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CH 38 – Mar de Paixões – Miranda Jarrett

MAR DE PAIXÕES
PROVIDENCE
MIRANDA
JARRETT

Desprezada pela sociedade respeitável de Rhode


Island por seu tormentoso passado, Hanna Snow
estava à beira do desespero. Seu pai
desaparecera durante uma viagem de navio e ela
não tinha a quem pedir ajuda. Samuel Colburn
sua única esperança, mas esse atraente e
teimoso capitão mostrava-se bem difícil de
convencer... Sam Colburn amaldiçoou o destino
que tinha trazido Hanna a bordo de seu brigue. O

PROJETO REVISORAS 1
CH 38 – Mar de Paixões – Miranda Jarrett

mar não era lugar para mulheres, menos ainda


para a fascinante loira cuja mera proximidade
fazia sangue dele ferver!

DISPONIBILIZAÇÃO DO LIVRO: Valeria


DIGITALIZAÇÃO: Joyce
REVISÃO: DéboraP

NOTA DA AUTORA

África do Norte não era um bom


lugar para os americanos durante os
séculos XVIII e XIX. Centenas de
navegantes norte-americanos
naufragavam ou eram capturados e
escravizados por homens de tribos
árabes e por piratas. Dentre os que
sobreviveram, havia alguns que
conseguiram voltar para a América do
Norte na condição de celebridades,
indo visitar a Casa Branca para apertar
a mão do presidente e publicando o
relato de suas aventuras.
A mais expressiva dessas narrativas
é An Authentic Narrative of the Loss of

PROJETO REVISORAS 2
CH 38 – Mar de Paixões – Miranda Jarrett

the American Brig Commerce, da


autoria do capitão James Riley. Quando
foi publicado em 1817, o livro de Riley
transformou-se em um verdadeiro
bestseller. Outra narrativa, escrita por
Eliza Bradley, esposa de um capitão
vítima de naufrágio, data de 1818. O
relato da sra. Bradley é mais ameno e,
dentre os “padecimentos” que sofreu,
ela cita a perda de seu chapéu e de sua
elegância sob o sol do deserto do
Saara. Quero registrar meus
agradecimentos a Mary Leahy,
Seymour Adelman Rare Book Librarian
de Miriam Coffin, Canaday Library e
Bryn Mawr College, por me fornecerem
esses livros e outros de inestimável
valor.

PROJETO REVISORAS 3
CH 38 – Mar de Paixões – Miranda Jarrett
CAPÍTULO I

Providence, Rhode Island Junho de 1796

Cinco minutos. Era todo o tempo de que Hanna Snow dispunha para encontrar o homem que
poderia salvar a vida de seu pai. Cinco minutos de escândalo; cavalheiros fitando-a embasbacados e
damas ocultando o rubor por trás dos leques. Cinco minutos antes que os criados a levassem até a porta e
a afastassem da sociedade respeitável que não mais a acolhia em seu seio.
Ela equilibrou-se sobre o muro de tijolos, suspendendo cuidadosamente as saias para não sujá-las
de musgo. As risadas dos convivas cortaram o silêncio da noite de verão, misturando-se às batidas
descompassadas de seu coração.
Hanna recriminou-se pelo próprio medo. Entrar de penetra na festa de Sara Brown não era nada
comparado aos perigos que seu pai enfrentara a cada viagem no mar. Mesmo assim, as mãos dela
estavam úmidas e sua respiração difícil. Enquanto arriscava um passo cauteloso no topo do muro,
tentava se lembrar do discurso que planejava fazer para o capitão Colburn... se o encontrasse.
— Pelo amor de Deus, volte, srta. Hanna! — cochichou-lhe sua criada, Letty, ao pé do muro. —
Seu pai vai ficar furioso comigo quando souber o que andou fazendo!
— Fique quieta, Letty, ou vai atrair a atenção do vigia! ― Hanna censurou-a, franzindo o cenho.
Ela agachou-se e apanhou as luvas que a criada, relutante, lhe estendeu. Letty estava com razão:
talvez seu pai ficasse furioso. Mas era certo que também a congratularia por sua coragem. E isso lhe
bastava como incentivo para prosseguir.
― Eu a encontrarei em casa logo que resolver meu assunto. Não se preocupe. Não correrei
perigo na Rua Benefit.
— Oh, isso é que não! Uma jovem dama sempre corre perigo em qualquer rua de uma cidade
portuária! ― replicou a criada.
— Letty, estamos em Providence, não em Port Royal. Prometo-lhe que nada de mal acontecerá.
— Está bem, senhorita. Irei agora para lhe fazer a vontade, mas tome cuidado. Mesmo na sua
abençoada Providence há muita gente que deseja vê-la pelas costas.
Dito isso, Letty afastou-se balançando a cabeça e murmurando palavras de desaprovação. Com
um suspiro, Hanna olhou-a distanciar-se. A criada preocupava-se com ela. E não poderia agir de modo
diferente depois de tudo o que ocorrera na Martinica...
Hanna afastou aquela lembrança do pensamento e endireitou-se. As plumas de seu chapéu
resvalaram na copa das árvores. Na infância, quando ainda era amiga das irmãs Brown, muitas vezes
entrara no jardim daquele modo, e recordava-se de uma macieira cujos galhos alcançavam o muro e
davam fácil acesso ao solo... Ou pelo menos assim lhe parecia, quando contava com doze anos e vestia
roupas confortáveis. Agora, aos vinte e quatro anos, usando um vestido de musselina bordada, a façanha
se tornava um pouco mais complicada. Com os braços abertos, ela avançou devagar sobre o muro, o
leque e as luvas firmemente seguros numa das mãos.
— Eu bem sabia que estava em Providence. Mas nunca imaginei que encontraria uma cidade
cheia de anjos nas alturas ― declarou uma voz de homem, grave e modulada, que emergia das trevas do
jardim.
Hanna imobilizou-se de imediato e espiou as sombras. Agora que já não estava tão concentrada
em manter o equilíbrio, pôde perceber o aroma do tabaco que se desprendia do cachimbo que o estranho
fumava. Ela amaldiçoou o malfadado hábito que levara aquele desconhecido até o jardim: se ele
chamasse os outros convidados, seu plano falharia antes mesmo de ser colocado em ação.
O homem deu uma risada.
— Cuidado, moça. Não quero que se torne um anjo decaído por minha causa.
— Não poderá me impedir! ― ela quase gritou, retesando-se. Ou o estranho a reconhecera, ou
seu gracejo fora uma cruel coincidência.
— Impedi-la de quê? De quebrar seu belo pescoço? — O desconhecido aproximou-se do muro, e
seus passos soaram no caminho de conchas estilhaçadas; depois foram abafados pela grama. — Ah, pois
não pense que vou deixá-la se esborrachar no chão. Até os anjos precisam de ajuda de vez em quando...

PROJETO REVISORAS 4
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— Não sou um anjo e não preciso de sua ajuda, obrigada.
Hanna sentiu um calafrio ao ouvir as distantes badaladas do relógio do templo soando as nove
horas. Se não se apressasse, perderia a chance de falar com o capitão Colburn. Inclinou-se para a
macieira, balançou-se num dos galhos maiores. O homem praguejou baixinho e correu para o pé da
árvore, a fim de aparar uma eventual queda. Hanna ignorou-o e foi descendo até alcançar o chão.
Preservando o que restava de sua dignidade, alisou a saia do vestido, passou a mão nos cabelos e calçou
as luvas. Só então se virou para encará-lo. De pernas separadas e braços cruzados sobre o peito, ele
pareceu-lhe mais alto do que a princípio supusera. E, com sua compleição robusta, bloqueou-lhe o
caminho. Hanna não pôde divisar bem seu rosto sob o pálido luar, mas vislumbrou seus traços angulosos
e cabelos cacheados. O casaco escuro dele desaparecia nas sombras, deixando entrever apenas um frag-
mento de camisa branca, um lenço enrolado ao redor do pescoço e um cachimbo enfiado entre os botões
da camisa.
— Queira, por favor, deixar-me passar. — ela pediu, com falsa segurança.
Não lhe passara despercebido o tom gentil dele momentos antes, quando gracejara. E a gentileza
tornara-se algo muito raro em sua vida, a ponto de despertar-lhe suspeitas. Meneando a cabeça, Hanna
desculpou-se mentalmente pela mentira que disse a seguir:
— Sou esperada na casa.
O homem ficou desconcertado.
— Então por que escalou o muro em vez de usar o portão principal?
Ela baixou o rosto e brincou com o leque. Perguntou-se qual seria a cor dos olhos daquele
estranho. Gostava da voz dele, e sabia que não deveria. Que Deus lhe tivesse piedade... afinal, será que
não havía aprendido uma boa lição com Etienne?
— Não tenho convite para a festa. Esse foi o único meio que encontrei para entrar ― admitiu
num fio de voz.
O desconhecido tornou a rir.
— Para falar a verdade, também não tenho convite. Mas John Brown parece ser um homem
muito hospitaleiro. Se abriu suas portas para um simples capitão como eu, decerto acolherá de bom
grado uma dama de fino trato.
O estranho tocou-lhe a face com as costas da mão. Hanna fechou os olhos, confusa com a
inesperada doçura de seu toque. Dois anos já haviam se passado desde que se permitira ficar a sós com
um homem. Sabia muito bem o que aconteceria em seguida: se não o detivesse agora, ele a beijaria.
Entretanto, parecia ter criado raízes no solo e sentia-se paralisada, com o coração disparado. Os dedos do
desconhecido deslizaram pelos contornos de seu rosto, num contato sutil demais para ser classificado
como uma carícia, mas carregado de uma sensualidade que não podia ser ignorada.
O capitão segurou-lhe o queixo e, devagar, ergueu-lhe o rosto. Hanna entreabriu os lábios
involuntariamente, na expectativa, e arqueou o corpo. A boca dele então procurou a sua, macia, quente.
Com um suspiro abafado, Hanna sucumbiu àquele beijo, que tinha um vago gosto de tabaco e rum. Um
calor difuso espalhou-se por seu corpo, provocando-lhe uma onda de vertigem, e passou as mãos pelo
pescoço dele para buscar apoio. Nada mais parecia ter importância. Só aquele momento. Hanna perdeu-
se em sensações há muito esquecidas...
Completara dezenove anos numa noite de verão. Etienne de Gramont levara-a a um jardim
próximo ao mar, um jardim repleto de aves e flores de aroma adocicado. E pedira-lhe que consentisse
em ser sua mulher. Ela jamais se esqueceria da mágoa que as mentiras de Etienne imprimiram em seu
coração. E do sabor amargo que adquiriram seus beijos.
Hanna desvencilhou-se abruptamente do desconhecido.
— Não está certo. Isso não devia ter acontecido. Sinto muito, mas... não posso...
Sabia que dizia palavras atropeladas, quase sem sentido, enquanto tentava controlar a vontade de
voltar para os braços dele.
— Preciso encontrar uma pessoa. — arrematou às pressas.
— Quem?
— Um cavalheiro.
O homem deu um suspiro. Passou a mão nos cabelos.

PROJETO REVISORAS 5
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— Ah, nesse caso não devo retê-la, não é, meu anjo?
— Não me chame assim, por favor — Hanna objetou, e a escuridão ocultou o brilho de uma
lágrima que rolou por sua face.
O tom desapontado dele surpreendera-a, encontrara ressonância em seu próprio coração
desalentado e fizera-a recordar palavras vãs que ouvira em uma noite perdida nos anos. Faria vinte e
cinco anos no próximo outono: seu tempo de flertes em jardins perfumados havia passado. Precisava
concentrar-se no presente, ou seu pai iria para a prisão.
O desconhecido encolheu os ombros, balançou a cabeça. Curvou-se ligeiramente, numa
reverência zombeteira, e deu-lhe passagem.
— Desculpe-me. Não foi minha intenção ofendê-la. — disse jovialmente. E, como se falasse
consigo mesmo, acrescentou: — Mas confesso que, ao vê-la vestida de branco no alto do muro, pensei
num anjo cheio de pureza...
Hanna olhou para seu vestido, que farfalhava ao sabor da brisa noturna. Mesmo ali, em
Providence, ela adotava a moda francesa, com saias de cintura alta, porque lhe caía bem. Mas... um anjo
de pureza? Definitivamente não. '
— Todas as damas usam branco na Martinica e eu segui a moda para agradar meu marido. —
explicou.
— Ah, seu marido. Disse na Martinica?
Hanna piscou, desorientada. Por que mencionara Etienne? Era evidente que aquele homem,
desconhecido ou não, saberia da infame verdade. Do contrário, por que a teria beijado? O
desapontamento que demonstrara devia-se unicamente ao fato de não poder deitá-la na grama e possuí-la
ali mesmo. Todos em Providence estavam a par da desonra de Hanna Snow. Só seu pai acreditava que
era inocente.
Seu pai... Tinha que agir depressa! Não havia mais tempo a perder. Ela tomou coragem, respirou
fundo e, passando pelo estranho, correu em direção à casa.

CAPÍTULO II

Contrafeito, Sam Colburn pegou o cachimbo e enfiou a mão no bolso à procura de tabaco.
Estava, no mínimo, frustrado. Uma das criaturas mais adoráveis que já conhecera caíra-lhe nos braços de
improviso, e tudo o que fizera fora espantá-la dali proferindo uma bobagem qualquer sobre anjos. Nem
ao menos sabia o nome dela! Mas obviamente era a sua má sorte que voltava a persegui-lo. A mesma má
sorte que o vinha rondando nas últimas seis semanas. O pior é que Sam não tinha a menor ideia de como
se livrar de tanto azar.
Olhou para Hanna, que já ia entrando na casa. Antes que desaparecesse pela porta, a luz das velas
delineou fugazmente o contorno de seus ombros nus. Por Jesus, era mesmo bonita, pensou ele. Tinha
olhos verdes que lembravam esmeraldas e cabelos loiros tão lisos que brilhavam como a seda mais fina.
O vestido de gala por um momento insinuara suas formas, o que só contribuíra para atiçar Sam ainda
mais.
Ele não costumava beijar desconhecidas, muito menos moças bem-nascidas que usavam brincos
de brilhantes e luvas caras. Se quisesse, poderia pôr a culpa no rum que bebera, impelido pelo tédio e
pelo desespero. Contudo, havia algo naquela moça que o desorientava. Embora ela tivesse correspondido
a seu beijo, não o fizera por libertinagem. Em sua atitude, Sam detectara vacilação e uma urgência que
talvez nenhum homem pudesse aplacar. Mas ele bem que gostaria de ter tentado aplacá-la. Era evidente
que aquela moça estava infeliz.
O que, no mundo, poderia dissipar a nota de tristeza que transparecera em sua voz?
Sam sorriu de si para si. As providenciais doses de rum ajudaram-no a ignorar o fato de que a
moça era casada e provavelmente tinha um amante. O mais acertado seria ficar longe dela. O bom
marujo guardava distância das águas turvas.
Não obstante, continuava inconformado. Quisera ser o amante que a dama desconhecida fora
encontrar nas sombras do jardim. Sofie Crowninshield certamente não perdera tempo em encontrar um

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substituto para ele. E fora aí, quando Sofie o convencera a pedi-la em casamento, que sua sorte começara
a virar...
Sam enfiou a mão no bolso do casaco e apertou a última carta que recebera dela, na qual o
informava de seu noivado com Robert Pickering. A caligrafia, algo infantil, era a de Sofie; mas ele sabia
que seu pai havia ditado a carta, da mesma forma como ditara aos companheiros mercadores de Salem
que não transportassem suas cargas na Truelove de Sam.
Havia outra carta no bolso dele. Fora remetida pela firma que lhe emprestara dinheiro para
comprar o brigue Truelove, e tornava patente que os mercadores de Salem até Boston haviam se juntado
a Elias Crowninshield contra ele, o reles filho de um tanoeiro bêbado da Rua Dock.
Sam decorara o texto da carta:

“Jos. Beltan & Irmãos lamenta ser forçada a executar a hipoteca do brigue Truelove se o
capitão Colburn não efetuar novo pagamento.”

