do que as
médias estadual e nacional. De tal modo, os três municípios apresentaram graus de
urbanização superiores a 90% em 2010. Os municípios paulistas, há mais tempo inseridos
nos circuitos globalizados do agronegócio são mais urbanizados: Sertãozinho apresentava,
em 2010, grau de urbanização de 98,8%, e Matão de 98,2%. Lucas do Rio Verde, por sua
vez, possuía um grau de urbanização de 93,2% em 2010.

TABELA 3: GRAU DE URBANIZAÇÃO857 DE MATÃO, SERTÃOZINHO, LUCAS


DO RIO VERDE, NO ESTADO DE SÃO PAULO E DO MATO GROSSO E NO
BRASIL, 1970, 1980, 1991, 2000 E 2010

Unidade Geográfica 1970 1980 1991 2000 2010


Matão/SP 65,07 87,67 95,15 96,40 98,17
Sertãozinho/SP 73,44 88,15 93,39 95,63 98,82
Lucas do Rio Verde/SP - - 64,72 83,58 93,19
Estado do Mato Grosso 42,82 57,52 73,26 79,36 81,81
Estado de São Paulo 80,34 88,64 92,80 93,39 95,94
Brasil 55,94 67,59 75,59 81,19 84,37
Fonte: Censos Demográficos de 1960, 1970, 1980, 1991, 2000 e 2010.

Côrrea (2003) e Elias (2003) destacam a centralidade das elites agroindustriais


destes municípios na construção das especializações produtivas para manutenção de seus
status quo, assim, a urbanização destas localizadas se constituiu justamente em um

857
O grau de urbanização se apresenta através do percentual de população urbana, segundo os limites
definidos pela divisão política-administrava municipal, em determinado espaço geográfico. Dentro do campo
da sociologia rural e da demografia existem importantes estudos que discutem as limitações e potenciais usos
deste indicador, ao que citamos Caiado (1993), Veiga (1999), Kageyama (2008) e Demétrio (2017), dentre
outros. Conquanto, dados os objetivos deste estudo, o indicador permitiu o refinamento de nossos
argumentos como demonstrado em Pereira (2015) 1679 e Camargo (2017).
momento de subordinação do campo à cidade, ou de industrialização da agricultura
(GRAZIANO DA SILVA, 1993).
Matão e Sertãozinho conservam, nesse sentido, heranças das relações sociais da
sociedade cafeeira, da sociedade dos complexos agroindustriais e, atualmente, possuem
traços de uma sociedade do agronegócio. Suas elites, responsáveis pela criação e
consolidação do quadro municipal, são descendentes de imigrantes europeus cuja
migração para o interior paulista, no século 19, articulou-se a expansão da economia
cafeeira. O uso e circulação do capital social e financeiro (BOURDIEU, 1979),
propiciaram à essas famílias o protagonismo na composição de um quadro industrial local
que já nasce internacionalizado, particularmente no ramo de máquinas e implementos
agrícolas, tornando-se uma verdadeira base de sustentação para as economias locais e
regionais, ainda no século 20.
Lucas do Rio Verde (MT) apresenta distinções marcantes em comparação ao caso
paulista. Diferentemente de Matão e Sertãozinho, a cidade mato-grossense integra-se na
divisão internacional do agronegócio em um momento de expansão da cultura da soja.
Dessa forma, o município constituiu-se de maneira já globalizada. Ressaltamos que as
próprias políticas que incentivavam a ocupação do Cerrado associavam a cor dourada das
plantações de soja ao mineral ouro (ZART, 1998). Segundo esse ideário, o investimento
em soja significava uma riqueza rápida e fácil nessa região. Uma forma chamativa de o
governo militar oriundo do Golpe de 1964, impelir a modernização do campo brasileiro e
manter o processo de ocupação das regiões menos produtivas (ZART, 1998). Segundo
Bernardes (2015), por esse motivo, os agricultores do Sul do país já partiram para o Centro-
Oeste tendo como meta a produção de grãos.
Nesse sentido, o controle político econômico do município pertence aos
produtores agrícolas que constituem a elite dominante. O munícipio foi formado
inicialmente pelas famílias de descendentes de imigrantes europeus anteriormente fixados
nos núcleos coloniais na região sul do país e pelas famílias vindas de São Paulo e ligadas à
Cooperativa Agroindustrial Holambra, que criaram a cooperativa de Lucas, a
COOPERLUCAS. Sendo que esse mesmo grupo político é o que permanece à frente da
administração municipal desde a segunda metade da década de 1990.
No próximo item, buscaremos explorar as intersecções entre as relações sociais e
espaciais estabelecidas entre as elites agrárias locais e a formação das periferias migrantes
do agronegócio citrícola, sucroalcooleiro e da cadeia carne/grãos.

1680
MERCADO DE TRABALHO E MIGRAÇÕES: AS PERIFERIAS MIGRANTES EM
EVIDÊNCIA

As interfaces entre a construção social do mercado de trabalho e os processos


migratórios nacionais e internacionais associados ao agronegócio citrícola, sucroalcooleiro,
sojeiro e da avicultura, permeiam a constituição das periferias migrantes (PEREIRA;
BAENINGER, 2016) das cidades do agronegócio analisadas.
A construção social do mercado de trabalho rural-urbano858 no contexto latino-
americano e brasileiro é permeada, como apontam os estudos de Mello (1976), Oliveira
(1981) Elias (2003), Gras e Hernandes (2013), Riella, Tubío e Lombardo (2013), Silva,
Bueno e Melo (2015), Flores e Saldaña (2015), Maciel (2016), pela divisão entre o trabalho
físico e o trabalho intelectual, cuja distinção é constituída através de características
psicossociais, sociodemográficas e migratórias859.
Neste trabalho, focaremos nas ocupações desempenhadas pelos trabalhadores físicos do
agronegócio, ou seja, aqueles que atuam nas pontas do processo produtivo das
commodities agrícolas e são oriundos, em sua maioria, dos Estados do Norte e Nordeste
brasileiro como apontaram nossas pesquisas de campo. Para tanto, trabalharemos com a
base de dados administrativos da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS)
disponibilizada e gerida pelo Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A RAIS tem
como unidade de enumeração o vínculo empregatício ou o estabelecimento declarante.
Em nosso caso, trabalharemos com a unidade de análise dos vínculos empregatícios ativos
em 31 de dezembro do ano de referência, com o objetivo de evitarmos a superenumeração.
As categorias ocupacionais analisadas foram escolhidas em sincronia aos nossos
achados em pesquisa de campo e nas entrevistas semi-estruturadas realizadas com o poder
público e com os trabalhadores migrantes. Deste modo, para Matão (SP) e Sertãozinho
(SP) avaliaremos a evolução temporal do volume de vínculos e a razão de sexo,
respectivamente, das ocupações relacionadas aos trabalhadores agrícolas na fruticultura e
aos trabalhadores rurais na cultura de gramíneas, as quais funcionaram como proxy das
atividades desempenhadas pelos colhedores de laranja e do corte de cana de açúcar. Já no

858
Compreendemos nesta categoria operacional todas as ocupações laborais relacionadas à produção de
commodities, abarcando deste os trabalhadores envolvidos na colheita manual e mecanizada e nas indústrias
agropecuárias.
859
Sob esta perspectiva entendemos que não existem trabalhadores com baixa qualificação. As ocupações
laborais exercidas, seja no caso do trabalho rural manual ou urbano-industrial, demandam especializações
físicas, psíquicas e sociais. 1681
caso de Lucas do Rio Verde (MT), analisaremos a categoria de Magarefes e Afins 860 nos
frigoríficos.
Em relação aos processos migratórios associados aos trabalhos rurais-urbanos nas
cidades paulistas, temos que destacar a existência de dois momentos históricos chaves: o
primeiro se relaciona à expansão e consolidação do quadro industrial municipal, nos anos
de 1990, enquanto o segundo refere-se à intensificação do ritmo de trabalho nos canaviais
e pomares, nas últimas duas décadas (SILVA, 2008).
Neste primeiro momento, nossas pesquisas de campo apontaram que os fluxos
migratórios compostos por piauienses, paraibanos, mineiros, pernambucanos e baianos,
direcionavam-se às ocupações de “chão de fábrica”, particularmente em pequenas e médias
indústrias metalúrgicas e mecânicas (SANTOS, 2013; PEREIRA, 2015). De acordo com
Santos (2013), este período foi crucial na constituição da força de trabalho municipal e
regional. Já no segundo caso, com o protagonismo dos fluxos do Maranhão, do Piauí e de
Alagoas (SILVA, 2008; PEREIRA, 2015; MACIEL, 2016), notamos uma predominância
de direcionamento majoritário destes trabalhadores para ocupações relacionadas às etapas
da colheita da laranja e cana de açúcar. Contudo, em ambos os períodos se manteve o
caráter predominantemente safrista861 da alocação destes trabalhadores no mercado de
trabalho do agronegócio paulista.
Como nos aponta a Tabela 4, no caso paulista, as ocupações apresentam variações
anuais, o que se refere à própria demanda por produção ditada no ano-safra pelo mercado
externo. O município de Sertãozinho, seguindo o comportamento estadual, apresentou
declínio do volume dos vínculos entre 2010 e 2012, passando de 3.877 vínculos ativos em
2010 para 1.643 vínculos em 2012, a partir de 2013, conquanto, os vínculos permaneceram
na casa dos 2 mil por ano. Já o Estado de São Paulo manteve a tendência de declínio
constante, chegando aos 35.048 vínculos ativos em 2015. O decréscimo destes vínculos
pode ser compreendido pelo processo de mecanização do corte de cana de açúcar,
intensificado após o Protocolo Agroambiental do setor sucroenergético, assinado em 2007.
Essa mudança ocasionou modificações na dinâmica de ocupações no campo paulista,
como nos mostram os trabalhos de Silva (2008) e Santos (2013) e Reis (2013), seja nos
moldes administrativos e de contratação.

860
Atividades relacionadas ao frigorífico, como abater animais, e realizar o corte da carne.
861
Sobre as idas e vindas e o uso estratégico do mercado de trabalho formal ver os trabalhos de Pereira (2015)
e Maciel (2016).
1682
Matão (SP), por sua vez, apresentou uma tendência de crescimento entre 2010 e
2012, possuindo 4.336 vínculos ativos de trabalhadores agrícolas na fruticultura em 2010,
e 8.829 vínculos em 2012. Em 2013 e 2014, o município apresentou declínio do número
de vínculos, passando de 6.602 vínculos em 2013, para 5.748 vínculos em 2014, e
apresentando uma retomada do volume em 2015, com 8.963 vínculos ativos. A média
estadual, conquanto, apresentou maiores oscilações.

TABELA 4: NÚMERO DE VÍNCULOS ATIVOS NAS ATIVIDADES


SELECIONADAS, EM MATÃO, SERTÃOZINHO, LUCAS DO RIO VERDE, NO
ESTADO DE SÃO PAULO E DO MATO GROSSO E NO BRASIL, ENTRE 2010 E
2015

Unidade Geográfica 2010 2011 2012 2013 2014 2015


Magarefes e Afins
Lucas do Rio Verde 2.880 3.226 171 3.833 3.709 3.594
Estado do Mato
16.113 17.795 13.908 22.025 20.939 17.842
Grosso
Trabalhadores na cultura de Gramíneas
Sertãozinho 3.877 1.995 1.643 2.385 2.400 2.133
Estado de São Paulo 68.236 59.954 53.294 46.471 37.661 35.048
Trabalhadores agrícolas na fruticultura
Matão 4.366 5.905 8.829 6.602 5.748 8.963
Estado de São Paulo 25.587 54.544 50.205 32.523 35.734 44.147
Fonte: Ministério do Trabalho, Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), entre 2010 e
2015.

Em Lucas do Rio Verde, nota-se crescimento do número de vínculos ativos nos


abatedouros entre 2010 e 2015, passando de 2.880 vínculos para 3.594, demonstrando
oscilações nos resultados. Mas é perceptível que o ano de 2012 se trata de uma exceção,
pois há abrupto decréscimo dos vínculos, numa aparentemente incoerência nos dados
disponibilizados -, já que exclusivamente este ano destoa do quadro comparativo. Acerca
do estado do Mato Grosso, aponta-se que o ano de 2012 também compreendeu o
momento em que os vínculos na atividade selecionada evidenciaram menor resultado.
Podemos atribuir esse fato à informação incongruente de Lucas do Rio Verde,
evidenciando que a atividade do município possui claro impacto nos resultados estaduais.
A Tabela 5 nos traz a informação da razão de sexo por ocupação selecionada em
cada cidade do agronegócio e sua unidade federativa correspondente. Notamos que os
vínculos dos trabalhadores na cultura de gramíneas, no município de Sertãozinho e no
Estado de São Paulo, apresentam taxas que variam entre aproximadamente 4 vínculos
masculinos para cada um feminino até mais de 7 vínculos masculinos para cada um vínculo
feminino. A presença majoritária de homens no desenvolvimento das atividades de colheita

1683
da cana de açúcar se correlaciona a construção social das características psicossociais e
demográficas vistas como “ideais” para trabalhador do corte de cana, como já nos
apontavam os trabalhos de Silva (2008c) e Alves (2006), mas também pela presença de
alojamentos majoritariamente masculinos geridos pelas usinas sucroalcooleiras.
Já no caso dos trabalhadores agrícolas da fruticultura, observamos uma maior
participação feminina, a razão de sexo varia entre 1,53 vínculos masculinos para cada
vínculo feminino, em Matão no ano de 2010, até 2,50 em 2015. O Estado de São Paulo já
apresenta razões de sexo que variavam de 1,53 em 2011 até 2,20 em 2015. O aumento
observado em ambos os casos pode ser justificado pela implementação de alojamentos
masculinos na cidade de Matão e em outras cidades em que a Citrosuco Paulista possuí
unidades processadoras de laranja862.
Ademais, dentre as cidades analisadas, Lucas do Rio Verde é a que possui as Razões
de sexo na atividade selecionada menos discrepante, ainda que apresente maior proporção
de homens do que de mulheres. Inclusive, a diferença entre a presença de homens e
mulheres na atividade de Magarefes e Afins é menor no município do que o apresentado
pelo estado do Mato Grosso. Nesse sentido, aponta-se que há um crescimento entre 2010
e 2015 da utilização de mão de obra feminina pela indústria alimentícia em Lucas. É
possível trazer a percepção de Becker (2014), que aponta que a mão de obra feminina se
tornou adaptável à indústria alimentícia, sendo que essa se mostra mais habilidosa do que
a masculina no manuseio de objetos cortantes.

TABELA 5: RAZÃO DE SEXO863 DOS VÍNCULOS ATIVOS NAS ATIVIDADES


SELECIONADAS, EM MATÃO, SERTÃOZINHO, LUCAS DO RIO VERDE, NO
ESTADO DE SÃO PAULO E DO MATO GROSSO E NO BRASIL, ENTRE 2010 E
2015

Unidade Geográfica 2010 2011 2012 2013 2014 2015


Magarefes e Afins
Lucas do Rio Verde 1,43 1,39 4,03 1,28 1,10 1,13
Estado do Mato
2,08 1,96 2,03 1,62 1,54 1,70
Grosso
Trabalhadores na cultura de Gramíneas
Sertãozinho 7,34 5,93 5,20 3,94 4,39 4,51
Estado de São Paulo 4,40 3,87 4,04 4,01 4,25 4,63
Trabalhadores agrícolas na fruticultura
Matão 1,53 1,48 1,65 1,94 1,96 2,50

862
Sobre a discussão das relações de gênero e as atividades desenvolvidas por trabalhadores rurais, em décadas
recentes, recomendamos as leituras de Flores (2015), Bueno (2016) e Maciel e Pereira (2017).
863
Número de vínculos masculinos para cada um vínculo feminino, em determinado espaço geográfico, no
ano considerado.
1684
Estado de São Paulo 1,91 1,73 1,87 2,02 1,98 2,20
Fonte: Ministério do Trabalho, Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), entre 2010 e
2015.

A distribuição e circulação espacial destes trabalhadores rurais-urbanos nas cidades


de Matão, Sertãozinho e Lucas do Rio Verde condicionam-se as articulações entre
interesses públicos e privados. No caso paulista, o crescimento urbano e consequente
espraiamento das cidades ocorreram com intensidade nas décadas de 1980 e 1990 (ELIAS,
2003). Elias (2003, p.140) destaca que as agroindústrias canavieiras e citrícolas da região
foram “(...) responsáveis por um processo corporativo de organização do espaço, uma vez
que conseguem comandar a organização do espaço agrícola e urbano da região segundo
seus interesses econômicos”. As periferias migrantes formam-se, neste contexto, muitas
vezes como forma única de acesso dos trabalhadores migrantes a cidade.
Assim, em Matão, os bairros Jardim Popular, Jardim do Bosque e Jardim Paraíso
concentram a maior parte das residências temporárias dos trabalhadores rurais alocados
na colheita da laranja, enquanto que em Sertãozinho os cortadores e operadores das
colheitadeiras de cana de açúcar tendem a concentrar suas residências no distrito de Cruz
das Posses, onde se localizam as usinas do município, e no bairro Alvorada. Estes bairros
localizam-se próximos às rodovias intermunicipais e estaduais, ao mesmo tempo em que
possuem similaridades em relação as moradias.
Os contratos de aluguel são estabelecidos através de contratos verbais, e as
cobranças podem ser feitas por cômodos, pessoa ou família. Ainda que não existam
formalmente “cortiços” ou então favelas nestes municípios, nestes bairros encontramos
diversas famílias que dividem cômodos, o quintal e até mesmo casos em que há divisão de
um banheiro para mais de uma família ou grupo de trabalhadores.
O processo de aluguel dessas moradias envolve a articulação das redes migratórias
e familiares. Nas entrevistas em profundidade realizadas no interior do Piauí864, nos anos
de 2012 e 2013, os trabalhadores entrevistados, cujas trajetórias laborais envolviam tanto o
corte de cana de açúcar, quanto à colheita da laranja, contaram-nos suas estratégias de
garantia de moradia no período entressafra, as quais variavam desde o pagamento
adiantado do aluguel, até a manutenção de um dos membros da família no interior paulista.
Ademais, os proprietários destas moradias são, em geral, antigos trabalhadores rurais ou

864
Pesquisa de campo realizada no âmbito do Projeto Temático “Observatório das Migrações em São Paulo”,
financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), entre os anos de 2012 e 2013, contando
com a presença das pesquisadoras Giovana G. Pereira e Lidiane Maria Maciel, sob a supervisão e
coordenação da Profa. Dra. Rosana Baeninger (IFCH-Unicamp).
1685
urbanos das agroindústrias locais, oriundos dos Estados de Minas Gerais, Paraíba, Paraná
e Pernambuco.
Outro aspecto a ser destacado é que morar nestes bairros potencializa a chance de
contratação desses trabalhadores, particularmente porque nestes locais existem as
chamadas rodoviárias “clandestinas”. As rodoviárias clandestinas são costumeiramente
bares que abrigam agências de viagens. Deste modo, estes bares são costumeiramente
tomados como pontos de referência para o agenciamento e contratação destes
trabalhadores pelos empreiteiros.
Conquanto, quando o agenciamento ocorre diretamente nos Estados do Maranhão
e do Piauí, esse é intermediado pelas agroindústrias sucroenergético e citrícola através da
Norma Regulamentadora n.31 (NR31)865 e da Instrução Normativa n.76 (IN 76),
respectivamente, os trabalhadores são realocados para alojamentos cedidos pelas próprias
empresas. Os alojamentos destinados aos cortadores de cana de açúcar são
majoritariamente masculinos e se localizam nas áreas rurais em propriedades próximas às
fazendas de cana de açúcar, em muitos casos, a sociabilidade destes trabalhadores fica
restrita ao ambiente de trabalho e aos finais de semana as cidades próximas da propriedade
(SILVA, 1999). Já os alojamentos da laranja podem ser localizados ora nas fazendas
pertencentes às agroindústrias processadoras de suco de laranja, ora nos espaços intra-
urbanos. Verificou-se ainda, em pesquisa de campo, a existência de alojamentos femininos
e masculinos na cidade de Matão (SP).
Já para o entendimento da configuração das características intra-urbanas
(VILLAÇA, 2012) de Lucas do Rio Verde (MT), expõe-se que essa cidade denota dois
mundos diferentes com áreas de intersecção. No primeiro deles está a parte nobre e mais
antiga da cidade, os bairros Centro, Pioneiro, Rio Verde, e Menino Deus. Nesses bairros
se nota o orgulho de ser “gaúcho” em referência às origens dos primeiros migrantes e
construtores das cidades, que atualmente também são a elite econômica e política
municipal. Na segunda área localizam-se os bairros novos, habitados por migrantes que
têm origens em municípios do Norte e Nordeste do país. Refere-se, especialmente, ao
conjunto habitacional Luiz Carlos Téssele Júnior866, aos loteamentos Venturine, Jaime Seiti
Fujii e Vida Nova867, e áreas de expansão de bairros mais antigos.

865
Vide Silva, Bueno e Melo (2015).
866
Atualmente a empresa aluga uma vaga aos seus funcionários a um custo de R$ 50,00 por trabalhador, ou
por R$ 250,00 por residência quando se trata de uma família.
867
Os loteamentos Venturini, Jaime Seiti Fujii e Vida Nova advém do Programa Federal “Minha Casa, Minha
Vida”. Formam 2.680 casas construídas em programas habitacionais entre 2009 e 2017.
1686
O bairro Luiz Carlos Téssele Júnior advém da parceria público-privado entre o
município, que alienou os lotes urbanizados com toda infraestrutura, e o complexo
agroindustrial BRF, que construiu 1.500 unidades habitacionais, para serem alugadas para
os trabalhadores de baixa renda da empresa. Todavia, as habitações não pertencem aos
trabalhadores868, nem tampouco ao Estado, que investiu recursos públicos para sua
construção. O que por si só já demonstra dependência dos trabalhadores com a empresa,
pois essa pode a qualquer momento não mais disponibilizar esse “benefício” a seus
empregados. Assim, em tese quando o trabalhador é demitido, ele perde o emprego e a
moradia, o que os torna sujeitos às regras impostas pela empresa.
No conjunto habitacional Venturini, Jaime Seiti Fujii e Vida Nova, o governo
federal através do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), em parceria com o
município, construiu 1.279 unidades habitacionais que foram alienadas para famílias com
rendimento de até três salários mínimos. Os bairros contam com infraestrutura, como água
encanada, coleta de lixo, ruas asfaltadas, escola, posto de saúde, e praça com playground
para as crianças.
Um dos maiores problemas observado nos loteamentos de casas populares é o
mesmo do Tessele Jr.: a localização. Estes loteamentos foram realocados na extremidade
da cidade, desconectados da mancha urbanizada. De tal forma, nota-se um vazio urbano
entre o loteamento e o centro, o que pode levar à ampliação da especulação imobiliária.
Além disso, eles se localizam no limite do perímetro urbano, o que tende a induzir à
ocupação de áreas rurais e, inclusive, da área de preservação ambiental localizada próxima
ao Venturine.
Ou seja, a segregação não acontece em Lucas do Rio Verde pela falta de
infraestrutura urbana, pela falta de transporte público, ou ainda pela falta de espaços
públicos de lazer. O problema no município é que as questões se mascaram nessas
condições aparentemente perfeitas. A segregação está no fato dos moradores dos bairros
afastados, os bairros “nordestinos”, só acessarem o centro de Lucas em dia de pagamento,
pois eles não se sentem pertencentes ou representados nesses locais mais tradicionais e
abastados da cidade (CAMARGO, 2017).

868
Aponta-se que o governo municipal realizou o programa Empresa Cidadã, que se destina à produção
pública e venda de lotes urbanizados também no loteamento Luiz Carlos Téssele Jr. mediante a garantia de
pagamento efetivada pelo empregador. Ao todo, foram ofertadas 100 unidades. Segundo dados da Secretaria
Municipal de Assistência Social, os trabalhadores beneficiados possuem rendimento familiar mensal superior
a três salários mínimos.
1687
Nesse sentido, destaca-se que a exclusão social não é passível de quantificação, mas
ela pode ser caracterizada por indicadores como a irregularidade, a pobreza, a baixa
escolaridade, o sexo, a origem e, principalmente, a ausência da cidadania (MARICATO,
2015). E, nesse sentido, para os indivíduos aqui entendidos como participantes das
periferias migrantes, a segregação acontece no nível físico, mas também e especialmente
em nível simbólico. Uma vez que os mesmos são vistos pelos outros moradores e
entendem a si próprios como elemento não constitutivo da cidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: A ABERTURA DE UMA AGENDA PESQUISA

O estudo dos processos sociohistóricos de formação das cidades de Matão (SP),


Sertãozinho (SP) e Lucas do Rio Verde (MT), assim como, do cotidiano destas cidades
denotam a constituição de espaços urbanos privilegiados a partir da introdução ou
expansão das atividades agropecuárias e agroindustriais atreladas à produção globalizada.
No entanto, altos indicadores econômicos mascaram a formação de espaços entendidos
enquanto periferias migrantes, nos quais fluxos migratórios oriundos do Norte e Nordeste
do país tem clara distinção socioeconômica e espacial em relação aos outros fluxos
identificados nos municípios. A construção de novos olhares para esses processos permitirá
a percepção das novas lógicas de interlocução entre os planos locais e globais,
particularmente que dizem respeito às distintas formas de articulação do capital
internacional agrícola.
Cabe-nos ainda questionarmos acerca das permanências e rupturas que o
agronegócio, como modelo de desenvolvimento, ocasiona nas relações sociais brasileiras e
por fim entender as novas dinâmicas migratórias emergentes neste contexto869.

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869
Agradecemos à Osmar G. Pereira e Sofia Caselli Furtado pelas considerações, correções e apontamentos
presentes neste trabalho.

1688
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1692
ENTRE FICAR E SAIR: AS DIMENSÕES DA LUTA PELA TERRA E
DA PERMANÊNCIA NA TERRA NO ASSENTAMENTO HORTO
BUENO DE ANDRADA – ARARAQUARA / SP

Fernando Henrique Ferreira de OLIVEIRA870

Vera Lúcia Silveira Botta FERRANTE871

Resumo: Busca-se no presente trabalho compreender as experiências de luta pela terra e de


permanência na terra na região de Araraquara (SP) a partir de memórias obtidas em entrevistas de
histórias de vida das memórias das famílias pioneiras do assentamento Horto Bueno de Andrada.
O assentamento estadual Horto Bueno de Andrada criado em 1997 pelo Instituto de Terras do
Estado de São Paulo (ITESP) situa-se numa área total de 472,41 hectares, anteriormente,
pertencente à Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo (CODASP), tendo 31
famílias assentadas. A constituição do assentamento é fruto das mobilizações e da luta dos boias-
frias e assalariados rurais pelo acesso à terra e por melhores condições de trabalho no contexto
econômico das décadas de 1980 e 1990. Definimos os conceitos de construção de lutas
(FERRANTE, 1992) e trama de tensões (FERRANTE, 1994) como categorias analíticas capazes
de compreender o acúmulo de situações de enfrentamento dos trabalhadores rurais nas décadas
de 60, 70 e 80 que definiram os boias-frias como sujeitos políticos durante os episódios de Guariba
(1984) e dos movimentos de luta pela terra na região nas décadas de 1980 e 1990. Partindo da
memória como eixo analítico buscamos analisar a realidade social dos homens e mulheres
assentados na região de Araraquara (SP). A análise em questão, voltou-se para os processos de luta
pela terra, constituição dos assentamentos e estratégias de permanência na terra, entendida como
uma continuidade dessa luta. Também, verificamos o papel dos pioneiros dos assentamentos como
guardiões de memórias sobre os conflitos por terra na região. Portanto, buscamos nesse trabalho
reconstituir a luta pela terra na região de Araraquara (SP) a partir da história oral (entrevistas de
histórias de vida) combinado com o uso do diário de campo, com o intuito de iluminar as narrativas
obtidas.

Palavras-chave: Luta pela terra. Permanência na terra. Memória.

INTRODUÇÃO

Este é um estudo sobre as representações da luta pela terra e permanência na terra


na memória de famílias pioneiras assentadas na região de Araraquara. Ao estudar a
memória de velhos na região de São Carlos, Mancuso (1998), compreende a memória
como um produto social construído a partir das relações sociais dadas. Para Bosi (2004), a

870
Geografo, mestrando em Desenvolvimento Territorial e Meio Ambiente - Universidade de Araraquara.
Membro do Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural (NUPEDOR). E-mail:
fer_henrique15@hotmail.com
871
Livre docente em Sociologia, coordenadora do PPG (Mestrado e Doutorado) em Desenvolvimento
Territorial e Meio Ambiente da Universidade de Araraquara. Pesquisadora 1A do CNPq. Coordenadora do
Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural (NUPEDOR).
1693 E-mail: vbotta@techs.com.br
memória é trabalho, no sentido de compreender a dimensão do passado a partir de
estímulos do presente.
A pesquisa em tela propõe-se a compreender as experiências de conflito e luta pela
terra na região de Araraquara (SP) a partir da década de 1980 por meio da memória das
famílias pioneiras assentadas no projeto de assentamento Horto Bueno de Andrada.
Entende-se por famílias pioneiras os homens e as mulheres que participaram do
movimento de luta pela terra até a constituição dos projetos de assentamentos, ou seja, são
os sujeitos que vivenciaram e protagonizaram toda essa experiência e vivem na terra desde
o início da implantação dos assentamentos até os dias atuais.
Este trabalho compreende a importância da memória na compreensão da luta pela
terra na região de Araraquara (SP) em que as famílias assentadas desempenham um papel
importantíssimo de guardiões e transmissores destas lembranças às gerações recentes.
Acreditamos que as famílias pioneiras a partir de suas lembranças - resgatadas pela técnica
de história de vida e analisadas por meio das narrativas - podem fornecer informações sobre
sua trajetória de vida, sobre as experiências de luta pela terra e o processo de constituição
dos assentamentos.
Em relação à metodologia, realizamos um estudo bibliográfico sobre o processo de
luta pela terra e a constituição dos assentamentos de reforma agrária na região de
Araraquara (SP), articulando com técnica de entrevista de histórias de vida visando resgatar
a memória das famílias pioneiras sobre as suas trajetórias de vida e experiências em projetos
de reforma agrária.
As memórias das famílias pioneiras assentadas foram obtidas a partir da história de
vida, abordagem qualitativa da História Oral, que prioriza obter informações sobre os fatos,
os acontecimentos e as experiências na trajetória de vida dos homens e mulheres a partir
de fontes orais.
De modo geral, objetivamos entender a importância da reforma agrária para as
pessoas que lutaram e lutam por terra no contexto da região de Araraquara (SP). Portanto,
torna-se fundamental refletir sobre o sentido da luta pela terra para as pessoas que se
aventuram nessa jornada.

LUTA PELA TERRA, REFORMA AGRÁRIA E POLÍTICA DE


ASSENTAMENTOS NO BRASIL

Girardi e Fernandes (2008), acreditam que a luta pela terra por meio das ocupações
de terra e a criação de assentamentos são uma maneira de recriação do campesinato no

1694
território. No Brasil, as ocupações de terra são a principal forma de luta dos camponeses,
agricultores familiares e trabalhadores rurais organizados em movimentos socioterritoriais
(GIRARDI; FERNANDES, 2008). As áreas ocupadas geralmente são as terras devolutas,
os latifúndios e estabelecimentos rurais em que as leis trabalhistas e ambientais foram
desrespeitadas.
Os assentamentos rurais abarcam terras desapropriadas pelo Estado, como os
projetos de assentamentos estaduais, federais e municipais. Nesse tipo de assentamentos,
os movimentos socioterritoriais camponeses se territorializam a partir da
desterritorialização do latifúndio (GIRARDI; FERNANDES, 2008). Para os autores esses
assentamentos surgem por meio da iniciativa do governo ou da demanda dos movimentos
de camponeses, agricultores familiares e trabalhadores rurais.
Em algumas investigações sobre as motivações e significados da luta pela terra no
Brasil Sauer (2005), encontrou nas falas das famílias entrevistadas muita coragem,
sabedoria e corações cheios de esperança e sonhos. Nessas andanças, as famílias de
trabalhadores rurais sem-terra passam por “um verdadeiro nomadismo geográfico e social
em busca de trabalho e condições de vida” (SAUER, 2005, p. 58).
Sauer (2005, p. 68) constata que, “o simples acesso à terra – e seu significado real
e simbólico – é o grande diferencial, especialmente porque abres novas perspectivas de
vida para as famílias sem-terra”. O acesso à terra representa um conjunto de possibilidades
para os trabalhadores sem-terra, tornando-se um novo momento e um novo lugar na
experiência de vida das pessoas acampadas e assentadas. O acesso é uma dimensão
fundamental da construção da identidade social, em que a terra se torna a categoria
mediadora desse processo (SAUER, 2005). Numa perspectiva das pessoas envolvidas no
processo, a conquista da terra é uma “graça alcançada”, mediada pelo trabalho, pela
atividade humana que, junto com a fertilidade da terra, faz ela produzir, gerando fartura e
liberdade. A terra, no entanto, não é representada apenas como um meio ou instrumento
de trabalho ou de produção. O processo de luta e a construção simbólica colocam a terra
também como um lugar de vida, uma moradia, capaz de acolher e dar sentido à existência.
Ela representa um local de pertencimento, de construção real e simbólica do ser, um vir-a-
ser que é estar em um lugar (SAUER, 2005, p. 69).
Sobre essa questão, Sauer (2005, p.70) destaca que

[...] as histórias de vida das pessoas sem-terra são verdadeiros “itinerários


biográficos”, gerando desejos e reforçando representações em que a casa
e o lugar de moradia são um porto seguro”. Desse modo, percebe-se que

1695
a luta pela terra se torna relevante, na medida em que a criação de
assentamentos rurais, dinamizam as regiões em que são instalados,
possibilitando uma nova organização social, política e econômica. No
que diz respeito as jornadas de luta pela terra, as pessoas se “des-locam”
em busca de trabalho e a possibilidade de “enraizamento” materializa
segurança, porque estabelece um ponto de referência (um endereço) e
uma localização geográfica, dando perspectivas para o pertencimento.
Possuir um lugar se transforma (em um lugar existencial, constitutivo do
ser) na referência que contrasta com a ausência de um local para morar
ou mesmo com as incertezas de um acampamento (SAUER, 2005, p.
70).

O lugar constitui-se uma dimensão fundamental no processo de luta pela terra. As


famílias visualizam no acesso à terra um lugar de trabalho, de vida e de reprodução social.
O assentamento é um espaço, geograficamente delimitado, que abarca um grupo
de famílias beneficiadas por programas governamentais de reforma agrária. A constituição
do assentamento é resultado de um decreto administrativo do governo federal que
estabelece condições de posse e uso da terra (SAUER, 2005, p. 59).
Por outro lado, o assentamento só é criado a partir do enfrentamento com os
poderes políticos, das disputas com o latifúndio e da mobilização dos movimentos sociais
de luta pela terra. É “produto de conflitos, lutas populares e demandas sociais pelo direito
de acesso à terra” (SAUER, 2005, p. 59).
Sauer apud Carvalho (1999, p. 10) mostra que “o assentamento deve ser
compreendido como uma encruzilhada social”, na medida em que ele é um espaço
geográfico e social de continuidade da luta pela terra. Local em que muitas trajetórias e
histórias de vida se confluem no horizonte da terra.
É o lugar onde diferentes biografias se encontram – ou ampliam os encontros
iniciados nos acampamentos – e iniciam novos processos de interação e identidades sociais,
gerando novos atores sociais e políticos. Esses atores terão como principais fatores de
mediação real e simbólica (interna e externa) a terra, o trabalho e a produção (SAUER,
2005, p. 61).
A criação de assentamentos rurais no Brasil está diretamente relacionada as ações
dos movimentos socioterritoriais de luta pela terra (FERNANDES, 2001). Nesse contexto,
os movimentos agrários e organizações sociais rurais tem sido decisivo no processo de luta
pela terra, na criação de assentamentos e políticas públicas de desenvolvimento rural
(SAUER, 2017).

1696
Acampamentos e assentamentos são novas formas de luta de quem já
lutou ou de quem resolveu lutar pelo direito à terra livre e ao trabalho
liberto. A terra permite aos trabalhadores – donos do tempo que o
capital roubou e construtores do território coletivo que o espaço do
capital não conseguiu reter à bala ou por pressão – reporem-
se/reproduzirem-se, no seio do território da reprodução geral capitalista
(OLIVEIRA, 1994, p. 18).

A criminalização dos movimentos sociais de luta pela terra é entendida como uma
forma de violência simbólica, sendo um dos principais mecanismos para desmobilizar as
lutas dos trabalhadores sem-terra. Nesse contexto de entraves e dificuldades de
mobilização, além de fazer o balanço e traçar as novas estratégias, o autor mostra a
necessidade de reconhecimento das conquistas territoriais, tendo em vista que “geram
novos desafios e exigem respostas dos movimentos sociais” (SAUER, 2017, p. 369).
Não existe consenso no que diz respeito ao projeto de reforma agrária no Brasil,
há os que acreditam que não tem mais sentido prático numa política de reforma agrária, e
outros que acreditam que a reforma agrária pode ser um modelo transformador da
sociedade. Todavia, a reforma agrária sempre foi um tema polêmico, não só pela defesa
ou rejeição do modelo, como também pela polissemia e multivocidade que marcaram a
construção e trajetória dessa bandeira política (BARONE et.al., 2016; BARONE;
FERRANTE, 2017).

O ESPAÇO DE INVESTIGAÇÃO DA PESQUISA

Os assentamentos de reforma agrária inseridos na Região Central do Estado de São


Paulo, serão objetos de estudo desta proposta de pesquisa. De acordo com as pesquisas
realizadas pelo NUPEDOR (Núcleo de Pesquisa e Documentação Rural), conforme visto
em Ferrante et al. (2004); Ferrante e Barone (2010) existem três projetos de assentamentos
na microrregião de Araraquara (SP), sendo: o P.A. Monte Alegre e P.A. Horto de Bueno
de Andrade, administrados pelo ITESP e o P.A. Bela Vista do Chibarro, administrado
pelo INCRA.
O assentamento Horto Bueno de Andrada criado em 1997 pelo Instituto de Terras
do Estado de São Paulo (ITESP), situa-se numa área total de 472,41 hectares,
anteriormente, pertencente à Companhia de Desenvolvimento Agrícola de São Paulo
(CODASP), tendo 31 famílias assentadas. A constituição do assentamento também é fruto
das mobilizações e luta dos boias-frias e assalariados rurais pelo acesso à terra e por
melhores condições de trabalho no contexto econômico da década de 1980.

1697
METODOLOGIA

De acordo com Andrade (2010), o trabalho com fontes orais permite inserir
sujeitos que não tiveram voz na história tradicional, além de permitir o acesso de histórias
dentro da história possibilitando compreender a percepção de como as pessoas elaboraram
suas experiências no tempo e no espaço. Nesse sentido, as fontes orais “trouxeram à tona,
a visão daqueles que fizeram parte de sua história de forma direta, constituindo sua história
através das memórias” (ANDRADE, 2010, p. 240).
A partir da história oral, buscamos resgatar as histórias de luta pela terra, por meio
da memória das famílias pioneiras, sobre o momento de luta e as nuances da vida no
assentamento. Silva (2004, p. 130) define a história oral como uma metodologia de
pesquisa empregada por historiadores, sociólogos, antropólogos, profissionais da área da
saúde, da psicologia e da literatura. No Brasil, a história oral desenvolveu-se bastante a
partir da década de 1990. A principal preocupação é o registro da história daqueles que
não tem voz, ou seja, dos pobres, oprimidos e excluídos da história oficial, a qual retrata a
história dos dominantes e dos grandes acontecimentos. A história oral tem como principal
objetivo recontar a história a partir dos relatos vividos.
Acredita-se que a memória é uma fonte que possibilita a compreensão das histórias
de luta por terra. A memória pode ser um formador de identidade de um grupo (FARIAS,
2006). Ela se apoia em depoimentos e relatos das experiências de outros, tratando-se de
um passado vivido. Existe dois tipos de memória:

A memória é individual – considerada a maneira de articulação das


lembranças e – envolve toda uma trajetória de vida: a forma de
rememorar é própria de cada homem e de cada mulher, a linguagem é
única, as expressões são mágicas e diferenciadas. Mas ninguém está só;
o vivido e as experiências são adquiridas coletivamente, pois os caminhos
cruzam-se e as memórias estão entrelaçadas com o próprio grupo. Esse
entrelaçamento possibilita o fortalecimento do contato entre as pessoas
do grupo, que passam a testemunhar e a compartilhar dos mesmos
pontos de vista que a memória faz ressurgir nos depoimentos. Ocorre
uma identificação grupal (FARIAS, 2006, p.42).

Portanto, a memória é a história viva dos indivíduos. Por meio desses testemunhos
os homens e as mulheres interpretam suas experiências e refletem sobre si mesmos,
buscando a construção de identidade, perdida no subterrâneo de uma história marcada
pelo sofrimento (FARIAS, 2006).

1698
[...] os homens e as mulheres do campo vão construindo e incorporando
sua própria história, uma história de luta pela terra, na qual estão
presentes o eu (sujeito individual) e o nós (sujeito coletivo em
construção) e, ao alcançarem a totalidade indivíduo-grupo, reconstroem
essa história numa identidade em que prevalece o nós na convivência
grupal e solidária e na reconstrução das coisas perdidas (FARIAS, 2006,
p. 51).

A memória pode ser compreendida como um acúmulo de experiências históricas,


que “possibilita recuperar a identidade que marca o grupo, buscando nas lembranças outras
significações, novas formas de fortalecimento de interesses, de ideais, de lutas e de
existência” (FARIAS, 2006, p. 51).
A memória possui múltiplas dimensões, podendo ser exteriorizada por meio das
emoções, dos gestos e até mesmo pelo silêncio. Há muita coisa entre o não dito.

O silêncio pode ser um indicador de resistência da memória das histórias


de vida das famílias. Pois, “o silêncio não pode ser considerado como
esquecimento, ele é o próprio componente da memória que, através do
trabalho de rememorar, possibilita a sobrevivência do grupo” (FARIAS,
2006, p. 41).

A memória traz sentimentos nostálgicos, de lugares e pessoas que marcaram a


trajetória de vida dos indivíduos. Sobre a importância do processo de luta pela terra Silva
escreve que:

A dramaticidade desse momento é carregada de simbolismo, pois ele


representa a mudança de trajeto, a ruptura da condição social de
desempregados, subempregados, explorados, enfim, de sobrantes.
Contudo, além das incertezas, há muitas indefinições, como os
enfrentamentos com a ordem instituída e o medo. Esse é o momento do
início da luta pela inclusão social, no qual a terra aparece não somente
como o elemento mediador para que o projeto ocorra, mas também
como uma espécie de retorno, de reencontro com algo que, até então,
parecia totalmente perdido (SILVA, 2004, p. 80).

Experiências de trabalhos com o uso de fontes orais e entrevistas de histórias de


vida em áreas de conflitos pela terra (VÊLOSO; WHITAKER, 2010; 2013) demonstram
que o resgate da memória é fundamental para que os sujeitos que vivenciaram a história
possam dar suas versões e narrarem suas estratégias de resistência, seus aliados e inimigos
ao longo do processo.

1699
Buscamos nesse trabalho reconstituir a luta pela terra na região de Araraquara (SP)
a partir da história oral (depoimentos, relatos e entrevistas) combinado com o uso do diário
de campo, com o intuito de iluminar as narrativas obtidas.
Para coleta de dados utilizamos entrevistas de história de vida. A aplicação ocorreu
durante uma visita de campo no Horto no mês de maio de 2017. Foi elaborado um roteiro
contendo diversas questões, abordando temas como: dados do entrevistado e do grupo
familiar; atividades desenvolvidas; condições de infraestrutura do lote apoio do governo e
sobre evasão e permanência. A seleção dos informantes ocorreu a partir de indicação das
próprias famílias.
Entrevistamos membros de duas famílias pioneiras do Horto Bueno de Andrada.
O roteiro elaborado para entrevista-los buscou compreender três momentos da história de
vida dessas famílias, sendo: 1. Origem e trajetória do entrevistado. 2. Luta pela terra
(detalhes da vida no acampamento, organização das ocupações, construção do
movimento). 3. Luta na terra (estratégias de permanência no assentamento).

RESULTADOS E DISCUSSÕES

A memória define-se como o eixo teórico desse trabalho. A partir disso, registramos
a história de constituição do assentamento a partir do olhar das famílias que vivenciaram
todo esse processo de conflitos rurais e de luta pela terra em Araraquara (SP) durante as
décadas de 1980 e 1990, quando materializou-se as primeiras experiências de
assentamentos de reforma agrária na região.
A partir da transcrição do material obtido, percebemos que existem pontos em
comum entre as trajetórias dos entrevistados. Ambos nasceram e cresceram em áreas rurais
(fazendas), moraram um tempo na cidade e viram no movimento de luta pela terra uma
possibilidade de melhorar suas condições de vida, além de ter um pedaço de terra para
viver com a família.
O primeiro entrevistado foi Seu Antonio Isaías, 58 anos, casado com Dona
Rosangela (53 anos). Nascido e criado numa fazenda de Araraquara, Seu Antonio viveu
durante oito anos na área urbana da cidade, trabalhava na época como motorista de
caminhão na Usina Zanin. Seu Antonio participou do processo de luta pela terra na região
durante a década de 1990. Ocupou uma das áreas do Monte Alegre e do Horto,
permaneceu acampado durante o período de um ano, sendo dois meses no Monte Alegre
e oito meses no Horto.

1700
Seu Antonio foi uma das lideranças do acampamento no Horto, era um dos
responsáveis pelo controle da lista de pontos (assinadas diariamente pelos acampados) e
pela organização das reuniões e assembleias. Ao ser perguntado sobre o período de
acampamento, ele respondeu,

Isso foi em 96 para 97. Só não sei a data certa, acho que foi em agosto,
minha mulher que sabe a data certinho. Aí, me ocuparam como
representante, líder né! Ali tinha o caderno de ponto para marcar quem
estava acampado e quem não tava. Tinha que assinar todo dia cedo. O
representante naquela época, que era o líder, ele não podia trabalhar,
nem ele e nem a esposa para manter no barraco, aí eu tinha um gado e
fui vendendo, já que ninguém trabalhava, fui vendendo pra ir comendo.
Fiquei um ano, um ano assim (Seu Antonio, 58 anos, 08/05/17,
Assentamento Horto Bueno de Andrada).

Pudemos perceber que havia uma organização social no acampamento na época,


conforme relatado por Seu Antonio, os acampados faziam reuniões e assembleias quase
que diariamente para discutirem sobre as estratégias da luta. O controle de famílias
acampadas era feito por meio de uma lista que passava todas as manhãs. Silva (2004)
entende que no acampamento, o espaço físico vai transformando-se, paulatinamente em
espaço social. A autora mostra que a ida para o acampamento representa um momento de
dramaticidade, carregada de simbolismo, pois “ele representa a mudança de trajeto, a
ruptura da condição social de desempregado, subempregados, explorados, enfim, de
sobrantes” (SILVA, 2004, p. 80).

FOTO 1: DETALHES DA VIDA NO ACAMPAMENTO

Fonte: Pesquisa de Campo, 2017.

1701
A ida para o acampamento não é uma decisão simples, pois o medo, os conflitos,
os diversos enfrentamentos contra a ordem e a indefinição de futuro representa esse
momento decisivo. Ao ser perguntado sobre como tomou a decisão de entrar no
movimento de luta pela terra, Seu Antonio respondeu que,

A minha esposa na época, ela não queria vim né! Ela falou que não vinha.
Aí, ela veio no acampamento e não gostou, dava muita briga e discussão,
porque ela queria que eu voltasse para lá, e aí vim para aqui e não voltei.
Aí, depois de dois meses trouxeram eu para cá, aí eu tinha um caminhão
velho, fui lá e carreguei a mudança toda lá para o acampamento, aí trouxe
a família, trouxe o gado, soltei as vacas que eu tinha tudo nessa fazenda
aqui, de noite recolhia elas, porque era tudo aberto aqui (Seu Antonio,
58 anos, 08/05/17, Assentamento Horto Bueno de Andrada).

No acampamento houve diversos momentos de enfrentamentos contra o poder


local e a polícia, com várias tentativas de reintegração de posse. Silva (2004, p. 92) ressalta
que “a grande ameaça à vida no acampamento é a ação de despejo, decidida pelo Poder
Judiciário e executada pelas forças policiais”.

A história assim [...], não é tão ruim, porque “os polícia” na verdade, eles
não chegavam assim, desacatando a gente. Eles chegavam e pediam para
a gente se retirar, se não ia vir e fazer as coisas a força né! Aí, a gente
falava que se quisesse fazer podia fazer, porque a gente não ia sair daqui.
Porque as terras não eram de fazendas, a terra era do Estado e o Estado
não tem terra, não cuida. O cara que está cuidando aqui, o Estado não
via nenhum centavo do eucalipto que saía daqui, não via mesmo, era
tudo carreta de eucalipto sem nota, tudo parado. Se você visse não
tinha nenhuma nota das carretas de eucalipto. Então, quer dizer, a terra
podia ser de qualquer um. Então, nós “vai” ocupar ela, não vai sair e não
saímos (Seu Antonio, 58 anos, 08/05/17, Assentamento Horto Bueno de
Andrada).

Portanto, o acampamento representa um momento de passagem, “algo temporário,


pleno de durezas, para as quais foram alertados” (SILVA, 2004, p. 92).
O segundo entrevistado foi o Seu João Marques, 60 anos, também conhecido como
João “Barba”. É casado, natural de Frutal – MG e pai de um filho de 30 anos. Conheceu
Dona Terezinha (esposa), 59 anos, natural de Cuiabá – MT, numa de suas andanças pelo
Brasil.
Seu João entrou no movimento de luta pela terra em 1995, quando foi convidado
por membros da FERAESP (Federação dos Empregados Rurais Assalariados do Estado

1702
de São Paulo) a auxiliar no levantamento de famílias que tinham interesse em participar da
luta na região.
Seu João foi uma das lideranças dos acampamentos no Monte Alegre e no Horto
Bueno de Andrada, auxiliou o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Araraquara a buscar
pessoas para compor o movimento de luta pela terra. Também foi representante das
famílias acampadas, atuou na mediação das informações com a imprensa local e nos
processos de negociação com a polícia. Seu João também foi acampado durante 1 ano,
sendo 2 meses no Monte Alegre e 10 meses no Horto.

FOTO 2: DETALHES DA VIDA NO ACAMPAMENTO.

Fonte: Pesquisa de campo (2017).

Conforme visto nas entrevistas, o desemprego, a instabilidade financeira e a busca


por um pedaço de terra foram os principais motivos que os levaram a entrar no processo
de luta pela terra ocorrido em Araraquara (SP) durante a década de 1990.

O motivo era assim [...] que eu queria um pedacinho de terra para mim,
onde eu morava o homem era muito bom, não nego isso. Só que a
casinha que eu morava era dois cômodos e eu não podia fazer nada
porque não era meu né! Então, morar naquela casinha era ruim, então
eu falei, agora eu quero um pedaço de terra para fazer uma casa melhor
para os meus filhos, igual a que tem ali, cada um com sua casa. E dizer
que a terra era minha, mas não era minha ainda, mas não sei se um dia
vai ser, mas, tirar de mim ninguém tira, porque de mim passa para o filho
o documento que a gente tem, do filho passa para o neto, enquanto é a
procedência aqui da família nós vamos tocando. Nesse momento Seu
Antonio apontou para as casas dos filhos que também moram no lote
(Seu Antonio, 53 anos, 08/05/17, Assentamento Horto Bueno de
Andrada).

1703
FOTO 3: ÁREA COLETIVA DO ACAMPAMENTO

Fonte: Pesquisa de campo (2017).

O acampamento é retratado como um espaço e tempo de passagem para a


conquista da terra, do lugar de moradia e sobrevivência. Segundo Silva (2004, p. 100) “o
acampamento constitui-se em um espaço-tempo intermediário, em uma passagem cujo
objetivo é dar visibilidade à luta pela terra e também construir a identidade de sem-terra
por meio da consciência coletiva de pertencimento comum”.

[...] naquele tempo fizeram umas 5 ruas de barraco muito comprida você
não sabia com quem você estava mexendo, tinha gente de todo lugar.
Tinha uma lista, era uma lista de chamada, uma lista de presença, todo
dia a pessoas tinha que assinar aquela lista porque aqueles que queria
terra você sabia que ele estava ali. Fizeram igreja lá dentro, fizeram
algumas coisas que deu para viver ali, apareceu até umas que tinha estudo
a mais e dava umas aulinhas para as crianças, porque não tinha. Aí, eu
corri atrás e consegui umas cestas base para quem estava bem ruim de
situação, consegui umas cestas base, a FERAESP distribuiu algumas
cestas base e aí, ficam.

Questionado sobre a importância da luta pela terra e reforma agrária em sua vida,
Seu João respondeu que,

A luta pela terra, foi à vontade, porque a gente sempre moramos no que
é dos outros, trabalhando para os outros. Aí, um dia eu queria ter minha
terra para viver a minha vida. Aí, foi onde eu entrei nesse movimento e
consegui esse pedaço de terra” (Seu João Marques, 08/05/17,
Assentamento Horto Bueno de Andrada).

1704
Depois de assentadas, as famílias continuaram enfrentando inúmeras dificuldades
para permanecerem na terra. Nesse sentido, o assentamento representa um espaço de
continuidade da luta pela terra. Em um dos trechos da entrevista observamos sinais dessa
luta para permanecerem na terra, pois, de acordo com os entrevistados, foi uma verdadeira
briga para se manterem nos lotes. Um exemplo disso é a questão da energia elétrica como
relatado pelo Seu João,

[...] a gente morou aqui, ficamos sem força aqui, acho que uns 3 anos. 3
anos sem energia, só morando num barraquinho lá embaixo. A briga da
força foi muito difícil para chegar demorou muito tempo, nós tivemos
que pagar tudo essa força que passa aqui, teve que pagar ela para vir,
porque a luz da terra não é luz para todos. Foi um momento muito difícil
(Seu João Marques, 08/05/17, Assentamento Horto Bueno de Andrada).

Conforme aponta Silva, no assentamento um novo modo de vida vai se produzindo


e se constituindo, definindo-se como uma luta pela construção do lugar. Silva (2004, p.
107) relata que “permanecer na terra corresponde a um conjunto de estratégias que são,
na verdade os desdobramentos da luta pela terra”. Desse modo, vemos que a luta pela terra
não termina com a entrada no lote, é uma luta contínua por cidadania e dignidade. As
múltiplas estratégias adotadas pelas famílias assentadas revelam a peleja para se manterem
na terra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho em tela faz parte de uma pesquisa de dissertação de mestrado (em


andamento) que busca compreender os desafios da luta pela terra e da permanência na
terra em assentamentos da região de Araraquara (SP). Até o momento da pesquisa,
realizamos duas entrevistas com membros de duas famílias pioneiras do assentamento
Horto de Bueno de Andrada com o objetivo de entender as diferentes realidades presentes
no espaço do assentamento.
A partir das entrevistas realizadas pode-se constatar o alto índice de evasão entre as
famílias assentadas, pois das 31 famílias pioneiras, que entraram no assentamento como
beneficiárias em 1997, restou apenas cerca de 05 famílias. Com a obtenção desses dados,
ainda estamos investigando as possíveis causas da evasão e da permanência no
assentamento.
Ao analisar essa questão em assentamentos do estado do Tocantins, Ribeiro et al.
(2011), verificou que as causas da evasão estão associadas com as ações do órgão/programa

1705
responsável pela criação dos projetos, tendo em vista que mesmo após a conquista do lote,
a adaptação ao novo modo de vida é um dos principais problemas enfrentados pelas
famílias assentadas. A ausência de infraestrutura produtiva, de assessoria técnica e créditos
tornam-se um dos bloqueios em relação a permanência dos beneficiários nos lotes, como
diz Silva (2001) torna-se uma verdadeira “peleja” para as famílias assentadas se manterem
na terra.
Desse modo, entende-se que a falta ou a precariedade de infraestrutura como fator
de evasão em projetos de reforma agrária é vista como uma das principais causas da evasão
nos assentamentos. A segunda maior causa de evasão foi a origem não rural ou
inexperiência em atividades agrícolas, evidenciando a importância de um vínculo/ou
experiência das famílias beneficiárias com o meio rural. A ausência de uma renda/incentivo
financeiro para manter as famílias no lote até o início da primeira colheita foi outro motivo
encontrado pelos autores durante as entrevistas.
Buscamos nesse trabalho, reconstituir a luta pela terra na região de Araraquara (SP)
a partir da história oral (entrevistas de histórias de vida) combinado com o uso do diário
de campo, com o intuito de iluminar as narrativas obtidas. O trabalho justifica-se pela
necessidade de entender a complexidade de trajetórias de homens e mulheres que
decidiram participar do movimento social de luta pela terra.
Partindo da memória como eixo analítico buscamos analisar a realidade social dos
homens e mulheres assentados na região de Araraquara (SP). A análise em questão, voltou-
se para os processos de luta pela terra, constituição dos assentamentos e estratégias de
permanência na terra, entendida como uma continuidade dessa luta.

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ORGÂNICOS AGROFLORESTAIS

Giovanni Barillari de FREITAS872

Resumo: Esta pesquisa parte da hipótese de que o Programa Nacional de Fortalecimento da


Agricultura Familiar (Pronaf) foi um marco definitivo para os pequenos produtores rurais, até então
excluídos das políticas públicas nacionais. Já que, após a criação do Pronaf em 1995 e,
principalmente após o ano de 2003, as conquistas das famílias agricultoras se expandiram na
direção de leis e políticas públicas que permitissem apontá-las como sujeitos integrados à sociedade
capitalista, responsáveis por produzir alimentos com preços estáveis. Neste processo, os agricultores
que se utilizam da técnica de produção orgânica e agroflorestal estariam se destacando a partir dos
mercados locais e dos circuitos curtos de comercialização, especialmente em torno dos
assentamentos cuja produção deve ser restauradora do meio ambiente, estabelecendo-os como
atores do desenvolvimento rural e sobretudo sustentável. A partir desta hipótese, a pesquisa se
utiliza do arcabouço teórico da sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu no que tange seus estudos
sobre o camponês argelino sob colonização francesa e sobre a construção do mercado da casa
própria, com a intenção de identificar elementos para além do econômico que constroem os
mercados da agricultura familiar no assentamento Mário Lago em Ribeirão Preto/SP, um Projeto
de Desenvolvimento Sustentável (PDS). Nossos dados preliminares indicam a construção do
mercado das cestas de alimentos orgânicos agroflorestais pelos assentados que compõem o Grupo
Comuna da Terra, além de considerarem a importância do Pronaf na estrutura inicial do
assentamento. Para esta finalidade, a pesquisa necessitou de 5 meses de trabalho de campo com
visitas ao assentamento, com conversas, entrevistas minimamente formais, participação na reunião
e pregão nas segundas e na organização das cestas nas terças, além da participação como
consumidor dos alimentos agroflorestais.

