RESUMO
Este artigo visa contribuir à pesquisa internacional acerca da relação criança-cidade por um
prisma comparativo franco-brasileiro, e ampliar a discussão acerca do direito da criança à
cidade, experimentando meios mais adequados para crianças expressarem suas interpretações
do espaço urbano. Nós exploramos a contribuição de desenhos por meio da análise de
representações do bairro da Madalena feita por crianças de Recife (Brasil) e seus relatos. O
trabalho de Frisch, Authier e Dufaux (2012) com crianças do Batignolles de Paris (França)
norteia o esforço comparativo, onde destacamos eixos para um debate acerca do direito da
criança à cidade na França e no Brasil: aptidão espacial e representação gráfica; espaço
construído e espaço como interação social; espaço do brincar; e a interface entre espaço público
e mobilidade.
PALAVRAS-CHAVE
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Desenhando Novas Ideias para a Agenda Urbana: Contribuições
da Perspectiva das Crianças em torno do Direito à Cidade
1. Introdução
Os desafios da pobreza, fragmentação urbana, segregação social, deterioração do meio
ambiente, baixa mobilidade urbana e ameaças à qualidade de vida, aumento da criminalidade,
déficits habitacionais e distribuição desigual da infraestrutura urbana ampliam a complexidade
do governo articular a ação pública na cidade. Ao mesmo tempo em que o tecido da governança
urbana se fragmenta (GRAHAM; MARVIN, 2001), cresce a demanda por qualidade de vida
urbana, apontada por Gehl (2003) no aumento da preocupação com a vida na cidade em geral.
Um amplo conjunto de críticas e forças sociais e técnicas, desde a década de 1960, têm lançado
bases para o questionamento de uma lógica de exclusão subjacente ao modelo de
desenvolvimento urbano, sendo que o ‘direito à cidade’ (LEFEBVRE, 1974) como prática e
argumento para reivindicar direitos e se apropriar de espaços físicos e sociais da cidade ecoa
hoje, evidenciado em manifestações e movimentos de ocupação no espaço urbano. A cidade é
projetada como palco para diferentes grupos de atores que reivindicam o centro do debate. Mas
discutir a relação entre a criança e a cidade ainda nos remete às margens à medida que diferentes
discursos produzidos pelo universo adulto enquadram a criança, determinando os espaços que
pode frequentar e estabelecendo os princípios e conceitos norteadores do seu crescimento e
educação (MAUAD, 2010). Diferentemente de outras posições de sujeito, a criança tem de ser
traduzida nas suas demandas nas sociedades modernas, tradução que pode ser problemática
(CASTRO, 2008).
É a partir da década de 1990 que se observa maior atenção à infância e juventude na agenda
pública. A Convenção sobre os Direitos das Crianças das Nações Unidas (1990) catalisou um
esforço inclusivo reforçando a responsabilidade dos Estados em salvaguardar o direito da
criança viver em um ambiente seguro, limpo e saudável, e de ter liberdade para brincar nesse
ambiente. O Brasil, seguindo a Convenção, instituiu em 13 de julho de 1990 o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) pela Lei 8.069. A convergência entre os princípios das Nações
Unidas para o desenvolvimento sustentável com os direitos das crianças lançou fundamentos
em 1996 ao que pretende ser um movimento global em direção à ‘cidade amiga da criança’
(GLEESON, 2006). À medida que avança um reconhecimento da criança enquanto ator social,
avançam também esforços teóricos e desenvolvimentos conceituais para pensar a criança e a
cidade.
Parece-nos que ampliar e atualizar nossa compreensão acerca da vida da criança e de seu espaço
social face a uma nova e complexa urbanidade, é indispensável ao debate sobre direito à cidade.
Gleeson e Sipe (2006) apontam uma crescente multidisciplinaridade refletida no
reconhecimento das interdependências complexas entre dimensões da saúde e bem-estar da
criança. Korbin (2010) compreende que a interdisciplinaridade deve ser abordada não como
mera fórmula para inclusão de mais de uma disciplina, mas a partir do problema em questão
nos diversos estágios da pesquisa.
