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Caderno de Textos
A classe trabalhadora no Brasil de hoje: o processo de reorganização (Marcelo Badaró Mattos)............................................................. 2
Século XXI: nova era da precarização estrutural do trabalho? (Ricardo Antunes)......................................................................................... 20
Um Novo Senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo (Roberto Leher)... 24
Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos (Dermeval Saviani)........................................................................................... 31
A educação jurídica para além da negação: elementos para uma ação docente contra-ideológica (Luís Henrique Orio)............ 42
A opressão e o machismo no sistema capitalista (Setorial de Mulheres da FENED)............................................................................................ 49
Mulheres e a assistência estudantil (Setorial de Mulheres da FENED)....................................................................................................................... 49
Carta de avaliação sobre o 33º Encontro Nacional de Estudantes de Direito (ENED - Parahyba) (Setorial LGBT da FENED)........ 50
Contra o racismo e o extermínio da juventude negra! Manifesto de Lançamento (Setorial de Negras e Negros da FENED)............ 52
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A classe trabalhadora no Brasil de hoje: muito gerais para aproximarmo-nos desse quadro. A primeira delas tem que
ser a do reconhecimento do predomínio absoluto do trabalho urbano na atual
o processo de reorganização composição da classe trabalhadora brasileira. Um dado relativamente recente e,
portanto, ainda mais relevante.
Marcelo Badaró Mattos
O Brasil possui hoje cerca de 190 milhões de habitantes.1 Dados de 2007
indicam que do total de 98.846.000 pessoas economicamente ativas, 82,6% mo-
Este texto tem um objetivo amplo. Procuro através dele me posicionar no ram nas cidades. Dos(as) 90.786.000 ocupados(as) no país, apenas 18,3% o es-
debate sobre a situação atual da classe trabalhadora no Brasil, tendo em vista tão em atividades agrícolas. Esse quadro contrasta profundamente com o perfil
as dimensões objetivas e subjetivas da classe. Ou seja, tomo a classe tanto na do país há algumas décadas atrás. Em 1940, só 31,2% dos 41.236.315 residentes
sua inserção no processo de produção, circulação e reprodução global do capi- no país vivia nas cidades. Foi nos anos 1960 que a população urbana ultrapassou
tal, quanto no seu papel de sujeito coletivo, que identifica interesses comuns e a rural. Em 1970, eram moradoras das cidades 55,9% das 93.139.037 pessoas re-
opostos aos de outra classe, organizando-se e mobilizando-se a partir desses in- censeadas. Isto implica reconhecer que a classe trabalhadora no Brasil é profun-
teresses, ou seja, desenvolvendo e expressando uma dada consciência de classe, damente concentrada no meio urbano, mas que essa concentração se produziu
como sujeito social e político coletivo. de forma dramaticamente rápida nas últimas décadas do século XX. O que traz
Para tanto, argumento em quatro partes. Na primeira, apresento alguns da- implicações para a vida urbana nos grandes centros, que cresceram muito em
dos que nos permitam avaliar o perfil da classe trabalhadora brasileira hoje, pouco tempo, vivendo todo o tipo de contradições sociais decorrentes desse in-
adiantando também alguns dados já disponíveis sobre o impacto da crise capi- chaço, como também para a experiência e cultura da classe, que possui enormes
talista em curso, nessa fase mais aguda, iniciada em fins de 2008. A segunda contingentes ainda fortemente marcados pela vida no campo, pessoal ou das
seção apresenta breves referências teóricas para o entendimento de a que me gerações ainda vivas da família. No que tange a esses e todos os demais dados
refiro quando trato da classe trabalhadora. Tais referências são fundamentais reunidos a seguir, as diferenças regionais são imensas e delas não conseguiría-
para minha forma de avaliar a trajetória recente dos movimentos e organizações mos dar conta em curto espaço.
da classe no Brasil, tratados no terceiro momento da análise e, especialmente, Entre os 159.361.000 habitantes com 10 anos ou mais de idade, 98.846.000
para a discussão sobre o processo em curso de reorganização, tema da quarta e são, como mencionamos, economicamente ativos, ainda seguindo os dados de
última parte do texto. 2007, para o país como um todo. Entre esses encontravam-se, 8.060.000 deso-
Cabe esclarecer que, dada a dimensão de síntese deste texto e seus propósitos cupados (dos quais 5.684.000 já haviam trabalhado antes e outros 2.375.000
de intervenção, muitas questões são apresentadas de forma sumária e análises procuravam seu primeiro emprego).
são desenvolvidas sem maior aprofundamento. Como venho trabalhando com Nas atividades agrícolas, 28,5% da população ocupada é considerada empre-
parte das questões aqui discutidas há muitos anos, apresento sempre que perti- gada (dois terços destes sem a carteira de trabalho assinada) e 24,7% são con-
nente referências a textos em que discuti com maior profundidade alguns dos siderados trabalhadores por conta própria, ou seja, mais de 50% é constituída
temas aqui abordados. de trabalhadores “sem-terra”. Os trabalhadores na produção para o consumo
próprio (camponeses típicos) são 23,5% e os não remunerados (inseridos na
I produção familiar, ou nas formas mais degradantes de exploração da força de
trabalho), respondem por 20,7% do total. Só 2,5% da população ocupada na ag-
O desafio de dimensionar a classe trabalhadora brasileira, sua inserção no ricultura é constituída por empregadores, ou seja, grandes e médios empresári-
mercado de trabalho, condições de trabalho, condições de vida, não pode ser os/proprietários rurais, principalmente.
vencido em algumas poucas páginas. Seguem-se apenas algumas indicações Não se estranha esse dado visto que o índice de Gini aplicado à concen-
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tração de terras em 2003 no Brasil era de 0,816, extremamente elevado para os teceram cerca de 1.100 assassinatos, as ameaças de morte foram cerca de 3.200
parâmetros internacionais (quanto mais próximo de 1, maior é a concentração e as tentativas de assassinato pouco mais do que 1.000.
registrada). Na comparação com 1992, este índice havia apresentado uma queda Passando para o meio urbano, em 2007, entre as 74.207.000 pessoas ocupa-
de apenas 0,1%, ou seja, dez anos de política de reforma agrária na década de das, 72,9% eram empregados, 20,4% por conta própria, 2,5% ocupados não re-
1990 não tiveram qualquer efeito na desigualdade da distribuição de terras.2 munerados e 4% empregadores. Entre os empregados, 23,6% não possuíam car-
Dados do período de governo de Lula indicam que entre 2003 e 2007 apenas teira de trabalho assinada, o que somado aos por conta própria significa cerca
163 mil famílias foram assentadas, o que equivale a menos de 30% das 550 mil de 44% de trabalhos precários. Outra forma de perceber a ausência de direitos
previstas no II Plano Nacional de Reforma Agrária. dos trabalhadores é observar que naquele mesmo ano 50,7% dos ocupados con-
No campo brasileiro, segundo os dados de 2003, a pequena propriedade tribuía para a previdência, portanto descontados os 4% de empregadores (que
(menos de 200 ha), embora representando 92,6% dos estabelecimentos agríco- em geral contribuem), constata-se que a maioria dos trabalhadores não o faz e
las, e empregando 86,6% dos ocupados no campo, respondia por apenas 28,4% está excluída, portanto, dos direitos previdenciários, podendo no máximo ser
da área ocupada, enquanto a grande propriedade (mais de 200 ha) representava atendida no futuro pela assistência social previdenciária.
35,1% da área total dos estabelecimentos agrícolas, mesmo respondendo por No tocante às taxas de desemprego, os dados do IBGE, que nitidamente
apenas 0,8% dos estabelecimentos e empregando somente 2,5% dos ocupados subestimam o total de trabalhadores desempregados, apontam para 8,5% de
rurais. Os 6,7% de médias propriedades, respondiam pelos outros 36,4% de área desempregados nas principais regiões metropolitanas do país em fevereiro de
ocupada e 10,9% de trabalhadores ocupados 2009. Desde 2003, a taxa mais alta registrada foi de 12% em 2004 e a mais baixa
Com uma maioria desprovida de terras e não coberta pela legislação trabal- de 6,8% em dezembro passado. A tendência de alta acelerada do desemprego é
hista, a população ocupada no campo se vê espremida pela grande propriedade, já efeito da crise atual. Pelos dados do DIEESE, percebe-se que a situação é mais
mesmo quando possui pequenos lotes de terra ou neles é empregada. Os resul- grave, registrando-se 13,9% de desempregados em fevereiro de 2009.4 Na in-
tados do processo têm sido cada vez mais mais visíveis, como a precarização dústria, os postos de trabalho vem diminuindo há 5 meses consecutivos, desde
completa das relações de trabalho rurais, a inviabilização da agricultura cam- outubro de 2008. Em decorrência desse quadro, os saques do FGTS e os gastos
ponesa (entendida como familiar e prioritariamente voltada para a subsistên- com seguro-desemprego vem batendo recordes desde o fim do ano passado.
cia), e a elevação da violência no campo. Somente o seguro-desemprego teve aumento de 25% de pedidos em janeiro e
Para se ter uma dimensão do grau de exploração da força de trabalho no fevereiro deste ano, quando comparados ao mesmo período do ano passado.5
campo, em 2008 foram libertados pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel Somando-se os cerca de 50% de ocupados sem carteira ou contribuição
do governo federal 5.244 trabalhadores submetidos a trabalho escravo. Desses, previdenciária, ou seja, sem cobertura de direitos do trabalho, aos 14% de de-
49% estavam em plantações de cana-de-açúcar, num crescimento significativo sempregados, temos uma idéia do grau de precarização das relações de trabalho
em relação a anos anteriores, quando a pecuária era responsável por quase e fragmentação da classe trabalhadora em seu contingente urbano, majoritário.
80% dos casos. Entre 1995 e 2005, o Grupo libertou 17.983 pessoas.3 Ou seja, o Mais chocante é a existência de 1.234.000 crianças entre 5 e 13 anos trabalhando
avanço do agronegócio (neste caso produção, cada vez mais para exportação, de no país em 2007 (cerca de 750 mil no campo), a imensa maioria sem remuner-
etanol) é acompanhado da intensificação das formas de exploração degradante ação.
da força de trabalho em atividades de ponta da economia rura Dados sobre a terceirização nos ajudariam a completar o quadro deste pro-
Quanto à violência no campo, os dados da CPT de 2006 mostram que naquele cesso de fragmentação e precarização. Não os encontramos na forma de estatís-
ano 39 trabalhadores rurais foram assassinados, 72 foram vítimas de tentativa ticas gerais. Mas, apenas para ilustrar a questão, podemos tomar como exemplo
de assassinato, 207 ameaçados de morte, 30 torturados, 917 presos e 749 foram o caso da Companhia Siderúrgica Nacional, de Volta Redonda, privatizada no
agredidos e/ou feridos. Nos vinte anos compreendidos entre 1986 e 2006, acon- início dos anos 1990. Em 1989, antes da privatização, a empresa empregava 23
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mil trabalhadores, hoje ela emprega 8 mil. Há, porém, 9 mil trabalhadores de colaridade e longevidade. Embora o indicador de renda seja o PIB per capita
empresas terceirizadas prestando serviço na CSN, fora os contratos de forneci- (incapaz de captar a desigualdade na distribuição) este índice se transformou
mento e serviços que transferem para fora da empresa atividades que antes eram em referência e permite algumas comparações. Por exemplo, na comparação
realizadas em seu interior.6 Assim, mesmo que fechemos nosso olhar sobre os internacional percebe-se a posição negativa do Brasil, mesmo quando confron-
trabalhadores ocupados e com carteira de trabalho assinada, a precarização é tado aos países vizinhos, com um IDH geral nacional inferior ao da Argentina,
também uma realidade. Chile, Venezuela e superior apenas ao do Paraguai na América do Sul. Com
Quanto à distribuição desses trabalhadores urbanos por setores econômicos, 0,807 de IDH, o Brasil estava em 2006 na 70a. posição no ranking mundial
os dados do IBGE dificultam um cálculo preciso, por destacarem os técnicos de organizado pela ONU, contrastando com sua economia, entre as 10 maiores
nível médio (7,6% do total de ocupados em 2007) e “profissionais das ciências e do mundo. Este indicador nacional é, ainda assim, extremamente enganoso.
artes” (6,8% em 2007), que são em sua maioria assalariados, dos demais trabal- Quando adentramos às regiões metropolitanas percebemos porque. Na área do
hadores. Entre os restantes, apurou-se em 2007 que 8,5% estavam empregados Grande Rio, por exemplo, com seus quase 12 milhões de habitantes, o IDH da
em serviços administrativos, 19,9% nos demais serviços, 10% no comércio e cidade do Rio de Janeiro era de 0,842 em 2000, mas o de Japeri era de 0,724. E
23,3% na produção e reparos de bens e serviços. na grande cidade, o contraste se torna ainda mais evidente. Na cidade do Rio de
No que tange ao grau de instrução, 8,4% dos ocupados em 2007 não possuía Janeiro, o IDH do bairro nobre da Gávea é de 0.970. Já na favela de Acari, este
sequer um ano de formação escolar, 10,3% possuíam até três anos de escolari- índice cai para 0,720.
dade, 24,7% de 4 a 7 anos, 17,2% de 8 a 10 anos e 39,1% de 11 a mais anos. Focando nos indicadores de habitação, o Ministério das Cidades aponta para
Já quanto à renda, os dados de rendimento mensal médio da população com um déficit habitacional de 7.935.000 moradias, sendo 6.543.000 nas cidades,
mais de 10 anos de idade (quase 160 milhões de pessoas em 2007), indicam pelos dados estimados para 2006. Ou seja, mais de 30 milhões de brasileiros
que 23,9% recebia menos de 1 salário mínimo, 28,9% possuía renda de 1 a 3 vivem mais diretamente o problema da falta de moradias no país. Daí que não
salários mínimos e 10,8% renda de 3 a 10 salários mínimos. Quando o dado seja difícil explicar que em 2000, o Censo do IBGE registrasse 612 favelas em
gênero é levado em conta, temos um indicador preciso de como a desigual- São Paulo e 513 no Rio de Janeiro, concentrando cerca de 20% da população
dade de renda fundamental entre trabalhadores e empregadores é agravada pe- total da cidade.
las desigualdades secundárias. Entre os homens, 20,3% possuíam renda média Diante deste quadro, cabe especular sobre as formas utilizadas pelo Estado e
inferior a um salário mínimo, já entre as mulheres, este índice subia a 27,4%. A as classes dominantes no Brasil para conter o potencial explosivo que tomadas
desigualdade racial também deve ser levada em conta. Não localizei dados mais em si as condições de elevada exploração da classe trabalhadora e suas con-
recentes, mas uma pesquisa do DIEESE, de 1998 mostrava que o rendimento dições precárias de vida poderiam gerar. Aqui abordaremos rapidamente três
mensal médio dos trabalhadores negros em São Paulo era de R$ 512,00 (em níveis de estratégias de “contenção” empregadas pelas classes dominantes.
valores da época), contra R$ 1.005,00 dos não negros. Cruzando as opressões a O primeiro deles é o da violência institucional, ou a dominação mantida pela
situação é mais grave, pois o rendimento médio das trabalhadoras negras, seg- coerção mais extrema. Na cidade do Rio de Janeiro, espaço em que o quadro
undo a mesma pesquisa, caía a R$ 399,00. Algo perceptível também nas taxas de violência institucionalizada é mais visível, entre 1978 e 2000, 49.900 pessoas
de desemprego, pois no mesmo ano e região metropolitana, os homens negros foram mortas de forma violenta, mais do que em toda a Colômbia, país em
tinham taxas de 50% maiores às dos brancos e as mulheres negras 20% superi- guerra civil, no mesmo período. Muitas dessas mortes foram responsabilidade
ores às taxas de desemprego das mulheres brancas.7 dos agentes do Estado que deveriam ser os encarregados da “segurança” pública.
Passando das condições de trabalho às condições de vida, não há um único A polícia do Rio de Janeiro registrou 902 “autos de resistência” em 2007(mortes
indicador que possa resumir todos os aspectos envolvidos. Podemos partir do que a polícia declara terem se dado “em confronto”, mas que na maior parte das
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que combina taxas de renda, es- vezes em que o laudo é divulgado foram resultantes de disparos a curta dis-
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tância, muitas vezes na nuca), quase o quádruplo do apurado em 2000. Foram de penetração no imaginário dos trabalhadores, os mais evidentes deles con-
5.030 pessoas eliminadas por policiais entre 2000 e 2007 na cidade.8 Em São stituídos pelos grandes monopólios jornalístico-rádio-televisivos do país. Via
Paulo, somente no primeiro semestre de 2008 os policiais militares em serviço manchetes, telejornais ou telenovelas, tanto faz, que constantemente apresen-
mataram 206 pessoas (21% a mais que no mesmo período do ano anterior).9 tam as favelas e periferias como foco do crime e do perigo urbano – espal-
Uma segunda estratégia é a da contenção pela assistência. Sabemos que desde hando o medo que gera o apoio, quando não o clamor, pela repressão sobre seus
meados da década de 1990 0 Banco Mundial e outros organismos multilaterais, moradores –, assim como “demonstram” a inviabilidade das políticas públicas
avaliando os efeitos sociais desastrosos das políticas neoliberais implementa- universais (educação, saúde e previdência, em especial) e, em contrapartida,
das, seguindo suas orientações, nos países periféricos, passaram a recomendar valorizam a “responsabilidade social” do empresariado, a iniciativa da “socie-
políticas sociais mais incisivas, mas aplicadas de forma focalizada. Ou seja, ao dade civil” e o empreendedorismo de alguns que saíram “de baixo” e alcançaram
invés de garantias de direitos universais aos quais todos os cidadãos teriam o sucesso por seu “esforço”, como as saídas para os males sociais do país.
acesso, políticas de assistência social para os setores mais pobres da população, Do ponto de vista das condições objetivas até aqui apresentadas, e dos es-
segundo critérios os mais rebaixados de cálculo da miserabilidade. Se o governo forços das classes dominantes para estabelecerem e perpetuarem a sua domi-
Fernando Henrique anunciou políticas desse tipo e implementou-as de forma nação, o que se pode concluir sobre a classe trabalhadora? Antes de mais nada,
bastante limitada (com o Programa Comunidade Solidária e o Bolsa Escola), o que ela existe e se expande no Brasil recente. Além disso, que seu perfil atual
governo Lula partiu dessa base para ampliar tais políticas focalizadas para um é majoritariamente urbano, com distribuição percentual de cerca de 25% na
patamar de massas, com o programa Bolsa Família. O programa, que atende produção e o restante nos serviços e, em menor escala, no comércio. As for-
famílias com renda per capita mensal média de R$120,00, atende hoje a mais mas de exploração contemporânea evidenciam a precariedade dos empregos e
de 10 milhões e 500 mil famílias, num total de 15 milhões e 700 mil famílias ca- o desemprego elevado, agravados pelos baixos salários, em indicadores que se
dastradas. Ou seja, mais de 40 milhões de pessoas são diretamente atingidas por tornam ainda mais negativos para os contingentes feminino e negro da classe.
uma política de governo que deposita mensalmente um auxílio mínimo de R$ Do ponto de vista das condições de vida, miséria e violência cercam grande
62,00. Um fator nada desprezível a explicar os elevados índices de popularidade parte dos trabalhadores.
do governo e a forma como Lula foi eleito em seu segundo mandato, invertendo Tais dados significam uma desagregação tão ampla que permita falar em
a votação tradicional que caracterizou sua candidatura em eleições anteriores uma perda do caráter de sujeito social e de seu potencial de ruptura com a or-
(antes recebia mais votos nas grandes cidades e no Sul-Sudeste, em 2006 cresceu dem do capital? Pensamos que não. Para avaliar melhor essa dimensão subje-
nas pequenas cidades do interior e no Nordeste). tiva, porém, é necessário ter em conta outros fatores. Antes de apresentá-los,
Uma terceira estratégia, não desprezível é a do investimento ideológico nas parece-me adequado situar teoricamente minhas referências sobre o conceito
propostas de empreendedorismo, empregabilidade, inserção social, responsa- de classe trabalhadora, para que se possa compreender a partir de que pressu-
bilidade social, entre outras, na maior parte das vezes feito diretamente pelos postos respondi negativamente a essa questão.
grandes grupos capitalistas, através de fundações privadas, ONGs e entidades
empresariais. Há no Brasil, segundo dados de 2002, 275.895 instituições clas-
sificadas como sem fins-lucrativos, um contingente expressivo delas focado em II
difundir tais propostas e implementar projetos que tem como substrato último
a idéia de que a saída para os problemas dos trabalhadores está no seu esforço A primeira observação que gostaria de fazer em relação a ao conceito de
individual para adequar sua ética ao modelo empresarial da competitividade e classe trabalhadora que orienta as análises e propostas que estou apresentando
produtividade. aqui é de natureza terminológica. Nas línguas latinas tendemos muitas vezes a
Todas essas estratégias encontram canais de difusão com enorme capacidade traduzir (e as citações que reproduzirei a seguir incorrem nesse equívoco) a ex-
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pressão alemã empregada por Marx arbeiterklasse, ou o correlato inglês work- política,nos quais explica os mecanismos de exploração da classe em relação
ing class, por classe operária. Tal tradução aparece muitas vezes associada à idéia com o processo de valorização do capital (a produção da mais-valia), Marx
de que o verdadeiro sujeito revolucionário é o operário industrial – trabalhador nunca a restringiu ao operariado industrial, nem através de uma associação re-
produtivo, que sofre a subsunção real ao capital decorrente da interação com a stritiva com os submetidos à subsunção real, nem tampouco por uma definição
moderna tecnologia empregada na grande indústria. que fechasse a classe no setor produtivo e este também não foi definido como
Daniel Bensaid percebe os problemas desse emprego de um vocabulário res- restrito aos trabalhadores industriais. Podemos perceber isso no chamado
tritivo para fazer referência à classe: “Capítulo inédito” d’O Capital. Ali, Marx define a subsunção formal e a subsun-
“No século XIX, falava-se em classes trabalhadoras, no plural. O termo ção real do trabalho ao capital. Associando a primeira forma à mais-valia (ou
alemão Arbeiterklasse ou a expressão inglesa working class continuam extre- mais-valor) absoluta e a segunda à mais valia relativa, Marx procura demon-
mamente genéricos. “Classe ouvrière”, dominante no vocabulário francês, tem strar que o processo se inicia pela subordinação direta dos trabalhadores aos
uma conotação sociológica propícia a equívocos. Ela designa principalmente o capitalistas, quando estes passam, na condição de proprietários/possuidores dos
proletariado industrial, com exceção do assalariado de serviços e de comércio, meios de produção, a controlar o tempo e as condições de trabalho daqueles,
que se submete a condições de exploração análogas do ponto de vista de sua que foram reduzidos à condição de proletários. O passo seguinte, da subsunção
relação com a propriedade privada dos meios de produção, de seu lugar na di- real, apresenta-se como decorrência da acumulação propiciada pela etapa an-
visão do trabalho ou da forma salarial de sua renda. Marx fala de proletários. terior, e materializa-se pela “aplicação da ciência e da maquinaria à produção
Apesar de seu aparente desuso, o termo é ao mesmo tempo mais rigoroso e mais imediata”.13
abrangente do que classe operária. Nas sociedades desenvolvidas, o proletariado No mesmo texto, Marx apresenta a distinção entre trabalho (e trabalhador)
da indústria e dos serviços representa de dois terços a quatro quintos da popu- produtivo e improdutivo: “só é produtivo aquele trabalho – e só é trabalhador
lação ativa.”10 produtivo aquele que emprega a força de trabalho – que diretamente produza
Marx não distinguiu sempre de forma muito precisa a terminologia com mais-valia; portanto, só o trabalho que seja consumido diretamente no processo
que se referiu à classe, mas dois são os termos fundamentais que encontramos de produção com vistas à valorização do capital.”14 Associando as duas distin-
em sua obra: proletariado e classe trabalhadora. Por proletariado podemos en- ções, Marx vai afirmar que com o desenvolvimento da subsunção real, “não é
tender todos aqueles que nada possuem, ou melhor, não possuem outra forma o operário individual, mas uma crescente capacidade de trabalho socialmente
de sobreviver, numa sociedade de mercadorias, do que vender também como combinada que se converte no agente real do processo de trabalho total”, não
mercadoria a sua força de trabalho.11 Por classe trabalhadora, um sinônimo para fazendo sentido, pois, buscar o trabalhador produtivo apenas entre os que de-
proletariado, normalmente associado ao conjunto daqueles que vivem da venda sempenham as tarefas manuais diretas.15
da sua força de trabalho, quase sempre através de um salário. Indo além, não é o conteúdo do trabalho desempenhado, nem o setor da
Definindo o processo de proletarização como chave para o entendimento economia em que se desempenha esse trabalho que definirá o caráter produtivo
da acumulação primitiva de capital – “ o processo histórico de separação entre do trabalho ou do trabalhador. Por isso Marx faz questão de exemplificar o tra-
produtor e meios de produção” –, Marx explica a formação de uma classe de balho produtivo com figuras como a do artista, ou do professor, embora recon-
trabalhadores “livres como pássaros” como decorrente de um longo e violento hecendo que eram exemplos em que a subsunção ao capital ainda era formal:
movimento de expropriação, marcado por momentos em que “grandes massas “Uma cantora que entoa como um pássaro é um trabalhador improdutivo.
humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência Na medida em que vende seu canto, é assalariada ou comerciante. Mas, a mesma
e lançadas no mercado de trabalho como proletários”.12 Da expropriação à ex- cantora, contratada por um empresário, que a faz cantar para ganhar dinheiro,
ploração, eis o caminho histórico de formação da classe. é um trabalhador produtivo, já que produz diretamente capital. Um mestre-
E ao tratar da classe trabalhadora em seus textos de crítica da economia escola que é contratado com outros, para valorizar, mediante seu trabalho, o
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dinheiro do empresário da instituição que trafica com o conhecimento, é tra- vez, uma classe dominada e explorada assumisse consciência de sua exploração.
balhador produtivo.”16 A elaboração teórica dos dois era fruto disso. Michel Lowy mostra como a
E se o caráter produtivo do trabalho e do trabalhador não se define pelo fundação do materialismo histórico dos anos 1840 se explica pelas relações que
emprego na grande indústria (nem, portanto, pela subsunção real), tampouco a estabeleceram com o movimento dos trabalhadores na época: o cartismo inglês,
classe trabalhadora aparece como restringida aos que exercem trabalho produ- as revoltas de trabalhadores da Silésia, as organizações comunistas clandestinas
tivo. Pelo contrário, é a condição proletária e o assalariamento como horizonte de Paris; tanto quanto pela superação das bases filosóficas do idealismo alemão,
que a definem. Marx lembra, naquele mesmo texto, que nem todo trabalhador as bases da economia política clássica e do socialismo anterior.19 Ou seja, a
assalariado é produtivo, mas que mesmo os que exercem profissões antes as- questão das classes assumia uma dimensão política com potencial transforma-
sociadas a uma auréola de autonomia (como os médicos, advogados, etc.) cada dor. Se todas os conflitos sociais do passado revelavam a luta de classes como
vez mais se viam reduzidos ao assalariamento e caíam - “desde a prostituta até o dimensão essencial do processo histórico, agora a classe adquiria consciência de
rei” - sob as leis que regem o preço do trabalho assalariado.17 classe, algo que não se define em termos puramente econômicos, mas em sua
Recorro aqui novamente à análise de Bensaid que, comentando a concepção dimensão política, como Marx afirma em correspondência a Bolte:
ampla de classe presente n’O Capital, procura demonstrar como a partir de uma “O movimento político da classe operária tem como objetivo último, é claro,
visão de totalidade, da reprodução geral (ou ampliada) do Capital, como a de- a conquista do poder político para a classe operária e para este fim é necessário,
fine Marx, não há porque restringir a definição de classe ao trabalho produtivo. naturalmente, que a organização prévia da classe operária, elaborada na prática
Ou ainda, não há porque procurar pela classe trabalhadora apenas no processo da luta econômica, haja alcançado certo grau de desenvolvimento. Por outro
da produção capitalista, mas há que se entender que sua formação se completa lado, todo movimento em que a classe operária atua como classe contra as class-
na dimensão ampla da reprodução geral do capital, em todos os espaços – no es dominantes e trata de forçá-las ‘pressionando do exterior’, é um movimento
trabalho, nas condições de reprodução de sua vida, nos seus espaços mais amp- político. Por exemplo, a tentativa de obrigar, através das greves, os capitalistas
los de sociabilidade – em que os interesses e visão de mundo dos trabalhadores isolados à redução da jornada de trabalho em determinada fábrica ou ramo da
confrontam-se com os do capital. indústria, é um movimento puramente econômico; pelo contrário, o movimen-
“Não há, em O Capital, definição classificatória e normativa das classes, mas to visando a obrigar que se decrete a lei da jornada de oito horas etc., é um mov-
um antagonismo dinâmico que ganha forma, em primeiro lugar, no nível do imento político. Assim, pois, dos movimentos dos operários separados por mo-
processo de produção, em seguida, no do processo de circulação e, finalmente, tivos econômicos, nasce em todas as partes um movimento político, ou seja, um
no da reprodução geral. As classes não são definidas somente pela relação de movimento de classe, cujo alvo é que se dê satisfação a seus interesses em forma
produção na empresa. Elas são determinadas ao longo de um processo em que geral, isto é, em forma que seja compulsória para toda a sociedade. Se bem que é
se combinam as relações de propriedade, a luta pelo salário, a divisão do tra- certo que estes movimentos pressupõem certa organização prévia, não é menos
balho, as relações com os aparelhos de Estado e com o mercado mundial, as certo que representam um meio para desenvolver esta organização.20
representações simbólicas e os discursos ideológicos. Portanto, o proletariado A percepção da complexidade do conceito de classe pelo materialismo
não pode ser definido de modo restritivo, em função do caráter produtivo ou histórico deve levar a que não nos contentemos com uma dimensão da classe
não do trabalho, que entra somente no livro II de O Capital, sobre o processo para entende-la, pois que suas dimensões econômicas possuem um sentido am-
de circulação.”18 pliado (na produção, na circulação das mercadorias e na divisão desigual do
E se é complexa a questão das classes no capitalismo do ponto de vista das produto do trabalho, ou seja na reprodução ampliada do capital) e Marx nunca
relações econômicas, ainda mais complexa se torna se percebermos que em restringiu sua definição de classe a uma dimensão econômica, ao contrário, val-
Marx ela não se resume à dimensão econômica. O capitalismo apresentava, para orizou seu papel político, algo que só conseguia definir a partir da idéia de uma
Marx e Engels, um potencial novo, porque nele era possível que, pela primeira consciência de classe, cujo desenvolvimento não se dá isoladamente, mas na
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luta de classes. potencial da revolução social, que estamos falando, tanto quando nos referi-
Combinando essas questões, é interessante perceber como um dos melhores mos ao metalúrgico ainda empregado numa fábrica, quanto do catador de latas
leitores de Marx tratou de demonstrar a formação da classe trabalhadora – e das grandes cidades, assim como dos moradores de favelas e periferias que não
da sua consciência de classe – no período do fim do século XVIII e primeiras possuem nada além de sua força de trabalho para vender. E que continuam a
décadas do XIX, ou seja, numa época em que ainda predominava a subsunção ser expropriados (do solo rural, quando expulsos da terra, das ferramentas de
formal. Refiro-me a E. P. Thompson em seu magistral estudo sobre a formação trabalho, das condições de sobrevivência fora do mercado) e explorados, con-
da classe trabalhadora na Inglaterra.21 Algo que nos possibilita entender as re- frontando-se com o capital e o Estado, não apenas no local da produção, mas no
flexões de Marx e Engels desde a década de 1840 como produzidas a partir e, mercado em que consomem e no processo de reprodução ampliada do capital,
cada vez mais, no interior do próprio movimento de formação da classe e de do qual participam, mesmo quando desempregados ou subempregados.