Palavras-chaves: Agricultura Familiar. Sociologia Econômica. Pierre Bourdieu. MST.


Assentamento Mario Lago.

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo mostrar os resultados parciais da pesquisa de mestrado
denominada “A construção social do mercado da agricultura familiar no assentamento
Mario Lago em Ribeirão Preto/SP: o Pronaf e o caso das cestas de alimentos orgânicos
agroflorestais”. Esta pesquisa segue os princípios teórico-metodológicos da sociologia
econômica, sobretudo a de Pierre Bourdieu, afim de identificar os elementos que
constroem o mercado de agricultura familiar no assentamento Mário Lago em Ribeirão
Preto/SP. Inicialmente foi identificado a construção do mercado das cestas de alimentos
orgânicos agroflorestais pelos assentados que formam o Grupo Comuna da Terra, o que

872
Mestrando do PPGCS da Unesp-Araraquara e bolsista CNPq. Email: giovannibarillarif@gmail.com

1709
despertou o anseio de analisar a importância do Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf) na estruturação do grupo e na construção social da oferta de
cestas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

A pesquisa se baseia no conceito de mercado da sociologia econômica, em


contraponto ao conceito da teoria econômica de origem neoclássica que considera o
mercado como uma força abstrata de equilíbrio.
Alicerçado na obra de Bourdieu intitulada Estruturas sociais da economia sobre o
mercado de habitação na França, a pesquisa compreende que, em diferentes níveis, todo
mercado é “produto de uma dupla construção social, para a qual o Estado contribui de
maneira decisiva: a construção da demanda (...) e a construção da oferta, através da política
do Estado (ou dos bancos), em termos de crédito (...)” (BOURDIEU 2005, p. 17). Esta
dupla construção social, que define o mercado, acontece pela interação de indivíduos com
histórias e instrumentos cognitivos que situam seus gostos, preferências e visão de mundo,
dando características únicas aos mercados que constroem, como explica Bourdieu (2003).
Naquele momento, Bourdieu (2006) observa que a construção do mercado da
habitação na França é diretamente influenciada pelo Estado, tanto em relação a oferta
como a demanda. O autor entende que os mercados são, não apenas controlados, mas
“construídos pelo Estado, muito especialmente através da ajuda concedida aos particulares,
que varia no seu volume e modalidades de atribuição, favorecendo mais ou menos uma ou
outra categoria social e, dessa forma, este ou aquele segmento (...)” (Ibid., 2006, p. 125).
Como afirma Bourdieu (2006), as relações de forças entre os agentes que coexistem no
mesmo mercado dependem das regulamentações como, “(...) em particular, das regras que
regem a ajuda pública à construção e a concessão de créditos, desta forma introduzindo
formas de arbitragem entre os diferentes intervenientes no campo da produção" (Ibid.,
2006, p. 128). Desta maneira, se propõe um paralelo com o mercado das cestas de
alimentos orgânicos dos grupos de agricultores familiares assentados do grupo Comuna da
Terra com a proposta de entender a contribuição do Estado, tanto pelas regulamentações
jurídicas como pelas políticas públicas como as de crédito, para construção deste mercado.
A pesquisa também propõe pensar sobre a relação entre Estado, agricultura familiar
e desenvolvimento rural, a partir da perspectiva do conceito de capital social.

1710
Como afirma Abramovay (2000), pensar o desenvolvimento rural não significa
buscar as vantagens ou limitações geográficas, mas analisar a formação de redes ou
instituições que permitam ações que gerem a conquista de bens públicos como saúde,
educação, mobilidade, informação, aumentando, justamente, o volume de capital social
dos indivíduos e grupos em questão. O conceito de capital como um todo, segundo
Bourdieu (2008), pode ser entendido como princípio de diferenciação ou como “armas
(que) comandam as representações desse espaço e as tomadas de posição nas lutas para
conservá-lo ou transformá-lo” (Ibid., 2008, p. 27). O capital social em questão, representa,
segundo Abramovay (2000), uma espécie de garantia para os que não possuem bens físicos,
empenhar suas relações sociais. O capital social pode ser representado por redes de
relações formadas entre indivíduos e instituições que possibilitem, por exemplo, gerar
ganhos econômicos. Este capital social pode ser “(...) usado para ampliar os serviços de
créditos disponíveis nessas comunidades e para aumentar a eficiência com que aí operam
os mercados” (PUTNAM 1993; 1996 p. 178-179 apud ABRAMOVAY 2000, p. 06).
Eficiência não no sentido de equilíbrio, mas de funcionalidade.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada na pesquisa que desencadeou este artigo foi:


1) Levantamento bibliográfico sobre a sociologia econômica, sobre a sociologia
reflexiva de Pierre Bourdieu e sobre a sociologia rural brasileira
2) Levantamento bibliográfico sobre o Pronaf e sobre o assentamento Mario Lago.
3) Trabalho de campo utilizando as seguintes ferramentas: 1) escrita de um diário
com descrição etnográfica; 2) entrevistas por meio de questionário
semiestruturado com perguntas abertas e gravadas com os assentados que
compõem a cooperativa Comuna da terra; 3) análise do processo de construção
social da oferta das cestas de alimentos orgânicos agroflorestais, através da
participação na reunião realizada toda segunda-feira às 14h, no pregão
(definição dos alimentos que vão para as cestas) por volta das 16h, neste mesmo
dia, na organização das cestas e na entrega nos pontos de distribuição aos
consumidores toda terça-feira no final da tarde; além da participação como
consumidor.

1711
Foi analisado também a página na rede social Facebook, que faz a intermediação
com o consumidor.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
ESTADO, AGRICULTURA FAMILIAR E DESENVOLVIMENTO RURAL

Como afirma Kaminura et al. (2012), “no Brasil, os programas de política pública
foram voltados para os grandes agricultores. Somente nas últimas décadas os olhos se
voltaram para a agricultura familiar, oportunidade em que os agricultores tiveram acesso
ao Pronaf” (KAMIMURA et al. 2012, p. 34). A inclusão de grupos denominados de
agricultura familiar pelas políticas agrárias é a concretização de transformações
relativamente recentes. Durante quase todo século XX, o Estado brasileiro excluiu o
pequeno produtor da agenda do desenvolvimento rural. Já no começo do século passado,
o foco do Estado estava exclusivamente no desenvolvimento industrial da nação. Após
1964, o médio e grande produtor rural foram incluídos no projeto nacional de
desenvolvimento com políticas que estimulassem uma modernização da agricultura a
partir, por exemplo, da criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (SNCR)
(KAMIMURA et al. 2012).
Somente, então, em 1996, o Estado institucionalizou diversos grupos de pequenos
produtores rurais, como sujeitos potenciais para o desenvolvimento nacional, através de
um marco jurídico e políticas públicas orientadas, como o Pronaf. O Pronaf, então, se
constituiu como uma mudança na relação entre Estado e agricultura familiar, inserindo
amplos e heterogêneos grupos sociais como sujeitos do desenvolvimento.
Em síntese, fruto das mobilizações para ampliação do público alvo do Programa de
Valorização da Pequena Produção Rural (Provape) e por novos direcionamento do crédito,
preenchendo um espaço institucional vago como afirma a autora, o Provape foi substituído
pelo Pronaf, através do Decreto nº 1.946 de 28 de junho, com a “finalidade de promover
o desenvolvimento sustentável do segmento rural constituído pelos agricultores familiares,
de modo a propiciar-lhes o aumento da capacidade produtiva, a geração de empregos e a
melhoria de renda” (Art. 1º).
O Pronaf oferece linhas de créditos que visam possibilitar a reprodução social e
econômica de famílias agricultoras, através do acesso ao crédito. De modo geral, a intenção
do Pronaf é financiar

1712
[...] projetos individuais ou coletivos, que gerem renda aos agricultores
familiares e assentados da reforma agrária, (...) seja ele para o custeio da
safra ou atividade agroindustrial, seja para o investimento em máquinas,
equipamentos ou infraestrutura de produção e serviços agropecuários ou
não agropecuários (http://www.mda.gov.br/sitemda/secretaria/saf-
creditorural/sobre-o-programa).

Desta maneira, veremos como o Pronaf influencia assentados do Mario Lago a


construir mercados que possibilitem geração de renda e como são a participação do Estado
no sentido da construção de mercados. Antes, devemos conhecer o território onde este
assentado está inserido, sua história e a influência do Estado na formação de um marco
jurídico que regulamenta sobre a agricultura familiar e o assentamento.

A CONSTITUIÇÃO DO ASSENTAMENTO MARIO LAGO E SEU MARCO


JURÍDICO

O assentamento Mario Lago está localizado na fazenda da Barra, situada entre a


rodovia Anhanguera e o Rio Pardo, no bairro Ribeirão Verde em Ribeirão Preto, e possui
1700 hectares com até 7 quilômetros de diâmetro (ROSA 2012).
A fazenda da Barra foi conquistada para fins de reforma agrária por meio da
pressão exercida pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e da
participação direta de outros setores da sociedade como as pastorais da igreja católica da
“Diocese de Ribeirão Preto, a Promotoria de Conflitos Fundiários e Meio Ambiente de
Ribeirão Preto, movimentos ambientalistas, sindicatos de trabalhadores urbanos, técnicos
das agências ambientais do Estado, entre outras forças sociais atuantes na cidade”
(GONÇALVES 2010, p. 27). O processo de desapropriação da fazenda da Barra teve
início no ano 2000, quando a Promotoria de Conflitos Fundiários e Meio Ambiente de
Ribeirão Preto encaminhou um pedido de vistoria da área ao Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária (Incra) que, em seguida, determinou sua desapropriação.
A partir da pressão feita pelo MST, o Incra, em 20/06/2007, formalizou o assentamento
na fazenda da Barra, mas com pouquíssima infraestrutura (como afirmam alguns
assentados entrevistados) e com a responsabilidade de ali se produzir somente alimentos
sem utilizar defensivos químicos, seguindo as normas do Projeto de Desenvolvimento
Sustentável (PDS), modelo adotado para o Mario Lago.
O modelo de assentamento de um PDS foi criado, através da Portaria nº 477 de
04 de novembro de 1999, para “atender a demanda por terra de comunidades extrativistas
da região Norte. Essa modalidade de assentamento apresenta como característica

1713
diferenciadora um forte viés ambiental e a prevalência de áreas coletivas” (CAMARGO et
al. 2016, p. 154). O PDS é “de interesse social e ecológico, destinada às populações que
baseiam sua subsistência no extrativismo, na agricultura familiar e em outras atividades de
baixo impacto ambiental” como definido no Art. 1º873. Este modelo foi trazido para o
Estado de São Paulo para garantir a não

[...] utilização de agrotóxicos e, consequentemente, sem ocasionar


prejuízos ao meio ambiente, pois se encontra localizado sobre uma área
de recarga de um dos maiores mananciais de água subterrânea do
mundo, o Sistema Aquífero Guarani (FERRANTE; FLHO 2009, p. 02).

Este projeto de assentamento passou a ser denominado, então, como PDS da


Barra, onde existem 4 assentamentos: o Mário Lago, vinculado ao MST, o Santo Dias da
Silva, vinculado ao Movimento de Libertação dos Sem Terra (MLST), o Índio Galdino e
o Luísa Mahin, ambos independentes, como explica Rosa (2012). Como mostra o sítio
virtual do Incra, os quatro assentamentos do PDS da Barra possuem 473 famílias
assentadas.
O assentamento Mario Lago possui mais da metade do território da fazenda,
somando 264 famílias divididas em lotes de aproximadamente 1,7 hectares com “áreas de
Reserva Legal destinadas para produção coletiva agroflorestal (que) incrementam
aproximadamente 0,5 ha das áreas produtivas das famílias” (NUNES; SILVA 2016, p. 44).
O tamanho dos lotes familiares

[...] tornam somente possíveis a realização de pequenas plantações e a


criação de animais de pequeno porte. Esse tamanho de lote é o menor
dentre os projetos de assentamentos rurais do país, que chegam a
comportar vinte hectares por grupo familiar (FERRANTE; FILHO
2009, p. 07).

O assentamento é dividido em núcleos de moradia com média de 10 a 20 grupos


familiares, como afirmam Ferrante e Filho (2009). O objetivo do assentamento, em geral,
é dar “acesso à terra a uma população que em seu passado viveu no campo e, em razão da
modernização agrícola, foi obrigada a deslocar-se para outras regiões ou centros urbanos
em busca de melhores condições de vida” (Ibid., 2009, p. 04).

873
http://www.incra.gov.br/sites/default/files/uploads/institucionall/legislacao--/portarias/portarias-de-
1999/portaria_incra_p477_041199.pdf

1714
Camargo et al. (2016) explica que todo assentamento possui um Termo de
Ajustamento de Conduta (TAC), contrato que estabelece as regras de proteção ambiental
do assentamento. O TAC do PDS da Barra determina que a produção deva ser
agroecológica (conforme definida na Portaria nº 38) feita preferencialmente de forma
associativa e que a infraestrutura como eletrificação, moradias, fornecimento de água e
coleta de esgoto seja disponibilizada pelo INCRA, como afirma Camargo (2016 apud
Carvalho 2011).
A produção agroecológica foi definida institucionalmente em 4 de julho de 2014,
quando a secretaria da agricultura familiar publicou a Portaria n° 38, definindo no Art. 1º
que a produção de base agroecológica é

[...] aquela que busca otimizar a integração entre capacidade produtiva,


uso e conservação da biodiversidade e dos demais recursos naturais,
equilíbrio ecológico, eficiência econômica e justiça social, abrangida ou
não pelos mecanismos de controle de que trata a Lei nº 10.831, de 2003,
e sua regulamentação
(http://www.mda.gov.br/sitemda/sites/sitemda/files/user_img_873/POR
TARIA%20N%C2%B0%2038%2C%20DE%204%20DE%20JULHO%
20DE%202014%20-%20AGROECOLOGIA.pdf).

Esta Lei 10.831, de 23 de dezembro de 2003, ficou conhecida como Lei de


Agricultura Orgânica, por definir, no artigo 1º, o significado de um sistema orgânico de
produção agropecuária como todo sistema de produção em que “se adotam técnicas
específicas, mediante a otimização do uso dos recursos naturais e socioeconômicos
disponíveis e o respeito à integridade cultural das comunidades rurais, tendo por objetivo
a sustentabilidade econômica e ecológica (...)” (BRASIL 2003b).
Já os Sistemas Agroflorestais foram definidos institucionalmente no Art. 2º inciso
XVI do Decreto nº 7.830 de 17 de outubro de 2012, que complementa a Lei nº 12.651 de
25 de maio de 2012. Na prática, para formar uma agrofloresta é necessário plantar as
espécies em uma ordem de acordo com sua altura (planta alta, planta média e planta baixa),
com espaçamento adequado que proporcione a troca de nutrientes pelas raízes e que
apresentem tempos de vida semelhante. No primeiro ano as alturas de cada trinca de
plantas já se diferenciam, maximizando a absorção da luz solar de acordo com a
necessidade de cada espécie. Após 40 anos, o reflorestamento se completa e ainda
proporciona a geração de renda pela venda dos alimentos produzidos por ela.

1715
A Agroecologia e os Sistemas Agroflorestais (SAF) são, respectivamente, o
princípio e a técnica de produção utilizada por todos os assentados do grupo Comuna da
Terra.
Em seguida, será apresentado o trabalho de campo, mostrando os resultados
parciais da pesquisa.

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA OFERTA DAS CESTAS DE ALIMENTOS


ORGÂNICOS AGROFLORESTAIS NO ASSENTAMENTO MARIO LAGO EM
RIBEIRÃO PRETO

Nas primeiras visitas ao Mario Lago (a partir de um contato da área médica do


assentamento), foi possível conhecer assentados que faziam parte do “grupo das cestas”,
como era denominado informalmente. Este grupo comercializa cestas de alimentos
produzidos por eles mesmos, utilizando uma rede social da internet e distribuindo em
pontos comerciais na cidade. Como o objetivo é estudar a construção social dos mercados
da agricultura familiar, este grupo se mostrou justamente neste processo de construção do
“mercado das cestas”.
As entrevistas aconteceram, portanto, no sentido de compreender a história deste
mercado, a relação do Estado via Pronaf e de identificar aspectos para além do econômico
(como institucionais) que influenciaram e influenciam a construção social da oferta das
cestas.

A CHEGADA DO SISTEMA AGROFLORESTAL

A partir das entrevistas e do estudo bibliográfico, constatou-se que, perante a grande


demanda espacial por reflorestamento, no final de 2011, se consolidou uma parceria entre
o MST do Mario Lago e cooperados da Associação de Produtores Agroflorestais da Barra
do Turvo e Adrianópolis – Cooperafloresta – atuantes na “organização de agricultores,
produção e comercialização de produtos provenientes das agroflorestas” (p. 42). No ano
seguinte, através do projeto Agroflorestar I e executado pela Petrobras Ambiental, foram
implantados 40 hectares localizados nas áreas coletivas de Reserva Legal (RL) por meio de
mutirão organizados por grupo de afinidade e de proximidade. Em 2015 foram
implementados 500 metros quadrados de agroflorestas em 80 lotes pelo Agroflorestar II.
Paralelamente, os assentados acessaram o projeto Renascer das Águas do Aquífero
Guarani que

1716
[...] a partir da experiência desenvolvida, no mesmo intuito, firmou-se
em 2013, um convênio com o Banco Mundial e o Estado de São Paulo,
por intermédio da Secretaria do Meio Ambiente (SMA), vinculado ao
Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável - Microbacias II, que tem
como uns dos objetivos a implantação/manejo de 60ha de agroflorestas
em áreas de RL, o que tem contribuído decisivamente para o
cumprimento do TAC (Nunes et al. 2016, p. 04).

E o projeto Candeia que, através do financiamento do Fundo Brasileiro para a


Biodiversidade (Funbio), possibilitou a compra de capital produtivo para o grupo, como
caminhão, refrigerador, barraca de feira, balanças, sacolas, computador, material de
comunicação, além de um viveiro e um barracão em construção logo acima da sede, como
explicou uma das assentadas.
O contato com a Cooperafloresta se mostra fundamental para a formação do
mercado das cestas, já que impulsionou a construção dos SAFs, entretanto, não foi um
processo linear e continuo, houveram transtornos devido, principalmente, às
(ir)responsabilidades do Incra em não cumprir o TAC com a disponibilização de água para
irrigação.
Estes três projetos possibilitaram a organização estrutural do sistema produtivo,
individualmente e coletivamente, além da própria estruturação do grupo.

O “GRUPO DAS CESTAS”

De forma resumida, concomitantemente à formação das agroflorestas se formou o


grupo “Comuna da Terra”, com o objetivo de comercializar os alimentos produzidos por
essas agroflorestas, a partir da venda de cestas, por meio de uma rede social na internet. O
grupo possui cargos que organizam o funcionamento do grupo e a construção da oferta das
cestas. De qualquer maneira, os trabalhos a serem realizados pelo grupo são divididos em
reunião.
Será descrito o processo da construção da oferta das cestas de alimentos orgânicos
agroflorestais.

1) Produção Agroflorestal, em lotes individuais e coletivos.


2) Reunião realizada nas segundas-feiras às 14 horas, para discussão de temas
familiares e temas do grupo, como novas possibilidades de venda dos alimentos.
3) Definição da distribuição dos alimentos nas cestas (pequena e grande)
conforme a demanda (pedidos) e a oferta individual de alimentos (de acordo

1717
com o que cada um produziu), após a reunião. A organização é feita a partir de
duas pessoas, um para perguntar quais alimentos estão disponíveis pelos
assentados, e outra para anotar na lousa a quantidade do alimento e em qual
cesta deve ir, conforme a foto abaixo:

FOTO 1: DEFINIÇÃO DO CONTEÚDO DAS CESTAS NO DIA 24/04/2017, ANTERIOR


À ENTREGA

Fonte: Foto tirada pelo autor.

4) Organização das cestas nas terças-feiras por volta das 13 horas. Cada assentado
traz individualmente seus alimentos, pesam e ficam com um papel que marca a
quantidade de alimentos disponibilizados e o valor a receber.
Concomitantemente, as cestas vão sendo montadas, como evidencia a foto
abaixo:

FOTO 2: ORGANIZAÇÃO DAS CESTAS QUE FORAM ENTREGUES NO DIA


25/04/2017

Fonte: Foto tirada pelo autor.

1718
5) Organização das cestas no caminhão e transporte, às 16 horas, aos
estabelecimentos, parceiros do grupo, que vão intermediar a relação com os
consumidores (chamados de co-produtores), entregando as cestas. Como
ilustrado na foto abaixo:

FOTO 3: CESTAS PRONTAS PARA SEREM LEVADAS AOS PONTOS DE


DISTRIBUIÇÃO NA CIDADE

Fonte: Foto tirada por mim.

6) Estes pontos de retirada participam, ademais, permitindo a montagem de uma


banca para vender os alimentos enquanto as cestas são entregues e realizando
eventos culturais relacionados ao tema dos alimentos orgânicos em dias
variados. Como vemos na foto abaixo:

FOTO 4: BANCA DE VENDA DOS ALIMENTOS QUE NÃO ENTRARAM NA CESTA,


NO DIA DE DISTRIBUIÇÃO

Fonte: Foto tirada por mim.

1719
Toda esta dinâmica da construção da oferta de cestas de alimentos orgânicos
agroflorestais pode ser visualizada como uma rede de relações, ou seja, os assentados,
organizados ou individualmente, se estabelecem em redes de relações com seus vizinhos,
com o Estado via políticas públicas como, o Pronaf, o Programa de Aquisição de Alimentos
(PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), dentro outras, com outros
indivíduos como os assentados que não fazem parte do grupo (vizinhos) ou com os
estabelecimentos que distribuem as cestas; com o consumidor final na visita às agroflorestas
pela Organização de Controle Social (OCS) (processo necessário para retirada a
certificação) e indiretamente na compra das cestas e nas feiras, além de uma variada rede
de pessoas que se interessam por produtos orgânicos e ainda, mais especificamente, de
alimentos agroflorestais.
Podemos entender previamente que esta rede em estruturação constitua a
formação de capital social, permitindo que o grupo encontre, cada vez mais, demandas que
os ajudem na reprodução coletiva, como, por meio, da retirada do selo de orgânico, por
exemplo, ou no próprio melhoramento da relação com o crédito pelos assentados.

PRONAF

A partir das entrevistas, constata-se que os assentados acessaram em diferentes datas


entre 2012 e 2015, créditos do Pronaf A ou do Pronaf A/C, linhas criadas justamente para
assentados da reforma agrária.
A função principal de estruturação e modernização foi relativamente cumprida com
a compra, pelos assentados, de “capital fixo” (em uma linguagem economicista) como
reservatório, “tratorito” (micro trator), ferramentas, granja, cozinha, dentre outros. É
possível entender que este capital fixo tem sua função prejudicada, pois, embora ele
permita que o assentado permaneça no lote (armazenando água e produzindo para
subsistência com as ferramentas e mudas, por exemplo), ele se limitou de imediato pela
falta de infraestrutura, não proporcionada pelo Incra.
Outro motivo que limitou o uso deste capital fixo foi o descompasso entre o
conhecimento da assistência técnica do Itesp e a intenção do MST (e compromisso,
estabelecido pelo TAC, de promover o reflorestamento dos 35% de áreas de reserva), de
que a produção fosse agroflorestal. A orientação dos técnicos da assistência técnica (com
início em 2011) eram no sentido da produção que eles já denominam como “tradicional”,
ou seja, uma monocultura sem defensivos agrícolas. Para o este grupo, a monocultura

1720
também é um motivo de rechaço, já que empobrece o solo de qualquer maneira, ao
contrário da produção agroflorestal.
Ambos problemas fizeram com que os assentados continuassem dependendo de
“bicos” (trabalhos esporádicos) na cidade, já que haviam esses entraves ao desenvolvimento
produtivo inicial.

CONCLUSÕES

Esta ilustração evidencia os resultados obtidos na pesquisa:

A figura 1 abaixo mostra as transferências de dinheiro (setas vermelhas), de


alimentos (setas azuis), de serviços (setas verdes) e de financiamento (amarelas); as pretas
significam “em relação à”. As figuras contornadas em azul dizem respeito ao Estado, em
verde, são “independentes ao Estado”, em vermelho, ao MST e em preto, não há destaque
necessário. Por sua vez, o tamanho dos contornos e das setas, representam,
respectivamente, importância e a intensidade. A setas descontinuas significam que havia
interrupção no fluxo.

FIGURA 1: DIAGRAMA DE REDE DA CONSTRUÇÃO DA OFERTA DE


ALIMENTOS ORGÂNICOS AGROFLORESTAIS PELO GRUPO “COMUNA DA
TERRA” DO ASSENTAMENTO MARIO LAGO

Fonte: Elaboração própria.

1721
Se o diagrama for dividido em 4 quadrantes, temos que os dois quadrantes da
esquerda representam o campo da produção de alimentos agroflorestais, com predomínio
da atuação do Estado via políticas públicas. O quadrante da direita acima, representa a
construção dos mercados institucionais (que em 2016 se encontravam inativos) e a venda
direta no bairro, sendo responsável por mais da metade da renda familiar. E, por fim, o
quadrante da direita embaixo, representa o mercado das cestas de alimentos orgânicos
agroflorestais, evidenciando a importância, tanto da ferramenta de intermediação entre
grupo de assentados e consumidor final (a rede social virtual), como dos estabelecimentos
que distribuem as cestas – ambos, dinamizam o mercado para possibilitar seu
funcionamento.
A ilustração foi construída a partir das seguintes conclusões parciais:
1) O que impulsionou de maneira mais efetiva a oferta de alimentos agroflorestais
foram os três projetos: 1) “Projeto Agroflorestar”, executado pela Cooperafloresta-
Associação dos Agricultores Agroflorestais de Barra do Turvo e Adrianópolis e
patrocinado pelo projeto "Petrobras Socioambiental"; 2) “Projeto Candeia:
Agroflorestas iluminando a vida e os caminhos para o renascer das águas do
Aquífero Guarani” financiado pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade
(FUNBIO); 3) "Projeto Renascer das águas do Aquífero Guarani – agrofloresta:
vida, alimento, gente e natureza voltado para a agricultura de Ribeirão Preto e
região" contido no Projeto de Desenvolvimento Rural Sustentável (PDRS) –
Microbacias II, parceria da Secretaria de Meio Ambiente do Estado de São Paulo
com o Banco Mundial, e recursos do Crédito Ambiental Paulista. Eles se
mostraram fundamentais para a construção da oferta de alimentos agroflorestais e,
consequentemente, para a construção da oferta das cestas de alimentos. Com esses
projetos, foi possível formar os Sistemas Agroflorestais (SAFs), tanto em áreas
coletivas com em individuais, além de comprar equipamentos para o grupo, como
caminhão, balança, entre outros.
2) O Pronaf, por sua vez, tem uma relação indireta com a formação da oferta das
cestas de alimentos orgânicos agroflorestais, já que o crédito foi utilizado para a
compra de máquinas e insumos, como pequenas máquinas, mudas e reservatório
de água, que ficaram parados até o início da formação das agroflorestas. A
possibilidade de produção, em seguida à compra com o crédito do Pronaf (linha
destinada à reforma agrária), teve seu potencial limitado pela falta de infraestrutura

1722
no assentamento, como acesso a água, e pela falta de sintonia entre a assistência
técnica e os assentados.
3) A Assistência Técnica também teve seu potencial limitado pelo descompasso entre
a concepção do MST (e o Termo de Ajuste de Conduta do assentamento), em
implantar uma produção orgânica agroflorestal (diversificada em pequeno espaço),
e a concepção do assistente técnico, em defender uma produção orgânica de
monocultura, que no entendimento do MST, também prejudica o solo.
4) Os assentados organizados no grupo “Comuna da Terra”, buscam formas de
comercializarem seus alimentos, através da venda das cestas e por feirinhas no dia
da distribuição das cestas. Para efetivar a venda das cestas, o grupo estabelece
relações com estabelecimentos comerciais, que intermediam a distribuição para o
consumidor final. A relação do grupo, efetivamente, com o consumidor, é
concretizada por meio de uma rede social, onde o consumidor escolhe qual cesta
irá comprar, o ponto de retirada e assina um contrato simbólico, concordando com
alguns termos e garantindo sua participação para além de um consumidor passivo.
5) A Associação “Centro de Formação Socioagrícola Dom Hélder Câmara”, além de
ter sido a Associação que concorreu aos editais do Projeto Candeia e do Projeto
Renascer das Águas do Aquífero Guarani, ela tem participação fundamental no
suporte aos assentados, em relação, tanto à agroflorestal como às vias de
comercialização (além de outras diversas atividades). Os assentados que compõem
o Centro também são os que fizeram o contato com a Cooperafloresta.
6) A venda individual, por meio de outras cooperativas, para os mercados
institucionais, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa
de Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), se mostraram importantes para que
os assentados possuam uma renda mensal garantida e se dediquem a outras
estratégias para geraram renda.

Desta maneira, em diálogo com a sociologia econômica, o principal resultado foi


identificar os fatores para além do econômico, que influenciaram e influenciam a
construção do mercado das cestas e dos alimentos agroflorestais como um todo, no
assentamento Mario Lago. Foram, portanto, quatro fatores principais que impulsionaram
o campo da produção de alimentos agroflorestais, determinante para a criação da oferta, a
saber: 1) Fator Estado/institucional, ou seja, a oferta das 5 políticas públicas de
desenvolvimento rural; 2) Fator capital social do o MST que se utiliza de sua rede de

1723
relações que se concretiza em ganhos econômicos, como o contato com a Cooperafloresta,
que possibilitou se aproximar realmente do Sistema Agroflorestal de produção; 3) O
projeto político do MST que defende o desenvolvimento sustentável e organização coletiva;
e 4) O fator “empreendedorismo”, que proporcionou o desenvolvimento da
comercialização das cestas em seu formato específico.

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1725
O MEIO AMBIENTE E O PEQUENO PROPRIETÁRIO RURAL
ENTRE OS BENEFÍCIOS DO CÓDIGO FLORESTAL E AS ÁREAS
PRIORITÁRIAS DE RESTAURAÇÃO DA VEGETAÇÃO NATIVA
DO ESTADO DE SÃO PAULO

Jorge Brunetti SUZUKI874

Luiz César RIBAS875

Resumo: O pequeno produtor rural recebeu, quando da promulgação do atual Código Florestal,
uma série de benefícios direcionados ao melhor aproveitamento econômico de suas terras,
inclusive com alternativas que excetuam tais propriedades das regras gerais válidas para as áreas de
proteção permanente e de reserva legal. Por sua vez, o Estado de São Paulo, por meio de sua
Secretaria de Meio Ambiente – SMA, especialmente com a Resolução SMA n° 7, de 18 de janeiro
de 2017, tomou por base estudos e mapas elaborados pelo Projeto Biota/FAPESP, e reconheceu
em seu território áreas consideradas prioritárias para restauração da vegetação nativa. Dentre tais
áreas, encontram-se as 250.341 (duzentas e cinquenta mil, trezentas e quarenta e uma) pequenas
propriedades existentes no Estado de São Paulo que estavam devidamente inscritas no Cadastro
Ambiental Rural – CAR quando a própria SMA publicou o Primeiro Relatório e Balanço do
Cadastro Ambiental Rural. Embora instituam alguns preceitos para a preservação ambiental,
especialmente das áreas prioritárias, o quadro normativo das Resoluções SMA não apresenta
qualquer medida que contraponha os preceitos do Código Florestal. O presente estudo, por meio
da análise comparativa do Código Florestal e das Resoluções SMA, bem como por meio de
avaliação de dados referentes às pequenas propriedades rurais do Estado de São Paulo, obtidos
pelo Sistema do Cadastro Ambiental Rural – SICAR, e pela avaliação do material produzido pelo
Biota/FAPESP, avalia o panorama em que se encontra o meio ambiente nas pequenas
propriedades rurais paulistas, onde cabe ao proprietário optar entre o maior proveito econômico
de suas terras, ressalvadas as limitações que a lei impõe, ou atender a preceitos preservacionistas
que, ainda que subentendidos na instituição das áreas prioritárias, dependem da iniciativa particular
para que sejam de fato concretizados.

Palavras-chave: Áreas prioritárias para restauração da vegetação nativa. Cadastro Ambiental Rural.
Código Florestal. Meio ambiente. Pequena propriedade rural.

INTRODUÇÃO

É notório que a questão ambiental no Brasil é tema de constante debate e


preocupação, ao mesmo tempo em que se nota que a legislação vem, recentemente,
mostrando crescente preocupação com a questão dos pequenos produtores rurais,
sobretudo aqueles voltados para a agricultura familiar e de subsistência.

874
Mestrando em Planejamento e Análise de Políticas Públicas pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais
– FCHS da Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho – UNESP. E-mail:
suzukiambiental@gmx.com.
875
Doutor em Engenharia e Professor Assistente na Universidade Estadual Paulista. E-mail:
lcribas@fca.unesp.br.
1726
Por tal razão, o novo Código Florestal, instituído pela Lei Federal n° 12.651, de 25
de maio de 2012 (BRASIL, 2012), que dispõe sobre proteção da vegetação nativa,
apresenta diversos artigos que tratam de maneira diferenciada as áreas de proteção
permanente e de reserva legal das pequenas propriedades rurais, onde, conforme o caso,
o percentual e a forma com que se dá a conservação ambiental beneficiam a maior
exploração da terra.
Já o Estado de São Paulo, embasado por estudos do Projeto Biota/FAPESP,
elaborou, no âmbito da Secretaria de Meio Ambiente – SMA, a Resolução SMA n° 7, de
18 de janeiro de 2017 (SÃO PAULO, 2017), que orienta especialmente a forma com que
se faz a compensação ambiental nas áreas que considera prioritárias para a recomposição
da vegetação nativa em seu território.
Considerando que o Sistema do Cadastro Ambiental Rural – SICAR apresenta uma
série de informações acerca das propriedades que aderiram à iniciativa e forneceram seus
dados, é possível aferir a quantidade de pequenos produtores rurais no Estado de São
Paulo, e o quanto sua parcela representa dentre o total de propriedades desta unidade
federativa.
Com isso, o que se tem é que a agricultura familiar constitui um volume
considerável de propriedades agrícolas paulistas, todas ao mesmo beneficiárias das
exceções do Código Florestal e afetas às peculiaridades do quadro normativo estadual
referente às áreas prioritárias para recomposição da vegetação nativa.
O cenário, portanto, coloca ao pequeno produtor agrícola, e, por conseguinte, ao
meio ambiente, a necessidade de escolher entre a maior produtividade de suas terras ou o
melhor atendimento da sustentabilidade ambiental. É o panorama que se demonstra a
seguir, para, ao final, apresentar as implicações a que estão sujeitos os pequenos
proprietários rurais e a questão ambiental.

O CÓDIGO FLORESTAL E A PEQUENA PROPRIEDADE RURAL

O Código Florestal em vigor, promulgado em substituição à revogada Lei Federal


n° 4.771, de 15 de setembro de 1965 (BRASIL, 1965), estabelece normas gerais sobre a
proteção da vegetação, Áreas de Preservação Permanente – APP e de Reserva Legal – RL,
e disciplina atividades de exploração e controle de produtos florestais e prevenção de
incêndios, além de versar sobre instrumentos econômicos e financeiros.

1727
APP e RL são áreas especialmente protegidas, conceituadas pela União
Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais876 como “an area of
land and/or sea especially dedicated to the protection and maintenance of biological
diversity, and of natural and associated cultural resources, and managed through legal or
other effective means” (PEREIRA; SCARDUA, 2008).
877

Sobre a Lei Florestal e seus preceitos de proteção das Áreas de Preservação


Permanente e da Reserva Legal, vale ainda anotar que:

Por estas áreas sofrerem cada vez mais influência direta das atividades
humanas sobre seus elementos, a Lei n° 12.651/12 vem como um
instrumento para controle das atividades de potencial impacto ao meio
ambiente e aquelas que possam vir a prejudicar a qualidade deste para a
atual e futura geração. Cabe ressaltar que o CFB prevê uma série de leis
voltadas exclusivamente para a pequena propriedade rural, o que revela
a importância e a valorização destes no cenário atual, situação que não
ocorria ou não era vivenciada na aplicação prática da antiga legislação
(BALESTRIN; BALBINOT; VALERIUS, 2013, p. 2886).

De fato, o novo Código Florestal, a partir de seu artigo 4°, define quais localidades
fazem parte das Áreas de Preservação Permanente, bem como a metragem que deve ser
protegida “como forma de mitigar os impactos ocasionados pela ação natural e antrópica
ao meio ambiente” (MURAISHI et al, 2010, p. 1).
Para tanto, o artigo 7° do dispositivo em comento estabelece que toda vegetação
situada em APP deve ser integralmente mantida pelo responsável da respectiva área, não
importa se na condição de mero ocupante, possuidor ou proprietário, sem prejuízo do
dever de promover a recomposição ambiental, quando o caso.
Ações de intervenção ou supressão de vegetação nativa em Área de Preservação
Permanente somente podem ocorrer em caso de utilidade pública, interesse social ou
baixo impacto ambiental, bem como é permitido o acesso de pessoas e animais para
obtenção de água.
Já a Reserva Legal, conceituada como a área situada dentro de uma propriedade
rural cuja função é assegurar o uso sustentável dos recursos naturais do imóvel, bem como
compor processos ecológicos e promover a conservação ambiental878 é disciplinada a partir

876
International Union for the Conservation of Nature and Natural Resources (IUCN)
877
Tradução livre dos autores: uma área de terra e/ou mar especialmente dedicada à proteção e manutenção
da diversidade biológica, e dos recursos naturais e culturais associados, e manejado por meio legal ou outros
eficazes.
878
Artigo 3°, inciso III, do novo Código Florestal.
1728
do artigo 12 do Código Florestal, que estabelece quais áreas de vegetação nativa serão
mantidas e preservadas.
O critério estabelecido pelo legislador como regra geral para a definição da RL é
regional, uma vez que prevê percentuais exclusivos para a Amazônia Legal, ao passo que
as demais propriedades rurais do país deverão manter 20% (vinte por cento) de suas
respectivas áreas cobertas com vegetação nativa.
Nos termos do Código Florestal, é livre a coleta de produtos florestais não
madeireiros, bem como pode haver exploração econômica em Reserva Legal, desde que
mediante manejo sustentável que não descaracterize a cobertura vegetal, assegure a
manutenção da biodiversidade e favoreça a regeneração de espécies nativas.
Com o advento do Cadastro Ambiental Rural – CAR (BRASIL, 2011), registro
público eletrônico obrigatório para todos os imóveis rurais para integrar informações
ambientais e criar um mecanismo de controle, monitoramento e planejamento ambiental,
todas as áreas de Reserva Legal passaram a ser obrigatoriamente registradas, ao lado da
propriedade propriamente dita, por meio de seu cadastro nesta nova plataforma eletrônica.
A especialista em Direito Ambiental Alcione Adame destaca que é:

Aspecto relevante, o proprietário rural se adequar e agir conforme


dispõe a lei. E como se nota, uma das principais atitudes do proprietário
é cadastrar seu imóvel rural perante o órgão competente, e definir no
imóvel as áreas de preservação permanente e de reserva legal (ADAME
et al, 2014).

APP e RL tratam, portanto, de situações em que se preconiza a proteção do meio


ambiente, ainda que, para tanto, imponham limitações ao Direito de Propriedade,
restringido em função dos benefícios de caráter individual e social que propiciam
(CAVEDON, 2003, p.115). É o que explica o advogado Thiago Felipe Avanci:

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito e dever


de todos, constituindo-se em verdadeiro direito difuso ou direito
fundamental de terceira geração. Em função disso, é necessária a
imposição de limites à propriedade, direito típico de primeira geração de
direitos fundamentais, de modo que esta esteja condizente com sua
função social (direito fundamental de segunda geração) e com sua função
ecológica (direito fundamental de terceira geração). O direito individual
perde força em detrimento do direito social e do direito da coletividade.
Bem assim, a reserva legal é uma limitação do direito de propriedade,
situada em uma terceira geração dos direitos fundamentais (AVANCI,
2009, p. 194).

1729
Em que pese a proteção ambiental pretendida pelo Código Florestal, suas regras
gerais encontram uma série de exceções, a maioria delas voltada às pequenas propriedades
agrícolas, uma vez que entendeu o legislador entendeu que a “preservação não pode se
sobrepor à sobrevivência do pequeno produtor rural” (TOURINHO; PASSOS, 2006, p.
221).
Na prática, o Código Florestal menciona mais de 30 (trinta) diferenciais ou
facilidades direcionadas aos pequenos proprietários rurais879. Logo em seu artigo 3°, inciso
V, a norma conceitua pequena propriedade como “aquela explorada mediante o trabalho
pessoal do agricultor familiar e empreendedor familiar rural, incluindo os assentamentos e
projetos de reforma agrária, e que atenda ao disposto no art. 3° da Lei 11.326, de 24 de
julho de 2006”.
A mencionada Lei Federal n° 11.326/06 (BRASIL, 2006) considera agricultor
familiar ou empreendedor familiar rural aquele que pratica atividades agrícolas em área
inferior a 4 (quatro) módulos fiscais, mediante mão de obra predominantemente familiar,
com percentual da renda familiar advindo de tal atividade e com controle diretivo do
estabelecimento ou empreendimento centrado também no núcleo doméstico.
Especificamente quanto aos benefícios acima mencionados, o mesmo artigo 3°,
agora em seu inciso IX, alínea ‘b’, considera de interesse social a exploração sustentável
praticada em pequenas propriedades, o que prontamente autoriza a intervenção em área
de APP e Reserva Legal.
Adiante, em seu artigo 44, parágrafo 4°, o Código Florestal permite que o pequeno
produtor rural institua Cota de Reserva Ambiental – CRA sobre sua área de Reserva Legal.
A CRA é emitida como mecanismo de compensação ambiental, pelo qual aquele que
possui área com vegetação nativa sobressalente em sua propriedade fica autorizado a
manter tal parcela recuperada e utilizá-la para que outros proprietários, que necessitem
compor a RL de suas terras, façam a devida compensação (AZEVEDO; STÁBILE; REIS,
2015).
É dizer que a Reserva Legal pode gerar, a favor do pequeno proprietário, Cota de
Reserva Ambiental: ao mesmo tempo em que a pequena propriedade atende ao Código
Florestal e à preservação do meio ambiente, seu mantenedor é estimulado pela
possibilidade de também usar referida área para receber o benefício da compensação

879
Fonte: PIRES CASTANHO ADVOGADOS. Prazos estabelecidos pelo Novo Código
Florestal: Diferenciais/Facilidades para o Pequeno Produtor Rural. Disponível em:
<http://www.pirescastanho.com.br/tabelas/tabelas.pdf>. Acesso em: 10 set. 2017.
1730
ambiental. Assim, “a exploração comercial do reflorestamento pode ser uma atividade
bastante produtiva para o produtor rural (...). Em determinadas situações pode ser mais
lucrativa que muitas culturas” (SILVA; MIRANDA; CORDEIRO, 2008).
Na parte final do Código Florestal, especificamente a partir de seu artigo 52, a
agricultura familiar passa a ser tratada em capítulo próprio, que estabelece que a
intervenção ou supressão de APP e RL para atividades eventuais ou de baixo impacto fica
autorizada mediante simples comunicação ao órgão ambiental, desde que o imóvel esteja
devidamente inscrito no CAR.
Prossegue, autorizando que o plantio de árvores frutíferas, ornamentais ou
industriais pode ser usado para compor a área de Reserva Legal, a despeito da regra geral,
que fala somente em vegetação nativa. O que se vê, na prática, é uma série de artigos que
facilitam ao pequeno produtor rural a exploração econômica das áreas especialmente
protegidas de suas terras.
Já o artigo 61-A reduz as APPs nas margens de cursos d’água e no entorno de rios
e lagos, de modo a permitir a continuidade de atividades agrossilvipastoris em áreas
consolidadas, que são aquelas já antropizadas antes de 22 de julho de 2008, hipótese em
que incorrem grande parte das propriedades rurais do Estado de São Paulo.
Quando traça suas exceções ao pequeno produtor rural, o novo Código Florestal
atua de modo a substituir a linearidade adotada na norma anterior, que tratava todos os
casos de incidência de APP e RL de acordo somente com as características ambientais.
Referida situação por diversas vezes recaiu num “choque de interesses com as práticas
agrícolas de grande parcela de pequenos produtores rurais localizados em áreas
ecologicamente sensíveis” (ALARCON; BELTRAME; KARAM, 2010, p. 296).
São diversos, portanto, os dispositivos do novo Código Florestal que beneficiam o
pequeno produtor rural. Contudo, a despeito da preocupação ambiental que permeia o
regramento geral, quando trata da agricultura familiar resta facultado a cada pequena
propriedade, ao final, optar pela maior produtividade e exploração de suas terras, ou seguir
voluntariamente o regulamento geral e tomar medidas ambientalmente mais benéficas.

AS ÁREAS PRIORITÁRIAS DE PRESERVAÇÃO DA VEGETAÇÃO NATIVA DO


ESTADO DE SÃO PAULO

A partir da Resolução SMA n° 7, de 18 de janeiro de 2017, emitida pela Secretaria


de Meio Ambiente, o Estado de São Paulo definiu, dentro de seu território, as áreas
consideradas prioritárias para restauração da vegetação nativa. Embora referida norma

1731
trate, a priori, de parâmetros para compensação ambiental e de supressão e intervenção
em Áreas de Preservação Permanente, seu Anexo I traz ao corpo da norma o seguinte
mapa:

O referido mapa apresenta as áreas prioritárias para restauração da vegetação nativa


do Estado de São Paulo, e foi elaborado a partir de estudos realizados pelo Projeto Biota-
FAPESP (Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação, Restauração e Uso
Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo), lançado em 1999 com objetivo de
conhecer, mapear e analisar a biodiversidade paulista, avaliar as possibilidades de
exploração sustentável e formular políticas de conservação dos remanescentes florestais880.
Foi o 17° (décimo sétimo) instrumento normativo promulgado no Estado de São
Paulo que nominalmente mencionava o Programa. Vale destacar que, além do mapa
elaborado durante os estudos, diversos parâmetros insertos no corpo da Resolução SMA
fazem parte do livro “Diretrizes para Conservação e Restauração da Biodiversidade no
Estado de São Paulo” (RODRIGUES; BORONI, 2008), obra também lançada com apoio
da FAPESP.
O intuito da Resolução SMA n° 7/2017, em atendimento inclusive aos preceitos
gerais do Código Florestal, é, mormente, fazer com que o mecanismo de compensação

880
Fonte: BIOTA-FAPESP (Brasil). Sobre o programa. Disponível em:
<http://www.biota.org.br/biotafapesp/sobre-o-programa/>. Acesso em: 09 set. 2017.

1732
ambiental ocorra sempre dentro dos limites do Estado de São Paulo, e preferencialmente
beneficiando áreas cujo grau de prioridade para regeneração seja maior que o da região
afetada.
O grau de prioridade para regeneração de vegetação nativa, proposto no mapa
anexo à norma, aparece no artigo 4° da Resolução, que calcula o fator de compensação
ambiental de acordo com o estágio da vegetação a ser suprimida e o nível prioritário em
que se insere a área, que pode ser baixo, médio, alto ou muito alto.
O ex-coordenador do Projeto Biota Ricardo Ribeiro Rodrigues, em entrevista
concedida à Agência FAPESP, explicou que:

As regras da Resolução são muito bem feitas e levam em consideração o


grau de conservação da vegetação nativa que será suprimida e direciona
as compensações para as áreas indicadas pelos mapas como de alta
prioridade para conservação. Assim sendo, determina que a
compensação que deverá ser feita será de 1,2 a 6 vezes maior que a área
a ser desmatada. Nunca será inferior (TOLEDO, 2017).

A título exemplificativo, uma supressão de vegetação primária em estágio avançado


de regeneração, inserta numa propriedade localizada em área considerada de muito alta
prioridade para regeneração, deverá compensar ambientalmente o equivalente a 6 (seis)
vezes a área suprimida881.
A mesma metodologia de compensação ambiental também se aplica para casos de
intervenção em Área de Preservação Permanente desprovidas de vegetação, cobertas por
vegetação pioneira ou exótica ou que envolvam corte de árvores nativas isoladas. Por
exemplo, uma intervenção em APP de área classificada como de média prioridade para
restauração da vegetação nativa será compensada em 1,4 (um vírgula quatro) vezes a região
autorizada para antropização.
Importante notar que nem a Resolução, nem o mapa elaborado pelo Projeto Biota-
FAPESP contemplam as pequenas propriedades rurais. Não há exceção relacionada ao
tamanho da gleba para a classificação do grau de prioridade para restauração da vegetação
nativa, tampouco se concede qualquer espécie de privilégio no caso de compensação
ambiental efetuada pelo agricultor familiar.

881
O caso mencionado no exemplo enquadra-se no artigo 4°, parágrafo 3°, inciso IV, da Resolução SMA n°
7/2017.

1733
CONCLUSÃO: A PEQUENA PROPRIEDADE RURAL DO ESTADO DE SÃO
PAULO ENTRE OS BENEFÍCIOS DO CÓDIGO FLORESTAL E A ESTRITA
PRESERVAÇÃO AMBIENTAL

É nítido, de pronto, que a Resolução do Estado de São Paulo guarda em si um viés


exclusivo de proteção ambiental, ao passo que o novo Código Florestal, ainda que siga, via
de regra, a mesma linha, apresenta também uma evidente preocupação com a situação
econômica dos pequenos proprietários rurais e da agricultura familiar.
Dentro de tal quadro, há que se considerar também que a Secretaria do Meio
Ambiente do Estado de São Paulo publicou o documento denominado “1° Relatório –
Balanço do CAR em SP” (SÃO PAULO, 2016), que apresenta resultados e análises
preliminares realizadas com os dados declarados no Sistema de Cadastro Ambiental Rural
– SICAR paulista até o dia 5 de maio de 2016.
Referido relatório informa que o Estado de São Paulo possui 90,23% (noventa
vírgula vinte e três por cento) de seus imóveis devidamente inscritos no CAR, dos quais
250.341 (duzentos e cinquenta mil, trezentos e quarenta e um) são pequenas propriedades
rurais. É dizer que as terras dos pequenos produtores agrícolas correspondem a 91,63%
(noventa e um vírgula sessenta e três por cento) das propriedades cadastradas do Estado.
A quantidade de pequenas propriedades do Estado de São Paulo corresponde,
portanto, a um percentual absolutamente relevante e significativo. Significa, também, que
o conflito entre os preceitos albergados em cada uma das normas apresentadas ao longo
deste estudo recai sobre a maioria absoluta das terras paulistas882.
É certo que os preceitos do Código Florestal, complementados pela Resolução
SMA, já mostram resultado prático. Somente a adesão ao CAR, por si, significa que os
proprietários rurais, pequenos ou não, estão afetos ao registro de suas áreas de Reserva
Legal e APP. Não obstante:

A restauração das matas ciliares está sendo proposta para todo o Estado
de São Paulo, o que permitirá conectar a maioria dos fragmentos
remanescentes do estado e no caso dos melhores fragmentos, essa
conexão poderia ser feita fora da faixa ciliar ou também através da
restauração da mata ciliar, mas numa largura aquém daquela definida na
legislação vigente, permitindo que esse excedente seja compensado
como Reserva Legal das propriedades da região (RODRIGUES;
BORONI, 2008, p. 133).

882
O relatório do CAR informa que as áreas das pequenas propriedades rurais somada corresponde a 86,97%
(oitenta e seis vírgula noventa e sete por cento) do total das terras inscritas no SICAR.

1734
Ocorre que o cenário proposto pelo excerto acima versa sobre um quadro ideal de
preservação ambiental, possivelmente pretendido pelo legislador, mas cuja obtenção de
fato não é nem simples, sem imediata. Remontando novamente ao pequeno produtor
rural, é certo que grandes áreas do Estado de São Paulo foram antropizadas ao longo do
curso histórico de colonização, expansão cafeeira, industrial, pecuária e sucroalcooleira,
então quando se fala em recomposição de áreas especialmente protegidas, o que se
pretende é que a agricultura familiar deixe de explorar parte de suas glebas e, ainda,
responsabilize-se pela recomposição vegetal (NEUMANN; LOCH, 2002, p. 247).
Parte da doutrina entende tal hipótese inviável, e defende que o particular não deve
assumir um custo de restauração ambiental a cujo desmatamento não deu causa. Tal
corrente aduz que:

Compreende-se a necessidade de se preservar áreas para a manutenção


do meio ambiente, mas, difícil de assimilar é a imposição do Estado para
que o proprietário assuma sozinho o custo com os projetos de
preservação e a implantação destes. Mesmo porque, estando instaladas
estas áreas de preservação nas propriedades, o proprietário (produtor)
passará a prestar mais um serviço, este de caráter permanente, à
sociedade e ao meio ambiente, sem gratificação, uma vez que será ele
quem irá zelar e proteger tais áreas da agressão de intrusos e malfeitores
(FREIRE JÚNIOR; SALES; FRANCO, 2012).

Aqui não se pretende aprofundar a discussão acadêmica acerca da competência


para arcar com o custo da recomposição ambiental. A prática consagrou que cabe ao
proprietário todos os ônus e encargos de matéria ambiental que se apliquem sobre suas
terras, e é a partir daí que este trabalho pretende contribuir para o debate da situação do
agricultor familiar entre as normas federal e estadual apresentadas.
Isso porque, de início, quando o legislador incrementa as áreas a serem
ambientalmente protegidas, por meio inclusive da restrição administrativa do uso da
propriedade, os custos inerentes à inovação, diretos, com a atividade de recomposição
propriamente dita, e indiretos, refletidos na perda futura da terra que se deixa de explorar,
recaem diretamente sobre o produtor.
Inclusive quando o pequeno proprietário se vale do benefício da facilidade de
intervenção e supressão em APP, é importante lembrar que o Código Florestal determina
que tais atividades devem ser autorizadas pelo órgão ambiental estadual. No caso paulista,
referidas autorizações implicam, necessariamente, em compensações ambientais que, nos
termos da Resolução SMA n° 7/2017, podem determinar o investimento na recuperação

1735
de áreas até seis vezes maior que a explorada, o que somente aumenta o ônus do agricultor
familiar.
Há que se sopesar, contudo, que o gasto inerente à pequena propriedade rural
tende a ser menor, em função dos benefícios oferecidos pelo Código Florestal,
especialmente quando reduz a metragem de determinadas espécies de áreas de
preservação permanente. Neste caso, a crítica passa à qualidade do meio ambiente, uma
vez que “apesar de alguns avanços pontuais, há significativa redução da proteção ambiental”
(ESALQ, 2012, p. 93).
Cabe, portanto, ao agricultor familiar optar pelo meio ambiente ou pela maior
exploração de sua propriedade. Vale lembrar que a legislação considera como premissa
válida que o pequeno produtor necessariamente perfaz parte de seu sustento a partir de
suas terras. Ou seja, a situação parte do confronto entre a subsistência do lavrador e a
necessidade de recomposição ambiental.
O Código Florestal propõe ao pequeno produtor a alternativa de usar suas áreas de
Reserva Legal como Cota de Reserva Ambiental, que permitiria um retorno financeiro pelo
investimento em preservação ambiental. Entretanto, referido instituto é pouco difundido,
como ocorre em muitos aspectos da educação ambiental, que carece de profundidade,
bem como o expediente de valer dessas cotas para compensação de RL não é, na prática,
efetuado e aproveitado como pretendeu o legislador.
E aqui não há que se criar um prejulgamento sobre o pequeno produtor rural caso
sua escolha seja pelo retorno imediato da exploração da propriedade. Entre um ônus
ambiental e uma restrição ao uso da terra, contraposto à opção de se valer de cotas
excepcionalmente reduzidas para suas áreas de preservação permanente, é perfeitamente
compreensível que prevaleça o sustento e a subsistência familiar.
O avanço do legislador federal ao contemplar a situação econômica do trabalhador
do campo é louvável. Assim como o são os resultados do Projeto Biota-FAPESP para a
questão ambiental do Estado de São Paulo, especialmente quando influencia no
reconhecimento de áreas prioritárias para recuperação da vegetação.
O que se espera, para o momento futuro, é que a legislação aponte para soluções
que conjuguem, de maneira efetiva, ambas as preocupações, levando à pequena
propriedade mecanismos que perfaçam suas necessidades e assegurem verdadeiramente o
desenvolvimento sustentável.

1736
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1996, e 11.428, de 22 de dezembro de 2006; revoga as Leis nos 4.771, de 15 de setembro
de 1965, e 7.754, de 14 de abril de 1989, e a Medida Provisória no 2.166-67, de 24 de
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1739
O PAPEL DO JUDICIÁRIO NA REDISTRIBUIÇÃO DE TERRAS E
REFORMA AGRÁRIA: POTENCIALIDADES E ENTRAVES

Bárbara El KHALIL883

Resumo: A Constituição Federal de 1988 apresenta uma peculiaridade: seu texto está carregado de
políticas públicas. Esse fato somado à mudança institucional passada pelo Poder Judiciário no
século XX - implementação e fiscalização de policies - precisa ser melhor observado. Diante de um
contexto político conturbado, em meio a questionamentos sobre as instituições políticas brasileiras
e, especificamente, questionamentos sobre a atuação do Poder Judiciário, acreditamos ser
imprescindível compreender como tal poder atua em relação às políticas de distribuição fundiária.
Nesse sentido, o objetivo deste paper é discutir a atuação do Judiciário em relação às políticas
públicas, especificamente, as políticas de redistribuição de terras e reforma agrária. Por isso, é
preciso apontar a distinção entre políticas de redistribuição fundiária e políticas de reforma agrária:
enquanto as redistribuições fundiárias estão estritamente relacionadas à distribuição de terras que
não cumprem sua função social, a reforma agrária extrapola a questão da propriedade e se volta
também para a manutenção da produção e reprodução social camponesa. O trabalho está dividido
em quatro partes, sendo a primeira uma introdução. Na segunda parte aponto algumas reflexões
sobre a Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário e sua atuação em relação às políticas
públicas. A terceira parte se volta para compreender as interfaces existentes entre a Justiça e as
políticas de redistribuição de terras e reforma agrária, focando potencialidades e entraves oriundos
dessa relação. Por fim, teço minhas considerações finais relacionando estudos que abarcam o
Judiciário e políticas públicas e a realidade da aplicação e implementação das políticas de
distribuição fundiária brasileiras.

