Theodor W. Adorno
II
III
IV
Numa época como a nossa, estraçalhada por antagonismos de grupos e por todas
espécies de discriminação social, uma era em que a religião positiva e a filosofia
tradicional perderam grande parte de seu apelo junto às massas, parece atraente
a muitos que a força de integração daqueles domínios tenha passado para a arte.
A arte deveria, como dizem, "transmitir uma mensagem" de solidariedade humana,
de amor fraternal, de universalidade oniabarcante. Parece-me que o valor dessas
idéias só podem consistir em sua verdade inerente, não em sua aplicabilidade
social e muito menos na maneira como são, de fato, propagadas pela arte. Por
outras palavras, enfrentá-las como tais permanece tarefa do pensamento filosófico
autônomo. Tornar essas idéias como assunto de obras de arte seria apenas um
pouco melhor do que as pinturas murais modernistas de santos ou os romances
sobre milagres duvidosos – as idéias supremas da filosofia seria distorcidas numa
espécie de slogans eleitorais. Se hoje nos dizem que a arte, a religião e a filosofia
são, em última análise, idênticas, isto não justifica a posição de que caberia à arte
traduzir as idéias filosóficas em imagens sensuais. Pois a suposta identidade de
arte, religião e filosofia, mesmo se verdadeira, é tão remotamente abstrata que
sua virtualidade não leva a nada e permanece tão frágil quanto um truísmo
pronunciado em Escolas Dominicais e em sessões de coretos filarmônicos. O que
vem com a aparência de idealismo em alto grau pressupõe, na verdade, o
emasculamento de todas as disputas atuantes, sejam religiosas, filosóficas ou
artísticas. Todas se tornam idênticas ou, pelo menos, mutuamente reconciliáveis,
como "bens culturais" aos quais ninguém mais toma a sério. Tornam-se
inofensivas e impotentes. É a redução a algo geralmente aceitável dentro do
padrão conformista de uma dada cultura que produz a ilusória aparência de
identidade espiritual. Essa ênfase aparentemente humanista já se tornou mera
ideologia. A arte que queira preencher seu destino humano não pode tomar o
humano de espreita nem proferir palavreados humanistas.
VI
Até aqui acentuei a fina distinção entre arte e religião bem como entre arte e
filosofia tal como produzida historicamente. Mas isto não nos deve cegar quanto à
íntima relação originalmente existente entre elas e que continuamente conduz a
uma interação produtiva. Toda obra de arte ainda conserva o selo de usa origem
mágica. Até podemos conceder que, se o elemento mágico fosse dela extirpado
completamente, o declínio da própria arte teria sido concretizado. Mas isto tem
que ser entendido com propriedade. Em primeiro lugar, as tendências artísticas
mágicas que sobrevivem são algo totalmente diverso de seus conteúdos ou de
suas formas manifestos. Devem ser, de preferência, encontrados em toques, tais
como o encanto que emana de uma verdadeira obra de arte, o halo de sua
unicidade, a aspiração inerente a representar algo de absoluto. Este caráter
mágico, no entanto, não pode ser conjurado pelo desejo de se conservar a chama
viva. O relacionamento atual pode ser expresso de maneira paradoxal. A produção
artística não pode fugir da tendência universal do Esclarecimento, de crescente
domínio da natureza. Por todo o curso da história, o artista cada vez tornou-se
mais consciente e autonomamente senhor de seu material e de suas formas e,
assim, trabalha contra o mágico encanto de seu próprio produto. Mas é justamente
por seu esforço incessante para atingir esse controle consciente e essa força
construtiva, justamente pelo ataque da autonomia artística contra o elemento
mágico que este retira a força de sobrevivência e de se fazer sentir de formas
novas e mais adequadas. As forças da construção racional trazidas para o
relacionamento com esse elemento irracional parecem intensificar sua resistência
interior mais do que eliminá-la, como nossos filósofos irracionalistas gostariam de
fazer-nos acreditar. Portanto, a única maneira possível de salvar o "encanto" da
arte é a recusa desse encanto na arte propriamente dita. Hoje só o compositor dos
hit parades e os escritores de best sellers é que tagarelam sobre a irracionalidade
e inspiração de seus produtos. Quem cria obras que são verdadeiramente
concretas e indissolúveis, que verdadeiramente se opõem às oscilações da
indústria cultural e da manipulação calculista, é quem pensa com maior rigor e
intransigentemente em termos de consistência técnica.
VII