sua consciência, ainda que a classe em formação, naquela época, fosse extrema- No plano da consciência de classe, não há aparelho de medida confiável para
mente diferenciada, submetida a formas de exploração as mais violentas, sem aferi-la. Nem sequer é razoável pensar que a classe trabalhadora, como tal, possa
garantias legais de direitos em relação ao exercício do trabalho, em condições de existir sem consciência de classe.22 Há, porém, indicadores importantes, expres-
vida as mais degradantes. Portanto, não dependia da existência de grandes con- sos na capacidade organizativa e mobilizatória da classe, bem como no grau de
centrações de trabalhadores assalariados industriais – operários fabris – com comprometimento e/ou ruptura com o sistema do capital que as organizações e
empregos formais e garantias de direitos o potencial revolucionário da classe movimentos da classe denotam. É disso que pretendemos tratar agora.
que Marx descobriu na sua época. Por que dependeria hoje? Do ponto de vista das mobilizações da classe trabalhadora, há uma evidência
pouco discutível de recuo. Tomando as greves como indicadores, observamos
III que das quase 4.000 greves de 1989, ano de pico das mobilizações grevistas na
década de 1980, passamos a patamares médios de cerca de 700 greves anuais
Mas que conseqüências pretendo tirar desse tipo de reflexão conceitual? nos anos 1990. O fenômeno passou a ser tão secundário que o DIEESE, que
Combinado as dimensões empíricas com as teóricas, parto de uma análise do sempre manteve pesquisas sobre greves, interrompeu-as no fim da década de
momento histórico atual como sendo aquele em que: a classe trabalhadora vive, 1990. Retomando tais pesquisas em 2004, o Departamento encontrou perto de
em seu confronto com o capital, uma época histórica de derrotas, que se iniciou 300 greves em média nos anos seguintes (até 2007).23
por volta da primeira metade da década de 1970 em escala internacional e que Outros indicadores poderiam ser tomados em consideração, demonstrando
no Brasil se tornou mais visível a partir dos anos 1990. Tal derrota significou, que outras lutas da classe continuaram em curso. É o caso das ocupações de
do ponto de vista objetivo, uma maior precarização das relações de trabalho, terra, no campo, que cresceram na década de 1990 em comparação com os anos
ou seja, a retirada dos direitos (entendidos como limites à exploração) conquis- 1980. De 71 ocupações registradas em 1988, atingiu-se o pico de 897 ocupações
tados em momentos anteriores, quando a correlação de forças não lhe era tão em 1999, com um refluxo posterior para o patamar das 553 ocupações segundo
desfavorável. Significou também uma ampliação das taxas de desemprego e um o registro de 2006.24 Também nas cidades ocorreram ocupações de prédios e ter-
agravamento das condições de vida. Do ponto de vista da subjetividade coletiva, renos, mas num patamar bem inferior, do ponto de vista quantitativo, e bastante
a derrota teve por conseqüências principais o recuo do sentimento de perten- fragmentado, de tal forma que mesmo o seu registro é difícil. O que se constata,
cimento a uma coletividade social – a identidade de classe – e da identificação por exemplo, pela existência de apenas 16 ocupações registradas, entre 1993 e
com os projetos de transformação social orientados por uma perspectiva de 2008, pelo Observatório Permanente dos Conflitos Urbanos na Cidade do Rio
classe dos trabalhadores. Fragmentação, portanto, não apenas no nível obje- de Janeiro.25 A diferenciar as ocupações rurais das urbanas o fato de aquelas
tivo das relações de trabalho, mas também no plano da consciência de classe. se realizarem a partir da mobilização organizada por movimentos sociais com
No entanto, pensando nas referências de Marx, é da classe trabalhadora, sujeito inserção regional ou nacional, com destaque para o Movimento dos Trabal-
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hadores Rurais Sem-Terra, o MST. Já as ocupações urbanas quando foram or- tos deliberativos da Central e ampliaram a autonomia da direção. Um grande
ganizadas o foram por pequenos movimentos sociais, bastante fragmentados, conflito em torno da democracia interna no Congresso de 1991, resolvido com
ou diretamente por grupos não organizados em movimentos, ou ainda pela fraudes em votações e ameaças de racha, marcaria de vez o período em que a
ação de agenciadores informais de lotes urbanos não legalizados. De toda for- convivência interna já não seria mais pautada pelo consenso mínimo e a direção
ma, o peso numérico dos trabalhadores envolvidos é significativamente menor, da Articulação Sindical passava a se impor de forma politicamente excludente
mesmo no caso das ocupações rurais, que aquele mobilizado pelas greves dos sobre os demais setores.
anos 1980. Basta lembrar que as 118 greves registradas em 1978, ano que marca As manobras internas do setor majoritário para garantir o controle completo
a erupção do chamado novo sindicalismo, paralisaram 3 milhões de pessoas e da CUT antecederam em alguns anos o impacto maior da reestruturação produ-
apenas a greve geral de 1989 (a quarta registrada na década), mobilizou mais tiva no país. As conseqüências sociais da reestruturação – particularmente a
de 20 milhões de trabalhadores. Para efeitos de comparação, o ano de pico em precarização generalizada e o desemprego estrutural – criaram o caldo social
ocupações de terra – 1999 – registrou cerca de 120 mil famílias envolvidas, num propício para a virada na forma de intervenção da Central nos anos seguintes.
total estimado de 500 mil pessoas.26 Da perspectiva classista dos anos 1980 para o “participacionismo” da década
Passando a tratar das organizações, nos limites deste texto, proponho-me seguinte, a CUT passou a participar de espaços convocados pelo governo – o
a tocar, ainda que brevemente, na trajetória de três organizações:CUT, PT e “entendimento nacional”, de Collor em 1990, o “acordo da previdência” de 1996
MST.27 A começar pela CUT. Fundada em 1983, como culminância de uma série – e por governo e empresários, como as “câmaras setoriais”, entre 1991 e 1994.
de encontros (e rachas) intersindicais realizados desde o fim da década anterior, Também no início dos anos 1990, ainda no governo de Collor de Melo, a CUT
a CUT apresentou-se e cresceu, durante os anos 1980, afirmando a necessidade começou a integrar conselhos tripartites de administração de fundos e políticas
de enfrentamento com o capital – ou seja com a perspectiva “classista” da defesa públicas. O exemplo máximo das conseqüências desta integração da CUT aos
da autonomia da classe trabalhadora – e a defesa dos interesses imediatos (isto conselhos tripartites veio com a participação no CODEFAT, administrando os
é, econômico corporativos) e históricos (isto é, políticos no sentido do projeto recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, num processo em que a cen-
socialista, como se explicitaria nas suas resoluções congressuais). Esteve de fato tral se afundou cada vez mais na perspectiva de oferta de formação profissional
à frente das reconquistas dos sindicatos aos pelegos, das grandes mobilizações (aceitando a premissa da “empregabilidade” – trabalhadores estão desemprega-
da classe (como as greves gerais e a luta pelos direitos trabalhistas na Consti- dos por falta de qualificação), para receber quantias bastante significativas do
tuinte) e rejeitou, em seus primeiros anos de vida, os apelos governamentais e FAT para financiamento de cursos de “requalificação” profissional, agências de
empresariais pelo “pacto social”. emprego e cooperativas de trabalhadores, na mais plena aceitação da política de
A CUT, porém, desde sua origem, viveu divisões internas significativas, num emprego e renda do governo federal nos anos da gestão de FHC.
primeiro momento entre os grupos oriundos das “oposições sindicais”, mais O discurso que justificava tal integração era o de que os trabalhadores tin-
críticos da estrutura sindical e defensores da organização autônoma dos trabal- ham que disputar os recursos e verbas públicas com os empresários e de que
hadores a partir dos locais de trabalho e os “sindicalistas autênticos”, dirigentes a Central precisava ser “propositiva”, formular projetos alternativos – não só
sindicais que adotaram políticas mais independentes do governo e dos patrões resistir às políticas neoliberais – apresentando-se como representante dos tra-
e impulsionaram greves em suas categorias a partir do aparelho sindical oficial. balhadores não apenas na dimensão estritamente sindical, o que se batizou de
Com o passar dos anos a polarização interna acirrou-se, opondo de um lado a “sindicalismo cidadão”. O passo seguinte foi a integração de dezenas, depois
Articulação Sindical e seus aliados e de outro as correntes de esquerda (espe- centenas, de dirigentes sindicais aos conselhos gestores de fundos de pensão,
cialmente a CUT pela Base, mais tarde ASS e a Convergência Socialista, que nos principalmente de empresas estatais (como Previ e Petrus, por exemplo), que
anos 1990 comporia o MTS). Alterações estatutárias realizadas nos Congresso foram protagonistas do processo de privatização e continuam a ser alavancas
de 1986 e 1988 reduziram o peso da participação de delegados de base nos even- poderosas para a acumulação capitalista nos quadros atuais.
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Se a mudança de perspectivas da direção majoritária da CUT foi um proces- do governo, nas empresas estatais, nos seus conselhos de gestão e nos conselhos
so progressivo que antecedeu no tempo, mas encontrou o contexto necessário das empresas privadas com participação acionária do Estado ou dos fundos de
à sua efetivação no momento em que a reestruturação produtiva produzia seus pensão das estatais, ex-dirigentes cutistas passaram a encontrar um novo “habi-
resultados precarizadores e fragmentadores sobre a classe, um processo de du- tat natural”.
ração mais longa ajuda-nos a compreender como e porque se chegou a esse re- Não se deve estranhar, dado esse quadro, que, após diversas escaramuças, o
sultado. Trata-se da permanência da estrutura sindical corporativista, montada governo Lula, que se iniciou no plano do sindicalismo com o anúncio e o in-
nos anos 1930, que resistiu à Carta de 1946, ao golpe militar de 1964 e, apesar tenso debate em torno de uma “reforma sindical e trabalhista”, tenha chegado
de todo o discurso sobre autonomia do “novo sindicalismo”, foi mantida no es- ao seu segundo mandato com o avanço da retirada de direitos dos trabalhadores
sencial pela Constituição de 1988, aliás, sem grandes mobilizações contrárias (vide Lei de Falências e nova legislação para pequenas e médias empresas) e
por parte da CUT, em contrate com os milhões de assinaturas e caravanas de um aprofundamento do controle do Estado sobre os sindicatos, através de um
milhares levadas para pressionar pela aprovação dos novos direitos trabalhistas. Ministério do Trabalho comandado pelos varguistas do PDT e os arqui-pele-
Licença sindical, carreira sindical (do sindicato à federação, desta à confed- gos neoliberais (antes “inimigos” da CUT) da Força Sindical. Da proposta de
eração e/ou à Central), o uso dos recursos do imposto sindical, entre outros reforma sindical de 2003, restou o reconhecimento das centrais sindicais como
aspectos nítida e sabidamente (pelos próprios “autênticos”) burocratizantes, parte do sistema oficial, inclusive arrecadando sua parcela do imposto sindical,
passaram progressivamente de obstáculos a recursos naturalmente utilizados – a cujo fim se opuseram virulentamente. Por outro lado, as prerrogativas legais
sempre afirmando que para a mobilização, é claro! – para o “bem da categoria”. do Ministério em homologar/cassar registros se ampliaram e ameaças de reti-
Nada mais, literalmente, corruptor do que mecanismos deste tipo, cuja conse- rada da “legalidade” pairaram especialmente sobre sindicatos de tradição mais
qüência imediata é o afastamento objetivo entre os interesses das direções e o de combativa do funcionalismo público que, triste e sintomaticamente, passaram a
suas bases, caldo propício a todo tipo de transformismo político. priorizar o “reconhecimento do Estado” em suas pautas de mobilização.
Não é de se admirar, portanto, que a CUT abandonasse nos anos 1990 a A respeito do PT, o ponto de partida da análise pode ser justamente seu
proposta de construir uma nova estrutura sindical para adaptar-se cada vez parentesco direto com a CUT. Cronologicamente anterior, a fundação do PT
mais à existente, como o comprovou a filiação da CONTAG – a confederação também teve entre seus protagonistas principais os sindicalistas “autênticos”.
oficial dos trabalhadores da agricultura – à CUT, em 1995. O passo seguinte foi É verdade que acompanhados de outros setores, como a esquerda católica, in-
a proposta de constituição de um “sindicalismo orgânico” à central. Finanças telectuais em oposição à ditadura e alguns dos grupos de esquerda que, frag-
centralizadas na direção nacional da CUT e sindicatos constituídos desde os es- mentados e de pequenas dimensões, continuavam existindo após mais de uma
tatutos como parte da estrutura da central, numa proposta claramente inspirada década de repressão feroz. Mas o fato é que também no PT logo se formaria
no modelo europeu, que aliás vinha sendo tomado como exemplo (e financia- uma direção majoritária, inicialmente reivindicando para si o papel de “PT das
dor de políticas como a de formação da central) desde os anos 1980, eram os origens” em contraposição às “tendências” (identificadas como os grupos de es-
aliceces do modelo proposto. A filiação da CUT à CIOLS, em 1994, mostrava querda socialista), para em meados da década de 1980 assumir-se como tendên-
que a Central era agora “organicamente” ligada àquele modelo. cia – a “Articulação dos 113”, mais tarde Articulação.
Todo este quadro tem sua culminância no governo de Lula da Silva, quando a Também no PT é possível dizer que até o início da década de 1990, a Ar-
vinculação da central ao governo tornou-se evidente. O Presidente da Repúbli- ticulação dirigiu o partido com algum grau de consenso interno, cimentado
ca indicou o candidato a presidente da CUT, que acabaria eleito, em 2003, Luiz pela força inconteste da figura de Luís Inácio Lula da Silva, candidato derrotado
Marinho. No ano seguinte, indicou-o para comandar o Ministério do Trabalho. por pequena margem de votos nas eleições presidenciais de 1989, quando se
A tarefa pareceu tão natural que o presidente da CUT apenas se licenciou de apresentou para a disputa com um programa que, embora distante de uma agi-
suas funções para assumir o cargo de Ministro. Em cargos dos diversos escalões tação revolucionária, representava a sistematização do acúmulo de propostas e
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reivindicações de uma década de lutas da classe (ruptura com a dívida externa por uma crescente ocupação de espaços institucionais pelos representantes do
e os organismos financeiros internacionais, reforma agrária sob controle dos partido, eleitos para legislativos federal, estaduais e municipais e para os ex-
trabalhadores, estatização do sistema financeiro, política de recuperação sala- ecutivos municipais e estaduais. Em governos, os petistas passaram a defender
rial e redução da jornada de trabalho, entre outras propostas de fundo “clas- slogans consonantes com suas novas práticas, como “governar para todos”. Os
sista e combativo” para empregar o jargão da época). 1989, pelos acontecimen- cargos na administração pública e nos gabinetes parlamentares passaram a ser
tos internacionais relacionados ao colapso dos regimes do Leste Europeu, mas valorizados como forma de sustentação e crescimento da estrutura das tendên-
principalmente em face da derrota de Lula, abre o caminho para a virada pro- cias partidárias e fortalecimento das posições de seus ocupantes nos debates
gramática progressiva do partido. internos do partido. Se na CUT dos anos 1990, 90% dos tomadores de decisão
Se é verdade que na origem o PT afirmava-se socialista, sempre adiou um (os que participavam dos Congressos) eram dirigentes/burocratas sindicais, no
posicionamento mais claro sobre o caráter de seu horizonte estratégico social- PT percentual bem semelhante de parlamentares, ocupantes de cargos no ex-
ista, quase sempre definido pela negativa – nem social-democracia, nem social- ecutivo e assessores passaram a controlar as convenções, encontros e congres-
ismo real do Leste – ou pelo fraseado de efeito de Lula, como “o socialismo que sos partidários, ditando uma linha de intervenção cada vez mais voltada para a
a classe trabalhadora brasileira construir”. O chamado Programa Democrático- institucionalidade e distante dos movimentos sociais que tinham impulsionado
Popular, que orientou a ação petista entre o fim dos anos 1980 e a campanha o partido nos seus primeiros dez anos de existência. Os escândalos de corrup-
presidencial de Lula em 1998 (em 2002 ele já havia sido abandonado na prática, ção de petistas dentro e fora do governo, no primeiro mandato de Lula da Silva,
embora muitos militantes possam não o ter percebido), foi construído com base apenas confirmaram o que para os setores que perseveraram numa posição de
numa perspectiva de avanço ao socialismo por acúmulo de reformas estruturais autonomia já estava patente: o PT havia se transformado em mais um partido
pró-trabalhadores, através de um duplo caminho, de avanço das lutas sociais como outro qualquer do jogo parlamentar-institucional brasileiro.
e de conquista de governos e espaços institucionais. Rompia-se, em sua elabo- E, como qualquer outro, um partido que no governo governa segundo os
ração, com o etapismo das análises da esquerda comunista tradicional, assu- interesses das classes dominantes. Por convicção política e por compromisso
mindo (como o fazia desde os anos 1960 um setor da esquerda, representado direto – participando dos conselhos gestores de fundos públicos e privados,
inicialmente pela POLOP), que o Brasil era um país plenamente capitalista, mas bem como de estatais e empresas privatizadas , assim como governando esta-
não se excluía a possibilidade de alianças com setores da burguesia, como sem- dos e municípios “para todos” – os dirigentes da CUT e do PT já vinham de
pre o propuseram os comunistas. A parcela majoritária do partido o enxergou algum tempo entrelaçando seus interesses aos das classes dominantes, mesmo
neste programa um caminho social-democrata, ainda que sem o proclamar ex- que como sócios muito minoritários de seus negócios. Daí que o compromisso
plicitamente. Tendências internas de esquerda chegaram a enxergá-lo como a do governo Lula com o grande capital, especialmente no chamado “setor finan-
adaptação possível do “Programa de Transição” (na formulação de Trotsky). ceiro” e na produção de commodities, revelado na composição de seu primeiro
O rápido abandono de qualquer preocupação com o braço da mobilização so- escalão e no conteúdo de suas políticas, não possa ser tomado com espanto ou
cial, com total prioridade para a conquista de espaços institucionais pela via simplesmente classificado como uma “traição inesperada”.
eleitoral, somados à grande fluidez programática facilitaram bastante o trânsito Por fim, em relação ao MST, o balanço há que ser muito mais cuidadoso.
para propostas claramente social-democratas nos anos 1990, ou mesmo para a Aqui só podemos esboçar alguns elementos para esse balanço. Em primeiro lu-
aceitação de dogmas neoliberais no governo federal do PT, marcado por uma gar, conforme já mencionei, é preciso lembrar que enquanto o movimento sin-
efetivação de propostas da “Terceira-Via” ou “Social-liberalismo”, proclamadas dical em seu setor até ali mais combativo – identificado com a CUT – vivia um
por FHC, mas executadas com muito mais eficiência por Lula. nítido declínio mobilizatório na década de 1990, a luta dos sem-terra viveu seu
O governo federal, no entanto, não foi o primeiro espaço conquistado pelo momento de clímax, com o maior volume de mobilizações de sua história, o que
PT na sociedade política. Muito ao contrário, toda a década de 1990 foi marcada credenciou o MST a apresentar-se como principal referência de resistência aos
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governos neoliberais da época, algo simbolizado pela marcha nacional de 1997. calendários regulares de mobilizações e ocupações e investindo, de uma forma
Mas já na década atual, o movimento passou a encarar duas contradições que diferenciada em relação à tradição recente da CUT e do PT, em uma política na-
lhe são de certa forma estruturais. Uma delas diz respeito aos limites da proposta cional de formação, voltada principalmente para os militantes do movimento,
de reforma agrária nos marcos legais (desapropriação com indenização prévia) mas também aberta a militantes de outras frentes de luta, que vem gerando um
e de mercado capitalista (assentamentos com títulos de pequenas parcelas dis- importante acúmulo na constituição de quadros políticos da classe trabalhado-
tribuídos para as famílias e necessidade de enfrentamento da concorrência e dos ra capazes de formulação analítica e de intervenção política em bases de massas,
créditos de mercado para sustentar a agricultura de gêneros). Tal quadro intro- com um horizonte socialista evidente em suas formulações.
duz no movimento uma enorme dificuldade de manter a “identidade sem terra”, Face a estas condições específicas – mantém-se em luta e forma novos quad-
construída em anos de solidariedade e luta coletiva nas difíceis condições de ros com um perfil combativo – era de se esperar que o MST vive-se, como vive,
vida dos acampamentos, entre os assentados que, transformados em pequenos contradições profundas em suas relações com o PT, partido através do qual o
proprietários, tendem a buscar a acumulação privada – ainda que em condições movimento procurou irradiar as suas propostas e representar seus interesses.
adversas – rejeitando a organização coletiva da produção e buscando muitas Diante do transformismo petista e do óbvio vínculo do governo Lula com o
vezes a integração com um mercado dominado pela grande empresa capital- grande capital – incluído aí o agronegócio – não há como não criticá-lo e o MST
ista no campo (via cooperativas presas à cadeia produtiva do agronegócio ou o faz. Porém, a dependência objetiva de verbas públicas, mas também e, talvez
mesmo às sementes transgênicas disseminadas pelas multinacionais do setor). principalmente, a ausência de uma elaboração estratégica alternativa ao progra-
É justamente no caráter atual da grande propriedade no campo – o agron- ma democrático-popular petista (em alguns momentos mesmo ao seu rebaixa-
egócio – que reside o outro limite estrutural do movimento. Organizado para mento ao nível do nacional-desenvolvimentismo), explicitam-se na contradição
combater o “latifúndio improdutivo” o MST confronta-se hoje com uma grande de ainda assim orientar suas bases sociais para votarem em Lula e no PT.
propriedade que é tudo – destruidora do meio ambiente, grileira, utilizando até Desse rápido passeio pelas principais organizações construídas pela classe
mesmo o trabalho escravo – menos improdutiva. É fato que o movimento já desde o período final da ditadura fica uma avaliação obviamente negativa. Re-
incorporou esse dado em suas análises, mas a não ser pela ação das mulheres do fluxo das lutas, adaptação das lideranças e dos projetos à ordem, integração ao
MST e Via Campesina, que sistematicamente tem se enfrentado com o agron- governo, subordinação à lógica do capital são algumas das faces da tragédia
egócio, as ações tradicionais de ocupação de prédios públicos e terras em litígio recente dessas organizações.
continuam a dominar os calendários de luta do movimento.
Esses aspectos ajudam a entender o refluxo recente do movimento, mas no Reorganização?
governo de Lula da Silva outra questão há que ser levantada: a dependência
em relação ao Estado. Não apenas por conta da estratégia da pressão por de- É comum a muitos analistas a avaliação de que não apenas chegou ao fim o
sapropriações que dependem da ação do poder público, mas principalmente ciclo de lutas da classe trabalhadora iniciado com as greves do ABC em 1978,
porque neste governo avançou a captação de recursos, do Ministério do Desen- como também já não cumprem mais um papel histórico conforme a lógica de
volvimento Agrário aos da Educação e Cultura, por projetos (de educação rural, classe que as gerou, as organizações oriundas daquele ciclo, em particular o PT
formação técnica, cesta básicas para acampados, pólos de cultura, entre vários e a CUT. Não se pode, porém, afirmar com muita segurança que um outro ciclo
outros), amarrando em grande medida a sobrevivência da estrutura do movi- já se instaurou.
mento aos repasses de verbas públicas. Some-se a isso o fato de que as políticas Em primeiro lugar porque se são visíveis múltiplas e diferenciadas mobili-
sociais focalizadas (porém de massas) de Lula da Silva atingem boa parte da zações de frações da classe, tais lutas se dão de forma extremamente fragmen-
base potencialmente mobilizável pelo movimento. tada, sem maiores articulações e na ausência de qualquer direção unificada le-
Ainda assim, cabe ressaltar que o MST não abandonou a luta, mantendo gitimada pelos movimentos. Isso se deve a condições objetivas de fragmentação
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da classe, mas também a aspectos subjetivos. De um lado, muitos dos sujeitos delas deriva da forma como a Conlutas derivou diretamente da iniciativa de
desses movimentos acabam se identificando por aspectos parciais da sua con- um agrupamento político, o PSTU (ao qual farei referência mais detalhada logo
dição social (vizinhos na comunidade, vítimas de violência do Estado, oprimi- adiante), que enxergou na conjuntura aberta na década atual na América Latina
dos racialmente, entre outras identidades), ou mesmo pelo qualificativo que as um potencial de situações pré-revolucionárias, que não evoluíram em situações
políticas públicas focalizadas lhes atribuem: pobres. revolucionárias de fato pela ausência de organizações capazes de centralizar e
Por outro, mesmo quando a identidade de classe é marcadamente assumida, unificar as lutas. Na expectativa de que tal maré de mobilizações da classe atin-
a unidade não é simples. A falência da CUT e a virada do PT são traduzidas por gisse o Brasil acreditaram ser fundamental construir a ferramenta organizativa
uma parcela significativa dos movimentos atuais que mantém-se em perspec- capaz de cumprir tal papel no momento adequado. Assim, embora a Conlutas
tiva combativa como uma inevitabilidade do sindicalismo derivar em peleguis- possua hoje em sua composição interna outros setores políticos, sua direção
mo e do partido político significar dirigismo e institucionalismo. O que gera a continua a ser majoritariamente composta por militantes do PSTU, o que gera
ilusão “movimentista”, expressa nas proclamações de que o protagonismo das desconfianças entre parcela expressiva dos que se reuniram na Intersindical so-
transformações cabe diretamente aos movimentos, sem apresentar-se qualquer bre o caráter da Central e sua permeabilidade a outras leituras estratégicas.
perspectiva de unidade programática e prática que possa superar seu fraciona- Fatores secundários também são apresentados como obstáculos à unificação,
mento. como o debate em torno do caráter da nova organização: se uma central estri-
O problema maior, deste ponto de vista é que as “novas” organizações surgi- tamente sindical ou uma entidade que agregue sindicatos e outros movimentos
das como resposta à crise de representatividade classista das “antigas” não con- sociais e populares.
seguiram ainda responder positivamente ao desafio de se apresentarem como Mais limitador que o projeto que deu origem à Conlutas e à Intersindical,
realmente novas e contribuírem para a unificação dos movimentos, em torno ou suas diferenças em torno do modelo da nova central, é a pesada herança de
de direções legitimadas e um novo programa estratégico, que contribua positi- práticas sindicais desenvolvidas desde o tempo de militância na CUT. Assim,
vamente para a instauração um novo ciclo de lutas. se a esquerda da CUT (agora fora da central) criticava a falta de democracia
Do ponto de vista sindical, as experiências mais interessantes são os proces- interna a partir do momento em que a Articulação Sindical assumiu de fato
sos de constituição da Conlutas e da Intersindical, fundadas por setores sindicais o controle absoluto do jogo cutista, ao que parece, apesar de proclamações e
dissidentes da CUT. No caso da Conlutas, construída a partir de 2004 e fundada dispositivos estatutários, a participação das bases nas decisões dos novos or-
em maio de 2006, seu perfil é de uma central de sindicatos e movimentos soci- ganismos nasce profundamente comprometida pela manutenção de práticas de
ais. Reúne hoje, segundo informações imprecisas, cerca de 50 entidades sindic- direção cupulistas, como a de construção prévia do “acordo entre as tendências”
ais filiadas, além de outras organizações sociais e estudantis. Já a Intersindical, em todas as questões que possam ser submetidas a deliberação plenária. Numa
organizada pouco depois da Conlutas, possui perfil estritamente sindical e filia apreciação geral, a própria construção dessas organizações tem sido pautada,
um número menor de entidades. Para se ter uma idéia dos limites objetivos des- do alto, pelas tendências e organizações políticas e não, de baixo, pelas próprias
sas organizações hoje, a CUT filia atualmente 3.299 entidades, com 7.116.278 organizações de base da classe.
trabalhadoras e trabalhadores associados e 21.092.160 na base.28 Este número Da mesma forma, a relação com a estrutura sindical está longe de ser equa-
de entidades filiadas é bastante expressivo quando confrontado com o total de cionada no conjunto dos sindicatos que conformam estas novas organizações.