Com os diabos... Se não arranjasse uma carga em Providence, não disporia de dinheiro para
pagar sua tripulação na semana seguinte e poderia dar adeus ao navio, aos marujos, a Sofie e a seu sonho
de se tornar um cidadão respeitado em Salem.
Penteando os cabelos ao acaso com a ponta dos dedos, Sam guardou o cachimbo ainda apagado
no bolso e dirigiu-se para a casa. Já era hora de esquecer as damas ricas que pareciam anjos e
concentrar-se na tarefa que tinha pela frente. Ao voltar para o salão apinhado, pegou um copo de bebida
da bandeja de um garçom que passava. Esvaziou-o de um só trago e olhou a seu redor a fim de decidir
qual seria o próximo mercador de Rhode Island para quem cantaria as virtudes da Truelove. Por Jesus,
ele preferiria nadar em meio aos tubarões a ter que implorar por uma carga!
Enquanto circulava pelo salão, avistou a dama desconhecida. Ela estava sozinha, abanando-se
nervosamente. Com o queixo erguido, olhava para os convidados como se procurasse alguém. Ao
contrário das mulheres da Martinica, as damas de Providence não usavam decotes ousados, e Sam logo
percebeu que a ala feminina da festa encarava a recém-chegada com um misto de desaprovação e inveja.
Não só seu anjo era a dama mais elegante do recinto, como também era de longe a mais bonita.
Sam perguntou-se por que os homens, a exemplo das mulheres dali, mantinham-se afastados dela.
Talvez, ponderou, pudesse afinal ter uma segunda chance com seu anjo caído do céu.
Ele fez menção de se aproximar de Hanna. Deteve-se ao ver uma mulher de peruca e vestido
preto acercar-se dela e, furiosa, cochichar-lhe ao ouvido. Hanna corou e quedou-se cabisbaixa. Sam
apressou-se a ir a seu socorro.
— Com licença, madame, mas preciso ter uma palavra com esta jovem dama ― disse,
colocando-se entre as duas.
— Oh, sim, bem se vê que é uma dama! Imagino que tipo de palavras deseja trocar com uma
rapariga da laia de Hanna Snow! — replicou a outra mulher num tom desdenhoso.
Sam arqueou a sobrancelha, incrédulo.
— Minhas palavras decerto serão mais respeitosas do que as que a senhora está usando, madame.
De qualquer modo, o que tenho a dizer não é da sua conta.
Os demais convidados emudeceram para acompanhar a discussão. Hanna fixou o leque apertado
em sua mão. Sentia as faces arderam de vergonha. A situação ia de mal a pior, e tudo o que desejava
agora é que o chão se abrisse a seus pés e a tragasse para sempre.
Mas sua antagonista, Débora Collins, estava exultante com a platéia que se reunira em torno
deles, declarou para quem quisesse ouvir:
— Eu apenas falei a verdade, senhor. Ninguém neste salão poderia me contradizer. A srta. Hanna
não passa de uma prostituta infame. E, do alto de seu orgulho, não quis desposar nenhum rapaz decente
de Providence. Oh, não! Preferiu deixar que o pai a vendesse a um imundo francês da ilha...
— Basta! ― Sam interveio com secura.
A julgar pela consternação de Hanna, ele duvidou que fosse uma mulher da vida. Segurou-lhe a
mão firmemente e conduziu-a até a sala de jantar agora vazia. A mesa já havia sido tirada, mas as velas
continuavam acesas nos castiçais. Sam fechou a porta atrás de si e virou-se.

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— Não devia ter feito isso, senhor. — Hanna murmurou, mortificada.
Assim dizendo, foi até a extremidade da mesa e parou. Estava saindo tudo errado. Não
conseguira reconhecer o capitão Colburn e ainda fora humilhada pela sra. Collins. Para coroar sua
desgraça, o homem do jardim a arrastara até a sala de jantar, como se ela não passasse de um troféu
barato. O pior é que se deixara levar covardemente, assim como se deixara beijar momentos antes. A sra.
Collins tinha todo direito de chamá-la de prostituta, pois estava agindo como tal. Oh, por que não dera
ouvidos a Letty e voltara enquanto ainda era tempo?
— Abra a porta, senhor. Não podemos ficar sozinhos aqui.
— Ora, nós não ficamos sozinhos no jardim? — ele replicou sorrindo.
— Aquilo foi... diferente. Nós nos encontramos por acaso. E ninguém nos viu.
Sam apoiou o cotovelo na mesa, suas longas pernas cruzadas e as mãos enfiadas nos bolsos. A
luz das velas refletia-se em suas mechas castanhas e suavizava-lhe as feições. Em seu nariz via-se uma
ligeira falha, revelando que um dia já sofrera uma fratura ali. Uma tênue cicatriz branca curvava-se sobre
uma de suas faces como uma meia lua. Se por um lado o rosto dele não era perfeito o bastante para ser
qualificado como o ideal clássico de beleza, por outro, era um homem carismático e bem-humorado.
Terrivelmente atraente. Perigosamente atraente, pois tinha consciência disso tanto quanto Hanna...
— Então minha companhia é segura desde que ninguém nos veja? — Sam provocou.
Ela assentiu, sabendo que seu argumento soava absurdo.
— E o beijo que me deu? Isso também não conta?
Sam quisera apenas fazer um gracejo. Porém, em vez de ruborizar-se, Hanna ficou lívida como
um fantasma.
— Ouviu perfeitamente o que a sra. Collins disse de mim. Chamou-me de prostituta. Mas o
senhor já deve ter ouvido referências bem piores a meu respeito. — ela replicou com amargura.
Permanecera casta desde seu retorno a Providence e Deus sabia quanto lhe custara a tentativa de
reconstruir sua reputação.
— Não ouvi nada e não me importo com a opinião daquela senhora. As mulheres são assim
mesmo: vivem se engalfinhando por qualquer coisa.
— Não é tão simples quanto parece.
— Nunca é, quando estamos envolvidos numa desavença, Hanna ― ponderou Sam,
pronunciando seu nome vagarosamente. Era um nome incomum, como ela. ― Agora eu gostaria de
saber por que o cavalheiro que pretendia encontrar não moveu uma palha para defendê-la.
Hanna endireitou-se de repente, sentindo-se mais humilhada do que nunca.
— Não há nada a lhe dizer, senhor. O capitão Colburn não poderia me defender, pois nunca
fomos apresentados.
Sam franziu o cenho, sem saber o que fazer da súbita virada de sua sorte.
— Bem, senhorita, aí é que se engana. Eu sou o capitão Samuel Colburn, do brigue Truelove que
partiu de Salem. Não faço a menor idéia da razão que a levou a procurar-me, mas estou à sua disposição.
— O senhor? — ela exclamou, sem esconder sua decepção. Imaginara-o um indivíduo venerável,
de barba grisalha e maneiras benevolentes. O homem à sua frente parecia-lhe demasiado jovem e
piadista para merecer confiança. Assim, repetiu, perplexa: — O senhor?
— Escute aqui, nunca tive motivos para me envergonhar de quem sou e não será agora que
começarei a ter ― Sam revidou na defensiva.
— Não me interprete mal... É que o senhor não era exatamente o homem que eu esperava
encontrar.
— O mesmo poderia ser dito da senhorita. Talvez fosse melhor esclarecer por que ficou tão
desapontada comigo.
— Eu fiquei surpresa, não desapontada. — Hanna corrigiu depressa. Contornou a mesa,
rememorando o discurso que planejara fazer para seu imaginário capitão Colburn e acrescentou
desajeitadamente: — Ouvi dizer que o senhor estava em dificuldades financeiras e por isso veio a
Providence.
Mas com os diabos, a mulher sabia ser direta!, Sam imprecou com seus botões.
— Não tenho um tostão furado. Se não encontrar uma carga, perderei meu brigue ― admitiu.

PROJETO REVISORAS 8
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— Nesse caso... Talvez possamos fazer um acordo. — Hanna sugeriu quase num murmúrio,
fitando-o com ar incerto.
Ele devolveu-lhe um olhar hostil, como que exigindo uma explicação.
Ela baixou o rosto e cravou os olhos no lenço azul ao redor do pescoço de Sam. Não passava de
uma covarde. Uma covarde e uma prostituta. Mecanicamente, reproduziu o discurso que ensaiara uma
dúzia de vezes:
— Meu pai é capitão da Commerce, deste porto. Em janeiro partiu para Bordeaux e nunca mais
voltou. Tampouco recebi qualquer notícia sobre sua morte.
— Sinto muito, Hanna. Perder o pai assim...
— Mas ele não está morto, capitão Colburn! Tenho certeza de que perdeu a Commerce e foi feito
prisioneiro. Meu pai sempre driblou os navios da marinha e nunca parou para apresentar seus papéis.
Não que tivesse algo a esconder. O problema é que o rei não respeita o comércio americano.
Sam assentiu com um meneio. Já conhecia aquela história.
Furar o bloqueio inglês para comerciar com a França era um dos procedimentos mais lucrativos
para os navios americanos. Não fosse por esse expediente, ele próprio não teria conseguido crédito para
comprar a Truelove. No entanto, todo negócio arriscado exigia bom senso, e zombar das naves da frota
armada não era algo recomendável. O pai de Hanna era um homem de sorte se sua vida tivesse sido
poupada. Sam, porém, não revelou seus pensamentos.
— Por mais desesperado que eu possa estar, meu anjo, não irei invadir uma prisão inglesa para
resgatar seu pai.
— E nem eu pensei em lhe sugerir isso! Só quero que me leve para Londres. Lá eu mesma
procurarei o tribunal da marinha e tentarei conseguir a liberdade de meu pai.
Sam aspirou o vago perfume da pele dela, que fazia lembrar a doçura das açucenas. Por um
instante, imaginou-a em sua cabine na Truelove, deitada entre os lençóis de sua cama. Hanna não tinha
nada da aura virginal de Sofie. Suas curvas generosas eram feitas sob medida para as carícias de um
homem...
Mas como ela se comportaria depois de dez dias de ventos, comida fria e banhos escassos?
Damas bem-nascidas gostavam de conforto. Ademais, havia a questão do marido de Hanna...
— Não costumo levar passageiros comigo. Eles só aprontam confusão. Ponto final. É muito
perigoso. Os ingleses continuam atrás de nós, como se a guerra não houvesse estabelecido nenhum
acordo. Quanto à presença de uma dama a bordo... é bem sabido que as mulheres dão azar em alto-mar.
— É sua palavra final? Está disposto a perder seu navio para os banqueiros por causa de uma
superstição tola?
Sam pigarreou. Estava num beco sem saída e não gostava nada disso. Gesticulou em direção à
janela e ao porto que se avistava mais adiante.
— Lá poderá encontrar uma porção de capitães. Por que escolheu justamente a mim?
— Porque todos eles declinaram minha oferta. O senhor é minha última esperança, mestre
Colburn! ― Hanna implorou, elevando a voz no auge do desespero.
— Ah, sim? Então sou sua última esperança? Pois saiba que acabou de ferir profundamente meu
orgulho masculino, senhorita.
— Pouco resta de meu orgulho, capitão. Amo meu pai, mas reconheço suas falhas. É um homem
valente e prosperou onde outros navegantes fracassaram. Todavia, tem a insensata mania de se
vangloriar de seus feitos, o que lhe custou várias inimizades em Providence, especialmente depois da
morte de minha mãe. Os poucos que estariam dispostos a ajudá-lo têm que prestar conta às suas esposas,
e nenhuma delas se arriscaria a me deixar partir com o marido. Presumi que o senhor, sendo de Salem,
não me faria objeções.
Ela calou-se e aguardou a resposta de Sam. Num tique inconsciente, brincou com o pingente de
safira que pendia de seu pescoço numa corrente de ouro. Reflexos azulados faiscaram na curva de seus
seios. Sam engoliu em seco e forçou-se a desviar o olhar. Com pequenos gestos como aquele, Hanna era
capaz de fazer até um santo cair em tentação. O pior era que, a cada minuto que passava, ele se sentia
mais e mais inclinado a ajudá-la. Mas, por Deus, precisava ser firme! Com Sofie, já tivera que se
esmerilhar para escapar à ira de um pai possessivo. Não gostava nem de pensar nos problemas que

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enfrentaria com um marido enciumado em seus calcanhares!
— Se tudo o que quer é um meio de transporte, por que veio me procurar aqui e não diretarnente
no cais?
Hanna arregalou os olhos, horrorizada.
— Eu? Ir ao cais? Ora, uma dama jamais faria isso, capitão!
— E acaso uma dama pode escalar o muro para entrar em uma festa, dirigir súplicas a um
homem que mal conhece e depois enfrentar o tribunal da marinha inglesa para salvar o pai gaiato que
sabia exatamente em que confusão estava se metendo? — Sam não pôde se impedir de rir. — Por todos
os santos, uma dama!
— Eu nunca lhe supliquei nada ― Hanna negou obstinadamente, sem dar atenção aos outros
argumentos dele. Deus sabia que, se os levasse em consideração, perderia toda a coragem.
Num impulso, tirou os brincos e, segurando a mão de Sam, depositou-os em sua palma. Os
brilhantes cintilaram incongruentemente contra a pele calejada e marcada de minúsculas cicatrizes.
— Tome, fique com isto como garantia. Eu estarei pronta para partir amanhã mesmo.
Os dedos de Hanna roçaram os dele muito de leve. Foi o suficiente, porém, para que seu coração
disparasse. Ela recolheu a mão rapidamente, como se sua pele queimasse. Quando se deixara beijar por
Sam no jardim, nunca poderia ter imaginado que sua punição seria tão severa: agora estava prestes a
passar dois meses no mar com ele.
Sam sopesou os brincos como se fossem dados. Não havia como negar que aquelas jóias
saldariam todas as suas dívidas.
— E que garantia tem de que seu pai está vivo? ― perguntou.
— Se estivesse morto, eu saberia. — Hanna asseverou-lhe com simplicidade. — Ele sempre veio
em meu auxílio quando precisei. Agora chegou minha vez de ajudá-lo.
Um pouco relutante, Sam indagou:
— E seu marido? Por que não vai à Inglaterra com ele?
O constrangimento de Hanna à menção do esposo deixou-o desconcertado.
— Eu nunca pediria isso a Etienne. Ele, de qualquer modo, não se dignaria a me socorrer. E nem
meu pai aceitaria seu apoio.
Hanna sondou-lhe o rosto com crescente apreensão. Já não havia mais a quem recorrer senão a
ele. Colburn era sua última esperança... Tinha que ajudá-la. Tinha que ajudá-la!
— Por favor, capitão! Eu daria toda a fortuna de meu pai para tê-lo de novo comigo, são e salvo!
Sam sabia que, se a beijasse agora, ela não se esquivaria. Devaneando momentaneamente,
imaginou-a na cabine da Truelove, os olhos verdes toldados de paixão, os cabelos soltos sobre o
travesseiro, os gestos ardentes e receptivos... Antes que aportassem na Inglaterra, haveria de fazê-la
esquecer seus pesares com a mesma presteza com que ele próprio gostaria de esquecer que lidava com
uma mulher comprometida.
Tanto Hanna quanto sua proposta eram bastante tentadoras. A bem da verdade, quase
irresistíveis. A consciência de Sam, porém, falou mais alto. Com a ponta dos dedos, afastou as mechas
loiras do rosto dela e recolocou-lhe os brincos.
— Guarde seus diamantes, srta. Snow. A passagem na Truelove não está à venda. E tampouco
seu capitão.

CAPÍTULO III

— No seu lugar, eu não esperaria nenhuma recepção calorosa, senhorita. Na verdade, temo
seriamente que aquele capitão vá lançá-la ao mar quando descobrir o que lhe aprontou. — censurou a
criada, enquanto Hanna olhava ansiosamente pela janela da carruagem alugada.
— Já lhe disse, Letty, que o capitão Colbum é um homem de bom coração. E me pareceu muito
razoável também.
Mesmo ao recusar sua oferta na casa dos Brown, ele a tratara com gentileza. Aquela lembrança a
reconfortava e, sem seu alento, Hanna não seria capaz de tamanha desenvoltura. De qualquer maneira, a
gentileza de Colburn era bem mais fácil de aceitar que a emoção que ela sentira ao beijá-lo.

