Le Ballon Rouge:
um (sur)realismo verossímil
Belo Horizonte
2015
“Digamo-lo claramente de uma vez por todas:
o maravilhoso é sempre belo;
qualquer tipo de maravilhoso é belo,
só o maravilhoso é belo.
(...)
Desde cedo as crianças são apartadas do maravilhoso,
de modo que, quando crescem,
já não possuem uma virgindade de espírito
que lhes permita sentir extremo prazer
na leitura de um conto infantil.
(Trecho do Manifesto Surrealista de André Breton)
O presente estudo tem por objetivo realizar uma análise crítica do filme Le
Ballon Rouge (Albert Lamorisse, 1956) à luz da perspectiva conceitual da ‘montagem
proibida’ desenvolvida por André Bazin1. Para tanto, mobilizaremos não só conceito
formulado pelo teórico francês, como também tentaremos estabelecer um diálogo com a
teoria deleuziana do afectus na tentativa de perceber como nos relacionamos com o
filme e como ele nos afeta. Sobretudo, interessa-nos mais particularmente saber como
somos afetados por aquilo a que no presente estudo conceituaremos como realismo-
onírico, cuja algumas características entendemos estar sintetizadas em Le Ballon Rouge.
Le Ballon Rouge (O balão vermelho) é um curta-metragem francês (34min)
dirigido por Albert Lamorisse e que conta a história de um garoto (Pascal Lamorisse,
filho do diretor) que, um belo dia ao sair de casa a caminho da escola encontra um balão
vermelho (o mais belo balão vermelho da história do cinema!) preso a um poste de
iluminação do bairro Ménilmontant onde mora com a mãe, em Paris.
Albert Lamorisse usou os próprios filhos como personagens do filme, não só seu
filho Pascal interpreta o papel principal, como também sua filha Sabrine fez uma
participação como a garotinha do balão azul que Pascal encontra fortuitamente numa de
suas andanças pelas ruas de Paris em companhia do seu adorado companheiro ballon. A
relação de Pascal com o balão é radicalmente modificada quando o menino percebe que,
ao ser libertado, o balão passa a segui-lo e obedecê-lo por onde quer que ele vá, o que
acaba causando admiração de muitos adultos que cruzam o caminho de Pascal e
também desperta a inveja de outras crianças do bairro. Ao lado do balão, o menino
passará por uma série de aventuras e desventuras e é no interior dessa trama que o
1
BAZIN, André. Montagem Proibida. In: O que é cinema? Trad. Eloisa A. Ribeiro. São Paulo:
CosacNaify, 2014.
1
espectador é convidado a refletir, através delicadeza e elegância da direção de Albert
Lamorisse, sobre temas como a liberdade, a amizade, o altruísmo, o sacrifício e o medo
todos sentimentos e sensações que, em maior ou menor grau experimentamos na
primeira infância. É neste sentido que
2
Trecho da crítica produzida por André Renato para o blog ‘Sombras Elétricas’. Disponível em:
http://sombras-eletricas.blogspot.com.br/2009/09/o-balao-vermelho.html. Último acesso em: 23/06/2015.
3
Defendemos aqui a perspectiva de que experiência cinematográfica prescinde da concordância ou
aceitação de alguns códigos e regras por parte do expectador. Assim, ao assistir um filme no cinema, o
espectador “concorda ou aceita” que terá de se sentar diante de uma tela, durante um tempo
predeterminado (duração do filme, caso ele o queira assistir até o fim), que terá de prestar atenção a
determinados elementos da narrativa para que esta lhe seja compreensível. Entretanto, não deixamos de
entrever também o “ver o filme” naquela sua medida que é imposta ao espectador, qual seja, a da
produção de sentido através do desejo do diretor e aí entram mais particularmente os aspectos da
decupagem: movimentos de câmera, zoom, planos e contraplanos, travellings, planos-sequência, dentre
outros elementos próprios da linguagem cinematográfica e da montagem que são produtores potenciais de
sentidos que nos são “impostos” porque de certa forma implícitos.
4
BAZIN, op. cit. p.83.
5
Idem. p.89. (Grifos do autor).
2
passaram diante das lentes de Lamorisse foram reais. Aquilo que por ventura o filme
tem de mágico, lúdico, irreal – surreal6 como defendemos aqui – é fruto em grande
medida das trucagens das quais lançou mão o diretor para compor a atmosférica
realista-onírica que toma conta da narrativa.