8.345 sindicatos de trabalhadores registrados no Ministério do Trabalho hoje Pesquisando as organizações de ponta de cada uma dessas entidades é possível
(6.060 deles urbanos), embora pouco represente em termos de capacidade de notar que, por mais que se caracterizem pela combatividade, mantém entre
mobilização, como procurei mostrar na seção anterior. seus dirigentes um baixo grau de renovação, possuem diversos “serviços” pre-
Está em andamento um debate sobre o processo de unificação dessas enti- stados pelo sindicato associados às velhas práticas assistenciais (colônias de fé-
dades. Desde 2004, porém, tal unificação esbarra em diversas dificuldades. Uma rias, farmácias, convênios médicos e etc.), e proclamam sempre, mas raramente
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apresentam, elevado grau de organização na base, através de comissões de tra- como portador de um discurso estreito e repetitivo.
balhadores nos locais de trabalho. O PCB possui uma longa e relevante história de atuação vinculada à classe
Já quanto às organizações partidárias, as dissidências do PT e outras organi- trabalhadora no Brasil. A legenda atual, porém, é extremamente diminuta,
zações de esquerda inseridas na classe trabalhadora com um programa socialis- pois surgiu após o X Congresso de 1992, que transformou o antigo PCB em
ta, são hoje ainda muito pequenas em suas dimensões, limitadas em sua capaci- PPS, abandonando os laços programáticos com o socialismo e a revolução. Os
dade de impulsionar lutas da classe e enredadas nas contradições herdadas da setores resistentes a tais transformações (análogas às que ocorriam em outros
própria cultura petista. Podem desempenhar, entretanto, um papel essencial, e países e mesmo em partidos de grande penetração social, como o PCI, que se
mais necessário do que nunca. Trata-se de demonstrar que existe sim uma es- converteu em PDS naquela conjuntura), conseguiram registrar novamente a
querda socialista que continua a apontar o caminho revolucionário, apresentan- legenda do PCB em 1995. Após 2005, o PCB reviu sua linha histórica de defesa
do-se como alternativa para os setores da classe trabalhadora decepcionados di- da etapa democrático-burguesa como fase prévia à revolução socialista no Bra-
ante dos rumos atuais do PT. O problema, é que as organizações partidárias sil, fez a crítica aberta do governo de Lula da Silva e, no ano seguinte, orientou
hoje existentes não se mostraram ainda à altura do desafio. seus militantes a se retirarem da CUT e a atuarem na Intersindical, convocando
Com funcionamento partidário nacionalmente articulado e intervenção nos um Encontro das Classes Trabalhadoras como caminho para a unificação dos
movimentos há hoje três partidos políticos que buscam ocupar esse espaço: o sindicatos combativos. Em 2006, compôs com o PSTU e o PSOL a Frente de
PSTU, o PCB e o PSOL. Começando pelo PSTU, trata-se do primeiro partido Esquerda que lançou a candidatura de Heloísa Helena à Presidência, embora
organizado a partir de uma dissidência do PT, constituído em 1994, após a ex- tenha adotado posição diferenciada dos outros dois partidos ao indicar apoio
pulsão/saída do grupo Convergência Socialista do PT. Na fundação o PSTU crítico a Lula no segundo turno daquele pleito.
reuniu militantes da Convergência, do PLP (organização de origem prestista, Com inserção nos movimentos sindical e estudantil, relativamente menor
atuando junto ao PDT nos anos 1980) e sindicalistas de esquerda que antes mili- que a do PSTU, o PCB é formado por uma militância com longa experiência
tavam associados à “CUT pela Base”. Logo, o PLP se afastaria da nova legenda e nas lutas sociais e possui quadros intelectuais com reconhecida capacidade de
os militantes oriundos da Convergência passaram a dirigir o partido de forma elaboração. Possui, porém, uma intervenção muito limitada a determinados
mais homogênea. Num balanço rápido pode-se dizer que o PSTU possui uma espaços regionais e de movimentos, não possuindo capacidade convocatória e
militância influente nos meios sindicais (as chapas da Convergência na CUT influência de massas.
chegavam a ter entre 10 e 20% dos votos nos anos 1980 e princípios dos 1990 e Entre as três organizações, o PSOL é a mais jovem e também a maior. Fun-
a Conlutas tem nos militantes do partido seu principal esteio hoje) e atua com dado em 2004, originou-se do impulso da greve nacional do funcionalismo
visibilidade no movimento estudantil. público, contra a contra-reforma previdenciária proposta e aprovada por Lula
De tradição trotskista e vinculado ao ramo morenista (com referência na em 2003, que encontrou voz institucional no grupo de parlamentares petistas
liderança argentina Nahuel Moreno), o PSTU possui uma intervenção política que se recusou a votar favoravelmente à proposta (a senadora Heloísa Helena e
claramente marcada pela defesa da saída revolucionária como única possível os então deputados Babá, Luciana Genro e João Fontes). Desde o segundo se-
para o socialismo. Porém, aferrado ao modelo do partido de quadros de van- mestre de 2003 iniciou-se um debate sobre a necessidade de um novo partido,
guarda, e a um programa revolucionário que traduz de forma muito direta a ex- do qual participou de forma ativa o próprio PSTU, porém pelas posições prévias
periência soviética de 1917 e as propostas de Trotsky no Programa de Transição de seus dirigentes e pelas prospecções de viabilidade de uma nova legenda pelas
para a leitura da realidade brasileira, o partido carece de uma formulação estra- correntes políticas dos parlamentares radicais (que se expressaram no impasse
tégica que responda às especificidades da trajetória histórica brasileira e esbarra do debate sobre partido centralizado x partido de tendências), a constituição do
muitas vezes em práticas de sectarismo que limitam sua capacidade de dirigir novo partido se deu em bases mais restritas.
efetivamente amplos setores da classe, sendo por estes muitas vezes identificado A expulsão dos parlamentares ditos “radicais” do PT deu início ao processo
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de formação do partido, que reuniu os grupos políticos ligados aos seus manda- revolucionária para alcançá-lo, na prática, as posições vitoriosas em seus es-
tos (MES e CST), a dissidência da DS (tendência interna do PT da qual partici- paços deliberativos reafirmam o Programa Democrático Popular que emba-
pava Heloísa Helena), um grupo dissidente do PSTU (o Coletivo SOL), figuras sou a reviravolta estratégica petista. Se os estatutos afirmam as bases para um
públicas petistas que acompanharam os expulsos e saíram do partido, como funcionamento democrático e militante, na prática tais estatutos são sistemat-
Milton Temer e os intelectuais Lenadro Konder, Carlos Nelson Coutinho, Fran- icamente desrespeitados, na fase de construção sob a justificativa da proviso-
cisco de Oliveira, Ricardo Antunes e Paulo Arantes, além de militantes sindicais riedade e hoje, pelos imperativos da prática e da “viabilidade”. Os núcleos não
do funcionalismo público que romperam em diferentes momentos com o PT funcionam, os momentos deliberativos tendem a ser dominados pelo “bloco
e a CUT e militantes de outros pequenos grupos de esquerda. No segundo se- majoritário” que se formou desde o primeiro congresso do partido em 2007,
mestre de 2005, com o seu reconhecimento legal pela justiça eleitoral, após cam- através de mecanismos de restrição à participação dos militantes de base ou de
panha nacional que recolheu mais de 500 mil assinaturas de apoio à sua criação, sua escolha pelo filtro das tendências majoritárias e no dia a dia do partido, os
o Partido recebeu a adesão de outros parlamentares dissidentes do PT (como parlamentares, mais que as instâncias, ditam a intervenção pública do PSOL.
Chico Alencar e Ivan Valente) e importantes figuras públicas daquele partido A luta institucional continua sendo claramente prioritária em relação
(como Plínio de Arruda Sampaio). à intervenção nos movimentos sociais e o eleitoralismo é ainda mais trágico
Na sua fundação, o PSOL apresentou-se como alternativa à experiência petis- porque nas campanhas eleitorais seus candidatos tem apresentado programas
ta, afirmando um compromisso com a estratégia socialista em um programa rebaixados ao simples combate à corrupção, a política de alianças vai sendo
ainda muito simplório e a perspectiva de funcionamento interno democrático, flexibilizada para acordos com partidos da ordem (e mesmo da base de susten-
com direito de tendências, nucleação de base, instancias decisórias controladas tação do governo) e até financiamento de grandes empresas multinacionais é
pela representação de base do partido e filiação apenas de militantes, compro- aceito sem espaço para questionamentos. Em suma, o PSOL percorre rapida-
metidos com a auto-sustentação do partido, que não aceitaria financiamento de mente, em cinco anos, o caminho que o PT demorou duas décadas para per-
multinacionais, empreiteiras e bancos para suas campanhas. correr e que, conforme denunciávamos quase que unanimemente na fundação
A aliança na campanha presidencial de 2006 resultou em uma votação de do novo partido, havia levado aquele partido ao bloco histórico hegemonizado
cerca de 8%, a terceira maior, para Heloísa Helena, demonstrando que o Bloco pelo capital.
de Esquerda formado com o PSTU e o PCB possuía alguma visibilidade elei- É nessas condições conjunturais que somos chamados a intervir no pro-
toral. Do ponto de vista da inserção nos movimentos sociais, o PSOL possui cesso de reorganização da classe. Correndo o risco de ser muito sumário e ex-
militantes na direção de diversos sindicatos engajados tanto na construção da cessivamente prescritivo, apresento a seguir algumas considerações sobre que
Conlutas quanto da Intersindical. Dirige uma parte significativa das organi- tipo de intervenção julgo mais adequada nos debates em curso:
zações estudantis das universidades públicas. Possui uma pequena participação 1) No plano dos movimentos sindical e “popular”:
no movimento de luta pela reforma agrária. Em cidades como o Rio de Janeiro a) devemos apostar seriamente no processo de unificação aberto nos debates
está inserido em movimentos sociais urbanos. Elegeu três deputados federais anteriores, mas encaminhado de forma mais definida a partir do FSM de Belém
e assumiu uma vaga no Senado em 2006/2007, possui deputados estaduais e no início de 2009, para construirmos uma central unitária dos lutadores da es-
elegeu alguns vereadores em 2008. querda socialista revolucionária;
Pelas suas dimensões e pelas expectativas criadas quando de sua con- b) tal central não pode se restringir ao movimento sindical, pois este hoje
strução, o PSOL é entre os três partidos aqui abordados o que possui maiores não tem capilaridade e capacidade de mobilizar o conjunto da classe em seu
responsabilidades em apresentar-se como alternativa à tragédia petista. Na sua atual perfil de heterogeneidade e participação. Experiências recentes, como a
curta vida, porém, tem demonstrado ser ainda muito mais herdeiro que dis- da Plenária dos Movimentos Sociais, no Rio de Janeiro, vêm se mostrando bem
sidente daquela tragédia. Se o seu programa oficial afirma o socialismo e a via sucedidas, apesar dos seus limites, em unificar setores sindicais combativos (da
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Conlutas e da Intersindical), setores do MST, movimentos urbanos diversifica- mas radicalizadas de greves setoriais, como as greves com ocupação de empresa
dos (de ocupações urbanas, contra a violência policial, contra as opressões de e sequestro de dirigentes (vide exemplo francês), também devem ser estimula-
gênero e racial, de cultura periférica, etc). Esta experiência localizada pode ser das;
uma boa referência para o que vem sendo chamado de uma central “sindical e g) porém, é visível que o grau de informalidade, precariedade e desemprego
popular”; da classe trabalhadora brasileira hoje não nos permite acreditar que as greves
c) Prefiro porém uma denominação mais próxima à idéia de central da classe sejam a única forma de luta ampla capaz de mobilizar a classe. Para usar uma
trabalhadora, pois pelos argumentos empíricos e teóricos que expus nas primei- imagem mais direta, temos que ser capazes de parar aqueles trabalhadores in-
ras seções deste texto, não distinguo movimentos sindical e popular como um dustriais, através dos “velhos” piquetes na porta da fábrica, mas também aque-
classista e outro inter-classista. Pelo contrário, tais movimentos são todos vin- les vendedores ambulantes que vendem bebidas aos que fazem os piquetes e
culados à classe, que sofre a exploração, a desigualdade, as opressões e a violên- ainda os catadores de latas que por lá passarão em seguida para recolher as lat-
cia de forma ampla, como amplo e sistêmico é o movimento de reprodução do inhas descartadas. Todos dessa pequena cadeia produtiva/reprodutiva são tra-
capital; balhadores subsumidos ao capital. Formas de luta eficientemente testadas por
d) Tal modelo, portanto, teria que ser distinto do de uma central estritamente movimentos sociais (especialmente os rurais como o MST) devem ser empre-
sindical, como a CUT e como defendem a maioria dos militantes da Intersindi- gadas, como as marchas e as ocupações. Experiências internacionais vizinhas e
cal. Mas também é diferente do modelo atual da Conlutas, que, principalmente de peso devem ser incorporadas às nossas práticas, como os “piquetes” de in-
por razões de garantia de maioria política, incorpora não só “movimentos pop- terrupção de vias públicas. Não são formas de lutas propriamente “novas”, mas
ulares” da classe, como o movimento estudantil que, embora seja um aliado sua combinação precisa ser mais que original, e eficiente em tocar os diversos
historicamente fundamental das lutas classistas e revolucionárias, possui com- setores da classe;
posição policlassista e natureza específica; h) para tanto, é preciso estabelecer um diálogo compreensível para o conjun-
e) Tal entidade deve ter como princípio intransigentemente respeitado a au- to da classe, que crie os canais de solidariedade entre os diferentes segmentos e
tonomia perante o Estado e o capital, o que se materializa pela recusa a par- movimentos. Do ponto de vista dos recursos, o movimento sindical é privilegi-
ticipar da estrutura sindical corporativista (a Central nunca poderia buscar ado e tem que partilhar seus meios de comunicação com os demais movimentos
“reconhecimento” no ministério do trabalho, por exemplo), numa perspectiva (abrindo as portas dos seus jornais, boletins e revistas para a vida da classe em
que tem que ser construída desde a base, com a recusa ao imposto sindical e à suas várias dimensões, sem fechar-se apenas no cotidiano de trabalho das cat-
perpetuação de dirigentes, a defesa da organização por local de trabalho o fun- egorias profissionais). Trata-se por exemplo de abordar as condições de vida e a
cionamento das instâncias organizativas que privilegie a representação direta violência institucionalizada nas favelas no jornal dos metalúrgicos, porque eles
de base e não o “acordo de tendências”. Nos movimentos sociais de natureza moram naqueles territórios ou em áreas vizinhas a eles e só os vêem retratados
não sindical, a recusa às armadilhas da intermediação ou parceria com o Es- pela imprensa burguesa nos seus noticiários, sempre de forma negativa. Isso só
tado ou entidades empresariais/ONGs afinadas com o ideário da salvação pela será eficiente se transformarmos também a linguagem da comunicação entre
via individual (formação profissional, agências de emprego, funcionamento por militantes e bases. Falar a língua da classe é algo que os militantes de esquerda e
projetos para captar financiamentos desses mesmos entes, “públicos” ou “pri- os sindicalistas em especial, com seu dialeto repleto de siglas e termos/conceitos
vados”) são princípios tão essenciais quanto nos sindicais para preservação da que parecem conhecidos de todos, parecem ter desaprendido com o tempo. É
autonomia e auto-organização da classe; preciso aprender com movimentos recentes, como o Hip Hop das periferias,
f) quanto às formas de luta, é essencial retomar a palavra de ordem da greve por exemplo, a usar e criar uma linguagem popular de novo tipo, comprometida
geral, em especial diante da conjuntura de crise, demissões, redução salarial, com a mobilização classista. É sintomático que as classes dominantes e o Estado
novo ímpeto do capital de avanço sobre os direitos dos trabalhadores etc. For- que as representa tenham percebido esse potencial e invistam pesadamente para
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domá-lo (vide a CUFA e suas relações com a Rede Globo e o governo federal). O organizativa, a do partido. Recuso uma relação partido-movimento em que o
exemplo do Hip Hop é também significativo sob o ponto de vista da criação de primeiro seja direção de vanguarda e o segundo correia de transmissão para as
formas de sociabilidade alternativas às construídas pelas forças do capital. Res- massas (o que leva muitas vezes a que o partido, não a classe, seja na prática o
gatar o sentido de pertencimento, a identidade, da classe não se fará sem a cri- sujeito estratégico da intervenção dessas organizações). Mas, reconheço que a
ação de espaços de sociabilidade e a construção de uma sólida cultura classista; tarefa de unificar as lutas dos diferentes movimentos em torno de um programa
i) Mas canais de comunicação e linguagem que estabeleça o diálogo devem que responda pela análise crítica da realidade e apresentação do caminho da
ser mobilizados para transmitir que propostas? Aqui se coloca o problema clás- revolução, sem desprezar as lutas imediatas, formando quadros, mobilizando
sico e tradicional para a classe trabalhadora da combinação das “reivindicações para as lutas gerais e construindo a auto-organização dos trabalhadores, de-
imediatas e históricas” (em outras palavras também da combinação entre refor- manda uma organização específica, cuja forma partido político foi a resposta
ma e revolução). O que demanda uma análise aprofundada das contradições da histórica encontrada pelos trabalhadores. Capacitá-la a rever os problemas do
realidade e um programa de intervenção que dê conta da combinação dialética passado e enfrentar os desafios do presente não é simples;
dessas dimensões. O momento atual, de exacerbação da crise capitalista exige g) Para tanto é preciso rever profundamente o programa democrático-
um equacionamento adequado desses problemas. Precisamos propor respostas popular que orientou o ciclo de intervenção PT/CUT e apontar seus limites,
imediatas para a crise: aumento do valor e do período de pagamento do seguro- que continuam a embaralhar a intervenção de diversas correntes e militantes,
desemprego; transformação dos programas de políticas sociais focalizadas em especialmente no PSOL. O novo programa de um novo ciclo de lutas terá de
políticas sociais universais (por exemplo, o Bolsa Família em seguro de renda ser necessariamente socialista em seu rumo estratégico, conforme a discussão
mínima a que todos tenham acesso se necessário); nenhum corte no orçamento sobre propostas acima desenvolvida apontou. Terá também de partir de uma
das áreas sociais; nacionalização sob o controle dos trabalhadores de todas as análise historicamente situada sobre as especificidades da realidade brasileira
empresas que demitem após receberem financiamentos públicos; nacionali- de país plenamente capitalista na atualidade e suas conexões com o capitalismo
zação dos bancos, responsáveis pelos surtos especulativos que foram o ponto de em sua dimensão mundializada. Na dinâmica de sua construção, deve simul-
erupção da crise; desapropriação sem indenização dos latifúndios do agronegó- taneamente, emergir das lutas da classe assim como orientá-las e estimulá-las,
cio que empregam trabalho escravo e/ou destroem o meio ambiente e desres- ou seja, o programa não está pronto em nenhuma vanguarda intelectual e par-
peitam territórios indígenas e quilombolas; redução da jornada de trabalho sem tidária;
redução de salários. Em todos esses exemplos sabemos que os limites colocados h) Um dos gargalos dessa nova elaboração estratégica é o dos caminhos da
pela atual fase de ofensiva do capital são muito claros e devemos alertar que intervenção político partidária. O desastre da estratégia petista já foi suficiente-
tais conquistas – mínimas em certo sentido – não serão viáveis no interior do mente analisado para que possamos afirmar com clareza que a intervenção in-
sistema do capital. Só a revolução socialista poderá concretizar tais tarefas, o stitucional/eleitoral nos marcos do regime da democracia burguesa é absolu-
que implica em ruptura com a institucionalidade burguesa (não acúmulo de tamente secundária em relação ao plano das lutas sociais. O partido de que a
posições em seu interior) e investimento na auto-organização dos trabalhadores classe precisa é o partido que está presente nas lutas, forma quadros para dirigi-
para construírem suas próprias bases para um outro poder de classe. O fato de las, apresenta propostas para sua unificação, acumulando forças nas vitórias e
sermos realistas na análise, assumindo que as condições atuais não apontam nas derrotas, e apontando sempre para a alternativa socialista;
na direção de uma resolução rápida desses dilemas, não pode nunca nos servir i) Isso não significa que o espaço eleitoral deva ser abandonado. Pelo con-
de justificativa para aceitarmos o rebaixamento programático e a idéia de que trário, é importante, desde que posto a serviço das lutas sociais e da defesa do
a burguesia nos fornecerá aliados ou espaços institucionais abertos à disputa; socialismo, sem qualquer concessão tático-imediatista à ordem com objetivos
2) No plano político-partidário de conquista de espaços. Por isso, a Frente de Esquerda, como unidade dos
j) a discussão acima sobre programa, nos remete a uma outra dimensão partidos socialistas no espaço eleitoral, foi um avanço e tal unidade deve ser
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preservada, pois isolados são absolutamente insuficientes para os desafios pos- IBGE, e podem ser acessados no sítio www.ibge.gov.br.
tos. Mas, ela só fará sentido com o claro objetivo de potencializar as lutas da 2 Estes e os demais dados sobre a questão agrária no Brasil foram retirados do ex-
classe e educar corações e mentes no caminho do socialismo. Algo que não cepcional trabalho de Eduardo Paulon Giradi, Atlas da questão agrária no Brasil, dis-
ocorreu em 2006, dada prioridade para o discurso de combate à corrupção e ponível em http://www4.fct.unesp.br/nera/atlas/index.htm, acessado em abril de 2009.
3 Ricardo Rezende Figueira (e outros), Trabalho escravo contemporâneo no Brasil,
o limitadíssimo programa nacional-desenvolvimentista montado pela cúpula
Rio de Janeiro, UFRJ, 2008, p. 61.
da campanha de Heloísa Helena-César Benjamin, em detrimento do acúmulo
4 Conforme as informações do sítio http://www.dieese.org.br/ped/metropolitana.
de debates no interior do PSOL e da Frente. Por isso, em 2008, nas eleições xml#, consultado em abril de 2009.
municipais, a Frente se desfez em diversos locais e o recuo programático e de 5 Folha Online, 15/03/2009.
princípios acabou sendo ainda mais grave nas candidaturas do PSOL. Reverter 6 Dados apresentado oralmente por Edílson Graciolli, professor da UFU, em março
esse quadro é uma tarefa imediata se quisermos apresentar uma campanha elei- de 2009.
toral em 2010 capaz de contribuir para a acumulação de forças real na direção 7 Conforme http://www.dieese.org.br/esp/negro.xml, consultado em abril de 2009.
do socialismo que defendemos. 8 O Globo, Rio de Janeiro, 27 de julho de 2008, p. 18.
j) Por outro lado, os mandatos conquistados (o que diz respeito particular- 9 Folha de São Paulo, São Paulo, 31/07/2008.
mente ao PSOL) e as estruturas partidárias devem estar direcionados para a 10 Daniel Bensaid, Os irredutíveis: teoremas da resistência para o tempo atual, São
intervenção concreta nas questões que afligem à classe. Campanhas e mobi- Paulo, Boitempo, 2008, p. 36.
11 Nos manuscritos de 1844, criticando a forma como a “economia nacional” (forma
lizações em torno do combate à corrupção pouco se distinguem do discurso
pela qual Marx se referia então à Economia Política clássica) associava o trabalhador
midiático da denúncia do Congresso e dos políticos em geral. Mas, a presença
ao animal que recebe apenas o alimento necessário para sobreviver, de forma a existir
nas ruas e no parlamento para denunciar as demissões, as formas mais precárias para trabalhar, definia o proletário pela ausência, como “aquele que, sem capital e sem
e odiosas de exploração do trabalhador, a violência de Estado contra a classe – renda da terra, vive puramente do trabalho, e de um trabalho unilateral, abstrato.” Karl
e particularmente sua juventude - nas favelas e periferias urbanas (a chamada Marx, Manuscritos econômico-filosóficos, São Paulo, Boitempo, 2004, p.30.
“criminalização da pobreza”), a repressão aos movimentos sociais combativos 12 Karl Marx, O Capital, vol.1, Tomo II (capítulo XXIV), São Paulo, Abril Cultural,
(a chamada “criminalização dos movimentos sociais”), tudo isso possui sim um 1984, p. 263.
potencial mobilizador contra a ordem que estamos hoje sub-aproveitando. 13 Karl Marx, O Capital, Livro I, Capítulo VI (Capítulo inédito),São Paulo, Ciências
Após esta lista longa – e ainda assim absolutamente insuficiente e apenas Humanas, 1978, p. 66.
arrolada como estímulo ao debate – de propostas e tarefas, não poderia concluir 14 Ibid., p. 70.
com qualquer chamada ufanista do tipo “a revolução se aproxima”, ou “até a 15 Ibid., pp. 71-72.
16 Ibid., p. 76. Marx utiliza o mesmo exemplo do mestre-escola para discutir o tra-
vitória final”. Estamos num momento difícil, em que apesar da crise em curso,
balho produtivo no capítulo XIV d’O Capital (sobre a mais-valia absoluta e relativa).
as forças do capital continuam a dominar a situação. Acredito, porém, que é
Karl Marx, O Capital, Vol. 1, Tomo II, São Paulo, Abril Cultural, 1984, pp. 105-106.
nesses momentos que os socialistas podem fazer a diferença, apontando para a 17 Ibid. p. 73.
alternativa com conseqüência em seus discursos e práticas. Um desafio imenso, 18 D. Bensaid, Os irredutíveis, p. 35. Ver também, a esse respeito Daniel Bensaid,
mas estimulante, para aqueles que se recusam a baixar as bandeiras e assistir a Marx o intempestivo:grandezas e misérias de uma aventura crítica (séculos XIX e XX),
história passar pela “telinha”. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1999, p. 158.
19 Michel Lowy,A teoria da revolução no jovem Marx, Petrópolis, Vozes, 2002.
Notas 20 K. Marx e F. Engels. Obras escolhidas. Lisboa, Progresso, s.d., p. 266.
21 E. P. Thompson, A Formação da Classe Operária Inglesa, Rio de Janeiro, Paz e
1 Os dados quantitativos que não apresentarem outra referência explícita são do Terra, 1987-1988, 3 vols.
19
22 Aceitamos aqui, como Marx na carta a Bolte anteriormente citada, que 28 Segundo as informações disponibilizadas em seu sítio, em http://www.cut.org.
há consciência de classe numa reivindicação política geral, ainda que nos br/content/view/2883/289/, acessado em abril de 2009.
marcos do sistema, como no exemplo por ele citado da luta pela proposta de
uma lei das 8h de trabalho. Trata-se aqui daquele nível da correlação de for-
ças políticas (e, portanto, da consciência de classe), que Gramsci define como Século XXI: nova era da precarização estrutural
um segundo momento (entre a fase econômico-corporativa e a do projeto he-
gemônico) da correlação de forças, “em que se atinge a consciência da solidar- do trabalho?
iedade de interesses entre todos os membros de um grupo social, mas ainda Ricardo Antunes
no campo meramente econômico. Já se põe neste momento a questão do Es-
tado, mas apenas no terreno da obtenção de uma igualdade jurídica com os
grupos dominantes, já que se reivindica o direito de participar da legislação, Nesta apresentação, vamos indicar três anotações que, articuladas, oferecem
e da administração, e mesmo de modificá-las e reformá-las, mas nos quadros uma leitura para alguns dos dilemas do trabalho neste século XXI.
fundamentais existentes.” Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, vol. 3, Rio
de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000, p.41. I - Uma nota inicial sobre os sentidos do trabalho: atividade vital ou fazer
23 Números mais precisos podem ser encontrados em Marcelo Badaró
compulsório
Mattos, Trabalhadores e sindicatos no Brasil, Rio de Janeiro, Vício de Leitura,
2001. E Balanço das greves em 2007, São Paulo, DIEESE, 2008.
24 Eduardo Paulon Girardi, Atlas da questão agrária brasileira, São Paulo, Na longa história da atividade humana, em sua incessante luta pela sobre-
Unesp, 2009, acessado em abril de 2009, no sítio http://www4.fct.unesp.br/ vivência, pela conquista da dignidade, humanidade e felicidade social, o mundo
nera/atlas/index.htm. do trabalho tem sido vital. Sendo uma realização essencialmente humana, foi
25 Conforme consulta realizada em abril de 2009, no sítio http://www.ob- no trabalho que os indivíduos, homens e mulheres, distinguiram-se das for-
servaconflitos.ippur.ufrj.br/novo/ajax/indexajax2.asp. mas de vida dos animais. É célebre a distinção, feita por Marx, entre o “pior
26 Não há como comparar, é claro, o grau de radicalidade de cada ex- arquiteto e a melhor abelha”: o primeiro concebe previamente o trabalho que
periência e seria descabido igualar um dia parado numa greve aos anos acam- vai realizar, enquanto a abelha labora instintivamente. (Marx, 1971) Esse faz-
pados das famílias envolvidas em ocupações. Os números apresentados visam er humano tornou a história do ser social uma realização monumental, rica e
somente ilustrar a abrangência social das mobilizações da classe. cheia de caminhos e descaminhos, alternativas e desafios, avanços e recuos. E o
27 Dado o caráter de síntese deste texto, remeto os interessados em maiores
trabalho converteu-se em um momento de mediação sócio-metabólica entre o
detalhes e nas fontes desta reflexão para outros textos que escrevi sobre a CUT
humanidade e natureza, ponto de partida para a constituição do ser social. Sem
e o PT. Sobre a CUT, entre diversos outros ver o capítulo final de Trabal-
hadores e sindicatos no Brasil ou Marcelo Badaró Mattos, “Sindicalismo bra- ele, a vida cotidiana não seria possível de se reproduzir.
sileiro hoje: as encruzilhadas da CUT”, In Contrapontos: ensaios de história Mas, por outro lado, se a vida humana se resumisse exclusivamente ao
imediata, Porto Alegre, Folha da História, 1999. Ou ainda Marcelo Badaró trabalho,seria a efetivação de um esforço penoso, aprisionando o ser social em
Mattos, Reforma sindical do governo Lula: enterrando com honras de Estado uma única de suas múltiplas dimensões. Se a vida humana necessita do trabalho
o novo sindicalismo, In Antítese, no. 1, Goiânia, 2005. Sobre o PT, as idéias humano e de seu potencial emancipador, ela deve recusar o trabalho que aliena
aqui retomadas foram melhor desenvolvidas na entrevista concedida a Fe- e infelicita o ser social.
lipe Demier (coord.), As transformações do PT e os rumos da esquerda no Vamos, então, explorar um pouco esse traço que estampa a contradição pre-
Brasil,Rio de Janeiro, Bom Texto, 2003. Ou no artigo Marcelo Badaró Mattos, sente no processo de trabalho. Dissemos acima que o trabalho, em sua reali-
Cristina Miranda & Roberto Leher, Conjuntura e novo partido, In Crítica So- zação cotidiana, possibilitou que o ser social se diferenciasse de todas as formas
cial, no. 4, Rio de Janeiro, 2006.
pré-humanas presentes, por exemplo, nos animais. Os homens e mulheres que
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trabalham são dotados de consciência, uma vez que concebem previamente o a ele mesmo: o homem estranha-se em relação ao próprio homem, tornando-
desenho e a forma que querem dar ao objeto do seu trabalho. Foi por isso que se estranho em relação ao gênero humano, como também nos mostrou Marx.
