Canton: “a arte ensina a desaprender os prin- de pensar simplesmente que qualquer coisa
cípios das obviedades que são atribuídas aos pode ser uma obra de arte, mas sim que os
objetos, às coisas. Elas nos expande e parece cânones que procuravam entender a essência
detonar a mola propulsora do funcionamento da arte até então, se tornam ineficazes. Dito
das coisas da vida, desafiando-as”. 1 isso, lancemos a pergunta que irá orientar
esta reflexão: o que motiva Nuno Ramos a
A pesquisa sobre a poética de um artista
produzir interferências no real e apresentá-
é um instrumento útil para investigar esta
las como obras de arte?
questão inicial.2 Todo artista contemporâneo
atua em um circuito de produção de ima- O presente trabalho apresentará algumas
gens. A arte sempre se impôs como uma chaves de leitura, escolhidos como conceitos
virtualização do real, uma alternativa, uma fundamentais que surgem da observação do
versão da realidade. Mesmo quando procura- conjunto de seu trabalho, a saber: desconti-
vam capturar a realidade, os artistas carre- nuidade, citação e devir. A intenção aqui é
gavam, na ponta de seu pincel, uma versão mostrar que tais conceitos, no trabalho de
dela. O que acontece na arte contemporânea Nuno Ramos, falam de variações de uma
é que os artistas radicalizam esse princí- mesma abordagem, que será assunto da úl-
pio fazendo dessa potência discursiva, seu tima parte deste texto.
principal instrumento. Conhecer a trajetó-
ria particular de um artista significa, nesse
sentido, um contato direto, experiencial, com 1. Descontinuidade
práticas imagéticas. Um processo que susci-
ta a invenção de configurações que ampliem Quando se trata de Nuno Ramos, e de uma
a noção de visualização do real. Um artis- pesquisa em sua trajetória, tem-se, antes de
ta, quando libera sua obra para o olhar do qualquer coisa, um vasto material produzido
público, apresenta padrões para formar um pelo próprio artista sobre seu processo. Não
novo acervo de visibilidade, que passa a exis- é que seus textos desvelem sua pesquisa.
tir a partir da presença da obra. Os proces- Quando escreve, Nuno produz poeticamente
sos artísticos objetivam destruir todo acordo falas que coincidem com seu trabalho como
apriorístico sobre o percebido, responden- artista visual. Com formação em Filosofia
do à complexidade perceptivo-afetiva que o pela Universidade de São Paulo, publicou
mundo apresenta hoje. Arthur Danto (2014), como escritor, O mau vidraceiro (2010), Ó
quando reavalia a forma como a história da (2008), Ensaio geral (2007), O pão do corvo
arte vinha sendo escrita até o surgimento da (2001) e Cujo (1993). Diz ele sobre seu papel
arte contemporânea sinaliza que não se trata como artista:
1 Katia Canton, Tempo e Memória, 12. O lugar do artista é fazer a vida não ter sen-
2 Poiética é aqui utilizada segundo a abordagem tido, é trair o sentido que é dado à vida. Dife-
de Rene Passeron, como um conjunto de estudos que rente da arquitetura, as artes visuais não res-
tratam da instauração da obra de arte. Ver Passeron, pondem a necessidades e funções da vida. Ela
La naissance d’lcare, Éléments de poiëtique générale,
1996.
deve se afastar da vida. O principal é entender
REVISTA ARTILUGIO - 2017 - Reflexiones 13
da pela chuva artificial. O que este diz sobre Interessa a Nuno Ramos criar imagens que
as paredes de um museu? Não seria, a pre- falem deste estado transitório. Imagens de
sença do trabalho em si, uma evidência de objetos que se decompõem, que são tomados
que aquele espaço possui uma infertilidade por um processo de deterioração lento, ele-
disfarçada pela intensa oferta de um centro mentos que são “engolidos” pelo devir. Par-
cultural? tindo deste princípio, Nuno Ramos procura
materializar essa mobilidade. O mundo está
Em Bandeira Branca (2010), Nuno instala,
em constante desestruturação. Para isso,
na Bienal de São Paulo, caixas de som que
concede a seus objetos características que
tocam trechos de “Bandeira Branca”, “Carca-
os dotam de aspectos quase orgânicos. Se
rá” e “Acalanto”, cantados por Arnaldo Antu-
cada tecido, cada órgão de nosso corpo tem
nes, Dona Inah e Mariana Aydar, respectiva-
funções específicas que formam um todo em
mente. As poesias das canções sobrepostas
constante movimento, Nuno transfere essa
fazem fundo a uma estrutura onde urubus
característica para suas obras. Há algo em
sobrevoam o vão central do pavilhão. Em co-
seus trabalhos que, se não está se movendo,
mum, são musicas cujas letras têm um so-
está prestes a se mover. É o caso de seus
turno, que difere do estereótipo do espírito
Quadros de 2006, onde a matéria da pintu-
brasileiro. Além das três canções, há também
ra é acumulada, depositada à exaustão no
uma clara citação da gravura Urubus (1925)
suporte, alcançando um estado de indiferen-
de Oswaldo Goeldi, declarada influência do
ciação, em que o corpo da pintura equivale
artista, já referenciado em outros trabalhos.
ao corpo do sujeito (SALZSTEIN, 2010).12
Assim como em Morte das Casas, o artista
cria aqui um ambiente onde a morte é um Para manifestar esse aspecto “vivo” em
contraponto de estranhamento e desconforto seus trabalhos, Nuno escolhe materiais e ele-
no espaço expositivo. mentos que sirvam como alegoria do devir.
Em casos como os de Morte das Casas onde a
água cai incessantemente, ou como os bulbos
3. Devir de Fungos que parecem mover-se lentamente
sobre os móveis dispostos em um espaço es-
Devir é nunca imitar, nem fazer como, nem pecífico, o artista articula o movimento atra-
se conformar a um modelo, seja de injustiça
ou de verdade. Não há um termo do qual se vés da manipulação dos materiais. O devir
parta, nem um ao qual se chegue ou ao qual também se manifesta na ruína, na decom-
se deva chegar. À pergunta ‘o que você devém’ posição e no desaparecimento, como nas já
é particularmente estúpida. Pois à medida que
alguém se transforma, aquilo em que ele se
citadas Ai!, pareciam eternas e Pagão. Inte-
transforma muda tanto quanto ele próprio. Os ressa a Nuno imagens de pantanais, animais
devires são fenômenos de núpcias entre dois apodrecendo, sólidos que afundam, tudo que
reinos.11 a qualquer momento pode desabar.13
Citação
Descontinuidade
Devir
Matéria
Linguagem
REVISTA ARTILUGIO - 2017 - Reflexiones 19
AUTOR
Jõao Paulo Andrade
Contacto: joaopandradesilva@gmail.com
Bibliografía
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución – No Comercial – Sin Obra De-
rivada 4.0 Internacional. https://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/