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Sessão de Cinema

A atual idade da terra

A atual idade da terra


Ana Lígia Leite e Aguiar*

*
Doutoranda em Teorias e Críticas da Literatura e da
Cultura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras e
Lingüística da Universidade Federal da Bahia – UFBA.

N
o festival de Veneza de 2007, um filme, pouco conhecido,
mas famoso por sua catástrofe, foi reprisado 27 anos de-
pois de sua primeira aparição para o grande público, ga-
nhando exibição especial na noite de encerramento do festival. A
Idade da Terra, do cineasta brasileiro
Glauber Rocha, fechou o glamouroso evento italiano, quando,
neste mesmo festival, há quase três décadas, o que houve foram
reações de repúdio total de público, júri e crítica, e seu diretor, no
caso Glauber, tumultuava o evento e acusava o organizador e o júri
de colaboradores fascistas. A polêmica, entretanto, começara bem
antes: supersticioso, o cineasta brasileiro fez o que pôde para lan-
çar a exibição d’A Idade da Terra, programada para agosto de 1980,
para setembro do mesmo ano, pois dizia que agosto seria um péssi-
mo mês e isso traria algum mau agouro. Exibido em setembro,
como desejava, o filme não foi bem aceito nem pelo público, nem
pela crítica, apesar de intervirem à época, em defesa do cineasta
brasileiro, o crítico Marcorelles, o produtor Renzo Rossellini e o
cineasta Michelangelo Antonioni, entre muito poucos outros que
se manifestariam. De alguma forma, o ‘filme sem espectadores’ foi

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relegado ao esquecimento, mas o episódio que o envolvia marcaria


ainda mais os enunciados de Glauber, que via nisso tudo um ato
político de perseguição e de completa negação e desinteresse da
cultura européia pelo gesto inovador que o filme propunha e, mais
do que isso, revelaria certo cansaço do cineasta em relação à com-
panhia de líderes/ países ditos “civilizados” que pareciam manipu-
lar a presença do bárbaro do Terceiro Mundo e ajustá-la à sua
maneira e conveniência:

“A crítica acabou. A Cinemateca é um antro de espionagem. A


Cooperativa é uma cova de ladrões. (...) Daí a campanha contra A
Idade da Terra, que acabou com o cineminha corte e costura que
fazem, malfeito.”1

O filme, ao voltar ao festival de Veneza de 2007, não retornou


acompanhado das críticas negativas. O jornal Folha de São Paulo e
tantos outros meios de comunicação via web retratavam a notícia
dando enfoque aos poucos nomes que, à época, teriam saído em
defesa de Glauber. Ultra-moderno, no sentido de uma modernidade
que se desdobra pelo seu encontro com o primitivo, hermético e
corajoso, A Idade da Terra surpreende muito por ser um convite
pesado ao desejo, sendo preciso desejar estar ali, diante de um fil-
me longo, com trejeitos de quem aprendeu muito bem a lição
eisensteiniana a ponto de adequá-la à luz da América Latina e do
subdesenvolvimento, não pretendendo elucidar nenhuma idéia ao
leitor, mas antes confundi-lo e exasperá-lo, pois trata-se da tentati-
va de um cinema-imagem e não, necessariamente, de uma narrati-
va cinematográfica2. O que o público e a crítica teriam aprendido

1 ROCHA. Cartas ao mundo, p.685.


2 Sobre o assunto, anos mais tarde, Peter Greenaway nos oferecia algumas noções sobre como o
cinema não deveria estar na desconfortável posição de se render à literatura no quesito palavras
antes das imagens. Para o cineasta, o cinema não seria uma desculpa para ilustrar a literatura, ele
teria mais a ver com a experiência do que com a narrativa em si: “O cinema não seria o melhor
veículo para contar histórias” (...) tendo mais a ver com “atmosferas, ambiências, performances,
estilos, uma atitude emocional, gestos, fatos isolados, uma experiência audiovisual específica que não
depende da história”. GREENAWAY, Peter. O cinema enciclopédico de Peter Greenaway, p.12.