Lukács afirmou que o “trabalho é um ato de por consciente e, portanto, pres- (idem)
supõe um conhecimento concreto, ainda que jamais perfeito, de determinadas Porém, com o advento do capitalismo, houve uma transformação essencial
finalidades e de determinados meios.” (Lukács, 1978: 8). E outro grande autor, que alterou e complexificou o trabalho humano. Essa dupla dimensão presente
Gramsci, acrescentou que em qualquer forma de trabalho, mesmo no trabalho no processo de trabalho que, ao mesmo tempo cria e subordina, emancipa e
mais manual, há sempre uma clara dimensão intelectual. aliena, humaniza e degrada, oferece autonomia, mas gera sujeição, libera e es-
Anteriormente, Marx havia demonstrado que o trabalho é fundamental na craviza, impede que o estudo do trabalho humano seja unilateralizado ou mes-
vida humana porque é condição para sua existência social: “Como criador de mo tratado de modo binário e mesmo dual. A desconsideração desta complexa
valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de ex- e contraditória relação permitiu que muitos autores, equivocadamente, defend-
istência do homem, independentemente de todas as formas de sociedade, eter- essem a desconstrução ou mesmo o fim da atividade laborativa. Mas, por outro
na necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, lado, não foram poucas as mutações que o capitalismo introduziu no mundo
portanto, vida humana”. (Marx, 1971: 50). E, ao mesmo tempo em que os indi- da produção e do trabalho nas últimas décadas. Vamos, então, indicar a seguir
víduos transformam a natureza externa, alteram também a sua própria natureza algumas destas tendências.
humana, num processo de transformação recíproca que converte o trabalho so-
cial num elemento central do desenvolvimento da sociabilidade humana. II - Dimensões da precarização estrutural do trabalho
Mas, se por um lado, podemos considerar o trabalho como um momento
fundante da vida humana‚ ponto de partida no processo de humanização, por Sabemos que a partir dos inícios dos anos 1970, o capital implementou um
outro lado, a sociedade capitalista o transformou em trabalho assalariado, al- processo de reestruturação em escala global, visando tanto a recuperação do
ienado, fetichizado. O que era uma finalidade central do ser social converte-se seu padrão de acumulação, quanto procurando repor a hegemonia que vinha
em meio de subsistência. A força de trabalho torna-se uma mercadoria, ainda perdendo, no interior do espaço produtivo, desde as explosões do final da dé-
que especial, cuja finalidade é criar novas mercadorias e valorizar o capital. cada de 1960 onde, particularmente na Europa ocidental, se desencadeou um
Converte-se em meio e não primeira necessidade de realização humana. monumental ciclo de greves e lutas sociais. Foi nesse contexto que o capital, em
Por isso Marx vai afirmar, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, que o escala global, vem redesenhando novas e velhas modalidades de trabalho – o
trabalhador decai a uma mercadoria, torna-se um ser estranho, um meio da sua trabalho precário – com o objetivo de recuperar as formas econômicas, políticas
existência individual. O que deveria ser fonte de humanidade se converte desre- e ideológicas da dominação burguesa. Proliferaram, a partir de então, as distin-
alização do ser social, alienação e estranhamento dos homens e mulheres que tas formas de “empresa enxuta”,
trabalham. E esse processo de alienação do trabalho não se efetiva apenas no re- “empreendedorismo”, “cooperativismo”, “trabalho voluntário”, etc, dentre as
sultado na perda do objeto, do produto do trabalho, mas também o próprio ato mais distintas formas alternativas de trabalho precarizado. E os capitais utilizar-
de produção, resultado da atividade produtiva já alienada. O que significa dizer am-se de expressões que Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho - São
que, sob o capitalismo, o trabalhador não se satisfaz no trabalho, mas se degra- Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008 de certo modo estiveram presentes nas
da; não se reconhece, mas muitas se desumaniza no trabalho. (Marx, 2004) lutas sociais dos anos 1960, como controle operário, participação social, para
O trabalho como atividade vital se configura então como trabalho estranha- dar-lhes outras configurações, muito distintas, de modo a incorporar elemen-
do, expressão de uma relação social fundada na propriedade privada, no capital tos do discurso operário, porém sob clara concepção burguesa. O exemplo das
e no dinheiro. Estranhado frente ao produto do seu trabalho e frente ao próprio cooperativas talvez seja o mais eloqüente, uma vez que, em sua origem, as co-
ato de produção da vida material, o ser social torna-se um ser estranho frente operativas eram reais instrumentos de luta e defesa dos trabalhadores contra a
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precarização do trabalho e o desemprego. ninguém o assegura nos momentos de não-ocupação’”. (idem)
O que vem fazendo os capitais em escala global: criando cooperativas falsas, Dentre as distintas formas de flexibilização – em verdade precarização –
como forma de precarizar ainda mais os direitos do trabalho, quando não sua podemos destacar a salarial, de horário, funcional ou organizativa, dentre out-
destruição. Sabemos que as cooperativas originais, criados autonomamente pe- ros exemplos. A flexibilização pode ser entendida como “liberdade da empresa”
los trabalhadores, têm um sentido coletivo, em oposição ao despotismo fabril e para desempregar trabalhadores; sem penalidades, quando a produção e as
ao planejamento gerencial, sendo por isso um real instrumento de minimização vendas diminuem; liberdade, sempre para a empresa, para reduzir o horário
da barbárie, de luta e ação contra o desemprego estrutural, consistindo também de trabalho ou de recorrer a mais horas de trabalho; possibilidade de pagar sa-
num efetivo embrião de exercício autônomo da produção coletiva dos trabal- lários reais mais baixos do que a paridade de trabalho exige; possibilidade de
hadores. Na fase capitalista das megafusões, os capitais denominam como “co- subdividir a jornada de trabalho em dia e semana segundo as conveniências das
operativas” verdadeiros empreendimentos patronais para destruir direitos so- empresas, mudando os horários e as características do trabalho (por turno, por
ciais do trabalho. Muito diferentes das experiências de cooperativas feitas pelo escala, em tempo parcial, horário flexível etc.), dentre tantas outras formas de
MST, por exemplo, que são esforços autênticos dos trabalhadores e das trabal- precarização da força de trabalho.
hadoras rurais para buscar sua sobrevivência e reprodução forma dos marcos Uma conclusão se impõe: “A flexibilização, definitivamente, não é solução
dominantes do capitalismo. para aumentar os índices de ocupação. Ao contrário, é uma imposição à for-
Outro exemplo forte desse processo de ocultamento das novas modalidades ça de trabalho para que sejam aceitos salários reais mais baixos e em piores
de exploração do trabalho é o chamado “empreendedorismo”. Luciano Vasa- condições. É nesse contexto que estão sendo reforçadas as novas ofertas de
pollo caracteriza este processo de modo claro: “As novas figuras do mercado de trabalho, por meio do denominado mercado ilegal, no qual está sendo difun-
trabalho, os novos fenômenos do empreendedorismo, cada vez mais se configu- dido o trabalho irregular, precário e sem garantias. Com o pós-fordismo e a
ram em formas ocultas de trabalho assalariado, subordinado, precarizado, ins- mundialização econômico-produtiva, o trabalho ilegal vem assumindo dimen-
tável, trabalho “autônomo” de última geração, que mascara a dura realidade da sões gigantescas, também porque os países industrializados deslocaram suas
redução do ciclo produtivo. Na verdade, trata-se de uma nova marginalização produções para além dos limites nacionais e, sobretudo, vêm investindo em
social e não de um novo empresariado.” (Vasapollo, 2006) países nos quais as garantias trabalhistas são mínimas e é alta a especialização
O mesmo quadro de precarização se pode presenciar quando se analisam as do trabalho, conseguindo, assim, custos fundamentalmente mais baixos e au-
diversas modalidades de “flexibilização” do trabalho, que sempre acabam tra- mentando a competitividade (...).“A globalização neoliberal e a internacionali-
zendo, de modo embutido, diferentes formas de precarização. zação dos processos produtivos estão acompanhadas da realidade de centenas e
Ainda segundo o autor: “A nova condição de trabalho está sempre perden- centenas de milhões de trabalhadores desempregados e precarizados no mundo
do mais direitos e garantias sociais. Tudo se converte em precariedade, sem inteiro. O sistema fordista nos havia acostumado ao trabalho pleno e de duração
qualquer garantia de continuidade: ‘O trabalhador precarizado se encontra, indeterminada. Agora, ao contrário, um grande número de trabalhadores tem
ademais, em uma fronteira incerta entre ocupação e não-ocupação e também um contrato de curta duração ou de meio expediente; os novos trabalhadores
em um não menos incerto reconhecimento jurídico diante das garantias sociais. podem ser alugados por algumas poucas horas ao dia, por cinco dias da semana
Flexibilização, desregulação da relação de trabalho, ausência de direitos. Aqui ou por poucas horas em dois ou três dias da semana”. (Vasapollo, idem)
a flexibilização não é riqueza. A flexibilização, por parte do contratante mais
frágil, a força de trabalho, é um fator de risco e a ausência de garantias aumenta III – Esboço para uma nova mortfologia do trabalho
essa debilidade. Nessa guerra de desgaste, a força de trabalho é deixada com-
pletamente descoberta, seja em relação ao próprio trabalho atual, para o qual Esse conjunto de metamorfoses alterou em alguma medida a forma de ser da
não possui garantias, seja em relação ao futuro, seja em relação à renda, já que classe trabalhadora. Quais são, então, os contornos mais gerais, que configuram
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o que estamos denominando como nova morfologia do trabalho? ação produtiva, das políticas neoliberais e do cenário de desindustrialização e
Desde logo é preciso indicar que a classe trabalhadora compreende a totali- privatização, mas que também sentem as conseqüências do processo de reestru-
dade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda da sua força de turação. Se, entretanto, inicialmente deu-se uma forte absorção, pelo setor de
trabalho, a classeque- serviços, daqueles/as que se desempregavam do mundo industrial, é necessário
vive-do-trabalho e que são despossuídos dos meios de produção. Podemos, acrescentar também que as mutações organizacionais, tecnológicas e de gestão
então, enumerar algumas das principais tendências: também afetaram fortemente o mundo do trabalho nos serviços, que cada vez
1) Desde o início da reestruturação produtiva do capital vem ocorrendo uma mais se submetem à racionalidade do capital e à lógica dos mercados. Com a
redução do proletariado industrial, fabril, tradicional, manual, estável e espe- inter-relação crescente entre mundo produtivo e setor de serviços, vale enfatizar
cializado, herdeiro da era da indústria verticalizada de tipo taylorista e fordista. que, em conseqüências dessas mutações, várias atividades neste setor, anteri-
Este proletariado vinculado aos ramos mais tradicionais vem dando lugar a for- ormente consideradas improdutivas, tornaram-se diretamente produtivas, sub-
mas mais desregulamentadas de trabalho, reduzindo fortemente o conjunto de ordinadas à lógica exclusiva da racionalidade econômica e da valorização do
trabalhadores estáveis que se estruturavam através de empregos formais, her- capital.
ança da fase taylorista/fordista. 5) Outra tendência presente no mundo do trabalho é a crescente exclusão
2) Há, entretanto, outra muito significativa e que se caracteriza pelo aumento dos jovens, que atingiram a idade de ingresso no mercado de trabalho e que,
do novo proletariado fabril e de serviços, em escala mundial, presente nas diver- sem perspectiva de emprego, acabam muitas vezes engrossando as fileiras dos
sas modalidades de trabalho precarizado. São os terceirizados, subcontratados, trabalhos precários, dos desempregados, sem perspectivas de trabalho, dada a
part-time, entre tantas outras formas assemelhadas, que se expandem em escala vigência da sociedade do desemprego estrutural.
global. Com a desestruturação crescente do Welfare State nos países do Norte 6) Paralelamente à exclusão dos jovens vem ocorrendo também a exclusão
e aumento da desregulamentação do trabalho nos países do Sul, acrescidos da dos trabalhadores considerados “idosos” pelo capital, com idade próxima de 40
ampliação do desemprego estrutural, os capitais implementam alternativas de anos e que, uma vez excluídos do trabalho, dificilmente conseguem reingressar
trabalho crescentemente “informais”, de que são exemplo as distintas formas de no mercado de trabalho. Somam-se, desse modo, aos contingentes do chamado
terceirização. No Brasil, quase 60% da população economicamente ativa encon- trabalho informal, aos desempregados, aos “trabalhos voluntários etc. O mundo
tra-se em situação próxima da informalidade. do trabalho atual tem recusado os trabalhadores herdeiros da “cultura fordista”,
3) Há uma outra tendência de enorme significado no mundo do trabalho fortemente especializados, que são substituídos pelos trabalhadores “poliva-
contemporâneo: trata-se do aumento significativo do trabalho feminino em lentes e multifuncionais” da era toyotista.
diversos países avançados e também na América Latina, onde também foi ex- 7) Além da exclusão dos “idosos” e jovens em idade pós-escolar, o mundo do
pressivo o processo de feminização do trabalho. Esta expansão tem, entretanto, trabalho, nas mais diversas partes do mundo, tem se utilizado da inclusão pre-
um movimento inverso quando se trata da temática salarial, onde os níveis de coce e criminosa de crianças no mercado de trabalho, nas mais diversas ativi-
remuneração das mulheres são em média inferiores àqueles recebidos pelos tra- dades produtivas.
balhadores, o mesmo ocorrendo em relação aos direitos sociais e do trabalho, 8) Como desdobramento destas tendências acima apontadas, vem se desen-
que também são desiguais. No Brasil, o salário médio das mulheres está em volvendo no mundo do trabalho uma crescente expansão do trabalho no cham-
torno de 60% do salário dos trabalhadores. (Nogueira, 2004) ado “Terceiro Setor”, assumindo uma forma alternativa de ocupação, através
4) É perceptível também, particularmente nas últimas décadas do Século XX, de empresas de perfil mais comunitários, motivadas predominantemente por
uma significativa expansão dos assalariados médios no “setor de serviços”, que formas de trabalho voluntário, abarcando um amplo leque de atividades, onde
inicialmente incorporou parcelas significativas de trabalhadores expulsos do predominam aquelas de caráter assistencial, sem fins diretamente mercantis ou
mundo produtivo industrial, como resultado do amplo processo de reestrutur- lucrativos e que se desenvolvem relativamente à margem do mercado. A expan-
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são desse segmento é um desdobramento direto da retração do mercado de tra- as atividades industriais, dada a ampliação dos setores produtivos nos serviços,
balho industrial e de serviços, num quadro de desemprego estrutural. Esta for- abarcando ainda os trabalhadores improdutivos, que não criam diretamente
ma de atividade social, movida predominantemente por valores não-mercantis, mais valia, uma vez que são utilizados como serviço, seja ara uso público, como
tem tido certa expansão, através de trabalhos realizados no interior das ONGs os serviços públicos, seja para uso capitalista. Isso porque os trabalhadores im-
e outros organismos ou associações similares. Trata-se, entretanto, de uma al- produtivos, criadores de anti-valor no processo de trabalho, vivenciam situ-
ternativa extremamente limitada para Seminário Nacional de Saúde Mental e ações muito aproximadas com aquelas experimentadas pelo conjunto dos tra-
Trabalho - São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008 compensar o desemprego balhadores produtivos.
estrutural, não se constituindo, em nosso entendimento, numa alternativa efe- A classe trabalhadora hoje, também incorpora o proletariado rural, que vende
tiva e duradoura ao mercado de trabalho capitalista e, conforme indicamos an- a sua força de trabalho para o capital, de que são exemplos os assalariados das
teriormente, frequentemente mascaram formas precarizadas de trabalho. regiões agroindustriais e incorpora também o proletariado precarizado, o prole-
9) Outra tendência que gostaríamos de apontar é a da expansão do trabalho tariado moderno, fabril e de serviços, part time, que se caracteriza pelo vínculo
à domicílio, permitida pela desconcentração do processo produtivo, pela ex- de trabalho temporário, pelo trabalho precarizado, em expansão na totalidade
pansão de pequenas e médias unidades produtivas. Através da telemática e das do mundo produtivo. Inclui, também, além dos trabalhadores materiais, aque-
tecnologias de informação (além da expansão das formas de flexibilização e pre- les que exercem formas do trabalho imaterial. E abarcam, ainda, a totalidade
carização do trabalho que estamos indicando), com o avanço da horizontali- dos trabalhadores desempregados. Por isso se trata de uma concepção ampliada
zação do capital produtivo, o trabalho produtivo doméstico vem presenciando de classe trabalhadora, que atua tanto no mundo direto da produção, quando
formas de expansão em várias partes do mundo. da totalidade do trabalho coletivo e social (Marx) que participa da produção de
mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais e (direta ou indiretamente) do
Desse modo, o trabalho produtivo a domicílio mescla-se com o trabalho processo de reprodução do capital.
reprodutivo doméstico, aumentando as formas de exploração do contingente Não fazem parte da classe trabalhadora moderna, em nosso entendimento,
feminino. os gestores, pelo papel central que exercem no controle, gestão e sistema de
Quando se pensa, portanto, na classe trabalhadora hoje, é preciso reconhecer mando do capital.
esse desenho compósito, heterogêneo e multifacetado que caracteriza a nova Estão excluídos também os pequenos empresários, a pequena burguesia ur-
conformação da classe trabalhadora: além das clivagens entre os trabalhadores bana e rural que é proprietária e detentora, ainda que em pequena escala, dos
estáveis e precários, homens e mulheres, jovens e idosos, nacionais e imigrant- meios de sua produção. E estão excluídos também aqueles que vivem de juros e
es, brancos e negros, qualificados e desqualificados, “incluídos e excluídos”, te- da especulação.
mos também as estratificações e fragmentações que se acentuam em função O Século XXI apresenta, portanto, um cenário profundamente contraditório
do processo crescente de internacionalização do capital. O que nos obriga a e agudamente crítico: se o trabalho ainda é central para a criação do valor -
elaborar uma concepção ampliada de trabalho, que engloba a totalidade dos reiterando seu sentido de perenidade - estampa, em patamares assustadores,
assalariados que vivem da venda da sua força de trabalho, não se restringindo seu traço de superfluidade, da qual são exemplos os precarizados, flexibilizados,
aos trabalhadores manuais diretos, mas incluindo também o enorme leque que temporários, além do enorme exército de desempregados e desempregadas que
compreende aqueles que vendem sua força de trabalho como mercadoria em se esparramam pelo mundo.
troca de salário. No plano mais analítico, podemos acrescentar que a classe- Uma última nota: se estamos vivenciando o avanço da chamada era da mun-
que-vive-do-trabalho incorpora tanto o núcleo central do proletariado indus- dialização do capital, podemos presenciar também uma fase de mundialização
trial, os trabalhadores produtivos que participam diretamente do processo de das lutas sociais do trabalho, nelas incluídas as massas de desempregados que se
criação de mais valia e da valorização do capital que hoje transcende em muito ampliam em escala global. Desse modo, um desafio maior da humanidade é dar
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sentido ao trabalho humano, tornando a nossa vida também dotada de sentido.
Instituir uma nova sociedade dotada de sentido humano e social dentro e fora
Um Novo Senhor da educação?
do trabalho. Este é um desafio vital em nossos dias. A política educacional do Banco Mundial para a
periferia do capitalismo
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Popular, São Paulo. e pelos teóricos da sociedade do conhecimento. Ao considerar apenas a dimen-
são estritamente instrumental da educação (habilidades e qualificação requeri-
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das) face à dinâmica do capital, o pensamento crítico não rompe os marcos fortalecimento do “Movimento dos Países Não-Alinhados”, exigiu mudanças
do economicismo, contribuindo para a hipertrofia da crença no determinismo na política externa norte-americana diante das exigências da Guerra Fria. O
tecnológico, com significativas conseqüências desmobilizadoras.1 crescente sentimento anti-Estados Unidos nos países periféricos é apreendido
O reconhecimento de que a educação poderia ser um instrumento impor- como uma ameaça à supremacia deste país, colocando em risco os objetivos
tante na segurança data pelo menos do período da Guerra Fria, em especial na estratégicos do establishment econômico e político. Por outro lado, as manifes-
formulação da doutrina da contra-insurgência. Ao invés da tradicional concen- tações da crise estrutural do capitalismo começam a assumir feições cada vez
tração de forças e armamentos para avançar contra linhas inimigas identifica- mais nítidas nos anos 1970, uma situação que logo produziria um aumento da
das, esta doutrina preconiza operações militares localizadas, operadas direta ou tensão social nos países periféricos e na relação destes com Washington. A con-
indiretamente pela CIA e pelos Boinas Verdes, associadas à intensa propaganda sideração simultânea desses fatores provocou mudanças na orientação tática do
ideológica. As doutrinas, formas e métodos de propaganda foram desenvolvi- Departamento de Estado. Cresceu, então, a preferência por ações indiretas, me-
dos a partir da Agência de Desenvolvimento Internacional do Departamento diadas por organismos multilaterais. É neste contexto que Robert S. McNamara
de Estado (Usaid). Nesta orientação, o apoio da população local é tido como deixa o Departamento de Defesa para presidir o Banco Mundial. A partir deste
uma condição importante, como o fracasso da ação dos Estados Unidos na Baía novo quadro, a educação é cada vez melhor situada na escala de prioridades do
dos Porcos tornara patente. Por isso, a ênfase nas ações educativas e, no caso Banco. Para a análise dos motivos destas mudanças e dos propósitos da política
das populações indígenas, a relevância conferida às missões religiosas, como educacional do Banco Mundial, pelo menos três indagações são necessárias:
as desenvolvidas em diversos países periféricos pela Sociedade Internacional - O que pretende o Banco Mundial ao determinar as diretrizes da política
de Lingüística e pelos Tradutores da Bíblia Wycliffe. O programa educacional educacional dos países periféricos?;
e, mais especificamente, as ações de propaganda da Aliança para o Progresso, - O que faz o Banco para determinar essas diretrizes?; e
foram direcionados para este fim. Como assinalado por Berle, um dos mais- - Em que termos a ideologia da segurança está sendo transposta para estes
próximos colaboradores de Nelson Rockefeller e importante conselheiro de- países?
Kennedy e Johnson, “na América Latina o campo de batalha é pelo controle da Para responder a estas indagações é preciso retomar alguns aspectos da
mente do pequeno núcleo de intelectuais, dos educados e dos semieducados. história do Banco que, de uma agência voltada para a reconstrução européia
A estratégia é conseguir a dominação através dos processos educacionais”.2 No transformou-se, nos termos de Noam Chomsky, num dos principais “Senhores
que concerne à universidade, face ao convenientemente proclamado risco da do Mundo”.4 Igualmente, é imperioso examinar o contexto econômico e ide-
proliferação “da doutrina marxista no sistema educacional e no pensamento ológico que motivavam as reformas, com destaque para a ideologia da globali-
econômico da América Latina”,3 o controle, prossegue Berle, terá de ser clandes- zação.
tino, por meio de instituições privadas (Fundação Ford, Rockefeller, Olin, etc.)
e por intercâmbio de universidades dos Estados Unidos, especialmente George- Pobreza e segurança
town, Los Angeles, Berkeley, Columbia e Stanford. Toda esta engenharia social
tem como meta evitar a influência comunista e o surgimento de uma nova Cuba Com o descrédito da doutrina da contra-insurgência, as agências internac-
na região. O presidente da Fundação Ford, McGeorge Bundy, nos anos 50 e 60, ionais passaram a intervir mais fortemente na política interna dos países em
orgulhava-se de que a Ford era mais ágil do que o governo na identificação e desenvolvimento, valendo-se, em grande parte, das proposições de McNamara.
solução dos problemas colocados diante dos Estados Unidos. De fato, em 1968, o novo presidente do Banco Mundial, até então o secretário de
Os dias de glória da contra-insurgência tornaram-se mais opacos no final Defesa dos Estados Unidos (1961-1968) e, como tal, um dos mentores da inter-
da década de 1960. Por um lado, o desastre iminente no Vietnã, conjugado às venção no Vietnã, promoveu mudanças na orientação da instituição que ainda
transformações nos países periféricos, como o processo de descolonização e ao precisam ser investigadas, tendo em vista o alcance das mesmas.
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A descolonização e a Guerra Fria, indubitavelmente, estão subjacentes à A análise do modo como o Banco encaminha as suas novas diretrizes ajuda a
nova orientação. Diante de um quadro em rápida transformação — um quarto compreender como esta instituição obtém a capacidade de definir a direção das
da população mundial recentemente havia se revoltado contra o colonialismo políticas dos países periféricos. Como as novas áreas de atuação da instituição
e obtido a independência — McNamara reafirmou, em 1972, o propósito de estão sujeitas a maior grau de incerteza do que os tradicionais investimentos
“resguardar a estabilidade do mundo ocidental”. Nesta perspectiva, durante o em infra-estrutura, o Banco promoveu mudanças organizacionais importantes,
seu mandato (1968-1981), McNamara e os demais dirigentes do Banco, aban- ampliando o seu corpo técnico, transformando-se no maior centro mundial de
donaram gradativamente o desenvolvimentismo e a política de substituição das informações a respeito do desenvolvimento. Com base nessas informações, o
importações, deslocando o binômio pobreza-segurança para o centro das preo- organismo passou a ter maior controle sobre os países tomadores de emprésti-
cupações; é neste contexto que a instituição passa a atuar verdadeiramente na mos. Para isso, modificou o escopo dos projetos, ampliando-os para programas
educação: a sua ação torna-se direta e específica. O Banco volta-se para pro- (muito mais complexos e abrangentes, incidindo sobre setores vastos como a
gramas que atendam diretamente as populações possivelmente sensíveis ao educação), tornando mais rígidas as condicionalidades. Esta reorientação do
“comunismo”, por meio de escolas técnicas, programas de saúde e controle da Banco obteve êxito, não tanto pelo sucesso das políticas setoriais, que em geral
natalidade, ao mesmo tempo em que promove mudanças estruturais na econo- fracassaram econômica e socialmente, mas em termos políticos mais amplos. A
mia desses países, como a transposição da “revolução verde” para o chamado sua influência contribuiu para impedir que muitos países em processo de des-
Terceiro Mundo. colonização passassem para a esfera de influência soviética. Além disto, possi-
Como é possível constatar, o foco no problema da pobreza tem importantes bilitou a ampliação dos países membros, garantindo sua presença em 179 países
nuances em relação à tese da contra-insurgência de Rostow e Johnson que (1995).
propõe o uso de meios mais diretamente coercitivos. O apoio de parte do es- Muitos fatores concorreram para o esgotamento da estratégia centrada na-
tablishment às teses de McNamara pode ser explicado pelas dificuldades norte- conexão segurança-pobreza. O principal deles, sem dúvida, foi a crise estrutural
americanas no Vietnã e pelas novas feições da Guerra Fria. Em sua obra au- do capitalismo que pôde ser evidenciada desde o início da década de 1970.7
tocrítica In retrospect: the tragedy and lessons of Vietnam, McNamara afirma Como conseqüência da crise, os países periféricos tiveram suas dívidas aumen-
que estava em “profundo” desacordo com as análises de Rostow e Johnson, a tadas no rastro dos juros ascendentes e da queda dos preços das principais com-
respeito do prolongamento do uso da força militar no Vietnã. Lembra o seu modities. É preciso destacar, também, o fato de que o Banco Mundial emprestou
discurso na Associação Americana de Jornais (1966), em que disse: “há entre e avalizou empréstimos segundo propósitos estratégicos, gerando dívidas acima
nós uma tendência a pensar o nosso problema de segurança como um prob- da capacidade de pagamento dos países tomadores. Além disso, muitos gover-
lema exclusivamente militar”, porém, “uma nação pode chegar ao ponto em que nos amigos do “Ocidente” (Mobuto, Marcos, Somoza, etc.) desviaram, para fins
ela não pode mais comprar segurança para si própria comprando equipamento particulares, considerável parcela desses empréstimos. O resultado foi a crise da
militar, e nós chegamos a este ponto”. Por isso, “nós devemos assistir aos países dívida de 1982.
em desenvolvimento que genuinamente necessitam e requerem a nossa ajuda e, Neste novo contexto, os países periféricos perderam muito de seu poder de
uma precondição essencial, que estejam dispostos a ajudar a si mesmos”.5 pressão. Reagan retomou o uso da força militar em ações destinadas a minar
O apoio financeiro concedido ao Banco, durante a sua gestão, indica que “em seu próprio território”, os países socialistas, produzindo os “contras” na
McNamara não estava falando apenas por si mesmo. Nos vinte e dois anos an- Nicarágua, a Unita em Angola, etc. O Banco abraçou o ideário neoliberal e,
teriores ao seu mandato foram aprovados 708 projetos, com um custo total de diante da vulnerabilidade dos países endividados, impôs drásticas reformas lib-
US$ 10,7 bilhões. Somente na primeira parte de sua gestão (1968-73) foram erais (ajuste e reforma estruturais). Esta crise colocou o Banco Mundial diante
aprovados 760 projetos a um custo de US$ 13,4 bilhões.6 Neste período, o Banco de novos desafios, propiciando condições excepcionais para o exercício de seu
tornou-se o maior captador mundial não soberano de recursos financeiros. poder. No contexto da crise estrutural o Banco pôde impor condicionalidades
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com uma abrangência inédita. em curso nos países “subdesenvolvidos” estariam configurando a “era do mer-
Indubitavelmente, a crise da dívida de 1982 tornara os países latinoameri- cado” ou a “globalização”, sustentada pelo Banco Mundial é muito representa-
canos extremamente dependentes do aval do FMI e do Banco Mundial, uma tiva do pensamento sistematizado como o Consenso de Washington.10
condição necessária para a renegociação com os investidores privados. A con- Nesta “nova era”, conforme o editorialista da revista Fortune, Thomas A.
dicionalidade do Banco não se restringia mais a indicadores macroeconômi- Stewart, “o conhecimento se converteu no fator de produção mais importante”
cos, como a balança de pagamentos, mas principalmente ao hoje famoso “ajuste de um pouco preciso “capitalismo intelectual” que teria sucedido ao capitalismo
estrutural” que, nas palavras de um dirigente do Banco, consiste em “liberar o industrial. Nesta “nova era do capitalismo, o principal capital é o intelectual” e,
mecanismo de mercado e fortalecer o seu papel no desenvolvimento econômico. por isso, a educação, na condição de capital, tornou-se assunto de managers e
O setor privado deveria ser o motor do crescimento com o governo desempen- não mais de educadores. Subjacente ao glamour, sobressai o caráter ideológico
hando um papel de apoio a ele. O crescimento (e não mais o desenvolvimento) da formulação que sequer é inteiramente original. Nesta versão renovada da
econômico seria o principal meio pelo qual a pobreza seria aliviada”.8 teoria do capital humano, o conhecimento não pertence mais ao indivíduo,
Os países que no início dos anos 1980 resistiram ao intervencionismo e à tampouco é pensado a partir do mesmo: “é a empresa que deve tratar de ad-
imposição do neoliberalismo, sustentando políticas neoestruturalistas, logo quirir todo o capital humano que possa aproveitar”. A empresa precisa “utilizar
submeteram-se aos ditames dos “Novos Senhores do Mundo”. Este é o caso do de maneira eficiente o cérebro de seus funcionários” que, por isso, devem ser
Brasil, especialmente nos governos Collor e Cardoso. depositários de conhecimento útil para o capital.11
O ajuste estrutural que desmonta o precário Estado Social é feito em nome Hayek sumariza a importância da educação na sociedade liberal: “é o uso
da globalização, um processo apresentado como inexorável e irresistível, contra dos seus próprios meios e de seu próprio conhecimento o que define o homem
o qual nada é possível fazer, a não ser se adaptar, mesmo que às custas de ex- livre capaz de contribuir para a ordem espontânea”.12 É esta conexão entre con-
ponencial desemprego, privatizações selvagens, crise cambial, aumento da taxa hecimento e ordem que constitui o “núcleo sólido” das proposições do Banco
de juros e destruição dos direitos do trabalho. Mundial para a educação na década de 1990.