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— Nenhum homem é razoável quando descobre que foi trapaceado. Especialmente quando a
trapaça é obra de uma mulher. — teimou a criada.
Hanna tamborilou os dedos na moldura da janela, impaciente. Quantas vezes mais teria aquela
mesma discussão com Letty? Nos sete anos em que as duas haviam convivido, nunca tinham se
desentendido tanto quanto na última semana. E o detalhe é que Hanna nem sequer mencionara o
incidente ocorrido no jardim dos Brown.
Era óbvio que a criada, sentada muito ereta e com os lábios apertados, ainda tinha muito que
dizer. Como de hábito.
— Admito que, a princípio, ele poderá ficar um pouco irritado ― Hanna condescendeu, ajeitando
as fitas do chapéu presas sob seu queixo.
— O laço estava perfeito, senhorita! Agora a seda ficou toda amarrotada!
Letty, indignada, inclinou-se para ela e alisou as fitas.
— Como eu lhe disse, Letty ― Hanna prosseguiu ―, o capitão Colburn poderá ficar um pouco
irritado. Mas tenho fé em que acabará percebendo que agi da melhor forma. O sr Morrow contou-me que
ele tem sido a personificação da paciência nesta última semana.
Dessa vez a criada apenas resmungou baixinho. Aliviada, Hanna tornou a virar-se para a janela.
No íntimo, reconhecia que fizera uma pequena trapaça. O mesmo tipo de trapaça que Etienne já lhe
fizera. Mas, ao contrário dele, não mentira. Preferia morrer a faltar com a verdade. Deixara bem claras as
suas razões e sua vontade para o sr. Morrow, um dos oficiais do cartório e grande amigo de seu pai. Se o
capitão Colburn fizera suposições equivocadas sobre sua nova carga, a culpa não era dela.
Hanna girou o anel no dedo, pouco à vontade, ansiando por subir a bordo e refugiar-se em sua
cabine. Repetiu para si mesma que sua consciência estava limpa, mas, no fundo, duvidava que o mestre
da Truelove fosse concordar com seu ponto de vista.
Já iam se acercando das docas agora, e o condutor diminuiu a marcha, abrindo caminho entre
carroceiros e marujos, aprendizes de marinheiro e fazendeiros que visitavam o mercado. Hanna sempre
vivera perto do rio; nunca, porém, vira suas águas tão brilhantes sob o sol da manhã. O céu exibia um
azul límpido, as gaivotas cruzavam os ares, rodopiando e mergulhando entre os mastros dos navios
ancorados no porto.
A carruagem parou e balançou pesadamente quando o cocheiro pulou da boleia. Lá fora, Hanna
divisou as paredes de tijolos fustigadas do armazém e o estabelecimento que pertencera a seu avô e
depois a seu pai. Do outro lado, situava-se a doca de sua família, onde a Truelove estaria atracada.
Sem esperar que o cocheiro a ajudasse a descer, saltou para fora e precipitou-se pela rua.
Erguendo as saias para protegê-las da poeira, contornou a carruagem devagar e mediu o brigue que se
avultava diante dela.
A Truelove era menor do que esperava, e tinha no mínimo vinte pés menos que o navio de seu
pai. Era também uma embarcação mais modesta que a Commerce, sem adornos de madeiras nobres e
tintas brilhantes. Os flancos do brigue haviam sido pintados de verde e negro já descorados, e as velas
estendidas para secar exibiam nódoas escuras.
Hanna lembrou-se das dificuldades financeiras do capitão e lastimou não ter tido oportunidade de
instruir o sr. Morrow a. liberar fundos para uma pequena reforma. No entanto, por mais simples que
fosse sua aparência, a Truelove era um navio muito bem cuidado: os cabos e cordas mosíravam-se capri-
chosamente enrolados e seus deques estavam limpos.
Hanna imaginou o pai no comando daquele navio e teve saudade dele. Ah, como sentia sua falta!
Se necessário, enfrentaria a ira de uma dúzia de capitães Colburn para salvá-lo.
Resolutamente, atravessou a rua e subiu na prancha que levava ao convés. Ao pisar no deque, sua
saia se enroscou em um prego. Teve que suspendê-la ligeiramente para soltá-la. Quando se recompôs,
percebeu que todos os marujos a bordo olhavam-na estáticos, como se ela fosse uma aparição sobre-
natural.
— Boa tarde. — saudou-os, e, como nenhum respondesse, insistiu: — Boa tarde!
Finalmente, um rapazinho deu um passo à frente e, muito sem jeito, tirou o gorro de lã.
— Está perdida, moça? Este é o brigue Truelove...
Bem abaixo dali, no porão, Sam protegeu os olhos com a mão e espiou o céu azul emoldurado

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pelo alçapão. Que diabo estava acontecendo agora?, perguntou-se. Começara a trabalhar ao raiar do dia
para preparar o navio, que deveria partir na última maré. Sentia fome e calor, e sua paciência já estava
no limite.
— Um dos cabos deve ter se enredado de novo, capitão. Isso aconteceu três vezes ontem. —
disse Lawson, enxugando a testa com a manga da camisa.
— Pois então aqueles marinheiros de água doce precisam entrar nos eixos! ― Sam vociferou.
Furioso, subiu ao convés pisando duro. Dera sua palavra a Morrow de que partiriam naquela
noite e não seriam uns tripulantes atrapalhados que o fariam perder a maré.
Ao atingir o deque, parou boquiaberto: seus homens estavam ociososl Pior, estavam estufando o
peito, ajeitando o cabelo e sorrindo como um bando de idiotas!
Sam ficou fora de si:
— O que diabos pensam que...
Todos viraram-se para ele ao mesmo tempo, num misto de surpresa e embaraço. Sam relanceou-
os e logo seu olhar encontrou Hanna de pé ao lado da escada do costado. Usava um vestido branco
estampado com florem vermelhas e uma jaqueta curta da mesma cor. Trazia na cabeça um chapéu de aba
virada preso por uma infinidade de fitas escarlates.
Ele jamais vira algo semelhante em seu convés e não seria agora que iria querer ver.
— Boa tarde, capitão Colburn ― cumprimentou Hanna, com um sorriso trémulo que o fez se
lembrar do beijo que haviam trocado.
Sam não precisava de mais lembretes e imprecou. Hanna, desconcertada, sustentou bravamente o
olhar e tentou desfazer o anticlímax:
— Belo dia para viajar, não é?
— Sim, madame. Por isso, sugiro que vá embora ― replicou irritado, notando a curiosidade
dissimulada com que a tripulação o fitava. ― Partiremos com a troca da maré e não temos tempo a
perder.
Hanna ressentiu-se por Sam se dirigir a ela de maneira tão impessoal. Mas reconheceu que era
melhor assim. Quando o vira na festa dos Brown, em trajes formais, Sam lhe parecera mais contido.
Agora, no entanto, ela estava totalmente consciente de sua presença máscula. A camisa aberta, de
mangas enroladas, revelava o peito amplo, os braços fortes e os ombros possantes; as calças justas
colavam-se às pernas longas e musculosas. Os cabelos castanhos estavam tisnados de sol e também sua
pele, que exibia a coloração do bronze. Ali, em seu navio, ele estava mais imponente do que nunca.
— Não quero importuná-lo, capitão. Volte a seus afazeres. Mas, quando tiver um minuto livre...
— Não terei, madame. ― Sam retrucou com impaciência, afastando uma mecha úmida da fronte.
A roupa imaculada dela fazia com que ficasse constrangido com seu próprio desalinho. Desviou
o rosto, tentando ignorar como o vestido branco, respingado de água salgada, aderia aos quadris
arredondados.
— Mas, capitão...
— Nem um minuto nem um segundo. Peço-lhe que se retire. — ele disse, categórico.
Hanna obrigou-se a continuar sorrindo. Não fazia sentido adiar mais o momento de revelar-lhe a
verdade.
— Nesse caso, não vou perturbá-lo. Se um de seus homens puder me levar até a cabine do
comissário...
— Ah, então é isso? Veio procurar aquele sujeito? — Sam interrompeu, num tom cortante.
O interesse dela no jovem comissário o exasperou ainda mais. Mas era de esperar. Hanna e o
rapaz eram da mesma classe, nascidos em berço de ouro e pouco acostumados ao trabalho duro.
— Na realidade, eu também gostaria de vê-lo. O sujeitinho nem apareceu por aqui.
Provavelmente, com medo de sujar suas delicadas mãos. E olhe que Morrow insistiu em prover-lhe uma
cabine confortável, cheia de nove-horas. Mas esse comissário logo descobrirá que a Truelove não é lugar
para maricas!
Os outros marujos riram. O comissário desconhecido já havia sido alvo de inúmeras chacotas da
tripulação.
— Se não se importa, eu gostaria de ser conduzida à cabine. — Hanna reiterou, agora muito

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séria.
— Nada disso, madame.
Pelo modo como as fitas do chapéu dela tremulavam, Sam pôde notar quanto estava agastada.
Preferia-a assim, com os lábios contraídos de fúria. Não deixava de ser muito sedutor.
Se não estivesse tão atribulado, até flertaria um pouco com Hanna, sem se importar com seu
marido enganado.
— Capitão Colburn, quer fazer o favor de me ouvir? Não há nenhum comissário. O sr. Morrow
iria lhe explicar que a cabine está destinada a um representante da Thomas Jenkes & Filho, a companhia
para a qual o senhor navegará.
— E quem seria esse representante senão o comissário que supervisionará a venda da
mercadoria?
Hanna já estava farta das chacotas dele e da horrível insinuação que fizera sobre ela e o
comissário. Um comissário! Em seguida, Sam na certa a retrataria na cama com o encarquilhado sr.
Morrow! Sim, estava mais do que farta. Já era hora de Sam Colburn saber quem salvara seu precioso
brigue das mãos dos credores.
De repente, porém, ele sorriu. Um sorriso que pairou também em seus olhos escuros,
desarmando-a. Desvaneceu-se a cólera de Hanna, juntamente com sua coragem, e por alguns instantes
tudo o que pôde fazer foi encará-lo com ar pasmo.
Entrementes, Sam afinal compreendeu que ela pretendia clamar a cabine do comissário para si.
Balançou a cabeça lentamente, começando a ficar mal-humorado.
— Saia do meu convés, madame. Já lhe disse que não há lugar para mulheres aqui. Dê o fora!
— Eu lhe agradeceria se falasse com mais respeito!
— E eu lhe agradeceria se deixasse meus homens trabalharem em paz!
Sam endereçou um olhar duro aos marujos, que imediatamente retomaram suas tarefas. Logo a
seguir, sua atenção foi atraída para Letty, que acabara de subir ao deque. Ele correu a bloquear-lhe o
caminho.
— Pode tratar de fazer meia-volta e ir embora com sua ama!
— Não, Letty. Fique onde está. — Hanna interveio. Depois, fulminou Sam com o olhar. —
Como ousa falar desse modo com minha criada?
— Acontece que este é meu navio e eu dou as ordens por aqui. Se não me obedecerem, eu as
tirarei daqui à força!
— Pois faça isso! Providenciarei para que minha carga seja removida e o processarei por quebra
de contrato!
Perplexo, ele a fitou por um longo minuto. Hanna ainda era a mesma mulher de antes, com um
absurdo chapéu cheio de fitas vermelhas e um corpo macio que tão bem se amoldara ao seu. A mesma
mulher que havia beijado e que gostaria de tornar a beijar. Entretanto, tudo o que Sam via era a
armadilha que ela lhe armara. Hanna achava que podia manipulá-lo com o poder de seu dinheiro. Se o
que afirmava sobre a carga era verdade, então estava certa. Como fora tolo!
— Já proporcionou um belo espetáculo para todos, srta. Snow. Agora vamos descer e resolver
esse assunto de uma vez por todas.
Ele puxou-a rudemente pelo braço.
— Solte-me! — Hanna gritou, bufando de raiva.
— Ah, é uma pena que não tenha reagido assim na festa de Brown. Pouparia o trabalho de
defendê-la e evitaria que eu ficasse em situação tão patética!
Sam arrastou-a pelas escadas, escancarou a porta de sua cabine e empurrou-a para o interior do
minúsculo cômodo. Depois fechou a porta com um estrondo. Ofereceu uma cadeira a ela. Hanna, de
braços cruzados, recusou.
— Se quiser se comportar como uma mula teimosa, fique à vontade. Mas terá que se explicar. —
Sam exigiu.
— Já lhe expliquei que preciso ir a Londres para libertar meu pai...
— E eu lhe disse que não a levaria. Pelo visto, achou um meio de convencer o velho Morrow a
ajudá-la.

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— Não! — irritada, Hanna arrancou o chapéu. Fê-lo com tamanha violência, que os cabelos
loiros se soltaram dos grampos e cascatearam por seus ombros. — Agi com a maior correção possível.
Qualquer homem honesto é capaz de ver isso!
— Hum, agora está me chamando de desonesto também?
— Oh, por todos os santos, fique quieto!
Ela se pôs a andar de um lado para outro. Sabia que Sam a provocava deliberadamente, mas não podia se
conter. Não se lembrava de haver perdido a calma com tanta facilidade quanto na presença do capitão
Colburn.
— Marque bem minhas palavras, senhor. Foi pago para transportar essa carga para a firma de
meu pai.
Ele suspirou. A situação ia de mal a pior.
— Então Thomas Jenkes é seu pai?
— Não. É meu avô. Papai não mudou o nome da firma quando a herdou.
Hanna fixou o olhar nos braços dele, sem coragem de encará-lo. Os raios de sol que se
infiltravam na cabine lançavam reflexos dourados em seu peito descoberto. Etienne nunca exibira os
braços e o peito nu, salvo por alguns segundos, quando o criado o ajudava a vestir o traje de dormir.
Mas Samuel Colburn não era um cavalheiro como Etienne. Longe disso... Com um aperto na
garganta, ela procurou se concentrar no que tinha a dizer.
— Se a soma que o sr. Morrow lhe pagou não for suficiente...
— É mais do que suficiente, e sabe muito bem disso.
Sam cerrou os maxilares, iradíssimo. Fora apanhado de novo, ludibriado por seus bolsos vazios e
por um belo rosto, exatamente como acontecera com Sofie. Não, aquela história já vinha se repetindo há
mais tempo. Desde a época em que era um menino esfomeado e trabalhava para os capitães da Rua
Wharf. Dava duro de manhã até a noite e, ainda assim, lhe passavam a perna, pagando-lhe apenas
metade do dinheiro por causa de sua pouca idade. Às vezes não recebia nem um tostão.
Ele expulsou as amargas recordações do pensamento e fitou Hanna.
Ela estremeceu. Ao detectar a raiva e a humilhação que transpareciam na voz de Sam, deu-se
conta de quanto o ferira em seu orgulho. Não lhe deixara escapatória, e ele nunca a perdoaria por isso. A
breve camaradagem que se estabelecera entre ambos estava irremediavelmente perdida.
— Será que não percebe, sr. Colburn? Salvou seu navio com o pagamento da carga. Agora a
Truelove lhe pertence. Nós dois nos beneficiaremos com este acordo ― arriscou, num tom conciliador.
O rosto de Sam permanecia implacável. Hanna achou impossível conciliar aquele rosto com o
homem que certa vez rira, provocara-a, chamara-a de anjo e... beijara-a de modo tão ardoroso.
Disso ela nunca se esqueceria.
Ah, se ao menos Sam lhe sorrisse de novo...
— Seja compreensivo, capitão. — Hanna disse com brandura. — Se pelo menos não tivesse a
cabeça tão dura...
— Do modo como me apanhou, a única coisa que me restou foi minha cabeça. Armou a coisa
direitinho com Morrow, não é? Pois bem, terá sua cabine e sua passagem para a Inglaterra. Será um
prazer desembarcá-la em Londres e vê-la pelas costas de uma vez por todas.
Ele falou em voz baixa, com uma expressão meditativa que em nada confortou Hanna.
Os olhos castanhos de Sam estreitaram-se, enquanto a estudavam detidamente. No íntimo, ele se
indagava se as coisas poderiam ter sido diferentes entre os dois.
Antes de Hanna revelar-lhe sua verdadeira natureza, bem que tinha gostado dela. E ainda a
desejava. No entanto, não era uma criatura diferente de Sofie, de Elias Crowninshield e dos fidalgos que
moravam em mansões. Disso não podia se esquecer. Esquadrinhou o rosto dela procurando vestígios de
triunfo, de prazer por sua vitória. Tudo o que encontrou foram insondáveis olhos verdes velados por
longas pestanas. Somente a rápida oscilação de seu peito sob a jaqueta vermelha traía suas emoções.
Com os diabos, ela havia vencido. Será que era tão indigno a ponto de Hanna nem sequer se
comprazer com aquela pequena vitória?
Vagarosamente, Sam enroscou os dedos nas mechas soltas do cabelo dela e puxou-a para si.
— Não. Por favor, não... — Hanna murmurou, tentando se desvencilhar.

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Quando ela se virou, a corrente de ouro que usava deslizou pelos dedos de Sam e o pingente de
safira produziu as conhecidas radiações azuladas. Fugazes radiações, símbolo duradouro do abismo
social que havia entre eles.
Sam soltou-a bruscamente e deu-lhe as costas.
— Poderá viajar com sua criada a bordo da Truelove. Mas deverão permanecer em sua cabine, a
menos que eu lhes dê permissão para saírem. Farão as refeições na cabine e não distrairão meus homens.
A senhora não interferirá no meu comando, ou tratarei de trancafiá-la. Creio que fui bastante claro,
madame.
Sam ouviu-a suspirar. Se de desapontamento, cansaço ou alívio, ele não saberia dizer. Ouviu a
seguir o suave farfalhar de seu vestido e a porta se fechando atrás dela. Hanna não tinha direito de sair
antes que a dispensasse. Mas com o tempo, aprenderia quem dava as ordens ali. Ele se encarregaria pes-
soalmente de ensinar-lhe isso.
Pelo bem de sua sanidade, só lhe restava rezar para que a viagem transcorresse sem incidentes.