Palavras-chaves: Reforma Agrária. Políticas Públicas. Judiciário.

INTRODUÇÃO

O cenário político brasileiro atual está fervilhando. Desde o processo de


impeachment sofrido pela presidente Dilma Rousseff, que se iniciou no final de 2015 e se
alastrou até agosto de 2016, muitas reflexões invadiram a cabeça dos cientistas políticos.
Questões relacionadas à validade das acusações que geraram o impedimento da presidente,
reflexões sobre a atuação dos parlamentares brasileiros frente às sessões que pautavam o
tema, o papel que atores políticos externos ao Congresso exerceram antes, durante e após
o golpe884. Poderíamos enumerar diversos outros questionamentos, mas, o que nos parece
ser central é observar a atuação do Poder Judiciário brasileiro diante dessa conjuntura. O
Jornal Le Monde Diplomatique publicou em 15 de abril de 2016 uma notícia, intitulada

883
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), mestranda no Programa de Pós Graduação em Ciência
Política (PPGPol/UFSCar), bolsista CAPES. E-mail: babiskhalil@gmail.com.
884
É importante evidenciar nosso posicionamento em relação ao processo de impeachment de Dilma Roussef:
o compreendemos como um golpe parlamentar.
1740
“O impeachment e o Judiciário na checagem dos fatos” que elucida bem os
questionamentos acerca da atuação do poder em relação ao processo:

Ao acompanhar as notícias deste thriller policial que se tornou o segundo


processo de impeachment da história do Brasil, não faltam holofotes
para o Judiciário, seja para o Supremo Tribunal Federal (STF) ou para
a operação Lava Jato. E, quando falamos de STF, há sempre a
expectativa de baliza em relação a uma corte que decide sobre as regras
do jogo. O último episódio ocorreu nesta quinta-feira, dia 14 de abril,
quando o STF julgou a ação da Advocacia-Geral da União (AGU) sobre
o adiamento da votação do impeachment e a constitucionalidade do
sistema de contagem de votos que o plenário da Câmara dos Deputados
vai utilizar no domingo, dia 17. Essas e outras questões acentuaram a
discussão sobre o papel do Judiciário na crise política e mesmo sobre sua
posição no sistema de freios e contrapesos que equilibra os Três
Poderes. O debate está aberto. Por diversos motivos, não se pode
imaginar que a política não perpasse a Justiça. No entanto, quando se vê
o atual cenário, os questionamentos quase sempre se voltam para dois
pontos: a interferência, indevida ou não, do Judiciário no que seria
atribuição do Legislativo e do Executivo – como pode alegar quem
contestou a apreciação do rito do impeachment pelo Supremo. E, em
outro turno, tem-se os argumentos sobre a exacerbação do Judiciário
dentro de suas próprias competências. O caso da liberação das gravações
feitas na Lava Jato é o exemplo mais contundente desse ponto (LE
MONDE DIPLOMATIQUE, 2016, grifos próprios).

O ponto central que nos chama a atenção: o questionamento sobre o papel efetivo
do Judiciário no sistema de divisão de poderes. A notícia questiona a atuação do poder em
relação ao impeachment de Dilma Rousseff e à operação Lava Jato, mas poderia este
questionamento se estender à outras áreas de atuação da instituição? Diante desta
inquietação passamos a refletir sobre o papel do judiciário na redistribuição de terras e
reforma agrária. Para isso, precisamos primeiro voltar à constituição do poder e suas
atribuições na atualidade, além de sua relação com as políticas públicas, para
posteriormente compreender as interfaces entre Judiciário e distribuição de terras.
Temos que voltar à Constituição Federal de 1988 e sua peculiaridade em relação
às anteriores: possuir um texto carregado de policies, que envolvem ativamente o Poder
Judiciário, o transformando em implementador e fiscalizador de políticas públicas. Essa
nova forma de atuação se relaciona com as mudanças passadas pela instituição em sua
trajetória, que acabam por atribuir ao setor poder político. O judiciário passa a ser
responsável pela efetivação de direitos sociais e coletivos e por isso, precisa redefinir suas
finalidades institucionais.

1741
Compreendendo as mudanças institucionais passadas pelo poder, Matthew Taylor
(2007) se propõe a discutir a relação entre o poder e as políticas públicas no Brasil. Alguns
elementos são centrais para compreender essa relação: o controle de constitucionalidade
das leis, além das possibilidades de reivindicação por parte da sociedade civil e de atores
políticos. Como já afirmamos, as atribuições assumidas pelo judiciário a partir de 1988
colocam o poder em relação direta com a formulação e implementação de políticas
públicas garantidas pela carta constitucional. Entre elas, as políticas agrícolas, fundiárias e
de reforma agrária, regulamentadas pelos artigos 184 a 191885 da Constituição Federal de
1988.
A reforma agrária é uma policy garantida pela carta. Aqui está a intersecção entre o
Poder Judiciário e a redistribuição de terras, é a instituição que garante a desapropriação
de terras. Mas a atuação do poder apresenta entraves: atividade tendenciosa dos Tribunais
de Justiça no que se refere à litígios envolvendo disputas territoriais; não assimilação da
realidade social dos atores envolvidos no litígio; morosidade do aparelho judiciário;
deslocamento dos magistrados em relação àqueles que estão lutando por terra.
Se por um lado os entraves percebidos na atuação do poder nos levam a
desacreditar na instituição, por outro, a atuação do Poder Judiciário nas políticas de
redistribuição de terras apresenta potencialidades. A alternativa que se apresenta é retomar
o caráter transformador que o motivou à redefinir suas finalidades institucionais e a se
transformar em um agente de proteção de direitos civis, sociais e políticos. Além,
potencializar o diálogo entre sociedade civil, atores políticos e judiciário pode acarretar no
aprimoramento das políticas públicas de distribuição de terras.
Como já apontamos, o presente artigo tem como objetivo compreender a atuação
do Poder Judiciário nas políticas de redistribuição de terras e reforma agrária, a fim de
compreender seus entraves e suas potencialidades. Nesse sentido, o trabalho está dividido
em quatro partes, sendo a primeira esta introdução. Na segunda parte desenvolvemos as
reflexões aqui iniciadas sobre a Constituição Federal de 1988, o Poder Judiciário e sua
atuação em relação às políticas públicas. A terceira parte se volta para compreender as
interfaces existentes entre a Justiça e as políticas de redistribuição de terras e reforma
agrária, focando potencialidades e entraves oriundos dessa relação. Por fim, teçemos nossas

885
Para maiores informações, conferir a Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/518231/CF88_Livro_EC91_2016.pdf?sequence=1?co
ncurso=CFS%202%202018 .
1742
considerações finais relacionando estudos que abarcam o Judiciário e políticas públicas e a
realidade da aplicação e implementação das políticas de distribuição fundiária brasileiras.

CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, O PODER JUDICIÁRIO E AS POLÍTICAS


PÚBLICAS

A trajetória política brasileira contém uma especificidade: muitas cartas


constitucionais editadas ao longo de suas mudanças de regime político e quebras
institucionais. Desde de a independência do país, em 1822 até hoje, 7 constituições
diferentes foram adotadas (ARANTES, COUTO, 2008). Apesar deste histórico de
rupturas e mudanças políticas, a Constituição Federal de 1988 completa em 2017 vinte e
nove anos de existência.
A Assembleia Nacional Constituinte de 1987/88 foi responsável pela discussão e
finalização do texto da Constituição Federal de 1988. Foram 583 dias de trabalho de
congressistas e atores extraparlamentares, dois regimentos internos e muitas disputas
políticas entre a Comissão de Sistematização e o “centrão” do PMDB. Depois de 20 meses
de trabalho e 9 anteprojetos constitucionais, em outubro de 1988 a Carta foi promulgada
(ROCHA, 2013).
A Constituição Federal brasileira apresenta em seu escopo dispositivos
fundamentais e dispositivos veiculadores de políticas públicas. Os dispositivos
fundamentais são os que definem e regulamentam as “1) definições de Estado e Nação; 2)
direitos individuais de liberdade e de participação política; 3) regras do jogo e 4) direitos
materiais orientados para o bem-estar e a igualdade” (ARANTES, COUTO, 2008, p. 34)
e compõe os quatro elementos da polity. As cláusulas constitucionais que não apresentam
esses elementos são os dispositivos veiculadores de políticas públicas, conhecidos como
policies. Aqui podemos apontar a diferença da Carta de 1988 em relação às anteriores, seu
texto está carregado de políticas públicas que deixaram o plano governamental e passaram
a se consolidar no texto constitucional.
A integração de políticas públicas ao texto constitucional levanta um
questionamento: qual o papel que o poder judiciário assume frente à implementação e
fiscalização dessas políticas? Para compreender tal questão torna-se necessário
compreender as mudanças passadas pelo judiciário ao longo de sua trajetória. Arantes
(2004) aponta um caminho para a realização dessa digressão: olhar os modelos
constitucionais originados pela Constituição Americana de 1787 e pela Revolução Francesa
de 1789.

1743
Embora os processos que levaram à elaboração do texto constitucional
americano de 1787 e à Revolução Francesa iniciada em 1789 tenham
sido influenciados pelo pensamento político liberal que corria o mundo
à época, o fato é que eles deram origem a dois modelos constitucionais
bastante distintos, incluindo diferentes concepções de justiça. Por seu
impacto histórico, é possível tomar França e Estados Unidos como dois
modelos principais de definição do Judiciário moderno, que inspiraram
a formação dos demais Estados liberal-democráticos nos séculos XIX e
XX: a experiência francesa, mais republicana do que liberal, modernizou
a função de justiça comum do Judiciário mas não lhe conferiu poder
político; a americana, mais liberal do que republicana, não só atribuiu à
magistratura a importante função de prestação de justiça nos conflitos
entre particulares, como elevou o Judiciário à condição de poder
político. (ARANTES, 2004, p. 30)

É o modelo americano que inspira a atuação do Poder Judiciário como poder


político na modernidade. O Judiciário passa a controlar os atos do Executivo e leis
produzidas pelo Legislativo. Em outras palavras, o Judiciário passa a exercer o controle de
constitucionalidade das leis, ele agora participa do processo decisório de estabelecimento
de leis e atos executivos, podendo impor comportamentos, autorizar ações de governos e
gerar políticas públicas (ARANTES, 2004).
Torna-se central fazer uma observação: é importante ressaltar que ao longo do
século XX, muitos países promulgaram novos textos constitucionais inspirados na
experiência dos Estados Unidos. As formas de controle constitucional foram se
modificando e o Poder Judiciário passou a se organizar de formas diferentes. O controle
constitucional passou a ser exercido de modo difuso ou concentrado. No modelo de
controle constitucional difuso todas as instâncias do poder Judiciário podem dizer se uma
ação é inconstitucional, enquanto no modelo de controle constitucional concentrado,
apenas determinadas instâncias, as Cortes Constitucionais, possuem essa competência. O
Judiciário brasileiro se caracteriza por compor um sistema de controle constitucional
híbrido. No Brasil, o Supremo Tribunal Federal (STF) - instância máxima do Judiciário -
não é o único que pode exercer a ação de controle da constitucionalidade, mas ele pode,
se necessário, tornar a sua decisão válida a todas as outras instâncias (ARANTES, 2004).
Esta observação nos auxilia a compreender uma das formas pelas quais o Judiciário
brasileiro se expande e se constitui definitivamente como poder político. Outro ponto
importante de observação, e central ao nosso trabalho, é a transformação da atuação do
poder, que passa a ser uma “instância de efetivação de direitos sociais e coletivos”
(ARANTES, 2004, p. 49).

1744
Esta transformação pode ser analisada por dois enfoques que se complementam, o
sociológico e o institucional. Os teóricos do enfoque sociológico argumentam que o
desenvolvimento do Estado Social modifica as noções de Direito e Justiça. Nesse sentido,
o Estado deixa de garantir apenas a manutenção da ordem e liberdade e passa a ser
instrumento de redução de desigualdades sociais, tornando-se responsável por intervir na
economia quando necessário e disponibilizar serviços públicos mais abrangentes à
população. O poder judiciário acompanha a transformação e também se modifica, ele
passa a ser acionado para garantir que a nova legislação social seja aplicada. Os teóricos da
perspectiva institucional apontam que os aspectos sociais, jurídicos e institucionais
modificados pelas transformações do Estado são importantes para pensar a atuação do
Judiciário, mas não se pode esquecer as transformações que aconteceram nas regras
processuais, que colocaram a Justiça ao alcance dos atores sociais coletivos (ARANTES,
2004).
O Judiciário se expande muito no século XX, deixando de ser apenas instância de
solução de conflitos individuais e passa ser instância de resolução de conflitos coletivos e
sociais, passa a ser implementador de direitos orientados pela perspectiva da igualdade,
por isso a necessidade de redefinição de suas finalidades institucionais se torna latente. No
caso brasileiro, as transformações do Judiciário começam a acontecer na Era Vargas, com
as legislações trabalhista e eleitoral, mas é na Constituição Federal de 1988 que todo o
processo de transformação se consolida (ARANTES, 2004). A partir de 88 o Judiciário
brasileiro assume de fato papel importante frente à fiscalização e garantias dos direitos
sociais coletivos, muitos deles, organizados na carta constitucional como policies, as
políticas públicas.
Diante desta nova configuração do poder, as análises sobre a relação entre
Judiciário e políticas públicas no Brasil passam se desenvolver. Taylor (2007) se propõe a
apontar os impactos que os tribunais podem exercer na formulação e implementação de
políticas públicas no plano federal. O autor analisa a atuação do Judiciário no plano das
políticas públicas a partir de 4 dimensões centrais:

Em que momento e de que maneira o Judiciário pode influenciar as


políticas públicas? 2. Quais as motivações do Judiciário na hora de tentar
resolver disputas sobre políticas públicas? 3. Como os atores externos ao
Judiciário usam-no para atingir seus objetivos políticos? 4. Quais as
consequências da intervenção do Judiciário nas políticas públicas?
(TAYLOR, 2007 p. 240-241)

1745
Em relação à primeira dimensão, percebe-se que o Judiciário tem possibilidade de
influenciar os resultados das políticas públicas tanto no momento de deliberação como de
implementação. Ele se utiliza de diferentes estratégias, como sinalizar as fronteiras
permitidas para alterar uma política pública, dialogar com outros atores políticos a fim de
sustentar seus posicionamentos em relação à política, atrasar as decisões a respeito de
determinada política, controlando a agenda de deliberação sobre ela, e até mesmo, alterar
ou rejeitar as políticas após sua implementação (TAYLOR, 2007).
Sobre a segunda dimensão, o autor aponta a existência de muitas políticas públicas
sendo contestadas e a maior ou menor importância delas motiva a atuação dos juízes. Além,
as características das políticas públicas ajudam a determinar sua judicialização. Nesse
sentido, a judicialização é uma extensão da política, onde grupos politicamente minoritários
podem recorrer. A terceira dimensão está estritamente relacionada com a segunda, a
deliberação das políticas públicas no âmbito do judiciário não está ligada somente aos
juízes. Principalmente depois de implementadas, as políticas públicas podem ser
contestadas por diversos atores políticos e da sociedade civil. Nesse sentido, o Judiciário
acaba se tornando um ponto de contestação e veto importante tanto para forças opositoras
que estão dentro do Executivo e Legislativo, como espaço de contestação de grupos
minoritários da sociedade civil. Além de se tornar um instrumento político para forças
políticas opositoras que tentam protelar a implementação de determinadas políticas
(TAYLOR, 2007).
Quando discute a última dimensão, o autor aponta que o crescente papel do
Judiciário nas políticas públicas traz consequências. A dúvida é compreender se o impacto
da atuação do poder nas políticas públicas foi reativo ou proativo em relação às demandas
do Executivo. Taylor (2007) aponta que os estudos sobre essa questão ainda precisam ser
melhor estudados, mas apresenta como alternativa compreender a atuação do Judiciário
como proativa. Seu questionamento se volta para entender porque o Executivo acataria as
decisões do Judiciário. Como resposta aponta explicações possíveis, mas reitera a
necessidade de análises mais profundas sobre esse aspecto (TAYLOR, 2007).
As contribuições de Taylor (2007) são importantes para compreender o poder
político exercido pelo Judiciário por conta de suas atribuições. O controle de
constitucionalidade e as possibilidades de reivindicação da sociedade civil e atores políticos
são centrais nesse processo.

1746
Ele [o Judiciário] decide quais regras são legítimas e estão em
concordância com as leis locais ou a Constituição, assim como quais
ações (ou omissões) representam aberrações ou infrações. Como
resultado, os tribunais influenciam o curso das políticas públicas:
tribunais e juízes influenciam o tipo de políticas que são implementadas
e julgam a legalidade dessas políticas dentro da sua visão das regras legais
existentes e das normas e tradições vigentes. (TAYLOR, 2007, p. 248)

Diante das discussões apresentadas, pode-se afirmar a importância que o poder


Judiciário ganha ao longo do século XX, e especialmente a partir da Constituição Federal
de 1988. Suas atribuições o tornam elemento central para compreender a formulação e
implementação de políticas públicas. Agora, o questionamento central do trabalho pode
ser desenvolvido: como o Judiciário brasileiro atua no processo de redistribuição de terras
e luta por reforma agrária no país?

INTERFACES DO JUDICIÁRIO COM AS POLÍTICAS DE REDISTRIBUIÇÃO


DE TERRAS E REFORMA AGRÁRIA

O Brasil apresenta um índice elevado de concentração fundiária, em outras


palavras, temos uma grande quantidade de terras nas mãos de poucos donos886. Convém
dizer que a estrutura agrária brasileira é assim desde a colonização, e por toda a história do
país existiram organizações e movimentos sociais que reivindicam acesso às terras. Desde
os primeiros movimentos de resistência contra a escravização de indígenas e africanos,
passando pelas lutas messiânicas, pelo cangaço, pelas ligas camponesas até chegar nas
organizações contemporâneas campesinas pode-se notar como a questão da posse da terra
é, de alguma forma, presente (FERNANDES, 2001). Esta pauta não deixou de entrar na
arena política, mesmo que de maneira conturbada.
As primeiras reivindicações do campesinato no cenário político foram alvo de
condenações públicas e ações repressivas do Estado, mas a resistência camponesa persistiu.

886
Importante apontar que a concentração de terras é uma característica presente na estrutura agrária brasileira
desde a colonização até os dias atuais. Girardi (2008), em sua tese de Doutorado, calcula o Índice de Gini a
partir dos dados da estrutura fundiária de duas fontes, o INCRA e o DATALUTA. Este índice adaptado aos
dados sobre a estrutura fundiária nos mostra o grau de concentração de terras no país. O índice apresenta
números entre 0 e 1. Quanto mais próximo do 0, menos concentradas são as terras, quanto mais próximo
do 1, mais concentradas são. Em 1992, o marcador era 0,826; em 1998 era 0,838; em 2003 era 0,816. Leal
(1978) não utiliza o índice de Gini para apontar a concentração fundiária no período da Primeira República,
mas apresenta dados importantes sobre o censo agrícola de 1940: os proprietários de grandes porções de
terras representam apenas 25,01% do total de proprietários, enquanto os pequenos proprietários
1747 nas mãos dos grandes proprietários somam 73,1%
representam cerca de 74,83%. Mas as áreas concentradas
da área total de propriedades registradas. Basicamente, “os médios e grandes proprietários representam
pouco mais de um quarto dos donos de terra e suas propriedades cobrem quase nove décimos da área total
dos estabelecimentos agrícolas” (LEAL, 1978, p. 29).
As organizações cresceram e suas ações passaram a ter cada vez mais força política, e o
diálogo com o Estado passou a ser feito. Como resultado deste processo, surgiram
iniciativas governamentais que tentaram, de alguma forma, atender às reivindicações e
demandas dos movimentos. O tema da posse da terra e da produção e reprodução social
camponesa passou a ser pautado por políticas públicas e a desapropriação de terras para a
realização de assentamentos é uma delas (MEDEIROS, 2002).
É importante apontar a diferença entre redistribuição de terra e reforma agrária.
Enquanto a primeira está estritamente relacionada à desapropriação por parte do Estado
de terras improdutivas e distribuição para camponeses, a segunda, a reforma agrária,
extrapola a questão da propriedade, engendrando também as condições de vida da
população rural. Distinção feita, torna-se central compreender melhor o que é reforma
agrária:

A reforma agrária constitui-se (...), em um conjunto de ações


governamentais realizadas pelos países capitalistas visando modificar a
estrutura fundiária de uma região ou de um país todo. Ela é feita através
de mudanças na distribuição da propriedade e ou posse da terra e da
renda com vista a assegurar melhorias nos ganhos sociais, políticos,
culturais, técnicos, econômicos (crescimento da produção agrícola) e de
reordenação do território. Este conjunto de atos de governo deriva de
ações coordenadas, resultantes de um programa mais ou menos
elaborado e que geralmente, exprime um conjunto de decisões
governamentais ou a doutrina de um texto legal (OLIVEIRA, 2007, p.
68).

Os artigos 184 a 191 da Constituição Federal de 1988 regulamentam as políticas


agrícolas, fundiárias e de reforma agrária. Basicamente, para uma terra ser confiscada para
fins de reforma agrária ela precisa estar irregular no cumprimento de sua função social. O
processo se dá por desapropriação, ou seja, o dono da terra improdutiva recebe uma
indenização do governo federal e esta terra será redistribuída entre os camponeses que a
reivindicam. Somente terras que não cumprem sua função social - a saber, propriedades
que não aproveitam seu território de forma racional e adequada; que não utilizam os
recursos naturais disponíveis de forma correta e não cumprem as exigências de preservação
ambiental; que não seguem as recomendações sobre as relações de trabalho e; onde a
exploração não promova o bem-estar de proprietários e trabalhadores - podem ser
desapropriadas (BRASIL, 2017).
A reforma agrária é, portanto, uma policy garantida pela carta constituinte, e que
deveria ser implementada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária

1748
(INCRA). Mas o que se percebe empiricamente é que a totalidade da política não é
atendida na prática, mesmo que uma terra seja desapropriada e redistribuída, as outras
garantias que envolvem condições mínimas de produção e reprodução social do
campesinato não se concretizam. Pode-se dizer que então que o que se realiza no Brasil é
uma política de redistribuição de terras. Mas em que momento a implementação desta
política se intersecciona com o Judiciário?
O primeiro ponto de intersecção diz respeito à fase judicial de implementação da
política de redistribuição de terras: é o Judiciário quem decide se um imóvel é passível de
ser desapropriado. É ele quem vai decidir se a declaração de vistoria e o laudo agronômico
apresentados pelo INCRA são suficientes para comprovar que uma terra é improdutiva. O
segundo ponto de intersecção, diretamente relacionado ao primeiro, é a possibilidade do
proprietário rural recorrer à Justiça visando a anulação do processo administrativo de
desapropriação. Ainda existe um terceiro ponto de intersecção, quando os camponeses
recorrem ao Judiciário para “fazer cumprir a desapropriação de terras de latifundiários que
ignoram a obrigatoriedade da função social da propriedade rural” (RODRIGUES;
MITIDIERO JR, 2014, p. 3).
Vemos aqui como o conflito, elemento importante para se compreender a questão
agrária brasileira, atravessa também a esfera do Judiciário. Aqui encontramos um entrave
central da atuação do poder na implementação da política de redistribuição fundiária: para
qual lado da balança as decisões judiciais penderão? O que se verifica é uma atuação
tendenciosa dos Tribunais de Justiça no que se refere à litígios envolvendo disputas
territoriais. A atuação do poder beneficia nitidamente proprietários de terra em detrimento
de camponeses. A instituição tende a não realizar desapropriações de terras, mesmo em
casos onde a função social é comprovadamente não cumprida (RODRIGUES;
MITIDIERO, 2014).
A não consideração dos aspectos sociais de cada caso é outro entrave que precisa
ser analisado. Em geral, os magistrados acabam por tomar suas decisões de forma
descontextualizada, apenas aplicando normas jurídicas mecanicamente, sem levar em
consideração a realidade social e o cenário de conflito envolvido nos litígios. Quando não
fazem essas considerações, suas posições se configuram como injustiças aos olhos daqueles
que seriam beneficiados pela política pública, além de se distanciar da realidade. Outros
dois aspectos ainda precisam ser ressaltados: a morosidade do aparelho judiciário, que
acarreta em desgastes e tensões entre os envolvidos nos litígios; e o descolamento dos
magistrados em relação às populações que seriam beneficiadas pela redistribuição de

1749
terras, que normalmente estão mais próximos daqueles que detém a propriedade privada
da terra (RODRIGUES; MITIDIERO, 2014).
A atuação dos juízes em relação às redistribuições é uma materialidade das
discussões sobre o controle do Poder Judiciário. Os tribunais possuem amplos poderes de
controle, mas em contrapartida independência excessiva, o que acarreta um aumento
excessivo de litígios, problemas de eficiência dos tribunais e ativismo dos juízes. Ativismo
visto no sentido de enfocar padrões de decisão judicial, de apontar a existência de
preferências subjetivas dos juízes a priori. Para Koerner (2015), o ativismo judicial

(...) indica uma situação limite, as fronteiras fluidas, mas necessárias,


entre dois mundos distintos, o da política e o do direito. Ao ultrapassar
essas fronteiras e ingressar num domínio que não lhe é próprio, o agente
judicial produziria riscos, extrapolaria suas funções, distanciar-se-ia de
seus quadros de referência e atuaria sob o efeito de influências
indesejáveis, como valores subjetivos, preferências, interesses, programas
políticos. O risco pode estar na perda de medida das decisões, na falta
de justificação ou no desvio da atenção quanto aos problemas de reforma
política. (KOERNER, 2015, p. 485)

Este debate sobre ativismo se restringe a pensar a ação dos juízes de forma
individualizada. Extrapolando esta perspectiva, pode-se questionar se existe alguma
possibilidade do Judiciário atuar proativamente nas políticas públicas. Talvez a alternativa
seja compreender tanto o papel do Judiciário quanto do ativismo judicial a partir de outras
lógicas: se por um lado a atuação do Judiciário na implementação de políticas de
redistribuição fundiária apresenta entraves, por outro apresenta potencialidades. Basta
retomar a trajetória da instituição para perceber seu caráter transformador. Anteriormente
discutiu-se a expansão deste poder no século XX e a modificação em sua forma de atuação,
saindo de uma perspectiva estritamente individual e se alinhando a uma perspectiva coletiva
de igualdade, a fim de garantir a efetivação de direitos sociais e coletivos. Fato que se
concretiza ainda mais a partir da Constituição Federal de 1988, quando a Justiça assume
ainda mais prerrogativas de fiscalização e implementação das policies. Um caminho
possível ao Judiciário brasileiro seria retomar o caráter transformador adquirido pela
instituição em sua expansão, além de ressignificar o sentido de ativismo judicial, de forma
a pensar a atuação dos juízes em prol da proteção de direitos civis, sociais e políticos.
Outra potencialidade a ser evidenciada é a possibilidade de diálogo entre
movimentos sociais e as diferentes esferas que compõem o Judiciário. Talvez estes canais
possam ser espaços de discussão e aprimoramento das políticas públicas de distribuição de

1750
terras. Talvez, dentro do Judiciário surjam lampejos de políticas de reforma agrária de fato,
onde o acesso à terra seja apenas uma etapa de algo maior, que garanta também outras
demandas da população assentada. Por parte dos camponeses o diálogo já está
estabelecido, as pressões aos poderes políticos e judiciais por estradas, crédito, saúde,
educação e outros direitos que garantam sua produção e reprodução social acontecem há
algum tempo, e continuarão acontecendo (MEDEIROS, 2002).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de inquietações com a conjuntura política atual, e especificamente, sobre a


atuação do poder judiciário no impeachment de Dilma Rousseff e na operação Lava Jato,
tornou-se necessário compreender como a atuação do poder se concretiza em outras
esferas de atuação. Por isso o presente trabalho pretendeu discutir a atuação do poder
judiciário na redistribuição de terras e luta por reforma agrária. Recuperando a trajetória
constitucional brasileira e focando a Constituição Federal de 1988, apontamos a força das
políticas públicas e os novos papéis atribuídos ao Judiciário.
Uma última conexão é necessária: ligar a atuação da Justiça nas políticas de
redistribuição fundiária com as dimensões de observação do Judiciário propostas por
Taylor (2007). Primeiramente, a magistratura pode influenciar e interferir nas políticas de
distribuição de terras quando o processo administrativo se inicia. O juiz decidirá se a terra
em processo de desapropriação cumpre sua função social ou não. Esta influência pode
continuar acontecendo quando existe contestação do proprietário ou de movimentos
sociais campesinos. Segundo, a motivação do Judiciário na hora de tentar resolver os litígios
decorrentes dos processos de redistribuição não é grande incógnita, pelo contrário, em sua
maioria, os magistrados costumam defender os interesses de proprietários rurais e
latifundiários, evidenciando seu descolamento com a realidade social do campesinato. O
terceiro ponto abordado pelo autor diz respeito à atores externos que utilizam o judiciário
para atingir seus objetivos políticos. Os movimentos sociais de luta pela terra e por reforma
agrária se articulam e contestam não só a função social de determinadas propriedades
através do Judiciário, mas também o acesso a outros direitos que deveriam estar garantidos
pela política pública de reforma agrária.
Finalmente, as consequências de intervenção do poder nas políticas de
redistribuição fundiária são dicotômicas. Se por um lado entraves concretos - atuação
tendenciosa dos tribunais em casos de disputa territorial, descontextualização social das

1751
decisões, morosidade do aparelho judiciário e proximidade com a classe econômica
dominante - podem ser verificados, por outro existem potencialidades. O Judiciário tem
real potencial de transformação das políticas de distribuição de terras. Além, pode atuar de
forma transformadora para a própria instituição, se a atuação dos juízes se der mais em
prol da garantia e proteção de direitos sociais e coletivos do que por interesses de classe.
Fazendo novamente o paralelo com a situação política atual, cabe a nós retomarmos
a citação do jornal Le Monde Diplomatique: “E, em outro turno, tem-se os argumentos
sobre a exacerbação do Judiciário dentro de suas próprias competências. O caso da
liberação das gravações feitas na Lava Jato é o exemplo mais contundente desse ponto”
(LE MONDE DIPLOMATIQUE, 2016, grifos próprios). A exacerbação do poder dentro
de suas próprias competências é um reflexo da trajetória do judiciário, que deixa de ser
mero administrador e passa a ter poder de atuação política. O problema que se apresenta
é a forma como tal instituição utiliza esse poder. Enquanto ele estiver amarrado à
determinados preceitos e condutas que fortificam e defendem ideais congruentes à setores
historicamente dominantes, suas condutas continuarão sendo passíveis de
questionamentos.
Mais uma vez, torna-se essencial retomar o caráter transformador que moveu a
reconfiguração da instituição. Quando o poder assumir de fato sua competência como
mantenedor de direitos civis, políticos e sociais, e seu ativismo judicial se voltar à garantir
direitos sociais e coletivos, independentemente de interesses específicos, o questionamento
sobre suas condutas se cesse.

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GIRARDI, E. P. Proposição teórico-metodológica de uma cartografia geográfica crítica e
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RODRIGUES, L. L. M.; MITIDIERO JR., M. A. Disputas territoriais e judicialização da


Questão Agrária. Campo-Território: revista de geografia agrária. Edição especial do XXI
ENGA, 2014.

TAYLOR, M. M. O Judiciário e as Políticas Públicas no Brasil. Revista DADOS, v. 50,


n. 2, 2007.

1753
A EXPORTAÇÃO E A INOVAÇÃO DE BENS AMBIENTAIS NO
BRASIL

Bruna Lima ALFAMA887

Lucas Siqueira de CARVALHO888

INTRODUÇÃO

A humanidade tem causado na Terra uma pressão ambiental que está tendo
consequências cada vez mais visíveis. Para que se diminuam essas pressões sem que haja
uma necessidade de diminuir o crescimento econômico dos países, tem-se tentado criar
alternativas de produção para que se possa continuar o aumento do padrão de consumo
das pessoas sem que a pressão ambiental cresça tanto.
Nesse sentido surgiram algumas tentativas de classificação de bens menos agressivos
ao meio ambiente para que se possa achar maneiras de estimular sua produção e seu
comércio. Essa classificação passou também a servir de ferramenta para as pesquisas que
tentam identificar o ritmo e as características do comércio desses bens.
Este trabalho busca entender a inserção do Brasil no comércio de bens que buscam
um menor impacto ao meio ambiente analisando sua pauta exportadora e explorando o
etanol que surge nesta pauta, como um item diferencial e com um volume de exportações
maior que os demais itens.
Assim passamos a buscar entender sobre a produção do etanol e seu
desenvolvimento em questão inovativa, já que o Brasil foi um dos primeiros a começar a
explorar a produção do etanol de cana-de-açúcar como combustível e é o líder na produção
deste bem.
Para que pudéssemos analisar a inovação deste bem tivemos que buscar sobre a
empresa que mais exporta o etanol brasileiro para, a partir dela, entender como o etanol
de 2ª geração é uma inovação e o impacto que este tem sobre as exportações brasileiras.
Para tanto este trabalho será dividido em 3 seções além desta breve introdução e
da conclusão ao seu final, sendo a primeira uma discussão sobre o que são bens ambientais
e como é feita sua classificação atualmente, uma segunda discutindo a importância das
inovações e o etanol de 2ªgeração como a inovação mais importante para o aumento da

887
Mestranda em Economia UNESP-FCLAr, email: blimaalfama@gmail.com
888
Mestrando em Economia UNESP-FCLAr com bolsa CAPES, email: lucassiqueiradecarvalho@gmail.com

1754
produtividade do álcool de cana-de-açúcar e por fim uma seção discutindo as exportações
brasileiras e o possível impacto que a inovação no etanol pode trazer.

BENS AMBIENTAIS

As pressões ambientais são criadas em diversos estágios da vida de um bem. Desde


sua concepção, que pode ser um bem que consuma menos recursos naturais, menos
energia, com materiais recicláveis e que seja durável ; a sua produção que pode ter por
objetivo a exploração de recursos naturais de forma consciente, ter emissão de gases
diminuída nas empresas e com menor desperdício de materiais; até seu uso e descarte que
pode ser um uso com menor consumo de energia, com menor produção de resíduos, que
quando for descartada não polua o solo e seja passível de upgrades para que não haja a
necessidade imediata de trocas.
Esses são alguns exemplos de como um bem pode ser menos agressivos ao meio
ambiente, mesmo com essa necessidade ainda há a convivência de bens que seguem as
diretrizes para uma produção mais racional na utilização de recursos naturais e os bens
com uma produção e um ciclo de vida tradicional, para identificar os itens que têm
finalidades iguais, mas processos ou ciclos de vida diferentes visando menor pressão
ambiental, foi criada a denominação de bens ambientalmente preferíveis
(UNCTAD,1995). E as tecnologias que são criadas ou usadas para fazer com que esses
bens tenham menos impacto ambiental são chamadas de tecnologias ambientais, como
definido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE,
1995).
Os bens que são ambientalmente preferíveis e os que empregam tecnologias
ambientais podem ser categorizados como bens ambientais. Também são categorizados
assim os serviços que seguem essas mesmas diretrizes de menor impacto ambiental.
Portanto podemos ter tanto os bens ambientais como serviços ambientais.
O comércio internacional de bens ambientais tem crescido nos últimos anos.
Mundialmente esse crescimento é aproximado do crescimento de comércio de todos os
bens, mas quando analisado regionalmente (ou nacionalmente) os crescimentos se
mostram mais promissores em algumas partes do mundo do que em outras. Há uma
projeção para que em 2025 só o comércio de tecnologias ambientais alcance patamares de
1,9 trilhões de dólares no mundo, esse dado acompanhado do cenário de tendência de

1755
crescimento através da maior importância desses bens no comércio mundial, mostra como
o há muito otimismo em relação à esses mercado (ITC, 2014, p. 9).
Há várias disparidades no comércio desses bens em relação a países desenvolvidos
e países em desenvolvimento, nos países desenvolvidos há uma movimentação de até 670
bilhões de dólares (juntando os 3 maiores), enquanto nos países em desenvolvimento a
quantidade de dólares movimentada é significantemente mais baixa. Porém países como a
Alemanha, que é um dos maiores mercados desses bens, apresenta uma taxa de
crescimento menor de 5% ao ano, enquanto países em desenvolvimento apresentam taxas
que chegam a ser o dobro dessas. Assim temos um mercado grande e consolidado nos
países desenvolvidos e um mercado pequeno, porém em crescimento nos países em
desenvolvimento. O Brasil não é exceção a essa regra, seu mercado não é comparável em
tamanha em relação ao dos países em desenvolvimento, porém sua taxa de crescimento
apesar de modesta, entre os países em desenvolvimento, é comparável a maior taxa de
crescimento dos países desenvolvidos, a dos EUA que fica em torno de 5%.
As diferenças entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento em relação a
esses bens se estendem além do tamanho e do ritmo de crescimento desse comércio. Os
países desenvolvidos têm uma assimetria nas balanças comerciais com os países em
desenvolvimento, como produtores de tecnologia ambiental, os países desenvolvidos
dominam a produção dos bens ambientais e se tornam exportadores líquidos destes,
enquanto os países em desenvolvimento são importadores líquidos. Há uma exceção à essa
condição, a China ainda é apontada como país em desenvolvimento, porém atualmente
sua balança comercial de bens ambientais tem a exportação líquida.
A definição de bens ambientais, como mostrada acima é ampla, incluindo até itens
que podem ou não ser utilizados de forma ambientalmente preferível, como bobinas e
bombas de água. Mas como uma das principais motivações para a criação de uma
classificação precisa é a negociação de acordos comerciais para facilitar a transação desses
bens, uma lista de bens fez-se necessária, para isso agências como a OCDE a cooperação
econômica da Ásia e do Pacífico (APEC) e a Organização Mundial do Comércio (OMC)
criaram suas listas com os bens que elas consideram ambientais. Porém essas listas
apresentam diferenças consideráveis entre si, além de problemas de mensuração por conta
da desagregação do banco de dados sobre comércio internacional o Comtrade das Nações
Unidas (http://comtrade.un.org/), o qual apresenta na mesma classificação bens ambientais
e não ambientais.

1756
Por ter uma classificação um pouco mais abrangente e posicionar o Brasil com uma
maior exportação de bens ambientais, usaremos a lista da OCDE para estudar as
exportações de bens ambientais brasileira.
A lista da OCDE foi categorizada em 3 níveis que organizam os 165 itens que a
compõe. As categorizações são as seguintes:
· Nível 1: gestão de poluição; tecnologias limpas; gestão de recursos.
· Nível 2: atividades empresariais de proteção ambiental, tais como: produção de
equipamentos e materiais; prestação de serviços; construções; instalações.
· Nível 3: atividades de proteção ambiental: controle da poluição do ar; gestão de
águas residuais; gestão de resíduos sólidos; recuperação e limpeza do solo e da água; ruído;
vibrações.
Apesar da taxa de crescimento mais baixa que a média dos países em
desenvolvimento, o Brasil apresenta uma situação promissora para o desenvolvimento da
produção e do comércio de bens ambientais, isso, pois o país apresenta taxas de
investimento relativamente altas em áreas importantes na produção de bens ambientais,
por exemplo, em fontes renováveis, as quais têm investimentos globais que movimentam
mais de 200 bilhões. O investimento brasileiro, nessa área, é o maior da América Latina,
totalizando 7,1 bilhões em 2015 enquanto o do resto da América Latina totalizou 12
bilhões, e neste investimento não estão contabilizadas as Hidroelétricas.

GRÁFICO 1 - INVESTIMENTO EM ENERGIAS RENOVÁVEIS NO BRASIL

Fonte: REN21, 2016

Outro fator que aumenta o potencial de comércio de bens ambientais no Brasil é


o fato deste ter legislações ambientais rígidas, apesar deste fator parecer à primeira vista
algo que impede o avanço das empresas por significarem mais custos na produção, Porter

1757
e Van Der Linde (1995) levantaram dados que mostram que quando se trata de legislação
ambiental o empresário se vê estimulado a inovar para criar tecnologias ambientais e
rearranjar sua produção de acordo com as leis ambientais, assim legislações rígidas podem
se configurar como uma situação em que todos ganham, tanto a população com uma
produção que cause menos pressão ambiental, quanto a empresa que terá criado inovações
em sua produção.
Usando a lista da OCDE e analisando as exportações do Brasil em 2013 vemos que
há uma correlação com as principais exportações mundiais dos bens dessa lista.
Especificamente 7 dos 10 principais itens exportados do Brasil estão na lista dos principais
itens exportados no mundo. Mas o item mais exportado pelo Brasil não tem grandes
exportações mundiais, o Etanol, teve em 2013 uma exportação no Brasil de 1.865 milhões
de dólares. Assim usando como referência a lista da OCDE encontramos ele como
principal item da pauta exportadora de bens ambientais do Brasil.
A principal empresa exportadora de Etanol do Brasil é a Cosan, conglomerado do
qual a Raízen faz parte. No ano de 2016 quando a exportação de Etanol brasileira foi de
845 milhões de dólares, a Raízen exportou 745 milhões de dólares neste ano,
contabilizando 88% do Álcool brasileiro vendido no mundo.
Na segunda parte deste artigo trataremos especificamente da Cosan e de sua
produção de etanol, como essa empresa se comporta, sua história e sua posição quanto a
inovações para a produção de Etanol.

INOVAÇÃO

Com o avanço da globalização, a inovação foi ganhando destaque na literatura como


promotor do desenvolvimento do país, assegurando a competitividade deste em relação ao
mundo, motivo pelo qual acabou entrando na agenda da maioria dos países
industrializados e emergentes. A abertura de mercados tanto estrangeiros como
domésticos, o desenvolvimento em termos organizacionais que permitiu o avanço de
oficinas a empresas, mostra a transformação industrial que revolucionou a estrutura
econômica através da destruição criadora, ou seja, através da inovação, fator essencial em
que consiste o capitalismo e, a partir do qual, qualquer empresa capitalista deve se adaptar
para sobreviver (SCHUMPETER, 1942).Esse processo de destruição criadora levou ao
surgimento de capacitações tecnológicas por parte das firmas, no que diz respeito a novas
formas de organização da produção. Dessa forma as empresas ao diversificarem, adquirem

1758
vantagens em relação às outras empresas, sejam locais ou internacionais, tendo um papel
ativo no aumento do desempenho competitivo e na criação de novos empregos.
Normalmente, é o setor privado nacional quem desempenha o papel de agente
responsável pela incorporação da tecnologia no processo produtivo e, consequentemente,
na inserção internacional em mercados mais avançados tecnologicamente. São as empresas
que incorporam a tecnologia nas estruturas produtivas e que realizam mudanças nessas
estruturas, que são vistas como resultado da inovação e de atividades de aprendizado, sendo
que ao incorporarem os fatores específicos de cada país assumem um carácter nacional
(MELO et al., 2015). A inovação ao ser bem-sucedida faz com a empresa consiga manter
vantagem competitiva em relação às outras ao manter essa inovação para si e através dessa
apropriação consegue explorá-la obtendo lucros (GUERREIRO, 2012).
Apesar do papel da empresa como indutor do progresso técnico, a forma como as
empresas agem é determinada pelas condições que elas enfrentam e por qualidades que
possuem, ou seja, deve-se considerar os fatores sistêmicos da inovação, as condições do
ambiente competitivo, do sistema econômico e institucional e das infraestruturas essenciais
que favorecem o desenvolvimento de capacitações tecnológicas (NELSON, 1982; MELO
et al, 2015). As mudanças organizacionais que capacitaram os países a manterem sistemas
de P&D modernos e o avanço tecnológico resultante vai muito além da organização das
empresas. Em muitos casos, foram necessárias novas leis, novas disciplinas, sociedades
científicas tiveram que surgir, as universidades tiveram que mudar e algumas tecnologias
exigiram o estabelecimento de estruturas públicas amplas para seu desenvolvimento
(NELSON, 1982).
De acordo com o Manual de Oslo (2006), quanto à natureza, a inovação pode ser
classificada como inovação tecnológica de produto e inovação tecnológica de processo. A
inovação de produto acaba sendo mais radical e se refere à comercialização e implantação
de um produto que apresenta melhorias tecnológicas , isto é, desempenho aprimorado de
forma que o consumidor tenha acesso a serviços aprimorados ou novos, enquanto que a
inovação de processo tecnológico se refere à adoção e implantação de novos ou
aprimorados métodos de produção, de comercialização podendo envolver mudanças de
máquinas e equipamentos, de recursos humanos , métodos de trabalho ou combinação
de ambos. Destaca-se ainda que uma inovação tecnológica em produtos e processos leva
em conta uma vasta gama de atividades científicas tecnológicas, organizacionais, financeiras
e comerciais por parte da empresa.

1759
Sendo a inovação uma característica importante para as empresas se manterem
competitivamente no mercado, a busca por uma produção menos agressiva ao meio
ambiente também pode servir como seletor de empresas mais competitivas, a busca das
empresas em se ajustar às demandas de uma produção mais limpa se dá através das
inovações ambientais. Esse termo ainda é muito amplo dentro da discussão acadêmica,
compreendendo uma série de questões desde a gestão da empresa até a ocorrência da
inovação em si. A empresa para inovar ambientalmente, normalmente passa por alguns
estágios, primeiramente ela responde a questões legais de ajuste da sua produção a uma
legislação ambiental, regulando ou trocando o maquinário para obter uma menor emissão
de poluentes e uma produção mais eficiente em questões de uso de recursos naturais, esse
momento pode ser chamado de estágio reativo e de acordo com a legislação do país pode
ter maior ou menor impacto na criação de inovações ambientais.
Posteriormente a empresa passa a reagir às mudanças nos seus consumidores, à
medida que estes mudam sua opinião sobre os padrões ambientais que esperam dos
produtos que desejam consumir, a empresa deve se adequar a esses padrões, esse é o
estágio reativo.
Por fim, quando os estímulos internos e externos são interiorizados na gestão, a
empresa passa a traçar estratégias ambientais e a partir disso passa inovar seu processo
produtivo, seu produto ou seu sistema de entregas, chegando assim à inovação ambiental.
Resumindo as inovações ambientais são:

[...] implementações organizacionais, considerando as dimensões de


produtos, processos e mercado, com diferentes graus de novidade,
podendo ser apenas melhoria incremental, que intensifica o
desempenho de algo já existente ou radical, que promove algo
completamente inédito, cujo principal objetivo é reduzir os impactos
ambientais da empresa. Em adição, a inovação ambiental possui
relacionamento bilateral, com a proatividade da gestão ambiental
organizacional ( JABBOUR, GALINA, 2011).

Feita essa pequena introdução sobre a inovação e a sua importância, o passo


seguinte é analisar a empresa Cosan mas concretamente a Raízen.
A Cosan S/A destaca-se no setor de energia devido a sua atuação forte e
diversificada nesse setor através de empresas especializadas como Raízen e Comgás, em
distribuição de combustíveis, produção de açúcar, etanol e energia elétrica, distribuição de
gás natural e lubrificantes e como qualquer grupo industrial reconhece a importância da

1760
inovação e o desenvolvimento de capacitações tecnológicas para se manter na vanguarda
do seu setor de atuação.
A empresa a ser estudada nesse artigo é a Raízen por ser uma das empresas de
energia mais competitivas do mundo sendo uma das cinco maiores em termos de
faturamento e a terceira maior distribuidora de combustíveis do Brasil. Ela está presente
em todas as etapas do processo de produção e distribuição de maneira integrada: cultivo
da cana-de-açúcar, produção de açúcar, etanol e energia elétrica (por meio da cogeração),
comercialização, logística, distribuição e varejo de combustíveis sendo a principal fabricante
de etanol a partir da cana-de-açúcar do país e a maior exportadora de açúcar de cana no
mercado internacional (Relatório de Sustentabilidade, 2014/2015).
A Raízen surgiu da associação de duas empresas a Cosan e a Shell, sendo uma joint-
venture independente e com controle compartilhado entre as duas empresas e é constituída
pela Raízen Energia S.A. e Raízen Combustíveis S.A., que abrangem as operações de
Etanol, Açúcar e Bioenergia (EAB), Logística, Distribuição e Trading (LD&T) e
Comercial. A Raízen Combustíveis tem uma rede de mais de 5.900 postos de serviços para
distribuição de combustíveis distribuídas pelo Brasil sob a marca Shell, 960 lojas de
conveniência, 67 terminais de distribuição e está presente em 60 aeroportos no negócio de
combustíveis de aviação. Já a Raízen Energia produz mais de 4,1 milhões de toneladas de
açúcar e de 2,1 bilhões de litros de etanol por ano para atendimento ao mercado interno e
externo, e possui 940 MW de capacidade instalada de produção de energia elétrica a partir
do bagaço da cana. A companhia se destaca como uma das empresas do setor energético
mais competitivas do mundo sendo a maior produtora de energia elétrica a partir do bagaço
da cana no Brasil possuindo 24 unidades produtoras que atendem as necessidades
operacionais de forma autossuficiente e 13 dessas unidades oferecem ao mercado o
restante da energia.
A Raízen tem como objetivo desenvolver soluções de energia sustentável através da
tecnologia, talento e agilidade de forma a maximizar o valor para os clientes e acionistas
contribuindo na sociedade de forma a ser reconhecida mundialmente pela excelência no
desenvolvimento, produção e comercialização de energia sustentável com intuito de gerar
um futuro melhor. Ela tenta criar soluções mais sustentáveis ao unir o uso de tecnologia de
ponta juntamente à matéria-prima renovável, como por exemplo ao utilizar e reutilizar a
cana-de-açúcar com o intuito de gerar energia atuando de forma competitiva no mercado
para suprir a crescente demanda. Podemos dizer que a inovação assume um papel de
extrema importância para a empresa e geralmente está ligada a produtos e serviços. A

1761
empresa ainda compreende diversas iniciativas que levam em conta a inovação
demonstrando este ser um pilar importante para a companhia (Relatório Anual,
2015/2016).
Ao reconhecer a papel da inovação como meio para solucionar desafios e ampliar
horizontes, a Raízen investe em tecnologia e em parcerias tecnológicas de forma a
encontrar soluções eficientes e sustentáveis para garantir a desenvolvimento do país em
termos energéticos. Por meio da inovação, a empresa consegue conciliar produtividade,
rentabilidade e responsabilidade ambiental e estimular a aquisição de conhecimento e a
competitividade de mercado.
Como parceiras tecnológicas, destaca-se a empresa canadense Logen sendo uma
instituição reconhecida no mercado devido ao seu carácter inovador e sua competência
técnica, e ainda o Centro de Tecnologia Canavieira (CTC) que é o principal centro de
pesquisa de cana-de-açúcar do mundo situado em Piracicaba (SP) em que a Raízen é sócia
e em conjunto buscar o desenvolvimento de forma contínua da matéria-prima e o aumento
da produtividade agroindustrial.
A Raízen, sendo o líder da exportação do bem no país, considera o etanol como
combustível do futuro e por isso aposta nessa alternativa energética que é obtida através da
cana-de-açúcar, ao investir em tecnologia e ao certificar as usinas sucroalcooleiras de acordo
com as exigências dos padrões internacionais. O volume da produção atual alcança 2,1
bilhões de litros por ano e o objetivo é expandir a produção para atender a demanda no
Brasil e no exterior. O etanol é um biocombustível que se tem tornando comum no país
sendo que atualmente, em todos os postos de gasolina comercializada no país, 25%
apresenta etanol anidro em sua composição o que leva a redução de emissões do dióxido
de carbono na atmosfera, já que pesquisas nesse setor apontam que o biocombustível ao
ser comparado com a gasolina emite até 90% menos gases causadores do efeito de estufa
(Relatório de Sustentabilidade, 2014/2015).
O etanol pode ser produzido ainda através do milho, beterraba, trigo e mandioca,
no entanto a cana-de-açúcar é considerada uma matéria-prima de melhor aproveitamento
e o uso da tecnologia brasileira, desenvolvida desde os anos 70, fez com que o balanço
energético (unidade de energia gerada em relação a unidade de energia necessária para a
produção) do etanol obtido a partir da cana-de-açúcar fosse cinco vezes superior ao
associado ao etanol de milho.
A inovação de maior importância para a empresa é a produção de etanol de
segunda geração, o chamado etanol celulósico sendo a empresa pioneira na tecnologia, isto

1762
é, uma das primeiras empresas do mundo a chegar à etapa de produção inicial. O etanol
de segunda geração apresenta ganhos em relação ao etanol convencional que é produzido
a partir do caldo da moagem da cana.
O etanol de segunda geração pode ser gerado a partir de partes da planta que iam
ser descartadas como palha e bagaço que são obtidas no processo tradicional de fabricação
de etanol e açúcar. Durante a produção do etanol celulósico, os resíduos passam por um
pré-tratamento em que as fibras são desestruturadas e, depois, são transformadas em
açúcares solúveis por meio de processo chamado “hidrólise enzimática”. Nessa etapa,
utiliza-se uma tecnologia de enzimas específica para a fabricação do etanol de segunda
geração, desenvolvida pela empresa dinamarquesa Novozymes. Na fase seguinte, a
fermentação converte o açúcar em etanol, que é purificado na destilação e enviado para a
comercialização. A composição do produto final é idêntica à do etanol de primeira geração,
diferenciando-se apenas pela matéria-prima utilizada no processo produtivo.
Para produzir o etanol de segunda geração, a tecnologia foi elaborada e aprimorada
ao longo dos anos através de estudos e planejamento em que a Raízen investiu ainda R$
237 milhões em pesquisa, desenvolvimento e infraestrutura. Através da parceria com a
empresa canadense Logen Corporation, sendo uma das acionistas da Logen Energy,
desenvolveu a tecnologia de processamento da biomassa para a produção desse tipo de
etanol. Através dessa tecnologia os derivados da fabricação convencional de etanol e açúcar
são destinados, em parte, à cogeração de energia, sendo matéria-prima para a produção
dessa nova geração de combustível. Dessa forma, a produção anual de etanol é aumentada
sem a necessidade de ampliar a área de cultivo, ou seja, o etanol acaba sendo mais
sustentável por aumentar a produtividade por hectare plantado.
A primeira planta industrial foi construída em Piracicaba (SP) para a produção do
biocombustível, e segundo as projeções da empresa poderá permitir a produção de mais
de 40 milhões de litros de etanol a mais por ano.
O etanol da segunda geração apresenta as seguintes vantagens: leva ao
aproveitamento da cana-de-açúcar e dos seus derivados, apresenta vantagem logística ao
levar a utilização de insumos que estão disponíveis nas unidades, aumenta a produção de
etanol em até 50% sem ter que aumentar a área cultivada, a produção é feita mesmo
entressafra da cana-de-açúcar e leva a redução de emissão de dióxido de carbono durante
a produção, obtendo um combustível mais limpo. De acordo com o Relatório Anual
(2015/2016), a Raízen estabilizou o processo de produção de etanol de segunda geração da

1763
safra 2015/2016 sendo ainda realizados ajustes em processos e equipamentos tendo como
perspectiva terminar o ano com uma produção de 6,5 milhões de litro.
Além do uso do bagaço e palha, a chamada biomassa, para a produção de etanol
de segunda geração, uma parte ainda é destinada para a cogeração de energia (geração de
energia a partir da biomassa) que permite a redução de dióxido de carbono (CO2) ao evitar
a queima desses materiais na área de cultivo. A grande quantidade disponível dessa matéria-
prima em suas usinas, faz com que o reaproveitamento ajude na questão da rentabilidade
e na proteção ao meio ambiente. A cogeração também representa uma alternativa ao setor
energético do país, por ser uma tecnologia que pode complementar a produção
hidroelétrica sendo que tanto a colheita de cana-de-açúcar como a geração de energia
eléctrica a partir da biomassa acontecem no período seco, ou seja, quando os reservatórios
estão em baixa (Relatório de Sustentabilidade, 2014/2015).
A Raízen para conseguir inovar dentro setor de produção de biocombustíveis
incorporou tanto as exigências legais em relação ao cultivo de cana-de-açúcar e da produção
do etanol, quanto a exigências do mercado de obter um combustível eficiente e menos
agressivo ao meio ambiente. Tendo incorporado essas preocupações, a Raízen conseguiu
encontrar um modo mais proveitoso de produzir o etanol, aumentar a quantidade
produzida por hectare plantado, podendo assim aumentar sua produção sem a necessidade
de expansão do plantio.
Essa inovação na produção do álcool faz com que a emissão líquida diminua e
desincentiva a prática das queimadas no cultivo da cana-de-açúcar, além de aumentar a
eficiência na relação hectare/litro, diminuindo a necessidade de expansão de área cultivada,
portanto, mesmo o produto continuando o mesmo, com essa inovação no processo
produtivo, cria uma clara melhora nas questões ambientais relativas a produção da Raízen.
Podemos dizer que a cogeração de energia a partir da biomassa se mostra como
uma solução mais limpa e renovável podendo ajudar o Brasil a enfrentar os desafios
encontrados na sua matriz energética reconciliando mais rentabilidade e sustentabilidade e
reconhecendo essa importância da cogeração, a Raízen investe em tecnologia de ponta para
obter energia elétrica a partir da biomassa tornando-se a maior produtora desse ramo.
Além do uso de novas tecnologias para produzir o etanol de segunda geração, para
gerar energia elétrica a partir da biomassa, a Raízen investe em projetos inovadores com o
intuito de melhorar a produtividade dos processos de produção ,o rendimento e a
sustentabilidade de suas operações através de projetos como Biogás a partir da Vinhaça,
Muda pré-brotada que pretende produzir as mudas da cana em estufas e dessa forma

1764
ampliar a produtividade do canavial e por último a Sistematização do uso do solo e
georreferenciamento com o uso de máquinas guiadas por piloto automático e com a
utilização de drones antes do plantio (para ajudar no reconhecimento de características do
terreno , registar a topografia, etc ) e depois do plantio (para avaliar a qualidade da plantação
e identificar as falhas de cultivo, etc). Destaca-se o projeto Biogás a partir da Vinhaça que
tem o objetivo de transformar os derivados do processo produtivo do etanol como a
matéria orgânica da vinhaça e da torta de filtro em gás metano que pode ser utilizado para
produzir energia elétrica.
A Raízen investe ainda em projetos inovadores de logística onde destaca-se a
construção do Etanolduto com o intuito de interligar, os Estados de Minas Gerais, São
Paulo e Rio de Janeiro, como uma importante opção de distribuição de forma a diminuir
a dependência das estradas, embora a estrutura logística do país faz com que a empresa
ainda depende do uso do transporte rodoviário. (Relatório de Sustentabilidade, 2014/2015)
e (Relatório Anual, 2015/2016).
Observa-se que embora a produção do etanol de segunda geração apresenta vários
benefícios como ganhos na etapa agrícola, para as empresas que querem produzir de forma
a reduzir seus custos na etapa industrial este se apresenta como um grande desafio, por ser
mais caro para produzir devido ao uso de novas tecnologias que ainda não foram
consolidadas, embora o biocombustível seja igual ao convencional tendo aos mesmos usos
(Relatório de Sustentabilidade, 2014/2015).