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de lá para cá para não mais avaliarem a película a partir de sensa-


ções desagradáveis? O que (n)os faz vasculhar a lixeira de filmes
que foram desprezados e trazê-los à tona novamente? Essas ques-
tões margeiam este texto, apontando, precocemente, que o exercí-
cio da crítica se detém em constante perlaboração e, no caso de
Glauber (e de tantos outros operadores), as lições seguem sendo
aprendidas via contradições e paradoxos, cujo resultado dificilmente
resultará em uma síntese. Adianto que a função do crítico, enquan-
to um intelectual que eviscera os olhares para alguma questão, se
outrora foi o de saber o que ele deve saber, a posteriori, deverá saber
o que esse saber recalca3. Reavaliado pela crítica contemporânea e,
pouco, mas conhecido, pelo público brasileiro, a vertigem de
Glauber nos anos 1980 mostra, hoje, algumas de suas perspectivas
no tocante ao subdesenvolvimento nos trópicos e, ainda, apresen-
ta sua aventura cinematográfica enquanto artifício de guerrilha.
Assim, a voz em off de Glauber Rocha, n’A Idade da Terra, avisa:
“No final do século XX, a situação é a seguinte: existem uns países capita-
listas ricos e uns países capitalistas pobres. Na verdade, o que existe é o
mundo rico e o mundo pobre.” 4 A percepção, que pode parecer
simplista e rasa, é o ponto culminante da questão. A miscelânea de
imagens fílmicas aparentemente sem nexo, na obra de 1980, retra-
tava a configuração que Glauber dava para os mitos e, nesse senti-
do, confusão e clareza não se polarizam mais, servindo um de pano
de fundo para o outro passar a mensagem da constatação lúcida e
evidente que a voz do cineasta flagra. Este não seria o primeiro
filme a tratar disso e nem o último, tendo em vista os vários proje-
tos que Glauber ainda desejava realizar. O que, então, diante de
imagens fílmicas de tão diversos efeitos, ainda que na lógica habitué
das disparidades sociais, teria levado a crítica e o público a ignorar
A Idade da Terra na época de sua criação e, hoje, elevar a obra à
condição de clássico? A questão que se coloca é que algumas hipó-
teses seguramente afirmadas por Glauber, lidas pelo senso-comum
da época como esquizofrenia, demência, traição, dependência de

3 Cf. Nas malhas da letra, de Silviano Santiago.


4 ROCHA, Glauber. A Idade da Terra,1980.

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drogas, dentre outras taxações, se confirmaram nesse mesmo sécu-


lo XX que se dividia entre países pobres e ricos. Algumas das apa-
rentes loucuras apresentadas na amplitude da obra glauberiana
podem ser, hoje, lidas e reinterpretadas pelo público e pela crítica
de forma a permitir a experiência daquela cosmovisão até então
ignorada, pois muito daquilo que se via como imprudência e extra-
vagância foram atestados como excitante campo de visão que pro-
punha meditação plena sobre o presente e o futuro do país. Na
descoberta de tudo aquilo que o conhecimento recalca, o trabalho
de uma parte da crítica reprocessou, através dos anos, sua função
de ‘julgadora’ de obras, para escutar as vozes /as obras e ver o que
as mesmas teriam a dizer e como o diziam. Desse modo, reificou-se
não o ‘vale-tudo’ (que os mais fiéis à conduta valorativa tradicio-
nal, pejorativamente, tentam incutir a essa outra performance), mas
a proposta de uma crítica no exercício cotidiano de compreensão
dos universos possíveis5.
Os capítulos pós- Deus e o Diabo e Terra em Transe seriam os das
previsões do cineasta que, em alguma medida, extrapolaram a
plasticidade cinematográfica, subvertendo de vez todas as regras
da mise-en-scène. A leitura extenuada de Glauber Rocha enquanto
um profeta, um messias dos anos 60, não é a que se pretende abor-
dar neste texto. Suas análises obtêm algum resultado porque
Glauber mantém, na contradição, sua coerência interna e é um
analista simbólico e fala, apesar de todo seu cosmopolitismo, do
local do 3º mundo, expressão tão recorrente em sua fala e que pode
soar demodé à contemporaneidade. Glauber não é um messias, mas
um pesquisador e, como bom pesquisador que é, questiona a todo
instante quanto vale a vida de um homem, como cada um avalia a
sua própria vida e a troco de quê se está disposto a mudá-la6. Por-
tanto, ler Glauber hoje, a partir daquilo que foi rejeitado no passa-
do, seria uma forma de tentar compreender o presente e o que este
nos reserva7.

