Clério Plein 3
Resumo: O objetivo do texto é fazer uma revisão das principais abordagens sobre agricultura familiar
e buscar uma síntese a partir da noção de mercantilização para compreender as particularidades dessa
forma social de produção, baseada na mão-de-obra familiar, no interior do modo capitalista de
produção. Trata-se de um ensaio teórico e como principal conclusão destaca-se o fato de que
compreender a estrutura e a dinâmica dos mercados acessados pelos agricultores familiares pode ser
uma pista importante para analisar a sua reprodução social.
Abstract: The objective of this paper is to review the main approaches in family farming and get a
summary from the notion of commodification to understand the particularities of this social form of
production, based on manpower family, within the capitalist mode of production. This is a theoretical
essay and a principal conclusion we highlight the fact that understanding the structure and dynamics
of markets accessed by farmers can be an important clue to analyze its social reproduction.
Introdução
seguintes critérios: a área do estabelecimento ou empreendimento rural não excede quatro módulos
fiscais; a mão-de-obra utilizada nas atividades econômicas é predominantemente da própria família; a
renda familiar é predominantemente originada das atividades vinculadas ao próprio estabelecimento;
o estabelecimento ou empreendimento é dirigido pela família (BRASIL, 2009).
Capitalismo, agricultura familiar e mercantilização
sistema social e econômico dominante. Embora seja uma temática recente nos
estudos acadêmicos sobre o mundo rural, o que diferencia as abordagens da
agricultura familiar, são as ferramentas utilizadas para sua análise. De modo geral,
pode-se destacar três grandes vertentes (ou fontes de inspiração) dos estudos sobre
agricultura familiar: o marxismo, o chayanoviano e o weberiano.
A primeira vertente possui sua base epistemológica baseada em Marx e seus
seguidores, sobretudo Lênin e Kaustky. A preocupação central é com o
desenvolvimento do capitalismo na agricultura. Os dois conceitos basilares são a
divisão social do trabalho e a apropriação privada do valor. Trata-se de uma
abordagem macro (econômica, social e política) 5 . A segunda vertente é inspirada na
obra de Chayanov. Trata-se de uma abordagem que inverte o enfoque da anterior,
pois sua ênfase é microeconômica. Não desconhece o ambiente macro (capitalismo),
entretanto, considera que o indivíduo é capaz de reagir ao sistema, adotando
diferentes estratégias de reprodução 6 . Já a terceira vertente é influenciada por
Weber, que não se preocupou em fazer uma teoria de explicação da sociedade, mas
sim, em criar um modelo de análise para as situações. Ênfase no modelo de
funcionamento da agricultura e utilização de “tipos ideais” para a análise 7 .
Diante desse contexto, o objetivo deste ensaio teórico é fazer uma revisão das
principais abordagens sobre a agricultura familiar e buscar uma síntese a partir da
noção de mercantilização para compreender as particularidades da reprodução dessa
forma social de produção com base na mão-de-obra familiar no capitalismo. Para
tanto, o trabalho, além da introdução e das considerações finais está estruturado em
três partes. Na primeira são retomadas algumas contribuições consideradas clássicas
de autores marxistas e neomarxistas, de enfoque econômico e estrutural. Se os
primeiros demonstraram que não haveria lugar para os agricultores familiares no
capitalismo, os segundos tentaram entender porque os mesmos persistem apesar do
avança das relações capitalistas de produção. Na segunda parte são apresentadas
algumas interpretações consideradas alternativas ao marxismo, com um enfoque
antropológico e sociológico, eu seja, consideram os indivíduos, os atores. São
contribuições que tentam demonstrar que existe lugar para os agricultores familiares
no sistema capitalista. Na terceira parte, com base em autores que buscam uma
síntese das abordagens anteriores, são apresentados elementos que demonstram as
transformações por que passaram os agricultores em função da sua maior inserção
nos mercados, ampliando o processo de mercantilização da agricultura familiar.
(1999).
6 Um exemplo dessa abordagem é o trabalho de Garcia Jr (1989) e Heredia (1979).
7 Um exemplo de utilização deste referencial pode ser encontrado em Lamarche (1993 e 1999).
8 Veja-se o livro organizado por Fernandes (1982). Trata-se de uma coletânea de cartas trocadas entre
Marx e os Populistas Russos. Os Populistas Russos indagam Marx sobre o futuro da comuna rural.
Marx mostra-se indeciso na resposta à Vera Zasulitch: escreve o primeiro rascunho (11 páginas) da
resposta em fevereiro - março de 1881, mas não a envia. Posteriormente, (08 de março de 1881)
reescreve a carta (somente 2 páginas), porém não envia novamente. Na carta, percebe-se que Marx
está claramente indeciso em relação à comuna, bem como, chama atenção para o fato de que talvez
não tenham compreendido sua teoria corretamente, e ainda, a necessidade de considerar as
particularidades de cada lugar, conforme pode ser observado nas passagens abaixo: “(...) Mas espero
que algumas linhas sejam suficientes para não lhe deixar qualquer dúvida sobre o mal-entendido a
respeito de minha suposta teoria (...) No fulcro do sistema capitalista está, portanto, a separação
radical entre o produtor e os meios de produção (...) A base de toda essa evolução é a expropriação dos
cultivadores. Até agora, só na Inglaterra ela se completou de modo radical (...) Mas todos os países da
Europa Ocidental percorrem o mesmo movimento (...) portanto, a “fatalidade histórica” desse
movimento está expressamente restringida aos países da Europa Ocidental (...) A propriedade
privada, fundada sobre o trabalho pessoal (...) será suplantada pela propriedade privada capitalista,
fundada sobre a exploração do trabalho alheio, sobre o trabalho assalariado (...) Nesse movimento
ocidental trata-se, portanto, da transformação de uma forma de propriedade privada em outra
forma de propriedade privada. Entre os camponeses russos, tratar-se-ia, ao contrário, de
transformar sua propriedade comum em propriedade privada. A análise feita em O capital não
confere, portanto, razões nem a favor nem contra a vitalidade da comuna rural (...)”.