EXPORTAÇÃO

O plantio da cana-de-açúcar tem longa data no Brasil, se confundindo com a


própria história do país, mas somente a partir de 1975 que a produção do etanol da cana-
de-açúcar foi fortemente incentivada pelo programa Pró-Álcool, com a motivação de servir
como fonte de energia. Inicialmente o etanol funcionava como um aditivo da gasolina,
compondo 24% desta, com o avanço da tecnologia e o aumento do preço do petróleo no
início dos anos 1980 começaram a serem produzidos motores de carros movidos
totalmente a base de etanol.
Porém esses veículos saíram de linha nos anos 1990 devido a crise fiscal que reduziu
a capacidade de incentivos pelo governo assim como pela baixa no preço do petróleo que
tirou a competitividade do etanol. Somente em 2002 quando o cenário voltou a ser
favorável a produção de álcool como combustível, devido tanto a discussão sobre

1765
combustíveis alternativos ao petróleo quanto a queda do preço do açúcar no exterior, que
se apresentou o motor flex-fuel que permite o abastecimento tanto com gasolina quanto
com etanol. Essa nova abertura do mercado proporcionou a retomada do crescimento da
produção do etanol (KOLHEPP, 2010)
Apesar de outros países não utilizarem frotas de veículos flex, há outras utilizações
do etanol, como sua adição na gasolina para torná-la menos poluente.
Desde 2010, o Brasil e os Estados Unidos competem em relação a maior produção
e maior consumo de etanol no mundo, em questões de exportação, o álcool, como é
mostrado pelos dados do Comtrade, acompanha o fluxo de comércio das commodities,
sendo que está em queda desde 2012. No Brasil a exportação que rendia 2 bilhões de
dólares em 2012 passou a render 845 milhões em 2015, Já nos Estados Unidos a
exportação do etanol vem crescendo nos últimos anos, passando de 589 milhões em 2012
para 840 milhões em 2015, apesar do último ano a exportação brasileira ter se mantido
maior essa posição não é consolidada já que em 2014 os Estados Unidos exportaram quase
20 milhões de dólares mais do que o Brasil.

GRÁFICO 2 - EXPORTAÇÃO DE ETANOL EM MILHÕES DE DÓLARES

Fonte: Comtrade (Elaboração Própria)

Parte desse cenário é explicado pelo fluxo das exportações em um geral, no Brasil
estas vem caindo desde 2012 sem muitos sinais de recuperação, já nos Estados Unidos o
ano de 2014 apresentaram crescimento considerável neste fluxo.

1766
Apesar deste cenário em que os Estados Unidos se mantêm próximos do Brasil em
valores exportados de etanol, sua produção de álcool a partir do milho é menos produtiva
do que a de cana-de-açúcar, sendo que já chegou a se produzir o dobro de litros de etanol
por hectare plantado de cana-de-açúcar em relação ao milho (KOLHEPP, 2010)
Há também algumas grandes barreiras ao etanol brasileiro, como as taxas de
importações nos Estados Unidos, como a resistência a incorporação de porcentagens mais
altas de álcool à gasolina nos países desenvolvidos. No Brasil essa quantidade é de 25% e
é uma das mais altas no mundo, se esse modelo fosse incorporado por outras nações a
demanda mundial aumentaria e haveria uma diminuição na emissão de gases estufa, já que
a emissão desses gases na queima do etanol como combustível diminuem em até 90% em
relação a queima da gasolina, e o etanol produzido a partir de cana-de-açúcar apresenta
maior redução em relação ao etanol de outras fontes (OCDE apud KELHOPP, 2010).
Apesar dos entraves em relação à demanda, a situação de queda na exportação
poderia ser remediada também através de um aumento da oferta do combustível pelo
Brasil com o advento da inovação do etanol de 2ª geração. Com perspectivas de empresas
como a Raízen que estão apostando nessa tecnologia, a produção poderia ser aumentada
em até 50%, fazendo com que a cana-de-açúcar fosse sem dúvidas a matéria prima de maior
efetividade para a produção de etanol, e, dessa forma, colocando o Brasil com um produto
muito competitivo para exportação.

CONCLUSÃO

O etanol de 2° geração é uma inovação que muda o processo da produção do álcool


e o torna muito mais eficiente no quesito hectare/litro já que se utiliza o bagaço da cana-
de-açúcar como matéria prima para a produção de mais etanol. Ainda há investimentos e
pesquisa a ser feita para viabilizar a produção e a expansão de plantas que possam ter essa
função, porém a Raízen já se mostra a frente nesse processo e com o entendimento que a
modernização de suas plantas precisa ser feita.
Como a principal exportadora de etanol do país, essa perspectiva de investimentos
em P&D a busca por novas tecnologias que possibilitaram essa mudança na produção do
etanol, a Raízen apresenta um comportamento agressivo na inovação e procura ser a
pioneira na instalação de novas plantas capazes de produzir o etanol de 2° geração.
Para o Brasil esse avanço é importante pois deter a tecnologia de uma inovação
dentro do principal produto de uma pauta exportadora de bens ambientais que tem um

1767
mercado promissor no mundo é crucial para trazer investimentos e lucros para dentro do
país.
Mesmo existindo divergências, quanto a consolidação do etanol como energia
limpa diante de avanços como os carros elétricos, por exemplo, ainda sim investir em um
combustível que apresenta uma quantidade de emissão de gases do efeito estufa 90%
menor do que o atualmente utilizado é procurar alternativas viáveis aos combustíveis fósseis
e tentar trazer criar tecnologias nacionais que sejam úteis no futuro.

Nota : As informações descritas no texto foram obtidas através do site da Cosan e dos
Relatórios de Sustentabilidade 2014/2015 e Relatório Anual 2015/2016 disponibilizadas
no site.

REFERÊNCIAS

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Developing Countries. Geneva. 1995.

1769
QUESTÃO AGRÁRIA E POPULAÇÕES TRADICIONAIS DA
AMAZÔNIA: OS SERINGUEIROS DO ACRE E O CONTROVERSO
DISCURSO DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

João Maciel de ARAÚJO889

Resumo: O enfretamento à injusta estrutura fundiária e às relações de exploração e violência, que


caracterizam o cenário agrário brasileiro, esteve na gênese da proposta de Reserva Extrativista,
território demarcado pelo Estado e destinado ao usufruto de populações tradicionais, a partir do
final da década de 1980. Um dos polos mais dinâmicos e combativos deste processo encontrava-se
na organização dos seringueiros da região do Alto Acre, na Amazônia Ocidental. Este artigo
objetiva contribuir com a reflexão sobre a ambiguidade da relação entre o Estado e as populações
tradicionais, moradoras de reservas extrativistas do estado do Acre, no início do século XXI, a
partir da análise do processo de introdução do manejo para exploração madeireira nestes
territórios. Os dados da pesquisa foram obtidos a partir de pesquisa bibliográfica, levantamento
documental e, sobretudo, através da realização de entrevistas semiestruturadas e de observações,
entre os anos de 2005 e 2012, no âmbito de 3 Projetos de Assentamentos Agroextrativistas situados
ao longo da rodovia BR-317. Produto da violência simbólica contra os seringueiros, o arcabouço
legal da introdução do manejo madeireiro em comunidades seringueiras foi decisivamente
conduzido por um viés tecnicista que visava assegurar os interesses particulares de alguns grupos
participantes (empresários, burocratas, técnicos), ao mesmo tempo servindo à ratificação do que
estava previamente colocado pelo governo. Este processo evidencia as estratégias de negação de
direitos das populações seringueiras, quanto à utilização autônoma dos recursos naturais dos
territórios por elas conquistados.

Palavras-chave: Amazônia. Reservas Extrativistas. Seringueiros. Violência Simbólica.

INTRODUÇÃO

A questão agrária brasileira é central para compreensão dos empecilhos ao


estabelecimento da democracia no país. Não obstante o acelerado processo de urbanização
pelo qual passou o país, acentuado na segunda metade do século XX, a concentração
fundiária, mantem-se intacta, garantida através das instituições, ou pela pistolagem das
classes dominantes. Mas é também neste cenário onde surgem as demonstrações mais
vigorosas de resistência e emergência de propostas alternativas, por parte das populações
historicamente marginalizadas da esfera política e do direito. Seja pela ocupação de
latifúndios improdutivos, denunciando o desserviço das classes dominantes para o
conjunto da sociedade, seja pela manutenção de seus modos de vida e de garantia de
produção de alimentos através de novas propostas alinhadas ao fortalecimento da
produção familiar, conforme foi possível experimentar a partir da década de 1990, com

889
Doutorando no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras da
UNESP de Araraquara. Email: joaomaci@hotmail.com.

1770
uma sensível modificação das políticas ligadas ao desenvolvimento agrário. Portanto, as
populações camponesas fazem frente à hegemonia do coronelato latifundiário e sua aliança
com o capital.
O debate sobre o desenvolvimento agrário no Brasil, dominado por organismos e
Agências internacionais e governos nacionais, sugere que este se manifesta em ações do
Estado para redução da pobreza das populações rurais, por meio da modernização
agrícola. Para Sérgio Schneider (2010) a partir da década de 1990, há uma ampliação da
discussão sobre este tema, resultado de quatro fatores: a) o entendimento da agricultura
familiar como modelo social econômico e produtivo alternativo ao agronegócio; b) a
crescente influência e ação do Estado no meio Rural, através da criação de órgãos e
programas que diversificam o seu enfoque, como o apoio à populações tradicionais; c)
mudanças no âmbito político e ideológico, emergindo a oposição entre o desenvolvimento
rural e o agrobusines; e d) a introdução da dimensão da sustentabilidade ambiental
(SCHNEIDER, 2010).
Ainda segundo Schneider (2010), neste debate haveria um domínio dos
mediadores e estudiosos do tema do desenvolvimento rural que exercem influência
decisiva na agenda de ações do Estado, em detrimento das reais demandas sociais do
público beneficiário direto das políticas. Para o referido autor, esta tendência reduz a
eficácia das políticas públicas, visto que se debate muito mais as questões que afetam as
populações rurais, a agricultura e o espaço, segundo a avaliação destes estudiosos,
perdendo a perspectiva dos processos de mudança social, e consequentemente à interface
crítica e construtiva em relação aos camponeses.
A influência das diferentes correntes teóricas da questão agrária e do
desenvolvimento agrário, somada a atuação de movimentos sociais associados a esta
temática, deu base para a geração de um arranjo político-administrativo que, na medida em
que caminha sob a ótica do desenvolvimento rural, reconhece o campesinato brasileiro, ou
na linguagem oficial, “os agricultores familiares”. O entendimento político-administrativo
da terminologia “agricultura familiar” foi estendido à uma diversidade de grupos sociais
que constituem a população rural do Brasil e que historicamente foram excluídos das
medidas assistenciais do Estado, entre estes, as populações tradicionais da Amazônia, onde
se situam os seringueiros.
Um dos marcos deste processo é a criação, na segunda metade da década de 1990,
do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – PRONAF e suas
diversas linhas de crédito, e do próprio Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA,

1771
ficando o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA identificado com
a agricultura voltada ao mercado externo, representado pelo chamado agronegócio.
Destaque-se ainda, a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome
– MDS em 2004, que entre outras atribuições buscaria a articulação da agricultura familiar
com programas de segurança alimentar.
Contudo, é necessário levar em conta o que assinala Pierre Bourdieu (2014), no
que se refere ao uso recorrente do Estado, como sujeito em diferentes análises sobre a
sociedade. Segundo este autor, é mais adequado buscar a compreensão para os
desdobramentos desta esfera de poder como “atos de Estado”, uma concepção que admite
as derivações e ordens dele imanente, como “atos políticos com pretensões a ter efeitos no
mundo social” (p.39). Portanto, a premissa básica reconhece a existência de diferentes
agentes, que em disputa, desenvolvem regras que passam operar como legítimas a todos os
envolvidos no campo. “O Estado não é um bloco, é um campo” (BOURDIEU, 2014, p.
50)
Nessa configuração do cenário agrário brasileiro, a noção de Desenvolvimento se
insere como uma espécie de eixo mediador entre políticas públicas e populações
camponesas. Para Romeiro (2001), as medidas voltadas a promoção do desenvolvimento,
que partem de uma perspectiva teórica que desconsidera as dimensões culturais e éticas no
processo de tomada de decisão, torna inviável o enfrentamento ao desafio da
sustentabilidade. Neste sentido, faz-se necessário considerar a perspectiva de Enrique Leff
(2009), ao falar sobre as populações rurais, habitantes das matas e selvas tropicais, que
baseadas numa solidariedade coletiva, desenvolveram formas próprias de autogestão de
recursos naturais que fundamentam o escopo de um manejo comunitário capaz de se
alinhar com as reais necessidades de transposição da racionalidade econômica vigente. Por
outro lado, Leff (2009) adverte acerca do processo de transculturação para o qual estão
vulneráveis estas populações quando do aprofundamento do contato com agroempresas
transnacionais e o mercado mundial.
Em termos teóricos, é necessário realçar que os seringueiros, grupo ao qual nos
detemos nesta comunicação, possuem uma série de características próprias, que os inscreve
socialmente como camponês e neste sentido deve-se atentar para as contribuições de
Teodor Shanin (1966) quando lembra que dada às formas de organização e visão de
mundo, o camponês recorrentemente age de maneira adversa à planos de desenvolvimento
econômico, concebidos pelos governos. A política de MFC, por exemplo, acarretou a
presença de novos agentes, novas demandas e novas formas de participação política

1772
passíveis de análise quanto à prevalência da legitimidade e originalidade das instituições
que atualmente pretendem continuidade ao movimento seringueiro.
Sob a égide do discurso do desenvolvimento sustentável, dominante nas instituições
do Estado do Acre a partir da ascensão dos governos do Partido dos Trabalhadores – PT,
a partir de 1999, a introdução do manejo florestal madeireiro exige das comunidades
extrativistas bem mais que o domínio de técnicas exploratórias ou do adequado
gerenciamento das transações comerciais no mercado madeireiro. Sua estrutura
organizacional e de representação política deve se ajustar a esta atividade de elementos
sociais e institucionais concorrentes e estranhos a sua identidade cultural (ARAÚJO, 2013).
A julgar pelo histórico do processo de expansão da produção capitalista sobre a Amazônia,
o manejo florestal madeireiro, edificado em bases científicas é, pois, a representação de
um mecanismo de acumulação primitiva do capital, que historicamente confisca terras e
territórios, atingindo violentamente as populações indígenas e camponesas (MARTINS,
2009).
Sendo assim, a arena em que se inserem as comunidades extrativistas nas quais se
introduziu o MFC está repleta de diferentes grupos que dão suporte à expansão da
atividade produtora de madeira, notadamente empresários e tecnocratas, que neste campo
constituem-se nos grupos dominantes, o que subentende uma “luta simbólica” onde cada
grupo visa a transformação da ordem estabelecida para garantirem aí o reconhecimento de
sua posição (BOURDIEU, 2008).
O movimento seringueiro foi um dos precursores da extensa articulação de
entidades de movimentos sociais amazônicos e muito contribuiu para o aporte de uma
matriz que debate o ambientalismo, a partir das relações peculiares de populações
tradicionais com os recursos naturais, contrariando a hegemonia da matriz biologista
(ALMEIDA, 2004). Nas palavras de Martínez Alier (2007, p. 175), “as reservas
extrativistas, fruto da luta dos seringueiros do Acre, materializaram a invenção de uma nova
tradição comunitária no meio da Amazônia por parte da população não-indígena”. Para
este autor, o movimento seringueiro representou uma clara defesa das áreas florestais da
Amazônia.
Com efeito, o movimento seringueiro concebeu formas originais de organização
através da luta sindical, identificando lucidamente seus opositores nos campos social e
político, bem como fazendo uso estratégico de grupos em que julgaram o apoio
conveniente para a consecução de seus propósitos imediatos, a saber: a garantia de seus

1773
territórios e a comercialização e valorização da produção de borracha e castanha
(ESTEVES, 2010).
Nesta comunicação, apontaremos alguns impactos para a proposta de Reservas
Extrativistas, ocasionados pela introdução do MFC, como política pública, vinculada ao
discurso do desenvolvimento sustentável. Para tal, a seção Resultados e Discussão é
composta de duas subseções: a primeira ressaltando os impactos em nível estadual; e a
segunda, procurando enfatizar os impactos no interior de Projetos de Assentamento onde
há MFC. Apresentaremos uma síntese do panorama do cenário agrário e estrutura
fundiária do Estado do Acre, a partir da intenção deliberada do governo em alavancar
economicamente a extração de madeira. Em seguida, buscaremos realçar a violência
simbólica sobre as comunidades nas quais efetivamente ocorre o MFC, que impacta
diretamente sobre a gestão do território e recursos destas áreas de Reserva Extrativista890.

METODOLOGIA

Os dados da pesquisa foram obtidos a partir de pesquisa bibliográfica, levantamento


documental e, sobretudo, através da realização de entrevistas semiestruturadas e de
observações, entre os anos de 2005 e 2012, no âmbito de 3 Projetos de Assentamentos
Agroextrativistas – PAE’s, situados ao longo da rodovia BR-317, a saber: PAE São Luis do
Remanso, no município de Capixaba, PAE Chico Mendes (Cachoeira), no município de
Xapuri e PAE Santa Quitéria, no município de Brasiléia, ambos localizados na região do
Alto Acre, Estado do Acre.
Buscando uma abordagem relacional, a pesquisa buscou mapear os diferentes
agentes que se envolveram no processo de introdução do Manejo Florestal Comunitário –
MFC nestas áreas de reservas extrativistas. Ao longo do presente trabalho, as falas dos
entrevistados são utilizadas, por trazerem com toda a clareza e propriedade, o que o
pesquisador se esforçar para sintetizar.

890
Há uma diferenciação jurídico-administrativa em relação a esta nomenclatura, pois as Reservas Extrativistas
- Resex estão vinculadas ao Sistema Nacional de Unidades de Conservação e os Projetos de Assentamento
Agroextrativistas – PAE’s estejam ligados à Política de Reforma Agrária, na prática, ambas surgem como fruto
da luta do movimento seringueiro. Os PAE’s ainda no final dos anos 1980 e as Resex no início dos anos
1990. Os moradores de ambas as áreas referem-se somente à “reserva”, indicando que estariam indiferentes
à quem compete a gestão, no âmbito do Estado. 1774
RESULTADOS E DISCUSSÃO
PANORAMA DAS RESERVAS EXTRATIVISTAS NO ACRE E O IMPACTO DA
IDEOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Segundo a projeção do IBGE o Acre possuiria, em 2013, 733.559 habitantes, dos


quais, seguindo a tendência demográfica brasileira desde os anos 1970, somente 27,44%
vivem no meio rural, o que indica uma redução de 6,02% da população rural em relação
ao registrado pelo censo 2000 do IBGE. Neste sentido, o Acre registra um processo de
“urbanização” que neste período cresceu praticamente o dobro da média nacional que
chegou a 3,18%. Na região Norte, o esvaziamento do campo acreano só não foi superior
ao de Rondônia que teve um incremento de 9,59% no período. As trágicas consequências
desta concentração da população nos núcleos urbanos dispensam comentários neste
trabalho.
Através do cruzamento de dados do Censo demográfico do IBGE de 2010 e do
Sistema de Informações de Projetos de Assentamento do INCRA – SIPRA 2011, no ano
de 2013, chegamos a um número de 26.106 pessoas vivendo em áreas oficialmente
reconhecidas como territórios destinados à populações extrativistas (em última análise,
seringueiros). Este número, correspondente a 12,97% da população rural, não reflete com
precisão a quantidade da população deste segmento social no Estado do Acre. Não
somente pelo cruzamento arbitrário dos bancos de dados891 mas, sobretudo, porque o
sistema de informações do INCRA, referenciado pelas famílias assentadas, não reflete a
quantidade de famílias que efetivamente encontram-se nas áreas, uma vez que nem todas
estão regularizadas junto a este órgão ou aos órgãos formalmente responsáveis pela gestão
jurídico-administrativa das outras modalidades de áreas. Este número também não
contemplaria as famílias posseiras em áreas tradicionalmente extrativistas que não são
reconhecidas pelo Estado, como a região do Riozinho do Rola, em Rio Branco, ou outras
ao longo da BR 364, no sentido Cruzeiro do Sul.

891
Para chegamos a esta quantidade: utilizamos o número de famílias assentadas, equiparando-as com um
domicílio, segundo o Censo; multiplicamos o número de domicílios pela média de 3,82 pessoas, revelada
pelo Censo IBGE de 2010;
1775
GRÁFICO 01 –DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO NAS ÁREAS
EXTRATIVISTAS DO ACRE (%)

Fonte: INCRA/SIPRA, 2010. Organizado pelo autor892

Considerando as áreas de Projetos de Assentamento Florestal – PAF e Florestas


Públicas, que por sua concepção apresentam-se extremamente restritivas ao direito de uso
dos recursos florestais por parte das famílias, chegamos a uma área total de 4.038.987,64
hectares. Deve-se ter muita clareza quanto a este detalhe: Florestas Públicas, neste caso,
Estaduais e Federais, são unidades vinculadas no Cadastro Nacional de Florestas Públicas,
que segundo a Lei de Gestão de Florestas Públicas e o Serviço Florestal Brasileiro, seriam
criadas com a finalidade de exploração florestal através de concessões (também chamado
de outorga) a empresas privadas893.
As florestas públicas visam ao cumprimento de metas econômicas estabelecidas nos
planos de governo conforme os pressupostos da Lei Federal 11.284 de março de 2006,
acima referida. Ou seja, apesar de constituírem áreas historicamente habitadas por
populações seringueiras, os governos decidem por uma unidade que transfere o direito de
usufruto dos recursos naturais a empresas capitalistas. A decisão da criação é verticalizada,
cabendo às famílias habitantes da área o direito de permanecerem no local, desde que
ajustando-se às regras e normas estabelecidas em lei. O imperativo de criação destas áreas,
portanto, impõem a passividade e total submissão dos moradores às determinações do

892
O tom de cor diferente utilizados nas modalidades PAF e Florestas Públicas tem a intenção de destacar
sua diferenciação (no sentido das imposições restritivas) em relação às outras duas.
893
Segundo o Plano Anual de Outorga Florestal de 2013 do Serviço Florestal Brasileiro, as Florestas Nacionais
do Macauã e São Francisco, no Acre, poderão ser concedidas no ano de 2013. Da mesma maneira, estão as
Florestas Estaduais do Antimary, Mogno, Riozinho Liberdade e Gregório.
1776
órgão gestor. Josué Santos demonstrou estas características em seu estudo sobre as
Florestas Nacionais do São Francisco e Macauã, no município de Sena Madureira
(SANTOS, 2011). Na Floresta Estadual do Antimary, criada em 1988, por ocasião de um
projeto financiado pelo The Internaional Tropical Timber Organization ITTO, são
inúmeros os episódios de insatisfação dos moradores com as medidas do Estado, levados
a público através da imprensa local. Uma das evidências da repressão e controle dos órgãos
de governo relativos às Florestas Públicas é a baixa densidade demográfica, se comparada
com a densidade nos PAE’s.
Os Projetos de Assentamento Florestais – PAFs, criados pelo INCRA, são áreas de
prevalência de vegetação nativa. Contudo, constituem projetos especialmente direcionados
à exploração madeireira. Gestado técnica e politicamente no Estado do Acre, onde
também foi criado o primeiro projeto desta modalidade no Brasil em 2004, o PAF foi
destaque no II Plano Nacional de Reforma Agrária, pois foi colocado como uma das
alternativas mais adequadas em matéria de assentamentos para a região Amazônica. No
lançamento do modelo PAF, ao final do ano de 2003 em Brasília, o ministro do
Desenvolvimento Agrário, Miguel Rosseto afirmou em entrevista que “o Acre foi escolhido
por conta da experiência acumulada no manejo florestal sustentável, capacidade de gestão
de projetos e das ações do governo da florestania”894. Além dos 4 projetos desta modalidade
no Acre foram criados somente outros 3 até 2011, sendo 2 no Amazonas e 1 em Rondônia.
Estas duas modalidades de unidade fundiária ajudam a elucidar os rumos que
tomaram as propostas das reservas extrativistas no início deste século, no Acre, na mão dos
políticos ligados ao Partido dos Trabalhadores, sobretudo os que em tese se identificariam
ou possuiriam relações com o movimento seringueiro da década de 1980 e 1990. Ora,
tanto as Florestas Públicas, quanto o PAF poderiam perfeitamente ser convertidos em
reservas extrativistas, seja pelas unidades ligadas ao Sistema de Unidades de Conservação,
seja através da criação de Projetos de Assentamentos Agroextrativistas – PAE’s. Mas no
caso do Acre estas áreas foram incorporadas ao projeto econômico em favor da atividade
madeireira colocado em prática pelo “governo da floresta”895. O trecho de uma
entusiasmada matéria num jornal local, à época do lançamento do PAF não deixa dúvidas
quanto ao que temos colocado:

894
Ministro de Desenvolvimento Agrário lança projeto de Assentamento Florestal (PAF) nesta sexta feira
(19/12). Notícias Socioambientais – Instituto Socioambiental. Disponível em:
http://www.socioambiental.org/nsa/detalhe?id=1516 .
895
Slogan utilizado pelo governo do Acre.
1777
Na verdade, o anúncio da nova modalidade de assentamento de
trabalhadores será feito nesta próxima terça-feira em Brasília no gabinete
do ministro Miguel Rosseto, onde também estarão a ministra do Meio
Ambiente, Marina Silva, dirigentes do Ibama e do Incra, representantes
das ONGs nacionais e internacionais e os três políticos acreanos que
estão mais envolvidos diretamente com a formulação do novo modelo
agrário da região: o senador Sibá Machado (PT), coordenador da
bancada, o deputado federal Zico Bronzeado (PT) e o deputado estadual
Ronald Polanco (PT).
De Brasília, os dois ministros, os parlamentares, os dirigentes do Incra e
do Ibama e os representantes da sociedade civil seguem dia 19 para o
Acre a fim de lançarem no estado o primeiro Projeto de Assentamento
Florestal da Amazônia. No estado, eles se encontram com o governador
Jorge Viana, cuja administração participou diretamente da formulação,
em Rio Branco, da minuta da portaria que será assinada pelos dois
ministros e que vai consolidar o novo modelo de reforma agrária para
toda a Amazônia brasileira. (Jornal Página 20, 07/12/2003)896.

Enfim, estas duas modalidades (Florestas Públicas e PAF) dada a sua gênese, em
última análise, constituem decisões políticas contrárias à proposta das reservas extrativistas.
Seja porque prioriza a destinação de uma área povoada por seringueiros para posterior
concessão direta a uma empresa, seja pela sujeição a que são relegadas as famílias que ali
permanecem. Conforme lembram Paula e Morais (2010) a lei estadual sobre concessão de
florestas públicas foi aprovada em 2001, portanto durante o governo que tem o PT à frente.
Quanto ao PAF e sua espetaculosa concepção, os parlamentares envolvidos, são políticos
do Partido dos Trabalhadores, cuja carreira iniciou-se no movimento sindical e cooperativo
do movimento seringueiro. Sendo assim um claro contrassenso, pois conforme demonstra
a literatura (ESTEVES, 2010; PORTO-GONÇALVES, 2003.), o modelo de reforma
agrária, defendido pelos seringueiros para a Amazônia, eram as reservas extrativistas.
Feita esta consideração acerca das restrições do uso de PAFs e Florestas Estaduais,
acreditamos que estariam mais alinhados com a proposta das reservas extrativistas, pensada
pelo movimento seringueiro das décadas de 1970 e 1980, os PAE’s e Reservas Extrativistas
do Sistema de Unidades de Conservação – SNUC, somando uma área de 3.023.382,63
hectares, o que corresponde a 18,41% do território do Estado. Esta área, das quais 89,45%
encontra-se nas 05 Reservas Extrativistas ligadas ao SNUC, abrigaria em torno de 3% da
população do Acre. Mas isto não significa que esta população viva realmente do
extrativismo.

896
Jornal Página 20 – Coluna Política – Lula pode lançar projeto florestal no Acre. Matéria assinada por
Romerito Aquino. Disponível em: http://pagina20.uol.com.br/07122003/p_030712.htm .

1778
O USO DAS RESERVAS EXTRATIVISTAS PELOS SERINGUEIROS

Passados os conflitos iniciais com os que se opunham de maneira radical ao direito


do seringueiro e a criação da reserva extrativista como uma materialização deste direito,
logo após a criação das primeiras reservas, o combate e o repertório dos que se opunham
gira em torno da “inviabilidade econômica” da reserva extrativista. Os grupos de interesses
historicamente alimentados pelo latifúndio, entre outros, iniciam campanha para
propagação de ideias de que a reserva extrativista é um atraso para o “desenvolvimento” da
região amazônica. O desmatamento no interior destas unidades é um dos aspectos mais
explorados pelos que argumentam a inviabilidade da reserva extrativista. Porém, deve-se
ressaltar que embora haja desmatamento e a formação de pastagens para pecuária nestas
áreas de reserva isto se deve a falta de políticas públicas que efetivamente invistam no
desenvolvimento de outras atividades tal como idealizado inicialmente na proposição
destas unidades.
Não se pode analisar de maneira reducionista a introdução da atividade madeireira
nas áreas oficiais destinadas aos seringueiros, através do maniqueísmo que atribui ao
pensamento crítico ao MFC, uma defesa da pecuária bovina. É necessário buscar
minimamente as causas que favoreceram esta introdução através da investigação quanto à
situação das demais atividades desenvolvidas nestas áreas para garantir a reprodução social
dos seringueiros, que como podemos perceber em nossa pesquisa de campo são diferentes
do quadro econômico do final dos anos 1980. Não há produção de borracha e o corte da
seringa ocorre somente no PAE Chico Mendes em razão da proximidade deste com a
fábrica de preservativos masculinos de Xapuri;
Em sua relação com a terra, ou com a floresta, uma das características dos
camponeses florestais (SILVA, 2004) é o desenvolvimento de atividades produtivas que
lhes garanta o suprimento dos elementos necessários à reprodução de sua família que não
podem ser obtidos na própria unidade. Esta produção, no caso dos seringueiros do Acre,
até o final dos anos 1980 constituía-se da borracha e castanha. É na decadência da
economia da borracha que se justificaria a introdução de atividades até então desconhecidas
pelos seringueiros, e que neste caso trata-se da exploração de madeira.

[...] a ideia do manejo, toda vida foi mais econômica, porque se fosse pra
ter cuidado com o meio ambiente, ninguém fazia, deixa lá então... é por
isso que eu digo, a atividade é econômica, então tu que tem que ganhar
alguma coisa, pra tu fazer tanto trabalho e não ganhar nada, pra quê que

1779
vai mexer com a floresta!?”...“tem muita gente que fala só que se
preocupa com meio ambiente, não sei o quê... aí os cuidados do pessoal
é regularização através de imposto, porque um dos cuidados dos
políticos mais é imposto: se tu tá pagando tudo certinho, o negócio vai
de água baixo de novo, porque já tem o manejo empresarial, tem tanta
da coisa que não tem muita fiscalização. Dentro das reservas com esse
negócio da certificação, tem um monte de coisa que a pessoa paga, isso
gera mais custo, por isso que gera tanto custo que a madeira teria que ser
mais bem vendida senão não vale a pena e o pessoal tá dizendo: não, nós
estamos fazendo manejo, uns inventários, mas só que a mata está
descendo, da forma que eles fazem também. Porque se o pessoal daqui
quiser ganhar muito dinheiro com o manejo a floresta vai descer, aí pra
onde vai os cuidados ambiental? O que tem que ser feito é criar alguma
forma de transformar essa pouca madeira em mais dinheiro. Agora se
for pra vender em tora?!?! (Morador/a de PAE. Entrevista concedida a
João Maciel de Araújo, em junho de 2012).

A castanha tem contribuição importante na receita anual das famílias do PAE Chico
Mendes, mas praticamente é incipiente em Santa Quitéria e São Luis do Remanso.
Podemos perceber a importância deste item na composição da renda das famílias do
Cachoeira (PAE Chico Mendes), com base no relato de um morador da área que ao
mesmo tempo faz uma análise da relação entre conservação da floresta e atividades
produtivas:

Primeira aqui é a castanha, segundo é borracha (látex) e depois é o


manejo. Pra algumas pessoas, pra outras, que produzem muito legume,
o legume dá mais que o manejo. A pecuária é uma ‘segurançazinha’, tem
gente aí que tem muito gado, só que é pouco... Esse mato que tem aí,
essas coisas quem segura é o gado. O pessoal acha que o gado atrapalha,
atrapalha se a pessoa quiser. Antigamente, no tempo que era mata
mesmo, que tinha muita caça, pra poder matar era difícil, o pessoal
comia tudo, caça. Agora tu anda aí, o pessoal come mais é carne de boi,
porque aqui acolá um mata, outro mata... Se não fosse o gado o pessoal
tinha que desmatar pra fazer agricultura, pra fazer dinheiro mesmo, não
tinha jeito. E assim não: ele tem um pedaço de campo e tem o gado, na
hora que se aperreia, o gado é a poupança, ele vai lá e tira 500 reais e vai.
E se não fosse isso? O gado é a segurança, com todos esses produtos,
mas a borracha tem a época, a castanha tem a época, a madeira tem a
época e o gado é todo o tempo. Na hora da precisão é o gado que tu vai
(Morador/a de PAE. Entrevista concedida a João Maciel de Araújo, em
junho de 2012).

Além da exposição de um quadro em que revela aspectos das mudanças culturais


pelos quais passa o seringueiro a partir da década de 1990, este depoimento inverte a lógica
da relação entre o gado como gerador de renda monetária e a conservação da floresta.

1780
Neste sentido, associa a criação de gado à economia doméstica e não a criação para a
acumulação de capital.
Conforme suspeita o entrevistado do relato acima é certo que em outras áreas da
região do Alto Acre, a falta de conservação do número de árvores de castanheiras em razão
da conversão de florestas para a implantação de pastagem resultou na redução da
produtividade. Referindo-se as atividades econômicas desenvolvidas no São Luis do
Remanso, este entrevistado faz o seguinte relato.

Antigamente era bom de castanha, quando não era explorado, até dava,
mas agora... não sei também, o tempo mesmo encarregou de não
carregar mais, não sei o quê que tem, dá pouca produção, porque logo
quando cheguei aqui nessa minha colocação897 eu quebrava 180, 160
latas, hoje o máximo que a gente quebra aqui é 60, 70. E não foi
derrubadas, poucas castanheiras aqui desceu. [...] Seringa isso aí ninguém
fala mais. [...] O leite pra fábrica (de preservativos de Xapuri) não deu
certo, pela distância, o povo desanimaram também, com o preço do leite,
o negócio de um desconto aí. [...] Como a gente aprovou a reserva, não
era pra ser explorada e o que mais aconteceu foi a exploração. Foi o
maior ponto negativo que teve aqui dentro, foi esse desrespeito do povo,
pois já que a gente aprovou a reserva não era pra ter acontecido isso, a
exploração que houve aí. Muita coisa mesmo: o pessoal explorando,
vendendo, outros derrubando muito, venda de madeira também foi um
absurdo.[...] Nós temos um manejo, nosso manejo é até certificado, mas
houve mais tiração de madeira clandestina do que mesmo de manejo.
Agora continua saindo, nunca para, sempre o problema de madeira é
direto. Os maiores vendedores de madeira clandestina não é manejador.
(Morador/a de PAE. Entrevista concedida a João Maciel de Araújo, em
janeiro de 2013)

Quando perguntado sobre experiências com outros produtos o entrevistado


recorda de um projeto para extração e comercialização de semente de espécies madeireiras
nativas, executado com o apoio da ong Centro dos Trabalhadores da Amazônia – CTA na
área do PAE, durante a primeira metade dos anos 2000, mas que não teria continuidade
devido a falta de apoio por parte do governo.
Este é o cenário no qual se apoiam os defensores da introdução da exploração de
madeira em áreas onde moram os camponeses. Evidentemente, com base no que
esclarecemos ao longo deste trabalho, qualquer quantidade de área de floresta dos
territórios dos seringueiros, que se encontra imobilizada através de Plano de manejo para
exploração de madeira constitui indícios de que está sendo implementada uma estratégia

897
Unidade fundiária, básica da territorialidade seringueira. Para aprofundar ver Porto-Gonçalves (2003).

1781
concebida para viabilizar os interesses de outros grupos, visto que os seringueiros não
estariam reivindicando tal ação.
Contudo, apesar da arquitetura político institucional, como por exemplo, a criação
de uma Secretaria Estadual de Floresta – SEF (algo não visto em outros Estados), apesar
do pouco caso no fomento à atividades florestais não madeireiras, apesar do investimento
em infraestrutura e recursos humanos e as estratégias para o convencimento das
comunidades a imobilizarem parte do território em que vivem para a execução de Planos
de Manejo o resultado atingiu níveis praticamente insignificantes, se considerarmos que no
período de 1999 a 2011, a produção de madeira do Acre quadruplicou.
Com base em informações oficiais, o número total de famílias envolvidas no
“manejo comunitário” era de 859, em 2012. Quando excluímos desta quantidade as
famílias que encontram-se em outras modalidades de assentamento, que em tese poderiam
ser destinados a outros públicos que não seringueiros, e considerarmos somente as áreas
de Reservas Extrativistas do Sistema de Conservação, PAE, PAF e Florestas Públicas,
chegamos a 788 famílias, com uma área de 195.596,40 hectares de floresta destinada a
exploração de madeira através de MFC.
Porém, esta ainda não é a real situação do manejo que seria feito por comunidades
extrativistas, pois como vimos, os moradores de PAF e Floresta Públicas devem se
submeter as determinações dos órgãos responsáveis, no tocante as atividades produtivas.
Nestas duas modalidades, as famílias aderem de forma compulsória ao manejo madeireiro
e embora figurem nos números da SEF, tanto em áreas de PAF quanto Florestas Públicas,
neste caso estaduais, a discussão e os procedimentos técnicos para elaboração dos Planos
de Manejo estão no início. Destaque-se que o que tem sido chamado no Acre de “manejo
comunitário” em Florestas Estaduais, não significa que toda a área da Floresta está à
disposição da comunidade para a exploração da madeira.
Vejamos o caso do Complexo de Florestas Estaduais do Gregório, constituído por
três Florestas Estaduais: do Mogno, do Gregório e do Liberdade, com área de 486.319
hectares. Naquela região moravam centenas de famílias camponesas dispersas na floresta,
sobretudo as margens dos cursos d’água. Quando da criação das Florestas em 2004 898 o
Governo do Acre optou por retirar essas famílias de suas colocações e as reassentar em
lotes de até 100 hectares, numa faixa de terra destacada do total da área das florestas. Esta

898
A Floresta Estadual do Mogno foi criada pelo Decreto 9717, a Floresta do Rio Gregório pelo Decreto
9718 e a Floresta do Riozinho Liberdade pelo Decreto 9716, todos de 09 de março de 2004. O Decreto
3433 de 19 de setembro de 2008 cria o Complexo de Florestas Estaduais Rio Gregório e o Conselho
Consultivo Integrado.
1782
medida visa “limpar a área” para que a floresta pública possa ser outorgada a uma empresa
que retirará a madeira das florestas. Neste sentido, o manejo comunitário em Floresta
Pública, é o manejo que aquelas famílias que foram removidas de seus lugares de origem
realizarão nas áreas onde foram realocadas. Ou seja, as famílias são obrigadas a sair do
lugar onde nasceram e se criaram (nem todas) para que uma empresa possa explorar a
madeira. Como forma de compensação a esta violência, o governo constrói uma casa,
concede as bolsas de repasse de renda, entre outras medidas assistencialistas, e custeia a
elaboração de um plano de manejo naquela área que foi destinada a eles. Mas o manejo
madeireiro para o qual foram criadas as Florestas Estaduais trata-se do manejo que será
realizado pela empresa, conforme a legislação de concessão de florestas públicas.
Mas, se nas modalidades que discutimos acima a transformação e a negação do
direito de uso do território se dá de maneira aberta e generalizada, no caso dos PAE’s, a
introdução da atividade madeireira também impõe restrições e transformações quanto ao
entendimento e uso do território.
Primeiro porque a área da colocação a ser destinada ao manejo passa a obedecer
aos critérios estabelecidos em lei, não podendo, por exemplo ter uso que não aquele de
manejo dos recursos nativos. E em segundo, porque os requisitos técnicos do manejo
chocam-se frontalmente com um dos fundamentos da territorialidade seringueira, a
colocação e suas estradas de seringa.
Voltando aos números do manejo comunitário no Acre, deduzidas estas duas
modalidades, que como dissemos, caracteriza-se pela inclusão compulsória das famílias,
figurariam somente os números das famílias moradoras de PAE e Resex. Não dispomos
dos números referentes à exploração em Resex, uma vez que nossa pesquisa dispõe dos
dados referentes até 2012 e a primeira exploração efetiva na Resex Chico Mendes, só
ocorreu nos anos de 2014/2015. Em 2012, portanto, considerando as áreas de PAE’s,
haveria em torno de 54.728 hectares de florestas sob Plano de Manejo, o que corresponde
à 1,36% do território que de fato estaria destinada aos camponeses florestais. No tocante
ao uso do território, em contraste com os números das áreas sob plano de manejo para
retirada de madeira, segundo informações do sistema de Monitoramento do
desmatamento das formações florestais da Amazônia Legal – PRODES, do Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais - INPE899 em 2011 só a Reserva Extrativista Chico Mendes

899
Disponível em: http://www.dpi.inpe.br/prodesdigital/prodesuc.php .

1783
atingiria um total 44.950 hectares de área desmatada, na maioria destinada à pastagem, o
que corresponderia a 4,63% de sua área total.
Por um lado, estes números revelam que a imposição governamental do manejo
madeireiro é mais aberta e violenta para àqueles moradores de Florestas Públicas e PAF,
e por outro lado, revela que é absolutamente falsa a ideia de associar as reservas
extrativistas, de fato reivindicada pelos moradores, ao desenvolvimento do manejo
madeireiro, visto que apesar do empenho do governo, o número de famílias e quantidade
de área são demasiado reduzidos. Mas não se pode ignorar que nos anos seguintes, com a
criação de normas que permitem o MFC em áreas de Resex, do SNUC, o número de
famílias e áreas foi elevado, mais pela vontade das instituições de apoio, como o governo e
outras organizações que lucram ao longo do processo de elaboração de planos de manejo,
do que pela vontade dos moradores.
De outra parte, nos PAE’s, única modalidade onde em tese os moradores teriam
aderido livremente, o manejo madeireiro também não se constitui na atividade principal
dos moradores, pelo contrário, no Santa Quitéria ele praticamente não resultou em renda
para as famílias envolvidas.

Isso aí realmente é o próprio governo, isso é plano do governo, então


eles vieram até a associação, não foi a associação que foi atrás. Eles
vieram até a associação e fizeram reuniões. O povo viu, conforme o que
eles falaram a gente pensava que até iria melhorar de vida. Na minha
lembrança é isso. Até quando eles estavam mapeando a mata aí. [...] Foi
tempo perdido, porque atrapalhava muito, eles passavam muito tempo e
o trabalhador ele se ocupou nisso e eles mesmos não ganharam nada, os
manejadores não ganharam nada. Quem conseguiu tirar um pouquinho
da madeira ainda lucrou assim um pouquinho. Quem não tirou nada,
que só perdeu tempo? Tinha de acompanhar o engenheiro, tinha de ir
para as reuniões, tinha de fazer curso, foi muito tempo que eles
perderam. (Morador/a de PAE. Entrevista concedida a João Maciel de
Araújo, em maio de 2012)

No próprio Cachoeira, aquele onde há uma quantidade maior de famílias


envolvidas e onde houve maior quantidade de explorações, se confirmam as afirmativas de
Tritsch (2009) e Carvalho (2009) quanto a inviabilidade econômica do manejo.

Hoje, se for pro seringueiro tirar sem a ajuda de ninguém, do governo,


que é o governo que investe, tu vai tirar a madeira, vender e ficar
devendo. É um custo muito alto pra mexer com madeira: pagar
inventário, pagar a máquina pra puxar lá de dentro pra colocar na
esplanada, pagar frete para botar onde for vender... tu vai ficar devendo.

1784
[...] Porque o manejo até hoje é praticamente bancado pelo governo,
agora se tirar isso, o pessoal para, porque eles não tem condição. É uma
coisa que tá ganhando bem pouquinho dinheiro, mas não está perdendo.
Primeiro essa questão da liberação da madeira lá pelo IBAMA, pelo
IMAC passa o pessoal lá lutando dois anos. Acho que por um lado
também, se fosse tudo muito fácil e isso tivesse dando muito dinheiro
era uma forma de derrubar mais madeira, porque se as pessoas tivessem
ganhando muito..., umas tem mais cuidado e outras não tem! [...]o
governo tá pra ajudar, mas ele quer receber a recompensa de volta que
é o imposto, quanto mais gira e quanto mais vende, mais o governo
recebe pra investir de novo. Ele não quer um negócio parado que não
vai dar resultado. Ele quer que der renda pro Estado também. É ICMS.
(Morador/a de PAE. Entrevista concedida a João Maciel de Araújo, em
junho de 2012)

A pequena agricultura ocorre, sobretudo através do plantio de mandioca para a


produção de farinha nos PAE’s Remanso e Chico Mendes. As restrições para a abertura
de novas áreas e uso do fogo tem alterado a prática agrícola entre as famílias que em grande
medida tendem a aguardar tratores para a mecanização de suas áreas. Também dependem
de máquinas para a construção de tanques e açudes para a prática da piscicultura que é
vista com boa expectativa entre os moradores e Santa Quitéria.
Ricardo Carvalho (2009), em seu estudo sobre o manejo no PAE Porto Dias,
Equador e Chico Mendes, explicita os prejuízos decorrentes da atividade de manejo
comunitário, não sendo de todo inviável para os comunitários, pelo fato de estes prejuízos
serem arcados pelas instituições de apoio, o que quer dizer, pelo conjunto da sociedade.
Ricardo Carvalho (2009), destaca ainda em seu estudo sobre o manejo no PAE Chico
Mendes que para muitos participantes não houve maiores mudanças com a introdução do
manejo, exceto pelo que consideram excesso de reuniões, que demandariam um tempo
considerável. De outra parte Carvalho (2009) classifica como sendo empresarial o manejo
realizado no Porto Dias e Estatal aquele realizado em Chico Mendes e Equador, o que de
certa maneira diverge da perspectiva do estudo do FSC que considera o pacote
governamental a partir de 2007 como sendo voltado ao empresariado, em todos os planos
de manejo, já que exige o emprego das empresas em várias etapas, ficando o seringueiro
somente olhando. Na mesma direção está o estudo de Tritsch (2009), constatando que no
PAE Chico Mendes o nível de participação dos camponeses no processo de extração de
madeira e do registro de tal atividade é praticamente nulo, resumindo tal participação as
operações básicas de abertura de picadas e indicação de áreas.

1785
CONCLUSÕES

A realidade atual mostra que os territórios em que habitam os seringueiros está, de


um lado (o lado florestal), sendo preparado para a monopolização pelo capital ligado ao
setor madeireiro, e de outro (o lado já desflorestado), a serviço dos interesses da expansão
da pecuária. Ironicamente, ambas as alternativas são apoiadas pelo governo do PT, que se
projetou nacional e internacionalmente, sob o discurso de que abrigaria as aspirações do
movimento seringueiro, expressos no que foi chamado de um modo de governar da
“florestania”900.
Quando observamos a postura e o tratamento fiscal que o governo do Acre tem
dado à pecuária nos últimos 14 anos, desmitifica-se a ilusão apregoada de que os
seringueiros teriam triunfado sobre a implantação da pecuária e madeireiras, pois ocorreu
o oposto. A pecuária, especificamente, se associou a atividade dos camponeses, tornando-
se elemento de garantia da reprodução social, para além da reprodução biológica, que seria
assegurada pela concessão das bolsas do governo, como forma de compensar a
imobilização do território causada pelo rigor da legislação ambiental, que os manteria na
miséria.
Na primeira década deste século a produção de madeira em toras do Estado do
Acre atingiu em torno de 1,4 milhões de m³, um crescimento de 253%. Em 2002 estimava-
se em 28 milhões de metros cúbicos em tora a madeira oriunda da Amazônia Legal,
quantidade esta que a tornaria na região de maior produção do gênero no mundo. Deste
montante, 86% seriam consumidos no país e o Estado de São Paulo seria o principal
destino da madeira da Amazônia, cerca de 20% (PEREIRA e SANTOS et. al, 2010). No
Acre, estimamos haver em torno de 50 serrarias, das quais cerca de 80% localizadas na
região do Baixo Acre, sobretudo Rio Branco.
De maneira geral, as empresas do setor madeireiro possuem alto nível de
informalidade e é constante a oscilação dos níveis de emprego efetivo, visto que os
trabalhadores são dispensados mediante a disponibilidade de suprimento de matéria-
prima, geralmente reduzido no período chuvoso, bem como devido as oscilações do
mercado de madeiras. Segundo Pereira e Santos et. al (2010) a atividade madeireira no
Acre gerou em 2009, somente 1.518 empregos diretos e 3.123 empregos indiretos
(PEREIRA; SANTOS et. al, 2010). Por outro lado, conforme pudemos observar durante

900
Florestania foi um termo cunhado pelo governo do PT, como sendo uma síntese de sua administração,
pautada no respeito a floresta e valorização dos povos da floresta. Esse termo foi difundido como ideologia.

1786
pesquisa de campo, a concentração das indústrias no município de Rio Branco, leva um
número razoável de trabalhadores deste setor, sobretudo aqueles com residência na região
do Alto Acre, a migrarem temporariamente para trabalho precário nas serrarias da Bolívia
e Peru. Neste cenário, o manejo comunitário é uma estratégia de marketing, pois o volume
efetivamente explorado em todos estes anos é demasiado reduzido, frente aos números do
setor.
Neste sentido, o MFC tanto é visto como uma estratégia de política de governo,
como uma estratégia para acesso a mercados mais vantajosos, ao mesmo tempo que sugere
uma postura diferente à atividade, que historicamente esteve associada a expropriação de
populações nativas, mantendo em vantagem os madeireiros. A maior parte da produção
de madeira extraída das florestas do Acre, passa por beneficiamento primário e é enviada
para o mercado situado fora do Estado. Conforme demonstrou João Araújo (2011) isto
acarreta consequências negativas para alguns setores que empregam quantidade razoável
de trabalhadores, como no caso das marcenarias. Ou seja, a prática guarda grande distância
do discurso do desenvolvimento sustentável no Acre.

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1788
OS IMPACTOS DA MINERAÇÃO NO BRASIL: ANÁLISE DAS
COMUNIDADES ATINGIDAS PELO ROMPIMENTO DA
BARRAGEM DO FUNDÃO, MARIANA-MG

Manuela AQUINO901

Resumo: Entre os anos de 2000 a 2010 o setor mineral se torna um dos mais importantes da
economia brasileira, impulsionado pela demanda do mercado mundial e com apoio do Estado por
meio de volumosos repasses de recursos públicos através do Banco de Desenvolvimento Nacional.
Apesar do avanço e a importância que o setor mineral passa a exercer na economia, este não refletiu
por sua vez em um crescimento sustentável e um desenvolvimento endógeno para o país. Neste
cenário, a região sudeste do Brasil possui a maior concentração das companhias mineradoras,
sendo o estado de Minas Gerais o maior responsável pelas exportações de minérios. No ano de
2015 com o rompimento da Barragem de Fundão em Mariana-MG, o tema da mineração se coloca
nacional e internacionalmente. A extração mineral possui especificidades relacionadas a localidade,
a questão ambiental por se tratar de recursos não renováveis e a questão legislativa no que se refere
ao uso de solo e subsolo. Como também apresenta inúmeros conflitos com as comunidades locais,
uma forte concentração de terras e um alto grau de degradação ambiental. Este artigo tem por
objetivo analisar os impactos sociais da atividade de mineração no Brasil, sobretudo no que toca ao
mundo do trabalho, envolvendo as comunidades rurais atingidas pelo rompimento da barragem
do Fundão, Mariana-MG. Como também visa abordar a relação do setor mineral com o Estado
brasileiro, através do financiamento de campanhas, e da debilidade no que se refere a legislação
que regulamentam suas atividades. Isto, por entender que tal fenômeno se relaciona de modo
íntimo ao atual padrão, dependente de desenvolvimento econômico e social brasileiro.

Palavras-chave: Palavras-chaves. Mineração. Impactos socioeconômicos. Comunidades.

INTRODUÇÃO

Desde os anos 2000, a mineração vem se tornando um dos principais setores para
a economia do país, impulsionada pela demanda e pelo alto preço no mercado mundial.
Tal conjuntura, favoreceu a produção de uma espécie de dependência nacional pelas
exportações de minérios. O padrão econômico baseado na exportação de commodites
minerais traz consigo um cenário cada vez mais complexo por reproduzir um modelo
concentrador de terras, por ampliar a superexploração do trabalho, acirrar e intensificar os
conflitos, danos ambientais profundos, inviabilizando cada vez mais as formas tradicionais
de produção familiar e desfavorecendo a democratização do acesso à terra. Tudo isso com
um forte apoio do Estado, por meio de diversas ações e incentivos ao setor minerador,
visto que é um elemento-chave de seu próprio projeto de desenvolvimento nacional em
atendimento às demandas do capitalismo internacional.

901
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Estadual Júlio de
Mesquita Filho – FCLAr (PPGCS/ UNESP/Ar). Bolsista CAPES. E-mail: manuelamca@gmail.com

1789
Neste cenário, o estado de Minas Gerais que, historicamente, possui os maiores
índices nacionais de extração de minérios, ganhou ainda mais proeminência para o setor,
configurando-se como lócus privilegiado da observação e análise sociológicas acerca do
conjunto de contradições produzidos pela expansão da atividade de mineração. Assim é
que, em 2015, no município de Mariana, ocorreu o rompimento da barragem do Fundão,
causando uma das maiores destruições, ambientais, sociais e econômicas, relacionadas a
atividade de mineração no Brasil. O fato resultou em dezenove pessoas mortas, mais de
mil pessoas desabrigadas e danos ambientais que ainda não podem ser calculados. Até
onde se sabe, a lama tóxica produziu uma destruição socioambiental em diversos outros
municípios e distritos da região: mais de 1.469 hectares de terras foram afetadas,
totalizando trinta e cinco municípios de Minas Gerais que ficaram em situação de
emergência ou calamidade pública e outros quatro municípios do Espírito Santo, que
também foram afetados pelo rompimento da barragem.

O PROJETO NEODESENVOLVIMENTISTA E A REPRIMARIZAÇÃO DAS


EXPORTAÇÕES

Depois da década de 1990, o Brasil passou a desempenhar uma “nova” função


na estrutura global produzida pela mundialização do capital. Conduzido por um arranjo
macroeconômico centrado no ajuste fiscal, juro real elevado e câmbio flutuante, o
desenvolvimento econômico e social do Brasil ficou condicionado pelo ajuste estrutural às
condições de crise enfrentadas pelo capitalismo mundial desde a década de 1970.
Operando como plataforma de valorização financeira do capital especulativo transnacional,
com ampla estrutura de produção assegurada pela industrialização do período
desenvolvimentista anterior, sob forte indução do Estado, o Brasil saltou rumo à
especialização produtiva (FIRMIANO, 2014).
Nos governos do Partido dos Trabalhadores, através da Política de
Desenvolvimento Produtivo (PDP) e o Plano de Aceleração do Crescimento (PAC),
ocorreu um crescimento da economia que possibilitou a geração de empregos e
investimentos em programas sociais. Este fato foi possível devido a expansão capitalista no
Brasil, a partir da sua ampliação produtiva nos anos 2000, gerando a visão que este seria
como um novo desenvolvimentismo vivenciado no país.
Através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) o
Estado brasileiro passou a destinar volumosos recursos públicos para determinados setores
do capital, possibilitando a formação de verdadeiros players globais para atuarem no

1790
mercado internacional nos ramos da construção civil, alimentos, energia, siderurgia,
transportes, etc. Já com o PAC, em suas fases 1 e 2, impulsionou um processo de
recomposição e formação de infraestrutura social e produtiva, com destaque para os setores
de energia, saneamento, habitação, ferrovias, aeroportos, portos, estradas, entre outros
(POCHMANN, 2010, p. 142).
Acompanhando os repasses de recursos públicos para as grandes empresas e os
investimentos em infraestrutura produtiva e social, houve a expansão do mercado interno
e um aumento do consumo popular, consequência do aumento do salário-mínimo,
introdução do crédito consignado e crescimento do emprego: foram cerca de 21 milhões
de novos empregos criados no país em cerca de 10 anos (POCHMANN, 2012).
Segundo Maria Orlanda Pinassi, os governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff foram
pródigos na concessão de direitos para as chamadas “minorias”, com a Lei Maria da Penha,
os direitos ampliados aos negros, aos índios, aos homossexuais, entre outros. (PINASSI,
2013). Dentro das “concessões de direitos”, a partir de 2005, os investimentos também se
destinaram a educação com a criação de dois programas: o Programa Universidade para
Todos (Pró-Uni), que subsidia o ingresso do estudante nas universidades ou centros
universitários privados no país; e o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico
e Emprego (PRONATEC) que amplia o acesso ao ensino em nível técnico, buscando
qualificar o trabalhador para o ingresso no mercado de trabalho.
Apesar disso, a liberalização da economia brasileira reforçou a servidão do país ao
capital transnacional (PAULANI, 2008), permitindo sua livre circulação. O
neodesenvolvimentismo dos anos 2000, portanto, reforçou um quadro no qual:

A difusão desigual do progresso técnico acentuou as assimetrias da


divisão internacional do trabalho e exacerbou as características
predatórias do capital [...] Submetidas à ferocidade da concorrência
global e ao despotismo das potências imperialistas, as sociedades que
fazem parte da periferia do sistema capitalista tornaram-se presas de um
processo de reversão neocolonial [...] (SAMPAIO JR., 2012, p. 689).

A economia brasileira não foi capaz de encontrar uma rota de crescimento


sustentável e de desenvolvimento endógeno, mesmo depois de uma década de pesados
investimentos públicos e da consolidação da fórmula neodesenvolvimentista. O programa
de expansão capitalista dos governos do PT sequer foi capaz de recuperar a taxa de
acumulação de capital fixo produtivo, que no início de 1980 caiu cerca de 40% com
relação à década anterior, mantendo-se, até hoje, neste patamar. (PAULANI, 2009, p. 35).