5 Cf. Microfísica do Poder, de Michel Foucault, texto “Os intelectuais e o poder”.


6 MARCOS apud ORTIZ. Zapatistas, p.176.
7 O cineasta e controvertido jornalista Arnaldo Jabor, escreve, em tom extremamente passional,
sobre sua primeira sessão de Deus e o Diabo na terra do sol e sobre como Glauber antevia alguns

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O capítulo de Glauber com os generais da ditadura que o diga.


Em 1974, Glauber escreve carta aberta para Zuenir Ventura, auto-
rizando-o a publicá-la como e onde quisesse. Na carta, o cineasta
jogaria, definitivamente, vatapá no ventilador8 dizendo sobre sua
confiança em Geisel e como este poderia nos levar, paulatinamen-
te, à política de que estávamos precisando, a abertura:

“Acho que Geisel tem tudo na mão para fazer do Brasil um país
forte, justo, livre. Estou certo, inclusive, que os militares são
legítimos representantes do povo [grifo nosso]. (...) que entre
a burguesia nacional-internacional e o militarismo nacionalista, eu
fico, sem outra possibilidade de papo, com o segundo.”9

Execrado por todos os lados, pois Zuenir teria feito exatamente


o que lhe fôra sugerido, publicando a carta na revista Visão, em
março de 1974: o cineasta ficaria durante muito tempo na posição
ambígua à qual se entregara. De Geisel a Figueiredo, caminhamos
rumo às palavras glauberianas, com um pouco menos de utopia

movimentos e fazia uma leitura revolucionária da realidade em que vivia: “(...)E aí o filme
começou. Um plano aéreo do sertão de Cocorobó. Corte súbito para o olho morto de um boi
roído de sol. Villa Lobos na trilha. E caiu um silêncio sideral na sala. Todos os olhos estavam
sendo feridos por imagens absolutamente novas. Como explicar isso? Não era apenas um bom
filme que víamos. Nada. Era um país que nascia à nossa frente. Não um país que reconhecíamos
como sendo, digamos, de Graciliano. Não. Era uma realidade desconhecida que começávamos a
compreender. Ela esteve esboçada na literatura, em Os Sertões, em Rosa. Mas ‘no olho’, era a pri-
meira vez. Ela nos via. Ela nos incluía. (...) A esquerda estava toda ali, à beira de sua grande derrota
(dali a 15 dias) e ainda teve tempo de ver sua melhor produção nascer. Todas as personagens se
contorciam numa danação de heróis e vítimas, em uma complexidade que não tínhamos alcança-
do. Não sabíamos ainda, mas estava selada ali a causa de nosso fracasso de 1º de abril de 64. (...)
Que seria de nós? O mundo não era mais tão fácil como pensávamos. Nossa consciência não era
linear. A realidade não era mais realista. O filme dava conta dessa eterna luta entre o sutil e o
grosso. Sempre quase ganha o grosso. E o eterno dilema sutil-grosso continua. Vemos a esquerda
se perder em discussões iguais à de trinta anos atrás, antes daquela noite no cinema Ópera. Veio
64, veio 68, veio a luta suicida, veio a democracia formal. Passaram muitas ilusões. Mas Deus e o
Diabo não era ilusão. Muitas realidades foram ilusão. Mas aquela ficção não; aquela ficção era a
realidade. Precisamos de um novo filme como Deus e o Diabo na Terra do Sol. Aluguem em vídeo
e vejam o que era o futuro”. JABOR, Arnaldo. Folha conta 100 anos de cinema, p.69.
8 Aqui se faz alusão ao título do artigo “Vatapá no ventilador”, escrito por Glauber e publicado no
Pasquim em outubro de 1975.
9 ROCHA. Cartas ao mundo, p.482.