CAPÍTULO IV

Hanna dormiu pouco e mal naquela primeira noite a bordo da Truelove. Encerrou-se em sua
cabine e ficou fora do caminho do capitão Colburn, conforme lhe fora ordenado. Ainda assim, a horrível
conversa que tivera com ele continuou a martelar-lhe o espírito. Perto da aurora, Hanna despertou mais
uma vez e ficou imersa em elucubrações. Na cama de baixo do beliche, a criada Letty se contorcia com
enjôos e gemia miseravelmente. Hanna preferiu omitir-lhe que o brigue ainda singrava o rio e o pior
estava por vir.
Ela permaneceu acordada, mirando o teto com ar absorto. Ouvia a água bater no casco do navio e
os gritos dos homens que faziam a vigília. Navegara três vezes com o pai, e aqueles sons familiares
traziam-lhe um certo alento. Sua cabine ficava próxima à do capitão, e escutava-o falando com o
navegador que guiava o navio através das curvas do rio e pelas ilhas da baía Narragansett. Ouviu
também quando, um pouco antes do amanhecer, Sam deixou o deque e dirigiu-se para sua cabine.
Passara a noite inteira ao lado do navegador, e Hanna deduzia que agora dormiria uma ou duas
horas para restabelecer as forças. Ela vestiu-se depressa e embrenhou-se pelo corredor estreito.
Chegando ao deque, acercou-se da amurada e respirou fundo. Os poucos vigias que havia por ali mal lhe
prestaram atenção.
Hanna olhou para o leste. A costa emergia como uma silhueta vaga, mas ela conhecia a paisagem
e procurou pelo telhado de uma casa ampla com um estábulo ao lado. Lá nascera, na fazenda de seu avô.
E, sonhadora, perguntou-se se as ameixeiras no pomar já estariam dando frutos maduros.
— Eu lhe disse para ficar lá embaixo, madame.
O coração dela encheu-se de desânimo. Pelo tom severo de Colburn e por seu odioso “madame”,
Hanna tinha certeza de que seria encaminhada novamente para a cabine exígua. Lançou um último olhar
à fazenda e virou-se para ele.
Sam teve a impressão de estar diante de uma criança apanhada fazendo uma travessura, os olhos
verdes apreensivos, a fisionomia indecisa. O vestido simples e o xale amarelo que ela usava também lhe
conferiam uma aparência mais jovem. Hanna prendera os cabelos em uma trança frouxa, da qual
escapavam algumas mechas. Sam teve vontade de afastá-las de seu rosto e acariciar-lhe a face.
— Não me esqueci de suas instruções, capitão. Mas esperava que me concedesse ao menos uma
última visão de Rhode Island e da fazenda que foi de meus avós.
— E também esperava que eu não a flagrasse no convés. Pois bem, não lhe negarei esse pedido.
Olhe à vontade. Depois que passarmos por Aquidneck, só teremos o oceano pela frente.
— Muito obrigada.
Contudo, Hanna não se voltou para o continente. Continuou a olhá-lo e não lhe passou
despercebido que o casaco azul-marinho de Sam, de corte simples e impecável, era fino demais para um-
homem que se dizia sem um vintém. Ela se perguntou se Colburn teria uma amante ou uma esposa a
quem tentava agradar com boas roupas. Perguntou-se, a seguir, por que estava se dando ao trabalho de

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questionar isso. Suspirou, virou-se e debruçou-se na amurada.
Para sua surpresa, Sam veio postar-se a seu lado.
Na verdade, também ele estava espantado com sua atitude. Pretendera mandá-la de volta à
cabine, mas fora desarmado com a simplicidade daquele pedido e com a poesia de seus cabelos ao vento.
Hanna torceu as pontas do xale, pouco à vontade com a presença dele. Por que não a deixava
sozinha? Sentia que Sam a testava, esperando pelo menor deslize para interrogá-la.
— Foi muito difícil deixar Salem? Meu pai costumava dizer que, para um navegante, as
despedidas são piores que qualquer tormenta. — comentou para quebrar o silêncio.
Sam recordou a imagem da mãe e das duas irmãs acenando no porto, enquanto ele reprimia suas
lágrimas em prol do orgulho masculino.
— Sim, foi difícil. Mas agora não há nada que me prenda a Salem ― respondeu por fim.
— Eu tampouco tenho qualquer vínculo com a fazenda de meus avós, onde nasci enquanto meu
pai estava no Suriname. Minha avó morreu e a propriedade hoje está por conta de arrendatários.
Até aquele momento, Sam não havia se dado conta de que ninguém de Providence viera se
despedir de Hanna. Nenhum amigo, nenhum parente. Olhou para as mãos alvas dela, de dedos longos
que apertavam a amurada.
— Não consigo imaginá-la vivendo em uma fazenda. Ela riu de sua incredulidade.
— Minha mãe diria o mesmo. Voltou para Providence quinze dias depois de meu nascimento.
Oh, temos sido os donos da fazenda e da ilha desde os tempos de Roger Williams, mas agora somos
gente da cidade.
Sam olhou para a fazenda que desaparecia rapidamente na distância. Então a família dela
dominava a ilha Patience. Que lhe importava isso? Era apenas a história dos brilhantes, mais uma vez,
em outra versão. Afastou-se da amurada de repente e assumiu um ar profissional.
— Ainda bem que acordou cedo, madame. Logo aportaremos em Newport e, como representante
da Thomas Jenkes & Filho, é melhor que vá comigo falar com o oficial da alfândega.
Ela meneou a cabeça, desorientada com a súbita mudança dele.
— Ora, pensei que o sr. Morrow tivesse tomado todas as providências necessárias junto à
alfândega de Providence.
— Depois do que fez comigo, madame, eu não confiaria na tinta que usou para assinar o
contrato. Quero que uma pessoa imparcial leia o documento. Ou será que sua família também é dona da
alfândega?
Hanna limitou-se a assentir. Sam tinha todo direito de suspeitar dela.
Ele, por sua vez, ficou ainda mais exasperado. A reação de Hanna fazia-o sentir-se mesquinho.
Sabia que não havia nada de errado com o contrato, porém, a necessidade de provocá-la para vingar seu
orgulho ferido era mais forte do que ele próprio.
Hanna... Por Deus, poderia chamá-la “madame” um milhão de vezes, mas em seus pensamentos
ela seria sempre Hanna...
E, daquela vez, foi Sam quem fugiu para esconder sua perturbação.
Muito antes da Truelove passar pela ilha de Goat e adentrar o braço curvo do ancoradouro de
Newport, Hanna postou-se nervosamente à sombra do mastro principal. A seu lado, pálida e nauseada
com o balanço do navio, quedava-se a pobre Letty.
— Seu chapéu, srta. Hanna! Não se esqueça de seu chapéu! Com esse sol, vai ficar bronzeada
como uma selvagem se não se proteger!
Hanna nem lhe deu ouvidos, preocupada que estava em acompanhar as ordens do imediato.
Ainda tinha esperança de que o capitão mudasse de idéia e a dispensasse da visita à alfândega.
— E então? Vamos desembarcar nessa cidade ou não? ― perguntou contrariada Letty, agitando o
chapéu na mão e caminhando cautelosamente na direção do imediato. ― Ajude-me! Minha ama não
pode andar sobre a água!
O rapaz sorriu e estendeu o braço para ampará-la. Tinha rosto radiante e cabelos ruivos. No
braço, trazia tatuadas cinco estrelas.
— Ninguém está esperando que ela faça isso, dona. Não se preocupe, Amos Howard sabe como
tratar uma mulher. Sua ama irá para Newport com a mesma tranquilidade com que uma cesta de ovos é

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levada ao mercado!
Letty fuzilou-o com o olhar, mas não afastou o imediato.
Hanna decidiu que teria que repreender a criada antes que o capitão lhe tomasse a dianteira. Letty
não era dada a flertes; em todo caso, a última coisa que Hanna queria era ouvir de novo que mulheres
não se coadunavam com navios.
— Amos Howard, hum? ― Letty repetiu com dureza. ― Pois não banque o atrevido comigo, ou
eu...
— Solte a mulher, Amos! — Sam rugiu, surgindo no convés. Letty correu para perto de Hanna,
enquanto o imediato se endireitava e ficava rígido como uma estátua.
— Com mil demônios, isto aqui está parecendo uma casa de tolerância flutuante! ― censurou
Sam, lançando um olhar reprovador para as duas mulheres que, mais uma vez, interferiam na boa ordem
do brigue.
— Não é o que está pensando, capitão...
— Sabe muito bem quais são minhas instruções, Amos.
— Mas não houve nada de mais, senhor. Todos são testemunhas de que...
— Prefiro confiar nos meus próprios olhos. Fará turnos de vigia até domingo, e o mesmo
acontecerá com aqueles que não souberem ficar longe de um rabo-de-saia! ― Sam sentenciou.
Ele encarou Howard duramente e lamentou que tivesse sido seu imediato, e não outro marujo, o
alvo daquela reprimenda. Howard era um tripulante novo, contratado em Providence com boas
referências. Mesmo assim, Sam preferiria estar trabalhando com um velho conhecido em quem pudesse
confiar.
Em todo caso, Amos trabalhava com vontade e não se podia culpá-lo por tentar tirar alguma
vantagenzinha da criada magricela.
— O bote já foi preparado?
— Sim, senhor ― Howard aquiesceu prontamente, mas com uma ponta de despeito.
Sam enfiou o chapéu na cabeça. Numa pasta de couro que carregava debaixo do braço, guardara
todos os documentos que deveriam ser apresentados na alfândega. Cada vez que pensava na futilidade
daquele desembarque, mais mal-humorado ficava.
— Está pronta, madame? — perguntou, virando-se para Hanna.
— Claro.
Ela arrebatou seu chapéu das mãos da criada e prendeu sua fita sob o queixo com mãos trêmulas.
Sam acompanhou seus movimentos com expressão indecifrável.
Hanna tinha uma vaga idéia dos procedimentos em uma alfândega e duvidava que ele fosse lhe
dar alguma pista de como agir.
— Letty, feche-se na cabine e tranque a porta — ordenou, já sabendo de antemão que o
confinamento não agradaria à criada. Com um suspiro resignado, terminou de ajeitar o chapéu e avançou
para Sam de braços estendidos, tentando equilibrar-se.
— Nós vamos para a alfândega, não para uma quadrilha ― ele observou secamente.
Hanna deixou os braços caírem, o rosto queimando de humilhação. Precipitou-se para a amurada
em busca de apoio, pensando que um cavalheiro de verdade haveria de ampará-la, não insultá-la.
Olhou desolada para o flanco do brigue. Não imaginava como se poderia descer de um navio que
não estivesse seguramente ancorado numa doca. Lá embaixo, balançando na água, um bote com quatro
marujos os aguardava.
— Sei que é muito hábil. Se bem me lembro, escala muros com a agilidade de um gato — Sam
espicaçou.
Hanna examinou a escada de corda, que lhe pareceu um tanto quanto precária. Depois tornou a
olhar para a água esverdeada lá embaixo. Sem querer, imaginou-se submergindo nela, dos pés à cabeça...
Obviamente não podia nadar. Era uma dama, não um peixe.
— Não vou conseguir. Terá de ir sem mim ― murmurou com um aperto na garganta.
— Ora, madame, é claro que vai conseguir. Nem que eu precise carregá-la.
— Então vá na frente ― ela disse, cerrando as pálpebras. Sam viu que Hanna lutava contra o pânico. Já
ele estava tão acostumado a escalar mastros, que nem pensava na hora de descer uma simples escada de

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corda. Não tivera intenção de aterrorizar Hanna e franziu o cenho, desgostoso com sua falta de tato.
Quando ia lhe dizer que podia ficar no navio, ela repetiu:
— Desça primeiro, capitão. Eu o seguirei.
Capitães nunca iam na frente, mas dessa vez Sam fez vista grossa para o protocolo. Desceu ao
bote, tirou o chapéu e olhou para a amurada. Hanna continuava a espiar para baixo, o semblante transido
de terror.
— Isso não é direito, senhorita! ― queixou-se Letty. ― Se seu pai soubesse...
— Fique quieta, Letty! Pelo amor de Deus, fique quieta! Hanna respirou fundo, sentou-se na
amurada, pôs as pernas para fora, procurou pelo primeiro degrau da escada. Encontrou-o, firmou o pé e
se pôs a descer.
As juntas de seus dedos embranqueceram, tamanha era a força que empregava para se segurar às
cordas. Um degrau, dois, três. A ponta de seus pés batia contra o casco do brigue. Quatro, cinco... Devia
estar quase alcançando o bote, embora não se atrevesse a olhar para baixo.
— Isso, dona. Continue assim ― Sam murmurou inconscientemente. Depois relanceou os
remadores e fez uma careta. ― Tratem de olhar para o outro lado, seus desavergonhados!
Os marujos obedeceram. Sam continuou acompanhando os progressos de Hanna. Um sopro de
vento agitava a saia dela e entremostrava as meias de seda presas na altura dos joelhos. Sam vislumbrou
suas pernas alvas e sentiu o corpo todo retesar-se.
Entrementes, ela sentiu o vento nas coxas nuas e, lembrando-se dos homens lá embaixo, ficou
terrivelmente constrangida. Suplantou o medo e soltou uma das mãos da corda para aprumar as saias.
Nisso o brigue oscilou e ela se balançou como um pêndulo na ponta da escada. Esticou a outra mão
depressa para se segurar, mas tudo o que conseguiu foi arranhar o casco do navio.
No momento seguinte estava caindo em direção à água.
De onde se achava, Sam logo viu que Hanna não corria nenhum perigo: havia apenas
escorregado no penúltimo degrau, e ele teve tempo de segurá-la e trazê-la para dentro do barco. Embora
Hanna não gritasse, Sam percebeu seu medo. Enquanto a segurava nos braços, sentiu que ela tremia.
Arrependeu-se de ter insistido para que Hanna o acompanhasse. Teve raiva de si mesmo. Mas
como pedir-lhe desculpas ou dar uma explicação, quando ele próprio não entendia seu comportamento
detestável?
Esperando por uma inspiração que não lhe veio, Sam acabou segurando-a por mais tempo do que
havia pretendido. Um tempo suficiente para que notasse a macia curva inferior do seio dela pressionada
contra seu braço e as pernas esguias entrelaçadas às suas. Deixou a fragrância de açucenas penetrar-lhe
as narinas, lembrando-o do beijo que haviam trocado no jardim enluarado. Aquilo fora antes de Hanna
enganá-lo e arruinar tudo.
Estava segura, ela pensou com imenso alívio. Não se afogara, fora salva do pior. E, à medida que
seu pânico ia cedendo, discerniu o exato momento em que o amparo de Sam transformou-se em um
abraço perturbador. Sentiu-se aprisionada contra a parede do tórax dele, os botões do casaco azul-
marinho cravando-se às suas costas. Tentou adivinhar se Sam vira suas pernas quando caíra da escada. E,
com um súbito sentimento de humilhação, deu-se conta de que suas pernas estavam entrelaçadas às dele.
Com uma exclamação envergonhada, debateu-se para se libertar. Sam não lhe ofereceu resistência e
soltou-a com a mesma presteza com que a havia segurado.
Hanna deixou-se cair no banco mais próximo. Sem ousar encarar os remadores, manteve os olhos
baixos enquanto ajeitava a saia do vestido para certificar-se de que suas pernas agora estavam bem
cobertas. Sob a orla de seus longos cílios, viu Sam sentar-se a seu lado e enterrar o chapéu na cabeça. A
coxa grossa dele resvalou na sua. Hanna quase deu um pulo. Afastou-se e preferiu ficar perto da água,
recebendo borrifos gelados no rosto, a sentir o toque de Sam novamente.
Mas talvez estivesse apenas imaginando coisas. Por que ele haveria de querer acariciá-la se a
desprezava tão abertamente? Ao lado dela, Sam não compartilhava tais dúvidas. Ainda guardava a
lembrança da curva dos quadris de Hanna, de sua cintura esbelta, de seu cheiro de açucenas. Tocá-la fora
uma grande tolice, ele admitiu. Mas foi só quando tornou a levantar a cabeça e seu olhar cruzou com o
de Howard, que realmente percebeu a extensão de seu erro.
— Todos estão almoçando a esta hora — declarou Sam após consultar o relógio na fachada da