O pressuposto de que a crise econômica dos anos 1970-1980 fez emergir
uma nova “era”, a “globalização”, é compartilhado tanto pelos adeptos da ideo- As orientações educacionais que convêm ao capital
logia neoliberal (especialmente os adeptos da sociedade do conhecimento ou
do capitalismo intelectual) quanto por críticos do neoliberalismo, notadamente “A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento econômico e
pelos partidários da tese da revolução científico-tecnológica (e do fim do tra- social. Ela é central na estratégia do Banco Mundial para ajudar os países a re-
balho). “As mudanças que nos rodeiam não são fenômenos passageiros mas o duzir a pobreza e promover níveis de vida para o crescimento sustentável e in-
produto de forças poderosas e ingovernáveis: a globalização, que tem aberto im- vestimento no povo. Essa dupla estratégia requer a promoção do uso produtivo
ensos mercados novos com seu corolário inexorável, uma enorme quantidade do trabalho (o principal bem do pobre) e proporcionar serviços sociais básicos
de competidores novos; a difusão da tecnologia da informação e o crescimento para o pobre.”13
desordenado das redes informáticas”.9 A centralidade adquirida pela educação no discurso do Banco Mundial nos
Ao situar o contexto recente em que o Banco Mundial está operando, o seu anos 1990 é recente. Na década de 1960, um vice-presidente do Banco, Robert
presidente, James Wolfensohn (Board of Governors, 1995), disse: “estamos op- Gardner afirmou: “nós não podemos emprestar para educação e saúde. Nós so-
erando num contexto muito diferente de dez ou mesmo cinco anos atrás. O pós- mos um banco!”.14 Esta situação começou a mudar na gestão de Woods (1963-
Guerra Fria assinala o momento de maior mudança na história: país após país 1968) e, mais acentuadamente, na presidência de McNamara, quando a ênfase
têm-se movido para a economia orientada pelo mercado (...) que têm acelerado no problema da pobreza fez a educação sobressair entre as prioridades do Ban-
a integração global”. A tese de que as transformações das políticas econômicas co. Na década de 1970, esta instituição considerava o financiamento às esco-
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las primárias e secundárias de formação geral um contra-senso, defendendo o tivas” explica as prioridades educacionais em curso nas periferias.
ensino técnico e profissional, modalidades tidas como mais adequadas às ne- Desde o final da década de 1980 uma forte prioridade é conferida ao ensino
cessidades (presumidas) dos países em desenvolvimento. Na virada neoliberal fundamental “minimalista” e à formação profissional “aligeirada”. Em termos
da década de 1980, a orientação educacional do Banco sofreu uma inflexão em práticos, estas orientações são encaminhadas por meio de políticas de “descen-
direção ao ensino elementar. A orientação anterior foi então duramente atacada tralização administrativo-financeira” que estão redesenhando as atribuições da
como voluntarista e dispendiosa. Na década de 1990, a inflexão neoliberal não União, dos Estados e dos municípios. Enquanto a primeira canaliza os seus re-
apenas permanece válida como é radicalizada. cursos aos ricos e aos investidores estrangeiros, os dois últimos são forçados a
Nos documentos mais recentes do Banco e nos pronunciamentos de seus assumir os encargos necessários para manter as pessoas vivas e trabalhando,
dirigentes, é visível a recorrência da questão da pobreza e do temor quanto à ainda que numa situação próxima da indigência. Este é o sentido da munici-
segurança: nos termos do presidente do Banco, “as pessoas pobres do Mundo palização promovida pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
devem ser ajudadas, senão elas ficarão zangadas”.15 Em suma, a pobreza pode Fundamental e Valorização do Magistério (Fundef, Lei 9224/96). A principal
gerar um clima desfavorável para os negócios. E a exclusão planetária não pára conseqüência desta medida é o drástico empobrecimento do caráter científi-
de crescer. Estudo do PNUD (1998) atesta que cem países regrediram seria- co-filosófico da educação, configurando um verdadeiro apartheid educacional,
mente em sua situação econômica e social nos últimos trinta anos. Mantida a como fica patente com a reforma curricular do ensino fundamental e o des-
política de abertura comercial, os esforços para conter as tensões derivadas do monte dos centros de ensino tecnológico (Cefets).
desemprego terão de ser ampliados. Somente no Brasil, entre 1985 e 1998, o Também as diretrizes para o ensino superior são coerentes com o conjunto
número de empregos na indústria caiu 43%, enquanto a produção industrial das proposições econômicas do Banco. Se o país submetido às orientações do
cresceu apenas 2,7%.16 Para as ideologias dominantes, o melhor antídoto para os Banco deve abdicar da construção de um projeto de nação independente, um
males decorrentes do desemprego é a educação elementar e a formação profis- sistema de ensino superior dotado de autonomia relativa frente ao Estado e às
sional. Isto explica, em grande parte, as diretrizes do Banco Mundial para o instituições privadas soa mesmo anacrônico. O ministro da educação do Brasil
ensino superior. Há muito tempo o Banco critica aqueles países que “insistem não vê sentido na produção de conhecimento novo nas universidades pois, em
em querer universalizar as tecnologias características do século XX em seus ter- sua concepção, o sistema produtivo “pode” buscar no livre mercado pacotes
ritórios”. Porém, nunca o Banco foi tão explícito e determinado em sua política tecnológicos. Movido por este raciocínio, desde o final da década de 1980, o
antiuniversitária. Banco não financia nenhuma atividade universitária na África Sub-Saariana. A
Com efeito, de acordo com a análise de Amin, o mercado dos países perifé- depender da análise recente desta instituição, a América Latina vai na mesma
ricos, distintamente dos países centrais, não é integrado tridimensionalmente direção. Isto não quer dizer que o Banco esteja sugerindo que toda pesquisa
(capital, mercadoria e trabalho), mas sim bidimensionalmente (capital e mer- deva ser extinta. Apesar de a lógica do processo indicar que a produção de con-
cadoria) — o trabalho, nas periferias, está excluído do mercado de trabalho hecimento novo deva se dar nos centros mais avançados, notadamente nos Es-
fundado no conhecimento científico avançado, estando confinado pelas barrei- tados Unidos, países como o Brasil, face à amplitude de seu parque produtivo,
ras nacionais que separam os países centrais das periferias.17 O trabalho nestes teriam de ter alguns poucos núcleos de excelência capazes de adequar os pacotes
países é condizente com o modo como estas nações estão inseridas na econo- tecnológicos à realidade local e, também, para formar parte da elite dirigente e
mia mundial: de forma subordinada, periférica, restrita a mercadorias de baixo produzir conhecimento necessário ao controle social, o que já está acontecendo
valor agregado. O trabalho requerido por uma economia nestes termos é pouco em alguns centros universitários.
qualificado. A premissa econômica básica é que um mercado global livre decide O documento La enseñanza superior: Las lecciones derivadas de la experi-
melhor quais trabalhos estão localizados em que país.18 Em suma, melhor do encia, contém as principais orientações para o setor. Situa a crise do ensino supe-
que a análise endógena dos sistemas de ensino, a tese das “vantagens compara- rior, num primeiro momento, como resultante da crise fiscal. Porém, o longo do
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documento, os propósitos políticos vão sendo explicitados sobrepondo-se, por- passiva da desconexão forçada) fornece ao ministro argumentos para sustentar
tanto, à questão fiscal. Este documento é paradigmático: constitui-se na matriz que “o acesso ao conhecimento fica facilitado, as associações e joint ventures se
das recentes medidas do governo federal. O documento apregoa uma maior encarregam de prover as empresas de países como o Brasil do know-how que
diferenciação no ensino superior, demandando a supressão da indissociabili- necessitam. A terceirização das universidades, como fez a Coréia, faz mais sen-
dade entre o ensino e a pesquisa, nos termos do Decreto 2306/97 que distingue tido do ponto de vista econômico”, enfatiza o ministro.21
as instituições de ensino superior universitárias e os centros universitários, um Em decorrência da exclusão das universidades públicas das políticas priori-
eufemismo para legitimar as universidades exclusivamente de ensino, como tárias, o segundo grau público fica igualmente sem lugar no rol das políticas ed-
poderá acontecer com a criação de universidades por área do conhecimento ucacionais. A expansão do segundo grau público entraria em contradição com
(como na transformação dos Cefet’s em universidades especializadas) e como a política de privatização do terceiro grau, e evidenciaria, ainda mais, o caráter
já ocorre nas instituições privadas. O Banco indica os instrumentos para a im- segregacionista da política vigente. Resta ao Estado a responsabilidade com o
plementação dessa política, enfatizando a importância de redefinir a autonomia ensino fundamental. De fato, o governo brasileiro tem empreendido impor-
universitária em moldes neoliberais, a saber, uma autonomia que signifique o tantes mudanças neste nível. A criação de uma nova forma de financiamento
afastamento do Estado da vida da instituição: “Uma maior autonomia institu- da escola fundamental (Fundef) está redesenhando as atribuições dos Estados e
cional é a chave para o êxito da reforma no ensino público superior, especial- municípios. A reforma curricular está moldando as escolas aos “imperativos da
mente a fim de diversificar e utilizar os recursos mais eficientemente. Uma meta globalização” e a avaliação centralizada garante o controle estatal da atividade
indicativa poderia ser as instituições estatais de nível superior gerarem recursos docente. Formalmente, todos podem usufruir as benesses da globalização e as
suficientes para financiar aproximadamente 30% de suas necessidades totais de condições de governabilidade estariam asseguradas. Este é o mapa das idéias
recursos”.19 que institui um verdadeiro apartheid educacional planetário, sob a batuta do
No âmago desse discurso está a contraposição entre o ensino fundamental Banco Mundial.
(voltado para o conjunto da população) e o ensino superior (pretensamentedes-
tinado às elites privilegiadas que, embora não necessitem do ensino público, À guisa de conclusão
desfrutam da maior parcela do orçamento educacional). Este argumento é
repetido por intelectuais como o Nobel de economia Gary Becker e em editori- As conexões educação, segurança e pobreza fornecem o substrato das refor-
ais dos principais jornais brasileiros. Os defensores do ensino público são des- mas educacionais em curso na América Latina. Com o aprofundamento sem
qualificados como elitistas e insensíveis ao descalabro do ensino fundamental. precedentes da polarização na década de 1990, o Banco dedica cada vez maior
Definido o discurso, o Documento passa à orientação política: “é preciso atenção à construção de instituições adequadas à era do mercado, de modo a ter
romper este esquema” mediante ações procedidas com muita cautela. Daí a mi- recursos institucionais para “manejar” as contradições do sistema.
ríade de projetos na área educacional encaminhados pelo Ministério da Edu- A educação é radicalmente modificada, tornando-se cada vez menos politéc-
cação. A reforma em curso é feita com o mínimo de alarde possível. nica (no sentido conferido por Marx) e cada vez mais instrumental: os conteú-
Nos termos do ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, “a socie- dos estão fortemente carregados de ideologias apologéticas ao capital e o debate
dade brasileira não quer dar mais recursos para a universidade”, fazendo eco a educacional é pautado em grande parte pelos “homens de negócios” e pelos
Backer: “os governos que mantêm ensino superior gratuito estão subsidiando estrategistas políticos.
as pessoas erradas”.20 Ainda na interpretação do ministro, “a ênfase no ensino Compete à educação operar as contradições da segregação, propiciando ab-
universitário foi uma característica de um modelo de desenvolvimento auto- erturas para o futuro. O pressuposto, aqui presente, é: todos aqueles que fizerem
sustentado que demandava criar pesquisa e tecnologias próprias (...) hoje este as escolhas educacionais corretas terão possibilidades ilimitadas. Os indivíduos
modelo está em agonia terminal”. A ideologia da globalização (com a aceitação (e países) que priorizarem corretamente a educação terão um futuro radioso
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pela frente, comprovando, deste modo, a validade das bases do sistema. O capi- 6 Cf. S. George e F. Sabelli, Faith e credit: the World Bank’s secular empire, San Fran-
talismo atual é justo com aqueles que souberem se qualificar corretamente. cisco, Westview Press, 1994, 43.
Basta não insistir nas prioridades erradas. Não adianta gastar com o ensino su- 7 G. Duménil e D. Lévy, La dynamique du capital . Un siécle d’économie américaine,
perior e a pesquisa, pois, conforme a tese das vantagens comparativas, os países Paris, PUF, 1996.
8 M. Arruda, Ajustando a economia para o desenvolvimento participativo, Gen-
em desenvolvimento devem perseguir nichos de mercado onde seja possível
ebra, Centro para o Nosso Futuro Comum, in The Bulletin, março de 1994.
vender mercadorias de baixo valor agregado.
9 T. A. Stewart, La nueva riqueza de las organizaciones: el capital intelectual, Buenos
A crítica a esse processo de legitimação da exclusão estrutural é dificultada Aires, Granica, 1998, p. 33.
pela crescente adesão dos partidos de esquerda e dos sindicatos à ideologia da 10 Y. Dezalay e B. Garth, “Le ‘Washington Consensus’: contribution à une sociolo-
globalização e, correlatamente, ao determinismo tecnológico. Neste sentido, os gie de l’hégémonie du néolibéralisme” in Actes de la Recherche en Science Sociales,
problemas do desemprego e da precarização do trabalho são deslocados para a 121-122, 1998.
qualificação do trabalhador. É como se a exclusão fosse decorrente de opções 11 T. A. Stewart, op. cit . 1998, pp. 9-26 e 75-87, passim.
educativas erradas dos indivíduos. Daí a tese de que a única alternativa realista é 12 F. Hayek, “Os princípios de uma ordem liberal”, in A. Grespigni e J. Cronin, Ideo-
a formação profissional. Grande parte dos sindicatos brasileiros, independente logias políticas, Brasília, Edunb, 1998, p. 60.
da filiação à CUT ou à Força Sindical, está empenhada em acordos com o gov- 13 World Bank, Priorities and strategies for education , 1990.
erno, com o objetivo de propiciar, aos seus associados, cursos de qualificação 14 C. Caufield, Masters of illusion: the World Bank and the poverty of nations, Nova
York, Henry Holt, 1996, p. 64.
e treinamento. O corolário é a perda da capacidade de contestação política ao
15 Id., ibid., p. 315.
sistema capitalista, favorecendo o avanço das reformas neoliberais e o enraiza-
16 M. Pochmann, Folha de S. Paulo, 8 de agosto de 1999.
mento da ideologia da globalização nas classes trabalhadoras que, deste modo, 17 S. Amin, Les défis de la mondialisation, Paris, L’Harmattan, 1996.
se movem no interior das ideologias dominantes. Os sindicatos tornam-se inca- 18 C. Caufield, op. cit ., p. 294.
pazes de fazer frente ao avanço da barbárie do capital. 19 World Bank, La enseñanza superior: las lecciones derivadas de la experiencia,
Um pré-requisito primordial para fazer frente ao desmonte do ensino público Washington, 1995.
e gratuito é a crítica dos pressupostos em que se assenta a atual política gover- 20 Exame, 10 de junho de 1996.
namental. Este estudo é, assim, uma contribuição para se edificar esta negação, 21 Id., ibid.
pois não é possível compreender o sentido e o significado das atuais reformas
sem considerar a sua matriz conceitual, formulada no âmbito do Banco Mun-
dial.

Notas

1 J. Holloway e E. Peláez, “Aprendendo a curvar-se: pós-fordismo e determinismo


tecnológico”, in Outubro, 2, 1998.
2 G. Colby e C. Dennett, Seja feita a vossa vontade, Rio de Janeiro, Record, 1998, p.
425.
3 L. R. Scheman, The Alliance for Progress , Nova York, Praeger, 1988.
4 N. Chomsky e H. Dieterich, La sociedad global, México, DF, Joaquín Moriz, 1995.
5 R. S. McNamara, In retrospect: the tragedy and lessons of Vietnam. Nova York,
Vintage Books, 1996, 311.
31

Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e que lhe permitem realizar as ações de trabalhar e de educar? Ou: o que é que
está inscrito no ser do homem que lhe possibilita trabalhar e educar?
históricos Perguntas desse tipo pressupõem que o homem esteja previamente con-
stituído como ser possuindo propriedades que lhe permitem trabalhar e edu-
Dermeval Saviani
car. Pressupõe-se, portanto, uma definição de homem que indique em que ele
consiste, isto é, sua característica essencial a partir da qual se possa explicar o
A primeira observação que me ocorre a propósito do próprio enunciado do trabalho e a educação como atributos do homem. E, nesse caso, fica aberta a
tema é que, na verdade, da perspectiva em que me coloco para analisar o proble- possibilidade de que trabalho e educação sejam considerados atributos essenci-
ma, os termos “ontológico” e “histórico” não seriam ligados por uma conjunção ais do homem, ou acidentais.
coordenativa aditiva como está posto no enunciado do título. Não se trataria Na definição de homem mais difundida (animal racional), o atributo es-
de examinar os fundamentos ontológicos e depois, em acréscimo, examinar os sencial é dado pela racionalidade, consoante o significado clássico de definição
fundamentos históricos, ou vice-versa. Isso porque o ser do homem e, portanto, estabelecido por Aristóteles: uma definição dá-se pelo gênero próximo e pela
o ser do trabalho, é histórico. Assim, talvez o título deste trabalho ficasse mais diferença específica. Pelo gênero próximo indica-se aquilo que o objeto defi-
preciso se fosse enunciado assim: “Trabalho e educação: fundamentos ontológi- nido tem em comum com outros seres de espécies diferentes (no caso em tela,
co-históricos”. o gênero animal); pela diferença específica indica-se a espécie, isto é, o que dis-
No entanto, constatado o estreito vínculo ontológico-histórico próprio da tingue determinado ser dos demais que pertencem ao mesmo gênero (no caso
relação entre trabalho e educação, impõe-se reconhecer e buscar compreender do homem, a racionalidade). Conseqüentemente, sendo o homem definido pela
como se produziu, historicamente, a separação entre trabalho e educação. racionalidade, é esta que assume o caráter de atributo essencial do ser humano.
Feito esse comentário preliminar, adianto o percurso que pretendo fazer no Ora, assim entendido o homem, vê-se que, embora trabalhar e educar pos-
tratamento do tema que me foi encomendado. sam ser reconhecidos como atributos humanos, eles o são em caráter acidental,
Começarei procurando indicar, em suas linhas básicas, os fundamentos e não substancial. Com efeito, o mesmo Aristóteles, considerando como próp-
histórico-ontológicos da relação trabalho-educação. Em seguida, tratarei de rio do homem o pensar, o contemplar, reputa o ato produtivo, o trabalho, como
mostrar como, não obstante a indissolubilidade da referida relação, se manifes- uma atividade não digna de homens livres.
tou na história o fenômeno da separação entre trabalho e educação. No terceiro Diversamente, Bergson, ao analisar o desenvolvimento do impulso vital na
momento abordarei o tortuoso e difícil processo de questionamento da sepa- obra Evolução criadora, observa que “torpor vegetativo, instinto e inteligência”
ração e restabelecimento dos vínculos entre trabalho e educação. Finalmente, são os elementos comuns às plantas e aos animais. E, definindo a inteligência
esboçarei a conformação do sistema de ensino sob a égide do trabalho como pela fabricação de objetos, fenômeno identificado como comum aos animais,
princípio educativo e encerrarei com a discussão do controvertido tema da edu- encontra no homem a particularidade da fabricação de objetos artificiais, o que
cação politécnica. lhe permite avançar a seguinte conclusão:
Se pudéssemos nos despir de todo orgulho, se, para definir nossa espécie, nos
Fundamentos histórico-ontológicos da relação trabalho-educação ativéssemos estritamente ao que a história e a pré-história nos apresentam como
a característica constante do homem e da inteligência, talvez não disséssemos
Trabalho e educação são atividades especificamente humanas. Isso significa Homo sapiens, mas Homo faber. Em conclusão, a inteligência, encarada no que
que, rigorosamente falando, apenas o ser humano trabalha e educa. Assim, a parece ser o seu empenho original, é a faculdade de fabricar objetos artificiais,
pergunta sobre os fundamentos ontológicos da relação trabalho-educação traz sobretudo ferramentas para fazer ferramentas e de diversificar ao infinito a fab-
imediatamente à mente a questão: quais são as características do ser humano ricação delas. (Bergson, 1979, p. 178-179, grifos do original)
32
No entanto, embora essa citação esteja sugerindo que o trabalho seja a car- dos animais a partir do momento em que começa a produzir seus meios de
acterística essencial que define o homem em sua totalidade, Bergson não leva vida, passo este que se encontra condicionado por sua organização corporal. Ao
essa conclusão às últimas conseqüências. Ao contrário, considerará que sendo produzir seus meios de vida, o homem produz indiretamente sua própria vida
o instinto, em contraponto à inteligência, uma das duas extremidades das duas material. (Marx & Engels, 1974, p. 19, grifos do original)
principais linhas divergentes da evolução, ele é irredutível à inteligência. Esta é Ora, o ato de agir sobre a natureza transformando-a em função das necessi-
adequada para lidar com a matéria inerte; o instinto dá-nos a chave das oper- dades humanas é o que conhecemos com o nome de trabalho. Podemos, pois,
ações vitais. É a intuição, isto é, “o instinto que se tornou desprendido, consci- dizer que a essência do homem é o trabalho. A essência humana não é, então,
ente de si mesmo, capaz de refletir seu objeto e de o ampliar infinitamente”, que dada ao homem; não é uma dádiva divina ou natural; não é algo que precede a
nos conduz “ao próprio interior da vida” (idem, p. 201). existência do homem. Ao contrário, a essência humana é produzida pelos próp-
Portanto, embora o ato de fabricar em que se expressa a racionalidade seja rios homens. O que o homem é, é-o pelo trabalho. A essência do homem é um
específico do homem, Bergson não o considera suficiente para definir a essência feito humano. É um trabalho que se desenvolve, se aprofunda e se complexifica
humana. ao longo do tempo: é um processo histórico.
Essas considerações feitas a propósito da filosofia bergsoniana ilustram o que É, portanto, na existência efetiva dos homens, nas contradições de seu movi-
há de comum à grande maioria das tentativas de definir o homem que povoam mento real, e não numa essência externa a essa existência, que se descobre o que
a história da filosofia. Expressões como o “homem é um animal político”; “é o homem é: “tal e como os indivíduos manifestam sua vida, assim são. O que são
um animal simbólico”, isto é, “um animal que fala”; “o homem não é senão sua coincide, por conseguinte, com sua produção, tanto com o que produzem como
alma”; “o homem é apenas corpo”; “é uma substância composta de dois elemen- com o modo como produzem” (idem, ibidem).
tos incompletos e complementares, o corpo e a alma”; “é um espírito encarnado”, Se a existência humana não é garantida pela natureza, não é uma dádiva
padecem do mesmo problema detectado na fórmula “o homem é um animal natural, mas tem de ser produzida pelos próprios homens, sendo, pois, um
racional”, assim como na concepção bergsoniana. Compõem a visão que pre- produto do trabalho, isso significa que o homem não nasce homem. Ele for-
dominou no desenvolvimento do pensamento filosófico e que se cristalizou no ma-se homem. Ele não nasce sabendo produzir-se como homem. Ele necessita
senso comum, marcada por um caráter especulativo e metafísico contraposto à aprender a ser homem, precisa aprender a produzir sua própria existência. Por-
existência histórica dos homens. Partem de uma idéia abstrata e universal de es- tanto, a produção do homem é, ao mesmo tempo, a formação do homem, isto
sência humana na qual estaria inscrito o conjunto dos traços característicos de é, um processo educativo. A origem da educação coincide, então, com a origem
cada um dos indivíduos que compõem a espécie humana. Certamente trabalho do homem mesmo.
e educação fariam parte desse conjunto de traços. Diríamos, pois, que no ponto de partida a relação entre trabalho e educação
Diferentemente dessa maneira de entender o homem, cumpre partir das é uma relação de identidade. Os homens aprendiam a produzir sua existência
condições efetivas, reais. no próprio ato de produzi-la. Eles aprendiam a trabalhar trabalhando. Lidando
Voltando-nos para o processo de surgimento do homem vamos constatar com a natureza, relacionando-se uns com os outros, os homens educavam-se e
seu início no momento em que determinado ser natural se destaca da natureza educavam as novas gerações. A produção da existência implica o desenvolvi-
e é obrigado, para existir, a produzir sua própria vida. Assim, diferentemente mento de formas e conteúdos cuja validade é estabelecida pela experiência, o
dos animais, que se adaptam à natureza, os homens têm de adaptar a natureza que configura um verdadeiro processo de aprendizagem. Assim, enquanto os
a si. Agindo sobre ela e transformando-a, os homens ajustam a natureza às suas elementos não validados pela experiência são afastados, aqueles cuja eficácia a
necessidades: experiência corrobora necessitam ser preservados e transmitidos às novas ger-
Podemos distinguir o homem dos animais pela consciência, pela religião ou ações no interesse da continuidade da espécie.
por qualquer coisa que se queira. Porém, o homem se diferencia propriamente Nas comunidades primitivas a educação coincidia totalmente com o fenô-
33
meno anteriormente descrito. Os homens apropriavam-se coletivamente dos convertido em seu senhor.
meios de produção da existência e nesse processo educavam-se e educavam as Na Antigüidade, tanto grega como romana, configura-se esse fenômeno que
novas gerações. Prevalecia, aí, o modo de produção comunal, também chamado contrapõe, de um lado, uma aristocracia que detém a propriedade privada da
de “comunismo primitivo”. Não havia a divisão em classes. Tudo era feito em co- terra; e, de outro lado, os escravos. Daí a caracterização do modo de produção
mum. Na unidade aglutinadora da tribo dava-se a apropriação coletiva da terra, antigo como modo de produção escravista. O trabalho é realizado dominante-
constituindo a propriedade tribal na qual os homens produziam sua existência mente pelos escravos.
em comum e se educavam nesse mesmo processo. Nessas condições, a educação Ora, essa divisão dos homens em classes irá provocar uma divisão também
identificava-se com a vida. A expressão “educação é vida”, e não preparação para na educação. Introduz-se, assim, uma cisão na unidade da educação, antes iden-
a vida, reivindicada muitos séculos mais tarde, já na nossa época, era, nessas tificada plenamente com o próprio processo de trabalho. A partir do escravismo
origens remotas, verdade prática. antigo passaremos a ter duas modalidades distintas e separadas de educação:
Estão aí os fundamentos histórico-ontológicos da relação trabalho-educação. uma para a classe proprietária, identificada como a educação dos homens livres,
Fundamentos históricos porque referidos a um processo produzido e desen- e outra para a classe não-proprietária, identificada como a educação dos escra-
volvido ao longo do tempo pela ação dos próprios homens. Fundamentos on- vos e serviçais. A primeira, centrada nas atividades intelectuais, na arte da pala-
tológicos porque o produto dessa ação, o resultado desse processo, é o próprio vra e nos exercícios físicos de caráter lúdico ou militar. E a segunda, assimilada
ser dos homens. ao próprio processo de trabalho.