1791
O neodesenvolvimentismo também não foi capaz de ir além do arranjo
macroeconômico, típico das economias periféricas industrializadas na fase de crise
estrutural do capital, baseado no investimento governamental – que já está em retração, e
que não é capaz de substituir o investimento privado – e no consumo puxado pelo
crédito consignado, que não é sustentável em longo prazo e não possui dinamismo para
conduzir o crescimento econômico.
A forte presença dos setores do agronegócio e mineral, possibilitou um pequeno
desenvolvimento da indústria, que após um longo período de estagnação (1981 a 2003)
obteve um crescimento de apenas 1,4% em média por ano, passou a crescer 5% em
média/ano dos anos 2000 até 2010. As condições da reprodução capitalista no atual
estágio do desenvolvimento das forças produtivas levaram o Brasil à desindustrialização,
no sentido exato da perda quali e quantitativa dos setores de progresso técnico e inovação
industrial, e à guinada rumo à reprimarização da pauta de exportações. (FIRMIANO,
2014).

No primeiro caso ocorre abandono paulatino do progresso técnico


endógeno como motor do crescimento industrial. No segundo caso,
remete-se quase toda a responsabilidade da competitividade externa para
as atividades não industriais – os serviços que pouco exportam e o setor
primário que muito exporta, baseado em “vantagens comparativas
naturais”. O equilíbrio externo em tais condições é muito precário e
dependente de capital estrangeiro (DELGADO, 2012, não paginado).

Com isto, o desenvolvimento capitalista brasileiro ficou condicionado pelas


articulações econômicas responsáveis pelo padrão atual da acumulação de capital, não
deixando margem para nenhuma forma de controle social possível sobre a reprodução
capitalista além do ponto da atenuação temporária das contradições deste processo. O
programa neodesenvolvimentista não pode realizar sequer o programa mínimo do
desenvolvimentismo do passado, cumprindo, hoje, uma função revitalizadora da periferia
no que toca ao seu lugar na divisão internacional do trabalho, anteriormente preparada
pela industrialização, qual seja, a função de plataforma de valorização financeira e de
exportador de produtos de baixa densidade tecnológica e de commodities, agrícolas e
minerais. Não sem produzir impactos sociais e ambientais de larga escala, como é o caso
da atividade extrativa mineral, onde ela se realiza no país.
A expansão do setor extrativo mineral, no entanto, vem sendo responsável por um
conjunto de impactos sociais e ambientais de larga extensão: “[...] estamos asistiendo a um

1792
interminable camino de destrucción e miséria, a una tragédia que tiene su culmen en el
tratamiento industrial de productos minerales [...]” (PINASSI, CRUZ NETO, 2012, não
paginado). A água e a energia são, pois, o calcanhar de Aquiles da atividade mineradora,
constituindo-se em fonte de conflitos em comunidades locais, sobretudo, quando da
instalação de novos projetos em seus territórios (PADILHA, BOSSI, 2014, p. 81).
De acordo com o relatório anual da Comissão Pastoral da Terra (CPT),

A crescente intensidade de extração de minério provoca exploração de


jazidas cada vez mais pobres, com custos de produção mais altos, maior
consumo de energias não renováveis e particularmente de água. Isso tem
preocupado cada vez mais as comunidades afetadas e as entidades
críticas à mineração, em tempos de crise hídrica regional e de
mudanças climáticas (PADILHA, BOSSI, 2014, p. 81).

Nos anos 2000, a perseguição pelo chamado superávit primário orientou parte
significativa, senão toda ela, da política econômica praticada por distintos governos.
Principalmente depois da crise de liquidez internacional, de 1998, quando os setores
primários da economia nacional foram chamados para equilibrar as contas externas
brasileiras. Neste, o setor de mineração passou a cumprir um importante papel na
conformação de uma política de equilíbrio das contas e produção de superávit. Conforme
dados do Instituto Brasileiro de Mineração (IBRAM), no ano de 2010, o superávit do setor
mineral foi de US$ 27,6 bilhões, a participação do setor no PIB saltou de 3,2 % em 2010
para 4,2 % em 2012 sendo responsável neste ano por 20% do total das exportações do país,
o que evidencia a dependência nacional pelas exportações de minérios.
De acordo com Coelho, “[...] é de suma importância compreendermos que a
dependência vai para além do âmbito econômico, e é exatamente aqui que torna-se
necessário a análise sociológica. Essa relação de países e, principalmente, entre classes, têm
efeitos sociais” (2012, p. 139). Muitos destes efeitos sociais são verificados por meio dos
conflitos que envolvem o setor mineral, no entanto este possui algumas particularidades
que ultrapassam as dimensões do conflito socioambiental que envolvem os recursos
naturais e o acesso ao uso de bens.
Milanez e Losekann (2016), nos apontam pelo menos cinco particularidades que
envolvem o setor mineral e merecem destaque. O primeiro aspecto relaciona-se a questão
da localidade, este setor se relaciona diretamente ao local onde são encontradas
concentrações de minérios e que possam ser extraídos pelas empresas, ao contrário de
outros setores que possuem maiores alternativas para as empresas como o caso do setor

1793
agrário. Um segundo aspecto e relacionado ao primeiro é que os minérios são recursos
naturais não renováveis, o que gera por parte das empresas uma busca por acesso a
melhores reservas e com facilidade de acessibilidade, como também uma tendência cada
vez maior de controle de sua extração. Quando se faz necessário a busca por outras áreas
de extração mineral, muitas vezes mais distantes e com menos oferta de recursos naturais,
as empresas buscam diminuir seus custos operacionais.
Um terceiro elemento é a institucionalidade que define juridicamente a distinção
entre o solo e o subsolo. Contudo, esta distinção não é aplicada no cotidiano o que
intensifica a dificuldade de mediação dos conflitos ambientais entre as empresas e as
comunidades afetadas pela mineração. Sendo as últimas muito prejudicadas, dado aos
elementos a serem abordados a diante, relacionado ao financiamento de campanhas
políticas como também a arrecadação dos municípios e estados via repasses da
Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Naturais (CFEM). Outro elemento
a ser considerado é a alta degradação ambiental provocada pelas atividades, associado a
falta de políticas e fiscalização que normatizem as atividades, o que impossibilita a
remediação de impactos.
O quinto elemento diz respeito a oscilação do mercado internacional na compra
por minérios, como vimos apesar de um crescimento a partir dos anos 2000 o setor passa
por uma baixa de preços a partir de 2011. Este fato gerou por um lado o fechamento de
mineradoras de pequeno e médio porte o que afeta diretamente as comunidades que
dependiam destas como fonte de trabalho; e por outro lado, as mineradoras maiores,
optaram por aumentar sua produtividade ampliando a extração de minérios e diminuindo
os custos operacionais, podendo adotar medidas como redução de investimento em
segurança, maior exploração do trabalho e diminuição de recursos para programas de
compensação ambiental.

Sendo assim, percebe-se um problema estrutural no modelo de


mineração adotado no Brasil. Existe um componente inerente de
impactos desproporcionais sobre populações locais. A forma como as
decisões são tomadas tende a prejudicar sistematicamente grupos locais
e trabalhadores, seja no momento da expansão, seja na retração da
extração. Dada essa realidade, seria de se esperar que o Estado atuasse
na forma de reduzir tais desigualdades, porém as instituições públicas
ainda não se prontificaram a assumir esse papel (MILANEZ;
LOSEKANN, 2016, p.409).

1794
Vale ressaltar que os conflitos socioambientais são um elemento estruturante do
processo de formação territorial do Brasil, primeiros os indígenas depois os negros, até os
dias atuais. A prática da violência também esteve presente quando comunidades se
rebelaram pela defesa do direito a terra, trabalho e à vida: Canudos (BA), Contestado (SC),
Teófilo Otoni (MG), Porecatu (PR), Trombas e Formoso (GO), das Ligas Camponesas
(PE), Corumbiara (RO), Eldorado dos Carajás (PA), dentre outras. No que se refere a
questão da violência no campo ainda estamos distantes de nossas instituições esterem
atuando a favor dos menos favorecidos, os dados do relatório “Conflitos no Campo Brasil
2016” da CPT aponta:

 61 assassinatos no campo, mais de 5 por mês (entre as vítimas, 16


jovens de 15 a 29 anos, 01 adolescente e 06 mulheres). No quadro dos
últimos 25 anos, número superior a esse só em 2003, com o registro de
73 assassinatos;
 1079 ocorrências de conflitos por terra (ações em que há algum
tipo de violência – expulsão, despejo, assassinatos, tentativas de
assassinato, ameaças de morte, prisões etc.). É o número mais elevado
nos 32 anos de registros da CPT;
 1295 no total do conjunto dos conflitos por terra (soma de
ocorrências, ocupações / retomadas, acampamentos) – média de 3,8
conflitos por dia. Número mais elevado desde 2006;
 172 conflitos pela água, número mais elevado desde quando a
CPT iniciou o registro em separado destes conflitos em 2002;
 1536 conflitos no campo (soma de conflitos por terra, pela água e
trabalhistas) – média de 4,2 conflitos por dia. Número mais elevado
desde 2008.

A violência praticada e intensificada referentes a conflitos socioambientais do


século XXI está ligada a concentração e centralização de capital e uma ausência do Estado
na busca de criar agentes de mediação, por parte de movimentos ou lideranças, que possam
tornar visível a demanda pelos direitos territoriais.

A dominação do capital na gestão e no planejamento territorial reflete-se


na histórica relação de poder da atividade minerária. E, de forma mais
perversa, na perda de direitos da população que habita as áreas de
interesse das empresas mineradoras. Para além da precarização da força
de trabalho e do aumento dos casos de violência urbana, destacam-se os
impactos relacionados à transformação arbitrária de dinâmicas
socioespaciais construídas historicamente. Famílias que habitam as áreas
de interesse das empresas mineradoras são, muitas vezes, removidas e
forçadas a aceitarem indenizações irrisórias ou outras formas de moradia
que desconsideram os vínculos afetivos e de pertencimento com o lugar,
as identidades territoriais construídas coletivamente e, não raro, também

1795
o real conceito de moradia digna (PASSOS; COELHO; DIAS, 2017, p.
276).

O ROMPIMENTO DA BARRAGEM DE FUNDÃO E SEUS IMPACTOS

Das companhias mineradoras existentes no Brasil, sua maior concentração está na


região Sudeste (3.609 empresas), seguidas das regiões Sul (2.065 empresas), Nordeste
(1.606 empresas), Centro-Oeste (1.075 empresas) e Norte (515 empresas) (DNPM, 2012).
No âmbito da região sudeste, o estado de Minas Gerais, somente em 2014, respondeu por
47,4% das exportações de minério de ferro e 55,7% de ouro do Brasil, além de possuir: a
maior produção de minério de ferro, ouro, zinco, fosfato e nióbio, sendo este último
também a maior do mundo (92%); ser o 2º maior na produção de bauxita; o 3º maior na
produção de níquel; e possuir a maior reserva de manganês dentre os estados brasileiros
(DIPLAM, 2015, p. 2-3).
O município de Mariana, no estado de Minas Gerais, por seu turno, esteve entre
os primeiros do país em repasses da Compensação Financeira pela Exploração de
Recursos Naturais (CFEM), no ano de 2014, sua arrecadação foi de R$ 106.059.924,46.
Apesar desta arrecadação, o município convive com indicadores sociais baixos,
particularmente no que diz respeito à desigualdade de renda e à pobreza no meio rural.
Dos 853 municípios, Mariana detém a 275ª menor renda per capita domiciliar rural902 de
Minas Gerais e, medindo a desigualdade de rendimentos por meio do Gini903, é o 226º
município mais desigual de Minas Gerais (DATASUS, 2015).

[…] a pobreza e a desigualdade das regiões mineradas e sua dependência


da indústria extrativa mineral (IEM) se retroalimentam e asseguram a
sobrevivência de ambas. De um lado, a pobreza facilita a instalação das
atividades extrativas e a aceitação de seus impactos; enquanto, de outro,
as operações da IEM dificultam a instalação de outras atividades
econômicas, contribuindo para a redução da diversidade da estrutura
econômica, sendo a dependência da atividade criada e reforçada por
investimentos públicos e privados. Em particular, a estrutura econômica
de Mariana sustenta e reforça a minério-dependência e perpetua uma
situação agravada de fragilidade ambiental e social (POEMAS, 2015, p.
7).

No entanto, foi no dia 5 de novembro de 2015 que o município de Mariana se


destacou no cenário nacional e internacional devido ao rompimento da barragem do

902
Valor do rendimento nominal mediano mensal per capita dos domicílios particulares permanentes – rural
903
Índice de representação da desigualdade de renda.

1796
Fundão. Fato que resultou em dezenove pessoas mortas, mais de mil pessoas desabrigadas
e danos ambientais que ainda não podem ser calculados. A lama tóxica produziu uma
destruição socioambiental em diversos outros municípios e distritos da região: mais de
1.469 hectares de terras foram afetadas, totalizando trinta e cinco municípios de Minas
Gerais que ficaram em situação de emergência ou calamidade pública e outros quatro
municípios do Espírito Santo, que também foram afetados rompimento da barragem
(WANDERLEY; MILANEZ; GONÇALVES, 2016, p. 31).
A Samarco, empresa responsável pelo rompimento da barragem do Fundão,
exemplifica a reestruturação do setor siderúrgico brasileiro após a crise econômica e a
perda de investimento público, seguido da implementação de políticas neoliberais. Embora
apresentada como uma empresa brasileira, a Samarco Mineradora S.A. é controlada pelo
grupo BHP Billiton Brasil Ltda904 e pela Vale S.A.905, compostas com capitais internacionais.
Todo o setor siderúrgico passa por um processo de privatizações, fusões e
aquisições por grupos internacionais. Este processo, intensifica a inserção do setor no
mercado global, podendo ser considerado um importante setor econômico para eixo de
desenvolvimento do país na produção e exportação de minérios e, mais recentemente, a
forte expansão de produtos industriais semiacabados como o aço e o alumínio. (PORTO
e MILANEZ, 2009).
A atuação da Samarco/Vale/BHP está relacionada à dimensão estrutural da
expansão das operações de extração, processamento, logística e disposição de resíduos
desempenhadas por corporações mineradoras em todo o mundo e que foi intensificada no
Brasil pela ação do Estado e seus operadores no exercício de seu papel regulatório sobre
o setor.
Outro aspecto importante a ser destacado acerca da expansão da atividade de
mineração no Brasil ao longo dos anos 2000, diz respeito à relação público-privado,
evidenciada através do financiamento das campanhas eleitorais em níveis estaduais e
federais. Nas eleições de 2014, no estado de Minas Gerais, o atual governador Fernando
Pimentel (PT) recebeu das empresas do grupo Vale um total de R$ 3,1 milhões, via fundo
partidário, além dos casos de deputados ligados a Comissão Externa Extraordinária das
Barragens, criada para acompanhar e monitorar as consequências do rompimento da

904
Companhia anglo-australiana, é a maior mineradora diversificada do mundo, tendo como principais
produtos minério de ferro, diamante, carvão mineral, petróleo, bauxita, cobre, níquel e urânio.
(http://www.samarco.com/acionistas/)
905
Com sede no Brasil, é líder mundial na produção e exportação de minério de ferro e pelotas e figura entre
as principais produtoras no mundo de diversos outros minerais, tais como concentrado de cobre, bauxita,
alumina, alumínio, potássio, caulim, manganês, ferroligas
1797 e níquel. (http://www.samarco.com/acionistas/)
Barragem de Fundão que, entre seus dezenove membros efetivos, dez tiveram suas
campanhas financiadas pelas empresas do grupo Vale (POEMAS,2015).
Segundo o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente a Mineração
(CNDTM):

O Estado brasileiro tem sido incapaz de definir uma orientação pública


e democrática para a política de acesso aos bens minerais, legitimando
padrões de comportamento corporativo incompatível com o respeito aos
direitos de trabalhadores mineiros, comunidades locais e populações
afetadas por suas operações (CNDTM, 2013, s/p).

O Estado é um ator fundamental no processo de beneficiar as mineradoras, seja


por meio da flexibilização da legislação que regulamenta a atividade mineral, pelo caráter
não consultivo as populações afetadas ou pela debilidade dos órgãos responsáveis pela
fiscalização ambiental o que possui influência direta na questão da segurança.

Sobre a segurança das barragens de rejeito de mineração é preciso


pontuar algumas questões relativas às fragilidades no processo de
licenciamento e monitoramento. Considerando o contexto de Minas
Gerias, o levantamento realizado em 2014, pela Fundação Estadual do
Meio Ambiente (FEAM), constatou que, das 754 barragens do estado,
mais de 40 delas não apresentavam condições de segurança atestadas.
Além disso, existe um histórico considerável de rompimentos de
barragens em Minas Gerais, o que constata a falta de segurança dessas
estruturas, podendo ser citado o recente rompimento da barragem de
Herculano, em setembro de 2014, na cidade de Itabirito (PASSOS;
COELHO; DIAS, 2017 p. 284).

Com relação as regiões afetadas pelo rompimento da barragem de Fundão, vale


ressaltar que das oito localidades atingidas, três povoados têm sua situação de domicílio
predominantemente no meio rural, sendo eles Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e
Gesteira; a cidade de Barra Longa concentra a maior parte da situação domiciliar também
no meio rural (3.830 pessoas), em Mariana são 3.830 pessoas morando em áreas rurais
(IBGE, 2015).
Os rejeitos da barragem do Fundão impactaram diretamente as comunidades
rurais, que ainda necessitam de maiores investigações, ao passo que afetaram as condições
materiais e imateriais da existência dos trabalhadores e trabalhadoras que vivem da terra.

1798
Os impactos socioambientais do desastre da Samarco/Vale/BHP nos
territórios de existência coletiva de camponeses e ribeirinhos expõem
um cenário de agressão frontal aos direitos e à dignidade destas
populações. Essa compreensão contribui para trazer para o debate a
gravidade dos problemas que esses sujeitos enfrentam no cotidiano dos
lugares da vida e do trabalho, como as comunidades rurais,
assentamentos de reforma agrária e povoados. Com efeito, é evidente
que as fontes naturais e sociais que garantem a reprodução do
campesinato local foram erodidas pelo poder destrutivo da lama de
rejeitos, com prejuízos na geração de renda e ameaçando as
possibilidades de permanência nos seus territórios (POEMA, 2015, p.
70).

Estas comunidades rurais afetadas pelo rompimento da barragem apresentam


algumas especificidades, pois o território não significa apenas um local de moradia, diz
respeito também a sobrevivência econômica e reprodução social. Assim, representa uma
ruptura e uma violação a um processo de lutas e construção de valores vinculados a
permanência na terra (POEMA, 2015).
O caso de Mariana se tornou emblemático pelas proporções da destruição, porém
os danos causados pela mineração se manifestam de diferentes formas, segundo o Centro
de Tecnologia Minera (CETEM), os danos da mineração permanecem por dezenas ou
centenas de anos após os fechamentos das minas. Outro impacto negativo atribuído a
mineração são os conflitos nos territórios, como já mencionados anteriormente.
No município de Mariana, no ano de 2014, a Samarco ampliou seu consumo de
água, tendo um aumento de 114% em relação ao ano de 2009 (Samarco Mineração, 2011,
2012, 2013, 2014, 2015). Isto resultou na redução em 50 % no nível da captação de água
no ano de 2014, fato que teve como desdobramento a adoção de medidas como
contratação de caminhões pipas, implementação de sistemas de rodízios no abastecimento
de água nos bairros da cidade por parte da prefeitura municipal (Prefeitura de Mariana,
2015, www.pmmariana.com.br).
Não por coincidência, no mesmo ano de 2014, a Samarco concluiu seu Projeto
Quarta Pelotização (P4P), ampliando sua capacidade de produção em 37%. O
investimento no projeto foi de 6,4 bilhões, um dos maiores do país, incluía a construção
de uma terceira unidade de concentração em Mariana, da quarta usina de pelotização em
Ponta Ubu e de uma terceira linha de mineroduto ligando as duas unidades (Relatório
Sustentabilidade Samarco 2013)
Em relação ao P4P, suas maiores consequências foram:

1799
i. a ampliação da escala operacional da empresa nos últimos anos
condicionou e interagiu com os determinantes fisiográficos da reserva,
intensificando sua depleção mineral quantitativa e qualitativa e, portanto,
impulsionando a expansão significativa da geração de estéril e rejeitos de
minério; ii. essa expansão demandou, consequentemente, ampliações
correspondentes da capacidade de disposição de estéril e,
principalmente, rejeitos, determinando o aumento exponencial do uso
de recursos naturais (em especial da água, nos processos de
beneficiamento primário e disposição) e da escala dos riscos associados
à opção preferencial da empresa por barragens; iii. finalmente, esses
elementos mantêm uma orientação exclusivamente exportadora,
definida em função de estratégias privadas e públicas de acesso a recursos
minerais escassos, assim como do próprio Estado brasileiro na entrada
de divisas e equilíbrio da Balança Comercial. (POEMA, 2015, p. 9).

De acordo com Henriques e Porto (2015), as empresas e as populações locais


atuam em lógicas diferentes, ao passo que as empresas operam focando sua inserção na
economia mundial, as populações têm o objetivo de manter seus processos de reprodução
social no local. Dois fatores são importantes para a compreensão de como se mantém a
convivência de duas lógicas diferente e contraditórias, o primeiro se refere a relação de
dependência, na qual a população se submete a danos ambientais e sociais, como a
superexploração do trabalho, pela empresa ser a única possibilidade de atividade
econômica. Outro fator relevante é a utilização de campanhas de marketing e a criação de
programas sociais para a aproximação e criação de consenso entre a comunidade
(FARIAS, 2002).
Tádzio Peters Coelho, contribui para a reflexão sobre os efeitos da atividade
minério-exportadora nas populações locais da região mineradoras. Utiliza a concepção de
minério-dependência que possui implicações além da econômica, mas também social e
política, cultural das populações frente a mineração

Com a infra-estrutura da região mineradora, o lucro de curto prazo é


possível apenas para as mineradoras que, dessa forma, serão as únicas a
terem intenção de investirem na região. Assim, a população local se vê
envolta numa “minério-dependência” que têm implicações além de
econômicas, também, sociais e culturais. Movimentos contra-
hegemônicos encontram obstáculos difíceis de serem superados, além
do que a população local imersa no desemprego e subemprego facilita a
instalação das mineradoras, sendo um elemento chave na negociação das
mineradoras com as entidades locais e movimentos sociais. Os prejuízos
decorrentes da mineração são suportados em troca de pequenas
concessões feitas pelas mineradoras. O trabalho nas minas, por mais
árduo que seja, é sinônimo para a população local de atendimento das
necessidades humanas básicas, e é exatamente essa consequência de

1800
curto prazo o principal trunfo para a manutenção da atividade minério-
exportadora.
Essa dependência de uma única empresa, ou atividade econômica,
possibilita uma maior tolerância por parte da população frente aos
prejuízos, não só ambientais, mas também sociais, como a
superexploração do trabalho. Aqui se evidenciam os efeitos sociais da
dependência para além de suas consequências econômicas (COELHO,
2012, p. 53).

Todos os impactos socioambientais causados pela atividade de extração mineral


em Mariana até 2015 não se comparam aos que foram causados pós rompimento da
barragem do Fundão, no qual comunidades inteiras desapareceram em baixo da lama
indicando o caráter destruidor do desenvolvimento econômico centrado nas atividades do
setor extrativo mineral. Até hoje muitas das famílias não conseguiram retornar para suas
casas e vivem em casas e apartamentos alugados em outros municípios, como é o caso das
pessoas que viviam em Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo.
Após essa tragédia poderíamos esperar que medidas em relação a legislação
ambiental pudessem ser revistas por parte do Estado, porém o que tem se construído são
aprovações de mais leis que aumentam a vulnerabilidade relacionada as atividades do setor
mineral. Como é o caso das recentes legislações aprovadas:

 Lei nº 21.972/2016, que restringe o tempo de avaliação dos Estudos de Impacto


Ambiental pelos órgãos ambientais (art. 21) e permite que os licenciamentos de
projetos sejam debatidos sem a devida análise pelos órgãos competentes (art. 23).
A lei também cria a classe de “projetos prioritários” que não seriam mais avaliados
pelos órgãos técnicos competentes, mas sim por uma estrutura complementar da
Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (arts. 5º,
24 e 25);
 Emenda à Constituição nº 65/2012 (PEC 65/2012) que inclui um novo artigo na
Constituição Federal “A apresentação do estudo prévio de impacto ambiental
importa autorização para a execução da obra, que não poderá ser suspensa ou
cancelada pelas mesmas razões a não ser em face de fato superveniente”. Aprovada
na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal em abril de
2016;
 Criação do Programa de Revitalização da Indústria Mineral Brasileira (25/07/017)
pelo governo de Michel Temer que incluem três novas medidas provisórias: criação
da Agência Nacional de Mineração (ANM), a modernização do Código de

1801
Mineração e o aprimoramento da legislação que trata da Compensação Financeira
pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM);
 Criação de um decreto para extinguir a Reserva Nacional de Cobre e Associados
(RENCA) localizada nos Estados do Pará e Amapá com o intuito de atrair
investimentos do setor mineral (23/08/2017).

Das medidas institucionais referentes ao desastre de Mariana uma destas foi a


criação de um Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), firmado entre
a união, governos dos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, e as empresas Samarco,
Vale, e BHp Billiton. Entre os pontos do TTAC está a execução de projetos e programas
entre outras medidas a serem aplicadas nas áreas atingidas, sendo que estas ações devem
ser planejadas e executadas por uma Fundação, segundo a cláusula 5 inciso IV “A
SAMARCO, a VALE e a BHP instituirão uma Fundação de Direito Privado, com
autonomia em relação às instituidoras, com o objetivo de gerir e executar todas as medidas
previstas nos programas socioeconômicos e socioambientais” (TERMO DE
TRANSAÇÃO E DE AJUSTAMENTO DE CONDUTA, 2016, p. 14). Em outras
palavras, a responsabilidade de propor ações de mitigação aos danos causados fica sob
responsabilidade das próprias empresas que os acusaram, ainda prevê a contratação de
experts, profissionais especializados para executar o diagnóstico e também construir o
planejamento das ações, a contratação destes também a critério da Fundação, ou seja, das
empresas.
Para o acompanhamento do Estado o TTAC prevê a consolidação de um Comitê
Iterfederativo, na cláusula 242 no seu primeiro parágrafo “o Comitê Interfederativo será
uma instância externa e independente da Fundação, formado exclusivamente por
representantes do poder público” (TERMO DE TRANSAÇÃO E DE AJUSTAMENTO
DE CONDUTA, 2016, p. 108). Este Comitê, por sua vez seria composto por: 2
representantes do Ministério do Meio Ambiente, 2 do Governo Federal, 2 do Estado de
Minas Gerais, 2 do Estado do Espírito Santo, 2 representantes dos municípios de Minas
Gerais afetados pelo Rompimento da Barragem, 1 representante dos municípios do
Espírito Santo afetados pelo Rompimento da Barragem e 1 representante do CBH-Doce906.
Este seria um dos únicos espaços previstos para a participação das populações atingidas,
sendo 3 representantes em um grupo de 12 pessoas, como também como vimos

906
CBH-Doce é um órgão colegiado, com atribuições normativas, deliberativas e consultivas, no âmbito da
Bacia Hidrográfica do Rio Doce, vinculado ao Conselho Nacional de Recursos Hídricos – CNRH.

1802
anteriormente as posturas dos agentes públicos até então podem ser questionadas em
relação ao favorecimento das mineradoras em tais casos.

Dessa forma, os desenhos institucionais que vêm sendo elaborados para


prevenir novas tragédias envolvendo projetos minerais se mostram, na
melhor das hipóteses, repetições do modelo que permitiu que houvesse
o rompimento da barragem do Fundão. Mais do que isso, a proposta
para “solucionar” os problemas causados foi elaborada a partir de um
Acordo excludente, que não envolvia as partes mais interessadas, ou seja,
os atingidos. Esse cenário indica a incapacidade das atuais instituições
construírem por si próprias arranjos institucionais que sejam ao mesmo
tempo efetivos, participativos, justos e democráticos. para que isso
ocorra, as evidências sugerem a necessidade de maior pressão e um
envolvimento ativo de comunidades atingidas (e potencialmente
atingidas) e dos movimentos organizados sobre as instituições de Estado
e mesmo sobre as empresas (MILANEZ; LOSEKANN, 2016, p. 414).

No mesmo ano de 2016, o Ministério Público Federal dos estados de Minas Gerais
e do Espírito Santo abriram um processo criminal contra 23 pessoas e as 3 empresas sendo
entre eles: a Samarco, Vale e BHP por crimes ambientais; indiciando 12 pessoas ligadas a
estas empresas por homicídio doloso (quando o agente não deseja o resultado, mas assume
o risco); e um engenheiro da empresa por laudo ambiental falso; entre outros. No entanto,
no dia 07/08/2017 o processo criminal foi suspenso pela Justiça Federal a pedido da defesa
dos ex-diretores da Samarco que tem por objetivo anular a ação (Folha de São Paulo,
2017).

CONCLUSÕES

O padrão econômico baseado na exportação de commodites minerais traz consigo


um cenário cada vez mais complexo por reproduzir um modelo concentrador de terras,
por ampliar a superexploração do trabalho, acirrar e intensificar os conflitos e causar danos
ambientais profundos. Neste cenário, o Estado possui um papel central por incorporar este
modelo enquanto projeto de desenvolvimento nacional em atendimento às demandas do
capitalismo internacional, desempenhando um forte apoio ao setor mineral através de
ações e incentivos diretos.
O caso do rompimento da barragem de Mariana nos oferece elementos
importantes para a necessidade de revermos as políticas da expansão mineral, tanto no que
tange as políticas ambientais como os impactos causados as populações que são atingidas
de forma direta ou indireta pelas atividades mineradoras. Não se trata de um

1803
posicionamento contra ou de paralisação das atividades mineradoras, tendo em vista da
necessidade destes recursos para muitas atividades da população, mas sim de ponderar a
forma como a atividade tem sido implementada de forma a causar uma superexploração
dos recursos naturais e sociais.

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1805
GT 09 – O MUNDO DO TRABALHO NO
CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO:
INSTITUIÇÕES E DIREITOS

1806
NEODESENVOLVIMENTISMO: TRÊS ABORDAGENS SOBRE O
CONCEITO E SEU IMPACTO SOBRE O MUNDO DO TRABALHO

Alessandro Rodrigues CHAVES907

Resumo: Desde a ascensão ao poder do Partido dos Trababalhadores (PT) nas eleições de 2002
muito tem se discutido sobre a política econômica e social do governo. É cada vez mais comum
associar as iniciativas deste governo com o conceito neodesenvolvimentismo. Contudo, ainda é
necessário compreender o que se entende quando é feita referência a tal conceito, assim como a
verificação de sua prática pelo governo citado. Na busca da compreensão do significado do
neodesenvolvimentismo, realizamos uma sistematização com base em autores que formularam a
teoria, que a transformaram na política econômica implantada, e ainda, que utilizaram a categoria
para se referir à uma frente política que caracteriza a manutenção e a legitimidade da política
econômica neodesenvolvimentista. Percebe-se que a formulação da teoria econômica praticada
pelos governos liderados pelo PT pretende se diferenciar do modelo neoliberal. Diante dessa
pretensão, passamos a investigar se o neodesenvolvimentismo, em sua teoria, em sua prática e em
sua composição de classes, apresenta uma postura que pretenda superar os impactos do
neoliberalismo sobre o trabalho. Em forma de perguntas: o neodesenvolvimentismo reconfigura a
reestruturação produtiva que emerge na década de 1990 em conjunto com as práticas políticas
neoliberais? Em que medida os trabalhadores participam da frente política que legitima a política
econômica colocada em vigor? Os resultados obtidos demonstram que o cenário estrutural do
mundo do trabalho implantado pela reestruturação produtiva não sofreu alterações significativas,
no que se refere à particularidade das relações trabalhistas no país, o que permite dizer que as
características neoliberais ainda permanecem durante o período neodesenvolvimentista

Palavras-chaves: Neodesenvolvimentismo. Neoliberalismo. Precarização do trabalho.

INTRODUÇÃO

Se convencionou a chamar de neodesenvolvimentistas os governos liderados pelo


partido dos trabalhadores. Tal conceito procura distanciar a prática política deste governo
dos antecessores neoliberais, principalmente em relação ao papel do Estado e às políticas
sociais. Dentre essas se destacam a geração de empregos formais e os programas de
transferências de renda. Este artigo procura investigar as potencialidades do modelo
neodesenvolvimentista em superar o neoliberalismo, em especial sua configuração sobre o
mundo do trabalho.
O texto é desenvolvido da seguinte forma: primeiro, descrevemos as formas de
compreensão do neodesenvolvimentismo, sua teoria, a prática política e a base social que
sustenta tal modelo. Em seguida tratamos do neoliberalismo, procurando compreendê-lo
em um de seus fundamentos essenciais, a reestruturação produtiva. Assim, apropriando-se

907
Doutorando em ciências sociais – UNESP – Araraquara. E-mail: ale.r.chaves@hotmail.com.

1807
da categoria do neoliberalismo será possível compreender em que medida o
neodesenvolvimentismo o supera.

A TEORIA NEODESENVOLVIMENTISTA

Podemos dizer que o neodesenvolvimentismo (ou novo-desenvolvimentismo),


enquanto teoria, é oriundo de intelectuais vinculados a universidades e institutos como:
Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo; Instituto de Economia da
Universidade de Campinas (IE); Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Mattei, 2011,
Carneiro, 2013). Sem ter o objetivo de diferenciar os fundamentos econômicos de cada
instituto é importante identificar os aspectos que os unem, formando assim um conjunto
de ideias comuns que caracteriza o que é denominado neodesenvolvimentismo, e mais do
que qualquer outro elemento, o que os assemelham é a identificação teórica com as teses
keynesianas e desenvolvimentistas:

O novo desenvolvimentismo é um “terceiro discurso” entre o velho


discurso desenvolvimentista e a ortodoxia convencional. É a alternativa à
ortodoxia convencional que vem se desenvolvendo na América Latina
desde o inicio dos anos 2000, com a participação dos economistas
keynesianos e economistas do desenvolvimento. (BRESSER-PEREIRA,
2011, p. 17)

E a pretensão de ser uma alternativa ao fracasso das políticas neoliberais e suas


consequências sociais:

O debate sobre o desenvolvimento retomou seu espaço na agenda


pública em todo o mundo e, mais particularmente, na América Latina,
devido a dois fatores básicos: o fracasso das reformas políticas e
econômicas das duas últimas décadas do Século XX propostas pelas
agências multilaterais (FMI e Banco Mundial) e o grave problema social
decorrente da exclusão de milhões de pessoas do acesso aos mercados
(trabalho, de bens, etc.) e aos serviços básicos, como saúde, educação,
habitação e saneamento. (MATTEI, 2011, p. 8).

1808
Portanto, trata-se de uma teoria que se distingue da ortodoxia convencional908 e
emerge do “fracasso” das políticas inspiradas pela ortodoxia econômica. O
neodesenvolvimentismo enquanto teoria se diferencia do desenvolvimentismo tradicional
na medida em que é crítico quanto ao protecionismo praticado pelo antigo modelo, pois
impedia o avanço tecnológico e a competitividade das empresas nacionais; no
neodesenvolvimentismo as empresas privadas nacionais – principalmente os setores
produtivos – devem ser estimuladas para melhorar sua competitividade e inserção
internacional (BRESSER-PEREIRA, 2011).
Em relação ao papel do Estado também há significativa diferença. Se no antigo
desenvolvimentismo o Estado assumia um papel central como um agente interventor,
atuando quase como um empresário, na teoria neodesenvolvimentista as suas funções
serão outras: a) regular a economia, estimulando e direcionando o mercado e o sistema
financeiro rumo ao desenvolvimento e não aos investimentos especulativos; b) realizar a
gestão pública de forma eficiente e com responsabilidade; c) implementar políticas
macroeconômicas defensivas e em favor do crescimento; d) adotar políticas que estimulem
a competitividade da indústria e que melhorem sua inserção no mercado internacional; e)
adotar um sistema tributário progressivo, que reduza as desigualdades de renda (MATTEI,
2011, p. 11).
Diferente também do desenvolvimentismo tradicional, o neodesenvolvimentismo
encontra no Estado um forte aliado para a resolução de problemas sociais. Se no antigo
desenvolvimentismo a melhoria geral das condições sociais cabia apenas a industrialização
e modernização do país, aqui o Estado, em teoria, terá uma participação fundamental para
promover a inclusão social e eliminação da pobreza (MATTEI, 2011, p. 11).
Por este aspecto é comum se falar também em “social-desenvolvimentismo”
(CARNEIRO, 2013). A teoria neodesenvolvimentista “tem na demanda sua força dinâmica
principal. Por meio do manejo das políticas macroeconômicas, o Estado garantiria não só
a estabilidade de preços, mas também a macroeconômica, entendida como sustentação da
demanda” (CARNEIRO, 2013, p. 19). Especificando: “No caso de países
subdesenvolvidos, sua insuficiência crônica estaria associada ao crescimento dos salários
abaixo da produtividade, por conta do excedente estrutural de força de trabalho,

908
Ortodoxia convencional é a categoria atribuída por Bresser-Pereira (2010) para designar “/.../ o meio pelo
qual os Estados Unidos, no nível das políticas e instituições econômicas, expressam sua hegemonia ideológica
sobre o resto do mundo e principalmente sobre os países em desenvolvimento dependentes que carecem de
nações suficientemente fortes para desafiar essa hegemonia, como tradicionalmente tem acontecido com os
países latino-americanos.” (p.26).
1809
conformando uma insuficiência do consumo /.../” (Ibidem). Portanto, há uma associação
entre desenvolvimento econômico e a melhoria das condições de vida da população, na
medida em que se fortalece o potencial de consumo da população, via políticas de
transferência de renda, e/ou ampliação dos empregos e aumento do salário mínimo, o que
aumenta a demanda potencializando, supostamente, o crescimento econômico.
Assim, a proposta política e econômica dessa corrente teórica passa por aumentar
a demanda incluindo mais indivíduos nas relações de mercado, transferindo renda e
aumentando o número de empregos. O que não se apresenta em tal proposta, são as
condições estruturais na qual se procurar criar empregos.

A POLÍTICA ECONÔMICA NEODESENVOLVIMENTISTA

Em 2013 foram comemorados os dez anos de práticas políticas supostamente


opostas as neoliberais do governo antecessor liderado pelo Partido da Social Democracia
Brasileira (PSDB), assim também como um novo modelo de desenvolvimento. Fica
evidente nos textos dos autores próximos ao PT e ligados ao governo, a presença de uma
política econômica diferente do neoliberalismo, assim como a alternativa
neodesenvolvimentista de Lula/Dilma:

Na contracorrente dos governos neoliberais emergiu o projeto


desenvolvimentista que desde 2003 ousou inverter as prioridades até
então perseguidas. Assim, para que houvesse crescimento sustentável da
produção nacional, a distribuição da renda se tornou o imperativo
nacional. E, com isso, a possibilidade de viabilizar o projeto de Brasil
para todos, cujo processo de inclusão social se transformou em mola
propulsora da economia. (O DECÊNIO QUE MUDOU O BRASIL,
2013, p. 13).

A citação nos mostra a importância que tem para a política econômica


neodesenvolvimentista a “inclusão social”. Devemos entender por isso a efetivação de um
amplo mercado consumidor, constituindo em um fortalecimento da demanda, como
elaborado pela teoria neodesenvolvimentista. Portanto, nos parece possível associar as
práticas do governo à teoria proposta pelos intelectuais divugadores do modelo.
Fica mais claro quando analisamos textos e dados fornecidos por autores
estritamente ligados ao governo petista, como Aloizio Mercadante que exerceu o cargo de
Ministro da Casa Civil no segundo mandato de Dilma Rousseff e Nelson Barbosa que
comandou a pasta do Planejamento, também no mesmo mandato.

1810
O programa de governo procurava articular três eixos: o social, o
democrático e o nacional. Orientando para promover a inserção
internacional soberana do Brasil, propugnava por uma ruptura com as
políticas neoliberais, que já mostravam desgaste profundo em toda a
América Latina. Essa ruptura envolvia mudanças estruturais do país.
Outra parte das mudanças estruturais visava constituir um novo padrão
de desenvolvimento, tornando, como já dissemos, o social o eixo
estruturante do crescimento econômico (MERCADANTE, 2010b, p. 3).

Na passagem abaixo de Mercadante evidencia a concretização do projeto


neodesenvolvimentista, e mais, de ser o social, o eixo da estratégia:

Estabelecemos outra diretriz fundamental: a construção de um mercado


de consumo de massas. À medida que reduzimos a vulnerabilidade
externa, a fragilidade fiscal, e mantivemos a estabilidade da economia,
criamos condições para construir um mercado de consumo de massas.
Esta era a grande diretriz econômica do nosso governo: criar um
mercado interno forte, um mercado de massas. Com isso, tiramos 20
milhões de pessoas da pobreza, conseguimos aumentar
consideravelmente a população ocupada, geramos 7.700.000 postos de
trabalho, aumentamos a massa salarial em 16,8%, o salário mínimo real
cresceu 38,6%, o consumo das famílias em 37,1%, quer dizer,
desenvolvemos um ritmo chinês de crescimento. (2010a, p. 43, grifo
nosso).

Torna-se cada vez mais evidente a influência da teoria neodesenvolvimentista nas


práticas e discursos governamentais principalmente no aspecto da efetivação de uma
demanda, da criação de um mercado consumidor interno, que se alcança, principalmente
através da criação de postos de trabalho. Este parece ser o eixo sobre o qual emerge a
possibilidade das políticas econômicas neodesenvolvimentistas, tornando-se até o
mecanismo principal de proteção do país diante da crise econômica de 2007 (BARBOSA,
2013).
Os defensores do neodesenvolvimentismo ligados ao governo liderado pelo Partido
dos Trabalhadores, como Nelson Barbosa por exemplo, ressaltam que mais do que uma
estratégia puramente macroeconômica – como definiu Bresser-Pereira, como vimos – a
estratégia de desenvolvimento realizada pelos governos Lula e Dilma tem como finalidade
o bem-estar social, considerando os instrumentos macroeconômicos como um meio e não
um fim.

Então temos que reindustrializar o Brasil? Sim, temos que


reindustrializar o Brasil. Temos que ter inflação baixa e estável? Sim,
temos que ter inflação baixa e estável. Mas reindustrialização e controle

1811
da inflação tem que ser compatíveis com o aumento do bem-estar da
população. O instrumento não é o fim, ter uma indústria que represente
20% do PIB é um instrumento para melhorado bem-estar da população
(BARBOSA, 2013).

A ideia exposta acima por Barbosa na medida em que busca potencializar o


mercado consumidor interno – que é entendido como inclusão social – se trata de um
instrumento para um fim que é o crescimento econômico e a proteção possível do país
diante das oscilações do capitalismo em crise. Esta forma de pensar, que encontra sua
síntese em frases como “os pobres e os trabalhadores são solução e não problema” dita
por Lula, torna possível associar as políticas neodesenvolvimentistas com “um projeto mais
próximo dos ideais trabalhistas” (Barbosa, 2013). Mas que também busca articular os
interesses dos financistas e dos rentistas, mesmo se tratando de interesses conflitantes.

Então, no Brasil, você tem esses três grandes polos de interesse brigando
com propostas diferentes de política econômica. Nos últimos anos os
governos do presidente Lula e da presidente Dilma têm tentado
administrar esses interesses conflitantes em torno de um projeto de
desenvolvimento que seja bom para a maioria dos trabalhadores
(BARBOSA, 2013).

A prática do governo, portanto, é comprometido com o aquecimento do mercado


interno, o que certamente inclui intervir para o crescimento do número de empregos.
Prática política que é considerada oposta ao neoliberalismo. Mais uma vez é
desconsiderado das análises dos intelectuais ligados diretamente aos governos liderados
PT, as condições estruturais sobre a qual se procurar efetivar tal política. E na passagem
acima do ex-ministro da Fazenda, já percebemos, o tom conciliador de classes que emergiu
durante o período neodesenvolvimentista, aspecto melhor tratado em seguida.

A FRENTE POLÍTICA NEODESENVOLVIMENTISTA

A ideia de que o neodesenvolvimentismo seja constituído por uma frente política


pode ser encontrada nos escritos de Boito Jr. (2012). O autor destaca a existência de uma
fração da burguesia, denominada burguesia interna. Ocupando o lugar intermediário entre
a antiga burguesia nacional e a burguesia compradora aliada ao imperialismo, a burguesia
interna teria, segundo o autor, melhorado sua posição no bloco do poder, durante os
governos Lula. Para Boito Jr. é a relação existente entre a burguesia interna e os governos

1812
liderados pelo Partido dos Trabalhadores, que caracteriza o neodesenvolvimentismo. Com
as palavras do autor: “O projeto econômico que expressa essa relação de representação
política entre os governos Lula e a grande burguesia interna é o projeto que poderíamos
denominar neodesenvolvimentista” (BOITO JR, 2012, p. 68).
A forma encontrada por Boito Jr. de definir no atual capitalismo brasileiro a
burguesia interna é através da diferenciação com a burguesia compradora – as duas
formariam a grande burguesia. Enquanto a última é uma extensão dos interesses do
imperialismo e encontra na política neoliberal sua representação, a primeira não adere
totalmente aos interesses do imperialismo e da política neoliberal.
Encontramos na análise de Boito Jr. uma efetiva polarização de interesses entre a
burguesia interna e a compradora. A primeira – composta de setores variados, como
grupos industriais, bancos, agronegócio, construção civil entre outros – se coloca em
disputa com o capital financeiro internacional, que é reivindicado e tem interesses em
comum com a burguesia compradora.

Enfim, diante do grande capital financeiro internacional, a grande


burguesia interna, mesmo tendo interesse em atrair investimentos
estrangeiros para o Brasil, procura preservar e ampliar as posições que
detém no sistema econômico nacional e no exterior. Para isso, conta com
a ação protetora e ativa do Estado brasileiro – de passagem, convém
observar que, em contradição com o conteúdo manifesto da ideologia
neoliberal, a burguesia não pleiteia um “Estado mínimo” para a classe
burguesa... (IDEM, p. 77).

A disputa entre as frações burguesas encontra sua representação no sistema político


partidário. O projeto inaugurado pelos governos Lula representaria os interesses da
burguesia interna, enquanto o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB)
representante das demandas neoliberais atenderia às reivindicações da burguesia
compradora, financeira (Idem).
As características históricas do PT agregam mais setores para a composição da
frente neodesenvolvimentista, como o movimento sindical e popular, o que fará com que
essa frente política não se reduza, simplesmente, a uma política econômica que atenda
somente aos interesses da burguesia interna. As forças sindicais e populares não são, para
o autor, as hegemônicas, mas sim a força principal, por serem essas a impulsionar e
representar as bandeiras do partido, além, evidentemente, de fornecer a necessária
sustentação eleitoral. No entanto, o campo operário e sindical não tinha condições,
segundo Boito Jr., de assumir a direção do bloco no poder (BOITO JR., 2012). Boito Jr.

1813
ainda aponta para as semelhanças, enquanto expectativa, entre os comunistas da década de
1950 – ou seja, os que compartilhavam do ideário do Programa Democrático Burguês – e
a atual frente neodesenvolvimentista.
Por caminhos diferentes André Singer (2012) também esboça a ideia de uma
frente, embora ela se apresente ainda enquanto uma expectativa, mas, em nosso
entendimento, parte da mesma lógica de raciocínio de Boito Jr.. O autor apresenta o
argumento de que a política conduzida pelos governos Lula e que tem sequencia no
primeiro governo Dilma atendem as demandas de uma fração do proletariado brasileiro,
o subproletariado; trata-se para Singer de um programa de classe:

O pulo do gato de Lula foi, sobre o pano de fundo da ortodoxia


econômica, construir substantiva política de promoção do mercado
interno voltado aos menos favorecidos, a qual somada à manutenção da
estabilidade, corresponde a nada mais nada menos que a realização de
um completo programa de classe (ou fração de classe, para ser exato).
(SINGER, 2012, p. 76).

Esse programa de classe pode trazer mudanças estruturais para o capitalismo e a


sociedade brasileira. A elevação da renda e o aumento do emprego formal destinado
principalmente aos setores antes não incorporados efetivamente ao capitalismo
possibilitam duas mudanças, presentes na obra do autor, que não podem passar
despercebidas: a primeira é o surgimento de um volumoso mercado consumidor interno
(pela existência dos “novos proletários”) e a segunda é a possível ascensão do
subproletariado à condição de proletários propriamente ditos. Embora Singer não
empregue o termo neodesenvolvimentismo em nenhum momento de sua obra, ele
compartilha do ideário econômico, na medida em que também percebe que a
intensificação do mercado consumidor interno resulta em significativas melhorias sociais e
é um elemento imprescindível para o desenvolvimento do capitalismo no Brasil atual.

Aspecto interessante da contradição brasileira é que a “grande massa”


empobrecida abria e fechava simultaneamente as perspectivas de
desenvolvimento autônomo do país. Abria, pois se tratava de mercado
interno de que raros países dispunham; mas fechava, uma vez que o
padrão de consumo era tão baixo que impedia a realização daquele
potencial (SINGER, 2012, p. 17).

Com a conquista de empregos formais, os subproletários tendem a se constituir em


proletários propriamente ditos. Essa suposta configuração somada a um avanço industrial,

1814
possibilita, segundo o autor, o surgimento de uma “coalização produtivista” em oposição à
setores anti-lulistas, composto pelas classes médias e o capital financeiro, “/.../ o projeto
divide o próprio capital deixando, nesse particular, os industriais ao lado dos trabalhadores,
no que se poderia chamar de “coalização produtivista”, cujo melhor símbolo foi o ex-vice-
presidente José Alencar” (SINGER, 2012, p. 161).
Por caminhos distintos os autores chegam a um elemento comum que é a
articulação, a composição de uma frente entre empresários – sejam os industriais no caso
de Singer, ou a burguesia interna, no caso de Boito Jr. – e trabalhadores em oposição ao
setor financeiro e rentista, ligados, segundo o aturo, politicamente e ideologicamente ao
neoliberalismo.
Das três abordagens descrita aqui sobre o neodesenvolvimentismo podemos chegar
a seguinte síntese: a) trata-se de uma teoria que procura através da intensificação do
mercado interno e aquecimento do mercado de trabalho impulsionar o desenvolvimento
econômico; b) essa teoria é incorporada nas práticas governamentais petistas como
possibilidade de superar o neoliberalismo no país; c) ao projeto neodesenvolvimentista
supostamente beneficiar os trabalhadores com seus programas sociais e contribuir para o
fortalecimento dos empregos formais, os indivíduos que vivem da venda da força de
trabalho, comporiam uma frente política com setores do empresariado, formando um
pacto distinto do estabelecido pela conjuntura neoliberal que favorecia o setor rentista.
Das três maneiras de apresentar o neodesenvolvimentismo, percebe-se que o eixo
fundamental tanto da teoria, quanto da prática política e econômica, assim como o pacto
entre as classes sociais, é a oposição, ou a alternativa ao neoliberalismo. O que faz com que
a análise do neodesenvolvimentismo possa ser deslocada para a apreensão do que é o
neoliberalismo, pois somente assim será possível verificar se de fato tal modelo é
suplantado, assim como suas determinações sobre o mundo do trabalho.

NEOLIBERALISMO: CRISE DOS ANOS 70 E REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA

É necessário entender um grande número de fenômenos para identificarmos os motivos


do declínio das formas econômicas, sociais e políticas que precederam ao que se denomina
neoliberalismo. Em outras palavras, não é por simples acaso que presenciamos,
principalmente durante a década de 1970, nos países centrais com maior intensidade, aos
declínios: 1) do modo de produção fordista; 2) de um ritmo de acumulação jamais
experimentado na história do capitalismo 3) do chamado Estado de Bem-Estar.

1815
Portanto, o ponto de partida, para entendermos o que é/foi o neoliberalismo é resgatar
alguns aspectos que indicam o declínio dos elementos citados acima, e as práticas que
procuraram substituí-los. Assim, devemos nos reter na análise da crise dos anos 1970 e
seus desdobramentos. Ao se levar em consideração um fenômeno como a crise dos anos
70, é necessário compreender que a superação dessa crise se dá – e assim o foi pelo que
denominamos neoliberalismo – por um rearranjo da estrutura do modo de produção
capitalista visando a possibilidade de se voltar a acumular como antes da crise.
No entanto, voltar a acumular como nos anos seguintes ao pós-guerra, através da
mesma base produtiva, era impossível devido ao esgotamento do modelo que propiciava
uma acumulação tão elevada. Para a explicação da crise de 1970 Mandel (1990) recupera
a formulação da bifurcação do valor elaborada por Marx:

As condições da exploração imediata e as de sua realização não são


idênticas. As primeiras apenas são limitadas pela força produtiva da
sociedade; as outras, pela desproporcionalidade dos diferentes ramos da
produção e pela capacidade de consumo da sociedade (MARX. apud.
MANDEL, 1990, p. 209).

Entendemos dessa forma a não possibilidade encontrada pelas forças produtivas


incorporadas pelo capital de realizar sua valorização, devido – entre outros fatores – a
desproporcionalidade entre a capacidade de produção instaurada – intensamente
aumentada pelo emprego de novas tecnologias – e a capacidade de realização desse valor
no mercado, pelo mercado consumidor.
Segundo Mandel a crise podia ser evidenciada na verificação da não utilização
quase permanente da capacidade instalada de produção (COTRIM, 2011). Tal ociosidade
de grande parte da capacidade produtiva instalada se manifesta no declínio do processo de
produção de massa, caracterizada pelo período fordista, no qual era frequente a mediação
do Estado na relação capital-trabalho promovendo acordos coletivos e políticas
compensatórias típicas dos Estados de Bem-estar social, como assinala Teixeira:

A partir do final dos anos sessenta, esse modelo de acumulação entra em


crise. De acordo com os teóricos da economia política da social-
democracia, assiste-se, a partir de então, uma erosão crescente do
compromisso entre capital e trabalho, da chamada “relação salarial
fordista (TEIXEIRA, 1996, p. 214).

1816
Perceber essa modificação no processo de produção é fundamental para os nossos
objetivos, pois, é exatamente como consequência da crise dos anos setenta e também,
como vimos, de seu processo de produção, o modelo fordista, que serão elaboradas pelos
neoliberais novas formas de produzir, assim como uma configuração política que a
sustente, com o intuito de superar a crise:

A crise vem sendo enfrentada através de um processo de reestruturação


produtiva, que se faz acompanhar de novas tecnologias, que permitem
uma produção flexível capaz de satisfazer as novas exigências do
mercado e, assim, criar condições para que a oferta de bens e de serviços
possa acompanhar as mudanças de hábitos no consumo. Se, antes, no
chamado modelo de acumulação fordista, as empresas produziam sem
se preocupar com a demanda de mercado, a partir de então as
mercadorias não são mais produzidas para serem lançadas no mercado
/.../ Para tanto, as empresas procuram reestruturar a sua organização
produtiva. Em lugar de grandes corporações produzindo desde a
matéria-prima até o produto final /.../ busca-se uma estrutura mais
enxuta, mais flexível, capaz de responder aos movimentos de mudanças
na composição da demanda. A terceirização, como é conhecida no
Brasil, é um dos expedientes mais utilizados pelas empresas hoje em dia
(TEIXEIRA, 1996, p. 215).

Além da reestruturação da produção, novas formas de conseguir com que o capital


complete seu ciclo vão surgir, o montante de capital acumulado nas décadas anteriores,
não podendo se revalorizar internamente, exatamente pela bifurcação mencionada, irão
buscar a sua ampliação em outros países onde existem condições para tal. É neste contexto
que identificamos o que Chesnais (1996) irá chamar de mundialização do capital. Segundo
o autor, durante a crise dos anos 70, a solução encontrada pelos países desenvolvidos foi a
de exportar o excedente de capital e os problemas sociais decorrentes da crise. Assim se
exportavam produtos industrializados e também os problemas como uma alta taxa de
desemprego. Neste aspecto, e para a propagação do “pensamento único” (neoliberal), os
países do “terceiro mundo” tiveram papel fundamental, pois:

Foi para exportar uma produção que se tornara monumental, e não só


para reciclar os “petrodólares”, que os países centrais do sistema mundial
ajudaram, ou até incentivaram, os países do Terceiro Mundo a
acumularem uma dívida externa gigantesca, que logo iria se tornar um
fardo insuportável (CHESNAIS, 1996, p. 218).

Não é possível compreender o papel assumido pelo “terceiro mundo” neste


processo de mundialização sem mencionar o novo papel assumido pelos Estados nacionais

1817
destes países, pois foi para realizar as políticas necessárias ao novo modo de acumulação
que emerge principalmente na década de oitenta a liberalização dos mercados e a
desregulamentação da economia.
Expostas minimamente as implicações resultantes da crise dos anos 70, podemos
concordar com Teixeira de que o neoliberalismo tem por base quatro elementos
fundamentais: o “desmantelamento do aparato burocrático do Estado, desverticalização
produtiva, flexibilização do mercado de trabalho e desregulação da economia”
(TEIXEIRA, 1996, p. 224).
O esforço de buscar na crise dos anos 70 a origem do neoliberalismo é para apontar
que ele não pode ser discutido sem levar em conta os quatro fenômenos que o caracteriza.
Tratá-los como fenômenos isolados pode levar ao equívoco de se pensar a superação do
modelo neoliberal apenas pela eventual superação de um de seus aspectos. Em nossa
interpretação, os teóricos do pós-neoliberalismo e os neodesenvolvimentistas tratam a
superação do neoliberalismo ignorando a articulação inerente dos quatro aspectos
mencionados por Teixeira.
Em nosso entendimento a reestruturação produtiva é o pilar fundamental do
neoliberalismo. E para garantir que ela ocorra emergirão as políticas neoliberais efetivas e
a ofensiva aos direitos dos trabalhadores. Interessante notar que são os impactos da
reestruturação produtiva que são menos abordados tanto pela teoria quanto pela prática
política neodesenvolvimentista, contribuindo para a continuidade da ofensiva contra os que
vivem da venda do trabalho.
A reestruturação produtiva designa o processo que visa superar os entraves
emergidos, principalmente nos países centrais, pelo esgotamento do modo de produção
fordista. Como vimos, a crise de superprodução se manifestou pelo declínio de produção
e consumo de massas do período. Assim, o desenvolvimento de novas técnicas e
organização da produção tinha como objetivo se adequar às novas exigências do processo
de acumulação de capital (ALVES, 1996). Tal processo tem como característica
fundamental “enxugar” as fábricas; com o avanço tecnológico pôde-se reduzir o número
de funcionários aumentando a produtividade. Visava-se atender o mercado consumidor,
agora não mais predominantemente de massas, mas caracterizado, sobretudo, pela
diversidade; por outro lado a reestruturação da produção tem o efeito de intensificar as
formas de subcontratação e de terceirização da força de trabalho (ANTUNES, 2011).
As consequências da reestruturação da produção serão de uma ofensiva contra os
trabalhadores, pois além do ambiente de trabalho ser alterado pelas novas formas de

1818
produção, ainda emergirá políticas neoliberais que visam diminuir os direitos trabalhistas
de modo a garantir as taxas de lucro. Trata-se de uma estrutura de modelo de acumulação,
que exige uma forma política adequada. Dessa forma, parece acertada a seguinte passagem
de Alves:

A nova posição da ofensiva do capital é caracterizada principalmente


pelo complexo sócio-histórico que põe em movimento o processo de
transformações produtivas no mundo do capital (e do trabalho), em sua
implicação estrutural e pela onda neoliberal, enquanto superestrutura
político-ideológica do mundo burguês, sob a nova crise do capital
(ALVES, 1996, p. 119).