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Entendemos que a experiência urbana da criança demanda abordagens científicas e de pesquisa
diferenciadas. Este artigo visa contribuir à pesquisa internacional acerca da relação entre a
criança e a cidade por um prisma comparativo franco-brasileiro, e ampliar a discussão acerca
do direito da criança à cidade experimentando meios mais adequados para as crianças
expressarem suas próprias interpretações do espaço urbano. No diálogo entre saberes, as
práticas de conhecimento não devem ser descontextualizadas, pois estas trazem reflexos
importantes sobre as práticas sociais. Nós exploramos a contribuição de desenhos por meio da
análise de representações do bairro da Madalena feita por crianças de Recife-PE (Brasil) e seus
relatos. O trabalho de Frisch, Authier e Dufaux (2012) com crianças do Batignolles de Paris
(França) norteia o esforço comparativo.
A Academia, em especial a partir dos anos 80 e 90, recorreu à geografia crítica para reavaliar o
papel do lugar em processos políticos e sociais, para superar uma visão imobilista, e enunciar
o cenário dinâmico e fluido das interações políticas, sociais e econômicas (BRINGEL, 2007)
numa concepção mais ampla do espaço ou espacialidade. Mas a virada espacial nas ciências
sociais lança luz sobre categorias como lugar e espaço para além da Geografia, devido aos
processos interligados de urbanização e globalização (SCHMID, 2008).
No campo teórico dos estudos urbanos ligados ao marxismo, o fenômeno da urbanização foi
problematizado a partir das interfaces entre urbanização e acumulação/ reprodução do capital.
Teóricos como Henri Lefebvre (1974), em uma crítica da economia política, retificaram uma
sub-teorização do espaço na tradição marxista, em direção a processos e estratégias de produção
do espaço, os quais são históricos. A teoria lefebvriana de produção do espaço assinalou uma
mudança paradigmática na concepção sociológica do espaço-tempo ligada a uma tendência
(capitalista) totalizante da urbanização (KIPFER, 2008). David Harvey (1973; 1975) almejou
construir uma teoria da relação sociedade-espaço numa lógica marxista, compreendendo que
em Marx se reconhece que a acumulação de capital ocorre num contexto geográfico, daí a teoria
da acumulação estar relacionada ao entendimento da estrutura espacial, e com uma particular
forma de análise da localização (HARVEY, 1975). Manuel Castells (1972) enfatizou um
quadro teórico para compreender a urbanização a partir da teoria marxista althusseriana, e
romper com o empirismo em direção a análises sociológicas acerca das políticas urbanas.
Não mais o industrial e suas disciplinas com foco em capital e trabalho, classes e reprodução
constituem a episteme, mas o urbano e suas formas focadas em cotidiano e consumo,
planejamento e espetáculo, assume tendências relevantes de desenvolvimento social na segunda
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metade do século XX. No século XXI, a cidade-ciborgue é preenchida e complementada por
redes telemáticas e suas tecnologias, somadas às redes de transporte, energia, saneamento,
iluminação e comunicação, agregando a espacialidade imaterial dos territórios informacionais
(LEMOS, 2007).
O domínio contingente e provisório das práticas espaciais obstrui uma definição imutável do
urbano, sendo que Soja (2013) considera que nunca houve tão ampla disseminação de uma
perspectiva espacial crítica, com sua ênfase sobre ideias em economia, política, cultura e
mudança social ligadas às cidades e à vida urbana. O autor aponta que a virada espacial
direciona atenção à noção de justiça espacial e à espacialização mais ampla de ideias básicas
acerca de democracia e direitos humanos, como o resgate da noção lefebvriana do direito à
cidade (SOJA, 2009).
Os esforços para estudar as condições e experiências de crianças em ambientes urbanos foi mais
marcada inicialmente por descrições da indignação contra a pobreza e privação do que
propriamente à compreensão teoricamente informada da condição da criança urbana como
cidadãos complexos e socialmente vulneráveis. No início do século XX é que se tem esforços
mais claros da teoria social para investigação sistemática e coleta de material sobre o bem-estar
da criança.
Uma exibição nos Estados Unidos em 1911 gerou o handbook The Child in The City, com
fotografias, modelos e esquemas para ilustrar a situação de 640 mil crianças que viviam em
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Chicago (SIPE et al., 2006). Os esforços de pesquisa se direcionaram para playgrounds e
criação de ambientes mais saudáveis, e maior preocupação com as dimensões psicológicas e
sociais relacionadas ao brincar.
O campo da sociologia dedicou maior atenção à criança urbana a partir da década de 1930,
focada na aquisição de habilidades sociais e influências de aspectos socioeconômicos, como o
status (SIPE et al., 2006). A sociologia da infância contribuiu para a pesquisa na área à medida
que atentou para a perspectiva da criança em sua relação com o ambiente vivido, em termos de
sentidos, valores e vínculos desenvolvidos (FRISCH et al., 2012).