A primeira modalidade de educação deu origem à escola. A palavra escola
A emergência histórica da separação entre trabalho e educação deriva do grego e significa, etimologicamente, o lugar do ócio, tempo livre. Era,
pois, o lugar para onde iam os que dispunham de tempo livre. Desenvolveu-se, a
O desenvolvimento da produção conduziu à divisão do trabalho e, daí, à partir daí, uma forma específica de educação, em contraposição àquela inerente
apropriação privada da terra, provocando a ruptura da unidade vigente nas ao processo produtivo. Pela sua especificidade, essa nova forma de educação
comunidades primitivas. A apropriação privada da terra, então o principal passou a ser identificada com a educação propriamente dita, perpetrando-se a
meio de produção, gerou a divisão dos homens em classes. Configuram-se, em separação entre educação e trabalho.
conseqüência, duas classes sociais fundamentais: a classe dos proprietários e a Estamos, a partir desse momento, diante do processo de institucionalização
dos não-proprietários. Esse acontecimento é de suma importância na história da educação, correlato do processo de surgimento da sociedade de classes que,
da humanidade, tendo claros efeitos na própria compreensão ontológica do por sua vez, tem a ver com o processo de aprofundamento da divisão do trabal-
homem. Com efeito, como já se esclareceu, é o trabalho que define a essência ho. Assim, se nas sociedades primitivas, caracterizadas pelo modo coletivo de
humana. Isso significa que não é possível ao homem viver sem trabalhar. Já que produção da existência humana, a educação consistia numa ação espontânea,
o homem não tem sua existência garantida pela natureza, sem agir sobre ela, não diferenciada das outras formas de ação desenvolvidas pelo homem, coin-
transformando-a e adequando-a às suas necessidades, o homem perece. Daí cidindo inteiramente com o processo de trabalho que era comum a todos os
o adágio: ninguém pode viver sem trabalhar. No entanto, o advento da pro- membros da comunidade, com a divisão dos homens em classes a educação
priedade privada tornou possível à classe dos proprietários viver sem trabal- também resulta dividida; diferencia-se, em conseqüência, a educação destinada
har. Claro. Sendo a essência humana definida pelo trabalho, continua sendo à classe dominante daquela a que tem acesso a classe dominada. E é aí que se lo-
verdade que sem trabalho o homem não pode viver. Mas o controle privado da caliza a origem da escola. A educação dos membros da classe que dispõe de ócio,
terra onde os homens vivem coletivamente tornou possível aos proprietários de lazer, de tempo livre passa a organizar-se na forma escolar, contrapondo-se
viver do trabalho alheio; do trabalho dos não-proprietários que passaram a ter a à educação da maioria, que continua a coincidir com o processo de trabalho.
obrigação de, com o seu trabalho, manterem-se a si mesmos e ao dono da terra, Vê-se, pois, que já na origem da instituição educativa ela recebeu o nome
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de escola. Desde a Antigüidade a escola foi-se depurando, complexificando, siderado um “charlatão demagogo”, um meduti. A consciência da separação en-
alargando-se até atingir, na contemporaneidade, a condição de forma princi- tre as duas formações do homem tem a sua expressão literária nas chamadas
pal e dominante de educação, convertendo-se em parâmetro e referência para “sátiras dos ofícios”. Logo esse processo de inculturação se transforma numa
aferir todas as demais formas de educação. Mas essa constatação não implica, instrução que cada vez mais define o seu lugar como uma “escola”, destinada à
simplesmente, um desenvolvimento por continuidade em que a escola teria transmissão de uma cultura livresca codificada, numa áspera e sádica relação
permanecido idêntica a si mesma, conservando a mesma qualidade e desen- pedagógica. (idem, p. 356)
volvendo-se tão-somente no aspecto quantitativo. As continuidades podem ser Se é possível detectar certa continuidade, mesmo no longuíssimo tempo, na
observadas, é claro, sem prejuízo, porém, de um desenvolvimento por rupturas história das instituições educativas, isso não deve afastar nosso olhar das rup-
mais ou menos profundas. turas que, compreensivelmente, se manifestam mais nitidamente, ao menos em
Manacorda assinala essa questão quando aproxima os ensinamentos de Ptah- suas formas mais profundas, com a mudança dos modos de produção da ex-
hotep, no antigo Egito, que datam de 2.450 a.C., de Quintiliano, que viveu na istência humana.
antiga Roma entre os anos 30 e 100 de nossa era. Constatando que o “falar bem” Assim, após a radical ruptura do modo de produção comunal, nós vamos ter
é o conteúdo e o objetivo do ensinamento de Ptahhotep, observa que não se o surgimento da escola, que na Grécia se desenvolverá como paidéia, enquanto
trata, porém, do falar bem “em sentido estético-literário”, mas da “oratória como educação dos homens livres, em oposição à duléia,1 que implicava a educação
arte política do comando”, ou seja, nos termos de Quintiliano, “uma verdadeira dos escravos, fora da escola, no próprio processo de trabalho. Com a ruptura
institutio oratoria, educação do orador ou do homem político”. E acrescenta: do modo de produção antigo (escravista), a ordem feudal vai gerar um tipo
Entre Ptahhotep e Quintiliano passaram-se mais de dois milênios e meio, de escola que em nada lembra a paidéia grega. Diferentemente da educação
mais do que entre Quintiliano e nós; além disso, as civilizações egípcia e romana ateniense e espartana, assim como da romana, em que o Estado desempenhava
são muito diferentes entre si. Não obstante, acho que se pode legitimamente papel importante, na Idade Média as escolas trarão fortemente a marca da Ig-
confirmar esta continuidade de princípio na formação das castas dirigentes nas reja católica. O modo de produção capitalista provocará decisivas mudanças na
sociedades antigas, e não somente naquelas. Encontraremos as confirmações própria educação confessional e colocará em posição central o protagonismo do
disto no decorrer do estudo, mas devemos precisar agora que a continuidade Estado, forjando a idéia da escola pública, universal, gratuita, leiga e obrigatória,
e a afinidade não vão além deste objetivo proclamado, a saber, a formação do cujas tentativas de realização passarão pelas mais diversas vicissitudes.
orador ou político, e que a inspiração e os conteúdos, a técnica e a situação serão Essa perspectiva da análise da história da escola pelo aspecto das rupturas
profundamente diferentes de uma sociedade para outra. (Manacorda, 1989, p. permitirá abordagens mais radicais, como aquela que se apresenta ao final do
14) livro de Baudelot e Establet, A escola capitalista na França, no qual os autores
Manacorda retoma o mesmo tema na conclusão de sua História da educação, levantam três hipóteses de trabalho. Para efeitos deste texto, destaco a terceira:
referindo-se à descoberta, já no antigo Egito, de uma “constante da história da Enfim, nós colocaremos a hipótese, e será preciso buscar verificá-la, que a re-
educação, uma daquelas constantes que sempre são repropostas, embora sob alização da forma escolar no aparelho escolar capitalista é diretamente respon-
formas diferentes e peculiares”, descrevendo-a com as seguintes oposições: sável pelas modalidades segundo as quais este concorre para a reprodução das
A separação entre instrução e trabalho, a discriminação entre a instrução relações de produção capitalistas. Isto supõe evidentemente que nós elaborar-
para os poucos e o aprendizado do trabalho para os muitos, e a definição da íamos pouco a pouco uma definição sistemática da forma escolar, da qual nós
instrução “institucionalizada” como institutio oratoria, isto é, como formação simplesmente indicamos que ela repousa fundamentalmente sobre a separação
do governante para a arte da palavra entendida como arte de governar (o “dizer”, escolar, a separação entre as práticas escolares e o trabalho produtivo. (Baudelot
ao qual se associa a arte das armas, que é o “fazer” dos dominantes); trata-se, & Establet, 1971, p. 298)
também, da exclusão dessa arte de todo indivíduo das classes dominadas, con- Essa hipótese sugere o peso decisivo, senão exclusivo da escola na respon-
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sabilidade pela reprodução do modo de produção capitalista. E a via para o gimento do escriba, assim como na Grécia, em Roma e na Idade Média, cujas
cumprimento desse papel reprodutor é o desenvolvimento da escola como uma escolas, restritas, cumpriam a função de preparar os também restritos quadros
instituição apartada do trabalho produtivo. Repõe-se, portanto, a “constante da dirigentes (intelectuais) então requeridos. Nesses contextos, as funções manuais
história da educação” de que falava Manacorda: a separação entre instrução e não exigiam preparo escolar. A formação dos trabalhadores dava-se com o con-
trabalho. Não deixa de ser interessante essa constatação: uma hipótese formu- comitante exercício das respectivas funções. Mesmo no caso em que se atingiu
lada no âmbito do modo de produção capitalista a partir de uma análise minu- alto grau de especialização, como no artesanato medieval, o sistema de aprendi-
ciosa do funcionamento da escola francesa em pleno século XX; essa análise, zado de longa duração ficava a cargo das próprias corporações de ofícios: o
centrada no entendimento da escola como um aparelho ideológico de Estado aprendiz adquiria o domínio do ofício exercendo-o juntamente com os oficiais,
exclusivamente capitalista, termina por afirmar exatamente uma constante da com a orientação do mestre, por isso mesmo chamado de “mestre de ofícios”.
história da educação cujas origens remontam ao antigo Egito. Tratar-se-ia, en-
tão, de uma continuidade na descontinuidade? Questionamento da separação e tentativas de restabelecimento do vín-
Conclui-se, portanto, que o desenvolvimento da sociedade de classes, es- culo entre trabalho e educação
pecificamente nas suas formas escravista e feudal, consumou a separação entre
educação e trabalho. No entanto, não se pode perder de vista que isso só foi pos- A relação trabalho-educação irá sofrer uma nova determinação com o surgi-
sível a partir da própria determinação do processo de trabalho. Com efeito, é o mento do modo de produção capitalista.
modo como se organiza o processo de produção – portanto, a maneira como os Como se sabe, a sociedade capitalista ou burguesa, ao constituir a economia
homens produzem os seus meios de vida – que permitiu a organização da es- de mercado, isto é, a produção para a troca, inverteu os termos próprios da so-
cola como um espaço separado da produção. Logo, a separação também é uma ciedade feudal. Nesta, dominava a economia de subsistência. Produzia-se para
forma de relação, ou seja: nas sociedades de classes a relação entre trabalho e atender às necessidades de consumo, e só residualmente, na medida em que a
educação tende a manifestar-se na forma da separação entre escola e produção. produção excedesse em certo grau as necessidades de consumo, podia ocorrer
Essa separação entre escola e produção reflete, por sua vez, a divisão que se algum tipo de troca. Mas o avanço das forças produtivas, ainda sob as relações
foi processando ao longo da história entre trabalho manual e trabalho intelectu- feudais, intensificou o desenvolvimento da economia medieval, provocando a
al. Por esse ângulo, vê-se que a separação entre escola e produção não coincide geração sistemática de excedentes e ativando o comércio. Esse processo desem-
exatamente com a separação entre trabalho e educação. Seria, portanto, mais bocou na organização da produção especificamente voltada para a troca, dando
preciso considerar que, após o surgimento da escola, a relação entre trabalho e origem à sociedade capitalista. Nessa nova forma social, inversamente ao que
educação também assume uma dupla identidade. De um lado, continuamos a ocorria na sociedade feudal, é a troca que determina o consumo. Por isso esse
ter, no caso do trabalho manual, uma educação que se realizava concomitante- tipo de sociedade é também chamado de sociedade de mercado. Nela, o eixo do
mente ao próprio processo de trabalho. De outro lado, passamos a ter a edu- processo produtivo desloca-se do campo para a cidade e da agricultura para a
cação de tipo escolar destinada à educação para o trabalho intelectual. indústria, que converte o saber de potência intelectual em potência material. E a
Como assinalei em outro momento (Saviani, 1994, p. 162), a escola, desde estrutura da sociedade deixa de fundar-se em laços naturais para pautar-se por
suas origens, foi posta do lado do trabalho intelectual; constituiu-se num instru- laços propriamente sociais, isto é, produzidos pelos próprios homens. Trata-
mento para a preparação dos futuros dirigentes que se exercitavam não apenas se da sociedade contratual, cuja base é o direito positivo e não mais o direito
nas funções da guerra (liderança militar), mas também nas funções de mando natural ou consuetudinário. Com isso, o domínio de uma cultura intelectual,
(liderança política), por meio do domínio da arte da palavra e do conhecimento cujo componente mais elementar é o alfabeto, impõe-se como exigência gen-
dos fenômenos naturais e das regras de convivência social. Como já foi apon- eralizada a todos os membros da sociedade. E a escola, sendo o instrumento
tado, isso pode ser detectado no Egito desde as primeiras dinastias até o sur- por excelência para viabilizar o acesso a esse tipo de cultura, é erigida na forma
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principal, dominante e generalizada de educação. Esse processo assume con- trodução da maquinaria eliminou a exigência de qualificação específica, mas
tornos mais nítidos com a consolidação da nova ordem social propiciada pela impôs um patamar mínimo de qualificação geral, equacionado no currículo da
indústria moderna no contexto da Revolução Industrial. escola elementar. Preenchido esse requisito, os trabalhadores estavam em con-
O advento da indústria moderna conduziu a uma crescente simplificação dições de conviver com as máquinas, operando-as sem maiores dificuldades.
dos ofícios, reduzindo a necessidade de qualificação específica, viabilizada pela Contudo, além do trabalho com as máquinas, era necessário também realizar
introdução da maquinaria que passou a executar a maior parte das funções atividades de manutenção, reparos, ajustes, desenvolvimento e adaptação a no-
manuais. Pela maquinaria, que não é outra coisa senão trabalho intelectual ma- vas circunstâncias. Subsistiram, pois, no interior da produção, tarefas que exi-
terializado, deu-se visibilidade ao processo de conversão da ciência, potência giam determinadas qualificações específicas, obtidas por um preparo intelectual
espiritual, em potência material. Esse processo aprofunda-se e generaliza-se também específico. Esse espaço foi ocupado pelos cursos profissionais organi-
com a Revolução Industrial levada a efeito no final do século XVIII e primeira zados no âmbito das empresas ou do sistema de ensino, tendo como referência o
metade do século XIX. padrão escolar, mas determinados diretamente pelas necessidades do processo
Vê-se, então, que o fenômeno da objetivação e simplificação do trabalho coin- produtivo. Eis que, sobre a base comum da escola primária, o sistema de ensino
cide com o processo de transferência para as máquinas das funções próprias do bifurcou-se entre as escolas de formação geral e as escolas profissionais. Estas,
trabalho manual. Desse modo, os ingredientes intelectuais antes indissociáveis por não estarem diretamente ligadas à produção, tenderam a enfatizar as quali-
do trabalho manual humano, como ocorria no artesanato, dele destacam-se, ficações gerais (intelectuais) em detrimento da qualificação específica, ao passo
indo incorporar-se às máquinas. Por esse processo, dá-se a mecanização das que os cursos profissionalizantes, diretamente ligados à produção, enfatizaram
operações manuais, sejam elas executadas pelas próprias máquinas ou pelos os aspectos operacionais vinculados ao exercício de tarefas específicas (intelec-
homens, que passam a operar manualmente como sucedâneos das máquinas. tuais e manuais) no processo produtivo considerado em sua particularidade.
Pode-se, pois, estabelecer uma relação entre o caráter abstrato do trabalho as- Constatamos, portanto, que o impacto da Revolução Industrial pôs em
sim organizado, com o caráter abstrato próprio das atividades intelectuais: o questão a separação entre instrução e trabalho produtivo, forçando a escola a
trabalho tornou-se abstrato, isto é, simples e geral, porque organizado de acordo ligar-se, de alguma maneira, ao mundo da produção. No entanto, a educação
com os princípios científicos, também eles abstratos, elaborados pela inteligên- que a burguesia concebeu e realizou sobre a base do ensino primário comum
cia humana. não passou, nas suas formas mais avançadas, da divisão dos homens em dois
Essa nova forma de produção da existência humana determinou a reorgani- grandes campos: aquele das profissões manuais para as quais se requeria uma
zação das relações sociais. À dominância da indústria no âmbito da produção formação prática limitada à execução de tarefas mais ou menos delimitadas,
corresponde a dominância da cidade na estrutura social. Se a máquina viabi- dispensando-se o domínio dos respectivos fundamentos teóricos; e aquele das
lizou a materialização das funções intelectuais no processo produtivo, a via para profissões intelectuais para as quais se requeria domínio teórico amplo a fim de
objetivar-se a generalização das funções intelectuais na sociedade foi a escola. preparar as elites e representantes da classe dirigente para atuar nos diferentes
Com o impacto da Revolução Industrial, os principais países assumiram a tarefa setores da sociedade.
de organizar sistemas nacionais de ensino, buscando generalizar a escola básica. A referida separação teve uma dupla manifestação: a proposta dualista de es-
Portanto, à Revolução Industrial correspondeu uma Revolução Educacional: colas profissionais para os trabalhadores e “escolas de ciências e humanidades”
aquela colocou a máquina no centro do processo produtivo; esta erigiu a escola para os futuros dirigentes; e a proposta de escola única diferenciada, que efetu-
em forma principal e dominante de educação. ava internamente a distribuição dos educandos segundo as funções sociais para
A universalização da escola primária promoveu a socialização dos indivídu- as quais se os destinavam em consonância com as características que geralmente
os nas formas de convivência próprias da sociedade moderna. Familiarizando- decorriam de sua origem social.
os com os códigos formais, capacitou-os a integrar o processo produtivo. A in- Esboço de organização do sistema de ensino com base no princípio educa-
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tivo do trabalho e indireta. Ou seja, o trabalho orienta e determina o caráter do currículo escolar
Inspirado nas reflexões de Gramsci sobre o trabalho como princípio educa- em função da incorporação dessas exigências na vida da sociedade. A escola
tivo da escola unitária, procurei delinear a conformação do sistema de ensino elementar não precisa, então, fazer referência direta ao processo de trabalho,
tendo em vista as condições da sociedade brasileira atual. porque ela se constitui basicamente como um mecanismo, um instrumento,
Conforme Gramsci, a escola unitária corresponderia à fase que hoje, no Bra- por meio do qual os integrantes da sociedade se apropriam daqueles elemen-
sil, é definida como a educação básica, especificamente nos níveis fundamental tos, também instrumentais, para a sua inserção efetiva na própria sociedade.
e médio. Aprender a ler, escrever e contar, e dominar os rudimentos das ciências naturais
O modo como está organizada a sociedade atual é a referência para a or- e das ciências sociais constituem pré-requisitos para compreender o mundo em
ganização do ensino fundamental. O nível de desenvolvimento atingido pela que se vive, inclusive para entender a própria incorporação pelo trabalho dos
sociedade contemporânea coloca a exigência de um acervo mínimo de con- conhecimentos científicos no âmbito da vida e da sociedade.
hecimentos sistemáticos, sem o que não se pode ser cidadão, isto é, não se pode Se no ensino fundamental a relação é implícita e indireta, no ensino médio
participar ativamente da vida da sociedade. a relação entre educação e trabalho, entre o conhecimento e a atividade prática
O acervo em referência inclui a linguagem escrita e a matemática, já incor- deverá ser tratada de maneira explícita e direta. O saber tem uma autonomia
poradas na vida da sociedade atual; as ciências naturais, cujos elementos básicos relativa em relação ao processo de trabalho do qual se origina. O papel funda-
relativos ao conhecimento das leis que regem a natureza são necessários para mental da escola de nível médio será, então, o de recuperar essa relação entre o
compreender as transformações operadas pela ação do homem sobre o meio conhecimento e a prática do trabalho.
ambiente; e as ciências sociais, pelas quais se pode compreender as relações en- Assim, no ensino médio já não basta dominar os elementos básicos e gerais
tre os homens, as formas como eles se organizam, as instituições que criam e do conhecimento que resultam e ao mesmo tempo contribuem para o processo
as regras de convivência que estabelecem, com a conseqüente definição de di- de trabalho na sociedade. Trata-se, agora, de explicitar como o conhecimento
reitos e deveres. O último componente (ciências sociais) corresponde, na atual (objeto específico do processo de ensino), isto é, como a ciência, potência espir-
estrutura, aos conteúdos de história e geografia. Eis aí como se configura o cur- itual, se converte em potência material no processo de produção. Tal explici-
rículo da escola elementar. tação deve envolver o domínio não apenas teórico, mas também prático sobre o
A base em que se assenta a estrutura do ensino fundamental é o princípio modo como o saber se articula com o processo produtivo.
educativo do trabalho. O estudo das ciências naturais, assinala Gramsci, visa Um exemplo de como a atividade prática, manual, pode contribuir para
introduzir as crianças na societas rerum, e pelas ciências sociais elas são intro- explicitar a relação entre ciência e produção é a transformação da madeira e
duzidas na societas hominum: do metal pelo trabalho humano (cf. Pistrak, 1981, p. 55-56). O trabalho com
O conceito e o fato do trabalho (da atividade teórico-prática) é o princípio a madeira e o metal tem imenso valor educativo, pois apresenta possibilidades
educativo imanente à escola elementar, já que a ordem social e estatal (direitos e amplas de transformação. Envolve não apenas a produção da maioria dos obje-
deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. O concei- tos que compõem o processo produtivo moderno, mas também a produção de
to do equilíbrio entre ordem social e ordem natural sobre o fundamento do tra- instrumentos com os quais esses objetos são produzidos. No trabalho prático
balho, da atividade teórico-prática do homem, cria os primeiros elementos de com madeira e metal, aplicando os fundamentos de diversificadas técnicas de
uma intuição do mundo liberta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de produção, pode-se compreender como a ciência e seus princípios são aplicados
partida para o posterior desenvolvimento de uma concepção histórico-dialética ao processo produtivo, pode-se perceber como as leis da física e da química
do mundo... (Gramsci, 1975, v. III, p. 1.541; na edição brasileira, 1968, p. 130) operam para vencer a resistência dos materiais e gerar novos produtos. Faz-se,
Uma vez que o princípio do trabalho é imanente à escola elementar, isso sig- assim, a articulação da prática com o conhecimento teórico, inserindo-o no tra-
nifica que no ensino fundamental a relação entre trabalho e educação é implícita balho concreto realizado no processo produtivo.
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O ensino médio envolverá, pois, o recurso às oficinas nas quais os alunos ma- ogos de diferentes matizes), formula-se a exigência da organização da cultura
nipulam os processos práticos básicos da produção; mas não se trata de repro- superior com o objetivo de possibilitar a toda a população a difusão e discussão
duzir na escola a especialização que ocorre no processo produtivo. O horizonte dos grandes problemas que afetam o homem contemporâneo. Terminada a for-
que deve nortear a organização do ensino médio é o de propiciar aos alunos o mação comum propiciada pela educação básica, os jovens têm diante de si dois
domínio dos fundamentos das técnicas diversificadas utilizadas na produção, e caminhos: a vinculação permanente ao processo produtivo, por meio da ocu-
não o mero adestramento em técnicas produtivas. Não a formação de técnicos pação profissional, ou a especialização universitária.
especializados, mas de politécnicos. Ora, em lugar de abandonar o desenvolvimento cultural dos trabalhadores
Politecnia significa, aqui, especialização como domínio dos fundamen- a um processo difuso, trata-se de organizá-lo. É necessário, pois, que eles dis-
tos científicos das diferentes técnicas utilizadas na produção moderna. Nessa ponham de organizações culturais por meio das quais possam participar, em
perspectiva, a educação de nível médio tratará de concentrar-se nas modali- igualdade de condições com os estudantes universitários, da discussão, em nível
dades fundamentais que dão base à multiplicidade de processos e técnicas de superior, dos problemas que afetam toda a sociedade e, portanto, dizem respeito
produção existentes. aos interesses de cada cidadão. Com isso, além de propiciar o clima estimulante
Essa é uma concepção radicalmente diferente da que propõe um ensino mé- imprescindível à continuidade do desenvolvimento cultural e da atividade in-
dio profissionalizante, caso em que a profissionalização é entendida como um telectual dos trabalhadores, tal mecanismo funciona como um espaço de articu-
adestramento em uma determinada habilidade sem o conhecimento dos funda- lação entre os trabalhadores e os estudantes universitários, criando a atmosfera
mentos dessa habilidade e, menos ainda, da articulação dessa habilidade com o indispensável para vincular de forma indissociável o trabalho intelectual e o
conjunto do processo produtivo. trabalho material.
A concepção anteriormente formulada implica a progressiva generalização Ressalte-se que essa proposta é bem diversa da atual função da extensão uni-
do ensino médio como formação necessária para todos, independentemente do versitária. Não se trata de estender à população trabalhadora, enquanto recepto-
tipo de ocupação que cada um venha a exercer na sociedade. Sobre a base da ra passiva, algo próprio da atividade universitária. Trata-se, antes, de evitar que
relação explícita entre trabalho e educação desenvolve-se, portanto, uma escola os trabalhadores caiam na passividade intelectual, evitando-se ao mesmo tempo
média de formação geral. Nesse sentido, trata-se de uma escola de tipo “des- que os universitários caiam no academicismo. Aliás, Gramsci (1968, p. 125-
interessado” como propugnava Gramsci (1975, v. I, p. 486-487; na edição bra- 127) imaginava que tal função viesse a ser desempenhada exatamente pelas aca-
sileira, 1968, p. 123-125) . É assim que ele entendia a escola ativa, e não na forma demias que, para tanto, deveriam ser reorganizadas e totalmente revitalizadas,
como essa expressão aparecia no movimento da Escola Nova, isto é, a escola deixando de ser os “cemitérios da cultura” a que estão reduzidas atualmente.
única diferenciada preconizada pela burguesia. E, para ele, o coroamento dessa
escola ativa era a escola criativa, entendida como o momento em que os educan- Conclusão: a controvérsia relativa à politecnia
dos atingiam a autonomia. Completava-se, dessa forma, o sentido gramsciano
da escola mediante a qual os educandos passariam da anomia à autonomia, pela Abordei mais extensamente a questão da educação politécnica no livro Sobre
mediação da heteronomia. a concepção de politecnia (Saviani, 1989), que resultou do Seminário “Choque
Finalmente, à educação superior cabe a tarefa de organizar a cultura superior Teórico” organizado pelo Politécnico da Saúde Joaquim Venâncio, da Fundação
como forma de possibilitar que participem plenamente da vida cultural, em sua Oswaldo Cruz. Nesse momento considerei que na abordagem marxista o con-
manifestação mais elaborada, todos os membros da sociedade, independente- ceito de politecnia implica a união entre escola e trabalho ou, mais especifica-
mente do tipo de atividade profissional a que se dediquem. mente, entre instrução intelectual e trabalho produtivo. Tendo em vista, porém,
Assim, além do ensino superior destinado a formar profissionais de nível as controvérsias que se têm manifestado, voltei a essa questão em 2002, quando
universitário (a imensa gama de profissionais liberais e de cientistas e tecnól- fiz as seguintes considerações.