Contudo, nem só de trucagens é feito O balão vermelho, muito em contrário,
outros elementos técnicos do filme que merecem ser destacados, uma vez que auxiliam
fortemente a compor o universo mágico do menino Pascal. Nas palavras do crítico de
cinema André Renato “(...) todo o filme se constrói e se apresenta dentro de uma
tonalidade mítica, o simbólico mais fundamental do balão dotado de todo o brilho do
vermelho do technicolor7 em um mundo cinzento, numa cidade anêmica” 8. Assim, cabe
ressaltar a importância da edição de Pierre Gillette, os efeitos sonoros sob encargo de
Pierre Vuillemin, com destaque para a música original de Maurice Le Roux e, sobretudo
a direção de fotografia feita magistralmente por Edmond Séchan, que concorrem para a
sensibilidade primorosa da direção de Alber Lamorisse.
A presença destes elementos no filme (música, edição, fotografia) faz com que o
universo de Pascal e seu balão vermelho seja dotado de uma espessura muito peculiar.
Assim, são, por suposto, imprescindíveis para a composição da realidade lúdica
proposta pelo filme, entretanto, acreditamos que seja ainda mais importante ressaltar sua
função de minimizar os efeitos da montagem, contribuindo para que ela seja meramente
acidental conforme bem exprimiu André Bazin. A partir deste ponto de vista,
defendemos que a conjunção harmônica destes elementos é que seria a responsável por
certa interdição da necessidade de uma montagem mais imperativa como é o caso de
outros filmes citados pelo próprio autor9. É como se em Le Ballon Rouge, estivéssemos
de fato a ver o mundo pelos olhos de uma criança.
6
Gostaríamos de esclarecer que perspectiva de surrealismo defendida neste esforço teórico, nada tem a
ver com o surrealismo estético e formal das artes surgido na França em meados dos anos de 1920, cujo
maior expoente cinematográfico seria Luis Bruñel. Entretanto, não deixamos de entrever a fresta de
diálogo que esta estética abre para pensar e questionar os limites entre o real e o imaginário. Desta
maneira, a perspectiva conceitual de surrealismo defendida no presente estudo, diz muito mais respeito ao
seu uso enquanto adjetivo do que como categoria estética. Assim, o que pretendemos com a utilização de
(sur)realismo é destacar uma adjetivação que qualifique uma distinção clara entre o realismo puro –
resultado de um esquadrinhamento racional, cartesiano e metódico do real e dos fenômenos – e as fraturas
que podem ser abertas no âmbito da experiência concreta, como por exemplo o sonho, o trauma e, em
alguma medida, a própria experiência cinematográfica.
8
Trecho da crítica produzida por André Renato para o blog ‘Sombras Elétricas’. Disponível em:
http://sombras-eletricas.blogspot.com.br/2009/09/o-balao-vermelho.html. Último acesso em: 23/06/2015
9
Como por exemplo: Le Rideau Cramoisi [A Cortina carmesim, 1953]. Ver: BAZIN, op. cit. p.89.
3
BANZIN, DELEUZE E O REAL-VEROSSÍMIL
10
Ao trabalharmos as noções bazanianas de realismo, gostaríamos de deixar claro que não estamos
propriamente a referirmo-nos ao realismo enquanto adjetivo, isto é, algo que qualifique uma suposta
‘escola realista’ em oposição ao cinema clássico. Entendemos que esta não seja particularmente a questão
central das discussões feitas por André Bazin. Neste aspecto, segundo nos parece, Bazin estaria mais
preocupado com as transformações tecnológicas e da própria linguagem cinematográfica que, ao longo do
tempo, passam a interferir em aspectos formais dos filmes, conferindo-lhes cada vez mais aspectos
realistas, em relação ao cinema clássico.
4
Desta forma, a teoria realista do cinema, a partir de Bazin, recai sobre a
relação do espectador com a imagem, para buscar, nesta afinidade, a
manifestação de uma experiência de percepção da imagem semelhante com a
que ele mantém com a realidade cotidiana. [...] Bazin (1991), ao pensar o
avanço dos suportes tecnológicos, discutiu como a início do uso do som
potencializou o realismo no cinema. No cinema mudo, os sentidos da
narrativa eram direcionados pela montagem e pela decupagem. A partir do
som, os significados puderam ser trabalhados na própria mise em scène, por
meio de uma economia da decupagem e da montagem, não mais
direcionando, e, sim, sugerindo sentidos ao espectador 11.
Neste sentido, vemos que há casos nos quais, longe de constituir a essência do
cinema, a montagem é sua negação [...] A montagem só pode ser utilizada aí, dentro de
limites precisos, sob pena de atentar contra a própria ontologia da fábula
cinematográfica14”. Eis que chegamos ao ponto central de nossa defesa, qual seja: a
crença de que o real só pode ser reconstituído narrativamente enquanto verossimilhança.