Avanços metodológicos são identificados por Sipe et al. (2006) nas décadas de 1950 e 60, em
estudos que exploraram o ambiente da criança com investigações de memórias da infância na
cidade (e.g., LYNCH; LUKASHOK, 1956). Na década de 1970, a proposição, pela UNESCO
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), do programa Growing
Up in Cities (LYNCH, 1977), focado na busca de soluções centradas nas pessoas para
problemas ambientais, amplia a atenção para a temática da criança na cidade. Kevin Lynch
guiou um esforço multidisciplinar que envolveu pesquisadores sociais, cientistas naturais,
arquitetos, urbanistas e outros praticantes para compreender como adolescentes usavam e
valorizavam seu espaço social. Buscou observar o tempo livre das crianças e as barreiras que
encontravam para se movimentarem pela cidade. Parte da pesquisa envolveu pedir às crianças
que desenhassem mapas de seus trajetos e vizinhança. Esses esforços inspiraram outros estudos,
como o de Ward (1978), que problematiza caminhos para tornar mais proveitosa e agradável a
relação entre a criança e a cidade. A descrição de Ariès (1978) da infância a partir do século
XII evidencia como a infância é construída por forças contingentes, e o sentido de valorização
e bem-estar da criança uma concepção moderna.
Frisch, Authier e Dufaux (2012), a partir de desenhos e relatos de crianças do bairro Batignolles
de Paris, buscaram estudar as relações que tais crianças possuem com sua vizinhança, e como
crianças de diferentes origens sociais percebem o bairro que seus pais escolheram para morar,
e quais os usos que fazem deste espaço e da cidade em que vivem. Diferentes influências, como
gênero e aspectos sociais, foram interrogadas nas representações e experiências das crianças.
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Os pesquisadores reuniram, em 2009, 27 crianças de 9-10 anos em uma escola primária,
pedindo para ‘desenharem sua vizinhança’ na forma gráfica de sua preferência. Em seguida,
realizaram entrevistas com cada uma pedindo-lhes que comentassem a respeito de seu desenho.
Na leitura do impacto da idade da criança sobre sua percepção espacial e sua maneira de
representá-la, há principalmente três tipos de desenho – mapas pictóricos ou desenhos (Figura
2, desenho de Sophie), planos pictóricos (Figura 3, de Salih) e planos (Figura 4, de Marc) –
correspondendo a três estágios da habilidade cartográfica da criança.
Fig. 4 – Plano
Nos desenhos de crianças que moravam perto de avenidas centrais, destaca-se a noção de
densidade, com a paisagem sendo representada por prédios de cinco ou seis andares, agregados
e estreitos, com poucas calçadas. As crianças raramente se dispuseram a retratar especificidades
da arquitetura parisiense.
O parque foi representado em muitos dos desenhos, um dos lugares arquétipos da natureza na
cidade, e como elemento que fortalece o vínculo com a vizinhança. As discussões confirmam
uma maior sensibilidade de algumas crianças com os elementos naturais, em alguns casos
refletida em queixas contra uma Paris poluída. Houve ênfase sobre as qualidades naturais do
parque entre as meninas, enquanto os meninos enfatizaram as brincadeiras nesse espaço.
A escola é outro espaço arquétipo, apontada como eixo de suas relações sociais. Outro
arquétipo, a representação da casa, é a clássica: um quadrado para a parte principal, um
triângulo para o telhado, pequenos quadrados para as janelas e um retângulo maior para a porta.
A grande maioria da produção gráfica das crianças é ligada à casa, que seria uma espécie de
ponto de ancoragem.
Aparentemente, há para Frisch et al. (2012) maior liberdade (no uso do espaço) na vizinhança
que seria experimentada por crianças oriundas de famílias da classe trabalhadora e que não
estão engajadas em atividades extraclasse. A maior mobilidade pelo espaço urbano indicaria
maior vínculo com a vizinhança; citam o caso de Alissa, de 10 anos, que mora com sua mãe e
irmão mais velho, faz sozinha o trajeto casa-escola-casa, usa o transporte público e gosta de ir
à biblioteca encontrar a amiga.