O ponto a ser destacado é que se o neoliberalismo tem como base fundamental a


reestruturação produtiva que visava superar os entraves do modelo fordista de produção,
uma eventual superação do neoliberalismo deve ao menos incluir, alterações significativas
no modo como tal reestruturação é posta. Assim a questão a ser feita aos
neodesenvolvimentistas é: em que medida tal teoria e prática política supera as
determinações impostas pelo rearranjo produtivo inaugurado na década de 1970?

NEODESENVOLVIMENTISMO: OS IMPACTOS SOBRE O “MUNDO DO


TRABALHO”

Podemos começar a análise com uma passagem do texto de David Harvey:

Os Estados desenvolvimentistas se compatibilizam com a


neoliberalização na medida em que facilitam a competição entre
empresas, corporações e entidades territoriais, aceitam as regras do livre
comércio e recorrem a mercados de exportação abertos (...) Contudo,
ao mesmo tempo, a neoliberalização cria condições para a formação de
classes, e à medida que esse poder de classe aumenta também aumenta
a tendência (na Coréia contemporânea, por exemplo) de essa classe
buscar libertar-se do poder de Estado e reorientá-lo em termos
neoliberais (HARVEY, 2008, p. 82).

Harvey consegue estabelecer uma coerente relação entre o desenvolvimentismo e


as classes sociais. Aceitando a hipótese de Boito Jr. (2012) e Alves (2013) de que uma
fração da burguesia – a burguesia interna – assume a predominância no bloco do poder,
podemos também concordar com Harvey de que esta mesma fração de classe pode
“reorientar” o Estado para as políticas neoliberais. Isso devido ao fato de qualquer que seja
a fração da burguesia que se estabeleça como dirigente no bloco no poder, ter que

1819
estabelecer mecanismos para a obtenção de mais-valor diante da concorrência do
capitalismo mundializado.
Como vimos, o neoliberalismo tem um elemento fundante, que é a necessidade de
rearranjar a forma de obtenção de mais-valor, por isso, a reestruturação produtiva. O
processo radical de abertura dos mercados e a desregulação da economia possuía dois
objetivos fundamentais: 1) fazer com que o excedente da produção e de capitais tivesse
novos locais para realizar seu valor; 2) propiciar a obtenção de mais-valor via
superexploração do trabalho em locais onde tanto a mão de obra é barata quanto a base
tecnológica é precária. Combina-se, desta forma, a extração de mais-valor, tanto em sua
forma relativa quanto absoluta (AMARAL; CARCANHOLO, 2012; LUCE; 2013).
Sabendo que não há nenhuma intenção tanto da política econômica quanto da
teoria neodesenvolvimentista em superar os aspectos que caracterizam efetivamente o
neoliberalismo, podemos trabalhar com a hipótese de que uma vez alcançada a inserção
no capitalismo mundializado de empresas consideradas nacionais, elas agirão com o
mesmo objetivo, intensificando os pilares básicos do neoliberalismo. Vejamos como isso
ocorre.
Boito Jr. (1999) já identificava que mesmo havendo divergências entre as frações
burguesas diante das políticas neoliberais, todas as frações compartilham das reformas
neoliberais na medida em que elas contribuem para a intensificação da extração de mais-
valor, ou seja, as frações burguesas apoiam as reformas que desregulam as leis trabalhistas
e diminuem os direitos dos trabalhadores.
Assim, mesmo a burguesia interna, ligada ao setor produtivista, apoia a ofensiva
contra os trabalhadores e suas formas de organização. Isso aparece no próprio discurso dos
indivíduos que compõem essa fração burguesa. Um primeiro exemplo é o do empresário
do setor sucroalcooleiro José Guilherme Zancaner, que garantia apoio ao projeto
neodesenvolvimentista em oposição ao candidato à presidência José Serra do PSDB, mas
reconhecia que o governo de Fernando Henrique Cardoso (FHC) havia feito as “bases” da
economia atual (BOITO JR. 2013).
Não é difícil supor que entre as “bases” feitas pelo governo FHC está a ofensiva
contra os direitos dos trabalhadores, adequando as relações entre capital-trabalho no Brasil
às novas configurações do neoliberalismo. Com a gigante Coteminas do ex-vice-presidente
José Alencar não é diferente, contudo, já se trata de uma empresa internacionalizada:

Tornou-se a maior fabricante de cama, mesa e banho do mundo /.../ O


grupo vem transferindo as fábricas dos Estados Unidos para o Brasil,

1820
Argentina e México, sob o argumento de que nestes países os custos de
produção e de mão de obra [são] mais baixos (FONTES, 2010, p. 343).

Presencia-se assim, diante das políticas neodesenvolvimentistas, a permanência e


intensificação das determinações neoliberais na relação capital-trabalho. Na medida em
que a burguesia interna e suas empresas são beneficiadas pela política econômica
neodesenvolvimentista elas intensificam, visando sua inserção no mercado internacional
diante da concorrência globalizada, as formas de superexploração do trabalho oriundas do
neoliberalismo. Diante deste argumento, é questionável a validade da tese de que seria
benéfico para os trabalhadores compor uma frente com a burguesia interna para a
superação do neoliberalismo, argumentos defendidos por autores como Boito Jr. (1999) e
Singer (2012).
Resta-nos indicar alguns apontamentos sobre outro ponto que caracteriza a atual
política econômica do governo, o aspecto social, no qual uma fração do proletariado, o
subproletariado, é beneficiada pelas atuais políticas e se torna a principal sustentação
eleitoral do modelo econômico em vigência.
A adesão do subproletariado à frente neodesenvolvimentista, se daria
principalmente pelas políticas sociais implantadas pelo governo liderado pelo PT a partir
de 2003 (como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida) e maior acesso a rendimentos
via aumento significativo do salário mínimo e fácil acesso ao crédito, principalmente o
consignado (SINGER, 2012; LUCE, 2013). O grande mérito econômico resultante dessas
políticas é o fortalecimento do mercado consumidor interno, elemento fundamental para
justificar as taxas de crescimento do país após 2006 (MERCADANTE, 2010; BARBOSA,
2013). Aparentemente tais políticas contrariariam o neoliberalismo, na medida em que este
último não privilegiaria as questões sociais. Vejamos este ponto com um pouco mais de
atenção.
A análise efetiva deste processo deve evidenciar tanto a motivação política quanto
o impacto real desta política para a classe trabalhadora. A motivação política e econômica
é oriunda da teoria social liberal e da necessidade de fortalecimento do mercado interno.
Políticas sociais como o Bolsa Família entre outras, encontram respaldo teórico em
formulações como as Ricardo Paes de Barros e Marcelo Neri entre outros, são teses que
buscam conciliar o desenvolvimento econômico com a eliminação do pauperismo
(CASTELO, 2013). Em síntese, tanto a teoria quanto a política buscam dar “um choque
de capitalismo nos pobres brasileiros” (NERI, apud. Castelo, 2013, p. 362). Dessa forma,

1821
as políticas sociais teriam foco nos mais pobres de modo a fazer com que eles “/.../ sejam
trazidos à luz e impostos à consciência moral da Nação. São o coração do projeto de
desenvolvimento proposto neste documento” (IETS apud. Castelo, 2013, p. 365).
Combina-se, desta forma, a preocupação social que visa eliminar a pobreza com o
crescimento econômico via inclusão dos setores mais pobres no mercado consumidor
interno. É isso que faz com que a “mola propulsora da economia” seja a inclusão social,
como diz o documento do PT já mencionado.
Contudo, em nenhum momento tais teorias e políticas contrariam as neoliberais.
A política focalizada nos setores mais pobres e que não tenham a intensão de serem
universais é típica do neoliberalismo, como apontou o próprio Boito Jr.:

Quanto à focalização dos gastos públicos, a ideia é substituir o


universalismo do Estado de bem-estar pela orientação particularista de
concentrar os gastos públicos na população de baixa renda, aumentando,
segundo se diz, o efeito distributivo dos gastos sociais (BOITO JR., 1999,
p. 79).

Entre os objetivos de tal política está o incentivo ao individualismo liberal, na


medida em que fortalece o argumento meritocrático, o sucesso da população beneficiária
das políticas dependeria em grande medida do esforço dos indivíduos: “para que a pobreza
seja realmente erradicada, é necessário que os pobres explorem as oportunidades
disponíveis, no que precisam empenhar muito esforço” (BARROS; CARVALHO apud
CASTELO, 2013, p. 354). E é exatamente este esforço que vem sendo realizado pelos
indivíduos que querem abandonar a pobreza (ralé), como identifica Jessé Souza ao
mencionar os batalhadores:

Nossa pesquisa mostrou que essa classe [os batalhadores] conseguiu seu
lugar ao sol à custa de extraordinário esforço: à sua capacidade de resistir
ao cansaço de vários empregos e turnos de trabalho, à dupla jornada na
escola e no trabalho, à extraordinária capacidade de poupança e de
resistência ao consumo imediato e, tão ou mais importante que tudo que
foi dito, a uma extraordinária crença em si mesmo e no próprio trabalho
(SOUZA, 2012, p. 50).

O nome deste esforço é superexploração do trabalho, como identifica Luce (2013).


Somam-se diversos elementos que configuram a política econômica neodesenvolvimentista
que resultam na superexploração do trabalhador. As formas de produção do valor, de

1822
extração de mais-valor impostas pelo capitalismo neoliberal estão vivas e sendo
intensificadas.
É possível notar este fato ainda quando levamos em conta outros argumentos
neodesenvolvimentistas que, supostamente, contrariam o neoliberalismo, como a elevação
dos empregos formais e o aumento do salário mínimo. De fato, os números evidenciam
que a partir de 2003 os empregos formais no país cresceram de forma significativa, contudo
não é dado o mesmo destaque aos tipos de empregos criados e a sua precariedade. Com
outras palavras, os empregos criados, mesmo que formais, se dão dentro da estrutura de
acumulação neoliberal oriunda da reestruturação produtiva, ou seja, em um cenário de
desindustrialização e flexibilização das leis trabalhistas, elementos não superados pelo
neodesenvolvimentismo. Alguns dados comprovam o nosso argumento.
A geração de empregos que caracteriza o discurso neodesenvolvimentista ocorre
concomitante com a intensificação do trabalho precário, da intensificação da jornada909 do
trabalho prejudicando a saúde do trabalhador, mesmo sob o significativo avanço do
trabalho formal, que em geral se dá em condições de precariedade e de alta rotatividade910.
Ainda falta mencionar a intensificação das formas de subcontratações oriundas da
terceirização tão evidente no país como demonstram Antunes e Druck (2014). Alguns
autores próximos ao neodesenvolvimentismo, ou politicamente ao governo, acreditam que
a vontade política é capaz de superar este cenário tão característico da época neoliberal,
frisando a necessidade de fortalecer o setor produtivo, principalmente o industrial, que em
tese geraria empregos com maior renumeração e qualidade (POCHMANN, 2014;
SINGER, 2012). No entanto, os dados apontam em outra direção, deixando cada vez mais
claro que a vontade política neodesenvolvimentista encontra seu limite quando tem pela
frente a conjuntura econômica internacional e a estrutura neoliberal.
Quando se observa os setores produtivos, principalmente o industrial, percebe-se
que mesmo gerido pelas políticas neodesenvolvimentistas eles não conseguem a
supremacia diante do PIB. Pelo contrário, apresentam quedas constantes – mesmo com
incentivos do governo. Se em 2004 a indústria correspondia a 30,1% do PIB em 2013 este
número foi de 24,9%; em evidente contraste com o setor de serviços – que é necessário
enfatizar, mais corresponde pelos empregos precários – que em 2004 tinha participação

909
Ver LUCE, 2013, especialmente p. 177.
910
Assim se entende por qual motivo a maioria dos empregos criados no país se dão em funções como
servente de obras, alimentador de linha de produção, faxineiro e etc. Funções que não ultrapassam o valor
de dois salários mínimos. Folha de São Paulo, “Menos qualificado sustenta boom de empregos no país”, 10
de agosto de 2014, primeira página.
1823
no PIB de 63% e passou para 69,4% em 2013911. A situação da indústria segue preocupante
em 2014, principalmente em seu principal setor, o automobilístico, que já evidencia crise
em sua produção e busca reduzir o quadro de funcionários912.
Sendo, segundo alguns autores, os setores produtivos os que oferecem empregos
de maior qualidade e renumeração, é evidente que as recentes crises deste setor afetarão a
política de aumento salarial do atual governo. Este fato reforça a tese de que a maior parte
dos empregos formais criados se deu nos setores que pagam menores salários, já que os
setores com salários mais altos apresentam significativas quedas na geração de empregos913.
Nota-se uma impossibilidade estrutural de superação das determinações neoliberais, assim
também como de estabelecer autonomia diante das determinações conjunturais do
mercado, pois – e isso parece que vem se comprovando – quando há oportunidade de
significativo crescimento econômico se fala em neodesenvolvimentismo, mas quando
emerge um cenário de crise, voltam-se as políticas de ajuste, como ocorreu em 2015 com
a indicação de Joaquim Levy por Dilma Rousseff ao ministério da fazenda. Ajuste quer
dizer ofensiva contra a classe que vive do trabalho, pois o impacto será sobre o salário914 e
sobre a organização dos trabalhadores, o que fará com que a política do governo se altere,
evidentemente para mais coerciva, diante das eventuais reivindicações trabalhistas915.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Através das leituras realizadas notamos que é possível sistematizar o


neodesenvolvimentismo, de forma a compreendê-lo melhor, em três aspectos: a teoria
econômica; a teoria incorporada e defendida politicamente e a frente política em torno do
modelo econômico neodesenvolvimentista.
Conseguimos estabelecer um fio condutor que une os aspectos mencionados,
principalmente na questão da consolidação do mercado consumidor interno, o que inclui,

911
Ver dados do IBGE publicados na Folha de São Paulo de 28 de fevereiro de 2014.
912
Produção de veículos recua 16% no ano e montadoras cortam 10 mil vagas. Estado de São Paulo, 7 de
novembro de 2014.
913
Como demonstra a pesquisa realizada pelo IBGE publicada na Folha de São Paulo de 7 de novembro de
2014, Vagas de menor salário crescem no país.
914
Como já vem sendo feito, Folha de São Paulo, Com PIB modesto, salário mínimo sob Dilma terá menor
alta do Real, 3 de setembro de 2013.
915
Governo quer ministro do trabalho ligado a sindicatos
1824, Folha de São Paulo, 18 de dezembro de 2014. O
subtítulo da reportagem elucida melhor a política do governo: Planalto teme alta no índice de desemprego
em 2015 e busca nome com boa interlocução com as centrais; petista é principal cotado.
acima de tudo a criação de empregos o que, segundo os autores, contraria os pressupostos
neoliberais.
Contudo, ao dar a devida atenção ao significado do neoliberalismo, encontrando
na reestruturação do trabalho o seu aspecto principal – o que não significa dizer o único –
observamos que as características neoliberais permanece sob o modelo
neodesenvolvimentista no que se refere ao mundo do trabalho.
Assim, intensificar as relações de mercado, mesmo com a intensão de criar
empregos formais, é uma forma de reforçar a lógica de acumulação de capital neoliberal.

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1826
A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E OS IMPACTOS NO
MUNDO DO TRABALHO: UM OLHAR PARA OS
PESPONTADORES DE FRANCA/SP

Fernanda Cristina Barros MARCONDES916

Ana Beatriz Cruz NUNES917

Resumo: O presente trabalho possui o objetivo de investigar algumas das consequências no mundo
do trabalho, mais especificamente no setor calçadista de Franca-SP, advindas com a reestruturação
produtiva. Utiliza-se de pesquisa bibliográfica, sendo o método de abordagem crítica de análise dos
dados bibliográficos o dialético. Concomitante a pesquisa bibliográfica, há uma pesquisa empírica,
oriunda das entrevistas com questionário estruturado de caráter quantitativo realizadas com os
trabalhadores do setor calçadista do bairro Jardim Petráglia de Franca/SP. Além das entrevistas,
para realizar os objetivos da pesquisa, o presente trabalho conceitua o termo reestruturação
produtiva, bem como busca investigar as causas e as consequências desse fenômeno, além de focar
a sua influência no setor calçadista de Franca/SP. Os resultados obtidos apontam, no âmbito mais
amplo, que a reestruturação produtiva marca a mudança no modo de produção do taylorismo-
fordista para o toyotismo. Quanto aos trabalhadores do setor calçadista, pode-se ver o fenômeno
da descentralização do trabalho em massa, ocorrendo a subcontratação através do trabalho
terceirizado em bancas de pesponto e no trabalho domiciliar. Alguns dos resultados obtidos com
as entrevistam apontam que a maioria dos trabalhadores entrevistados laboram por produtividade,
possuem baixos salários, não são registrados, além de conterem diversos fatores psicossociais, como
o estresse. Ademais, possuem jornadas excessivas, ultrapassando a jornada semanal recomendada,
apesar de não receberem hora-extra ou qualquer outro benefício. Ironicamente, a maioria não
reconhece que possuem desmoderadas jornadas de trabalho. Algumas das conclusões indicam que
com o processo da descentralização do trabalho intensificado de forma extraordinária pela
reestruturação produtiva causa desmobilização dos trabalhadores, que perdem de vista a luta de
classe, não reconhecendo algumas das explorações sofridas, como as jornadas excessivas. Pode-se
perceber também, o tolhimento do direito à desconexão ao trabalho, por conta das jornadas
prolongadas, do trabalho pautado na produtividade e também devido ao trabalho domiciliar, que
não permite uma efetiva desconexão com trabalho no ambiente doméstico. Esse processo é ainda
mais problemático com as trabalhadoras mulheres, que possuem uma segunda jornada de trabalho
com os afazeres domésticos e familiares, decorrente da divisão sexual do trabalho. Ademais,
percebe-se o desrespeito com a efetivação dos direitos dos trabalhadores, como o não pagamento
de horas extras, o não registro do trabalhador no INSS e as jornadas extenuantes. Tais exemplos
demonstram o processo de precarização e flexibilização da força de trabalho que são efeitos diretos
da reestruturação produtiva no setor calçadista de Franca/SP.

Palavras-chave: Bancas de pesponto. Precarização do trabalho. Reestruturação produtiva. Setor


calçadista de Franca/SP.

INTRODUÇÃO

Na década de 1970 ocorreu o complexo de reestruturação produtiva no contexto


de crise de superacumulação do capital, além do esgotamento no modo de produção

916
Mestranda em Direito; UNESP/Franca; fernandacbmarcondes@gmail.com.
917
Graduanda em Direito; UNESP/Franca; ana_nunes@yahoo.com.br.

1827
taylorista/fordista para o toyotismo. Nesse novo quadro paradigmático, há a flexibilização
da força do trabalho, bem como a utilização de novas tecnologias oriundas da Terceira
Revolução Industrial.
Ademais, é nesse mesmo contexto de reestruturação produtiva e de crise de
superacumulação do capital que ocorreu a transição do Estado de Bem-Estar Social para
um Estado finanças e neoliberal, o qual se preocupa mais com o lucro, do que com o
implemento de políticas públicas.
Esse complexo processo de reestruturação produtiva chegou no Brasil na década
de 1990 com o governo Collor. Busnello (2000, p. 11) afirma que a reestruturação
produtiva teve origem nas reformas implantadas pelo governo Collor, que possibilitou a
construção de novas condicionantes pautadas em uma política econômica de inserção e
subordinada na globalização, marcando o início de uma agenda neoliberal no País.
Toda essa complexa reestruturação produtiva e a própria agenda neoliberal
influenciaram em inúmeras interfaces as relações sociais e econômicas, destacando-se,
entre elas, nas relações de trabalho. Isto é, o trabalho - por ser um elemento central tanto
na vida das pessoas, quanto na própria perpetuação do sistema econômica - sofreu
inúmeros impactos com esse novo paradigma.
Assim, o presente estudo foca no âmbito do trabalho do setor calçadista de
Franca/SP, tendo realizado pesquisa bibliográfica com análise de dados dialético, bem
como uma pesquisa empírica quantitativa com questionário estruturado com os
trabalhadores do setor calçadista do bairro Jardim Petráglia, além do uso da observação do
ambiente de trabalho em que os trabalhadores estavam laborando. Ressalta-se, ainda, que
foi utilizado de referências de autoras muito importantes sobre o setor calçadista de
Franca/SP, como Vera Navarro e Edvânia Ângela de Souza Lourenço.
Assim, o presente estudo possui o objetivo de analisar as consequências dessa
reestruturação produtiva no âmbito do setor calçadista, focando em grande parte no
trabalho dos pespontadores, que totalizam 6 (seis) das 10 (dez) entrevistas utilizadas nessa
pesquisa.

O COMPLEXO DE REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E AS SUAS INÚMERAS


NUANCES

Na década de 1970 houve uma crise de superacumulação do capital, apontando


(HARVEY, 2013, p. 45) que a geografia histórica do capitalismo está repleta de exemplos
de crises de superacumulação: algumas locais e de curta duração; outras em uma escala um

1828
pouco maior; outras vezes tomando todo o sistema e o globo, como as crises de 1848,
1929, 1973 e 2008.
No entanto, a crise de 1970 – como todas as outras crises – possui as suas
especificidades, haja vista que ocorreu no contexto de emergência do capitalismo
financeirizado e de mundo globalizado. Ademais, ocorreu no contexto da chamada
“terceira revolução industrial”, com o desenvolvimento da alta tecnologia e a tecnologia de
ponta (HIGH-TECH), que permite a maior flexibilização da força de trabalho, através da
tecnologização da produção.
Além disso, Antunes (1999, p. 29-30), também elenca alguns fatores que afirma ser
responsáveis pela crise do capitalismo de 1973:

1) a queda da taxa de lucro, em virtude do aumento do preço da força


de trabalho;
2) o colapso do padrão fordista-taylorista, dado pela incapacidade de
reagir à retratação do consumo que se acentuava;
3) a hipertrofia da economia, colocando o capital financeiro como
prioridade;
4) a concentração de capitais, em razão das fusões entre as empresas;
5) a crise do Welfare State, gerando a redução dos “gastos” públicos e
sua transferência para o capital privado;
6) o advento do neoliberalismo, com as privatizações,
desregulamentação e flexibilização da produção, dos mercados e do
trabalho etc.

A crise da década de 1970 marcou a crise no modo de organização e produção do


trabalho. Isto é, após a “segunda Revolução Industrial” de 1870, houve o desenvolvimento
do modo de produção fordista norte-americano, que foi bastante influenciado pelo
taylorismo, expandindo-se nas economias capitalistas centrais durante as duas guerras
mundiais do século XX, mas que não resistiu à crise de superacumulação da década de
1970.

De modo mais geral, o período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais
evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo de conter as
contradições inerentes ao capitalismo. Na superfície, essas dificuldades
podem ser melhor apreendidas por uma palavra: rigidez. Havia
problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala
e de longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam
muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável
em mercados de consumo invariantes. Havia problemas de rigidez nos
mercados, na alocação e nos contratos de trabalho (especialmente no
chamado setor “monopolista”). E toda tentativa de superar esses
problemas de rigidez encontrava a força aparentemente invencível do

1829
poder profundamente entrincheirado da classe trabalhadora – o que
explica as ondas de greve e os problemas trabalhistas do período de
1968-1972. A rigidez dos compromissos do Estado foi se intensificando
à media que programas de assistência (seguridade social, direitos de
pensão etc.) aumentavam sob pressão para manter a legitimidade num
momento em que a rigidez na produção restringia expansões na base
fiscal para gastos públicos. O único instrumento de resposta flexível
estava na política monetária, na capacidade de imprimir moeda em
qualquer montante que parecesse necessário para manter a economia
estável (HARVEY, 1993, p. 135-136).

Em suma, diante da crise do capital, o taylorismo/fordismo não conseguiu


responder as necessidades do capital, impondo sérias mudanças no mundo do trabalho.
Desse processo originou-se o capitalismo flexível, que se constitui no reordenamento da
produção e na retirada de capitais do setor produtivo para o investimento no mercado
financeiro.
Em substituição ao taylorismo/fordismo, adveio o uso intensivo da força de trabalho
e do seu envolvimento emocional e subjetivo do trabalhador na era do toyotismo. Ademais,
outra característica importante do toyotismo é a apropriação do trabalho, orquestrada
através de protocolos organizacionais, como automação/auto-ativação, just-in-time/kanban
e a polivalência operária, compondo os “nexos essenciais do toyotismo”.
A crise da década de 1970 também é marco na transição de um Estado de Bem-
Estar Social para um Estado menos intervencionista nas questões econômicas, mas não tão
ausente nas intervenções sociais como no modelo do liberalismo:

[...] a taxa de capitalização do crescimento da acumulação do capital


global coloca uma pressão imensa sobre o nexo Estado-finanças para
encontrar formas novas e inovadoras de reunir e distribuir quantidades
de capital-dinheiro, além de modos e locais onde se posicionar para
explorar oportunidades lucrativas. Muitas das inovações financeiras
recentes foram projetadas para superar as barreiras impostas pelos
arranjos institucionais e regulatórios pré-existentes. A pressão para
desregulamentar tornou-se aparentemente irresistível. Mas os
movimentos desse tipo invariavelmente criam uma probabilidade séria
de o financiamento tornar-se selvagem e desenfreado, gerando uma
crise. [...] (HARVEY, 2013, p. 52).

Sobre o neoliberalismo, Alves (1999, p. 81-82) profere que foi a partir dos anos 80,
que a “década neoliberal” tornou clara a situação de debilitação do mundo do trabalho, o
resultado histórico da acumulação flexível sobre o mercado de trabalho instaurou um novo

1830
patamar de desemprego estrutural e proliferação do trabalho precário nos principais países
capitalistas.
Aponta Alves (1999, p. 110) que “os nexos contingentes do toyotismo instauram
uma ‘flexibilidade interna’, constituída no coletivo do trabalho, no espaço (e na cadeia) de
produção, capazes de contribuir para os ganhos de produtividade buscados pela nova
gestão da produção. [...]”. Diante desse contexto narrado, o toyotismo com a sua
capacidade de flexibilização diante da crise do capital, surge como uma resposta no
complexo de reestruturação produtiva, o que no sistema taylorista/fordista não era possível
ser feito.
Com o advento do neoliberalismo, então, houve a privatização das empresas
públicas, no intuito de transformar o Estado de Bem-Estar Social em um Estado-Finanças.
Esse Estado-Finanças neoliberal seria um meio gerador de lucro com a intenção de se
recuperar da crise do capital, ocorrendo a desregulamentação dos direitos sociais e
trabalhistas, isto é, os direitos humanos fundamentais dos trabalhadores deixaram de ser
efetivados em detrimento da busca por lucro de um Estado financeiro.
O neoliberalismo, portanto, não só acarretou inúmeros retrocessos sociais ao não
efetivar direitos sociais e fundamentais por privilegiar um Estado financeirizado ao invés
de um Estado de Bem-Estar Social, mas também permitiu que as economias emergentes
se tornassem ainda mais dependentes do capital exterior dos países centrais, ao promover
as privatizações de empresas estatais.
Portanto, é nesse contexto de crise de superacumulação, de reorganização da mão
de obra e do advento do neoliberalismo, que ocorreu o complexo da reestruturação
produtiva.

É a partir da mundialização do capital que se desenvolve um complexo


de reestruturação produtiva, com impactos estruturais no mundo do
trabalho. Ele surge como ofensiva do capital na produção, tendo em vista
que debilita a classe, não apenas no aspecto objetivo, com a constituição
de um novo (e precário) mundo do trabalho, mas principalmente
subjetivo. É por isso que, na perspectiva histórica-ontológica, o novo
complexo de reestruturação produtiva não possui caráter “neutro” na
perspectiva da luta de classes. Ele apenas expressa, na medida em que se
desenvolvem as alterações do processo de trabalho, algo que é intrínseco
à lei de acumulação capitalista: a precarização da classe dos trabalhadores
assalariados, que atinge não apenas, no sentido objetivo, a sua condição
de emprego e salário mas, no sentido subjetivo, a sua consciência de
classe. É nesse contexto sócio-histórico particular que tendem a se
desenvolver, com vigor, estratégias sindicais neocorporativas, que são
expressões da debilitação da solidariedade de classe, intrínsecas à

1831
fragmentação das negociações coletivas, provocadas pela nova ofensiva
do capital na produção (ALVES, 2005, p. 9).

No Brasil, as consequências da reestruturação produtiva e o neoliberalismo


atingiram seu patamar na década de 1990, passado o período de transição da ditatura
militar para a redemocratização do Brasil, com a emergência de um governo federal
neoliberal. Alves (2009) aponta que:

Na virada para a década de 1990, as reformas neoliberais implementadas


a partir do governo Collor e o cenário macroeconômico (recessão ou
baixo crescimento da economia num contexto de intensa reestruturação
industrial, juros elevados e abertura comercial com a intensificação da
concorrência intercapitalista), contribuíram para a constituição de um
cenário de degradação do mercado de trabalho com alto índice de
desemprego total nas regiões metropolitanas e deterioração dos
contratos salariais devido à expansão da informalização e da terceirização
nas grandes empresas, visando reduzir custos. [...] A política neoliberal
de abertura comercial do governo Collor, que prossegue no decorrer da
década sob os governos Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso,
significou a destruição de cadeias produtivas na indústria brasileira, com
empresas sendo fechadas por não conseguirem concorrer com produtos
estrangeiros, e, portanto, o crescimento do desemprego de massa. Nesse
período, as grandes empresas foram obrigadas a intensificar a
reestruturação produtiva colocando o sindicalismo na defensiva diante
do cenário hostil – governos anti-sindicalistas e recessão econômica com
desemprego crescente (ALVES, 2009, p. 193).

O processo de reestruturação produtiva junto com o avanço do neoliberalismo


permitiu que houvesse uma política de privatização de empresas estatais, caracterizando-se
como uma entrega de nossos bens para as forças do capital estrangeiro hegemônico. Esse
contexto, então, aponta Antunes (2011, p. 39), é marcado pela privatização,
desregulamentação, fluxo livre de capitais, financeirização, terceirização e precarização do
trabalho, desemprego estrutural, trabalho temporário, parcial, aumento da miserabilidade,
enfim, todas as prerrogativas da barbárie neoliberal e da reestruturação produtiva passaram
a caracterizar o trabalho.
No âmbito da industrial calçadista na cidade de Franca/SP, conhecida como a
capital nacional do sapato de couro masculino, apesar da produção francana variar com
momentos de crescimento e refluxo durante na década de 80, houve um desempenho
positivo. Aponta Navarro (2006, p. 401-402) que a produção francana manteve-se em torno
dos 30 milhões de pares/ano e, que no início dos anos de 1980, conforme a tendência das
décadas anteriores, cresceu a produção destinada ao mercado interno e externo.

1832
No entanto, a partir da década de 1990 pode ser visto em Franca as consequências
da reestruturação produtiva e do novo modo de organização do trabalho, o toyotismo. Isso
porque, nesse novo modo de organização de trabalho mais flexível, o trabalhador necessita
ser multifuncional, e estava sujeito a uma maior competitividade e produtividade.

A readequação das empresas no setor calçadista francano à nova lógica


do mercado, principalmente a partir dos anos de 1990, que passou a
exigir maior qualidade dos produtos, maior variedade de modelos, maior
produtividade e competitividade, implicou extinção de postos de
trabalho, exigência de maior qualificação da força de trabalho,
surgimento de trabalhador polivalente multifuncional, substituição do
trabalho em linha pelo trabalho em grupo de produção, aumento do
trabalho terceirizado, subcontratato por meio de “bancas” e do trabalho
em domicílio, aviltamento salarial e aumento da exploração do trabalho
infantil (NAVARRO, 2006, p. 413-414).

As mudanças implementas diante da reestruturação produtiva em Franca não


foram homogêneas, segundo aponta Navarro (2006, p. 414). Para ele, a heterogeneidade
existente entre as empresas calçadistas quanto ao porte, às condições de seu aparato
tecnológico, ao número de trabalhadores empregados e ao tipo de calçado que produzem,
e que as modificações no planejamento e na organização da produção implementadas pelas
indústrias de calçados em Franca, na década de 1990, se deram com baixo nível de
investimentos em máquinas e equipamentos, que incorporam tecnologias baseadas na
microeletrônica.
Ademais, frisa-se que com a mundialização da economia, há um acirramento ainda
maior da competitividade no âmbito do comércio internacional, atingindo categoricamente
o setor produtivo brasileiro:

Com efeito, a abertura econômica acabou repercutindo negativamente


sobre a indústria nacional, que, despreparada tecnologicamente, passou
a enfrentar extremas dificuldades de competitividade e manutenção no
mercado. A abertura econômica e financeira impingiu perdas de
estímulos aos investimentos no setor produtivo, aumento do desemprego
e vertiginosa orientação de investimentos para a especulação financeira.
De modo geral, esses fatores macroeconômicos levaram às mudanças no
plano microeconômico que, no setor calçadista, provocou a
reorganização da gestão do trabalho e da produção, expressa,
especialmente, na terceirização e também na sua relocalização
(BERTANI; LOURENÇO, 2009, p. 154).

1833
Sobre a relocalização, explicam melhor Bertani e Lourenço (2009, p. 155) que a
produção de calçados tem como principal característica o uso intensivo de mão de obra,
daí que na busca de maior competitividade no mercado mundial houve a relocalização,
transferência da produção, ora de um país para outro, ora de uma região para outra dentro
de um mesmo país, apontando que o capital muda de lugar na busca de reduzir os custos
da sua produção, já que se transferir para novos lugares, onde não há tradição do setor,
pode ser muito lucrativo à medida que, geralmente, se depara com a baixa especialização
dos trabalhadores e da sua organização política, o que implica em menores salários e,
portanto, maiores lucros.
Nesse processo, pode-se perceber no setor calçadista francano, o processo de
descentralização da produção, a subcontratação através do trabalho terceirizado em bancas
de pesponto e no trabalho domiciliar. Assim, para melhor compreender o mundo do
trabalho em que esses trabalhadores estão inseridos, bem como se possuem a desconexão
ao trabalho, foi realizada uma pesquisa empírica através de entrevista com diversos tipos
de trabalhadores, como funcionários de bancas, donos de banca, dono de fabriqueta,
trabalhador registrado de indústria, costureira manual.

REFLEXÕES SOBRE A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO A PARTIR DA


PESQUISA EMPÍRICA DE DADOS COLETADOS NO SETOR CALÇADISTA DE
FRANCA/SP

Os dados coletados empiricamente na presente pesquisa são oriundos da coleta


realizada por Fernanda Marcondes em seu trabalho de conclusão de curso (TCC),
denominado “Desconexão Do Trabalho: A privação desse direito e a consequente
alienação trabalhista”, orientado pela Prof. Dra. Edvânia Ângela de Souza Lourenço. Para
a realização do TCC houve a aprovação dentro do projeto denominado “Reestruturação
Produtiva no setor calçadista de Franca/SP: um estudo sobre a saúde dos/as
trabalhadores/as”, aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UNESP, parecer n°
1.790.254, cuja principal pesquisadora é a Prof. Dra. Edvânia Ângela de Souza Lourenço,
tendo sido também a autora do TCC cadastrada no projeto e na Plataforma Brasil.
Esses dados são de pesquisa do tipo censitária, uma vez que foi feita visita de casa
em casa nas Ruas José Pimenta, Rua Sebastião Roberto Bachur, Rua Orestes Dalmásio no
bairro Jardim Petráglia, Rua Francisco Maníglia, Avenida José Rodrigues Costa Sobrinho,
Rua Deolinda Maria Silva, Avenida Eufrásia Monteiro Petráglia, no Bairro Jardim
Petráglia.

1834
Ademais, foi possível notar a existência nessa região de pequenas unidades
produtivas, uma vez que essas são improvisadas nas garagens das residências. No entanto,
algumas dessas unidades são imperceptíveis somente pelo olhar, já que muitas vezes se
encontram aos fundos das casas. Por conta disso, para a realização dessa pesquisa foi
preciso estar com os sentidos auditivos atentos e aguçados, quanto ao barulho das máquinas
que envolvem o trabalho das bancas de pesponto. Além do mais, a indicação dos próprios
trabalhadores sobre outras unidades produtivas foi fundamental para a execução desse
trabalho.
Ademais, a coleta de dados foi feita por questionário estruturado, de caráter
quantitativo, sendo utilizada também da pesquisa empírica de observação dos ambientes
como outro meio de inferir resultados e conclusões acerca dessas modalidades de trabalho.
Em tempo, antes de trazer alguns dos resultados, faz-se importante mencionar que
para ao presente artigo foram utilizadas dez entrevistas, sendo todos eles trabalhadores com
calçados no geral e de couro. Insta esclarecer, que desses 10 entrevistados, 6 são
trabalhadores de banca de pesponto, 1 é uma trabalhadora domiciliar com a realização de
costura manual, 1 (um) é dono de banca de pesponto, dois são donos de fabriquetas. A
quantidade de entrevistas utilizadas nesse presente trabalho é diferente da quantidade
utilizada para o TCC, isso porque, para o presente artigo, foi excluído uma das entrevistas
na análise, já que o trabalhador entrevistado era empregado de uma empresa ortopédica
de Ribeirão Preto, situação trabalhista muito diferenciada em relação aos trabalhadores do
setor calçadista de couro e outros tipos de sapatos produzidos em larga escala.
Feitas essas considerações iniciais, faz-se importante apontar alguns dos resultados
e considerações encontradas, o primeiro desses refere-se ao modo como é feito o
pagamento da remuneração dos trabalhadores. Assim, os resultados das entrevistas
apontam que 4 (quatro) trabalhadores recebem uma remuneração fixa por mês, enquanto
os outros 6 (seis) recebem por produtividade. Esse elemento, portanto, constitui um
primeiro dado que nos proporciona refletir um pouco sobre a precarização do trabalho, já
que o trabalho feito por produtividade é muito maléfico ao trabalhador, que não consegue
se desconectar do trabalho, pois os seus rendimentos dependem do quanto ele produz.
A renda mensal de 5 (cinco)918 trabalhadores de banca de pesponto é de 1.333,20
(mil trezentos e trinta e três reais e vinte centavos). A trabalhadora domiciliar ganha uma

918
O número total de trabalhadores entrevistas, na presente pesquisa, que laboram em bancas de pesponto
são 6 (seis). No entanto, há apenas o resultado da média de remuneração de 5 (cinco) trabalhadores, porque
o sexto trabalhador faltante não sabia informar o valor da remuneração que recebia, tendo em vista que tinha
iniciado o trabalho naquela banca fazia poucos dias.
1835
média de R$700,00 (setecentos reais) por mês 700, pois costura uma média de 500 pares
de sapato, ganhando apenas a quantia de R$1,40 (um real e quarenta centavos) o par de
sapato. Aquelas que recebem maiores salários são os donos de banca e fabriqueta. O único
dono de banca entrevistado, afirmou receber por mês R$ 3.200,00 (três mil e duzentos
reais), já os donos de fabriqueta informaram receber um média de R$4.500,00 (quatro mil
e quinhentos reais) um deles, enquanto outro afirmou receber 20.000,00 (vinte mil reais
por mês), constituindo uma exceção em relação aos rendimentos mensais.
Isto é, embora todos os trabalhadores, com exceção da trabalhadora de costura
doméstica, recebam uma remuneração por mês maior que o salário mínimo nacional, o
valor recebido pelos pespontadores ainda são muito baixos, tendo em vista, que não
possuem alguns outros direitos por não serem registrados e nem contribuintes do INSS,
bem como possuírem jornadas muito extenuantes e excessivas, como poderá ser visto ainda
no presente estudo.
Acrescenta-se que dos 10 entrevistados, apenas um é registrado com carteira do
trabalho, sendo também contribuinte do INSS. O trabalho não registrado é um elemento
que configura a precarização do trabalho, pois dificulta o pleito de direitos trabalhistas e
previdenciários, não tendo a garantia de que irá receber benefícios como o 13º salário,
férias, descanso semanal remunerado, FGTS e etc.
Ademais, 6 (seis) trabalhadores não são contribuintes do INSS, ou seja, não são
segurados do INSS. Apenas 3 (três) contribuem, não havendo informação sobre um dos
trabalhadores, por um lapso na hora de fazer essa pergunta na entrevista. Ou seja, além da
maioria deles trabalharem por produtividade, se precisarem de algum afastamento de
saúde advinda de algum benefício beneficiário, não conseguirão receber esses benefícios,
por não terem a condição de segurado. Isto é, não lhes é assegurado nenhuma garantia
laboral, de saúde e de perspectiva de vida, necessitando trabalhar sempre, independente,
das condições de saúde.
Outro dado importante, é que foi apresentado uma lista de fatores psicossociais
para os entrevistados informarem qual daqueles fatores já possuíram ou possuem. Todos
os entrevistados, com exceção de um, apontaram pelo menos algum elemento da lista. O
fator psicossocial da lista mais apontado foi o estresse em primeiro lugar, sendo apontada
por 7 pessoas; seguida pela dor nas costas e pela dor nos braços, apontada por 6
trabalhadores.
As dores nos braços advêm do trabalho repetido, ademais as queixas de dor nas
costas dos trabalhadores decorrem de trabalharem sentados em bancos, que não possuem

1836
estrutura para proporcionar todo o conforto necessário para o trabalho, e ainda, ficam em
uma mesma posição durante horas. Ademais, o stress estando presente na vida dos
trabalhadores é um outro fator bastante preocupante, já que como aponta Silva (2013, p.
137), o stress laboral é um dos principais responsáveis por mortes no trabalho, e
acarretando em alguns casos até suicídios.
Sobre as jornadas de trabalho, faz-se considerar que todos os trabalhadores, sem
nenhuma exceção, laboram mais de 8 horas por dia, sendo as jornadas de trabalho de:
8h30 de trabalho para 1 (um) trabalhador; 9h de trabalho para 1 (um) trabalhador, 9h15
de jornada para 1 (um); 10h de jornada diárias para 3 (três) trabalhadores; 11h diárias para
1 (um); jornada de 12h15 para 1 (um) trabalhador; eor fim, a maior jornada diária de
trabalho, realizada pela trabalhadora doméstica de costura manual de 13h horas diárias.
Outra consideração sobre o tempo do trabalho, resulta na multiplicação dessas
jornadas diárias pelos 5 dias da semana. Ao se fazer essa conta, é possível verificar que
apenas um trabalhador possui jornada semanal menor que 44 horas semanais. Inclusive,
ressalta-se que há dois trabalhadores que possuem jornadas semanais maiores que 60
horas.
Tais apontamentos demonstram a ilegalidade da situação e o desrespeito aos
direitos da CLT, bem como aos direitos fundamentais e constitucionais do trabalhador.
Isso porque, o artigo 58 da CLT normatiza que a duração da jornada de trabalho não
excederá 8 (oito) horas diárias, já o inciso XII do artigo 7º da Constituição Federal aponta
que a duração do trabalho normal não é superior a 8 horas diárias e quarenta e quatro
horas semanais.
Vale lembrar, que na CLT, o artigo 59 da CLT autoriza o cumprimento de horas
suplementares, não excedente de 2 (duas) horas, mediante acordo escrito entre
empregador e empregado de 2 (duas) horas ou mediante contrato coletivo de trabalho.
Ademais, esse mesmo artigo no parágrafo primeiro afirma que a remuneração da hora
suplementar será indenizada em pelo menos 20% superior à da hora normal. No entanto,
com o advento da Constituição Federal de 1988, que é posterior à criação da CLT, o
parágrafo primeiro desse artigo não foi recepcionado pela nova Magna Carta, prevalecendo
o disposto no inciso XVI, do artigo 7º da Constituição Federal, que remunera a hora
extraordinária será em 50%, no mínimo, do salário normal.
Isto é, esses trabalhadores além de trabalharem excessivamente não possuem
nenhuma remuneração extraordinária por conta dessas horas excedentes, ao contrário,

1837
permanecem ganhando baixas remunerações, tendo em vista, ainda, que em grande parte,
esses trabalhadores recebem por produtividade,
As jornadas excessivas constituem além de ilegalidades trabalhistas e
constitucionais, um elemento de não desconexão do trabalho. Isto é, o excesso de trabalho
proporciona uma alienação cada vez maior, não permitindo que o trabalhador possa
desfrutar das virtudes do ócio ou da preguiça. Isto é, o trabalho acaba não possuindo o
tempo necessário para descansar, se dedicar ao lazer, possuir encontros sociais e familiares,
ler, usufruir das artes. Ademais, o trabalhador não possui tempo para emancipar-se
politicamente, isto é, não tem a oportunidade de entender e estudar os processos políticos
e sociais envolto na sociedade capitalista.
Como bem aponta Souto Maior (2006, p. 93), falar em desconexão ao trabalho ou
falar ao não-trabalho não consiste dizer ao não trabalhar completamente, e sim no sentido
em trabalhar menos, até o nível necessário à preservação da vida privada e da saúde,
considerando-se essencial a preocupação de se desligar concretamente do trabalho, em
torno das características deste mundo do trabalho marcado pela evolução da tecnologia,
pela deificação do Mercado e pelo atendimento, em primeiro, plano, das exigências do
consumo.
Ademais, a importância do tempo livre, da “preguiça” são apontados por Chauí
(1999) e Lafargue (2000) como virtudes essenciais para a emancipação dos trabalhadores.
Em um trecho da obra “O Direito à Preguiça”, Lafargue, inclusive, faz uma crítica a luta
da classe proletária francesa pelo direito ao trabalho, ao invés de lutarem pelo direito ao
descanso do trabalho ou pelo direito à preguiça:

Doze horas de trabalho por dia, esse era o ideal dos filantropos e
moralistas do século XVIII. Como superamos esse nec plus ultra! As
fábricas modernas tornaram-se casas ideais de correção, onde são
encarceradas as massas operárias, onde se condenam a trabalhos
forçados de doze a catorze horas não apenas homens, mas também
mulheres e crianças! E dizer que os filhos dos heróis do Terror se
deixaram degradar pela religião do trabalho a ponto de aceitar, após
1848, como uma conquista revolucionária, a lei que limitava a doze horas
o trabalho nas fábricas; eles proclamavam, como sendo um princípio
revolucionário, o direito ao trabalho. Envergonhe-se o proletariado
francês! Somente escravos seriam capazes de tamanha baixeza. Seriam
precisos vinte anos de civilização capitalista para um grego dos tempos
heroicos conceber tamanho aviltamento (LAFARGUE, 2000, p. 71).

Acrescenta-se, ainda, que as jornadas excessivas de trabalho estão diretamente


relacionadas à saúde do trabalhador. Importante ressaltar que Silva (2013, p. 133) afirma

1838
que as mudanças oriundas da reestruturação produtiva, juntamente com a flexibilização das
relações de trabalho, principalmente, quanto à jornada de trabalho, têm provado um
aumento considerável do estresse laboral e de outas doenças do trabalho, fazendo-o chegar
na conclusão de que há uma necessária relação entre a limitação da jornada de trabalho e
a saúde dos trabalhadores.
Outra consideração importante é o que o desrespeito ao direito à desconexão ao
trabalho é ainda mais tolhido para as trabalhadoras mulheres, tendo em vista que elas,
possuem maiores afazeres domésticos e responsabilidades pela casa e pela família, do que
os trabalhadores homens.
A divisão sexual do trabalho pode ser entendida, como conceituam Hirata e
Kergoat (2007, p. 599) como uma forma de divisão do trabalho social decorrente das
relações sociais entre os sexos, sendo essa forma modulada histórica e socialmente e tendo
como características a designação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres
à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a apropriação pelos homens das funções com
maior valor social adicionado.
Ademais, outros resultados das entrevistas demonstraram que apenas 2 (dois)
trabalhadores dos (10) entrevistados consideram que as jornadas excessivas são fatores
agravantes do seu trabalho. Isto é, os próprios trabalhadores não enxergam a situação de
precarização de seus trabalhos. A jornada que vivenciam não estão de acordo com a
regulamentação disposta tanto com a CLT, tanto com a Constituição Federal. O processo
de precarização e de alienação dos próprios direitos não conferem que os trabalhadores
tenham clareza da exploração que estão submetidos, isso porque, o trabalho em casa retira
o conflito direto entre capital e trabalho, e tudo se passa como se fosse um problema
individual do trabalhador.

O trabalho, ao ser realizado na esfera privada, tem um rebatimento


direto para a consciência de classe, primeiramente porque as
trabalhadoras não têm contato direto com os demais trabalhadores do
setor e tampouco com o empregador. O sapato a ser costurado é
repassado a elas por terceiros, assim, o contato das costureiras é com
algum conhecido, às vezes, vizinho, parente, mas não com o
empregador; em geral, elas não sabem para qual fábrica estão costurando
e não têm vínculo formal com as empresas e muito menos com os
demais trabalhadores. Este modo de organização do trabalho influi
diretamente na organização política destas trabalhadoras, que acabam
regulando o valor do trabalho, por peça, de acordo com os contatos
individuais entre elas e o atravessador ou algum banqueiro (dono de
Bancas de Pespontos) (LOURENÇO, 2014, p. 307).

1839
A descentralização do trabalho proporciona através das bancas de pesponto e da
domiciliação do trabalho proporcionam um processo de alienamento sobre a própria
condição de trabalho precarizado, já que o trabalhador não vivencia um espaço de trabalho
que seja favorável para articulação e efervescência política. Pode-se acrescentar também, o
fato de que muitas vezes o dono da banca, responsável pelo pagamento dos funcionários,
é marido, primo ou pai dos funcionários. Isto é, há um vínculo afetivo entre os
trabalhadores da banca e o dono, que muitas vezes impede que esses trabalhadores
informais reivindiquem os seus direitos.

CONCLUSÕES

A reestruturação produtiva marca a mudança no modo de produção do taylorismo-


fordista para o toyotismo, o qual trouxe alguns novos elementos para organização do
trabalho, como o trabalho just-in-time, kamban, estratégias de reorganização empresarial,
com programas como qualidade total. O toyotismo encaixou-se nesse novo momento
paradigmático do capital, justamente, por trazer maior flexibilidade, o qual influencia e
precariza, ainda mais, o trabalho na sociedade de capital.
Essa flexibilização do trabalho nesse novo quadro reestrutural da produção,
acarretou no âmbito do setor calçadista o fenômeno da descentralização do trabalho em
massa, ocorrendo a subcontratação através do trabalho terceirizado em bancas de pesponto
e no trabalho domiciliar.
No trabalho do pespontador e a domiciliação do trabalho resultam em processo
cada vez maior de exploração da força do trabalho e de desrespeito à direitos fundamentais
e constitucionais dos trabalhadores. Isso porque, no presente trabalho foi possível notar
que a maioria dos trabalhadores entrevistados laboram por produtividade, possuindo
baixas remunerações, em média os pespontadores recebem 1.333,20 (mil trezentos e trinta
e três reais e vinte centavos), destacando, ainda, a remuneração da A trabalhadora
domiciliar ganha uma média de R$700,00 (setecentos reais). Ademais, apenas um
trabalhador entrevistado é registrado, a maioria não possui a qualidade de segurado por
não contribuir com o INSS, além de conterem diversos fatores psicossociais, como o
estresse.
Ademais, possuem jornadas excessivas, ultrapassando a jornada semanal legal de
44 (quarenta e quatro) horas semanais, e não recebem nenhuma indenização pelas horas
extraordinárias laboradas ou qualquer outro aditivo. Isto é, esses elementos elencados

1840
apontam o desrespeito com a efetivação dos direitos dos trabalhadores, descumprimento
artigos da CLT, bem como direitos fundamentais da Constituição Federal.
Ironicamente, um outro resultado indica que apenas 2 (dois) trabalhadores dos (10)
entrevistados, consideram que as jornadas excessivas são fatores agravantes do seu trabalho.
Isto é, essa descentralização do trabalho intensificado de forma extraordinária pela
reestruturação produtiva causou desmobilização dos trabalhadores, que perdem de vista a
luta de classe, não reconhecendo algumas das explorações sofridas, como as jornadas
excessivas.
Pode-se perceber também, o tolhimento do direito à desconexão ao trabalho por
conta das jornadas prolongadas, do trabalho pautado na produtividade, além do trabalho
domiciliar. Isto é, os trabalhadores não possuem o tempo necessário para poderem se
dedicar as virtudes da preguiça e do ócio, não podendo descansar e nem conseguir ter
acesso às artes, além de não poderem se emancipar politicamente.
Ademais, soma-se a exploração desses trabalhadores, agravando o fato de que
muitas delas são mulheres, sofrendo ainda mais com o tolhimento do direito à desconexão
do trabalho, tendo em vista a divisão sexual do trabalho, que incumbiu a mulher dos
afazeres domésticos e familiares. Isto é, a trabalhadora mulher além de sofrer com as
jornadas excessivas, também é incumbida de realizar o trabalho doméstico, sofrendo com
uma dupla jornada de trabalho, e com o tolhimento, ainda maior que o do trabalhador
homem, da desconexão ao trabalho.
Como pode ser percebido, a reestruturação produtiva através da subcontratação e
da intensificação da descentralização e domiciliação do trabalho, causou impactos ainda
mais graves para os trabalhadores do setor calçadista de Franca/SP. Como pode ser visto,
há uma intensiva precarização do trabalho, bem como o desrespeito à direitos
fundamentais da pessoa humana, tendo em vista à flexibilização e a retirada de garantias
legais.
Isto é, a descentralização do trabalho, retirando o polo central de produção e de
emprego das indústrias, proporciona esse trabalho precarizado e terceirizado, que não
reconhece vínculos empregatícios, e por isso, não considera outros direitos, como as férias,
13º, contribuições ao INSS. Nesse ínterim, o trabalhador sofre com estresse, bem como
não se desconecta do trabalho por não vislumbrar uma perspectiva, um projeto de vida,
haja vista que não possui nenhuma garantia e direito legal assegurado.

1841
REFERÊNCIAS

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1842
CATADORAS SOLIDÁRIAS EM SUPERAÇÃO: CONSTRUÇÃO DE
UM CONTEXTO

Conrado Marques da Silva de CHECCHI 919

Luiz GONÇALVES JÚNIOR920

Resumo: O presente artigo de orientação qualitativa, amparado em método fenomenológico,


discorre sobre os processos educativos elaborados entre um grupo de 10 catadoras de materiais
recicláveis, organizadas em cooperativa de nome Acácia no município de Araraquara/SP. Os dados
para análise foram levantados a partir de discursos sobre fotografias tiradas pelas catadoras, durante
a atividade de catação porta a porta de residências e para além dele. Reconhecer o olhar daquelas
que declamam diariamente o convite à separação dos recicláveis, nos possibilita ver em suas atitudes
a produção de saberes que geram o próprio desenvolvimento e emancipação profissional, por
propagarem valores e refletirem sobre estes. Valorizar o trabalho e a dignidade de catadoras
submetidas a décadas de descaso, em mudança para a condição de cooperadas, perpassa romper
com a linha de assistencialismo, promovendo e reconhecendo a superação e auto-superação. Ao
conviver com as participantes, buscou-se através desta pesquisa, conhecer em suas falas, os sentidos
dados à suas ações, e nisto, abrir espaços a caminhos coerentes na formulação de políticas públicas
condizentes às suas realidades. Pensar a identidade em formação das catadoras de materiais
recicláveis, que no interior de muitas cooperativas, tem suas funções marcadas pela condição de
gênero, influi ter em vista as situações de marginalidade a que foram submetidas, marcadas pela
inconstância no universo trabalhista; assim como o estigma ainda existente da atuação com os
recicláveis, que pela falta de compreensão da sociedade, ainda classifica os materiais como lixo.
Catadoras ao realizarem suas ações, empreendem dimensões de vida de qualidade para si, para o
grupo, para a comunidade onde atuam, para o mundo, reciclam: energias, saberes, experiências,
possibilidades de superação de um sistema forjado para o consumismo de bens para o exercício da
troca, da partilha, do bem viver para todos e todas.

Palavras-chave: Catadoras solidárias. Processos educativos. Superação.

CONTEXTO COLETA SELETIVA SOLIDÁRIA

O serviço de coleta seletiva nos últimos anos, tem se destacado no cenário de


atuação com resíduos e demonstrado como a capacidade de articulação social, gera frutos
de reconhecimento e superação frente a adversidades. Como categoria profissional,
oficializada pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO – Brasil, 2002), tem
alcançado presença no cenário político e movimentado políticas públicas em sentido da
valorização e abertura do cenário de tratamento aos resíduos, em níveis municipais,
estaduais e federais, em favor do incentivo à atuação de cooperativas de coleta seletiva
solidárias.