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velha casa colonial. — É bobagem irmos à alfândega antes do meio-dia e meia.
— Poderíamos esperar por eles em seu escritório ― Hanna sugeriu timidamente.
Era a primeira vez que Sam lhe dirigia a palavra desde que haviam descido do brigue. Depois
que pisaram em terra firme, deixando os remadores de prontidão no bote, Hanna fora ficando cada vez
mais insegura. Não compreendia o que Sam queria dela.
A poeira dançava no ar, o sol de julho cozinhava o calçamento da Rua Thames, e Hanna mal
podia esperar para encontrar um refúgio na sombra.
— Não será uma espera muito longa — ela insistiu.
— Mas será longa demais para mim. ― Sam olhou em torno de si. ― Lembro-me de uma
taverna razoável em alguma parte no extremo da rua. Chama-se Cão Branco ou Cão Malhado... enfim,
qualquer coisa assim. Vamos procurá-la.
Contente de ter sido incluída no programa, Hanna apressou-se em emparelhar com ele, rezando
para que a taverna não se localizasse muito longe dali. Seus sapatos não eram próprios para caminhadas:
as solas eram finas, e ela sentia cada pedregulho da rua. O vestido de lã que usava, e que no mar lhe
parecera perfeito, agora matava-a de calor. Com um suspiro, deixou que seu xale escorregasse para a
cintura.
Olhando-a de soslaio, Sam notou que Hanna se esforçava para acompanhar seu passo. Sabia que
deveria diminuir a marcha, mas preferia manter uma certa distância dela, pois àquela altura já não
confiava muito em si mesmo. Quanto antes chegassem à taverna, melhor.
Sem querer, divisou um filete de suor brilhando no colo alvo dela e adivinhou que, ali, o cheiro
de açucenas seria mais pronunciado...
— Newport não é a mesma desde a guerra — observou, tentando mudar o rumo de seus
pensamentos.
Ele apontou para uma casa à sua frente. Os proprietários haviam fugido vinte anos antes, durante
a ocupação britânica, para nunca mais voltar. A cerca estava estraçalhada. A casa fora reduzida a um
punhado de ruínas, com persianas arrombadas por tiros, vidraças quebradas por vândalos e o telhado
falhado por força das intempéries. Abelhas gordas voavam preguiçosamente em torno das colméias que
pendiam dos batentes das janelas.
— Minha mãe me contou que, na sua juventude, Newport era a cidade mais resplandecente de
Rhode Island. Ela riu quando meu pai previu que, um dia, seria suplantada por Providence.
Hanna olhou a rua melancolicamente. Ainda havia ali, em meio às casas de pintura descascada e
terrenos baldios, alguns indícios da elegante cidade que a mãe lhe descrevera.
— Mas como é que minha mãe poderia prever o que a guerra faria com Newport? — suspirou.
Sam lançou-lhe um olhar duro, perguntando-se como ela conseguia fazer até mesmo uma casa
abandonada aumentar o abismo social existente entre eles.
— A guerra fez muito mais que derrubar meia dúzia de mansões — replicou.
— É evidente. Não pense que sou tão ingênua. Sei muito bem quais foram as consequências da
ofensiva britânica.
Ele apanhou um graveto caído no chão e girou-o entre os dedos com ar distraído.
— Tenho lá minhas dúvidas, pois ficou resguardada em sua bela casa em Providence. Mas eu fui
para o mar quando tinha oito anos. Integrei a tripulação de num navio corsário quando tinha catorze
anos. E, três anos depois, fui preso no Velho Moinho. É verdade que não presenciei muitos combates,
mas tive meu quinhão da guerra. O suficiente para poder avaliar seus estragos.
Sam atirou o graveto ao chão, maldizendo-se por ter falado demais. Era óbvio que Hanna não
seria capaz de compreendê-lo. Pertencia a outra classe, eis tudo.
— Lá está. O Cão Feroz. Como pude esquecer um nome tão sugestivo?
Ele indicou a placa pintada da taverna. A porta do estabelecimento estava escancarada por causa
do calor. Um cão dormitava à sombra dos batentes.
Sam tirou o chapéu e abaixou-se para entrar. Hanna seguiu-o; procurou não pensar no que o pai
diria se a visse entrando em uma taverna do porto. Quando seus olhos se acostumaram à diminuta
claridade ali dentro, ela pôde notar que havia poucos fregueses no estabelecimento, espalhados aqui e ali
nas mesas rústicas. Marinheiros de folga, deduziu, prestando atenção a suas roupas e à maneira indolente

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como se sentavam, dando impressão de terem passado a manhã toda bebendo e de pretenderem
continuar assim até a noite. Através da névoa de fumaça exalada pelos cachimbos, os marujos lhe
pareceram ameaçadores.
A velha taverneira era a única presença feminina no recinto. Todos os homens se viraram para
olhar Hanna de modo ávido, e ela sentiu-se como um camundongo diante de um bando de gatos
famintos. Mais que depressa, foi para junto de Sam.
O taverneiro veio em sua direção, limpando as mãos no avental. Sorriu de orelha a orelha,
enquanto seu olhar media Hanna dos pés à cabeça.
— Boa tarde, capitão. Sem dúvida, vai querer ficar com a dama em um compartimento privado,
não é?
— Isso é que não. — Sam devolveu-lhe o sorriso malicioso. — Não costumo ficar em
compartimentos privados com senhoras casadas. Não é aconselhável provocar seus maridos, hein?
O taverneiro pôs-se a gargalhar, acompanhado em coro pelos demais fregueses. Hanna baixou o
rosto, furiosa com Sam.
— Quero aquela mesa do canto. Só para provar que não tenho nada a esconder. — ele disse, e no
mesmo instante indagou-se por que não estava se divertindo com o embaraço de Hanna. Afinal, Deus
sabia que ela já havia lhe aprontado poucas e boas. — Traga rum para mim e chá para a senhora.
Comeremos o prato do dia.
Hanna acomodou-se numa das cadeiras, com as costas voltadas para a parede. Conservava as
mãos no regaço, tentando ignorar a superfície gordurosa da mesa e os marujos que continuavam a fitá-la
descaradamente.
Seu chá, quando chegou, revelou-se frio e aguado. A xícara e o pires vieram desparelhados e não
havia nem sinal de colher. Com um suspiro, ela equilibrou o pires na palma da mão e balançou o chá em
vez de bebê-lo.
— Não precisava ter mencionado meu marido. Eu lhe disse que ele não lhe traria problemas —
murmurou, sem tirar os olhos da xícara.
Sam franziu o cenho. Passou a mão nos cabelos castanhos. Tamborilou os dedos na mesa.
— Já me disse muitas coisas, madame. A experiência me mostrou que é melhor não confiar na
senhora.
— Ah...
Foi tudo o que ela replicou. Pousou o chá intragável sobre a mesa e empurrou a xícara. Não tinha
como se defender daquela acusação.
Nisso, um homem entrou na taverna e veio diretamente para a mesa deles.
— Sam Colburn, que bons ventos o trazem?
Ele bateu nas costas de Sam. Era alto também e muito magro. Usava um lenço vermelho na
cabeça, cobrindo a órbita vazia de um dos olhos. A íris do olho são era castanha-escura. Para desgosto de
Hanna, o recém-chegado deu-lhe uma piscadela.
— Justin Forbes a seu dispor, madame. Esqueça esse velho matreiro Colburn e venha comigo. Eu
a tratarei como uma princesa, que os diabos me carreguem!
Sam levantou-se de um salto, derrubando a cadeira.
— Dê o fora, Justin. Essa senhora é uma dama. Exijo respeito!
— Ah, é assim? Venho aqui lhe oferecer minhas congratulações pela srta. Sofie e já o encontro
com outro rabo-de-saia para consolá-lo enquanto está longe de casa...
A reação de Sam foi tão instantânea, que Hanna não soube precisar exatamente o que aconteceu a
seguir. Ela percebeu a expressão atônita de Forbes quando Sam lhe desferiu um soco no queixo. Justin
cambaleou e caiu sobre uma das mesas, enquanto os outros fregueses se agrupavam a seu redor gritando
palavras de incentivo e imprecações. Depois Hanna sentiu a mão de Sam fechar-se em seu pulso e ele
arrastou-a para fora do estabelecimento. O cão ficou latindo atrás dos dois.
Quando finalmente pararam do outro lado da rua, a uma boa centena de metros da taverna, Sam
perscrutou o rosto dela com ar preocupado.
— Está bem? Não se machucou?
Mas Hanna exibia uma fisionomia radiante. Suas faces estavam coradas devido à repentina fuga

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e, pela primeira vez, Sam teve impressão de que se alegrava com algo. Não conseguia imaginar com o
quê...
Ela meneou a cabeça, espantada com o fato de Sam tê-la defendido de outro homem. Ele ainda
lhe segurava a mão. Hanna perguntou-se de teria meramente esquecido de soltá-la. Esperava que não.
— Mas ficou assustada, não ficou? — Sam inquiriu.
— Sim. Não pude evitar. Sou uma covarde. — admitiu cabisbaixa.
— Ora, não é a mesma coisa, Hanna. Todo mundo tem medo de alguma coisa. Se esconde seu
medo, torna-se valente aos olhos dos outros. Se não o esconde, vão chamá-la de covarde. Mas uma
mulher que desce de um brigue com toda garra sabe esconder seu medo muito bem.
Ele segurou-lhe o queixo gentilmente e forçou-a a encará-lo. Ela corou com o elogio. Não
acreditava que fosse de fato corajosa; ainda assim, estava contente que Sam assim pensasse.
— E o senhor? Ficou assustado com Justin Forbes?
Em resposta, Sam desatou a rir.
— Ah, isso é que não! Conheço Justin há anos. Já nos atracamos dezenas de vezes. Somos
colegas do condado de Essex e estamos acostumados a escaramuças em tavernas. Não levamos isso a
sério.
— Mas... bateu-o com tanta força que ele quase caiu no chão...
Sam parou de sorrir. Também merecia um soco por tê-la levado a um antro como o Cão Feroz.
— Tive minhas razões, dona. Justin não devia associar seu nome ao meu daquela forma.
Todo o contentamento de Hanna desapareceu. Então Sam estivera tentando proteger o próprio
nome, não a honra dela. O tal Justin Forbes havia aludido a outra mulher... Sofie, se não se enganava.
Caso Sam fosse recém-casado, era evidente que não queria ser associado a Hanna Snow...
Ela recolheu a mão rapidamente e virou-se para amarrar o chapéu. Não podia encará-lo depois do
estúpido equívoco que cometera. A vergonha que sentia era indisfarçável, estava estampada em seu
rosto.
Sam dirigiu-lhe um olhar interrogativo. Desistiu de tentar decifrar suas emoções, enfiou as mãos
nos bolsos. Talvez Hanna não tivesse ouvido bem as palavras de Justin e só agora se apercebesse de suas
implicações. Acaso a mera sugestão de que estivessem envolvidos causava-lhe tamanha repulsa?
— Vamos. Já é hora de irmos à alfândega. — disse num tom ríspido, recomeçando a andar sem
olhar para ela.

CAPÍTULO V

Claro que os papéis da Truelove estavam em ordem. Sam nem por um segundo tivera dúvida
disso. O velho oficial do cartório mal relanceara as palavras e cifras depois de ler o nome da firma no
alto da página.
Agora Sam esperava que Hanna, postada silenciosamente diante da escrivaninha alta, fosse
atirar-lhe na cara as suspeitas infundadas que tivera. Ela, porém, manteve-se quieta, o rosto impassível
sob a aba do chapéu. Essa atitude intrigou-o. No lugar de Hanna, ele decerto não agiria assim.
Hanna nada disse ao oficial. Limitou-se a um breve aceno aos marinheiros que a ajudaram a
subir no bote e, durante o curto trajeto até o brigue, não proferiu palavra.
Novamente a bordo da Truelove, foram interpelados no convés por um Amos Howard assaz
preocupado.
— Visitante a bordo, capitão Colburn! — informou, sem disfarçar a apreensão.
Sam olhou por cima da amurada, balançando a cabeça com desgosto. Estivera tão absorto em seus
pensamentos, que nem notara o outro bote amarrado ao brigue. Um bando de piratas poderia ter atacado
a tripulação durante sua ausência, e talvez ele nem se desse conta disso. Com mil demónios, será que
aquele dia não teria mais fim?
— Nenhuma visita é permitida durante minha ausência, Howard! Estamos entendidos?
— Mas ele afirmou que se tratava de um assunto urgente, senhor. Veio diretamente para cá e
pediu para falar com a senhora. Não ttve como mandá-lo embora — justificou o imediato.
— Pois bastava-lhe dizer que não podia desobedecer às minhas ordens ― Sam replicou, transferindo

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sua irritação para o visitante inesperado.
— Ele é um cavalheiro, senhor. Eu o conheço de Providence, e meu irmão está trabalhando em
um de seus navios. Tomei a liberdade de pedir-lhe que esperasse em sua cabine, senhor. Jeremy serviu-
lhe um cálice de xerez.
— Howard... ― Sam começou, depois interrompeu-se. Procurou controlar-se, enquanto
imaginava um cavalheiro barrigudo sentado em sua cadeira com um cálice de seu vinho na mão. Fosse
como fosse, quem Howard pensava que era para contrariar suas ordens?
Hanna acompanhou o bate-boca com crescente mal-estar.
— Esse cavalheiro deseja me falar? Por acaso é o sr. Morrow? — perguntou esperançosa.
Mas o imediato não teve tempo de responder, pois nesse momento o misterioso visitante subiu ao
convés.
— Hanna Snow! O que está acontecendo, minha menina? Venho de Boston e descubro que fugiu
como se fosse uma reles cigana! Aí está, causando vergonha a seu pai!
Ela virou-se imediatamente. Deparou com um homem de rosto quadrado e olhar astuto. Era alto
e forte, mas Hanna encarou-o sem se intimidar.
— Não tem direito de me julgar, capitão Gill. Eu lhe agradeceria se não se intrometesse em meus
assuntos e me deixasse em paz!
George Gill torceu o nariz com desprezo.
— Foi esse tipo de linguajar que a arruinou, Hanna. Não tem pena de seu pai? Quando ele
souber de sua fuga, ficará de coração partido!
— Quanta hipocrisia! Como ousa fingir que se preocupa com meu pai? Prefere vê-lo apodrecer
na prisão a gastar um só penny para ajudá-lo! — ela quase gritou, transtornada e completamente
esquecida de Sam e dos marinheiros que a rodeavam.
Reinou um estranho silêncio no navio. Mas Sam já tinha ouvido demais. Sem a menor cerimônia,
interpôs-se entre ela e o recém-chegado.
— Sou o capitão Colburn e este é meu brigue. É melhor se explicar antes que eu o expulse!
O outro resmungou algo incompreensível, sem tirar os olhos de Hanna. Contrariado, alisou as
extravagantes pregas de sua camisa e apresentou-se:
— Sou George Gill, mercador e capitão da Lion, de Providence. John Snow é meu parceiro...
— Ele foi seu parceiro há mais de vinte anos, e em apenas duas viagens, capitão Gill! Duas
viagens e nada mais. Meu pai não confia no senhor e eu tampouco! — Hanna interrompeu-o com
indignação.
— Como eu ia dizendo, sou parceiro de John Snow e seu grande amigo — Gill prosseguiu
enfaticamente. — Em consideração a ele, vim aqui para levar sua filha de volta para casa, de onde nunca
deveria ter saído.
— Não me levará a parte alguma. Eu me recuso a acompanhá-lo. Não retornarei a Providence
enquanto não libertar meu pai ― Hanna declarou com altivez.
Com os braços apertados contra os flancos, ela torceu nervosamente as dobras da saia.
Gill deu uma gargalhada que soou como um latido desagradável. Postou-se diante de Sam e
acenou para que Hanna se aproximasse.
— Parece, com efeito, muito decidida. Mas quero que saiba que mandei dois homens a Londres
para cuidar do caso de seu pai. Prometo-lhe que irei eu mesmo para lá na minha próxima viagem. Não
seja insensata. É assim que se fazem as coisas, menina. Com subornos e ameaças de advogados, e não
com lamúrias femininas.
Hanna meneou a cabeça.
— Acha que eu estaria aqui se acreditasse no senhor, capitão Gill?
Ele lhe estendeu a mão e estalou os dedos impacientemente para que se aproximasse.
— Não seja tola. Acaso não percebe que lhe cabe a culpa da prisão de seu pai? Não há nada que
os ingleses detestem mais do que um francês. Se eles ficaram a par de seu envolvimento com Etienne de
Gramont, seu pai é quem pagará o pato.
Sam pousou a mão no ombro de Gill. Quando falou, foi com voz baixa e contida. O tom
ameaçador, porém, não deixava dúvidas quanto a suas intenções:

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— É melhor parar agora, ou o farei engolir suas palavras uma a uma.
O outro afastou-lhe a mão com um gesto arrogante.
— Está mesmo disposto a defendê-la? Pois fique sabendo que muita gente diz que John Snow
vendeu a própria filha em troca de uma plantação e de duzentos escravos. Mas eu conheço John e essa
criatura deplorável que é sua filha. Com ou sem a troca, ela estava louca para se deitar com aquele porco
francês!
Sam pulou no pescoço dele e agarrou-o pelo colarinho, levantando-o do chão. Gill praguejou e
tentou acertar-lhe um soco no queixo. Sam desviou-se do golpe e o atirou contra o mastro principal. O
outro quis revidar, mas ele imobilizou-o, fazendo menção de esmurrá-lo.
Hanna precipitou-se para Sam, segurando-lhe o braço com ambas as mãos.
— Pare, pelo amor de Deus! Assim acabará por matá-lo!
Arquejante, ele virou-se ligeiramente, ainda agarrando o colarinho do outro. Olhou as mãos de
Hanna crispadas em seu braço.
— Será que não ouviu o que esse calhorda disse a seu respeito?
— Não vale a pena arranjar briga, Sam. Deixe-o voltar para o bote. Continuaremos nossa viagem
e será o fim dessa lamentável história.
— É realmente o que quer? — ele perguntou, na mais completa incredulidade.
— Minha vontade não conta. ― Hanna soltou-lhe o braço, de súbito constrangida por havê-lo
tocado. ― A situação agora é bem diferente de uma briga de taverna. George Gill é um homem poderoso
e poderá lhe causar muitos problemas.
— Gostaria de ir embora com ele? — Sam inquiriu. Se fosse antes, teria se alegrado em ficar
livre da presença de Hanna. Agora, estranhamente, já relutava em vê-la partir.
— Não. ― Ela sorriu com determinação. Seu sorriso foi fugaz e desapareceu tão logo havia
surgido. ― Oh, não.
Sam soltou Gill. Escoltou-o até a amurada e assobiou para o barqueiro do bote alugado. A seguir,
gesticulou para dois de seus homens para que ajudassem o outro capitão a descer do brigue.
— Se a srta. Snow não houvesse intercedido em seu favor, o senhor estaria nadando de volta à
terra agora. Tenha isso em mente e deixe-a em paz — advertiu.
Gill tentou manter a pose de dignidade. Balançou a cabeça devagar, massageou o pescoço.
— Sim, reconheço que devo isso a ela. Mas não se iluda, Colburn. Essa moça é uma criatura
nefasta e ainda há de des graçá-lo. Guarde bem minhas palavras.
Sam conteve-se para não atirá-lo ao mar de uma vez por todas. E nem esperou que o bote
alugado se afastasse; foi logo mandando que se içasse âncora e se levantassem as velas. Enquanto se
acercava do cabrestante, pôde notar que Howard se debruçara na amurada, seguindo o bote de Gill com
o olhar.
— Não se esqueça de quem é seu mestre, Howard. Ou então trate de ir nadando atrás daquele
gordalhão!
O imediato virou-se sobressaltado. Mais que depressa, assumiu uma expressão impassível. Cheio
de cautela, assentiu com um breve meneio e foi juntar-se aos companheiros.
A relação com Howard começava a se complicar, Sam ponderou. Sentiu-se exaurido, e quase
desejou que o outro tivesse seguido Gill. Era preferível ficar sem ele a mantê-lo trabalhando de má
vontade.
Sam empurrou a aba do chapéu e alisou os cabelos castanhos. Voltou os olhos para Hanna. O
lugar onde havia se postado agora estava vazio, e deu-se conta de que ela mais uma vez tinha fugido.
Praguejando, dirigiu-se para a cabine. Precisava de respostas, não de deserções.
— Letty, sou eu ― Hanna disse, batendo à porta de sua cabine.
A criada, que demorava a responder, devia estar dormindo. Hanna insistiu. Queria se isolar um
pouco para refletir.
Sam garantira-lhe que pouco se importava com seu passado. E ela queria desesperadamente
acreditar nisso. Porém, depois de tudo o que Gill dissera, seria difícil que Sam continuasse a vê-la com
bons olhos.
Não tinha coragem de enfrentá-lo. Ainda não. Afinal, era um simples homem, não um santo. E