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Em nossa pesquisa de campo, inspirada na abordagem de Frisch et al. (2012), acessamos uma
escola no bairro da Madalena, Recife-PE, e solicitamos autorização aos pais de crianças do 4º
Ano do Ensino Fundamental. 21 meninas e 26 meninos participaram da oficina ‘Desenhando
meu Bairro’. Cada criança recebeu papel A4, lápis de cor (12 cores) e lápis grafite para
desenharem seu bairro na forma gráfica de sua preferência. Cada uma falou conosco a respeito
de seu desenho.
A análise incluiu: (1) observação do desenho de forma holística para identificação dos temas
centrais dos desenhos; (2) análise detalhada de cada desenho separadamente (para cada tema
identificado, estudar a maneira como as crianças lidam com ele graficamente); (3) o relato de
cada criança é considerado para observarmos concordância ou discrepância face aos temas do
desenho; (4) as representações (gráficas e discursivas) das crianças são associadas a outras
informações obtidas junto à professora ou coordenadora; (5) comparação entre os temas
identificados e aqueles dos desenhos das crianças de Batignolles (Paris).
Os desenhos refletem distintos graus de detalhamento (Figuras 5 e 6); desenhos mais ricos em
detalhes favorecem a análise a partir da técnica visual, enquanto outros demandam informações
complementares (e.g., entrevista). Apenas Marília (Figura 6) optou por não colorir, pois
preferiu se concentrar “nos detalhes”, usando régua e explorando uma visão panorâmica de sua
vizinhança. As crianças estavam animadas para desenharem e contribuírem à pesquisa,
explorando o uso das cores, e solicitando “mais tempo” para realizarem seus desenhos.
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Fig. 7 - Plano pictórico de Rodrigo
Coerente com o estudo parisiense, há aqui uma apreciação entre as crianças pela presença de
funções comerciais/serviços no bairro. Este viés aparece em diversos desenhos (ver Figuras 8
e 9). Roberta, de 9 anos, considera que “o bom do meu bairro é que tem tudo perto... padaria,
mercado, praça...”, e no desenho de Julia, observamos a expressão de sua satisfação na padaria,
corroborada pelo relato que ela faz de seu desenho.
Mas não há clara correspondência entre a presença dessas opções no bairro e a exploração
independente, pela criança, desse espaço. Essas crianças não caminham sozinhas na rua, ao
contrário de algumas crianças parisienses. No trajeto casa-escola-casa, 8 crianças o fazem a pé,
sendo que 4 alternam carro e caminhada, e as demais de carro. É possível apontar, entre as
crianças que caminham todos os dias para a escola, evidências de uma sensibilidade espacial
diferenciada.
Consideremos os desenhos de Leila, Igor, e Aurélio. Leila (Figura 10), que mora no bairro há
2 anos, e tem 4 irmãos, destaca seu prédio e os de dois amigos da escola, além do salão de uma
pessoa conhecida, e sua escola. A maneira como dispõe tais elementos sugere um olhar para
seu bairro não apenas como espaço construído, mas também como espaço social.
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Fig. 10 – O bairro de Leila
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dos Doze Bairros1 (Lei nº 16.719/2001), e pela necessidade do mercado imobiliário criar novos
espaços de consumo.
Fig.12 – O bairro verticalizado de Mari Fig.13 - Avenida Beira Rio no desenho de Manu
1
A interdição da expansão de edificações foi um movimento reivindicatório das comunidades dos bairros Graças
e Casa Forte, contra o adensamento construtivo, e a favor da preservação das características da paisagem histórica
da cidade. A Lei dos Doze Bairros limita o adensamento construtivo, mas o bairro da Madalena ficou de fora,
atraindo mais investimentos e se adensando mais (SILVA, 2008).
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Apenas o desenho de Luciano (10 anos) retrata uma comunidade de baixa renda que fica perto
da escola. A escola é representada em quatro desenhos e os poucos elementos naturais que
aparecem enfatizam o rio e as áreas verdes de suas margens, e árvores. A fala das crianças
repudia a poluição da cidade, e se queixam do “lixo na rua”, ilustrado no colorido desenho de
Tatiana (Figura 15), em que vemos o lixo jogado na rua de um espaço urbano denso.
O brincar é influenciado pelo tempo disponível das crianças. Quando lhes perguntamos do que
gostam de brincar durante a semana, várias relatam que não têm “tempo para brincar”. Das 47
crianças, apenas 03 não fazem atividades extraclasse. 31 crianças pelo menos 2 atividades,
enquanto 13 fazem 3 ou mais atividades. Diferentemente do estudo parisiense, o fato de não
desenvolver atividades extraclasse não parece associado ao maior uso do espaço público.