919
Mestrando em Educação; UFSCar/São Carlos; conradomarq@gmail.com
920
Professor Drº do Deptº de Educação Física e Motricidade Humana; UFSCar/São Carlos;
luizgj7@gmail.com

1843
Como Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR),
catadores se articulam promovendo a luta pela autogestão do trabalho, buscando com que
o serviço realizado, seja em benefício à todos àqueles que fortalecem o movimento, e não
a uns poucos, através de conquistas na área da saúde, educação, moradia, dentre outras
reivindicações. Luta que tem no acesso ao conhecimento, o ponto fulcral à ética que
projetam em suas ações, a qual embasa toda ação do esforço coletivo no reconhecimento
de outra lógica de produção e consumo, o cooperativo, além de reforçar a necessidade de
um melhor tratamento dos resíduos em níveis municipais, com o fechamento de lixões, e
suas transformações em aterros sanitários.
Através desta bandeira de luta, feita de um cotidiano ainda marcado por
enfrentamentos e transformações de cenários ainda impregnados de descriminação, o
MNCR esteve presente na organização da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS),
aprovada após 20 anos de tramitação no Congresso Nacional e firmada nos pareceres da
Lei Federal nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, a qual Pinhel e colaboradores (2011)
declaram que dentre os instrumentos importantes da lei estão:

[...] os planos, os inventários e o sistema declaratório anual de resíduos


sólidos, a educação ambiental, os incentivos fiscais, financeiros e
creditícios, os acordos setoriais, a Análise do Ciclo de Vida, e o destaque
ao incentivo à criação e desenvolvimento de cooperativas ou outras
formas de associação de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis
(p. 84)

Dentre as demais discussões da lei, está também a proposta da logística reversa, que
tem a característica de prezar pela viabilidade da “coleta e a restituição dos resíduos sólidos
ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos,
ou outra destinação final ambientalmente adequada”.
A proposta da coleta seletiva solidária é realizada através de diferente concepção
do viver, que diverge do filantropismo ou a caridade, que figuram expressões de um
egoísmo por se relacionarem em diferentes níveis com o poder, pois manifestam a
superioridade de quem tem para dar, mas, em compromisso com os segmentos populares,
é baseada em outra economia. Distinta ao modelo macroeconômico virtual da bolsa de
valores, a economia solidária se vincula à produção do real, do que se come ao que se
veste: “[...] é a economia que se estabelece a partir da associação, da cooperação, da
comunhão, tanto entre indivíduos para a constituição de empreendimentos coletivos como
entre empreendimentos” (ARROYO; SCHUCH, 2006, p. 63).

1844
Os vínculos e incentivos de políticas públicas ao fortalecimento de iniciativas em
economia solidária são estratégicos para sua promoção, pois estas se realizam atreladas aos
processos de desenvolvimento local e territorial. Esta outra economia, fundada no
constante apelo à equidade nos meios de produção, distribuição e consumo, cresce e toma
forma na medida em que aglutina utopias possíveis de serem realizadas. Dimensões da
imaginação encontradas em prática, as quais exigem segundo Freire (2001), “a futuridade
a ser construída” (p. 156) e que emergem da procura pela extasia de não estar só, mas em
movimento com a vida e o outro - “uma estrela, uma flor, ou um pássaro” (FIORI, 1991,
p. 66), criando formas ao mundo que habitamos seres humanos uns-com-os-outros-ao-
mundo, emanam alternativas pautadas no gosto da partilha, sempre transformadoras das
opressões vividas em liberdade criativa.
Pensar a identidade em formação de catadores de materiais recicláveis influi ter em
vista as condições de marginalidade a que foram submetidos, sendo explorados
economicamente no instável registro da pobreza, marcado pela inconstância no universo
trabalhista; assim como o estigma ainda existente da atuação com os recicláveis, que pela
falta de compreensão da sociedade, classifica os materiais como lixo. Por isso a importância
da crescente organização dos catadores em movimento político, através do MNCR, pois
no encontro de cooperativas, e sua organização política, cria-se autoestima e se reconhece
a profissão, há a inserção na sociedade, “conquistando seus direitos e deveres, emprego e
renda, respeito e uma vida mais digna” (PINHEL et al., 2011, p. 63), travando combates
em níveis da apreensão do sistema e seus mecanismos desvalorativos.
O presente artigo é parte de pesquisa de mestrado em andamento junto ao
programa de pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos, e tem
orientação qualitativa, baseada em método fenomenológico (MERLEAU-PONTY, 1994),
modalidade fenômeno situado (MARTINS; BICUDO, 1989), a qual possui como
objetivo, evidenciar os significados dados à prática da coleta seletiva solidária pelos próprios
atores. Neste sentido, busca ao valorizar as ações realizadas, o constante processo de
autoafirmação e construção de subjetividades críticas e que possam

[...] permitir aos participantes ganhar confiança para reconhecer a


maneira como em suas vidas se manifestava o controle e o domínio, o
qual os exigiu realizar processos construtores de identidade e
conscientização em uma leitura crítica da realidade, que lhes dá
elementos para propor em seus meios de ação, práticas e processos
alternativos aos que propunham o poder (MEJÍA, 2013, p. 374)921.
921
Tradução livre.

1845
Para tanto, como recurso metodológico foram distribuídas câmeras fotográficas às
veiculadoras da pesquisa, para que através da criação de imagens, e o discurso realizado
sobre elas, pudesse se chegar a processos estéticos e educativos significantes, dados à prática
de catar recicláveis solidariamente. No presente artigo, será dado enfoque maior a uma das
categorias desveladas.

COOPERATIVA ACÁCIA DE COLETA SELETIVA

A cooperativa Acácia de coleta seletiva, atualmente se localiza no atual aterro


municipal, em terreno destinado ao Departamento Autônomo de Água e Esgoto de
Araraquara (DAAE) que é o principal responsável pela política de resíduos sólidos do
município. O DAAE em parceria com a Prefeitura Municipal de Araraquara e a
cooperativa Acácia, realiza o convênio de cobertura de toda cidade pelo serviço de coleta
seletiva através da Acácia desde 2008, assim como a triagem deste material, que é a
separação dos resíduos por categorias impostas pelo mercado, o beneficiamento dos
materiais – prensagem e derretimento do isopor, que agregam valor aos produtos no
processo comercial, e a sua venda. Em seu estatuto está escrito que a cooperativa
“fundamenta-se na liberdade de associação, na solidariedade de ganhos e perdas, na gestão
democrática e representativa, na defesa dos interesses econômicos e do bem-estar dos
cooperados” (ESTATUTO, 2006).
Formalizada no ano de 2005, a Acácia, percorreu um longo percurso até chegar à
sua institucionalidade, e neste interim figurou caminhos comuns a muitas cooperativas de
coleta de recicláveis no processo de formalização. Tendo passado de início, pela ausência
de políticas públicas de incentivo à sua criação, em que os catadores realizavam suas
atividades de modo informal, em lixões e nas ruas. Em seguida após o impedimento de
suas atividades nestes espaços de despejo de resíduos sólidos (ano de 1994), o início de
incentivos, políticas públicas que induziram à formalização de empreendimentos de
catadores.
Em 2002, devido agravamento de invasões no lixão, vislumbrou-se por parte do
poder público a possibilidade de se criar uma cooperativa de catadores de materiais
recicláveis, que por uma série de disputas político-partidária local (MORAES, 2011, p. 94),
foi formada a associação Acácia de catadores de materiais recicláveis, que após período de

1846
3 anos, se formalizou em cooperativa, com 60 cooperados. Atualmente a cooperativa conta
com 180 cooperadas/os, em sua grande maioria mulheres.
A coleta solidária porta a porta de residências é realizada pela cooperativa Acácia
através da divisão da cidade em regiões, em que diferentes grupos atendem de uma a duas
vezes cada região. No dia a dia da catação, cada grupo se encontra pela manhã em ponto
combinado próximo à área de coleta do dia, e realiza a jornada de trabalho, que se inicia
por volta das sete horas e segue conforme a demanda de catação, variando entre o meio
dia às 15 horas da tarde ou excedendo até mais horas, caso haja muitos recicláveis (período
de festas no calendário). O trajeto a ser realizado por cada participante é organizado pelas
próprias catadoras, e definido principalmente pela coordenadora de cada grupo.
Após a regularização do empreendimento, em que começam já a despontar os
benefícios sociais decorrentes da atuação do grupo, existe a necessidade da constante
formação destes indivíduos por parte do poder público, para o fortalecimento de princípios
que partam da autogestão e distribuição dos ganhos em sua organização. Refletindo sobre
a criação de políticas públicas que impulsionem a formação de cooperativas de catadores,
Adametes (2006, p. 11), traz apontamentos sobre as histórias de vida de pessoas que vieram
a formar a cooperativa Acácia, denunciando os aspectos ambíguos existentes nos interesses
do poder público, que perpassam argumentos de jogo ideológico segundo a norma
moderna do ecologicamente correto, fazendo dos catadores vassalos de um “eco”
capitalismo, contraditório em todo seu fundamento às perspectivas fundantes de todo agir
cooperativo e solidário.
Ao conhecer o histórico destas pessoas, que vieram de uma longa história de
catação autônoma no lixão, submetidos a décadas de descaso e assistencialismo e a
mudança para condição de cooperados, em que a formação de grupo, em que as ações de
grupo pressupõe a horizontalização, há a necessidade da demarcação de um projeto
político empenhado com níveis de mudança social e éticas por parte da governança, o que
justifica a necessidade do comprometimento em atender demandas práticas dos catadores,
como a saúde a educação e o acesso ao conhecimento.

A COLETA SELETIVA SOLIDÁRIA PORTA A PORTA DE RESIDÊNCIAS

Motivado em conhecer os significados dados pelas/os próprias catadoras/es à


prática de catar recicláveis porta a porta de residências, me inseri junto a um dos coletivos
de catadores/as de materiais recicláveis da cooperativa Acácia.

1847
O grupo que estive cooperando cobre 3 regiões, a primeira, que abrange os bairros
do Carmo, Santana, São José, a segunda, os bairros Santa Angelina, São Geraldo, e a
terceira, os bairros Parque das Laranjeiras, Jardim dos Manacás e o Jardim das Flores.
Cada região é realizada em um dia da semana, sendo a primeira delas atendida duas vezes
pelo tamanho dos bairros serem maiores. O coletivo em sua formação é formados por 12
integrantes mulheres, que saem à catação, e possuem entre 26 e 62 anos, mais 3 homens,
dois que são cargueiros e que organizam as bags (sacolas grandes de ráfia em que os
recicláveis são depositados e arrastadas pelos trajetos de catação porta a porta) dentro do
caminhão baú, ao serem recolhidas nas ruas após estarem cheias de recicláveis, e o
motorista, não cooperado, mas contratado, que coordena o translado das bags cheias nas
ruas até à usina, onde o material é todo separado para a venda, o trajeto é realizado cerca
de três vezes ao longo do dia, quando muito quatro vezes, para coletar todas as bags cheias.
Esta formação é comum aos demais grupos que cobrem a cidade na catação porta
a porta todos os dias úteis, incluindo os sábados, os homens sempre permanecem no
caminhão ou na usina, e as mulheres nas ruas, apesar de haverem outras mulheres que
realizam trabalho na usina. Neste espaço, o horário das atividades de trabalho, tem um
rigor maior sobre as horas de entrada e de saída, por enquanto que nas ruas, o horário de
saída é mais flexível, ficando à altura do trabalho de cada participante em completar a
demanda proposta em cada dia, que após finalizada, termina seu expediente.
Apesar de ser um serviço mais pesado, por arrastar as bags cheias de material
reciclável pelas ruas, enfrentar o sol à pino ou de chuva, e o desgaste do corpo pelos
movimentos cansativos, repetitivos e localizados, tem sua regalia, de ser dona de suas horas,
e de seu trabalho ao longo do dia. O que exige cuidados, como o de conhecer os bairros
atendidos para não se perder por ruas que não correspondem à tarefa do dia, ou deixar
materiais recicláveis para trás ou bags em lugares de difícil acesso ao caminhão baú.
Algumas atenções que exigem o cuidado em muitos movimentos realizados ao longo da
catação, como com a própria voz, que é meio de comunicação com os diversos bairros
atendidos, através da exclamação “coleta” pelas ruas, e que pode comprometer, no esforço
às cordas vocais, o diálogo com moradores e comerciantes locais, à ação de separar os
recicláveis.
As ações realizadas de coleta nas ruas podem ser conhecidas por três momentos
distintos: o encontro anterior à coleta, a separação das bags, e a coleta pelas ruas porta a
porta, que é realizada individualmente. Como neste estudo, buscamos compreender as
ações de um grupo cooperado de coleta seletiva e não de catadoras informais, foi

1848
concebido como motivo principal o ato coletivo de catar, sendo constatado após a inserção
realizada nesta pesquisa, como processo integrado a todas as etapas.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Buscando compartilhar destes momentos, para ultrapassar apenas uma vontade


individual de realização de pesquisa, mas que nas trocas junto com o grupo e acolhida,
pudesse chegar à proposta da pesquisa como um objetivo comum, próprio a uma
comunidade de trabalho, a presente pesquisa partiu da noção de convivência metodológica,
que Oliveira (2009) descreve como sendo parte do engajamento do fazer pesquisa com
comunidades o fundamento ético do encontro, não para imposição de conhecimentos ou
valorização de um em detrimento ao outro, mas trabalho cientifico que ao desvelar os
contextos em que é realizado, com ele emerja o conhecimento crítico, transformador de
ambos veiculadores da pesquisa, colaboradoras e pesquisador que em intencionalidade se
educam.

A convivência permitirá perceber o que cotidianamente aflige as pessoas


e, assim, repensar trabalhos coletivos e políticas públicas, tornando-os
mais condizentes com a concretude do cotidiano. Conviver é mais do
que visitar e, não sendo algo que possa ser delegado, requer um
envolvimento pessoal de observação, questionamento e diálogo.
Somente olho no olho com o outro e, com ele convivendo, é que se
pode detectar e compreender posições políticas e informações que nos
são fornecidas sobre dada realidade (OLIVEIRA, 2009, p. 315).

Ao estar com o coletivo, pude ir de encontro a mim mesmos, por silenciar modos
de agir, para estar atentos aos movimentos do grupo, e assim procurar por momentos em
que a passividade pudesse despontar em pró-atividade sensível, através da pergunta: “Em
que posso ser útil?”. Assim, visita após visita, pude ir conhecendo pouco a pouco o grupo
e cada uma das participantes e sendo conhecido por elas. Das 12 catadoras mulheres, 10
concordaram em participar deste estudo, assim, distribui a elas câmeras fotográficas digitais
(de 16 megapixel, com carregador de bateria e cartão de 4 gigas), junto à pergunta: “O que
é isto: coleta seletiva solidária em sua vida?”, questão que indiquei como orientadora para
as fotos que elas quisessem fazer, durante a coleta ou em outros momentos do dia-a-dia
durante um dos meses do 1º. Semestre de 2017, podendo as levar para qualquer lugar que
quisessem. As 10 colaboradoras da pesquisa, ao assinarem o Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido (ver Apêndice 1) escolheram os seguintes pseudônimos para

1849
preservação de suas identidades: Nádila, Cíntia, Toninha, Samantha Guerra, Paulina,
Raquel, Jasmin, Laís, Margarida e Raíssa.
Ao se deparar com fotografias, criadas pelo grupo de catadoras de materiais
recicláveis cooperadas, e seus relatos de significação das imagens, se torna oportuno a
apreensão de dimensões estéticas elaboradas no agir intencional do coletivo. Fotografias
que na voz de suas criadoras, desvelam processos educativos próprios às ações realizadas,
fomentando um olhar sensível ao cotidiano.
O grupo que estive cooperando cobre 3 regiões, a primeira, que abrange os bairros
do Carmo, Santana, São José, a segunda, os bairros Santa Angelina, São Geraldo, e a
terceira, os bairros Parque das Laranjeiras, Jardim dos Manacás e o Jardim das Flores.
Cada região é realizada em um dia da semana, sendo a primeira delas atendida duas vezes
pelo tamanho dos bairros serem maiores. O coletivo em sua formação é formados por 12
integrantes mulheres, que saem à catação, e possuem entre 26 e 62 anos, mais 3 homens,
dois que são cargueiros e que organizam as bags (sacolas grandes de ráfia em que os
recicláveis são depositados e arrastadas pelos trajetos de catação porta a porta) dentro do
caminhão baú, ao serem recolhidas nas ruas após estarem cheias de recicláveis, e o
motorista, não cooperado, mas contratado, que coordena o translado das bags cheias nas
ruas até à usina, onde o material é todo separado para a venda, o trajeto é realizado cerca
de três vezes ao longo do dia, quando muito quatro vezes, para coletar todas as bags cheias.
Esta formação é comum aos demais grupos que cobrem a cidade na catação porta
a porta, os homens sempre permanecem no caminhão ou na usina, e as mulheres nas ruas,
apesar de haverem outras mulheres que realizam trabalho na usina. Neste espaço, o horário
das atividades de trabalho, tem um rigor maior sobre as horas de entrada e de saída, por
enquanto que nas ruas, o horário de saída é mais flexível, ficando à altura do trabalho de
cada participante em completar a demanda proposta em cada dia, que após finalizada,
termina seu expediente.

PROCESSOS ESTÉTICO EDUCATIVOS NA CATAÇÃO PORTA A PORTA DE


RECICLÁVEIS

Para composição dos dados desta pesquisa, cada participante escolheu três de suas
fotografias, que melhor respondesse à pergunta inicial motivadora: “O que é isto: Coleta
seletiva solidária em sua vida?”. A partir desta única interrogação, foram realizadas
entrevistas individuais com as cooperadas, questionando os significados dados a cada uma
das fotografias selecionadas. Os áudios foram gravados, e os discursos transcritos na íntegra,

1850
minuciosamente de acordo com a fala, e sua análise realizada conforme a rigorosidade da
metodologia do fenômeno situado (MARTINS; BICUDO, 1989), dando o primeiro passo
no formato ideográfico, em que os pesquisadores, ao lerem e relerem as ideias articuladas,
as descobrem, desmembrando os relatos em “‘unidades de significado’, enquanto aspectos
que impressionam o pesquisador, dentro do seu campo perceptual” (MACHADO, 1997,
p. 40), motivado pela interrogação empreendida.
Em sequência, foi realizado movimento em busca das essências dos discursos,
denominado redução fenomenológica, para em seguida organizar as ideias expressas pelas
catadoras em categorias, “formadas a partir de convergências, divergências ou
idiossincrasias observadas nos discursos dos sujeitos” (GONÇALVES JUNIOR, 2008, p.
78). A partir das categorias obtidas, segue-se a análise nomotética, ou seja, as normalidades
que se encontram no fenômeno interrogado, sua estrutura geral, elaborada para melhor
visualização através da Matriz Nomotética, onde as unidades de significado são
1851istribuídas em tabela, organizadas por linhas – que evidenciam as categorias obtidas
(representadas por letras do alfabeto A, B, C), e as colunas – com os nomes de cada
participante, que em seu cruzamento evidenciam a distribuição de cada unidade de
significado encontrado nos discursos (organizados em numeral arábico, progressivo com a
enunciação no discurso).de cada colaboradora.
Foi possível neste caminhar, desvelar três categorias distintas que emergem dos
significados dados por elas à prática da catação solidária, sendo intituladas a partir das falas
das fotografas entrevistadas.
A primeira categoria “Meu dia a dia é este, sempre sorrindo, sempre brincando,
dentro da gente só Deus que sabe”, provém dos discursos das catadoras acerca dos
processos vividos que as levaram à coleta seletiva solidária, nas convergências encontradas
percebemos processos de enfrentamentos das adversidades visando a superação de
situações limitantes, sem contudo, perderem a alegria de viver e a fé em dias melhores,
inclusive por encontrarem na coleta seletiva solidária a abertura de horizontes, caminhos
para concretização de sonhos. Como a asserção de participantes pelo desejo em retomar
os estudos. Outra categoria, intitulada “Coleta solidária pra mim se resume em família”
envolve processos educativos vividos pelas catadoras ao promoverem a competência de se
educarem para a vida coletiva e democrática, ao se desenvolverem como pessoa e
comunidade de catadoras solidárias, por trocarem saberes, compartilharem experiências
adquiridas na trajetória de vida e de conquistas ao catar materiais recicláveis porta a porta.

1851
A categoria “A coleta seletiva solidária ajuda o meio ambiente, é meu ganha pão e
conhece muita pessoa” será analisada neste artigo por envolver aspectos político-
pedagógicos elaborados no agir intencional de catadoras no contato com as comunidade
em que atuam realizando o convite à separação de materiais recicláveis, por onde quer que
passam.

A COLETA SELETIVA SOLIDÁRIA AJUDA O MEIO AMBIENTE, É MEU


GANHA PÃO E CONHECE MUITA PESSOA

Fotografia de Raquel: Essa senhora me atende muito bem, sabe? É meu amor, minha querida,
tenha um pouquinho de paciência que eu ando um pouco devagarzinho, mas eu vou chegar lá”

As interpretações que geram a categoria “Ela ajuda o meio ambiente, é meu ganha
pão e conhece muita pessoa”, surge de uma fala de Nádila ao ser questionada sobre a coleta
seletiva solidária, abarcam potencialidades que despontam no relacionamento entre as
catadoras como grupo, e delas com as comunidade onde atuam.

Pra mim, a coleta significa muita coisa, que é da onde eu tiro meu ganha
pão né, e a gente ajuda a deixar a cidade mais organizada, mais limpa,
ajuda nas enchente, ajuda a natureza, o meio ambiente, né? Ela ajuda o
meio ambiente, é meu ganha pão e conhece muita pessoa, entendeu?
Tipo assim, é a convivência com o povo no dia a dia, porque cada dia
você tá num lugar, conhece muitos lugares, muitas pessoas, que você
nem imaginava que ia conhecer, entendeu? Faz várias amizade
(NÁDILA, B4).

A partir do compromisso firmado de catar porta a porta os recicláveis, catadoras


cultivam parcerias para melhoria de suas vidas e da sociedade onde atuam, traçando

1852
sentidos amplos sobre a atividade realizada, “Ah coleta! significa tudo, né? O nosso
sustento, né? Que, ah, ajuda muito, ô, se num tivesse esse serviço, né? A limpeza na cidade,
né?” (LAÍS, B5).

[...] Pra mim, coleta seletiva solidária, significa menos lixo no planeta,
assim, né. Tipo em Araraquara menos lixo, porque o que a gente pega
de coleta, isso, isso ia pro lixo, imagina o tanto de lixo que num juntava,
né? (PAULINA, B7).

Coleta seletiva solidária, ao meu modo de entende é... É solidária, por


que? Por que é a população ajudando a gente a te uma renda, e a gente
ajudano o pessoal a descarta os materiais que eles tem em casa, né?
(RAÍSSA, B14)

A atividade de catação diária nas ruas implica no contato cotidiano com a população
e o constante convite à separação dos recicláveis, gerando ações mútuas entre catadoras e
moradores que, ao se mobilizarem, refletem sobre a cidade e atuam na separação dos
recicláveis, elaborando estratégias.

[...] eu num sei expricá... Eu num vô sabe expricá essa aí não. Eu acho
assim, a coleta é tipo assim, é um serviço assim, pra, como eu posso
dizê... Pra reciclagem, que é pra recicra materiais, e tem muitos que
coloca recicrage junto com o lixo, e não é isso, é só reciclage. Acho que
é isso. E o que ela representa... Por enquanto ela tá ajudando, tá
ajudando bastante. (CÍNTIA, B3)

Eu só acho que as pessoa devia de ter mais consciência, né, não jogar
vidro fora de caixa, não jogar lixo no meio da coleta, ou é lixo ou é coleta,
se fô lixo, põe no lixo, se fô coleta, põe na coleta. O vidro, embala,
porque memo que a gente usa luva, às vezes o vidro pode cortá até a
luva, dependendo do vidro, é... Espelho, jogam muito espelho, lixo na
coleta... Tê consciência do que é lixo e do que é coleta. O que, que nem,
o que a pessoa, acha que é lixo põe no lixo, o que acha que é coleta, põe
na coleta, num põe tudo misturado... Ah pra mim vai tudo misturado,
eles que se virem lá pra separar, pra gente é difícil, às vezes põe lixo
fedido, aí a gente é obrigado a ficá sentindo aquele cheiro... É ruim né,
esse o único recado que eu quero dá é prás pessoas ter consciência né,
do que fazem né... Se já que querem ajuda, ajuda da maneira certa, da
maneira correta, né, num é, só vô ajuda mas eles que se vira... Já que
quer ajudar, ajuda da forma correta, colocando só coleta, embalando os
vidros, né, acho que é esse meu recado (PAULINA, B22).

Nos bairros coletados ao caminhar pelas ruas marcadas pelo corriqueiro, e que em
bairros tradicionais ou periferias adquire a característica do encontro com o vizinho, há
condições de abertura às relações, em ritmo espontâneo da vontade de estar ou não

1853
compartilhando com a vida além da própria casa. A presença no cotidiano dos bairros que
atendem, acaba oportunizar o de convívio entre catadoras e morados, como no dizer de
Margarida, sobre uma moradora que a atende muito bem, oferecendo comida, além de
separar os seus materiais recicláveis.

Aí cê já sai lá naquela outra rua, a casa da muié é de esquina, e é madame


hein, pois a recicla dela é tudo lavada, ela dá a coleta e fala o Rô, cê
espera aí que eu vô pega lanche pro cê tamém, lanche e suco. E é
madame hein, sabe que ela não fala bem o português, é meio puxado,
cê vê que ela num é daqui, uma loirona brancona. Ela tá vendendo a casa
dela lá, ela falo que compra Rô, mai nem se eu fazê tráfico de droga,
compra uma casa dessa. Aí ela deu risada. Uma casa muito chic a dela,
e é de esquina, sabe, cê vê sabe aquelas, tipo num é ardósia, é tipo uma
pedra que eles põe muito bonita, é uma coisa fina memo, muito bonita
a casa da mulher. E ela toda vez que eu vô ali, cata as recicla dela é tudo
lavada. Tudo lavada. Tem gente que eu vô te conta viu. (MARGARIDA,
B18)

Nas condições de uma urbanidade atrelada e centrada no mercado dos bens e de


serviços, estamos longe das decisões sobre o cotidiano, das alternativas de ser para si com
outro criando alternativas de vidas a parte deste sistema, pois nele, contradizendo as
verdades apregoadas pela liberdade conquistada pelo consumo, nos tornamos a própria
mercadoria. O mercado e sua propaganda globalizada, privatiza o lugar social que vivemos
e nos faz entregues ao consumo impessoal de tudo o que produz, nele o sucesso se faz à
margem de toda satisfação, aclamada apenas pela ânsia da inovação, da visualidade que
suprime o passado, e ergue-se esvaziada de experiências:

A este espírito de higiene e intolerância, que estende o juízo e a revisão


em toda parte, das instituições aos interstícios dos pequenos encontros,
a memória expõe, no contraponto, a amabilidade e a brandura ante os
sabores, os aromas, as cores, as sonoridades, as formas essenciais de uma
cultura: significantes de uma maneira de ser que a subjetividade e a
intersubjetividade compuseram de modo inconsciente (GONÇALVES
FILHO, 1988, p. 96).

A ação de mobilização dos catadores implica reconhecermos as divergências e


descaminhos a que a privatização de todos os serviços de natureza comum à cidadania e
seu incentivo pode nos levar, pois ao entregar os direitos e deveres nas mãos do mercado,
este tende a usar toda humanidade disponível ao benefício próprio, em busca da mais valia,
ignorando toda condição de fazer cultural que toda a ação humana elabora ao agir no
mundo. Sem piedade, o capital retira a dignidade dos seres, sem reconhecer a própria

1854
condição vulnerável e sensível que somos feitos, nesta unidade de significado divergente,
Raquel diz das dificuldades que passou em sua vida que a desestabilizou emocionalmente,
perdendo o emprego, a fazendo encontrar na catação independente, uma alternativa para
sobrevivência sua e da família.

Eu tinha que fica lá porque minha nora dependia de mim pra tudo, pra
tudo, porque ela era de menor, ela já tinha seus dezoito anos mas não
gostava de trabalhar, então eu tinha que me virá né, o filho na cadeia,
com ela dentro de casa com nenêm pequeno, aí eu fiquei afastada do
serviço, inventei que eu tava com probrema no braço, mas num era, é
que eu já tava ficando meia doida mesmo, aí eu comecei a catá
reciclagem na rua, catei reciclagem na rua dois ano pra eu pode mantê
meu filho na cadeia, e pra mantê ela aqui fora, e com mais um salário
que eu recebia do INSS pra pode ajuda, né, mas... (RAQUEL, B7d)

Ignorar a população empobrecida que reinventa dia após dia as possibilidades de


sobrevivência, como na própria catação de recicláveis, é uma das anestesias que o capital
elabora socialmente, criando invisibilidades sociais diversas. Ao ignorar a ação de
catadoras/es informais, não incentivando a criação de cooperativas de coleta solidária,
muitos municípios incorrem no jogo político de favorecimento do mercado sobre todas as
instâncias do viver, entregando ao capital privado o domínio de regulação de todas as
esferas do viver. Dussel (2003), preocupado com mudanças necessárias para que o “bem
viver” seja realizado, não comprometendo as vidas futuras do planeta terra, bem como a
dizimação de toda a humanidade sobre ele, ressalta

Tendo como horizonte a destruição ecológica da terra articulada


concomitantemente com a miséria, a pobreza, a opressão da maioria da
humanidade (levando-se em consideração os fenômenos tais como o
capitalismo periférico, o racismo, o machismo etc.), devemos recuperar
a referência material, uma vez que tais “fatos” só podem ser descobertos
criticamente por contraste (contradição ou não cumprimento) com um
critério positivo material enunciado previamente. Por isso
necessitaremos reconstruir a verdade de uma ética material (onde a
destruição ecológica e a pobreza sejam detectadas como problemas
éticos em si mesmos) e articulá-la convenientemente a uma moral formal
(a partir da qual se poderá proceder consensualmente) (DUSSEL, 2003,
p. 25).

Dussel (2003), ao considerar a possibilidade de “recuperar a referência material”


nos remete a pensá-la em níveis ecológicos, para realização absoluta de toda sobrevivência,
uma vez que os recursos naturais têm se tornado escassos e a privatização destes, como a

1855
água, começam a se tornar, mais e mais evidentes, concomitante a sua escassez. Ao assumir
a lógica de formalização da moral, não se proporia à ética, a negação de seu movimento
ativo e criativo de condições de bem viver, mas, sim, buscar sobre as diversas faces
originárias de compreensões humanas do agir, impregnar as ações à alteridade, na
constante busca de aspectos intersubjetivos (no plano privado e público, nacional ou
internacional), para não resumir toda valoração humana em fundamentalismos.
A comunicação nesta lógica formal seria feita de um modo de vida “comunitário”,
na constante abertura (democrática e consensual), prática aos diversos modos de “bem
viver existentes” no contexto da totalidade social e histórica, conforme os princípios de
uma ética ecológica sustentável, para “sobre-vivência da comunidade de vida humano-
cultural” (DUSSEL, 2003, p. 28).
A falta de mobilização estatal a políticas públicas para o incentivo da promoção
cultural volta a organização pública apenas à promoção de instituições que moldam o fazer
humano em um único sentido, o do mercado. Não estar atendo às demandas de educação,
saúde e acesso ao conhecimento, de catadoras/es que hoje se articulam em cooperativas,
realizando diversas ações nos âmbitos dos municípios que atuam, como o incentivo ao
cuidado dos ambientes e reciclagem de materiais, acabam por tornar vulnerável o serviço
que realizam, despontando em perspectivas desoladas em catadoras e catadores, como na
unidade de significado divergente de Toninha:

O Rúbens e a Simone é o futuro do Brasil, que eu num quero pra mim,


eu não quero pra eles. Ele fala assim, ah mãe quero trabalha na coleta...
Não! Pode caça outro serviço que vocês... Tô ahn, se fô o caso pago até
uma faculdade pra eles quando tive velhinha, fazendo faxina pa um,
faxina pa outro, pago os... Os orgulho dos meus filho. (TONINHA,
B8d)

A “economia solidária” nos remete à outras concepções do viver, que contrapõem


o filantropismo ou a caridade, expressões de um egoísmo por se relacionarem em
diferentes níveis, intimamente com o poder, pois manifestam a superioridade de quem tem
para dar. Mas, em compromisso com os segmentos populares, é outra economia, distinta
ao modelo macroeconômico virtual da bolsa de valores, pois se vincula à produção do real,
do que se come ao que se veste.

Economia popular e solidária é aquela que acrescenta o desafio de,


também como fator de desenvolvimento, ser germinada, brotada de

1856
dentro para fora, de baixo para cima, aberta para o mundo, mas com
identidade própria, que possa estabelecer um diálogo em que o eixo é o
equilíbrio, a distribuição, a justiça. É a economia que se estabelece a
partir da associação, da cooperação, da comunhão, tanto entre
indivíduos para a constituição de empreendimentos coletivos como entre
empreendimentos para obter saltos de competitividade, em estruturas
em rede que também podem ser compreendidas como
empreendimentos coletivos (ARROYO; SCHUCH, 2006, p. 63).

Os vínculos e incentivos de políticas públicos ao fortalecimento de inciativas em


economia solidária são estratégicos para sua promoção, pois se realizam atreladas aos
processos de desenvolvimento local e territorial, por mais que ainda faltem marcos
jurídicos para a auto-organização dos trabalhadores, bem como de sua auto-organização
econômica para além do direito ao trabalho, mas direito ao trabalho associado; uma vez
que as bases legais nacionais são fundamentadas apenas no bem privado de produção.
O pensamento competitivo atrelado ao lucro, que desestrutura a possibilidade de
organização positiva entre os diversos empreendimentos solidários, por contradizer os
fundamentos do pensar solidário, necessitam ser questionados na medida que ao ofertar a
variedade para aprimoramento e aperfeiçoamento coletivo de produtos e mão de obra,
incitem apenas o benefício exclusivo de alguns poucos. Paul Singer (2002) nos diz que a
lógica da economia solidária se fundamenta na tese de que as contradições do capitalismo
criam oportunidades de desenvolvimento de organizações econômicas opostas ao modo
de produção dominante:

Cumpre observar, no entanto, que a reinvenção da economia solidária


não se deve apenas aos próprios desempregados e marginalizados. Ela é
obra também de inúmeras entidades ligadas, ao menos no Brasil,
principalmente à Igreja Católica e outras igrejas, sindicatos e
universidades. São entidades de apoio à economia solidária, que
difundem, entre trabalhadores sem trabalho e microprodutores sem
clientes, os princípios do cooperativismo e conhecimento básico
necessário à criação de empreendimentos solidários (SINGER, 2002,
p.112).

Esta outra economia, de apelo comunitário, fundada na constante busca pela


equidade nos meios de produção, distribuição e consumo, cresce e toma forma na medida
em que aglutina utopias possíveis de serem realizadas, apesar de já expressarem muitas
coisas concretas. Aspectos que exigem segundo Freire (2001), ao descrever o que define
como inédito viável, “a futuridade a ser construída” (p. 156), que não dicotomiza
consciência e realidade, mas a faz em práxis, em sentido de superação das contradições

1857
vividas, em busca da admiração de ser tomado pela extasia de não estar só, mas em
movimento com a vida e o outro – uma estrela, uma flor, ou um pássaro (FIORI, 1991, p.
66), que dão forma ao mundo que habitamos seres humanos, que uns-com-os-outros-ao-
mundo, emanam alternativas pautadas no gosto da partilha, transformadora das opressões
vividas em liberdade criativa.
É preciso enxergá-las, catadoras, como sujeitos do conhecer, e com elas se situar,
compartilhando das adversidades, e críticas às adversidades sofridas, pois como Valla
(2014) nos aponta, é que a forma do trabalhador exprimir sua visão de mundo, seu agir e
sua “concepção de história e da sociedade em que vive, está estreitamente relacionada com
a maneira com que se relaciona com o capital: de uma forma dinâmica ou de uma forma
indireta e oscilante” (p. 43).
São diversas as situações sofridas em meio à catação porta a porta, em que faltam
em respeito aos/as catadores/as, ou de conflitos entre cooperados/as e catadores/as
informais, como nas palavras de Paulina, ao dizer que seu dia a dia é: “[...] vim trabalha,
leva xingos na rua, leva elogios. Assim é a vida. (B2). São vários os relatos de desrespeito à
ação das catadoras no dia a dia:

[...] porque tem uns prédio... Nossa Senhora, que é bem desorganizado,
não é limpo, ainda até na quinta-feira a Raquel foi catá ni um, ali no
Morumbi, aí tinha fralda descartável, lixo assim, aí o porteiro xingou ela,
mandou ela tomar no cú. É, ainda a gente vai reclamar o povo é
malcriado, num gosta que a gente reclama, foi fala que... Pra separá mais
melhor, que num pode leva lixo, né, pra ele fala pros morador, ainda ele
foi grosso com ela, malcriado, tem umas pessoa bem malcriada, mas faze
o quê né, a gente tem que respeita né, se não perde o serviço. (LAÍS,
B11).

Através da reportagem do Jornal Tribuna Impressa da cidade de Araraquara do dia


05/03/2016, é possível compreender melhor a situação local dos furtos aos recicláveis:

De acordo com o David Teixeira Pinto, gestor de projetos da Acácia,


não é possível estimar, mas os furtos desses materiais causam prejuízos
financeiros à cooperativa. “O que é possível apontar é que perdermos 40
bags de 50 kg por dia. Cada sacolão sozinho custa R$ 3”, explica o gestor.
Assim, cada dois meses é preciso comprar 5 mil sacolões (MARTINS,
2016).

Dentre os processos educativos elaborados pelas catadores na coleta seletiva porta


a porta, em relação com a comunidade, abarcam competências que despontam no

1858
relacionamento com a comunidade e o compromisso com a sociedade. Nisto se
evidenciam: a) o relacionamento entre o grupo e os moradores dos bairros, que estabelece
parcerias para melhoria de vida de ambos; b) a troca de informação com a comunidade
que possibilita maior visibilidade do grupo pelos moradores dos bairros; c) o
relacionamento com moradores, que garante a possibilidade de estratégias para melhor
atendimento da coleta de materiais recicláveis nos bairros.

CONSIDERAÇÕES

Reconhecer o olhar daquelas que declamam diariamente o convite à separação dos


recicláveis, nos possibilita ver em suas atitudes a produção de saberes que geram o próprio
desenvolvimento e emancipação profissional, por propagarem valores e refletirem sobre
estes. Catadoras representam não só alternativas ao sistema de produzir, usando menos
água e energia, aproveitando os materiais já utilizados, mas, invertem a lógica das condições
de produção, ao reelaborarem o capital pela força de trabalho coletivo, em autogestão, ou
seja, todas participam da organização e das decisões do empreendimento.
Valorizar o trabalho e a dignidade de catadoras submetidas a décadas de descaso,
em mudança para a condição de cooperadas, perpassa romper com a linha de
assistencialismo, promovendo e reconhecendo a superação e auto-superação. Conhecer
suas vidas, que muitas vezes vieram de um longo período de catação autônoma, nos dá
possibilidade de vislumbrarmos a necessidade de mudanças necessárias por parte da
governança, comprometida com níveis de transformações sociais e éticas, pelos direitos das
trabalhadoras à uma vida digna.
Catadoras ao realizarem suas ações, empreendem dimensões de vida de qualidade
para si, para o grupo, para a comunidade onde atuam, para o mundo, reciclam: energias,
saberes, experiências, possibilidades de superação de um sistema forjado para o
consumismo de bens para o exercício da troca, da partilha, do bem viver para todos e todas.

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1861
POR UM FIO: UM ESTUDO DE CASO SOBRE AS CONDIÇÕES DE
TRABALHO EM UMA EMPRESA TERCEIRIZADA DO SETOR
ELÉTRICO NA CIDADE DE RIBEIRÃO PRETO-SP

Rhavier Henrique Mazieri PEREIRA 922

Resumo: Desde os anos 1970, temos assistido a profundas transformações no mundo do trabalho
e da produção principalmente com a crise do modelo fordista de gestão e o declínio do Estado de
bem-estar social. Fato é que o processo de reestruturação produtiva não se deu de forma
homogênea no mundo, dessa maneira a terceirização e as formas flexíveis de contrato resultaram
de um amplo contexto em que a vulnerabilidade e instabilidade do emprego, intensificação do
trabalho, a desterritorialização da produção, a reespacialização produtiva das atividades e a redução
do contingente de trabalhadores se mostra como ponto comum entre as distintas especificidades
do desenvolvimento capitalista ao redor do mundo. As transformações ocorridas nas economias
centrais do capitalismo no âmbito do trabalho e da produção, em curso desde os anos 1970,
passaram a se expressar de forma cada vez mais visível no país. Nos anos 1990, no Brasil, desenhou-
se um cenário marcado por abertura de mercados, introdução de políticas neoliberais, flexibilização
dos contratos de trabalho e crise econômica que resultou para muitos trabalhadores, em
desemprego, perda de direitos e aumento da precarização e da instabilidade das relações de
trabalho, sendo o crescimento da terceirização um dos principais responsáveis. Diante desse
contexto, a proposta da pesquisa foi discutir os principais efeitos da privatização e terceirização
sobre trabalhadores do setor elétrico, a partir da análise das condições de trabalho em uma empresa
terceirizada, localizada na cidade de Ribeirão Preto- SP. Para isso, foi desenvolvido sob um estudo
de caso, baseado, sobretudo, na realização de entrevistas com roteiro semiestruturado com intuito
de traçar um perfil dos trabalhadores a partir do caso selecionado (sexo, idade, escolaridade,
origem, trajetória profissional) e caracterizar as condições de trabalho de uma maneira geral, a
divisão de trabalho no interior da empresa, procurando analisar as principais consequências do
processo de privatização e consequente terceirização sobre os trabalhadores.

Palavras-chave: Setor elétrico. Terceirização. Trabalho.

INTRODUÇÃO

A Câmara dos deputados aprovou na noite em 22 de março de 2017 o projeto de


lei 4302/98, que regulamenta a amplitude da terceirização. Desde 1993, com a Súmula 331
do Tribunal Superior do Trabalho, pode haver, no país, a terceirização nas atividades não
essenciais à tomadora dos serviços, isto é, as atividades-meio. A principal mudança
proposta pelo PL refere-se à alteração da abrangência da terceirização, isto é, esta não
estaria mais restrita as atividades-meio, podendo atingir também as chamadas atividades-
fim, tornando-se uma forma generalizada e quase irrestrita de contratação de mão de obra.
Diante desse cenário, o debate sobre a terceirização ganhou destaque no meio político, na

922
Graduando em Ciências Sociais; Universidade Federal de São Carlos; PIBIC; rhavier.mp@gmail.com

1862
mídia e nos movimentos sociais, analisá-la, sobretudo no que se refere às suas
consequências para os trabalhadores, também reassume uma importância fundamental.
Entre os anos de 1991 e 1998, 63 empresas controladas pelo governo federal foram
vendidas, passando para a iniciativa privada. A privatização se iniciou em setores em que
havia uma maioria parlamentar favorável à transferência para o setor privado (siderúrgicas,
empresas químicas, petroquímicas e de fertilizantes), enquanto que outros setores (como
navegação de cabotagem, gás, mineração de ferro, telecomunicações e eletricidade) só
foram atingidos quando a política de privatização já tinha alcançado certa legitimação social
(ALMEIDA, 1999).
As empresas geradoras e distribuidoras de energia elétrica não escapam a esse
cenário, no entanto, esse processo tem gerado efeitos sociais negativos. Além do
desemprego ocasionado pelo processo de privatização, assistimos à intensificação do
trabalho para aqueles que permaneceram em atividade, além do aumento da insalubridade,
periculosidade e penosidade nos ambientes de trabalho, aumento dos problemas de saúde
e dos acidentes (SCOPINHO, 2002).
Como decorrência da privatização, a empresa responsável pela distribuição de
energia elétrica no Estado de São Paulo passou a contratar empresas terceirizadas,
sobretudo para atuarem na manutenção e construção da rede de distribuição elétrica. A
terceirização, consequência da privatização e principal forma de flexibilização da
contratação a partir dos anos 1990 no Brasil (KREIN, 2007), tem sido empregada com o
objetivo de redução de custo das empresas, tendo, como principal consequência, a
precarização das relações de trabalho, na medida em que, em geral, representa, para o
trabalhador, aumento da insegurança, rebaixamento de salário, redução de benefícios,
intensificação do trabalho, entre outras perdas (DIEESE, 2010).
A empresa X vem atuando, sobretudo as seguintes atividades: manutenção em rede
de distribuição energizada (linha viva), ligação e corte de consumidores, manutenção de
rede e serviços de emergência. Apesar da sede da empresa estar na cidade de Jaboticabal,
ela também atua nas cidades de Ribeirão Preto, Franca, São Carlos, Campinas, Batatais.
Desta forma, o presente trabalho se desenvolveu a partir de um estudo de caso centrado
nos trabalhadores da empresa X na cidade de Ribeirão Preto-SP. Assim, temos como
objetivos específicos: 1. Traçar um perfil dos trabalhadores a partir do caso selecionado
(sexo, idade, escolaridade, origem, trajetória profissional) e; 2. Caracterizar as condições
de trabalho de uma maneira geral e a trajetória dos trabalhadores no interior da empresa,
procurando analisar as principais consequências do processo de privatização e consequente

1863
terceirização sobre os trabalhadores, especialmente no que se refere à organização do
trabalho.
A metodologia presente trabalho se trata de um estudo de caso, baseado, sobretudo
na realização de entrevistas respaldadas por um questionário semiestruturado. Para o
contato com os eletricitários foi utilizada a estratégia de “bola de neve”, em que nossos
informantes, através de uma rede de relações de proximidade e confiança, nos indicaram
outros que poderiam ser entrevistados, e assim progressivamente, até que atingimos uma
saturação qualitativa (GONDIN; LIMA, 2006).

REVISITANDO O DEBATE

O fordismo do período posterior a 1945 tem de ser visto e analisado para além de
um sistema de produção de massa, isto é, como um modo de vida total. Contudo, as
contrariedades e as tensões políticas e sociais da época geraram um quadro em que as novas
obrigações do Estado ficariam insustentáveis em uma conjuntura de crise em 1973. Sendo
assim, fez-se necessário um processo de transição para o que ficaria conhecido como um
novo regime de acumulação (HARVEY, 1993; ALVES, 2017).
Em retrospectiva aos indicativos nos anos 1960, não só o compromisso fordista
como também o modo de gestão e administração de Henry Ford mostrava os primeiros
sinais de esgotamento (HARVEY, 1993) juntamente com o colapso estrutural do capital a
partir de 1973, decorrente não apenas da queda do percentual de lucros e da crise da
superprodução (ABRAMIDES, 2017). Harvey (1993) sintetiza as dificuldades do
capitalismo nos anos 1970, destacando a rigidez característica do sistema fordista. Segundo
o autor, a rigidez dos investimentos de aplicação de capital em longo prazo exigia um
sistema de produção que impedia a flexibilização, seja da produção ou dos contratos de
trabalho, assim como pressupunha a manutenção de taxas de crescimento estáveis nos
mercados de consumo. Concomitante a isso, aponta a crise dos anos 1970 relacionada à
decisão da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em aumentar o
preço do barril de petróleo e em embargar as exportações para o ocidente durante o
período da guerra árabe-israelense em 1973. Esse panorama mudaria drasticamente os
custos da principal matéria prima energética daquele período, levando assim à necessidade
de buscar outras fontes de energia, assim como uma profunda política de racionamento de
petróleo (HARVEY, 1993). A resposta a esse momento de crise foi uma nova fase de

1864
acumulação capitalista, dessa vez profundamente marcada pela racionalização,
reestruturação, intensificação do trabalho e a flexibilidade (HARVEY, 1993).
O movimento que colocaria em colapso o fordismo na segunda metade do século
XX anunciava não só o fim de um projeto político e econômico, mas um conturbado
período de reestruturação econômica, social e política a partir dos anos 1970 e 1980. Esse
novo modelo de acumulação flexível, como aponta Harvey (1993) é profundamente
marcado pelo confronto com a rigidez fordista. A diretriz do novo modo de acumulação
apoia-se principalmente: na flexibilidade dos processos e nos contratos de trabalho, dos
padrões de consumo e dos produtos. O mercado de trabalho passaria assim por profundas
transformações em sua estrutura, dentre as mais significativas, a redução do emprego
formal em benefício do uso crescente do trabalho em tempo parcial, temporário ou
subcontratado (HARVEY, 1993).
No âmbito da gestão dos trabalhadores, o processo de reestruturação produtiva
proporcionou um grande aumento da flexibilização dos contratos de trabalho. A
subcontratação da mão de obra e a maleabilidade dos contratos de trabalho proporcionou
o surgimento de uma nova configuração da classe trabalhadora nas economias centrais do
capitalismo. Esse nova configuração da classe trabalhadora diz respeito aos empregos
precários, temporários, trabalho autônomo e em tempo parcial como instrumento
essencial de flexibilidade (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009).
A flexibilização dos acordos de trabalho e, especialmente a terceirização, que pode
ser avaliada como o principal artifício de gestão e organização do trabalho no interior da
reestruturação produtiva (BORGES; DRUCK, 2002; LIMA, 2010; ANTUNES; DRUCK,
2013), deve ser percebida como componente de um processo de pelo menos quarenta
anos, que foi possível graças ao emprego da tecnologia na gestão das empresas e no
rearranjo dos contratos de trabalho, marcando um novo momento no desenvolvimento do
capitalismo (LIMA, 2010).
Por terceirização deve-se entender a prática administrativa pela qual se opta por
acordar com outra empesa o papel de exercer determinada atividade em vez de realizá-la
internamente (INSTITUTO ACENDE, 2012) as novas configurações de contratos de
trabalho – dentre elas a terceirização - devem ser analisadas como uma forma de
flexibilização dos contratos de trabalho que teve auge no contexto do capitalismo posterior
a reestruturação produtiva que em suma, denotou: a precarização do trabalho, das relações
de emprego e o acréscimo do estresse laboral, como as principais características da
morfologia do trabalho no século XXI (LIMA, 2010; ALVES, 2017).

1865
No Brasil, o debate a respeito da terceirização acompanhou o processo de
reestruturação produtiva e a abertura econômica do final da década de 80. Lima (2010)
aponta que embora a flexibilização e terceirização não impliquem necessariamente na
precarização dos processos e relações de trabalho, progressivamente tornam-se sinônimos.
Nesse sentido, os processos de precarização, vinculam-se a uma maior desregulamentação
da utilização da força de trabalho somado à redução de postos de trabalho, intensificação
do trabalho e mudanças nos contratos nos quais se tenta enxugar os custos com direitos
trabalhistas e sociais nas relações salariais. Mesmo a terceirização sendo amparada pelo
enunciado da Súmula 331, de 1993, do Tribunal Superior do Trabalho, que colocava
alguns limites à terceirização, não impediu o seu brutal crescimento nestes últimos anos,
além de criar um ambiente favorável à precarização do trabalho e à possibilidade de burlar
os direitos dos trabalhadores (ANTUNES; DRUCK, 2013). A Organização Internacional
do Trabalho desde 1997 vem debatendo o assunto, já tendo dado múltiplos relatórios
comprovando a precarização trazida pela terceirização (CARELLI, 2007).
A reestruturação produtiva se fez sentir fortemente no setor elétrico brasileiro, no
que diz respeito à substituição dos “empregados centrais” por trabalhadores terceirizados
e a precarização das condições de trabalho (COUTINHO; DIEESE, 2017). Dado do
Dieese (2017) mostram que a terceirização da mão de obra, praticamente nula no setor até
a primeira metade da década de 1990, dezoito anos depois, representaria 55,5% do total
da mão de obra da empregada no setor elétrico. Estudos de caso já realizados no setor
elétrico em empresas terceirizadas em São Paulo (SCOPINHO, 2002; MARTINEZ;
LATORRE, 2008) Minas Gerais (RABELO; CASTRO; SILVA, 2016; FIGUEREDO,
2015) Paraná (MENDES, 2014) e Rio de Janeiro (NOGUEIRA, 1999) apontam que
dentre as consequências da terceirização em seus respectivas Estados: a demissão em
massa, a intensificação do ritmo das atividades, a ampliação da insalubridade, o aumento
da frequência dos acidentes, diminuição dos benefícios sociais, ao rebaixamento dos
salários mais baixos, ausência de equipamentos de proteção e perda da representação
sindical são um como ponto em comum com o avanço da terceirização no setor elétrico
em cada um desses Estados.

1866
O TERCEIRIZADO NO SETOR ELÉTRICO: ENTRE O FLEXÍVEL E O
PRECÁRIO

De início, logo o que se destaca são as particularidades e diferenças quando


comparados: ajudantes de eletricistas, os eletricistas de linha viva923 e os eletricistas de linha
morta924. Apesar de todos estarem submetidos à mesma lógica de contrato em que a
empresa X é uma prestadora de serviço de uma das companhias responsáveis pela
distribuição de energia elétrica no Estado de São Paulo, algumas especificidades já são
assinaladas e levantam a discussão para os mecanismos de controle aos quais esses
trabalhadores estão submetidos.
No que diz respeito ao sexo, o trabalho na empresa X é exclusivamente masculino;
cor e raça não se mostraram como aspectos centrais durante a pesquisa, uma vez que,
baseado na autoafirmação dos trabalhadores, se encontrou certo equilíbrio entre os
trabalhadores de linha viva e os de linha morta no que diz respeito ao se auto declararem
brancos e negros. Em relação ao estado civil também se mostrou um equilíbrio bastante
significativo: entre os quatro trabalhadores de linha morta dois são casados e dois são
solteiros. Todos os eletricistas de linha morta moram juntos no alojamento custeado pela
empresa X925 e que por convenção da empresa é proibido morar ou mesmo levar mulheres
até as instalações da residência. Entre os eletricistas de linha viva todos partilham o lar com
suas respectivas companheiras, porém, dos quatro entrevistados, todos afirmam ser casados
ou que vivem juntos. O número de filhos também não apresentou graves distorções entre
os trabalhadores entrevistados: entre os trabalhadores de linha morta o número varia entre
zero até três filhos (as) e entre os eletricitários de linha viva, todos têm no mínimo um filho
(a) podendo chegar até três o número de filhos(as).
Entre os trabalhadores de linha viva, o grau de escolaridade é mais alto podendo
variar entre: 1º grau completo chegando até o 2º grau completo. Entretanto, entre os
eletricistas de linha morta o nível de escolaridade varia entre: 1º grau incompleto chegando
ao máximo no 2º grau incompleto. Nesse sentido, podemos afirmar que entre os eletricistas
de linha morta, existe um número de trabalhadores que podem ser considerados
analfabetos funcionais926. O baixo nível de escolaridade sem dúvida demonstrou ser um

923
Aqueles que trabalham com as linhas energizadas.
924
Ao contrário dos eletricistas de linha viva, esse grupo de trabalhadores trabalha com a linha desenergizada,
ou seja, sem energia elétrica.
925
Nome que utilizarei para designar a empresa terceirizada aqui analisada.
926
Analfabetos funcionais de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) refere-se a
pessoas que possuem menos de quatro anos de ensino completo. Disponível em:
1867
http://teen.ibge.gov.br/biblioteca/274-teen/mao-na-roda/1721-educacao-no-brasil
dos inúmeros mecanismos de manutenção das condições de trabalho. Em conversas
informais feitas com os trabalhadores, muitos se mostram satisfeitos com a empresa X, essa
hipótese se reforça ao estabelecer uma relação direta bastante clara entre a baixa
escolaridade e o fato de estar empregado em uma empresa que, de alguma forma, garante
alguns direitos mínimos como, por exemplo: férias e pagamento de salário em dia.
O local de nascimento dos trabalhadores tem como predominância nos Estados do
sudeste (São Paulo, Minas Gerais e Espírito Santo) e do nordeste do Brasil (Pernambuco
e Bahia). Até o fechamento das entrevistas, oito trabalhadores residiam na cidade de
Ribeirão Preto e apenas um na região, neste caso, em Serra Azul, cidade dormitório que
fica à aproximadamente 35 Km de Ribeirão Preto.
Antunes e Druck (2013) apontam que movimento de reestruturação produtiva tem
a rotatividade como uma das principais características da nova roupagem do capitalismo
flexível (em contraposição ao capitalismo rígido que perdurou até a década de 1960),
principalmente entre os terceirizados (em decorrência do trabalho por tempo determinado
pelos contratos firmados entre empresas). Na pesquisa realizada na empresa X, o que ficou
bastante evidente a respeito do trabalho por tempo previamente estabelecido diz respeito
ao tempo em que os trabalhadores estão morando na cidade de Ribeirão Preto: entre os
trabalhadores de linha morta, o que chama atenção é que nenhum dos quatro eletricistas
está na cidade há mais de dois anos. A rotatividade entre esse grupo de trabalhadores ganha
força se levarmos em conta o primeiro contato com os trabalhadores da empresa X em
2015. Naquela oportunidade, fomos até o alojamento que na época ficava em outro
endereço e após um primeiro contato foi possível conhecer alguns trabalhadores da
empresa X. Entretanto, quando retornamos aproximadamente um mês depois, recebemos
a informação de que nenhum dos trabalhadores estava mais em Ribeirão Preto (todos os
trabalhadores também eram da linha morta).
Como já mencionamos, entre os trabalhadores de linha viva, todos moram em casas
na cidade de Ribeirão Preto e região com suas respectivas esposas e filhos, as quais, por
vezes, contribuem no orçamento familiar. Entre os eletricistas de linha morta, os
trabalhadores compartilham em quatro pessoas uma residência custeada pela empresa 927.
A casa alugada pela empresa é bastante ampla, a divisão entre os cômodos se mostrou não
muito convencional, uma vez que, a cozinha ficava ao lado de fora (direto com a garagem)
e dois dos quatro quartos também tinham saída direta para a garagem. As formas de humor

927
Apelidada de barraco.

1868
e momentos de descontração entre os trabalhadores é outro ponto passível de análise, mas
que não será aprofundo nesse trabalho, mas de forma resumida, o que mais chamou
atenção é a constante afirmação do discurso da masculinidade como forma de construção
das relações entre os trabalhadores que ali moram e dividem os espaços.
A importância de se entender a trajetória profissional dos trabalhadores da empresa
X é essencial, pois de imediato o que marca profundamente as pesquisas a respeito da
terceirização para os trabalhadores, dentre elas: a desregulamentação dos direitos do
trabalho, ampliação no número de acidentes, rebaixamento da qualificação da mão de
obra, o enfraquecimento dos coletivos de trabalhadores, a ampliação das jornadas de
trabalho, intensificação do trabalho, rebaixamento dos salários (ANTUNES; DRUCK,
2013; DIEESE, 2007; KREIN, 2007; DRUCK; THÉBAUD-MONY, 2007; DIEESE,
2010). Entretanto, ao realizar as primeiras entrevistas amparadas pelo roteiro
semiestruturado, as falas de alguns trabalhadores em relação à forma como avaliavam seu
atual trabalho chamam a atenção:

É melhor né cara, tudo… segurança… tudo. E era meu sonho também


né, sempre quis trabalhar com eletricidade (Josué, eletricista de linha
morta, 19 anos).

Eu já falei que trabalhei em outra [empresa], as o que eu gostei foi esse.


Foi por “precisão” é lógico, é mais porque eu gosto, eu sei trabalhar em
outra área, mas é esse que eu gosto, é por gostar mesmo (Rogério,
eletricista de linha morta, 34 anos).

Eu gosto de trabalhar e da minha profissão, a única coisa que pega às


vezes é que sinto muito o sol quente... Mas eu amo trabalhar no setor
elétrico (Danilo, eletricista de linha viva, 29 anos).