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Após minuciosos estudos filológicos da obra de Marx, Manacorda concluiu pela própria burguesia, detectando aí um movimento contraditório que envolve
que a expressão “educação tecnológica” traduziria com mais precisão a concep- a necessidade de atender à exigência objetiva, imposta pela grande indústria,
ção marxiana do que o termo “politecnia” ou “educação politécnica”. Mostrando de substituir o indivíduo parcial pelo indivíduo completamente desenvolvido.
a contemporaneidade entre o texto das Instruções aos delegados ao I Congresso E Manacorda entende, em conseqüência, que o adjetivo “politécnica” se refere
da Associação Internacional dos Trabalhadores, escrito em 1866, e O capital, à escola doada pela burguesia aos operários, onde já se faz presente, de forma
Manacorda constata que, em ambos os textos, há uma substancial identidade limitada, o conteúdo pedagógico da “educação tecnológica”.
na definição do ensino que é adjetivado de “tecnológico” tanto nas Instruções Sem desconsiderar a validade das distinções efetuadas por Manacorda, pen-
como n’O capital, aparecendo o termo “politécnico” apenas nas Instruções (Ma- so que, grosso modo, pode-se entender que, em Marx, “ensino tecnológico” e
nacorda, 1991, p. 30). Contudo, para além da questão terminológica, isto é, “ensino politécnico” podem ser considerados sinônimos. Se na época de Marx o
independentemente da preferência pela denominação “educação tecnológica” termo “tecnologia” era pouco utilizado nos discursos econômicos, e o era menos
ou “politecnia”, é importante observar que, do ponto de vista conceitual, o que ainda nos discursos pedagógicos da burguesia, de lá para cá essa situação mod-
está em causa é um mesmo conteúdo. Trata-se da união entre formação intelec- ificou-se significativamente. Enquanto o termo “tecnologia” foi definitivamente
tual e trabalho produtivo, que no texto do Manifesto aparece como “unificação apropriado pela concepção dominante, o termo “politecnia” sobreviveu apenas
da instrução com a produção material”; nas Instruções, como “instrução poli- na denominação de algumas escolas ligadas à atividade produtiva, basicamente
técnica que transmita os fundamentos científicos gerais de todos os processos no ramo das engenharias.
de produção”; e n’O capital, se enuncia como “instrução tecnológica, teórica e Assim, a concepção de politecnia foi preservada na tradição socialista, sendo
prática”. uma das maneiras de demarcar essa visão educativa em relação àquela corre-
Compreendo as preocupações filológicas de Manacorda que o levaram a spondente à concepção burguesa dominante (Saviani, 2002, p. 144-146).
propor uma distinção sugerindo que o termo “politecnicismo” se refere à “dis- Paolo Nosella (2006), em estudo denominado “Trabalho e perspectivas de
ponibilidade para os diversos trabalhos e suas variações”, enquanto “tecnologia”, formação dos trabalhadores: para além da formação politécnica”, retoma o as-
implicando a unidade entre teoria e prática, destacaria a omnilateralidade que pecto polêmico. Nesse texto Paolo faz duas ressalvas à abordagem apresentada
caracteriza o homem: nas linhas anteriores. A primeira refere-se à minha afirmação de que, grosso
O primeiro termo, ao propor uma preparação pluriprofissional, contrapõe- modo, as expressões “ensino tecnológico” e “ensino politécnico” podem ser
se à divisão do trabalho específica da fábrica moderna; o segundo, ao prever consideradas sinônimas em Marx. Diz ele: “a expressão cautelosa grosso modo
uma formação unificadamente teórica e prática, opõe-se à divisão originária não surte efeito, uma vez que as análises de Manacorda são contundentes no
entre trabalho intelectual e trabalho manual, que a fábrica moderna exacerba. O destacar a diferença entre as duas expressões para Marx, que atribuía à moderna
primeiro destaca a idéia da multiplicidade da atividade (a respeito da qual Marx ciência da tecnologia um sentido mais progressista do que a politecnia” (p. 11).
havia falado de uma sociedade comunista na qual, por exemplo, os pintores se- No entanto, devo reiterar que nessa conclusão eu me apoiei exatamente em
riam “homens que também pintam”); o segundo, a possibilidade de uma plena e Manacorda, quando ele constata que, em Marx, há uma substancial identidade
total manifestação de si mesmo, independentemente das ocupações específicas na definição do ensino que é adjetivado de “tecnológico” tanto nas Instruções
da pessoa. (idem, p. 32, grifo do original) como n’O capital, aparecendo o termo “politécnico” apenas nas Instruções (Ma-
Essas considerações são feitas a partir da observação de que Marx, n’O capi- nacorda, 1991, p. 30). Meu entendimento é que a posição de Manacorda, como
tal, se refere às “escolas politécnicas e agronômicas” e também às “escolas de en- bom filólogo, está apoiada na análise lingüística da etimologia das palavras, com
sino profissional onde os filhos dos operários recebem algum ensino tecnológi- o que, aliás, eu concordo. De fato, a palavra “politecnia”, como eu próprio tam-
co e são iniciados no manejo prático dos diferentes instrumentos de produção” bém destaquei no livro mencionado, publicado em 1989, literalmente significa
(Marx, 1968, p. 559). Assim, o autor reconhece a existência dessas escolas criadas múltiplas técnicas, multiplicidade de técnicas; daí o risco de entender esse con-
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ceito como a totalidade das diferentes técnicas fragmentadas, autonomamente articulei, no conceito de politecnia, os significados etimológicos dos termos uti-
consideradas. Tecnologia, por sua vez, literalmente significa estudo da técnica, lizados por Marx: educação politécnica e educação tecnológica, destacados por
ciência da técnica ou técnica fundada cientificamente. Daí, a conclusão de Ma- Manacorda nas denominações de “politecnicismo” e “tecnologia”.
nacorda reportando a noção de tecnologia à unidade entre teoria e prática que Portanto, sem negar a existência de outras leituras no interior do movimen-
caracteriza o homem. to socialista, importa reconhecer que a tradição que se impôs é essa por mim
Em minha análise não me fixei na etimologia, mas na semântica, entendida destacada. Para ilustrar isso, tomo, ao acaso, um exemplo retirado de Paschoal
como o estudo da evolução histórica do significado das palavras. E isso já me Lemme. No texto “A reforma do ensino na Albânia”, por ele elaborado em 1960,
conduz à outra ressalva apresentada por Nosella. na ocasião do 16º aniversário da Proclamação da República Democrática da
A segunda ressalva diz respeito à referência que fiz sobre a preservação do Albânia, podemos ler:
termo politecnia na tradição socialista. Paolo pergunta-se a que “tradição so- O ensino politécnico, que tem por objetivo iniciar os alunos nos princípios
cialista” eu estaria me referindo e diz ser necessário distinguir entre tradição fundamentais dos processos essenciais dos ramos mais importantes da produção
cultural socialista e socialismo real. Todavia, ele mesmo dá as respostas. Afirma moderna e os dotar de noções sobre o emprego dos principais instrumentos de
que “na União Soviética, sobretudo após Lenin, a categoria de politecnia deixou produção, será dado através das matérias de cultura geral (Matemática, Física,
de ser vista como estrutura estruturante do sistema de ensino como um todo” Química, Biologia, Geografia, Desenho Técnico) e por meio do ensino do tra-
(2006, p. 12). Portanto, quando falei em “tradição socialista”, não era ao social- balho e de excursões aos centros de trabalhos (canteiros de construções, usinas,
ismo real que eu estava me referindo. Mais adiante, Nosella vai fazer a seguinte fábricas, parques automobilísticos, centrais elétricas, cooperativas, fazendas,
consideração: etc.). (Lemme, 2004, v.5, p. 131)
Se a hermenêutica de Manacorda sobre os textos marxianos é correta, como Parece claro que Marx e Lenin, assim como Gramsci, não pretendiam su-
explicar que a tradição marxista na União Soviética, pelo menos até a morte de pervalorizar o instrumento de trabalho deslocando o foco de análise do ser
Lenin, tenha privilegiado o termo “politecnia” nas políticas educacionais so- humano para o instrumental técnico. Esse destaque feito por Nosella a par-
cialistas? A resposta de Manacorda é precisa: “Remonta exatamente a Lênin, na tir de Gramsci é também minha preocupação central. Aliás, nesse contexto é
passagem citada, a escolha do termo ‘politécnico’ em vez de tecnológico para oportuno lembrar que minha concepção global de educação não se expressa
o ensino na perspectiva do socialismo. Foi precisamente a sua autoridade que, por meio do termo “politecnia”, mas pela denominação “histórico-crítica” (Sa-
posteriormente, determinou o uso constante de ‘politécnico’ não só na termino- viani, 2005). No interior dessa concepção, cuja inspiração principal se reporta
logia pedagógica de todos os países socialistas, mas também – o que é filologica- a Gramsci, incorporei o termo “politecnia” quando tratei do problema relativo
mente incorreto – em todas as traduções oficiais dos textos marxianos em russo à explicitação da relação entre instrução e trabalho produtivo, como diretriz
e, daí, em todas as demais línguas” (Manacorda, 1991, p. 41, nota 25). (Nosella, para a organização da educação de nível médio. E isso foi feito tendo em vista o
2006, p. 13-14) significado semântico que esse termo adquiriu no âmbito da tradição socialista,
Está explicado, então, como se formou a tradição socialista que preservou o como procurei esclarecer.
termo politecnia, à qual me referi. E o próprio Paolo reconhece, no mesmo texto Finalmente, registro que minha tendência é endossar in totum a linha de
(p. 16), que o sentido geral que Lenin deu ao termo foi “genuinamente marxista”. análise desenvolvida por Paolo Nosella no texto citado. Particularmente, com-
Assim, independentemente das razões que levaram Lenin a esse entendimento, partilho da centralidade que pretendeu conferir à questão da liberdade na or-
o certo é que a semântica do termo politecnia deixou de corresponder ao seu ganização do ensino. Isso, com efeito, foi o que registrei na parte final do texto
sentido etimológico. Respeitando o seu significado semântico, conceituei po- por ele comentado (SAVIANI, 2002, p. 147-148). E o fiz apoiando-me, mais
litecnia como dizendo respeito aos fundamentos científicos das múltiplas téc- uma vez, no próprio Manacorda, quando externei as seguintes considerações:
nicas que caracterizam a produção moderna. Assim procedendo, em verdade, Como assinala Manacorda em Il marxismo e l’educazione, estamos diante de
41
uma problemática que é central no marxismo: o caminho da humanidade, mov- MARX, Karl. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
endo-se da genérica natureza humana originária caracterizada por múltiplas ________.; ENGELS, Friedrich. La ideologia alemana. Montevideo: Pueblos
ocupações, passa pela formação de uma capacidade produtiva específica provo- Unidos; Barcelona: Grijalbo, 1974.
cada pela divisão natural do trabalho; e chega à conquista de uma capacidade NOSELLA, Paolo. Trabalho e perspectivas de formação dos trabalhadores: para
omnilateral, baseada, agora, numa divisão do trabalho voluntária e consciente, além da formação politécnica. In: ENCONTRO INTERNACIONAL DE TRA-
envolvendo uma variedade indefinida de ocupações produtivas em que ciência BALHO E PERSPECTIVAS DE FORMAÇÃO DOS TRABALHADORES, 1.,
e trabalho coincidem. Está em causa, aí, a momentosa questão da passagem do 2006, Fortaleza. Anais... Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2006.
reino da necessidade ao reino da liberdade: PISTRAK, Moisei. Fundamentos da escola do trabalho. São Paulo: Brasiliense,
Sobre a base daquele reino da necessidade, lá onde cessa o trabalho voltado 1981.
para uma finalidade externa, e para além da esfera da produção material pro- SAVIANI, Dermeval. Sobre a concepção de politecnia. Rio de Janeiro: Fundação
priamente dita, surge, de fato, para Marx, o verdadeiro reino da liberdade, vale Oswaldo Cruz, 1989.
dizer, o desenvolvimento das capacidades humanas como fim em si mesmo. ________. O trabalho como princípio educativo frente às novas tecnologias. In:
(Manacorda, 1964, p. 15) FERRETTI, Celso J.; ZIBAS, Dagmar M. L.; MADEIRA, Felicias R.; FRANCO,
Enfim, creio poder afirmar que as análises formuladas por Nosella e aquelas Maria Laura P. B. (Orgs.). Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate
por mim desenvolvidas não se chocam, mas, ao contrário, complementam-se e multidisciplinar. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 151-168.
enriquecem-se mutuamente. Não será o uso ou não de determinado termo que ________. O choque teórico da politecnia. Trabalho, Educação e Saúde, v. 1, n.
as colocará em confronto. Se assim for, posso proclamar sem hesitação: abrirei 1, p. 131-152, mar. 2002.
mão do termo politecnia, sem prejuízo algum para a concepção pedagógica que ________. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 9. ed. rev. e
venho procurando elaborar. ampl. Campinas: Autores Associados, 2005.

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dores. [ Links ]) GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da
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LEMME, Paschoal. Memórias de um educador. 5 v. 2. ed. Brasília: INEP, 2004.
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Armando, 1964.
________. História da educação: da Antigüidade aos nossos dias. São Paulo:
Cortez/Autores Associados, 1989.
________. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo: Cortez/Autores Associa-
dos, 1991.
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A educação jurídica para além da negação: Entendendo que as dificuldades estruturais e conjunturais de uma interven-
ção prática organicamente vinculada à classe trabalhadora no âmbito da edu-
elementos para uma ação docente cação jurídica podem conduzir a crítica a uma mera negação de seu real papel
contra-ideológica1 na sociedade e o abandono da perspectiva de intervenção concreta alternativa
neste espaço, faz-se o esforço de retrabalhar elementos que dizem com a ne-
Luís Henrique Orio cessidade e a possibilidade de uma ação docente dita contra-ideológica no en-
sino do Direito.

1 Introdução 2 Breve esboço da conjuntura da educação superior no Brasil

A reflexão sobre o sentido de uma ação docente no âmbito da educação ju- Analisar os caminhos historicamente recentes da educação superior no Bras-
rídica que seja comprometida com a transformação da realidade implica em il é tarefa um tanto inglória: confrontar politicamente a hegemonia do consenso
uma primeira avaliação: a possibilidade de uma práxis de tal caráter em um estabelecida pós governo Lula da Silva (2003), que implica dizer em resumo que
espaço que se presta precipuamente ao contrário. Ou seja: a dedicação em en- pouco ou nada de substancialmente diferente foi feito em relação aos governos
campar uma perspectiva radicalmente diferente não mereceria ser resguardada anteriores neste setor, é atrair para si um falso lugar numa falsa polarização que
para outro campo mais profícuo ao seu desenvolvimento teórico-prático? as evidências insistem em desmentir.
Mesmo que à primeira vista uma resposta nos marcos do marxismo ou da Muito embora uma análise com este conteúdo não prescinda de uma con-
mera análise sócio-histórica dos limites e bloqueios inatos à educação jurídica frontação socialmente determinada de um complexo e ainda não totalmente
apontaria seu baixíssimo e quiçá nulo potencial de determinação de qualquer compreendido programa de governabilidade que notoriamente vem ruindo aos
alteração significativa na realidade concreta da educação, do Direito e da socie- poucos (não é precipitado dizer que os fenômenos de junho de 2013 apontam
dade brasileira, e muito embora estas ponderações em muito já foram enfren- para isso), as limitações da proposta do presente trabalho implicam concentrar
tadas e respondidas contundentemente por autores da robustez de um Roberto a abordagem na caracterização das atuais políticas para a educação superior no
Lyra Filho (1993), por exemplo, elas são trazidas neste artigo como reenfrenta- Brasil, a partir do seu aclaramento já bastante realizado por intelectuais e movi-
mento dialético necessário das contradições, possibilidades e sucedâneos éticos mentos sociais ligados à educação.
de tal perspectiva docente na educação jurídica. Assim que um elemento central para tal análise é o considerável atrelamento
Posta a perspectiva do artigo, entende-se não ser possível compreender a ed- das políticas educacionais no Brasil às orientações de organismos internacio-
ucação jurídica e seu papel hoje no Brasil de maneira descolada da conjuntura nais que, aliadas à conformação de uma abertura de mercado aos interesses
da educação superior como um todo, elemento que primeiro se tentará carac- internos, logrou aperfeiçoar o atual quadro da educação superior, que assume
terizar para o posterior enfrentamento das nuances históricas da educação ju- assim um traço marcadamente mercantilista.
rídica desde a criação dos primeiros cursos de direito no Brasil até o complexo Esta preocupação recente de organismos internacionais com a educação (no-
cenário atual. tadamente a partir do documento “La enseñanza superior: las lecciones deri-
Na sequência, dados os limites do presente artigo e a complexidade de en- vadas de la experiencia”, de 1995 do Banco Mundial) reflete a reorganização
frentamento de elementos objetivos para se promover uma espécie de balanço produtiva do capital internacionalmente. Enquanto que em meados da década
da vasta produção da crítica ao longo das últimas décadas, far-se-á uma tenta- de 1970 estes organismos dedicavam-se a formular e orientar políticas de con-
tiva de relacionar os entraves para o fortalecimento e vigor de correntes e inter- trole de pobreza, com a ilusão do apaziguamento de desigualdades em territóri-
venções críticas no ensino do Direito a fatores estruturais, políticos e sociais. os compreendidos como “propensos ao comunismo”, as referidas novas formas
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de imperialismo imprimiram também um giro nas ações destes sujeitos, que últimos anos: o vertiginoso crescimento do setor privado1, impulsionado já du-
passaram a colocar a educação como elemento central de seus discursos (LE- rante o governo FHC (1995-2002) e seguido no governo Lula da Silva (2003-
HER, 1999). 2010), com um traço distintivo que também é constitutivo desta nova hegemo-
Barreto e Leher (2008, p. 431), no trabalho em que produzem uma análise nia de coalisão, qual seja, o aporte de recursos públicos a este setor privado
de discurso dos documentos do Banco Mundial sobre a educação, apresentam o através do Programa ProUni, que funciona como uma espécie de compra de
conjunto de pequenas reformas e processos de “assimilação” daquelas referidas vagas para uma parte da população mais carente. Injeta-se recursos no capital
orientações nos marcos regulatórios brasileiros: privado e cria-se a falsa impressão de um atendimento de demandas por políti-
De fato, os marcos normativos mais amplos que vêm reconfigurando a edu- cas afirmativas (MATTOS, 2009).
cação superior brasileira são fortemente congruentes com os documentos do No setor público, foi no governo Lula que se verificou, principalmente a par-
banco apontados anteriormente. A primeira geração compreende o período de tir do REUNI (Decreto n° 6.096 de 2007) a criação de novas universidades e
“reformas” da Constituição Federal brasileira, em particular: a emenda constitu- uma expansão abrupta de vagas nas instituições federais de ensino. As posteri-
cional n. 19, de 4 de julho de 1998, que dispõe sobre a reforma administrativa ores greves de estudantes e trabalhadores federais da educação viriam a denun-
(parte estrutural da reforma do Estado), modificando também o inciso V do art. ciar os efeitos do REUNI nas instituições: com uma expansão desordenada e
206, e a proposta de emenda constitucional n. 370, que pretendeu alterar o estat- exclusivamente quantitativa, a relação professor x aluno se dilatou, com a conse-
uto da autonomia universitária, deslocando-a para o nível infraconstitucional. quente precarização do trabalho docente; sem a respectiva expansão estrutural,
Parte dos objetivos bancomundialistas já fora obtida na própria Constituição de as condições de ensino/aprendizagem restaram prejudicadas, consagrando ao
1988, em especial no art. 209 (“o ensino é livre à iniciativa privada”), por ação fundo um modelo de formação aligeirada e simplificada2.
de uma burguesia de serviços em ascensão. A segunda geração corresponde ao Neste modelo commoditista de educação superior sobressai nitidamente o
processo de elaboração da nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional desmantelamento do modelo tradicional de universidade, calcado na indisso-
(LDB, lei n. 9.394/96) e do Plano Nacional de Educação (PNE, lei n. 10.172/01), ciabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, para sua conversão institucional
dispositivos que decididamente incentivam a diferenciação das instituições de em um polo de oferta de ensino, enquanto que as atividades de pesquisa são im-
ensino superior e abrem caminho para a proliferação de cursos à distância. Fi- pulsionadas em alguns poucos centros de excelência. A organização do suporte
nalmente, a terceira geração corresponde a um complexo de medidas que artic- e financiamento das atividades de pesquisa, por sua vez, se mostra eminente-
ula avaliação, diretrizes curriculares, competências, empregabilidade, inovação mente produtivista, reproduzindo a lógica do capital no sentido de direcionar o
tecnológica, TIC, sociedade da informação/ conhecimento etc., operando a co- repasse de recursos tanto maiores sejam a produção e o status avaliativo prévio,
modificação da educação de modo orgânico com o padrão de acumulação que o que implica no fortalecimento de espaços de excelência e precarização de es-
prevaleceu no país. paços em construção.
Neste sentido, a educação é relegada à lógica de mercadoria (commodity) Estabelecido este quadro, vê-se que, se com Gramsci (1989) já era possível
- que é concepção nuclear da agenda do Banco Mundial -, circunstância que compreender o movimento de aformoseamento das instituições educacionais
no contexto brasileiro tanto logra atrelá-lo a este modelo de conhecimento glo- para o atendimento das necessidades de formação da classe trabalhadora, ao
balizado e também atende às contingências de demanda de força de trabalho de contrário da formação tradicional “humanista” destinada a intelectualidade
setores dominantes da burguesia local (financeiro, agronegócio e de exportação orgânica dominante, a complexificação das relações sociais sob o influxo das
de commodities), além de implicar numa significativa abertura de mercado reestruturações e adequações produtivas do capital e do imperialismo nas so-
para investimentos do capital interno (BARRETO E LEHER, 2008). ciedades periféricas logrou imprimir aos sistemas educacionais uma tarefa tam-
Este amálgama de interesses internos e externos determinantes do modelo bém centralmente hegemônica e de internalização de valores.
de educação superior no Brasil repercutiram em uma evolução constante nos Entrementes, se na condensação de políticas neoliberais com medidas sociais
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focalizadas, algo próximo ao neoliberalismo de terceira-via (MATTOS, 2009), educação superior brasileiro e às suas referidas contingências.
viu-se que a educação superior remodelada recentemente no Brasil se articula
na perspectiva de uma consolidação do consenso entre capital (um mercado 3 A educação jurídica do bacharelismo à produção em série
próprio no setor e demandas de formação de força de trabalho, principalmente)
e classe trabalhadora (pela ilusão do acesso), também é imperioso alocar a edu- A caracterização da educação superior brasileira realizada no tópico acima
cação superior enquanto educação formal num movimento mais amplo de rea- por si só já apresenta elementos bastante descritivos da educação jurídica em
firmação ideológica, como adverte Mészáros (2008, p. 44): específico. Por certo não é possível considerar a formação jurídica autonoma-
Aqui a questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indi- mente, de modo que as determinações centrais do modelo de educação superior
víduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis em vigência lhe são igualmente aplicáveis.
do sistema. Em outras palavras, no sentido verdadeiramente amplo do termo Ocorre que a formatação histórica da educação jurídica no Brasil possui al-
educação, trata-se de uma questão de “internalização” pelos indivíduos – tal gumas nuances que refletiram muito da organização sócio-política brasileira
como indicado no segundo parágrafo desta seção – da legitimidade da posição desde o século XIX até o presente tempo histórico e que de certa forma con-
que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas stituem um acúmulo bastante presente no que se entende por “cultura jurídica”
“adequadas’ e as formas de conduta “certas”, mais ou menos explicitamente es- brasileira.
tipulas neste terreno. [...] A funcionalidade original da educação jurídica no Brasil, com a criação
As instituições formais de educação certamente são uma parte importante (1827) e instalação (1828) dos primeiros cursos de Direito, em São Paulo e Ol-
do sistema global de internalização. Mas apenas uma parte. Quer os indivíduos inda, residia na necessidade de formação de uma elite intelectual que pudesse
participem ou não – por mais ou menos tempo, mas sempre em um número ocupar os cargos da institucionalidade própria que se criava após a independên-
de anos bastante limitado – das instituições formais de educação, eles devem cia (1822) perante a metrópole portuguesa (RODRIGUES, 2005).
ser induzidos a uma aceitação ativa (mais ou menos resignada) dos princípios O estado-nação independente, encampando a retórica e as formas liberais
reprodutivos orientadores dominantes na própria sociedade, adequados a sua burguesas, demandava para sua consolidação e para bem atender a intencion-
posição na ordem social, e de acordo com as tarefas reprodutivas que que lhes alidade das elites locais agora desgarradas da ingerência da metrópole, a ex-
forem atribuídas. istência de um
Este último elemento posto em evidência na citação constitui aspecto central [...] pólo de sistematização e irradiação do liberalismo enquanto nova ideo-
da compreensão da intencionalidade da educação formal para o funcionamento logia político-jurídica capaz de defender e integrar a sociedade; [e que pudesse]
do sócio-metabolismo do capital e sua conservação. De forma que concentrar dar efetivação institucional ao liberalismo no contexto formador de um quadro
a análise da educação superior em sua atual conjuntura e apontar criticamente administrativo-profissional. (WOLKMER, 2003, p. 67/68).
seu projeto em evidência não implica um esquecimento conveniente da prob- A partir da narrativa histórica exposta por Rodrigues (2005), pode-se visu-
lemática em torno daquelas suas características de certa forma inatas a um alizar a sequência evolutiva da educação jurídica no Brasil desde sua fundação
determinado modo de produção, algo já bastante acumulado e debatido pela nos seguintes traços:
própria bibliografia cá retomada. Ao contrário, escarafunchar o modelo de ed- Império: as faculdades eram controladas pelo governo central; o paradig-
ucação em processo de implementação traduz precisamente a necessidade de ma predominante era o do jusnaturalismo (já em 1870 começaria o influxo do
acompanhar dialeticamente os seus aformoseamentos em relação às nuances da positivismo comteano); o ensino/aprendizado seguia o estilo coimbrão (aulas-
organização material da vida social. conferência);
Resta, portanto, a tentativa de formular timidamente uma compreensão da Transição à República: abriu-se a possibilidade de criação de cursos priva-
educação jurídica que possa minimamente ser conectada ao modelo geral de dos; começam a surgir cursos em outras cidades do território brasileiro;
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República Velha: consolidação do paradigma positivista; giro dos currículos Não está colocada como perspectiva desta pequena contribuição o desvela-
para uma formação mais acentuadamente profissionalizante; mento da essência das intricadas relações e mútuas determinações entre o mod-
1930-1972: em 1931 os cursos se reestruturam em bacharelado e doutorado elo de educação jurídica, o mercado de oferta de cursos de Direito, o cada vez
(o primeiro com um perfil mais profissionalizante e o segundo destinado a es- maior mercado de cursinhos jurídicos preparatórios para concursos, a maneira
tudos de alta cultura); em 1962 é estabelecido o currículo mínimo nacional para como estes últimos são organizados e o Exame da OAB, mas não soa inconse-
os cursos de Direito; nesta época começa mais nitidamente a proliferação de quente a afirmação de que a educação jurídica no Brasil, em sua essência, trans-
cursos e faculdades; figura-se (ou, melhor, se reafirma) de um espaço de produção de conhecimento
1972 – hoje: em 1972 formula-se um novo currículo mínimo; acentua-se um para um grande balcão de negócios, no qual as mediações da ideologia (para o
crescimento já desordenado dos cursos de Direito; em 1996 é promulgada a Lei que aqui é trabalhado) são centralmente determinantes.
de Diretrizes e Bases da Educação; a gestão e regulação da educação jurídica
passa ser mais ampliada, compreendendo as intervenções da Ordem dos Ad- 4 A crítica nas (e) suas amarras
vogados do Brasil e Associação Brasileira do Ensino do Direito, por exemplo.
Evoluindo para uma caracterização mais recente da educação jurídica no A educação jurídica assim caracterizada, contudo, não deixou de receber em
Brasil depara-se com informações que indicam existirem aqui mais cursos de seu seio o enfrentamento de valorosas contribuições teórico-práticas de denún-
Direito do que em todos os demais países do mundo juntos e que o contingente cia de seu caráter formalista/tecnicista/mercadológico/ideológico e de con-
de bacharéis formados na área aproxima-se de quatro milhões3. Ou seja: uma struções alternativas contra-majoritárias.
produção em série. Adstritamente à tradição crítica jurídica brasileira4, que entrecruza obvia-
A circunstância de um curso de Direito demandar menores investimentos mente com as atuações em face da educação jurídica, floresceram o movimento
estrutural e de pessoal e o status que historicamente é conferido pelo senso co- do Direito Alternativo, o Pluralismo Jurídico, o Direito Achado na Rua, o Di-
mum aos profissionais da área são elementos que, conjugados às políticas de ab- reito Insurgente, foi criada a Rede Nacional de Advogadas e Advogados Popu-
ertura da educação a iniciativa privada executadas acentuadamente nas últimas lares (RENAP) e várias Assessorias Jurídicas Populares em diversas instituições
duas décadas possibilitam compreender este inchaço de estudantes e egressos e de ensino superior no Brasil, além das atuações da Federação Nacional de Es-
a proliferação de cursos. tudantes de Direito (FENED) e da Associação Brasileira do Ensino do Direito
A lógica mercantil, portanto, se repete: formação aligeirada, acentuadamente (ABEDi). Como já alertado na introdução, a proposta não é de fazer um bal-
profissionalizante e descolada de pesquisa e extensão. A força de trabalho que anço dos logros das experiências das teorias e práticas críticas para a educação
daí deriva é direcionada majoritariamente para setores da burocracia estatal jurídica, mas tão somente compreender as possibilidades, desafios e possíveis
ou para a proletarização (praticamente em regime de superexploração) em es- desvios para a retomada/fortalecimento/formulação de teorias críticas do di-
critórios e corporações, ao passo que os altos cargos do Judiciário continuam reito e da educação jurídica hoje.
sendo ocupados de acordo com um recorte de classe. Tome-se um primeiro elemento de ordem metodológica que projeta desde já
Dada a centralidade do espaço do Direito na legitimação superestrutural da a preocupação central trabalhada no artigo: a dinâmica da luta de classes, mais
ordem burguesa, é certo que o espaço de formação de seus operadores demanda do que qualquer instigação acadêmica, é o elemento-chave para compreensão
uma autorreferenciação e um enclausuramento epistêmico e ideológico um dos ascensos e descensos da criação e difusão de teorias críticas do Direito (em
tanto mais rígido à dialética da luta de classes, de modo que nele se vislumbra, se partindo da concepção dialética de Lyra Filho, 1980). Neste sentido, apenas
praticamente inalterável desde sua formação, uma estrutura de base axiológica a vinculação orgânica nesta relação fundante da sociedade pode preencher de
calcada no paradigma ideológico do liberalismo, com nuances de conserva- sentido a dedicação de, pelo menos, refrear a lógica alienante da educação ju-
dorismo, e no paradigma epistemológico do positivismo (RODRIGUES, 2005). rídica.
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De modo que a força da reprodução hegemônica da ideologia que conduz de criar, defender e praticar uma ação docente contra-ideológica no âmbito da
a introspecção da educação como acesso a um elemento de adequação e con- educação jurídica hoje.
formação aos lugares previstos e possíveis de se ocupar na sociedade atribui
à crítica (principalmente marxista) deste mesmo mecanismo de assimilação a 5 Para além da negação: elementos para uma ação docente contra-ide-
pecha do atraso, o lugar das utopias mortas e enterradas que não mais condizem ológica
com um ilusório tempo histórico no qual a tarefa é preservar o insuperável, é
contornar os microproblemas sociais eventualmente existentes com base no que Partindo da premissa de que as condicionantes levantadas até então ten-
a inclusão e aperfeiçoamento desta sociedade do conhecimento tem a oferecer, dem – como é da sua lógica –, principalmente, a desencorajar, refluir e por fim
aí incluídos o acesso, as leis, a responsabilidade social, etc5. acabar com iniciativas concretas de atuação contra-hegemônica e subversiva
Ciceroneiam esta decretação do fim da história, além dos paradigmas ma- dos sujeitos comprometidos com uma ação docente nestes termos no âmbito
joritários positivista e liberal, correntes das ciências sociais bastante em voga, da educação jurídica, parte-se agora para a abordagem de alguns elementos de
como as teorias do fim da sociedade do trabalho (André Gorz e o próprio reafirmação, para além de uma mera resistência retórica, teórica e acadêmica
Habermas, v.g.) e as teorias da pós-modernidade (Boaventura de Sousa Santos6 da crítica, da possibilidade uma ação docente superadora da mera negação da
e Jean-François Lyotard, v.g.), que, muito embora se postulem – e o são – críti- funcionalidade da educação jurídica para a ordem burguesa.
cas, acabam por referendar a impraticabilidade de “qualquer concepção de or- Isto porque, como adverte Mészáros (2008, p. 56)
dem social radicalmente diferente daquela estabelecida” (MÉSZÁROS, 2004, p. Necessitamos, então, urgentemente, de uma atividade de “contra-internali-
233, grifado no original).7 zação”, coerente e sustentada, que não se esgote na negação – não importando
Se a conjuntura da própria crítica se coloca tais bloqueios de horizonte pro- quão necessário isso seja como uma fase nesse empreendimento – e que de-
gramático e se a estrutura de base político-ideológica-epistemológica historica- fina seus objetivos fundamentais, como a criação de uma alternativa abrangente
mente constituída dos cursos de Direito (cf. RODRIGUES, 2005) ainda mais concretamente sustentável ao que já existe. [...]
corrói a resistência da crítica, a superestrutura acadêmica da educação jurídica A transcrição obviamente se refere a um tipo de ação política que transcende
no Brasil, em cima da qual os movimentos críticos concentravam prioritari- os limites de alcance da ação docente, mas é precisamente este elemento que se
amente esforços de inflexão, igualmente não abre margem suficiente para refor- entende aqui importante por em evidência: a necessidade de uma vinculação
mulações significativas dos cursos. orgânica com um projeto alternativo de sociabilidade. Esta vinculação, ousa-se
Sobre este aspecto, uma circunstância possível de apreensão objetiva das ex- sustentar, é o que pode dar sentido a uma ação docente em suas possibilidades
periências da crítica da educação jurídica pode ser apontada na insuficiência de contraposição ao processo de internalização e naturalização da ordem he-
das alterações de nível regulatório gerais e específicas dos cursos, no sentido gemônica por parte dos sujeitos em relação aos quais se dirige a prática educa-
do que destaca Rodrigues (2005), ao comentar o equívoco de propostas alter- tiva no sistema de educação formal.
nativas centradas exclusivamente em alterações curriculares. Bem assim que as A lição básica marxiana de que “todas as formas de negação permanecem
reformulações regulatórias (currículo e programa pedagógico) demonstraram condicionadas pelo objeto de sua negação” (MÉSZÁROS, 2008, p. 60) é retoma-
não ser, por si só, ferramentas possíveis de emplacar, por mínima que fosse, da no presente artigo no sentido de buscar um referencial à uma práxis docente
uma alteração concreta nas caraterísticas privatistas/tecnicistas/conservadoras no ensino do Direito que possa inseri-la concretamente e de maneira contribu-
dos cursos. O que novamente reforça o lugar da crítica como conteúdo estranho tiva na dinâmica da luta de classes do modo como ela se expressa neste setor da
da área. educação formal.