6. França e Brasil num prisma comparativo: refletindo sobre o direito da criança à cidade
Consideremos eixos para um debate acerca do direito da criança à cidade na França e no Brasil:
aptidão espacial e representação gráfica; espaço construído e espaço como interação social;
espaço do brincar; e a interface entre espaço público e mobilidade. Quanto ao primeiro aspecto,
a diversidade nas formas de crianças representarem seu bairro está associada à diversidade de
relacionamentos que constroem com esse espaço. O esforço analítico é direcionado a evidências
de elementos naturais, espaços construídos, espaços de fluxos, densidade, detalhes da
arquitetura, paisagens, atividades, pessoas, animais etc. Num prisma comparativo, a validade
do esforço reflexivo a partir de um microcosmo (o bairro) não tem pretensões generalistas, mas
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visa um diálogo entre saberes que informem a questão do direito à cidade. Em nosso caso, em
especial, reconhecemos que nos concentrarmos apenas nos desenhos e relatos da criança é
insuficiente à compreensão de sua experiência espacial. Apesar dessa limitação, na
identificação de temas em desenhos e relatos, interessante para um debate é pensarmos em
contrastes e convergências que realçam os desafios ao direito da criança à cidade. Na
representação do espaço, os desenhos tanto de crianças francesas ou brasileiras é ligada à casa.
Este arquétipo aparece direta ou indiretamente em quase todos os desenhos, como uma espécie
de ponto de ancoragem (FRISCH et al., 2012). Há um contraste entre a representação da
localidade como espaço de interação social, em Paris, e a ênfase recifense do bairro como
espaço percebido (e não como lócus de enactment).
Quanto ao espaço construído e espaço como interação social, no estudo em Batignolles em geral
os desenhos de paisagens ou locais incluem pelo menos uma pessoa, e enfatizam o
pedestrianismo. A vizinhança para essas crianças é em geral um território fortemente ligado à
casa, à escola e ao parque, em torno dos quais elas fazem julgamentos funcionais, sociais e
físicos; a vizinhança é feita daquilo que elas veem, fazem, sentem e com quem se encontram;
como lugar de interações sociais, as crianças gostam de encontrar outras. A sensibilidade visual
aparece como parte da relação da criança com a vizinhança, sendo que algumas crianças
ampliam sua apreciação estética da vizinhança para toda a cidade (e.g., ‘Paris é bonita’)
(FRISCH et al., 2012). Na Madalena, além de diversas crianças focalizarem a representação de
seu bairro na fachada de seu prédio, como sua ênfase em portões, muros e janelas, o espaço do
brincar é o prédio, o espaço doméstico em detrimento do parque ou da rua. A intensa interação
social concentrada no prédio é evidente nas falas das crianças, que descrevem as opções em
seus condomínios - a quadra, pista de skate, o parquinho, o salão de festas, a piscina (inclusive
onde ocorrem aulas de natação), além dos apartamentos dos amigos. O tempo acelerado das
crianças é ainda influenciado pela quantidade de atividades extraclasse programadas. As
crianças que caminham no trajeto casa-escola-casa tendem a evidenciar maior sensibilidade
espacial.
Quanto ao uso do espaço público, há um conflito que se amplia entre pais na metrópole, e que
diz respeito ao dilema entre a proteção da criança dos perigos da cidade (e.g., trânsito, violência)
e a autonomia que se quer que ela desenvolva. O aumento no uso de carros (no Brasil em uma
década aumentou em 119% o número de veículos) contrasta com uma política de mobilidade
urbana sustentável que em cidades como Paris incentivam o uso de outros modais. Junto com
problemas de segurança nas cidades, cresce a obstrução da livre mobilidade de crianças e seu
acesso à cidade.
Destacamos essa interface entre mobilidade e espaço público. Se a cidade é a aventura iniciática
de que fala Borja (2003), à qual todos têm direito, uma vivência traçada pelo enfrentamento de
riscos e descoberta de territórios e dos outros nos percursos cotidianos, parece haver uma
reconfiguração em curso quanto ao direito da criança à cidade. Uma genealogia da cidadania
converge para a capacidade de se movimentar pelo espaço como aspecto central à definição da
cidadania no século XXI (CRESSWELL, 2013). Se a cidadania é praticada no espaço público,
e reforça a importância dos vínculos com a comunidade, então a transformação desse espaço
pode implicar um novo tipo de cidadão.
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