9 Veja-se o texto de Mitrany (1957).
10 Apesar deste autor, de inspiração marxista, ter decretado o fim do campesinato, conforme pode ser
visto nessa passagem: “A mudança social mais impressionante e de mais longo alcance da segunda
metade deste século, e que nos isola para sempre do mundo do passado, é a morte do campesinato”
(HOBSBAWM, 1995, p. 284).
na raiz do debate entre os defensores do conceito de campesinato x agricultura familiar), mas pelo
contrário, partilhamos da ideia de Polanyi (1976) de que os mercados são anteriores ao capitalismo,
uma vez que sempre existiram trocas, mais ou menos monetizadas.
da área, responsáveis por 37,9% do VBP e que recebiam somente 25,3% dos financiamentos.
Importante lembrar que a definição de agricultura familiar do FAO/INCRA é diferente da definição
adotada pelo PRONAF. No estudo FAO/INCRA, “o universo familiar foi caracterizado pelos
estabelecimentos que atendiam, simultaneamente, às seguintes condições: a) a direção dos trabalhos
do estabelecimento era exercida pelo produtor; b) o trabalho familiar era superior ao trabalho
contratado (Projeto de Cooperação Técnica INCRA / FAO, 2000).
15 A denominação de modernização conservadora se deve ao fato de que alterou-se a base técnica da
produção, porém, sem mexer na estrutura fundiária do país (Graziano da Silva, 1982).
16 Oliveira (1988), destaca que a agricultura teve um papel central no processo de acumulação urbano-
industrial do país. Por um lado, fornecendo o "exército industrial de reserva", e por outro, produzindo
alimentos baratos, rebaixava o custo de reprodução da força de trabalho urbana, assim, possibilitava a
manutenção de baixos salários, e conseqüentemente, uma maior acumulação de capital.
Reprodução Reprodução
Fatores de
Produção dos fatores
de produção
Resultado da
produção
dos fatores de
produção e produção e insumos Produção
e insumos insumos utilizados
Fonte: Adaptado de PLOEG (1992, p. 174), PLOEG (2006, p. 25) e PLOEG (2008, p.
62).
Assim, entre o que muda e o que permanece, Wanderley (2009) faz alguns
destaques: a) é falsa a suposição que os camponeses não estaria interessados em
produzir além de suas necessidades, pois ficou provado que os agricultores familiares
“podem demonstrar uma importante capacidade de investimento, tanto maior
quanto são efetivamente integrados aos mercados modernos” (p. 291-192); b)
mudança no princípio do rendimento indivisível, pois “ao se integrar ao mercado, nas
condições modernas de produção, a unidade familiar introduz, em seu
funcionamento, a necessidade de pagamentos diferenciados” (p. 192); c) em relação
ao tempo, “enquanto o camponês tradicional enfatizava o “passado e suas tradições”,
a agricultura moderna, ao introduzir a noção de progresso, transfere o primado ao
futuro” (p. 192); d) a pluriatividade das famílias agrícolas, entendida como “uma
estratégia da família, afim de, diversificando suas atividades, fora do estabelecimento,
assegurar a reprodução deste e sua permanência como ponto de referência central e
de convergência para todos os membros da família” (p. 193).
Qual o aprendizado? a) no Brasil a agricultura familiar é relevante do ponto de
vista econômico e social; b) em função do processo de modernização da agricultura,
que via de regra significa a ampliação das relações capitalistas na agricultura, esses
agricultores se “metamorfosearam” através da “mercantilização”; c) permaneceu o
trabalho familiar, porém, sua reprodução social passa a ser influenciada pela sua
relação (cada vez maior), com os mercados; d) portanto, um novo desafio passa a ser
compreender a “morfologia” dos mercados da agricultura familiar, o que poderá
servir de inspiração para novas pesquisas sobre a temática.
Referências
_____. Uma nova extensão rural para a agricultura familiar. In: SEMINÁRIO
NACIONAL DE ASSISTÊNCIA TÉCNICA E EXTENSÃO RURAL. Brasília, DF.
Anais..., 1997.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
PORTO, Maria Stela Grossi; SIQUEIRA, Deis Elucy. A pequena produção no Brasil:
entre os conceitos teóricos e as categorias empíricas. Cadernos de Sociologia.
Porto Alegre, v. 6, 1994. p.76-88
VEIGA, José Eli da. O desenvolvimento agrícola: uma visão histórica. São Paulo:
Hucitec, 1991.