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nos quesitos da justiça e da liberdade. Não tendo vivido o bastante


para ver suas afirmações sobre o futuro se concretizarem, morre em
22 de agosto de 1981, um ano depois de sua turbulenta participação
no festival de Veneza e no mês em que teria impedido, supersticiosa-
mente, a exibição de seu filme. Mas antevê a efetivação de seu pensa-
mento, como declara em uma entrevista, possivelmente de 1979:

“O negócio é o seguinte. Ele (o Coppola) chegou à conclusão, com


Apocalypse now, de que quem tinha razão era eu quando fiz O
leão de sete cabeças e com Cabeças cortadas. Aí os franceses
não aceitaram e resolveram cortar a minha cabeça. Mas outros gru-
pos me deram força. Houve uma briga violenta dentro de Paris
porque Terra em transe foi um dos filmes que mais influenciou o
maio francês. Terra em transe, A chinesa e Antes da revolu-
ção. Existem várias teses provando isso. Eu digo que meu cinema é
mais conhecido na Europa do que aqui. Eu inclusive. Mas, eu sou
chamado de maluco em Paris, no Rio, em Roma, em tudo quanto é
lugar, entende? Mas, agora, está provado que eu não sou maluco. Há
sete anos eu dizia que o Geisel iria salvar o Brasil, e diziam que eu era
maluco. Hoje o Paulo Francis reconhece. Isso pra mim é importante
porque o Paulo Francis é uma das boas cucas do país. A mesma
coisa o Coppola. Quando eu dizia com Leão de sete cabeças e
Cabeças cortadas que essa porra tinha acabado e que o caminho
do Godard estava errado e que o caminho do Coppola e do Bertolucci
estava errado, isto é, fazer a restauração do drama burguês não era
o caminho, eles diziam que eu estava maluco. Agora, o Coppola e o
Bertolucci, depois que viu o Di Cavalcanti, também fundiu a cuca e
achava que eu estava certo. Que o negócio era remover por cima,
entende? Quer dizer, na forma. Não é que eu tenha uma posição
absolutista. Mas estou dizendo isso para entender que dentro do Bra-
sil é possível vigorar uma teoria artística nova que pode ter influência.
Isso não porque eu seja profeta. É apenas porque eu sempre estudei
com critério e sempre procurei ver de uma forma mais ampla possí-
vel os componentes de um processo que criou o cinema novo.”10

10 ROCHA apud PEREIRA. Entrevista: Glauber Rocha, 1979, p. 17.

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Nestes dois episódios expostos até então, o do lançamento do


filme A Idade da Terra, em 80, e o da carta publicada na revista
Visão/74, em que Glauber defendia Geisel, muito se falou e se con-
denou a respeito do cineasta brasileiro. Porém, outra vertente da
crítica olhava expectante os acontecimentos, como diria em carta o
crítico cinematográfico Paulo Emílio Sales Gomes:

“Suas idéias – que eu naturalmente conhecia – veiculadas por Vi-


são provocaram discussão e perplexidade, mas pelo que pude obser-
var foram recebidas com atenção e respeito como uma
tentativa-aspiração de fazer com que coisas aconteçam.”11

Direitas, esquerdas e sem-partidos se voltaram contra Glauber


depois de suas declarações sobre os militares Geisel e Figueiredo.
A confusão pode se dar até os dias atuais, tendo em vista, parafrase-
ando as próprias palavras de Glauber, que somos todos de alguma
forma mal formados pelas universidades brasileiras e mal informa-
dos em conversas idem. Em livro publicado em 2001, intitulado
Glauber Rocha Pátria Livre, Gilberto Vasconcellos, o autor, trata de
desencaroçar a história:

“(...) essas declarações glauberianas não são conjunturais ou


episódicas, pois fazem parte orgânica de sua visão acerca do proces-
so de colonização do Brasil.
Outro detalhe: a supremacia do Exército preservaria a unidade da
nação, que, segundo o cineasta, ‘está acima da luta de classes. Isso
é que os comunistas devem pensar: primeiro a nação, porque se a
nação se desagrega é invadida pelos multiimperialismos. O Brasil
pode ser ocupado como a África’. Resulta daí a advertência feita em
79: ‘os EUA do Brasil podem virar 22 multinacionais’. Minas Ge-
rais seria o Estado da Fiat; a Bahia, o Estado da Ford; o Rio Grande
do Sul, o estado de Rockefeller. Vexame total.”12