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não a compreenderia, assim como os outros não a haviam compreendido. Ela precisava de tempo para
acalmar-se e superar sua vergonha. Tempo para que a ferida aberta pelas calúnias de Gill cicatrizasse.
Ao menos superficialmente.
Ouviu Sam chamá-la. Ouviu seus passos no deque.
Hanna tornou a bater na porta, cada vez com mais força, ansiosa para acordar Letty.
Quando ele desceu a escada, sua figura imponente bloqueou a claridade do sol. Com um grito
abafado, Hanna girou sobre os calcanhares e ficaram face a face.
— Está sempre fugindo, não é? Pois minha paciência se esgotou. Deve-me algumas explicações,
Hanna Snow, e esperarei quanto for necessário para obtê-las.
Sam tinha razão. Ela estava sempre fugindo.
Recordava-se da longa estrada para Beau Coteau, da lama que se formava com as chuvas do
outono e entrava em seus sapatos. Lembrava-se dos papagaios empoleirados nas primaveras multicores,
tagarelando sem cessar, como que zombando dela. O ar era tão pesado que mal podia respirar. E corria,
corria, corria, fugindo da casa, de Etienne, da verdade. Correu até sentir que seu coração iria se
despedaçar de dor e de vergonha.
— Fale, mulher. Eu quero a verdade ― Sam intimou.
A verdade? Hanna fitou-o mudamente. Não tinha para onde fugir. Ele lhe barrava o caminho. Às costas
dela, só restava a porta trancada da cabine.
Nada mais a prendia à Martinica. Perdera tudo o que lhe era mais caro. O sofrimento a
dilacerava. Só pensava em morrer, e fora a morte o que quase encontrara.
Sam encarou-a cada vez mais intrigado. Os olhos de Hanna estavam arregalados, sua respiração
ofegante. Parecia estar numa espécie de transe.
Suavemente, Sam segurou-a pelos ombros. Sob suas mãos, sentiu a pele fria dela.
— Hanna... diga-me, o que há de errado?
Ele já vira aquela mesma expressão, perdida e vazia, no olhar de homens que lutavam na guerra.
Homens cuja alma fora marcada pela visão atroz da morte. Entretanto, flagrar tal expressão numa jovem
mulher que nunca passara necessidade era espantoso. Que tormentos se esconderiam em seu coração?
As mãos dele deslizaram pelos braços de Hanna, friccionando-os para dar-lhes um pouco de
calor. Era uma desajeitada tentativa de fazer com que ela voltasse a si. Sam rememorou as palavras de
Gill. Sem dúvida, não haviam sido nada lisonjeiras; porém, simples palavras não poderiam deixar Hanna
naquele estado.
As perguntas iam se multiplicando a cada minuto que passava. E nem sombra de respostas, ele
pensou com exasperação.
Puxou Hanna para si e aninhou-a nos braços. Com infinita brandura, afagou-lhe os cabelos. Lá,
na penumbra ao pé da escada, parecia-lhe que um abraço era a única coisa que poderia lhe oferecer.
— Ah, meu pobre anjo. O que devo fazer para ajudá-la?
Sam soube o exato momento em que Hanna voltou a si.
Sentiu-a estremecer, ouviu-a suspirar, tomando consciência de onde se encontrava. Ele deixou as
mãos caírem. Ela recuou e fitou-o, agora com olhar conturbado. Abaixando-se, apanhou o xale que
deixara cair e agasalhou-se num gesto inconscientemente defensivo.
— Não estou com medo do senhor, capitão Colburn — Hanna disse rapidamente, pois era de si
mesma que tinha medo.
— Eu não disse isso. Sabe onde estamos, Hanna?
— Claro que sim. Este é o brigue Truelove — ela respondeu, pouco à vontade.
Sam a princípio zangara-se. Agora falava-lhe como se nada tivesse acontecido. Hanna não sabia
por que o humor dele mudara de súbito, e tampouco sabia como fora cair em seus braços.
Ele, por sua vez, assentiu-lhe de forma encorajadora.
— Lembra-se de George Gill subir a bordo? E de como insistiu que o acompanhasse até
Providence?
O pânico turvou o verde dos olhos dela.
— Não vai me obrigar a ir embora com o capitão Gill, vai?
Sam teve vontade de abraçá-la. Percebendo, porém, seu terror, obrigou-se a ficar imóvel.

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— Não ― disse simplesmente. ― Mas preciso saber se há outros como ele que podem tentar nos
deter. Afinal, já teremos muitos problemas com os ingleses.
— Quanto a isso, não se preocupe. Não há outros. Na verdade, o capitão Gill por si só já é
bastante inconveniente... Embora não fosse certo machucá-lo como o senhor fez, reconheço que seja um
homem mau e inescrupuloso. O fato de meu pai considerá-lo como amigo permanece um mistério para
mim.
— Nesse caso, Gill merecia uma boa surra. Não pode permitir que sujeitos como ele a
desmoralizem, Hanna.
— Pouco me importa o que diga de mim.
— Pois a mim importa...
Nesse momento, o brigue oscilou. Sam automaticamente segurou-se numa viga. Hanna,
apanhada de surpresa, perdeu o equilíbrio e foi atirada contra o peito dele. Dessa vez Sam não a
amparou. Não lhe passou despercebido como Hanna se endireitou mais que depressa e afastou-se.
Curada de sua momentânea fraqueza, recuperara as energias e agora deixava bem claro que não desejava
nenhum conforto dele.
Hanna notou a repentina dureza na fisionomia de Sam. Já antecipava qual seria a próxima
pergunta que ele lhe faria. Torceu as pontas do xale, consternada.
— Disse-me certa vez que era casada. Por que então adota o nome de seu pai e não o de seu
marido? — Sam inquiriu.
— Porque, perante Deus, não tenho mais direito de usá-lo.
Ele estreitou os olhos.
— Está falando por meio de charadas, Hanna. Não faz sentido. Ou é esposa de um homem, ou é
sua viúva. Não há meio-termo.
— O que sou ou deixo de ser não vem ao caso, capitão.
Hanna ergueu o queixo, fitou-o demoradamente. Entre os dois, só existia lugar para uma relação
formal e tensa. Sam já pertencia a outra mulher, e ela não incorreria no mesmo erro duas vezes.
— O senhor foi incumbido de transportar uma carga para Londres e levar-me como passageira.
Isso é tudo. Os detalhes sobre minha vida particular não lhe dizem respeito — arrematou.
Cheio de frustração, ele deu um soco no tabique.
— O diabo que não! — gritou.
A porta da cabine abriu-se. Letty, sonolenta, espiou para fora cautelosamente. Olhou para Hanna
e em seguida para Sam. Com os lábios apertados, segurou a ama pelo braço e puxou-a para dentro.
Hanna lançou um último olhar para ele e, contendo lágrimas que nem ela mesma sabia explicar,
entrou.
O brigue deixou a baía Narragansett. Nos quatro dias subsequentes houve tormenta. No quinto
dia, finalmente os ventos fortes e o mar encrespado cederam. Voltou a calmaria.
Sam, sentado no cesto da gávea; as pernas cruzadas e uma luneta na mão, tinha o olhar perdido
no horizonte tingido de cinza e rosa.
— Parece que a tempestade chegou mesmo ao fim, capitão. E a Truelove portou-se com bravura
― comentou Lawson, acomodado a seu lado.
— Ah, isso é verdade. — Sam estendeu o braço e deu um tapinha no mastro de modo afetuoso.
— Agora só resta calcular quanto nos desviamos da rota.
— Até que não nos desviamos muito, graças ao seu comando, capitão.
Lawson sorriu e coçou o queixo, onde despontava a barba por fazer. Navegara com Sam desde os
tempos em que ele era um simples marujo. A amizade entre os dois era antiga, e unia-os uma profunda
afeição. Como Lawson não alimentava grandes ambições, escolhera seguir o companheiro de navio em
navio.
— Logo que Howard consertar as vergas, singraremos a toda velocidade e nada nos separará do
rei George, maldito seja! — Sam exclamou, inclinado-se para acompanhar o trabalho do imediato. — Os
homens gostam de Howard, não é? — perguntou a Lawson.
— Gostam, sim, capitão. É um camarada esforçado e sempre se sai com boas piadas. Tirante
aquele incidente com a criada, nunca causou problemas. E, verdade seja dita, ele não tentou mais se

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engraçar para a mulherzinha.
À menção de Letty, Sam não pôde deixar de evocar a imagem de Hanna. Naqueles cinco dias, ela
não abandonara seu pensamento. Lembrava-se de como ficara transtornada e concluía que o marido
ausente fora o culpado pela dor que a atormentava.
Ao rememorar suas faces pálidas e seu olhar assustado, teve vontade de descer à cabine e
confortá-la. E abraçá-la, dizendo-lhe que não existiam problemas insolúveis. Dizendo-lhe que nenhum
sofrimento durava para sempre. Dizendo-lhe, enquanto afagava seus cabelos, que o trovão,
aparentemente tão terrível, não passava de um som oco...
A postura de Lawson era de longe menos romântica:
— Claro que é mais fácil esquecer uma mulher quando ela está se lamuriando e passando mal.
Jeremy me contou que as duas têm estado enjoadas como cães desde que a tempestade começou. Não
comem nada e, no máximo, bebem um pouco de água. Estava certo, capitão. Um navio não é, definitiva-
mente, lugar para mulheres.
Sam franziu o cenho, mas nada disse. Esperava que Hanna não estivesse por demais
enfraquecida.
Nisso, Lawson arregalou os olhos e debruçou-se.
— Por falar no diabo, olhe quem vem lá, capitão!
O vestido de Hanna tremulava ao vento, uma mancha verde vivo recortando-se contra o céu
acinzentado. Ela andou vagarosamente pelo deque, os cabelos soltos dançando ao redor de seu rosto e os
olhos semicerrados. Sorria. E seu sorriso era tão sensual, que Sam teve certeza de jamais haver visto
uma mulher tão inconsciente da própria beleza. Ou tão desejável.
— Bela criatura. Por certo não parece doente agora — observou Lawson.
Sam contemplou-a, embevecido, e a princípio mal ouviu os gritos de alerta dos homens lá
embaixo.
Uma longa verga negra oscilou no ar, ameaçando tombar sobre o deque.
Hanna, pasma e sem ação, ficou vendo a pesada verga descer sobre ela.

CAPÍTULO VI

Tudo aconteceu muito depressa, e ela de início não percebeu que fora rapidamente empurrada
para o lado. A verga e o emaranhado de cabos atingiu o convés em um ponto tão próximo de Hanna, que
o cordame solto arrebatou-lhe o xale. O impacto da queda atirou-a de encontro ao marujo que a salvara.
— Não se machucou, hein, dona? ― perguntou-lhe ele. Chamava-se Israel Martin e, porque
tinha mulher e filhos em Marblehead, depositou-a no chão assim que ela fez sinal negativo. Depois
cruzou os braços, numa atitude de reverência. Sorriu desajeitadamente. ― Tem certeza de que está tudo
bem? Por pouco não foi esmagada pela verga. Tive até medo de olhar!
— Estou muito bem, obrigada. Agradeço-o por sua... consideração.
Hanna pressionou a palma das mãos no rosto e fitou os destroços à sua frente. Não fosse por
Martin, àquela hora estaria soterrada sob um amontoado de cabos e madeira partida. Virou-se para
reiterar sua gratidão. Mas o marujo já havia se juntado aos outros, que começavam a recolher o que
restara da verga tombada.
Antes, sentira-se agradecida pelo acanhamento de Martin. Agora, no entanto, perguntava-se até
que ponto o constrangimento do marinheiro não se devia a boatos maldosos que corriam sobre ela, entre
os tripulantes do brigue.
Com um suspiro, ajoelhou-se e começou a puxar o xale do emaranhado de cabos. O retângulo de
lã esvoaçou por um momento, tal uma bandeira ao vento. Nisso, Hanna viu um par de botas surgir diante
de si. Botas de couro surrado, manchadas de sal; botas grandes, que só podiam pertencer a um homem:
Sam.
— O que diabo está fazendo aqui? Dei-lhe ordens expressas para que ficasse na cabine. Em vez
disso, subiu ao convés e quase morreu! ― trovejou, furioso com a displicência dela.
Podia constatar por si mesmo que não estava ferida. Na verdade, parecia preocupada apenas com

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seu maldito xale. Mesmo assim, não o abandonava a imagem de Hanna com os olhos arregalados,
acompanhando a queda da verga.
Ela encarou-o na mais completa incredulidade.
— Acha que sou culpada por esse acidente?
— Veio aonde não devia, eis tudo. Ninguém a obrigou a subir para o deque, correto?
— Não acredito no que está a dizer! Oh, francamente! Mas, pensando melhor, essa atitude
detestável é típica do senhor. Preferiria me ver sufocar naquela cabine abafada a conceder-me alguns
momentos em seu precioso convés!
— Já a avisei que a Truelove não é lugar para mulheres...
Sam calou-se ao perceber a raiva dela.
— Por dias e dias eu fiquei ao lado da pobre Letty, que padecia de enjôos. Hoje seu estado
melhorou e subi para respirar um pouco de ar fresco. E o senhor está me censurando por isso? — Hanna
replicou acaloradamente.
Ele tentou imaginá-la fazendo as vezes de enfermeira. Não conseguiu. Os pálidos cabelos loiros
de Hanna estavam revoltos, suas faces rubras, os olhos lançando chispas de indignação. Segurava o xale
com tamanha força, que dava a impressão de estar prestes a estrangulá-lo. O vestido verde, agitado pelo
vento, aderia às suaves curvas de seu corpo. Que Deus o ajudasse: sempre seguindo a moda francesa,
Hanna não usava anáguas, e não havia nada a separar sua pele da seda escorregadia...
— Está exaltada, madame. Vá repousar.
Hanna jogou o xale por sobre os ombros.
— Não vejo que benefício isso me traria, pois foi a inépcia de seus homens que provocou o
acidente!
Atrás dela, Sam divisou Howard aproximando-se. No mesmo instante, sentiu-se ferver de cólera.
— Inépcia, por todos os santos! ― esbravejou. E, embora suas palavras fossem dirigidas ao
imediato, continuou a fitar Hanna. Só a presença dela o impediu de proferir as imprecações que
geralmente usava em semelhante situação. ― Isso não passa de um eufemismo para incompetência! Se
aquela verga houvesse caído em um ângulo mais fechado, teria varado o convés como uma flecha e
atravessado os dois deques inferiores antes de se cravar no casco. Diga-se de passagem, estamos a uma
boa distância da terra para nos arriscarmos a nadar até Nantucket. Que Deus nos salve da inépcia, com
todos os demónios!
Ignorando Howard, Sam reuniu-se aos outros para ajudá-los a retirar os destroços do convés.
Hanna observou-o disfarçadamente, notando os músculos poderosos que se desenhavam em suas costas,
sob a camisa. Agora que a agitação provocada pela inesperada queda da verga ia gradualmente cessando,
ela percebeu quão perto chegara da morte. Se tivesse morrido, Sam pouco se importaria. O mais
provável é que atirasse seu corpo ao mar, como era de costume, rezando em voz alta e, no íntimo,
congratulando-se por se livrar da presença dela.
Hanna apertou os lábios e respirou fundo para conter o pranto que já lhe queimava os olhos.
Durante a tempestade, jurara a si mesma que não se abalaria com o que Sam pensasse, dissesse ou
fizesse. Não se deixaria atingir pela rudeza dele. E não fugiria quando tentasse provocá-la novamente.
Entretanto, aqueles juramentos secretos não lhe trouxeram nenhum conforto. Pelo contrário: só
haviam contribuído para acirrar o vazio que lhe torturava o coração.
Hanna cobriu a cabeça com o xale. Baixando o rosto para ocultar as lágrimas, rumou para a
escotilha. Nos primeiros degraus da escada, olhou a contragosto na direção da cabine. Após uma semana
de confinamento, relutava em voltar para o espaço exíguo e abafado. Mas para onde mais poderia ir?
Acima dela estavam os compartimentos da tripulação. Mais atrás a cabine de Sam. Hanna
avançou para o próximo lance de degraus estreitos. Sentou-se ao pé da escada. Abraçou as pernas e, com
um soluço, escondeu o rosto entre os joelhos.
Sam e George Gill tinham razão: não havia lugar para ela na Truelove. Mas tampouco havia em
Providence ou em Beau Coteau. A triste verdade é que não existia no mundo um lugar para ela. Se
tivesse morrido sob aquela verga, não restaria ninguém para libertar seu pai. Chegara muito perto da
morte e, desgraçadamente, desejava que fosse Sam, e não Israel Martin, a salvá-la.
Oh, por Deus, será-que nunca aprenderia a lição?