Compreendendo-se isto sistematicamente com a caracterização geral da ed- Por certo as limitações intrínsecas e extrínsecas desta empreitada contra-
ucação superior levantada no tópico 1 supra se pode ter uma noção dos desafios hegemônica, já bastante evidenciadas ao longo do texto, estão apreendidas em
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primeira conta. Como diz Mészáros (2008, p. 45), “[...] a educação formal não é ço de sua experiência na tentativa de promover um grito crítico no ensino da ca-
a força ideologicamente primária que consolida o sistema do capital; tampouco deira de Direito Constitucional, se extrai – particularmente para a problemática
ela é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical”. No deste trabalho – um elemento importante de inspiração para a construção de
entanto, uma ação docente referenciada num projeto hegemônico alternativo um outro tipo de prática docente: o ensino que se pretende crítico, referen-
pode, a mercê dos processos históricos de ascensão da classe dominada e suas ciado em autores que melhor lograram esclarecer os movimentos essenciais de
lutas, compor a construção de uma nova direção moral da sociedade (GRAM- seus objetos de estudo, não pode se converter em puro dogmatismo. Neste sen-
SCI, 1989). tido, pretende-se apontar aqui que um método de abordagem exclusivamente
A contra-ideologia como conteúdo fundante da ação docente converte a si tradicional e bancário, por mais que preenchido de autores revolucionários, não
mesma em ideologia propriamente dita, constituída objetivamente pelo con- tende a ser potencialmente uma ferramenta de libertação ideológica dos edu-
junto de valores e concepção de mundo que exsurgem da realidade de uma candos, já que a dilui em simbologias sem uma respectiva assimilação dialética.
classe dominada e que põe em disputa, rivaliza, com a ideologia dominante Ademais do cuidadoso reformular da abordagem do processo ensino/
e naturalizada, promovendo a negação prática da ordem estabelecida e legiti- aprendizagem, é certo que se o recente projeto de fragmentação da universidade
mada por aquela.8 Esta contraconsciência que surge da classe dominada atua escamoteou a pesquisa e a extensão do quotidiano das instituições (como um
na apropriação das mediações que, integradas na totalidade, possam repercutir dos corolários da formação minimalista e preservadora do etho scapitalista),
potencialmente as inversões que conduzem à superação da ordem estabelecida. uma ação docente contraideológica não pode se furtar de relegitimar estes dois
Para promover a realização pedagógica de uma ação docente assim caracteri- elementos do tripé, fugindo, quanto ao primeiro, do cientificismo positivista e
zada, por certo é necessária a habilidade dialética do docente de envolver os con- resistindo, quanto ao segundo, à política de cooptação que advém com a prática
teúdos abstratos e obrigatórios com a realidade concreta da vida do educando. de editais para financiamento das atividades.
Valer-se de sua liberdade de ensinar garantida constitucionalmente na perspec- Essa circunstância oportunamente encerra outra tensão de consciência e
tiva de arrefecer a lógica tecnicista do ensino do Direito com uma abordagem práxis: a necessidade de o docente do Direito reconhecer-se enquanto trabal-
que dê conta de correlacionar a abstração das formas jurídicas objeto de estudo hador, o que implica, aquém da tarefa de auxiliar na construção de caminhos
com as relações materiais que ficam obnubiladas pelas ficções jurídicas. Neste para a conquista das demandas históricas de sua classe – o que se vem tentando
sentido, um método de abordagem que muito tem a contribuir para uma ação projetar centralmente até então –, na imperiosidade das demandas mais ime-
docente contra-ideológica é o sócio-cultural, cujo principal expoente é Paulo diatas (econômicas e políticas) que revertam melhores condições de trabalho e,
Freire (MIZUKAMI, 1986). portanto, maior potencial de implementação de sua docência assim qualificada.
Por certo que uma ação docente contra-ideológica deve buscar a superação Por fim, é necessário frisar que os elementos suscitados quanto a possibili-
os tradicionais vícios que constituem majoritariamente as práticas educativas dade, legitimidade histórica e limites de uma ação docente nos termos em que
dos docentes do ensino do Direito. Uma caracterização elementar do que não se tentou delinear ao longo deste artigo não guardam a pretensão de confor-
fazer encontramos na crítica ferina de Lyra Filho (1993), que, ao tipificar as marem uma plataforma mirabolantemente inovadora, taxativa e orientadora de
concepções e práticas dos docentes conservadores, classifica-os em ceguinhos, uma ação docente pré-idealizada para a educação jurídica, mas tão somente a
catedr’áulicos ou nefelibatas. Se bem estas categorias se referem aos docentes proposta de sistematizar, em exercício de síntese para novo envolvimento dialé-
conservadores, delas se lhes retira o necessário cuidado para que a ação docente tico, elementos conformadores de uma unidade de sentido para uma possível e
contra-ideológica não seja por ela mesma igualmente manualesca, simplória e diferente ação docente na educação jurídica.
vazia de formulação; metodologicamente positivista, apenas substituindo códi-
gos por teorias críticas; ou vulgarmente academicistas e abstracionistas. 6 Conclusão
Fazendo uma leitura de Miaille (2010), no texto em que promove um balan-
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O artigo que ora finda procurou apontar elementos para a conformação de ente; de outro modo, atuar de forma imediata, como resistência, por dentro do
uma ação docente contra-ideológica no espaço da educação jurídica brasileira. sistema ao qual o sujeito docente está inserido, na defesa de direitos e garantias
Para que tal proposta pudesse assumir pertinência histórica, partiu-se de uma sistematicamente violados em contextos de crise.
primeira caracterização geral da educação superior, com o desvelamento políti-
co do movimento material e suas respectivas forças sociais que centralmente Referências
definem o modelo.
Determinada pelas mesmas lógicas que se expôs no primeiro momento, ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DOCENTES DO ENSINO SUPERIOR –
mas conformada por tensões e processos específicos, buscou-se um brevíssimo SINDICATO NACIONAL. Dossiê Nacional 3. Brasília, 2013.
histórico periodicizado da formação jurídica no Brasil, desde a sua criação e BARATTA, Alessandro. Ética e pós-modernidade. In: KOSOVSKI, Ester (org.).
chegando no seu perfil atual e no que este é produzido e logra produzir na to- Ética na Comunicação. Rio de Janeiro: Editora Mauad, 1995, p. 113-131.
talidade social brasileira. Partiu-se na sequência para o papel histórico da crítica BARRETO, Raquel Goulart e LEHER, Roberto. Do discurso e das condicionali-
da educação jurídica e para a compreensão de suas possibilidades e limites, pro- dades do Banco Mundial, a educação superior “emerge” terciária. Revista Bra-
jetando o quadro básico estrutural e conjuntural a partir do qual se sistemati- sileira de Educação v. 13, n. 39, set./dez. 2008.
zou elementos para a construção, legitimidade e prática de uma ação docente GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro:
contra-ideológica naquele âmbito. Civilização Brasileira, 1989.
A proposta de se pensar numa ação docente contra-ideológica deriva da LEHER, Roberto. Um Novo Senhor da educação? A política educacional do
apreensão do poder que a ideologia detém na conservação e reprodução do Banco Mundial para a periferia do capitalismo. Revista Outubro, v. 1, n. 3, p.
modo de produção e organização da sociedade com seu respectivo conjunto de 19-30, out. 1999.
ideias. Assim que se o poder de naturalização da ordem vigente e de obscureci- LYRA FILHO, Roberto. Por que estudar Direito hoje? In: SOUSA JR., José Ger-
mento das reais determinações que a mantém pode ser confrontado por meio aldo (org). Introdução Crítica ao Direito. Brasília: UnB, 1993, 4ª ed., p. 22-27.
da contraposição de um projeto de sociedade rival e radicalmente diferente, ___________. Para uma Visão Dialética do Direito. In: Sociologia e direito:
viu-se que há possibilidades limitadas e condicionadas de se projetar ao âmbito textos básicos para a disciplina de sociologia jurídica. SOUTO, Cláudio e FAL-
da educação jurídica a negação da primeira e a necessária defesa orgânica do CÃO, Joaquim (org.). São Paulo: Pioneira, 1999, p. 71-78.
segundo. MATTOS, Marcelo Badaró. Reorganizando em meio ao refluxo: ensaios de inter-
Outrossim, a possibilidade e a necessidade de uma ação docente contra-ide- venção sobre a classe trabalhadora no Brasil. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2009.
ológica na educação jurídica encontra um referencial desafiador nos recentes MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
fenômenos que eclodem no Brasil ao tempo em que este artigo é formulado, __________. A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008.
com manifestações em todas as partes, principalmente nas capitais, em frequên- MIAILLE, Michel. Ensinar o Direito Constitucional: a Crítica do Direito à Pro-
cia quase que diária, numa expressão ainda incerta e sem direcionamento de va. In: BELLO, Enzo (Org.) e LIMA, MartônioMont’Alverne Barreto (Org.). Di-
um descontentamento historicamente acumulado, principalmente das classes reito e Marxismo. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 317- 329.
exploradas. MIZUKAMI, Maria da Graça Nicoletti. Ensino: as abordagens do processo. São
Esta experiência recente abre um processo no qual a ação docente aqui de- Paulo: Editora Pedagógica e Universitária Ltda., 1986.
fendida pode se inserir concretamente, refletindo empiricamente o que se ten- RODRIGUES, Horácio Wanderlei. Pensando o ensino do Direito no século
tou sustentar: na denúncia e negação da ordem que começa timidamente mas XXI. Florianópolis: Fund. Boiteux, 2005.
concretamente a ser questionada e com a consequente ajuda na formação de WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. Rio de Janeiro: Fo-
uma direção moral que possa disputar a hegemonia e lançar um projeto difer- rense, 2003.
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A opressão e o machismo no sistema capitalista sistema.


A luta feminista tem como protagonista as mulheres, por isso, fortalecer os
espaços auto-organizados é também um dever nosso, enxergando esses espaços
Setorial de Mulheres da FENED como sendo de extrema importância para fortalecer as mulheres na luta con-
tra todo tipo de opressão tornando-as sujeitos políticos da sua própria emanci-
pação. Porém, é importante que se faça uma observação, os espaços auto-organ-
O combate ao machismo é uma tarefa que se coloca tanto para as mulheres izados também devem impulsionar outros espaços que possibilitem a inclusão
como para os homens, e é hoje uma das principais bandeiras do movimento dos homens no debate, a luta contra o machismo deve ser também uma luta
estudantil combativo. No entanto, antes de se falar sobre o machismo como dos homens. O feminismo não é um combate aos homens, e é justamente esse
forma de opressão, é preciso que se entenda o que é opressão e que a luta femi- cuidado que devemos ter para não transformar nossa luta em uma “guerra dos
nista pela emancipação da mulher é também uma luta por um novo modelo de sexos”, nossa luta é contra a opressão e por um novo modelo de sociedade onde
sociedade. A opressão se dá quando as diferenças entre as pessoas se transfor- as mulheres não sejam mais oprimidas, e a compreensão dessa tarefa pelos ho-
mam em desigualdades, essa desigualdade coloca em situação de desvantagem mens é fundamental. O machismo está no plano ideológico e cultural, e é essa
e de submissão um determinado grupo social , seja por sua orientação sexual, ideologia que oprime as mulheres que deve ser combatida.
por sua raça, por sua nacionalidade, e, no caso das mulheres, a opressão se dá O feminismo é ideia radical de que as mulheres são gente, dotadas de auto-
pelo simples fato de serem mulheres, é o que chamamos opressão de gênero nomia e direitos plenos, portanto, vamos à luta, pois a emancipação feminina e
ou de MACHISMO. Mas essa opressão das mulheres não se dá por acaso. As a luta por um novo modelo de sociedade passa pelas nossas mãos!
opressões como um todo servem para manter ainda com mais intensidade a
exploração dentro do sistema capitalista, apesar de não ser uma criação desse
sistema, colabora de maneira fundamental para manter ele em pleno funciona-
mento, pois está localizado no plano ideológico e cultural, ou seja, funciona Mulheres e a assistência estudantil
como uma superestrutura.
Entender o machismo como sendo uma opressão que fortalece e mantém a Setorial de Mulheres da FENED
exploração capitalista é compreender que não é por acaso que, em média, 33%
das mulheres recebem menos do que os homens exercendo o mesmo trabalho e
as mesmas funções, e se essa mulher for negra esses números aumentam absur- Como todas as demais conquistas das mulheres, a inserção na Universidade
damente, por exemplo, 97% dos empregos domésticos, que são extremamente foi fruto de muita luta. Com o desenvolvimento do sistema capitalista e a ne-
precarizados, são exercidos por mulheres, em sua maioria negras. A desvalori- cessidade de mão de obra, as mulheres foram obrigadas a se lançarem no mer-
zação do trabalho doméstico também reflete essa realidade, pois reproduz a cado com as piores condições de trabalho e remunerações. Nesse contexto, elas
ideologia de que os espaços domésticossão um espaço feminino. As mulheres se organizaram, conquistando o direito de se especializarem, buscando melho-
trabalhadoras são vistas no mercado como mão de obra barata, recebendo sa- rias na qualidade de vida e trabalho.
lários baixos e vulneráveis a todo tipo de abuso nos espaços de trabalho, a mais Entende-se que a Universidade deve ser um espaço de formulação e análise
comum é o assédio sexual, 43% do mercado de trabalho informal é exercido por crítica. É seu papel construir políticas de erradicação de todo tipo de opressão,
mulheres, além disso, mais da metade (em média 53%) das mulheres ganham inclusive de gênero. Hoje, as mulheres possuem maior nível de escolaridade
até um salário mínimo e estão entra as mais pobres do país, é a opressão colabo- que os homens e consequentemente, são maioria no Ensino Superior. Apesar
rando e mantendo a exploração do capitalismo, gerando lucro e renda para esse deste avanço, as Instituições de Ensino ainda não se adequaram à realidade que
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já não é mais nova. Assim, dentro do espaço universitário se reproduzem os grades e prazos às mães e gestantes.
mecanismos de dominação-exploração das mulheres, como a divisão sexual Em 2012, visualizamos uma greve geral da educação brasileira, a maior
do trabalho e a violência. Quantas mulheres vemos no curso de engenharia? das últimas décadas, que traduz o fim do ciclo do plano de restruturação e ex-
Quantos homens no de pedagogia? O modelo sexista de sociedade se coloca pansão das universidades federais (REUNI). Assim, professor@s, servidor@s
também no interior da universidade, onde se reproduzem a ideologia e as práti- e estudant@s se unificam na luta por uma universidade pública, gratuita e de
cas machistas. qualidade.
Mas, para, além disso, quem faz o trabalho reprodutivo (limpeza e cozinha) Não podemos aceitar os cortes de gastos do Governo Federal para a Edu-
na universidade? É ali que está a maioria das mulheres pobres e negras da uni- cação, pois serão as mulheres estudantes as mais afetadas. Por isso, o Comando
versidade, funcionárias terceirizadas, cuja precarização do trabalho é imensa e a Nacional de Greve Estudantil (CNGE), que foi criado no dia 05 de junho de
capacidade/permissão de reunião para reivindicarem seus direitos é baixíssima. 2012 na cidade de Brasília com o objetivo de facilitar a coordenação de ações
Nas Universidades Privadas, as que estão na sala de aula, são pouquíssimas e, na em escala nacional e avançar nas negociações junto ao Estado tendo a função
maioria das vezes, atreladas ao PROUNI. Ou seja, cursando as piores universi- de representar e apoiar a organização dos e das estudantes brasileir@s em greve,
dades do país, sendo perseguidas, proibidas de participar do movimento estu- defende como pautas prioritárias a destinação de 2 bilhões para o PNAES(Plano
dantil, pressionadas a saírem da universidade, sem assistência estudantil. Diante Nacional de Assistência Estudantil) com foco na implementação de creches
dessa realidade, muitas evadem e não conseguem completar seus estudos. universitárias em todo o país.
Na Universidade Pública, a situação não é diferente, o espaço universitário
é muito árduo para mães e gestantes que, em sua maioria, irão depender de
seus pais ou companheiros para continuarem seus estudos, em relação de com-
pleta dependência econômica. Em algumas universidades, as residentes que en- Carta de avaliação da setorial LGBT da FENED
gravidam são expulsas e ficam sem condições de terminarem seus estudos. Mas sobre o 33º Encontro Nacional de Estudantes de
o que obriga a Universidade a criar condições reais para incentivar a permanên-
cia das mães? Além de enfrentarem cotidianamente em seus lares e na socie- Direito (ENED - Parahyba)
dade o machismo e o preconceito, na grande maioria das vezes elas também não
têm com quem deixar seus filhos, o que as impossibilita de conciliar a rotina do Setorial LGBT da FENED
lar às demandas do curso. Fatos como estes só contribuem para excluir ainda
mais as estudantes oriundas das parcelas mais pobres da classe trabalhadora.
Não só uma questão de permanência, a assistência estudantil específica para A construção de uma sociedade livre de opressões, emancipada e iguali-
mulheres significa viabilizar o acesso da mulher à universidade, que muitas tária, em defesa da classe trabalhadora, deve estar na ordem do dia do movi-
vezes deixa de ingressar na universidade pela ausência de suporte necessário. mento estudantil que se pretende combativo. A FENED - que vem avançando
Entendemos que a universidade deve oferecer políticas específicas de apoio bastante nestes últimos anos, reafirmando-se enquanto entidade socialista e
às mulheres estudantes, prezando pelo seu acesso e permanência na universi- antigovernista -, deve manter a radicalidade de suas lutas, no sentido de ir à
dade e permitindo desse modo sua libertação econômica e a transformação da raiz dos problemas, combatendo os elementos estruturais e estruturantes dessa
produção de conhecimento, historicamente hegemonizada pelos homens. sociedade: as classes sociais e a propriedade privada. O capitalismo não cria,
Nesse sentido, reivindicamos assistência estudantil: alimentação, bolsas, porém, apropria-se do patriarcado e do machismo para perpetuar o lucro e a
transporte, moradia, creches, brinquedotecas, acesso aos hospitais universitári- exploração. A dominação econômica e política de uma classe sobre outra, que
os e às clínicas universitárias para mães e filh@s, bem como flexibilização das se dá através manutenção da propriedade privada dos meios de produção e do
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uso do aparato estatal para fins particulares da classe dominante, não é a única enquanto entidade representativa das/os estudantes de direito, em apontar as
garantia para a conservação do capitalismo. As classes dominantes servem-se contradições existentes na sociedade atual que apregoa a inclusão através da
também de diversos mecanismos de opressão que incidem, sobretudo, em seg- lógica de mercado, excluindo aqueles que não se enquadram no padrão de con-
mentos da sociedade como mulheres, negras e negros e homossexuais, que são sumo, o chamado “pink money”, que a comunidade LGBT pode oferecer. O
colocados à margem da lógica machista, branca e heteronormativa. Essa mar- incentivo ao turismo gay no Rio de Janeiro, eleita capital gay do mundo, por ex-
ginalização, que, via de regra, exclui estes segmentos da vida política, do pleno emplo, não pode mascarar a marginalização e exploração sexual de transexuais
exercício de seus direitos, da formação de uma subjetividade plena, viabiliza, do e travestis fomentada por este modelo de desenvolvimento. É necessário que se
outro lado, a construção de um sujeito padrão, pleno, completo, modelar. Cer- reconheça e se combata a exclusão dentro da comunidade LGBT a negras/os,
tamente, um tipo que não espelha a totalidade dos sujeitos, suas nunces, suas travestis, portadores/as de necessidades especiais, transexuais, etc.
particularidades. A nossa luta é todo dia! Contra o racismo, machismo e homofobia!
Transforma-se o diferente em desigual, incapaz de exercer plenamente sua As setoriais de Mulheres, Negras/os e LGBT da Federação Nacional de Es-
subjetividade e, consequentemente, obrigado a lutar por pequenas reformas tudantes de Direito consolidaram-se ao longo do biênio 2011/2012. A fundação
do sistema - como direitos civis - para minimamente (talvez apenas simbolica- das duas últimas no 32º ENED em São Paulo e a construção dos espaços - tais
mente) realizar o irrealizável do capitalismo (mesmo que originariamente seja quais II Curso de Formação Política da FENED, Encontro de Mulheres Es-
uma de suas bandeiras): igualdade material. tudantes de Direito, II Seminário de Direitos Humanos da FENED, interven-
O capitalismo não está presente apenas no sistema econômico. Uma rev- ções em CONEREDs, entre outros - e políticas pensadas para a FENED durante
olução, uma mudança, a destruição do sistema desses últimos 300 anos, não esse tempo possibilitaram um avanço significativo no debate de opressões na
se encerra na mudança das relações de producão. Fomos e somos educados a nossa federação e, consequentemente, das/os militantes que a constroem cotidi-
partir da segregação, do consumo (i)mediato do outro, da exploração em nossas anamente.
relações mais íntimas, e fomos educados a seguir um padrão: um tipo universal O acúmulo prático e teórico gerado nesses espaços apontou a necessidade
intencionalmente cego à diversidade e à classe alijada de sua própria subjetivi- de organização das setoriais para o Encontro Nacional, do qual uma das fun-
dade. ções é mostrar as principais bandeiras da Federação e do Movimento Estudantil
Não é diferente no Brasil: é apenas mascarado milimetricamente por um de Direito às/aos demais estudantes numa tentativa de disputa de consciência
governo conciliador de classes, que serve o banquete à burguesia e bate a toalha e convencimento para construção da entidade, encontrando nesta um espaço
desse mesmo banquete para a classe trabalhadora. Um governo que se constrói contra-hegemônico ao (im)posto nas faculdades de Direito, reforçadoras da
por migalhas multi-panfletárias, cujas ações e omissões em políticas públicas lógica excludente, elitista, machista, racista e heteronormativa já citada. Em
têm sido vistas de forma insatisfatória, isto é, por retrocesso, pelo movimento resposta ao crescimento das setoriais externalizaram-se, durante o 33º ENED,
LGBT (principalmente as contidas no “Plano de Combate à Homofobia” - elab- preconceitos naturalizados e reproduzidos na sociedade e nas faculdades de Di-
orado há quatro anos, e que ainda não saiu do papel - e campanhas de pre- reito corriqueiramente.
venção à AIDS), demonstrando a finalidade eleitoreira do governo Dilma em Intervenções durante as plenárias e as culturais foram construídas e executa-
suas alianças com setores fundamentalistas religiosos. Apontamos, portanto, a das ao longo do Encontro - desconstrução de gênero na plenária de abertura;
necessidade do diálogo entre os diversos setores do movimento LGBT antigov- leitura de uma carta feita pelas três setoriais contra os atos machistas na plenária
ernista, radical e socialista que seja combativo e propositivo em suas demandas. sobre Exploração Sexual; Marcha das Vadias no ENED Fantasy; Ato das seto-
De acordo com o Grupo Gay da Bahia, cresceu em 118% os casos de assas- riais de negras/os e LGBT durante festas do Encontro. Além disso, a setorial
sinatos de lésbicas, travestis e gays entre os anos de 2007 e 2011. Num país com LGBT articulou uma Festa da Diversidade Sexual numa tentativa de propor e
mais faculdades de Direito do que o resto do mundo urge a atuação da FENED, construir, em conjunto com a FENED uma proposta de politização das festas
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do evento. Contra o racismo e o extermínio da juventude
A resposta reacionária à ação política das setoriais não tardou a surgir, re-
produzindo a violência do preconceito em sua forma bruta: perseguições a negra! Manifesto de Lançamento do Coletivo de
mulheres estudantes; invasão dos banheiros e banhos femininos por homens; Negras e Negros da FENED
agressão física a estudantes LGBT. Tais ações não são eventos isolados ou uma
simples excrescência social, mas são reproduções do que é o sistema como todo, Setorial de Negras e Negros da FENED
sendo a aplicação mecânica - e, portanto, acrítica - de um discurso excludente
e opressor necessário ao capitalismo e que se faz presente cotidianamente nas
faculdades de direito. “Vi um pretinho, seu caderno era um fuzil”
A Setorial LGBT da FENED repudia a ação auto-proclamada homofóbica (Racionais MC’s)
ocorrida na Festa da Diversidade, bem como as constantes afirmações posteri-
ores de que é correto agredir pessoas que divergem na compreensão da conju- 1)O movimento estudantil de Direito atuando na federação nacional de es-
gação do verbo amar. Um casal ser agredido por demonstrar seu amor e ousar tudantes de direito do Brasil – FENED, passa por um momento de reconstrução
expressar publicamente sua subjetividade não é uma derrota apenas para o e de reaproximação dos estudantes de direito das universidades públicas e pri-
movimento LGBT: é uma derrota para a esquerda, para quem um dia sonhou vadas de todo o país. Um momento novo, que deixa de lado a burocracia e o
com outro mundo, para quem um dia se sentiu diferente de um padrão natu- aparelhamento e coloca novamente a FENED nos trilhos do movimento estu-
ralizado. dantil combativo numa defesa clara e acertada dos interesses estudantis com-
Contudo a brutalidade do mundo nunca impediu a primavera. O movimento binados com as necessidades da classe trabalhadora. Dentro deste processo um
LGBT e a FENED-LGBT continuarão sua militância cotidiana contra a homo- dos destaques de luta da federação tem sido o combate às opressões em todos os
fobia, o machismo, o racismo e qualquer outra forma de opressão e exploração seus níveis. A luta contra o machismo, a homofobia, o racismo e demais formas
do ser humano. Lutamos por uma mudança radical da sociedade, reforçando a de exclusão, hoje são prioridades na agenda política da entidade.
necessária organização do movimento LGBT de forma combativa, antigoverni-
sta e socialista. 2)Nas universidades, e principalmente nos cursos de direito, os estudantes
Convidamos todas/os que se indignam contra as opressões a construir a de origem negra estão sempre em número reduzido. A exclusão da educação
Federação Nacional de Estudantes de Direito e suas setoriais, pautando a ne- superior brasileira historicamente é social e racial. Infelizmente esse quadro
cessidade de construção de um movimento estudantil crítico que saiba dar re- não diz respeito somente à universidade, mas a todos os espaços no interior da
spostas ao sucatemento e mercantilização da educação pública, mas que não nossa sociedade, o que nos remonta a compreender o racismo como elemento
se furte do debate de exploração e opressões dentro e fora da universidade. Do estruturante da formação do povo brasileiro e da nossa atual divisão em classes.
mesmo modo convidamos os setoriais de mulheres e negras/os a ampliar os É preciso entender esse contexto para não acharmos que o problema do rac-
debates intersetoriais com o intuito de formar nossa militância a partir de uma ismo é individual e revanchista colocando negros x brancos. O problema do
compreensão mais próxima da totalidade. Sigamos em frente! racismo é histórico, social e para ser superado precisamos fazer um corte de
classe, pois fazemos a análise de que nem todo negro está do nosso lado, como
nem todo branco é nosso inimigo. Os que estão com a classe dominante não
podem defeder conosco a libertação do povo negro e a transformação radical
da sociedade.
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3)No atual momento a população pobre e negra, mesmo com algumas con-
quistas pontuais depois de muita luta, sofre uma discriminação intensa, uma
ofensiva na retirada dos seus direitos sociais como moradia, saúde e ducação e
tem sido vítima histórica de uma perseguição facista que só tem aumentado a
cada dia. Hoje defendemos as cotas sociais e raciais no ensino superior público,
a retirada das tropas brasileiras do Haiti, a demarcação das terras quilombolas,
o fim do PROUNI, mas sem penalizar o estudante, aplicando o dinheiro dessas
bolsas em vagas nas universidades públicas, mas nenhuma dessas lutas podem
ser emcampadas se não estivermos vivos. O estado brasileiro através de uma
política de segurança pública assassina, com o falso discurso oficial do combate
ao tráfico e do “crime organizado”, patrocina uma verdadeira chacina do povo
negro nas periferias país afora. O Estado continua a chegar apenas com o braço
armado deixando de investir em direitos. O que sobe o morro é o caveirão e as
UPP’s, não escolas e saneamento básico, por exemplo. São inúmeros os rela-
tos das entidades e movimentos de direitos humanos, inclusive internacionais,
como os relatórios da ONU.

4)Com a chegada dos megaeventos (Olimpíadas e Copa do Mundo) e do


aprofundamento da concepção de cidade enquanto mercadoria, a situação tem
ficado ainda mais alarmante. Várias comunidades têm sido retiradas de suas
moradias de forma violenta e arbitrária em troco dos gigantescos lucros da es-
peculação imobiliária. Uma verdadeira farra dos empresários das construtoras e
dos transportes em parceria com os governos estaduais e federal. Enquanto isso
nós negros e negras amargamos mais dor e sofrimento. Precisamos estar firmes
na resistência e somente a auto-organização e a inclusão das reivindicações
históricas dos movimentos negros na pauta cotidiana das nossas entidades, em
especial da FENED, pode nos trazer vitórias reais. A luta institucional deve ser
feita, como a aprovação das cotas raciais, a revisão do estatuto racial (que de
muita coisa não serviu pois as principais reivindicações foram retiradas do pro-
jeto aprovado) e o ensino da histórica e cultura afro-brasileira nas escolas, mas
devemos estar prioritariamente organizados nas ruas para fazer a necessária
pressão política e de fato alterarmos esse quadro lamentável que nos é imposto
há mais de 500 anos.

São Paulo, 27 de julho de 2011 – 32º Encontro Nacional de Estudantes de


Direito

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