11 GOMES apud ROCHA, op.cit., p.487.


12 VASCONCELLOS, Gilberto. Glauber Rocha pátria livre, p.142.

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Glauber fôra contra o regime ditatorial durante todo o tempo


em que este se manteve como modelo político. E quando ele escre-
ve que o exército é o legítimo representante do povo e que general
tem de ser popular é porque acredita na ‘missão histórica do Exército
como vanguarda armada do povo’13. Acredita que precisamos de
uma utópica unidade nacional mesmo quando inseridos nessa va-
riedade de consciências, para que possamos, nós mesmos, cons-
truir nosso tempo de andamento com parâmetros locais e nossos
modelos práticos e teóricos é que nos levarão a dialogar com o
mundo em outro pedestal. Essas posturas podem ser encontradas
no desejo de nação de Getúlio, assim como na experiência de Fidel
Castro. Os líderes populares assumiriam, principalmente no caso
de Cuba, uma outra identidade para que o compromisso de nação
pudesse estar vinculado ao afeto de uma face. Esta proposta pode
soar paradoxal e ultrapassada, mas não diante da necessidade de
criar estratégias de sobrevivência que não compactuem com gover-
nos opressores e que proponham a lógica do império como única
possibilidade dentro de um universo de dobras que se faz cada vez
mais urgente. A questão é extremamente polêmica e cada caso de-
veria ser analisado em separado. De qualquer forma, demonstra-
ções desse tipo de governo têm ocorrido com frequência na América
Latina, na figura de Fidel que não se esvai por completo, como
deseja uma parte do globo, na de Evo Morales, na articulação naci-
onal-militarista de Hugo Chávez, na posição de combate perma-
nente do subcomandante Marcos. A figura de Glauber se aproxima
da de um mentor, uma espécie de líder latino não aceito pelo povo
brasileiro, não cooptando seu exército a tempo e não empenhando
nenhum fuzil em suas mãos. A explosão provocada por sua câmera
era a mesma, mas nem sempre havia espectadores dispostos a se-
rem baleados. Para o espectador, posicionar-se diante do acervo
glauberiano sempre foi algo muito difícil. Como ocorre nas cenas
de Claro, película de Glauber de 1975, em que o cineasta intervém
no aparecimento de turistas japoneses, ávidos em fotografar tudo,

13 Ibid., p.144.

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e que, nada fazem diante da intervenção de Rocha, se não continu-


ar a fotografar, sair andando.
O apoio ao nacional-militarismo não deixa Glauber na função
de um desertor, pois na complexidade de sua biografia, entre as-
pectos de lucidez e delírios, de pensamentos passionais pela nação,
se mantém a postura coerente de apostar nas populações latino-
americanas e da luta por um cinema que optava pelo caminho não-
comercial (quando precisava de dinheiro, ele dizia que fazia
televisão). Existirá, dizia ele n’A Idade da Terra, uma síntese dialética
entre o capitalismo e o socialismo. Estou certo disso14. No filme Rocha que
voa, de um dos filhos de Glauber, Erik Rocha, o cineasta cubano
Alfredo Guevara diz:

“O fato é que considerávamos que era possível, que um filme podia


mudar o mundo. Ou seja, sabíamos que era mentira. Não nos en-
ganávamos. Nenhum filme muda o mundo nem muda nada...mas
um filme deve ser feito como se isso fosse possível.”15

Mas o Brasil leva um susto diante da ausência de Glauber em


agosto de 1981. Gilberto Vasconcellos diz que, no final de sua vida,
Glauber estava rompido estética e politicamente com todas as ge-
rações do cinema, incluído aí seu antagonismo com os doges da
MPB16. Sozinho, nossa Carmen Miranda de Vitória da Conquista
fora enterrado como a musa: em clima de grande comoção. Pode
ser uma característica nossa, amar ou demonstrar o amor depois
que todos já se foram. De toda sorte, Glauber nunca perdia as es-
peranças nesse Brasil. Na última carta que integra a obra Cartas ao
mundo, datada em julho de 1981, escrita em Sintra e quase um mês
antes da morte do cineasta e intelectual, ele escreve para o produ-
tor americano Tom Luddy:

14 ROCHA, Glauber. A Idade da Terra,1980.


15 GUEVARA apud ROCHA, Erik. Rocha que voa, 2002, em 1:12’54’’.
16 VASCONCELLOS, Gilberto. Glauber Rocha Pátria Livre, p.125.

