Trata-se de um teatro dentro de um teatro uma vez em que a plateia assiste a outra
plateia que assiste a uma peça, sendo essa nuance uma chave fundamental para compreender
a proposta de Corneille, considerado o pai da tragédia francesa, também autor do mesmo dos
clássicos “El Cid” e “Horace”. Ao dirigir o espetáculo, Márcio Aurélio lança mão, de forma
positiva, de três ótimos trabalhos de interpretação (Adreazza, Pannunzio e Machado, todos
apresentando uma dicção perfeita, as intenções claras em pausas bem postas, além de
expressões corporais vivas e inteligentes), um eficiente desenho de iluminação (Marcio Aurélio)
e um vibrante acompanhamento sonoplástico (Daniel Maia, nos movimentos do personagem
Matamouro). Por outro lado, em sentido negativo, seu espetáculo apresenta uma evolução
rítmica bastante emperrada, outros dois trabalhos de interpretação ruins (Pedrosa e Marcello,
sem verdade, marcas visíveis, corpos e expressões faciais tensas) e figurinos que em nada
contribuem para a fruição artística (Marcio Aurélio e André Cortez, roupas modernas em
detalhes em renda, quase todos pretos, cinzas ou brancos).
O primeiro grande drama do teatro clássico francês é Le Cid, escrito em 1636 por Pierre Corneille
(1606-1684). A peça tem como referente remoto a epopéia espanhola EI cantar de mio Cid e
como fonte próxima a obra Las mocedades del Cid, de Guillén de Castro, publicada em 1631. No
texto corneliano, o herói Rodrigo, apaixonado por Ximena, para salvar a honra de seu pai, é
obrigado a matar seu futuro sogro num duelo. Para fugir ao remorso, Rodrigo procura a morte
no campo de batalha, mas acaba tendo uma grande vitória sobre os mouros invasores. Ximena,
para vingar a morte do pai, deseja a destruição de Rodrigo e induz um seu pretendente a desafiar
o herói. Mas, quando percebe que Rodrigo quer morrer no duelo não se defendendo, o amor
vence o ódio e acaba suplicando o jovem amado a lutar pata obter a vitória. O que acontece. A
peça termina com o casamento de Rodrigo e Ximena. Essa peça acirrou as discussões sobre a
obediência ou não aos preceitos da confecção da obra teatral conforme se encontram na Poética
de Aristóteles, pois Corneille não obedece ao princípio clássico da unidade de ação, de tempo e
de lugar, o que levou Racine a afirmar que suas peças acumulam “tal quantidade de incidentes
que precisariam de um mês para ser representadas”. Além de infringir o princípio da
verossimilhança no palco, também o final feliz de Le Cid contraria a definição aristotélica da
tragédia: “a passagem da felicidade para a infelicidade”. Daí que a academia francesa, solicitada
a dar sua opinião sobre esta obra de Corneille, a define como uma “tragicomédia”, relevando a
mistura do gênero trágico com o cômico; negando-lhe, assim, o estatuto de obra clássica. Mas,
acima dessas questões técnicas, permanece eterna a concepção corneliana de herói. O
protagonista deste drama, como de outros do mesmo autor (Cinna, Medéia, Horácio, Polieucte),
configura a representação artística de um protótipo ideológico: o homem, em conflito entre o
dever e a paixão, encontra no sentimento da “honra” e na aspiração á “glória” a sua realização
existencial. É a concepção de uma ética aristocrática, individualista, profundamente eufórica,
em consonância com o aspecto renascentista da cultura clássica francesa.