No primeiro o momento, as impressões e avaliações dos trabalhadores pareciam


conflitantes, entretanto, é justamente nesse ponto em que a discussão a respeito da trajetória
dos trabalhadores se torna central para discussão entre os terceirizados. Como aponta Lima
(2010) o trabalhador por vezes já se insere no mercado de trabalho em uma lógica de
precarização sistêmica, nesse sentido, quando comparado à situação anterior de trabalho,
as mudanças nas condições de vida e de trabalho, por mínimas que se apresentem, são
levadas em consideração, como: férias, décimo terceiro salário e o pagamento em dia.
A discussão proposta por Lima (2010) ganha mais força quando partimos para
investigar quais as ocupações os trabalhadores da empresa X desempenharam

1869
anteriormente. A trajetória de alguns trabalhadores comumente passava pelo trabalho rural
e na construção civil:

O meu primeiro trabalho foi em roça, levanta cedo para mexer com
gado, tirar leite, cortar lenha… já fiz bastante coisa... Aí depois que vim
para a cidade, fui para casa do meu irmão e ele me arrumou para
trabalhar de ajudante de pedreiro. Eu fiquei lá só três meses, quando ele
falou: “agora você tem que trazer os documentos para ficar aqui”. Nisso
chegou um rapaz e falou assim: tem uma empresa lá em baixo que está
pegando um pessoal para trabalhar no setor elétrico, se você interessar…
Lá estava pagando em média 30 cruzeiros, era cruzeiro na época, e onde
eu ficava era 24. Aí meu interesse maior era ser um eletricista… isso tudo
em Minas Gerais (Paulo, eletricista de linha morta, 45 anos).

Eu comecei mesmo a trabalhar porque meu pai não tinha muita


oportunidade dar coisas que eu queria, então com 12 anos eu comecei a
trabalhar na roça: “panhava” café, tirava leite… fazia de tudo. Para mim
que era novo, eu comecei com 12 anos, acostumei vivido na roça né,
meu pai era retireiro. A verdade é que com oito anos eu já fazia umas
coisinhas para ajudar ele e para comprar minhas coisas. Eu ajudava a
rapa curral de vaca, limpa curral de vaca, juntava as vacas, essas coisas...
Eu ganhava o pagamento do meu pai. Eu o ajudava a adiantar o serviço
e ele me dava no final. Na época, não era registrado, tinha 12 anos não
tinha como fazer nada... só trabalhava mesmo, aí ele pagava no dia
(Josué, eletricista de linha morta, 19 anos).

O que é possível extrair da fala dos trabalhadores é a constante presença de um


histórico de trabalho em situação de informalidade. Outros trabalhadores garantiram que
o primeiro emprego com carteira assinada foi apenas na empresa X. Diferentes eletricistas,
entretanto apresentam um histórico no setor elétrico ou em empresas terceirizadas de
outros setores:

Eu comecei como ajudante de eletricista em uma usina e depois passei a


ser operador de casa de força. Foi quando eu comecei no setor elétrico
ligando e desligando motor e montando quadro (Jonathan, eletricista de
linha viva, 50 anos).

O primeiro trabalho meu que você fala fichado928. Foi numa auto-elétrica,
lá eu entrei como ajudante na área de automóveis, elétrico de automóveis
e trabalhei nessa área uns dois anos e depois fui para outras áreas de
serviço (Rogério, eletricista de linha morta, 34 anos).

O meu primeiro emprego foi em uma empreiteira trabalhando para


empresa B929 em Minas. Era uma empreiteira igual às outras, era trabalhar
de ralar mesmo. Em Minas, era terceirizada também e terceirizada

928
“Trabalho fichado” diz respeito a trabalho com carteira assinada.
929
Empresa terceirizada do setor elétrico em Minas Gerais.

1870
sempre trabalhou… Foram bravos esses anos de terceirizada. A gente
trabalhava demais... E tinha que trabalhar e que produzir (Joaquim,
trabalhador aposentado por invalidez da empresa X, 51 anos).

O meu primeiro trabalho foi como jardineiro aqui mesmo em Ribeirão,


eu era jardineiro lá na USP como terceirizado também. Eu fiquei um
ano nesse emprego (Danilo, eletricista de linha viva, 29 anos).

O que podemos extrair da fala dos trabalhadores, no que tange ao histórico de


trabalho, é que ou vieram de empregos informais ou de alguma outra experiência como
terceirizado em outras atividades ou mesmo no setor elétrico. A falta de garantias e a
precariedade presente na fala de alguns eletricistas quando mencionam suas experiências
anteriores de trabalho reforçam a visão positiva a respeito da empresa X. Outros
trabalhadores com experiência passadas no setor elétrico apontam uma manutenção nas
condições de trabalho.
Como é possível notar nos relatos, o trabalho informal ou o trabalho terceirizado é
uma realidade em muitas das trajetórias dos trabalhadores, nesse sentido, o caminho que
os trouxe até a empresa X por vezes se mostrou amparado por uma rede de amigos que já
fora estabelecida em experiências anteriores.

Um amigo nosso que a gente trabalhou junto em outra empresa arrumou


aqui para a gente, nós saímos eles vieram para empresa X primeiro.
Passou um tempo ele falou que estava precisando aí nós viemos
(Ezequiel, eletricista de linha morta, 38 anos).

Eu cheguei até a empresa X através de um colega. Eu estava parado na


época ele me apresentou lá na empresa ai vim pra cá (Rogério, eletricista
de linha morta, 34 anos).

Embora alguns dos trabalhadores já estejam na empresa há muito tempo, alguns há


mais de quinze anos, nenhum ali estava no período anterior à privatização de uma das
empresa que distribui energia elétrica no Estado de São Paulo. Nesse sentido, os
trabalhadores terceirizados da empresa X como aponta Leite (2009) estão sensíveis a
relações de precariedade e precarização das relações de trabalho. De acordo com Leite
(2009) precariedade e precarização se distinguem, uma vez que precarização deve ser
entendida como um procedimento relacional, ou seja, o período histórico se torna central
em sua análise, pois remete à ideia de degradação, como por exemplo: perda de direitos
associados ao trabalho. Em contrapartida, precariedade não necessariamente está
intimamente ligada à deterioração, mas sim como apontado: ao grau de estabilidade; de

1871
autoridade dos trabalhadores sobre as condições de trabalho, remunerações, ritmo etc; o
amparo do trabalho seja por meio da legislação, seja a partir de contratos coletivos de
trabalho e o rendimento associado ao trabalho. Assim, embora esses trabalhadores não
tenham vivenciado o processo de privatização vivenciam cotidianamente as consequências
de tal processo, uma vez que suas atividades de trabalho são marcadas pela precariedade
em diversos sentidos.
A tentativa de compreender as relações de trabalho e condições na empresa X
torna-se relevante em razão do aumento da contratação de mão de obra terceirizada. No
caso da empresa aqui referida, a contratação crescente de trabalhadores terceirizados a
partir da primeira década do ano de 2000 torna central uma analise das condições de
trabalho da mão de obra subcontratada.
O trabalho na empresa X ocorre sobretudo na divisão por grupo, dividido entre
eletricistas de linha viva e linha morta. A equipe não necessariamente é fixa. A cada dia, os
membros da equipe podem variar, entretanto, na medida do possível, os trabalhadores
buscam sempre formar um grupo coeso930 em que a ajuda mútua e o respeito sempre
prevaleça entre os membros. Sobre o trabalho em equipe entre os terceirizados do setor
elétrico, Scopinho (2002, p. 26) aponta:

A organização do trabalho em equipes é um fator de agregação, de


solidariedade e de estabelecimento de vínculos entre as duplas. A
cooperação, o sentimento de pertencimento, a noção de trabalho
coletivo são importantes para a segurança desses trabalhadores, porque
a atividade requer das duplas e das equipes uma grande sincronia na
execução dos movimentos e passos.

A composição da equipe se diferencia entre os trabalhadores da linha morta e os


trabalhadores da linha viva. As equipes de linha morta são compostas por três ajudantes,
que tem o objetivo de apoiar e oferecer ao eletricista que está trabalhando diretamente no
poste todas as ferramentas e os materiais necessários para execução do serviço. A equipe
conta também com três eletricistas, responsáveis pela execução do trabalho previamente
combinado. Além desses, há o encarregado, que normalmente também exerce a função de
motorista do caminhão.

930
Um dos trabalhadores afirmou que a composição das equipes ocorre por livre associação entre os
trabalhadores e normalmente se procura manter a mesma quando possível. Apenas esporadicamente as
equipes são mudadas como em ocasiões: férias, faltas ou folgas e nessas ocasiões algum outro eletricista pode
se juntar a uma nova equipe.
1872
O trabalho é em equipe, você tem os eletricistas e, por exemplo, têm os
ajudantes, cada qual faz a sua tarefa: pegar escada, fazer aterramento,
calçar o caminhão. Mesmo assim, antes a gente assina uma ficha
constante toda à trajetória que ocorre dentro da tarefa, junta toda a
equipe e passa toda a programação que pode ocorrer e se não fizer isso
pode surgir uma surpresa. (Paulo, eletricista de linha morta, 45 anos).

As falas dos trabalhadores informam que o total de pessoas por caminhão, ou seja,
o número mínimo de cada equipe de trabalho da linha morta deveria ter no mínimo sete
pessoas, entretanto, esse número, muitas vezes, não é atingido no dia a dia de trabalho, já
que não existe uma preocupação por parte da empresa na constante reposição de
trabalhadores que porventura não puderam trabalhar, adoeceram ou estão no período de
férias. Como ilustra um dos trabalhadores a respeito da composição das equipes:

O ideal são sete pessoas: encarregado, motorista, três eletricistas e dois


ajudantes. Mas isso não acontece não, tem vez que tem bem menos. Tem
vez que alguém sai de férias e eles não coloca outro, alguém adoece e
não coloca outro. Hoje a gente estava em cinco, eu que não estou
autorizado a subir por causa de um problema que eu tive eu fico no chão,
o encarregado passou o capacete dele eu fiquei tomando conta e ele
partiu para cima (Paulo, eletricista de linha morta, 45 anos).

Quando questionado qual foi à equipe mínima em que um dos entrevistados teve
a oportunidade de trabalhar, ele afirma:

Foi em três, no dia o trabalhado que a gente tinha que fazer era instalar
um transformador no poste. Foram dois eletricistas, e o terceiro ainda
era de outra equipe que veio para dirigir o caminhão e levar o
transformador até o local em que nós estávamos (Paulo, eletricista de
linha morta, 45 anos).

O trabalho nas equipes de linha viva, como aqui já foi citado, tem suas
especificidades quando comparado ao da linha morta. A composição e formação das
equipes de linha viva é um ponto que as diferencia dos demais grupos de trabalhadores da
empresa X. O número de trabalhadores da linha viva é menor que os da linha morta. A
equipe é formada por quatro eletricista e um deles ainda é responsável por ser o
encarregado e por dirigir o caminhão.

1873
A minha equipe é de três pessoas, vai subir dois e fica um em baixo,
como eu te falei que sou o líder da equipe por opção minha eu subo
porque eu vejo que é desgastante o cara fica de terça até sábado direto.
(Jonathan, eletricista de linha viva, 51 anos).

Trabalhamos em equipe sim. A equipe é formada pelo motorista do


caminhão que muitas vezes não é linha viva, tem o encarregado que sou
eu e temos mais um colega eletricista (Danilo, eletricista de linha viva, 29
anos).

Como também ocorre na linha morta, muitas vezes o número mínimo que é
estabelecido para execução do trabalho não é respeitado pela empresa X, sendo assim, por
vezes os trabalhadores ficam ainda mais pressionados já que a redução de número de
eletricistas e o trabalho na linha energizada podem acarretar riscos que muitas vezes se
manifestam em acidentes.

A gente trabalha em três. Durante o dia a gente reveza um dia um sobe


e dois fica em baixa, no dia seguinte o outro vai subir e assim vamos
trocando durante a semana. Antes era quatro, porém a Companhia Y,
no contrato eles conseguiram baixar para três, mas geralmente eram
quatro. Hoje em dia são três e se brincar eles querem diminuir mais
ainda (Jorge, eletricista de linha viva, 43 anos).

Na verdade, antes da privatização, as equipes eram formadas por oito


pessoas: encarregado, motorista e o eletricista. Agora que terceirizou
tirou isso tudo, agora é só três e às vezes é dois. De primeiro não poderia
trabalhar na linha viva com menos de dois, hoje a companhia Y931 liberou
para trabalhar um só na “mulinha” lá em cima. Fica um no chão e o
outro no poste (Joaquim, trabalhador aposentado por invalidez X, 51
anos).

O que se destaca na fala de ambos os trabalhadores: como a terceirização provocou


a redução no número de trabalhadores por equipe. Na primeira fala o eletricista até narra
um possível mecanismo de segurança informal dos trabalhadores: revezar quem executa
determinada tarefa para amenizar um pouco o cansaço do trabalho. O segundo caso, fica
explícito que o eletricitário vê um processo de intensificação e precarização do trabalho a
partir da terceirização no setor elétrico, em específico no Estado de São Paulo. Quando
questionado a respeito da percepção da reorganização e redução do número de
funcionários por equipe:

931
Companhia responsável pela distribuição de energia no Estado de São Paulo.

1874
Essas mudanças em parte só vieram para prejudicar. Quando a equipe
era formada por cinco pessoas, enquanto dois estão trabalhando têm três
em baixo olhando para sua segurança e era visto dessa maneira,
enquanto um está montando as peças que estão pedindo. Hoje quem
está em baixo trabalha o dobro de quem está trabalhando em cima, no
caso nosso se falarmos de montar primeiro e depois só fica olhando e
mandando o material que eles pedirem. Aí eu vou terminar o dia com
duas estruturas no máximo… às vezes nem isso, aí o que vai acontecer?
A empresa Y vai falar que a gente não está produzindo. Agora uma é o
que eles falam e outra coisa é a prática, na hora eles pregam isso, mas a
realidade é que não dá, como dizem o papel aceita tudo, mas na prática
eles não veem os obstáculos, ninguém vê que você precisa rodar várias
ruas para ver o número de uma chave e qual poste atende, aí tem
consumidor que não pode desligar, na prática não é como na teoria
(Jonathan, eletricista de linha viva, 50 anos).

Dois dos eletricistas de linha viva, sendo um deles já aposentado por invalidez (o
trabalhador em questão sofreu um grave acidente o que levou a cadeira de rodas) e o outro
encarregado de equipe, que está na empresa há mais de dez anos, têm análises interessantes
a respeito da relação entre a diminuição do número de trabalhadores e a segurança da
equipe. Na visão de cada um deles:

Com certeza ficou precário, onde fala precarização, nessa parte sem
dúvida, embora tenha funcionário e funcionários, eu, por exemplo,
quando vejo um determinado serviço e vejo que o meu pessoal vai tá
inseguro lá em cima, eu deixo e subo. Agora com cinco pessoas era bom?
Era sim porque todo mundo ficava olhando, ficavam no máximo duas
pessoas montando termina o serviço em um instante, então surge aquilo
que duas pessoas trabalham e três fica olhando e isso partiu da empresa
Y porque se a empresa Y quisesse tinha cinco pessoas, e se você for lá à
empresa eles tem cinco pessoas. Eu vou lá fazer um jogo de chave, uma
chave a óleo que é uma das que dá mais trabalho eu vou em três eles vão
a quatro, eles vão também a duas “mulinhas” encosta um de cada lado e
aí é dois palito, termina rapidinho. Com a gente é três e quando eles têm
esse tipo de serviço eles mandam para a gente (Jonathan, eletricista de
linha viva, 50 anos).

É muito arriscado. Trabalhar sozinho é muito arriscado. Eles colocaram


essa legislação e agora está valendo. Quando trabalhava em cinco, quem
trabalhasse de manhã não trabalhava a tarde e sim só no outro dia,
aquelas mangas de borracha que a gente usa desgasta muito sabe, hoje
você trabalha cedo e a tarde. A gente trabalhava assim com essas pausas
antes da privatização, depois que privatizou aí acabou (Joaquim,
trabalhador aposentado por invalidez, 51 anos).

O procedimento da terceirização tende a “enxugar” o número de trabalhadores por


equipe conforme aponta a fala do entrevistado. Todo esse processo foi possível observar
no dia de inserção em campo. Naquela ocasião, apenas três trabalhadores da empresa X

1875
compunham um conjunto de trabalhadores da linha viva. O que se verificou é que tamanha
redução nas equipes provocou diretamente a intensificação do trabalho e como resultado
direto, por vezes, o trabalhador executa o seu serviço sem nenhum tipo de fiscalização ou
acompanhamento dos possíveis riscos do local, isso porque, muitas vezes, um dos
membros da equipe está realizando um trabalho em altura, no mesmo momento outro
componente da equipe está recolhendo todo lixo que é produzido no corte das árvores e
o último dos eletricistas da equipe está controlando e fiscalizando a circulação de pedestres
e carros que circulam nas imediações.

CONCLUSÕES

As mudanças na economia capitalista estão organicamente articuladas com as


transformações no mundo do trabalho. Desde o primeiro momento, o trabalho de campo
se mostrou em intenso diálogo com pesquisas já realizadas no setor elétrico, principalmente
em relação aos desdobramentos e transformações no mundo do trabalho. Nesse sentido,
com o avanço das politicas neoliberais no Brasil, que se iniciaram no final da década de
1980, e o aumento na contratação da mão de obra terceirizada no setor elétrico, sobretudo
a partir dos anos 2000, a analise das condições de trabalho e do perfil dos trabalhadores
terceirizados ganha centralidade no debate acadêmico e nos desdobramentos das politicas
nacionais.
Os resultados finais da pesquisa sinalizaram um intenso diálogo com a revisão
bibliográfica sobre os seguintes temas: alta rotatividade, precarização, precariedade,
diminuição das equipes e intensificação. Também foi possível verificar que existem
especificidades e diferenças quando comparado às condições: de trabalho dos ajudantes
de eletricistas, os eletricistas de linha viva e os eletricistas de linha morta. Apesar de todos
os trabalhadores receberem o mesmo treinamento, as particularidades se realçaram
principalmente no que tange: à composição das equipes e salários. Outro ponto que se
pode observar é que o grupo de trabalhadores analisados na empresa X, em sua maioria
são homens e com baixo nível de escolaridade.
Por fim, a realização do estudo de caso se mostrou bastante rico em material a ser
explorado, partindo do ponto de vista que, apesar de ser uma analisa micro, as novas
formas de contrato de trabalho estão associadas a uma lógica da reorganização do
capitalismo posterior ao período de reestruturação produtiva. Vale lembrar também, que

1876
a empresa atua em boa parte da região metropolitana de Ribeirão Preto, o que abre a
possibilidade para futuros estudos seja de caso ou mesmo comparativo entre as cidades.

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1878
TRABALHO E PRODUÇÃO DE SABERES:
UM OLHAR NA PERSPECTIVA DOS CAMELÔS DE CUIABÁ

Christiany Regina FONSECA932

Resumo: Este trabalho tem por objetivo discutir o papel dos camelôs e sua relação com o trabalho
e a educação na perspectiva da experiência e da produção de saberes. Busca compreender a
“sobrevivência” da economia popular diante da ordem do capital, que, alicerçado na reestruturação
produtiva, tem tornado cada vez mais precarizado o trabalho assalariado. Bem por isso, vem
obrigando muitos trabalhadores a buscar alternativas para sobreviver e assegurar a produção
material e imaterial da vida. O referencial teórico-metodológico se apoia na literatura nacional no
atinente a estes temas: Trabalho, Educação, Economia Popular, Reestruturação Produtiva,
Experiência e Produção de Saberes. Trata-se de pesquisa qualitativa, lançando mão de revisão
bibliográfica, pesquisa de campo por meio de observação e entrevistas, que constituíram os
métodos e as principais técnicas utilizadas. Entende-se que os processos educativos também
constituem elemento da cultura do trabalho, mediando as condições objetivas e subjetivas do
processo produtivo. A dinâmica do trabalho se revela fonte de saberes adquiridos e produzidos no
próprio processo de trabalho, no qual os camelôs e os ambulantes estão inseridos nesta perspectiva.
Para atingir o cerne da pesquisa, fez-se necessário estudar as redes de relação entre o modus
operandi dos camelôs, associado ao trabalho e à educação. A apreensão dessas dimensões é
essencial para a análise das estratégias desenvolvidas por eles, agregadas ao conhecimento de
elementos que permitem a compreensão da organização social desse grupo. Pretende-se também,
com este estudo, contribuir para o debate sobre a questão da economia popular, do qual a
identificação deste tipo de atividade seria de suma importância para melhor compreensão de como
a interface trabalho e educação aí ocorre, fundada na convicção de que, por meio do trabalho, o
homem constrói saberes, e assim, também se forma e se constrói.

Palavras-chave: Trabalho. Educação. Camelôs. Saberes. Experiência.

INTRODUÇÃO

A partir da reestruturação produtiva e da acentuação do neoliberalismo, o trabalho


assalariado vem se tornando cada vez mais precarizado, obrigando muitos trabalhadores a
buscar alternativas de manutenção da vida assentadas nas diversas modalidades de atividade
econômica. Em meio a esta perspectiva, esses trabalhadores encontram, na economia
popular, formas de conseguir os recursos necessários à sobrevivência, produzindo, assim,
saberes, muitas vezes forjado em suas experiências do próprio dia a dia do trabalho.
Em Cuiabá, capital do Estado de Mato Grosso, nas Praças Ipiranga, Maria Taquara
e Caetano de Albuquerque, umas das mais movimentadas da cidade, ainda se encontram
diversos camelôs e ambulantes que garantem a sobrevivência por meio de vendas de

932
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia pela Universidade Federal de São Carlos
(UFSCAR). Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora de
Sociologia no Instituto Federal de Mato Grosso (IFMT).
Email: christiany.fonseca@cba.ifmt.edu.br, chriszf@hotmail.com
1879
produtos diversos. Vão desde filmes piratas e eletrônicos da China até produtos feitos pelos
próprios trabalhadores. Esses camelôs “faziam” e fazem a exposição de seus produtos nas
respectivas praças. Hoje também no Centro Comercial Popular Cuiabá (CCPC), espaço
criado pela prefeitura para que possam “definitivamente” sair das ruas. Este local se situa
na Avenida 13 de junho, Bairro do Porto, nas proximidades da mais tradicional feira da
cidade.
O presente trabalho enfeixa este tema: a relação entre trabalho e educação
alicerçada na economia popular, especificamente como se dá a produção de saberes que
levem em conta as experiências do próprio trabalho entre os camelôs do Centro Comercial
Popular de Cuiabá. Trata-se de proposta de investigação que se apoia na interface entre a
Sociologia do Trabalho, a Sociologia da Educação e a Economia Popular, o que implica
dizer que encarta uma abordagem interdisciplinar.
Vale ressaltar que, inicialmente, nosso campo empírico eram as praças e as ruas
centrais de Cuiabá. No entanto, ao longo de algumas visitas, deparamos a condição de
“perda” do campo empírico, tendo em vista que os fiscais da prefeitura estavam
empreendendo “batidas” frequentes nesses espaços, fazendo com que os camelôs e
ambulantes se deslocassem do espaço em análise.
O objetivo deste estudo é compreender a construção e a utilização das estratégias
de produção e ampliação da vida, desenvolvidas pelos camelôs, que se socorrem de
estratégias diversas de trabalho, igualmente focadas em suas experiências. Não esquecido
de que poderá, de igual parte, sobrelevando que a identificação deste tipo de atividade seria
de suma importância para melhor a compreensão de como a interface trabalho e educação
ocorre, tendo como premissa que, por meio do trabalho, o homem constrói saberes e, de
consequência, se constrói.
Para corroborar este ideário de identidade do trabalho na perspectiva da economia
popular e da educação, faz-se necessário problematizar as relações entre trabalho e
educação na produção e ampliação da vida. Nesse andar, a presente dissertação intenta
compreender como se produz e reproduz a relação em meio aos trabalhadores da
economia popular, vincando trabalho e a educação nos processos de produzir, com vista a
garantir a vida entre os camelôs e ambulantes. Forjados na ótica capitalista, criam estratégias
de trabalho, de sabedoria e de sobrevivência no seu dia a dia.
Para atingir o veio da pesquisa, indispensável foi estudar as redes de relação e
relacionamento entre o modus operandi dos camelôs, o trabalho e a educação. A
apreensão dessas relações sociais é essencial para a análise das estratégias por eles

1880
desenvolvidas, agregadas ao conhecimento de elementos que franqueiam a compreensão
da organização social desse grupo.
Nosso interesse em realizar estudos sobre a questão da economia popular e sua
relação com a temática trabalho e educação entre os camelôs do Centro Comercial Popular
de Cuiabá, no Bairro do Porto, decorre da curiosidade de compreender a “sobrevivência”
da economia popular ante a ordem do capital. Esta, a partir da reestruturação produtiva
(do neoliberalismo), tem tornado cada vez mais precarizado o trabalhado assalariado,
forçando a muitos os trabalhadores que viabilizem novas alternativas de manutenção da
vida. Nessa luta pela sobrevivência, esses atores produzem saberes, se educam no próprio
fazer do trabalho, demostrando assim, que o processo educativo não é forjado somente no
espaço escolar, mas em todos os espaços em que os homens se relacionam entre si. No
trabalho, esse processo formativo é aviltante, sabedores de que o homem cria e recria
estratégias que o definem e definem suas atividades.
Para melhor compreensão das questões colocadas nesta pesquisa, recorremos ao
levantamento bibliográfico e aprofundamento teórico-metodológico sobre os temas
trabalho, educação, reestruturação produtiva, economia popular, saberes e experiência na
perspectiva marxista e marxiana. A discussão ontológica e histórica, nós a circunscrevemos
à análise centrada na obra de Marx, subsidiada por outros teóricos que dela compartilham.
Quanto à discussão no tocante ao trabalho e educação, além do próprio Marx (1978, 1980,
1996, 1999), nossos principais referenciais foram Gramsci (1976, 1982, 2001) e Saviani
(2007). A questão do “trabalho” e “reestruturação produtiva” se embasa em Alves (2007,
2010), Antunes (1995, 2001), Harvey (1992), Saviani (2207), Caetano (2001). Quanto à
discussão acerca da “economia popular” utilizamo-nos de autores como Tiriba (2001,
2002a, 2002b, 2004, 2006,2008a, 2008b) Ciavatta (2001, 2007), Icazza, Singer (2000) e
Kraychete (2000), assinalando que, nas categorias “saberes” e “experiência”, muito
dialogamos com Thompson (1978, 1981, 1998, 2002) e Tiriba (2001, 2002a, 2002b, 2004,
2006 e 2008a, 2008b). Esses referenciais se inscrevem como sustentadores deste trabalho.

TRABALHO E SUAS INTERFACES

A sociedade contemporânea tem presenciado intensas transformações nas últimas


décadas. O neoliberalismo e a reestruturação produtiva a partir da acumulação flexível que
têm acarretado, entre tantos aspectos destrutivos, um significativo aumento nos índices de

1881
desemprego, uma enorme precarização do trabalho e uma degradação crescente na relação
entre homem e natureza.
Antunes (2001) aborda que no que diz respeito à questão do Trabalho, pode-se
presenciar um conjunto de tendências que configuram um quadro crítico e que têm
direções assemelhadas em diversas partes do mundo, onde vigora a lógica do capital.

1) o padrão produtivo taylorista e fordista vem sendo crescentemente


substituído ou alterado pelas formas produtivas flexibilizadas e
desregulamentadas, das quais a chamada acumulação flexível e o modelo
japonês ou toyotismo são exemplos;
2) o modelo de regulação social-democrático, que deu sustentação ao
chamado estado de bem estar social, em vários países centrais, vêm
também sendo solapado pela (des)regulação neoliberal, privatizante e
anti-social (ANTUNES, 2001, p. 37).

É possível perceber que existem consequências graves quanto à crise do capital.


Trata-se de uma profunda crise estrutural que vem destruindo a força humana que trabalha,
destruindo os direitos sociais, massificando significativos contingentes de homens e
mulheres que vivem do trabalho, tornando-se, assim, predatória a relação
produção/natureza, criando-se uma monumental “sociedade do descartável”, mantendo-
se, entretanto, o circuito reprodutivo do capital.

O Neoliberalismo passou a ditar o ideário e o programa a serem


implementados pelos países capitalistas, inicialmente no centro e logo
depois nos países subordinados, contemplando reestruturação
produtiva, privatização acelerada, enxugamento do estado, políticas
fiscais e monetárias, sintonizadas com os organismos mundiais de
hegemonia do capital como Fundo Monetário Internacional
(ANTUNES, 2001, p. 40).

A desmontagem dos direitos sociais dos trabalhadores, o combate cerrado ao


sindicalismo classista, à propagação de um subjetivismo e de um individualismo
exacerbados da qual a cultura “pós-moderna”, bem como uma clara animosidade contra
qualquer proposta socialista contrária aos valores e interesses do capital, são traços
marcantes deste período recente (HARVEY, 1992; MCLLROY, 1997; BEYNON, 1995).
Como resposta a crise do capital, várias transformações vêm ocorrendo. Uma delas
diz respeito às metamorfoses no processo de produção do capital e suas repercussões no
processo de trabalho. A forma “flexibilizada” de acumulação capitalista, baseada na

1882
reengenharia, na empresa enxuta, para lembrar algumas expressões do novo dicionário do
capital, teve consequências enormes no mundo do trabalho.
Ao levar as últimas consequências a precarização da vida, o modelo neoliberal vem
obrigado às pessoas a criar novas formas de trabalho e, ao mesmo tempo, recuperar antigas
relações sociais. Vale ressaltar que, na luta pela sobrevivência nos deparamos com um
número significativo de trabalhadores que fazem do espaço da rua o seu local de trabalho
(TIRIBA, 2003).
O universo dos trabalhadores da rua é formado por trabalhadores que
desempenham atividades tanto da economia informal como da economia popular, no
entanto, o fato de pertencer ou ser oriundo dos setores populares, não confere ao
trabalhador o status de ser um trabalhador da economia popular, assim é preciso
diferenciar a racionalidade das diferentes formas de fazer a economia (TIRIBA, 2003).
A manutenção da sobrevivência é fundamental elemento de identidade dos setores
populares, no entanto não é suficiente para explicar a racionalidade da economia popular.
De acordo com o Dicionário Internacional da Outra Economia,

Entende-se por economia popular o conjunto de atividades econômicas


e práticas sociais desenvolvidas pelos sujeitos pertencentes às classes
trabalhadoras com o objetivo de assegurarem a reprodução da vida social
mediante a utilização da própria força de trabalho e a mobilização dos
recursos disponíveis. Diz respeito às estratégias populares de trabalho e
sobrevivência, entendidas como a arte de criar condições favoráveis para
satisfação das necessidades humanas, tanto materiais como imateriais. A
economia popular refere-se a uma forma de produzir, distribuir e
consumir bens e serviços que transcende a obtenção de ganhos
monetários, vinculando-se estreitamente à reprodução ampliada da vida
(e não do capital) e tendo como horizonte a satisfação de valores de uso
e a valorização do trabalho e dos seres humanos. O conceito remete ao
significado etimológico da palavra economia, originada do grego oikos
(casa) e nemo (eu distribuo, eu administro). Assim como Oikonomia diz
respeito ao “cuidado da casa” (entendida como morada do ser humano),
a economia popular é a forma pela qual, historicamente, homens e
mulheres que não vivam da exploração da força de trabalho alheio
tentam garantir seu estar no mundo, tanto na unidade doméstica como
nos espaços/tempos mais amplos das relações sociais (TIRIBA; ICAZA,
2009, p. 83).

No contexto do capitalismo, como forma de amenizar as contradições entre capital


e trabalho, os atores da economia popular criam estratégias de trabalho e sobrevivência que
visam não apenas à obtenção de excedentes que possam ser trocados no mercado, como
também de alguns elementos fundamentais ao processo de formação humana, como a

1883
socialização do saber, ainda que de forma imediata essas práticas configuram-se em
obtenção de ganhos monetários (TIRIBA; ICAZA, 2009).
Tiriba (2003) destaca ainda que além de fazer amigos e ter a oportunidade de se
relacionar com muitos turistas brasileiros e estrangeiros, ampliando assim sua cultura e
contatos, para esses trabalhadores da economia popular, uma das vantagens de trabalhar
nas ruas é o fato de ter “liberdade” e “autonomia”, ou seja, não ter chefe. Ao mesmo tempo
em que precisa suportar uma longa jornada de trabalho, ficar exposto ao sol e à chuva, fugir
da fiscalização e viver de rendimentos incertos que a rua pode lhe oferecer.
O trabalho é a forma pela qual, nos processos de criação e recriação da realidade
humano-social, se dá a mediação dos seres humanos com a natureza e consigo mesmos.
Como parte integrante da natureza, no processo de trabalho, os seres humanos modificam
sua própria natureza, construindo cultura, maneiras de fazer e pensar o mundo natural e
social.
O ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das necessidades
humanas é o que conhecemos pelo nome de trabalho. Podemos, pois, dizer que a essência
do homem é o trabalho. A essência humana não é, então, dada ao homem; não é uma
dádiva divina ou natural; não é algo que precede a existência do homem. Ao contrário, a
essência humana é produzida pelos próprios homens. O que o homem é, é-o pelo trabalho.
A essência do homem é um feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se aprofunda
e se complexifica ao longo do tempo: é um processo histórico (SAVIANI, 2007).
Para Karl Marx, o homem se diferencia propriamente dos animais a partir do
momento que começa a produzir seus meios de vida, passo este que se encontra
condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, o homem
produz indiretamente sua própria vida material e imaterial (MARX; ENGELS, 1974, p.
19).
Se a existência humana não é garantida pela natureza, não é uma dádiva natural,
mas tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo, pois, um produto do trabalho,
isso significa que o homem não nasce homem. Ele forma-se homem a partir das relações
sociais de produção. Ele não nasce sabendo produzir-se como homem. Ele necessita
aprender a ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Portanto, a
produção do homem é, ao mesmo tempo, a formação do homem, isto é, um processo
educativo. A origem da educação coincide, então, com a origem do homem mesmo
(SAVIANI, 2007).

1884
Para Gramsci (1976, p. 83), a educação vai além da educação escolar, invadindo
todos os processos que envolvem a formação da consciência e a produção da subjetividade.
Entre os diversos espaços de formação, considera que "[...] a classe operária também se
governa fora do sindicato, se governa no seio da fábrica de acordo com o seu local de
trabalho".
Pode-se afirmar que no ponto de partida a relação entre trabalho e educação é
uma relação de identidade. Os homens aprendiam a produzir sua existência no próprio
ato de produzi-la. Eles aprendiam a trabalhar trabalhando. Lidando com a natureza,
relacionando-se uns com os outros, os homens educavam-se e educavam as novas gerações.
A produção da existência implica o desenvolvimento de formas e conteúdos cuja validade
é estabelecida pela experiência, o que configura um verdadeiro processo de aprendizagem
(SAVIANI, 2007).
Por ser o processo de trabalho, em si mesmo, uma instância de produção de
conhecimentos sobre o mundo natural e social, o objetivo da educação não poderia ser
outro a não ser o de contribuir para que homens e mulheres trabalhadores pudessem
rearticular os saberes sobre a vida em sociedade, apropriando-se do processo de trabalho
em sua totalidade. E também para que pudessem expressar, por meio de diversas
linguagens, nossa subjetividade – objetivada pelas condições materiais e imateriais que nos
constituem como seres sociais (TIRIBA, 2008).
A experiência que é a base material de produção de tantos saberes, resulta da
totalidade de experiências e culturas do trabalho de uma classe, em constante formação
(THOMPSON, 1981), independente do grau de escolaridade e dos limites geográficos
temporais e espaciais do local de trabalho o trabalho é princípio educativo (GRAMSCI,
1982).

TRABALHO E EDUCAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DOS CAMELÔS E


AMBULANTES EM CUIABÁ

A partir da reestruturação produtiva tem tornado cada vez mais precarizado o


trabalho assalariado e vem obrigando muitos trabalhadores a buscarem alternativas de
manutenção da vida. Em meio a esta perspectiva, esses trabalhadores da economia popular
buscam formas de conseguir os recursos necessários à sobrevivência a parir de sua
experiência e da sua produção de saberes.
No centro de Cuiabá, na Rua 13 de junho, uma das mais movimentadas da capital,
se encontram diversos camelôs e ambulantes que garantem a sobrevivência por meio de

1885
vendas de produtos diversos que vão desde filmes piratas, eletrônicos da China até mesmo
produtos produzidos pelos próprios trabalhadores. Esses trabalhadores fazem a exposição
dos seus produtos na Praça Ipiranga e na própria Rua 13 de junho e atualmente também
se localizando no novo “Shopping dos Camelôs”, espaço criado pela prefeitura para que
esses trabalhadores saiam das ruas.
O local indicado para que esses trabalhadores pudessem vender seus produtos foi
o Centro Comercial Popular de Cuiabá, no bairro Porto, zona oeste de Cuiabá/MT,
próximo a atual “Feira do Porto” com uma estrutura para o estabelecimento de 250
(duzentos e cinquenta) trabalhadores. No entanto, por meio de relatos desses ambulantes
e camelôs coletados em uma pesquisa exploratória realizada nos meses de setembro e
dezembro de 2013 e março e abril de 2014, os mesmos informaram que antes da entrega
do espaço pela prefeitura, havia sido feito um cadastramento para contabilizar o
quantitativo dos “trabalhadores de rua”, o que totalizou aproximadamente 376 (trezentos
e setenta e seis) cadastrados. Um número não compatível com o número de boxes
disponibilizados pela prefeitura para que os ambulantes e camelôs pudessem desocupar a
rua. Vale ressaltar que 376 foram os que conseguiram o cadastramento, pois alguns líderes
dos camelôs, ligados ao suplente de vereador Misael Galvão (PR), alegam que são
aproximadamente 1.000 (mil) profissionais trabalhando nas praças da República, Ipiranga
e Maria Taquara, além de calçadas e ruas da área central de Cuiabá que se quer foram
cadastrados933934, o que consequentemente inviabiliza pleitear um boxe no novo “Shopping
dos Camêlos. Entendemos que aqui se encontra um problema entre o poder público, os
trabalhadores informais e a questão do trabalho na atualidade em nossa capital.
Os trabalhadores que foram contemplados com os boxes no novo barracão fizeram
a mudança do seu espaço de trabalho, já aqueles que não foram atendidos permaneciam
perambulando pelas ruas e pela praça para garantir a venda de seus produtos. Um ponto
interessante a destacar é que esses trabalhadores que foram realocados do seu espaço de
trabalho, ou seja, das ruas, também voltam para as ruas, pois perceberam que no novo
espaço, o público de atendimento era muito reduzido.

933
Entrevista realizada em dezembro de 2013ao jornal Hiper Notícias acerca da retirada dos camelôs das
praças e das ruas do centro de Cuiabá e sobre o novo espaço que esses trabalhadores viriam a ocupar. A
notícia integral está disponível do endereço eletrônico
http://www.hipernoticias.com.br/TNX/imprime.php?cid=21705&sid=112

1886
Segundo relato de um ambulante, “tinha dia que nós vendia só dez reais ou não
vendia nada, daí voltamos pra 13 porque aqui que é o movimento de clientes, já estamos
há uns 10 anos aqui” (Entrevistado B).
Vale destacar, também, que segundo relato dos camelôs e ambulantes que foram
contemplados com um boxe no novo barracão, a prefeitura passa todos os dias pela manhã
fazendo a vistoria de quem está abrindo o boxe ou não, pois a não abertura implica em
perda do espaço. Dessa forma, esses trabalhadores relataram que vão pela manhã no
espaço, ficam umas duas horas e depois vão para o centro da cidade, comumente chamado
por eles de “lugar de trabalhar é aqui”, fazendo referência a Rua 13 de junho e a Praça
Ipiranga.
Para a prefeitura, os espaços da rua e da praça se tornaram inadequados,
impróprios e ilegais para a permanência desses camelôs e ambulantes. O que faz com que
os mesmos estejam sempre na corrida dos fiscais para não terem seus produtos tomados.
No entanto, esses trabalhadores relataram que já compreendem a dinâmica da fiscalização.

[...] quando passam na segunda, pode esperar que na terça passam


também, daí o resto da semana a gente fica de boa ou quando passam
pela manhã, a gente dá um jeito de esconder as mercadorias em alguma
loja perto ou mesmo no carro de algum companheiro que estaciona
próximo e quando eles vão embora, voltamos novamente para a rua
(Entrevistado A).

Vale destacar que a permanência desses trabalhadores nas ruas, mesmo com a
criação do barracão, bem como a articulação com a fiscalização é parte da produção de
saberes que esses trabalhadores construíram ao longo de sua história como camelôs e
ambulantes, os mesmos tiveram que aprender a construir mecanismos que os permitissem
a sobrevivência e a manutenção da vida. E essa “expertise” só foi possível em conflito e
encontro com o próprio trabalho, o conhecimento foi sendo adquirido no próprio
processo do trabalho. A partir das experiências vivenciadas por esses trabalhadores ao
longo dos anos de trabalho nas ruas, passando por enfrentamentos com policiais, com
fiscais e com a própria sociedade, os camelôs e ambulantes tem apreendido isso como um
elemento fundamental para que os mesmos produzam saberes que são essenciais para a
produção material e imaterial da vida.
Grande parte desses camelôs e ambulantes localizados na Rua 13 de junho e na
Praça Ipiranga trabalham sozinhos ou com mais um membro da família, geralmente o
cônjuge ou mesmo os filhos. Dentre esses trabalhadores se percebe baixo grau de

1887
escolaridade, geralmente não concluído o primeiro grau, no entanto possuem uma
significativa expertise no entendimento do mundo, da vida e de estratégias de trabalho e de
venda. Estratégias essas que só foram possíveis a partir da experiência vivenciada por eles
no “sol a sol” e no “dia-a-dia” do trabalho na rua.
Grande parte desses trabalhadores possuem tempo considerável como camelôs e
ambulantes, entre os entrevistados a média era de mais de vinte anos nesse ramo,
destacando aqui a senhora Flutuosa Tranquillo de 65 anos que há 36 anos vive como
vendedora ambulante.
Um número importante desses trabalhadores informou que vieram do trabalho
formal, geralmente com carteira assinada, ocupando funções que exigiam baixo grau de
escolaridade para sua execução, ou seja, trabalhadores assalariados que em algum
momento foram “expulsos” do trabalho formal e resolveram “ganhar a vida” no trabalho
informal.
Outro ponto interessante a ser destacado é que grande parte desses trabalhadores
reconhecem que quando trabalhavam como assalariados, de alguma forma eram
explorados, trabalhavam muito e não recebiam de acordo com o que achavam que deveria
ou mereciam. Questionavam, inclusive, que como assalariados dificilmente o salário
permitia uma “vida boa”.

A vida como camelô é muito melhor. Antes, quando a gente trabalhava


para os outros, tinha que ficar aguentado tudo quieto e não podia fazer
nada se não você era mandado embora, não podia nem reclamar do
trabalho, do salário que já ouvia alguém dizendo que tinha muita gente
desempregada, que emprego tá difícil... Aí você já viu. Hoje eu sou o
patrão, eu faço o meu horário, eu faço os meus dias... Sei quando preciso
trabalhar mais e quando posso trabalhar menos. Eu faço meu próprio
salário. (Entrevistado C).

Esses trabalhadores demonstraram que a “rua os acolheu” no momento em que


deixaram o trabalho o formal. Sendo camelôs conseguiram manter um padrão de vida
desejável, padrão esse que, segundo os entrevistados, não seria possível se tivesse que
continuar trabalhando com carteira assinada e sendo subordinado a alguém, no entanto
eles destacam que essa vida “autônoma” também é repleta de riscos, que a “sorte” é um
componente relevante para a manutenção como camelô ou ambulante e que é muito
importante que entre eles haja parceria, pois desde a aquisição de mercadorias para as
vendas até a permanência de seus espaços de trabalho é uma luta diária enfrentada por
esses trabalhadores para que suas atividades não sejam perdidas.

1888
A gente ganha uma batalha todo dia, a primeira é quando a gente tem
que buscar as mercadorias, passar pelas barreiras sem ser pego ou ter um
bom contato que segura isso pra gente, imagina você perder toda
mercadoria, é um mês de trabalho jogado fora, mas a gente vai
aprendendo, já sabe os melhores dias pra fazer os corres, como fazer os
corres. Esse povo que está iniciando agora, ainda perde muito dinheiro,
pois ainda não fez os contatos, daí acabam perdendo as mercadorias. A
outra é quando a gente vem na sorte das mercadorias não virem com
problema, se tem que saber de quem comprar, o melhor momento de
comprar, se não você perde dinheiro... Outra luta é com os fiscais da
prefeitura, se eles pegam a gente, vai a mercadoria, vai tudo. A gente quer
um lugar bom pra trabalhar, aonde o povo vai lá pra comprar da gente,
mas por enquanto tá difícil. (Entrevistado C)

O entrevistado C faz referência ao espaço que a prefeitura disponibilizou para esses


trabalhadores que é insuficiente pelo número de camelôs cadastrados pela própria
prefeitura, número esse superior ao número de boxes disponibilizados pela mesma.
Destacam ainda que esse espaço, devido às obras da Copa de 2014, bem como a
revitalização do bairro Porto, no qual está localizado o espaço, acaba por receber pouca
procura de clientes, já que a chegada até o local está inviabilizada pelas obras, levando esses
trabalhadores novamente as ruas do centro da cidade para o escoamento de suas
mercadorias, no entanto ficando estes aos olhos dos fiscais da prefeitura que já não
permitem mais suas permanências nesse espaço, já que o prazo máximo concedido pela
prefeitura para que esses trabalhadores desocupassem a Rua 13 de junho e a Praça Ipiranga
foi o dia 10 de janeiro de 2014. E a partir desse dia o espaço permitido para esses
trabalhadores seria esse novo espaço, no entanto, isso ainda não é uma realidade o que
acaba por tencionar cada vez mais a relação dos camelôs e ambulantes com o Poder
Público.
Ainda que haja essa tensão entre o Poder Público por meio dos fiscais da Secretaria
de Meio Ambiente e os camelôs e ambulantes, a presidente da Associação dos Camelôs,
Vendedores Ambulantes e Permissionários de Cuiabá, Aparecida Ribeiro de Oliveira,
avalia que tem melhorado a relação com a Prefeitura por meio da Secretaria de Trabalho e
Desenvolvimento Econômico (STDE) de Cuiabá que tem buscado se reunir
constantemente com esses trabalhadores e tem tentado dar soluções para as demandas
apresentadas pela classe. Ela destaca que a criação do novo “Shopping Popular”, nome
usualmente utilizado “é um sonho, é uma conquista de mais de vinte anos de luta”. No
entanto, ela também reconhece que

1889
“dezenas vão ficar desempregados”, mas alertou que “os verdadeiros camelôs”
foram contemplados e todos os nomes tiveram de passar pelo crivo do Ministério
Público ”.
935

Outro ponto relevante é quanto à solidariedade entre os camelôs. Ainda que exista
certo conflito entre os mesmos devido à concorrência nas vendas, já que muitos vendem
os mesmos produtos num mesmo espaço, dentre outros conflitos pessoais, a cumplicidade
entre estes parece superar as diferenças. Esses trabalhadores afirmam que entre eles há
certo “corporativismo” por reconhecerem que muitos que estão nas ruas são pais de
famílias e que dependem desses espaços de trabalho para a manutenção da vida.
Um dos entrevistados citou que quando ainda estavam nas proximidades da Rua
13 de junho e da Praça Ipiranga eles faziam um rodízio quanto ao estacionamento do carro
nesse mesmo local, de forma que quando houvesse uma batida por parte da fiscalização
todos guardariam rapidamente suas mercadorias neste carro, ficando todos na espera da
saída dos fiscais para retornar novamente as ruas e as praças e continuar com o trabalho.
Mesmo aqueles que não tinham carro e que consequentemente não poderiam participar
do rodízio do estacionamento eram também abrigados e “protegidos” pelos colegas.
Reforço aqui não só o aspecto solidário entre os camelôs e ambulantes, mas
também a experiência que os permitiu a produção de saberes que são utilizados por esses
trabalhadores como importante estratégia de trabalho.
Outra estratégia que também aponta lastros de solidariedade é vivenciada quando
da “batida” dos fiscais, entre eles as mensagens de celular era o melhor contato para
comunicação do perigo eminente. “Fiscal chegando” ou mesmo uma ligação rápida do
companheiro que estava na rua para um que estava na praça para que agilizasse a corrida
para salvar as mercadorias.
Até mesmo em relação às vendas são verificados os apontamentos feitos
anteriormente. Quando algum camelô está com cliente e este pede alguma mercadoria que
por acaso o comerciante não tem no momento, pedir no boxe do colega mais próximo a
mercadoria solicitada é uma alternativa frequente, afinal, como dito por eles “pra não
perder o cliente”. Mesmo quanto à fixação dos preços, uma estratégia de venda, mas
também de solidariedade entre os mesmos. E dessa forma essa relação se caracteriza com

935
Entrevista realizada em dezembro de 2013 ao jornal Hiper Notícias com a presidente da Associação dos
Camelôs, Vendedores Ambulantes e Permissionários de Cuiabá, Aparecida Ribeiro de A notícia integral está
disponível no endereço eletrônico http://www.hipernoticias.com.br/TNX/imprime.php?cid=21705&sid=112
1890
frequência nesse espaço, apontando características de solidariedade, de experiência e de
produção de sabres entre esses trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intenção principal deste artigo foi refletir sobre a relação entre trabalho e
educação entre camelôs e ambulantes, tendo como referência a questão da produção de
saberes e experiência. Entendemos que os processos pedagógicos também se constituem
como um elemento da cultura do trabalho, mediando às condições objetivas e subjetivas
do processo produtivo. A dinâmica do trabalho é fonte de saberes, adquiridos e produzidos
no processo de trabalho, no qual os camelôs e ambulantes estão inseridos nesta perspectiva.
Entendemos ainda que esses trabalhadores adentram para o trabalho nas ruas como
uma alternativa utilizada frente à reestruturação produtiva que tem tornado cada vez mais
precarizado o trabalho assalariado e vem obrigando muitos trabalhadores a buscarem
outras formas de manutenção da vida. Em meio a esta perspectiva, esses trabalhadores da
economia popular buscam formas de conseguir os recursos necessários à sobrevivência e
a produção da vida material e imaterial.
Podem parecer simples as atividades desempenhadas por esses trabalhadores. No
entanto, não o são. As atividades que estes trabalhadores desempenham são movidas por
riscos, incertezas e inseguranças. Embora assim, vêm conseguindo articular seus saberes,
fruto da própria experiência, o que constitui ferramenta fundamental para que, mesmo
com dificuldades, estejam na economia popular. Acresça um detalhe importante: grande
parte desses camelôs nos informaram não querer deixar a atividade eleita, pois já
aprenderam, no dia a dia do trabalho, como driblar os problemas e, de alguma forma,
encontrar certa estabilidade.
Não é possível compreender a dinâmica desses trabalhadores sem que
compreendamos quanto o trabalho é determinante em sua vida, por ser grande responsável
por sua formação na condição de cidadãos autônomos, fazendo de seu trabalho sua própria
vida, sua fonte de experiências que franqueia a eles a articulação de aprendizados na labuta
diária.
Nesse rumo, concluímos que, por meio do trabalho, o homem garante seu
sustento, mas também se forma por meio dele. Garante assim a produção e a reprodução
da vida material e imaterial. Reavivamos que, para os trabalhadores do CCPC, a
experiência com o trabalho tem permitido a eles a produção de saberes, algo significativo

1891
para sua organização no mundo, mas também em seu relacionamento com o meio social.
Percebemos que até mesmo quando conversamos com esses trabalhadores no respeitante
a seus “sonhos” e suas perspectivas futuras, seja para com sua vida de modo geral ou
mesmo para com o desenvolvimento do trabalho no CCPC, descortinavam anseios de uma
vida melhor, cotejada sempre com as experiências por eles vivenciadas.
Malgrado o baixo grau de escolaridade, esses camelôs têm demonstrado que a
experiência tem sido a resposta mais eficaz perante os dilemas e demandas que a vida vem
cobrando desses trabalhadores. Thompson ratifica a ideia da importância da experiência
na vida dos trabalhadores, fazendo-o com estas palavras:

Ocorrem mudanças no ser social que dão origem à experiência


modificada; e essa experiência é determinante, no sentido de que exerce
pressões sobre a consciência social existente, propõe novas questões e
proporciona grande parte do material sobre o qual se desenvolvem os
exercícios intelectuais mais elaborados (THOMPSON, 1981, p. 16).

A fala de Thompson corrobora a ideia da experiência como fundamental para que


possam ocorrer mudanças no ser social, algo determinante para o processo de formação
de consciência desses trabalhadores, na medida em que novos questionamentos são
propostos, podendo, assim, ambientar reflexões mais elaboradas acerca do mundo. Nessa
esteira, mesmo com as limitações enfrentadas por esses trabalhadores no dia a dia do
trabalho, a experiência tem favorecido a eles refletir sobre seu papel na qualidade de ser
social, em contato com as adversidades que a vida venha proporcionar a eles. E é isso que
tem conduzido esses trabalhadores para que possam criar estratégias de trabalho, aferir
questões políticas, reconhecendo que sua transformação possa ser dependente de sua
relação com o trabalho.
A nossa intenção não é tirar conclusões definitivas sobre o tema, mas, realizar um
exercício de reflexão teórica que será retomado em pesquisas futuras.

REFERÊNCIAS

ALVES, Giovanni. Dimensões da Reestruturação Produtiva: ensaios de sociologia do


trabalho. 2ª edição. Londrina: Praxis; Bauru: Canal 6, 2007.

ANTUNES, Ricardo. Adeus Ao Trabalho? – Ensaio sobre as Metamorfoses e a


Centralidade do Mundo do Trabalho. São Paulo: Cortez, 1995.

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1893
OS CAMELÔS E AMBULANTES DA CIDADE DE MACAPÁ (AP):
CONTRIBUIÇÕES AOS ESTUDOS SOCIOLÓGICOS SOBRE O
MERCADO DE TRABALHO INFORMAL

Richard Douglas Coelho LEÃO 936

Resumo: Este estudo, em fase de conclusão, se propõe a fazer uma análise sobre a relação presente
entre o crescimento do mercado de trabalho informal, mais precisamente do número de camelôs
e ambulantes, com o processo de criação da Área de Livre Comércio de Macapá e Santana no
início da década de 1990. A pesquisa foi realizada com base na pesquisa de campo a partir da
aplicação de formulários com os camelôs e ambulantes do Centro Comercial de Macapá,
entrevistas in loco com o público-alvo da pesquisa, empresários e agentes públicos. Além disso, foi
feita a pesquisa documental e bibliográfica, dando ênfase ao Plano Diretor da Cidade de Macapá e
ao Código de Posturas do Município para estabelecer a relação dos agentes públicos com os
camelôs e ambulantes e de como a cidade expandiu de forma desordenada, principalmente a partir
do fim da década de 1990, com o surgimento de novos bairros sem a infraestrutura adequada para
estas pessoas. Conclui-se que houve a existência do crescimento das atividades informais associada
com o crescimento populacional proporcionada pela criação da ALCMS e que as políticas públicas
engendradas pelo Estado para o setor esbarram na completa ausência de diálogo com os
trabalhadores, alijando-os das estratégias de desenvolvimento para o Centro Comercial da cidade
de Macapá.

Palavras-chave: Mercado de Trabalho Informal. Área de Livre Comércio. Conflito.

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, muito tem se debatido acerca da relação entre trabalho e
sociedade. Essas discussões no campo teórico assumem importância num momento em
que as crises cíclicas do capitalismo se evidenciam de maneira acirrada através dos novos
processos de sociabilidade trazidos pelos avanços tecnológicos que criam formas cada vez
mais complexas e heterogêneas de relações sociais, econômicas, políticas e culturais. Vale
ressaltar que os impactos sociais e econômicos da economia global são mais cruéis nos
países periféricos, como é o caso do Brasil. Nesses países, a exclusão do acesso a bens e
serviços sociais expõe a população a todo tipo de exploração, notadamente através do
crescimento do trabalho nas ruas e praças das grandes e médias cidades, onde vamos
perceber que as relações de trabalho são permeadas por uma cadeia de situações que vão
desde a falta do reconhecimento e da regularização de suas atividades por parte do poder

936
Graduado em Bacharelado e Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará,
Especialista em Gestão Ambiental pelo Instituto Brasileiro de Póa-Graduação e Extensão, aluno do Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universdade Estadual Paulista – Faculdade de Ciências e Letras
de Araraquara, nível Mestrado, sob orientação do Prof. Dr. Paulo José Brando Santilli. Bolsista Capes.
1894
público até as condições de precariedade nas ruas da cidade onde os trabalhadores retiram
o seu pão de cada dia.
Esta situação pode ser vista no campo de pesquisa presente neste texto, neste caso,
a cidade de Macapá. A população macapaense, no nível amazônico e brasileiro, vem
apresentando índices de crescimento populacional desde a criação do Território Federal
no ano de 1943, a partir de propostas de desenvolvimento que vendiam a ideia de um
estado em alto nível de riqueza, mas que na verdade funcionavam como um ‘canto da
sereia’ que atraiu grandes levas de pessoas para o estado, principalmente com a criação, na
década de 1990, da Área de Livre Comércio de Macapá e Santana – ALCMS. As
promessas de emprego não se concretizaram para os migrantes que para lá se dirigiram,
pois na cidade de Macapá há a predominância do emprego público e, via de regra, os
cargos são preenchidos através de concursos. Obviamente que a mão-de-obra qualificada
encontra maiores oportunidades neste espaço público. Entretanto, a população com baixa
qualificação é relegada a empregos menos qualificados ou às atividades de rua, como os
camelôs e ambulantes presentes nos espaços de grande circulação da cidade.
Este texto é o resultado de uma pesquisa, ainda em fase de conclusão, que se
propõe a analisar o processo de transformações sociais pelo qual passou a cidade de
Macapá em seu crescimento a partir das mudanças visualizadas com a ampliação do
número de trabalhadores nas ruas do centro comercial da cidade, onde foi constatada a
existência de significativo contingente de migrantes vindos de outros centros das regiões
Norte e Nordeste do Brasil. O trabalho dos camelôs e ambulantes, nesta realidade, passa
a funcionar como uma válvula de escape ao problema do desemprego estrutural tão
característico do capitalismo moderno e como uma forma de manter ocupados os
trabalhadores que não se encaixam nas demandas – poucas – oferecidas pelo mercado de
trabalho formal.
Esta investigação também partiu do estranhamento sentido diante da imensa
presença destes trabalhadores

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