Heavy Rain ou o que podemos vivenciar com as narrativas
dos games. Culture Track, Salvador, nov., 2011, p. 1-10. Disponível em: <http://sbgames.org/sbgames2011/proceedings/sbgames/papers/cult/full/92019_1.pdf>. Acesso em: 06 de fevereiro de 2018. O artigo apresenta uma abordagem reflexiva dos conteúdos dos games a partir da Psicanálise. Ressalta as características dos videojogos enquanto narrativa e explora o potencial deste tipo de narrativa enquanto ferramenta lúdica, mas também de catarse e identificação por parte do indivíduo. Petry utiliza seu referencial teórico aplicado a um game modelo, chamado “Heavy Rain”, o qual aborda questões sobre os mais íntimos anseios e temores humanos, organizados na experiência que o jogador pode ter dentro de um jogo com seus personagens. Segundo a autora, o objetivo da investigação foi pensar nos jogos digitais com a colaboração da Psicanálise. A pesquisa foi realizada com o grupo de pesquisa formado pelos estudantes do primeiro e segundo semestres do Curso Superior de Tecnologia em Jogos Digitais nos anos de 2010 e 2011. A metodologia aplicada foi a análise da temática do jogo para levantar as possibilidades de ação dadas ao jogador e nos papeis que o jogo encaminha o jogador a desempenhar. Petry cita grandes pensadores em seu referencial teórico, como Vygotsky (2003), em seus estudos sobre o jogo e o prazer que o brinquedo proporciona como consequência da ação impulsiva e da sujeição às regras, reconhecendo que o jogo propicia a experiência de superação. Petry cita ainda Freud (1908), que indicou a seriedade do jogo ao dizer que a antítese do brincar não é o que é sério, mas o que é real (enquanto realidade social). A autora traz a reflexão de Melanie Klein sobre jogos e brincadeiras infantis, afirmando que o brincar dá ao sujeito a oportunidade de expressar simbolicamente sua percepção da realidade. Ao citar Winnicott, Petry ressalta sua visão de mundo interno e externo e como se comunicam no espaço intermediário criado pela brincadeira. Cita ainda Jacques Lacan e sua concepção de que o registro do simbólico passa a contar pela ação da função materna na constituição de cada um de nós como seres de linguagem. Por fim, menciona Schiller (1991) e sua concepção de impulso lúdico, por meio do qual o homem é verdadeiramente pleno. Aplicando esses conceitos aos jogos digitais, Petry compreende esses jogos como uma construção simbólica da vida humana. Numa perspectiva diacrônica, o homem percebeu a presença do lúdico e foi sofisticando essa ferramenta a ponto de contar histórias cada vez mais complexas com ela. Os jogos digitais apresentam, assim, essa presença lúdica e por meio da interação abre portas para a narratividade. Petry liga os conceitos de Murray (2003) e Winnicott (1975) para afirmar que os computadores são objetos liminares e as narrativas que são sustentadas por esses objetos se constituem em objetos transicionais. A explicação para isto está no fato de que essas narrativas estão numa fronteira entre a realidade externa e nossas próprias mentes, oferecendo a segurança de um objeto exterior a nós mesmos onde é possível projetar sentimentos. As narrativas dos jogos digitais evocam emoções, temores e desejos profundos por fazerem parte dessa mágica região intermediária, onde fatos e personagens são suportes reais do que projetamos em nosso interior. Assim, a tela do computador funcionaria como uma quarta parede, onde ocorre a imersão em outro mundo com controladores de movimento e ação, ou seja, os objetos limiares que permitem que o jogador entre e saia da experiência. Petry levanta então os questionamentos que norteiam sua pesquisa, relacionados à criação de uma narrativa que seja crível, com uma história coerente, com personagens e fatos possíveis dentro de um mundo ficcional particular. Alcançar estas características em uma narrativa digital concretizaria o que Murray chama de equilíbrio. O maior questionamento de Petry está na hipótese de que o game poderia cumprir a mesma função de determinados binquedos por permitir a vivência de outros eus possíveis, o exercício de diferentes papeis, as tomadas de decisão e do executar de certas performances. A autora chama atenção para identificar idéias e valores subjacentes às narrativas dos jogos e prestar atenção ao leque de possibilidades que são oferecidas. Em relação ao seu objeto de pesquisa, o jogo “Heavy Rain” (2011), Petry o caracteriza como um jogo de grande refinamento na qualidade gráfica dos ambientes e personagens, que expõem traços afetivo-emocionais e uma narrativa a ponto de ter sido questionado se era um jogo ou um caso de cinema interativo. Para proceder à análise, o grupo jogou o jogo, recebeu os relatos verbais e escritos de outros jogos e colheram informações a respeito do jogo em websites especializados. Petry começa a expor suas conclusões a partir dos elementos narrativos encontrados no decorrer do jogo. A narrativa está expressa nas feições faciais das personagens, nas entonações de voz e em suas formas de andar. A autora conclui que isso caracteriza personagens digitais que adquirem características extremamente humanas e isso promove a identificação e o impacto no indivíduo que com eles interage. Petry ressalta que os objetos no mundo imaginário do game não devem ser demasiadamente reais, pois essas situações provocariam a interrupção do transe necessário para a manutenção da narrativa devido ao fenômeno do estranhamento. Em “Heavy Rain”, quando um personagem morre, não ocorre simplesmente um retorno do lugar anterior, ou checkpoint, essa morte é incorporada à narrativa e passa a ser conseqüência de uma das escolhas feitas pelo jogador dentro da narrativa. Essa característica denota uma grande complexidade na constituição das personagens, pois estes passam a ter uma vida interior, são pessoas divididas e mesmo atrapalhadas que não sabem bem de onde vem ou o que querem e expressam angústias difusas. Cada protagonista no jogo analisado tem uma dificuldade que o persegue durante a trama. Cabe ao jogador escolher como o personagem enfrenta esse sintoma. Como exemplos, Petry cita quatro personagens e suas maiores dificuldades na narrativa, as quais envolvem desde o vício em drogas até mesmo depressão, fobias e alucinações. O próprio protagonista sofre com a perda dos filhos. A autora ressalta que essa ambigüidade inerente ao ser humano, com seus altos e baixos, promove uma identificação do indivíduo e impele o jogador a fazer as melhores escolhas para que, ao final, a personagem triunfe. Isto leva a uma reflexão do próprio indivíduo sobre como as escolhas podem afetar nossas vidas. Petry conclui ao afirmar que a linguagem hipermídia apresenta-se como um alargador de possibilidades criativas para os sujeitos, especialmente essas narrativas denominadas multiformes.