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“Agora é 17 de julho. O Presidente do Instituto Português de Cine-


ma, Sr. Sá da Bandeira, saiu! Crise com a secretaria de Cultura.
Minha produção está parada...Mas eu escrevo roteiro. Talvez a crise
esteja acabada em setembro...” 17

E assim finaliza a carta, assinando apenas seu nome. Setembro


não chegou a tempo. Felizmente, uma fortuna crítica tem se criado
ao redor do pensador e dado continuidade aos seus ares de revolu-
ção e às suas idéias e fôlego que tiveram início nos anos 60, tão
escolhidos como tema para estudos na atualidade pelo vigor de
suas atuações transformadoras e pelos ecos das perdas18 e ganhos
das mesmas. É, então, com aparente simplismo que Glauber diz a
Cacá Diegues em uma carta:

“(...) porque, eis apenas o que quero te dizer, tudo o que houve na
década de 60 foi o abalo europeu e americano provocado pelo des-
pertar do terceiro mundo – Cuba, Lubumba, Che, Brasil etc. – e
cinema novo, como criador do cinema político contemporâneo, foi a
linguagem de tudo isso.”19

O abalo europeu e americano provocado pelo despertar lento e


sinuoso do terceiro mundo. Os estudiosos da questão e a crítica na
textura de uma mirada estrábica20 – termo cunhado pelo historiador
e escritor argentino Ricardo Piglia, para considerar a vantagem de
não se ocupar o tradicional centro, em busca de uma percepção
específica para o viver nesse estrabismo, fazendo valer uma
reestruturação produtiva e vantagens que o estar no centro não
proporciona – parecem cantar em coro com o subcomandante
Marcos, o líder popular do México carente de biografia e de rosto,
assinalando que “não queremos guerra, companheiros. Mas, também,
não desistiremos da luta”. „

17 ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo, p.698.


18 Em relação às perdas, nos referimos, prioritariamente ao advento da AIDS nas décadas seguin-
tes, assim como de outras DSTs, e à memória de todos os presos políticos no Brasil e no mundo,
processo ainda em fase de estudo e redescoberta nos círculos acadêmicos e cinematográficos.
19 ROCHA, Glauber. Op.cit., p.415.
20 Cf. “Una propuesta para el nuevo milênio”, de Ricardo Piglia. Margens/Márgenes, nº 2.

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VASCONCELLOS, G. F. Glauber Rocha Pátria Livre. São Paulo: Ed. Senac São
Paulo, 2001.

Filmes

ROCHA, Erik. Rocha que voa. Documentário. Direção: Erik Rocha.


Produção: Tarcísio Vidigal. Roteiro: Eryk Rocha e Bruno Vasconcelos.
Brasil: Grupo Novo de Cinema e TV / Instituto Cubano de Arte e
Indústrias Cinematográficas, c2002. 1 DVD (94 min), color.
ROCHA, Glauber. A Idade da Terra. Ficção. Direção: Glauber Rocha. Produção:
Embrafilme, CPC, Glauber Rocha Produções Artísticas, Filmes 3. Roteiro:
Glauber Rocha. Brasil: 1980. 1FITA VHS (160 min), color.

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Resumo Abstract
Este trabalho foca-se em algumas posições This paper focuses on some instances within
políticas do cineasta brasileiro Glauber the work of Brazilian filmmaker Glauber Ro-
Rocha, no período pós-64, correlacio- cha and concentrates on the response to his
nando-as, em especial, com sua película A 1980 picture A idade da Terra. We present
idade da Terra. Apresenta-se, ainda, refle- Glauber’s positions on post-1964 Brazilian
xões críticas de Glauber sobre a cultura politics and span his critique of and reflections
brasileira e como, essas mesmas reflexões, on Brazilian culture, which are read against
rechaçadas à época, hoje assumem um ca- the grain from the 1960s onwards in an attempt
ráter potente para melhor compreender to obtain a better understanding of military
os movimentos militares contemporâneos movements in Latin America.
na América-Latina.
Key words
Palavras-chave Glauber Rocha – The Age of the Earth – Latin
Glauber Rocha – A Idade da Terra – movi- America military movements
mentos militares latino-americanos

E-mail:
analigialeite@gmail.com

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