Toda narrativa é uma performance do real, vem de algum modo substituí-lo por um
texto, por uma representação. É a partir dessa dimensão que entendemos que Le Ballon
Rouge constitui-se a partir de uma duplicidade espaço-temporal, ele (re)cria o real
tensionando-lhe os limites de modo que comporte algum grau de surrealismo. Neste
11
XAVIER, Marília. O Realismo Reflexivo em Michael Haneke: Análise da Experiência Afetiva do
Espectador no filme Caché. Dissertação de Mestrado. Departamento de Comunicação Social. UFJF, 2012.
12
Idem, p. 13.
13
BAZIN, op. cit.p.92
14
Idem, pp.88-90
5
sentido, o aceite ao convite de adentrar aquela história de um menino e seu balão
voador, segundo nos parece, implica também a aceitação de que sua realidade, embora
não real, é verossímil. Reiteramos aqui, a importância do som, da fotografia e da edição
na composição dessa atmosfera de verossimilhança, responsável por compor no âmbito
da narrativa de O balão vermelho, um realismo que comporta doses de surrealismo.
Baseados nisso, defendemos a perspectiva de que Le Ballon Rouge trata-se de um filme
marcado por um realismo-onírico, compondo aquilo a que intitulamos como
(sur)realismo verossímil. Obviamente, a ideia de um balão que voador que obedece a
um menino nos dá conta de que não se trata do real, assim o sabemos, contudo, ao
aceitar o convite de vivenciar a experiência de Pascal (convocação feita pelos meios
técnicos, estéticos, linguísticos e narrativos do filme), somos convidados a crê-la como
realidade verossímil.
Dito isto, e adiantando alguns conceitos deleuzianos indagamo-nos o seguinte:
qual a relação do espectador com as imagens-movimento e as imagens-tempo15 de tipo
onírica? Bazin nos dá pistas a esse respeito ao dizer que “(...) É a parte de truque, a
margem necessária de subterfúgio necessária à lógica da narrativa que permite ao
16
imaginário a um só tempo integrar a realidade e substituí-la ”. Se nossa leitura de
Bazin está correta, este trecho escrito pelo teórico francês deixa entrever exatamente
aquilo que buscamos sustentar: uma dupla dimensão que se abre na narrativa fílmica e
que apreende o real não como realidade cartesiana concreta, mas como o espectro do
possível, como espaço da verossimilhança.
Para que Le Ballon Rouge alcançasse seu objetivo de nos fazer crer na relação de
Pascal com seu balão obediente, foi preciso que Albert Lamorisse interditasse um
excesso de montagem que comprometesse a ontologia da fábula, comprometendo a
harmonia espaço-temporal, isto é, que havia de realidade concreta, mas que também
não compusesse uma realidade totalmente calcada numa crueza da dimensão espaço-
temporal, sob pena de comprometer igualmente a dimensão surreal da narrativa e a
ingenuidade que compõe o universo sui generi do Pascal que há em todos nós.
A partir disso, os estudos de Gilles Deleuze dão um passo adiante nas
problematizações já levantadas por André Bazin. Conforme nos aponta a autora Marília
Xavier,
15
DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.
16
BAZIN, op. cit. pp.89-90.
6
O trabalho do filósofo, nesta perspectiva, vai repercutir em um estudo do
posicionamento do espectador diante de filmes experimentais e realistas, cujo
tipo de imagem permite uma interação entre a imagem atual, advinda do
filme, e a imagem virtual, formada pelo espectador. Isso é possível por meio
da presença da imagem-cristal, que consiste em um tipo de imagem gerada
como consequência do surgimento de imagens óticas e sonoras puras 17.
17
XAVIER, op. cit. p.10.
7
Encaminhando-nos às considerações finais, quisemos com este trabalhos fazer
uma análise mais aprofundada do filme O balão vermelho de Albert Lamorisse,
contemplando algumas de suas dimensões técnicas, estéticas para, por fim tentar mapear
suas possibilidades e capacidades afetivas desta obra em relação ao espectador. Para
tanto, propusemos uma habilitação conjunta e dialógica das perspectivas bazanianas e
deleuzianas, na tentativa de realizar uma defesa de como a verossimilhança com o real
neste filme, ajudar-nos-ia a entendê-lo como uma obra que cifra o que conceituamos
como um realismo onírico, isto é, um realismo que comporta uma dupla dimensão da
experiência, nem tão real que nos impeça de sonhar junto com o menino Pascal, nem tão
surreal para que duvidemos daquele menino Pascal que repousa em todos nós.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BAZIN, André. Montagem Proibida. In: O que é cinema? Trad. Eloisa A. Ribeiro. São
Paulo: CosacNaify, 2014.
______, André.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: A Imagem-tempo. São Paulo: Brasiliense, 2007.