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Sentada no porão do navio, ouviu as vagas fustigando o casco à medida que o brigue cruzava as
águas. Por trás de caixotes empilhados a um canto, barricas e tonéis, escutou os pequenos ruídos e
guinchos de ratos, os passageiros clandestinos da Truelove.
Ela percebeu também outro som distinto. Uma fungadela. Franzindo o cenho, ergueu a cabeça.
— Quem está aí? — perguntou, e sua voz ecoou pelos espaços curvos do porão.
De trás de um dos tonéis, saiu Jeremy, o único garoto a bordo do brigue.
— Juro que não tive intenção de assustá-la, madame ― disse ansiosamente.
Seu olhar vidrado dava a entender que ela é que o havia assustado. O menino segurava uma
lanterna improvisada e uma folha de papel amarrotada.
Hanna ouvira alguém comentar que Jeremy estava com dez anos. Mas, na precária claridade do
porão, parecia não ter mais de oito. Era muito pequeno para sua idade. Ela tentou imaginar como a mãe
pudera permitir que se afastasse de casa. E, sobretudo, não entendia por que Sam o tomara a seu serviço.
Perscrutando-o, notou que estava com os olhos marejados. Isso explicava por que fungara.
— Não me assustou de modo algum — ela tranqiiilizou-o num tom brando. — Acho que veio
aqui pelo mesmo motivo que eu: para ficar sozinho, não?
— É verdade, madame. Mas a senhora tem uma cabine só sua. Não precisava vir para cá.
— A cabine é muito pequena, e eu a divido com minha criada, que adoeceu desde a partida de
Newport.
Ele franziu o nariz.
— Sei disso. Era eu que deixava água para as senhoras do lado de fora da cabine. Também
enjoava em minhas primeiras viagens. Depois ganhei resistência. ― Jeremy deitou os olhos no papel em
sua mão e em seguida encarou-a, afastando uma mecha de cabelo loiro do rosto. ― Pode ler isto para
mim? Minha mãe não pode ler, mas a senhora, sendo uma dama, deve saber, certo?
Hanna aquiesceu, um pouco surpresa, enquanto ele lhe entregava a folha de papel.
— É uma carta de meu irmão Ben — o menino explicou depressa. — Sempre navegamos juntos
com o capitão Colburn, mas agora Ben é segundo imediato da Eliza Jane, do capitão Lawrence. Como se
trata de um navio negreiro, meu pai me proibiu de ir com ele.
Hanna meneou a cabeça, muito séria.
— Seu pai está certo. O comércio de escravos não é uma atividade decente para um cristão.
Espanta-me que Ben tenha se empregado em um navio negreiro.
O garoto tornou a fungar. Limpou o nariz na manga da blusa.
— Ele também não gostou muito da idéia. Mas quer se casar com Sara Webb e precisa de
dinheiro. O capitão Lawrence paga-lhe dobrado. Ben mandou-me essa carta para contar como vão as
coisas. Nem desconfia que ainda não aprendi a ler. Até que tentei, mas não consegui de jeito nenhum. E
todo mundo zomba de mim... — Jeremy fez uma pausa e olhou-a com ar de súplica. — Por favor,
madame, não pode ler a carta?
— Sim, é claro que posso. Mas não seria preferível se aprendesse a ler e fosse capaz de escrever
cartas para seu irmão sempre que tivesse vontade?
— Ah, madame, eu bem que gostaria disso. Só que não tenho tempo. Quero ser imediato, como
meu irmão. Não me interessa trabalhar na cidade.
— Aí é que se engana. Se fosse letrado, teria condições de chegar ao posto de capitão. Além
disso, eu poderia ensiná-lo a ler e escrever sem que ninguém ficasse sabendo...
Jeremy animou-se com a proposta. Hanna afastou-se, a fim de que ele pudesse se sentar a seu
lado. O menino acomodou-se e depôs a lanterna ao pé do degrau.
A tarefa de ler a carta não se revelou das mais fáceis, pois a caligrafia de Ben não era exatamente
primorosa. Enquanto Hanna recitava o texto, Jeremy inclinava-se para ouvir melhor, e chegou mesmo a
tentar identificar algumas palavras. Comovida, ela passou o braço por seus ombros estreitos. O garoto
não passava de uma criatura carente de atenção. Era o único a bordo da Truelove que não lhe dirigiria
censuras. Se pudesse, ajudá-lo-ia em tudo o que estivesse a seu alcance.
Nenhum dos dois ouviu os passos na escada, até que a imensa sombra de Sam estendeu-se sobre
eles.
— Jeremy Tate... — começou, e o menino deu um pulo. — Prometi a seu pai que cuidaria de

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você, mas não abuse de minha paciência. O que pensa que está fazendo com uma lanterna no porão?
Não vê que pode acabar ateando fogo ao navio?
Jeremy ficou cabisbaixo, olhando para os próprios pés, sem fazer menção de se defender.
Hanna levantou-se também, ainda segurando a carta de Ben.
— Como sabe que não fui eu quem trouxe a lanterna?
— Porque uma bonita vela de espermacete, fincada num castiçal de prata, seria muito mais do
seu feitio, madame.
Sam desceu os últimos degraus e postou-se logo acima deles. Um raio de sol solitário que se
filtrava pela escotilha produziu reflexos acobreados em sua basta cabeleira.
— Jeremy Tate, nunca mais faça uma asneira dessas. Agora suma de minhas vistas, até que eu
decida o que fazer quanto à sua insolência! Vá!
O garoto apagou a chama da lanterna e galgou os degraus apressadamente.
— Espere, Jeremy! Está se esquecendo da carta de seu irmão! — gritou-lhe Hanna. Tentou segui-
lo, porém, Sam barrava-lhe o caminho.
Ele apanhou a carta de sua mão e examinou-a. Depois enfiou-a na camisa.
— Não tem direito de fazer isso. A carta não lhe pertence. Eu estava tentando ensiná-lo a ler.
Sam imaginou-a pegando a carta de volta, as mãos macias e brancas resvalando em seu peito.
Afastou esse pensamento da mente e obrigou-se a dizer com firmeza:
— Jeremy deveria estar no convés, não sentado aqui fazendo coisas de mulher.
— Mas ele é apenas uma criança!
— Óra! Já tem dez anos e pode muito bem trabalhar. Caso não saiba, o menino precisa sustentar
o pai inválido e quatro irmãos pequenos. E eu lhe pago muito mais do que receberia um mero um
aprendiz.
Sam estivera a poucos metros do pai de Jeremy quando a bala de um canhão inglês o atingira,
inutilizando-lhe um braço e uma perna. Tomara então para si a tarefa de treinar Jeremy e Ben para a vida
no mar. Gostava dos dois meninos e os tratava bem, muito melhor do que os capitães de outros navios.
Desagradava-o que Hanna o julgasse cruel.
— Ainda assim, o menino estaria melhor com sua família, aprendendo a ler e escrever em vez de
ficar sob a influência de homens feitos.
A condenação no olhar de Hanna atingiu-o com uma força de que ela estava longe de desconfiar.
— Nesta vida, nem todos têm escolha, madame. Não me lembro de ninguém me perguntar se eu
preferia ser criado na riqueza ou na miséria.
Hanna fitou-o. Se seu pai não houvesse enriquecido, ela provavelmente teria permanecido em
Providence e desposado algum rapaz conhecido de longa data. Não teria viajado para a Martinica nem
conhecido Etienne. E hoje sua vida não estaria desgraçada.
— Tampouco me consultaram a esse respeito. Engana-se se acha que uma bolsa de moedas pode
solucionar todos os problemas do mundo ― replicou afinal.
— Pois para mim, parece que pode solucionar, sim.
— Está equivocado, capitão Colburn. Em geral, o dinheiro simplesmente... não resolve
determinados problemas. Agora, por favor, entregue-me a carta de Jeremy.
Ela deu um suspiro cansado. Esperava que não recomeçassem a discutir sobre coisas que nunca
poderiam ser mudadas. Estendeu-lhe a mão e aguardou.
Sam, todavia, cruzou os braços sobre o peito.
— Providenciarei para que ele a receba de volta. Eu lhe agradeceria, madame, se ficasse longe
de minha tripulação. Tenho trinta homens sob meu comando e não poria minha mão no fogo por eles,
caso algum a encontrasse sozinha.
A verdade era que Sam não poria a mão no fogo nem por si mesmo se Hanna continuasse ali. A
fragrância de açucenas o envolvia mais uma vez, acenando para a promessa de uma intimidade que ela
jamais lhe concederia.
— Vá para sua cabine e fique lá, onde é seu lugar ― arrematou.
— Por que não me trancafia de uma vez por todas? Abruptamente, ele afastou-se para deixá-la
passar.

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— Eu bem que gostaria. Agora trate de permanecer na cabine e garanto-lhe que não teremos
problemas até aportar na Inglaterra.
— O senhor é que causa problemas, não eu, capitão Colburn. É um homem mesquinho e não me
conformo de não ter percebido isso antes!
Mesquinho. Aquela palavra não saía da cabeça dele. Com um gesto irritado, largou sobre a mesa
o jornal londrino que estivera tentando ler. De qualquer forma, aquelas notícias haviam sido publicadas
três meses antes, tempo suficiente para que ocorresse uma reviravolta na guerra entre a França e a
Inglaterra.
Ele olhou na direção da popa com expressão ausente e vislumbrou o luar que se derramava sobre
o convés.
Nunca uma mulher o acusara de mesquinhez. Nem mesmo Sofie. Que diabo, ela até quisera
desposá-lo! Não havia praticamente tentado arrastá-lo para o altar? Não o teria feito se o considerasse
um homem mesquinho, correto?
Já Hanna era uma mulher muito peculiar. Pressentira isso desde o primeiro momento em que
pusera os olhos nela. Mas qualquer comparação que tentasse fazer entre ela e a ex-noiva estava fadada
ao insucesso. Hanna era mais velha e, embora as duas houvessem nascido em berço de ouro, não tinha
nada da puerilidade irritante de Sofie. Conhecera um pouco do mundo e mudara graças a essa vivência.
Sam apreciava sua maturidade e seu autocontrole. Lembrava-se de que mal piscara quando a verga
desabara bem diante dela. Em seu lugar, qualquer mulher teria ficado histérica. Gostara também da
valentia que Hanna demonstrara na taverna. E do modo como defendera Jeremy Tate, ainda que o
descuido do menino pudesse ter destruído o navio.
Ressentia-se pelo fato de ela havê-lo ludibriado, é verdade. Não obstante, admirava-a pelo amor
e lealdade que devotava ao pai, a ponto de cruzar o Atlântico para socorrê-lo. Duvidava que Sofie fosse
capaz de sequer cruzar a Rua Essex para ajudar o velho Crowninshield. Decerto não se mostrara nada
confiável durante o curto período de noivado.
Sam questionava a sinceridade do amor que ela afirmara dedicar-lhe. Ele mesmo nunca a amara
realmente. O casamento com Sofie fora o único meio que encontrara para se associar aos
Crowninshields. Como costumava passar dez meses por ano no mar, achara que seria capaz de ir adiante
com aquele casamento.
Precisava ter um-ou dois filhos que o acompanhassem em suas viagens, e Sofie poderia
encarregar-se de concebê-los tão bem quanto qualquer outra mulher.
Oh, ela também gostava de seus beijos, claro, desde que não se desdobrassem em carícias
demasiado íntimas. Ficara fascinada com as origens dele. Julgara-o o próprio exotismo personificado por
ser filho de um tanoeiro que se embebedara até a morte. Não restava dúvida de que Sam contrastava com
o mundo dourado em que fora criada. Tanto que Sofie rejeitara todas as suas tentativas de agradá-la com
roupas novas que o aproximassem dos dândis cujas mansões estava costumava frequentar. Oh, não,
dizia-lhe: gostava dele exatamente como era, um capitão rústico e indomável.
Mas, agora, Hanna... Ela sempre insistia que os dois tinham mais pontos em comum do que era
de supor à primeira vista. Sam apoiou os pés no parapeito da janela e sorriu com amargura, pensando
quanto Hanna estava errada. No dia seguinte à festa, movido pela curiosidade, fora à casa dela para ver
onde vivia. A casa do capitão Snow ostentava três andares de tijolos e madeira trabalhada, janelas em
arco com caixilhos e degraus de mármore branco que levavam à porta de entrada. Tudo aquilo para uma
jovem de olhar triste e cabelos da cor do trigo.
Isso o fez refletir sobre Sofie. O engraçado é que, embora sua rejeição lhe houvesse ferido o
orgulho, não lamentara propriamente a perda dela. Fora um tolo, eis tudo, por permitir que a ex-noiva
fosse manipulada pelo pai e o trocasse por Pickering.
E agora lá estava ele, dando tratos à bola por causa de uma única palavra dita por Hanna Snow.
Era simplesmente absurdo.
Seus devaneios foram interrompidos por uma batida na porta da cabine. Era o horário habitual
em que Jeremy lhe trazia uma xícara de café. Sem se virar, Sam mandou que entrasse.
No corredor, Hanna hesitou. Pelo tom rude dele, era evidente que continuava zangado. Ainda
poderia girar sobre os calcanhares e ir embora dali. Sam nunca saberia que estivera à sua porta. Mas de

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que isso adiantaria? Se não voltasse às boas com ele, ficaria condenada a passar um mês inteiro trancada
em sua cabine. Pois muito bem: uma taça de vinho e belas palavras sempre haviam funcionado com seu
pai e com Etienne. Esperava que também funcionassem com o capitão da Truelove.
Equilibrou a bandeja numa das mãos e com a outra abriu a porta.
Sam sentava-se de costas para ela. As longas pernas, cruzadas e escondidas sob calças largas,
apoiavam-se displicentemente no parapeito da janela. Os pés estavam descalços. Usava a costumeira
camisa branca e o casaco azul desabotoado que lhe ressaltava os ombros possantes. Prendera a cabeleira
rebelde em uma trança, e Hanna pensou, vexada, que Sam era capaz de trançar os próprios cabelos com
mais habilidade do que ela própria.
Hanna fechou a porta atrás de si e depositou a bandeja com o vinho e os biscoitos sobre a mesa.
— Vim aqui para lhe pedir desculpas ― disse.
Sam virou-se imediatamente, tomado de surpresa. Com expressão indecifrável, seu olhar
percorreu o talhe dela erraticamente. Hanna usava o mesmo vestido branco com estampas vermelhas do
dia da partida. Dessa vez estava sem jaqueta e o tecido fino moldava a curva de seus seios. Em lugar de
jóias, preferira uma fita vermelha ao redor do pescoço e atara os cabelos no alto da cabeça.
Ela retesou-se, reconhecendo o brilho ávido que pairava nos olhos castanhos dele. Mesmo com
as pálpebras semicerradas e a claridade fraca da cabine, o olhar de Sam era tão intenso que Hanna
sentiu-o sobre si como uma carícia.
— Desculpas? — ele repetiu devagar, apoiando o cotovelo no encosto da cadeira. — Desculpas
por quê?
— O senhor tinha razão. É o capitão deste brigue e não devo me intrometer em seus assuntos
com a tripulação.
— Hum... Por tripulação, imagino que esteja se referindo a Jeremy. É verdade que ele não sabe
ler? Isso me espanta, pois assinou seu nome em meu livro muito bem.
— Tenho o palpite de que é a única coisa que sabe fazer. Mas, em sua idade, era de esperar que
soubesse muito mais.
— Eu tinha dezessete anos antes que aprendesse algo além de escrever meu nome e rezar para
não ser tapeado — Sam declarou de modo brusco.
Achava que Hanna o fitaria com choque ou mesmo perplexidade. Ela, porém, fez apenas um
gesto de assentimento, demonstrando inesperada compreensão.
— Nesse caso, o menino precisa se alfabetizar, do contrário nunca prosperará na vida. Eu lhe
agradeceria se o ensinasse a ler, escrever e contar. Só peço que não fique mais com Jeremy no porão ―
Sam acrescentou após uma pausa.
— Obrigada.
Então um raro sorriso iluminou o rosto de Hanna como um raio de sol. Sam sentiu-se desarmado.
Aí percebeu que continuava instalado na única cadeira da cabine; levantou-se e ofereceu-a a ela. Hanna
sentou-se, as costas muito eretas e as mãos delicadas movendo-se graciosamente como um par de
pássaros brancos.
— Na verdade, fiquei preocupado foi com a possibilidade de um incêndio no porão ― Sam
justificou-se. ― Afinal, sua carga consiste de um carregamento de rum de Rhode Island. Uma única
faísca e estaríamos perdidos.
Depois ele emudeceu, desorientado. Por que, quanto mais tentava consertar as coisas entre os
dois, mais confuso ficava?
— Peço-lhe desculpas mais uma vez então — reiterou Hanna.
Ela gostou do modo como Sam sorriu, expulsando toda a frialdade de seu coração. Não podia
negar: gostava dele. E retribuiu o sorriso mais uma vez, num secreto deleite. Aí, deu-se conta de que
estavam praticamente flertando e viu-se de repente tomada de receios. Decidiu servir-lhe logo o vinho e
retirar-se antes que algo mais acontecesse.
— Trouxe-lhe o vinho favorito de meu pai. Espero que o agrade.
Sam apanhou dois copos, lamentando que não fossem taças do mais puro cristal. Puxou um baú
para perto da mesa e sentou-se sobre ele. Seus joelhos roçaram os de Hanna. Encheu os copos. Fez um
brinde:

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— Liberdade aos franceses e confusão para os ingleses! Enquanto bebiam, trocaram
involuntariamente um longo olhar, carregado de mensagens mudas.
Vacilante, Hanna sorveu um pequeno gole. Sam emborcou seu copo, pousou-o na mesa c sorriu.
Ela ficou tensa. Se tivesse algum juízo, sairia dali quanto antes. Iria para sua cabine. Ouviria os sermões
de Letty. E, depois que a criada adormecesse, ficaria acordada mirando o teto, sem nada além da própria
companhia para se consolar.
Sam estava tão perto agora, que ela podia vislumbrar cada linha que o sol marcara em seu rosto.
E a fileira de dentes muito brancos que cintilavam no calor de seu sorriso.
Hanna tornou a erguer o copo e esvaziou-o de um só trago.

CAPÍTULO VII

Sam deu um sorriso, deliciado com o fato de Hanna tê-lo surpreendido mais uma vez. Os olhos
dela ficaram esgazeados sob o efeito do álcool, um leve rubor coloriu-lhe as faces. Era evidente que um
único cálice de vinho bastava para descontraí-la. Sam gostava de mulheres descontraídas: foi com
contrariedade que se lembrou de que em breve teria que mandá-la volta a sua cabine.
Hanna, porém, esticou o braço por sobre a mesa e tornou a encher os copos de ambos. E,
deliberadamente, abriu a lata de biscoitos.
— Fui eu mesma que os assei ― declarou, sem esconder o orgulho, enquanto pegava um
biscoito. ― Como vê, não sou tão inútil quanto imagina.
Se fosse usar de honestidade, Sam reconheceria que lhe ocorriam poucas coisas mais inúteis que
assar aqueles minúsculos sequilhos, cuja única finalidade parecia ser adornar a mesa de damas coquetes.
Todavia, ele se esqueceu disso e de tudo o mais ao observar Hanna partir um biscoito e mergulhá-lo no
copo. O sequilho desintegrou-se a meio caminho de sua boca, e ela riu. Uma risada musical, rouca,
sensual. Depois, a visão de Hanna sugando a ponta dos dedos molhados de vinho...
Por Deus, pensou agoniado: aquilo era demais para um homem. Pelo menos, era demais para ele.
Seu corpo inteiro retesou-se de desejo, os músculos tensos, o cérebro girando num incongruente torpor.
Será que Hanna sequer desconfiava das emoções que estava lhe suscitando?
Ainda achando graça da própria falta de jeito, ela apanhou outro biscoito, partiu-o em dois e mergulhou-
o rapidamente no vinho. Em seguida, ofereceu-o a Sam.
— Agora é a sua vez, capitão Colburn. — Como ele lhe sorrisse de modo um tanto enigmático,
Hanna apressou-se em dizer: — Eu garanto que este sequilho não está envenenado!
Em vez de pegar o biscoito, Sam segurou-lhe o pulso. Se Hanna queria provocá-lo, ele poderia
muito bem fazer seu jogo. E vencer.
Os olhos castanhos de Sam obscureceram-se, as pupilas se dilataram. Ele levou a mão de Hanna
à boca. Mordiscou o biscoito, deixando que os dentes resvalassem nos dedos delicados.
Desconcertada, Hanna tentou recolher a mão. Não obstante seus esforços, Sam continuou a
segurá-la sem a menor dificuldade. Ela agora já não sorria, e, por uma pequenina veia que vibrava
inquieta, ele pôde sentir que seu pulso se acelerava.
Com uma lentidão quase enlouquecedora, roçou a boca nos dedos de Hanna, lambeu as últimas
gotas de vinho que haviam restado. Virou-lhe a palma para cima e depositou aí um beijo, pressionando
os lábios contra a pele macia.
— O que... o que está fazendo, Sam? ― ela perguntou com voz sumida. Não conseguia crer nas
sensações que ele lhe provocava com um gesto tão simples.
Não tinha como negar, porém, que na verdade não havia nenhuma simplicidade naquele beijo...
não do modo como ele o depositara na palma de sua mão. Hanna estremeceu ao sentir a língua de Sam
brincar com a ponta de seus dedos. Se não o detivesse, o que mais faria com ela?
— O que quer? — sussurrou.
— O mesmo que você ― Sam murmurou, beijando-lhe a parte interna do pulso.
— Está enganado — Hanna mentiu, sem saber mais o que dizer. Agora a avidez no olhar dele
espelhava sua própria fome. — Não vim aqui para... para isso.

PROJETO REVISORAS 32
CH 38 – Mar de Paixões – Miranda Jarrett
Sam sorriu maliciosamente, e seu sorriso lançou por terra as defesas dela.
— Ah, não? Pois eu juraria o contrário, meu anjo. É uma mulher madura, não uma donzela
ignorante. Aposto que já adquiriu uma considerável noção disso.
Trêmula, Hanna pôs-se de pé, as faces ardendo de vergonha. Sam não soltou sua mão.
— Não sei que histórias maldosas ouviu a meu respeito, capitão Colburn, mas...
— Pouco me importa o que dizem as más línguas. Costumo fazer meus próprios julgamentos.
Com a mão livre, ele desatou a fita que Hanna frendera ao pescoço. Puxou-a vagarosamente, a
tira de seda deslizando sobre a pele dela como uma carícia. Hanna sentiu um arrepio.
— Logo que me casei com Etienne, era inocente de todas as acusações que me dirigem. Mas
agora, se consentir em ficar com você, tudo o que dizem de mim será verdade, Sam — replicou,
trespassada por uma pontada de amargura.
Ele ergueu-se com um movimento brusco e empurrou a mesa para o lado. A garrafa de vinho
rolou para o chão, estilhaçando-se em uma infinidade de fragmentos verde-escuros. Hanna ficou
paralisada ao vê-lo desviar-se dos cacos para tomá-la nos braços e colocá-la de pé sobre o baú. As mãos
grandes e morenas rodearam-lhe a cintura a fim de ampará-la. Hanna, por sua vez, apoiou as mãos nos
ombros largos dele e fitou-o por um longo momento.
Em toda a sua vida, Sam nunca tivera tanta certeza de que alguém precisava dele. E esse alguém
era Hanna.
— Acha que eu a exporia à mágoa? Acha que permitira que a prejudicassem por minha causa? ―
indagou sem rodeios. Antes que Hanna pudesse responder, atraiu-a para si, estreitando-a nos braços
musculosos. Cobriu os lábios dela com os seus, roubou-lhe o fôlego com inesperado ímpeto. Seu beijo
tinha gosto de vinho, tabaco e sal, o mesmo sal marinho que já impregnava a pele curtida de sol. Mas
pouco se assemelhava com o beijo ligeiro que os dois haviam trocado no jardim dos Browns.
Agora a boca de Sam era voraz, exigente.
Ela não pôde se impedir de corresponder com igual paixão, de dar vazão aos impulsos que
brotavam dos mais profundos recessos de seu íntimo. As defesas que construíra cuidadosamente para se
resguardar desmoronaram. A língua de Sam atiçava-a, enredava-a em um turbilhão de sensações. Hanna
correu as mãos pelos braços fortes, pelos ombros largos, e foi pousá-las no pescoço dele. Apertou-o
contra si, fundindo suas curvas suaves ao corpo másculo... Durante todo o tefrnpo em que estivera
casada com Etienne, jamais experimentara semelhante rasgo de paixão.
Sam afrouxou a fita que lhe prendia os cabelos e deixou que as mechas acetinadas pendessem
soltas ao redor de seu rosto, exalando o inebriante aroma de açucenas recém-colhidas. Suas mãos
cingiram a cintura dela, amoldaram-se às ancas apalpando a maciez da carne sob o tecido...
Sem aviso, Sam puxou os quadris de Hanna de encontro aos seus. As coxas dela comprimiram-se
contra as dele, enquanto Sam lhe mostrava a intensidade do desejo que o dominava.
Hanna abraçou-o, numa onda de volúpia cega. Gemeu entre suspiros e beijos, o que só contribuiu
para aumentar a excitação dele.
Aquilo não era, em absoluto, o que esperara de Hanna, Sam pensou vagamente. Afastou-se,
arquejante, para encará-la. O jogo havia terminado. Queria aquela mulher para si. E não pararia
enquanto não a fizesse sua. Com os lábios, traçou uma trilha de fogo no pescoço de Hanna, cobriu-lhe as
faces de beijos, escondeu o rosto nos cabelos loiros perfumados. E, todo o tempo, murmurava o nome
dela em delicadas carícias.
E então fitou-a. A luz vacilante da lamparina, notou que a tez pálida de Hanna já estava abrasada.
Enganchou os polegares no decote de seu vestido e desnudou-lhe os seios. Ela não fez menção de se
cobrir, e continuou a contemplá-lo com olhar lânguido.
As mãos dele pousaram nos seios generosos. Hanna arfou pesadamente. Sam curvou-se e beijou-
lhe os mamilos túrgidos, mordiscou-os de leve até fazê-la gemer cada vez mais alto, de puro prazer. Ela
acariciou-lhe os cabelos, segurou-lhe a cabeça, semicerrou as pálpebras experimentando um misto de
agonia e deleite...
— Capitão Colburn! — chamou uma voz premente. Ouviram-se batidas na porta. — Capitão, o
sr. Lawson manda avisá-lo que há um navio desconhecido nove pontos a estibordo!
O encanto estava quebrado. Sam praguejou baixinho, tomado de frustração. Sabia que tinha de ir.

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Na condição de capitão, não lhe restava escolha. Mas, por Deus, não queria deixar Hanna. Não agora,
quando ela estava prestes a pertencer-lhe. Sam fechou os olhos e descansou a cabeça na maciez de seus
seios, escutando as batidas desencontradas de seu coração. Mais um momento. Só mais um momento
com ela. Era tudo quanto desejava.
— Capitão Colburn? ― insistiu o homem do outro lado da porta, alteando a voz de modo
incerto.
Sam sabia que o marinheiro não desistiria enquanto não obtivesse uma resposta. Resignado,
aprumou-se. Mas continuou a segurar Hanna nos braços.
— Diga a Lawson que estou subindo — respondeu por fim. Depois encarou Hanna bem nos
olhos e sussurrou: — Agora tenho que ir, meu anjo. Preciso ver o navio.
Ela o olhava com ar desnorteado. Assentiu com um meneio. E, de repente, como que caindo em
si, puxou o vestido e cobriu os seios. Lutava para mascarar seu desapontamento e o vazio que voltava a
se instalar em seu coração.
Pelo visto seu corpo agradava a Sam, do mesmo modo como agradara a Etienne. Hanna sabia
quão pouco isso significava. Estivera a um passo de tornar-se amante de Sam e, ao observá-lo fechar o
casaco e calçar as botas, foi invadida por uma sensação de estranheza. Concluiu que entregar-se a ele
teria sido um terrível erro. Mal o conhecia. E Sam a conhecia menos ainda. Do contrário, jamais lhe diria
o que havia dito.
No entanto... tudo parecera tão simples quando ele a beijara... Tão simples e maravilhoso.
Cabisbaixa, Hanna fitou os cacos de vidro no soalho e as gotas de vinho que se esparramavam
aqui e ali.
— O tal navio não deve passar de um baleeiro qualquer. Voltarei logo que puder ― Sam
prometeu-lhe.
Ele inclinou-se e afagou-lhe ternamente os cabelos. Achou-a-linda naquele instante, e custou a
acreditar que ela não fosse apenas uma miragem. Mas todo o seu embevecimento se desvaneceu quando
detectou uma sombra de melancolia no olhar dela.
— Não sei o que houve de errado entre você e seu marido. Ele devia ser um tolo para deixá-la ir
embora — murmurou.
Com isso, Sam fechou a porta atrás de si.
— Sua mulher também, capitão Colbum ― Hanna replicou tardiamente, quando ele já não podia
ouvi-la.
Letty fechou a porta da cabine e recuou até a extremidade do beliche.
— Não tem nada que fazer aqui a esta hora da noite, sr. Howard — declarou na defensiva.
— A senhorita tampouco teria que me receber enquanto sua ama está ausente ― ele retrucou,
encolhendo os ombros.
A criada sabia que Howard tinha razão. Corou envergonhada, arrependendo-se de haver aberto a
porta. Tentou afetar severidade. Mas era difícil ficar zangada com um homem tão simpático como o
imediato. Além disso, ele não estava fazendo nada desrespeitoso: simplesmente postava-se à sua frente,
sorrindo com as mãos cruzadas sobre o peito.
— Contudo, alegra-me que tenha me recebido. Venho aguardando uma oportunidade de falar-lhe
em particular desde que saímos de Newport — Howard confessou.
Letty brincou com a ponta de sua trança.
— Estive doente todo esse tempo. Não tenho resistência para longas viagens ― esclareceu.
— Pode ser. Mas está com ótima aparência — ele elogiou, num tom insinuante.
— Ora, não passa de um marujo atrevido, sr. Howard. Aposto que diz isso a todas as mulheres
que conhece. No mínimo, tem uma namorada em cada porto.
— Não faça mau juízo de mim, senhorita. Os bordéis não me apetecem nem um pouco. Todavia,
onde um cristão pode encontrar uma mulher decente se passa a maior parte de seus dias no mar? — o
imediato disse com gravidade. Letty franziu o cenho, hesitante.
— O que quer, senhor?
— Ah, na verdade, estou interessado no que a senhorita quer. Gostaria de saber mais a seu
respeito... Uma mulher tão adorável não deve querer ficar presa ao trabalho a vida inteira, não é?

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— Há coisas muito piores que isso e não posso me queixar. Ademais, a casa do capitão Snow é a
mais esplêndida da Rua Benefit ― Letty respondeu.
Mas no íntimo, não foi a mansão de três andares que a criada vislumbrou, e sim uma certa
casinha em Weybosset Point, onde sua irmã vivia cercada de filhos, com o marido desbocado que a
amava e a fazia rir.
Parecendo ler seus pensamentos, Howard perscrutou-a e perguntou:
— O que pode haver de agradável em seguir uma mulher abandonada por um francês qualquer?
É muito ruim para nós ter a bordo uma criatura libertina como ela. Antes de sua patroa aparecer aqui
sacudindo as saias, tudo ia bem entre mim e o capitão.
— Não se atreva a falar assim da srta. Hanna! Só se entregou ao sr. Etienne de Gramont depois
que se casaram! E foi ele quem a enganou e partiu-lhe o coração! ― Letty protestou acaloradamente.
— Fica do lado de sua patroa, mas o que é que ela já fez por você? Ordenou-lhe que ficasse aqui
sozinha enquanto ia se engraçar com o capitão. Foi isso o que ela fez!
Abalada, Letty girou a trança nos dedos e desviou o olhar. Não havia como negar as palavras de
Amos. Naquela noite, enquanto estivera penteando os cabelos de Hanna, percebera que esta mal
disfarçava sua ansiedade de rever o capitão. E aquilo era errado. Letty tinha plena consciência disso, mas
a patroa simplesmente não lhe dava ouvidos: desde que embarcaram para aquela louca travessia, não
prestava mais atenção a seus avisos e conselhos. A culpa era do capitão Colburn, evidente, mas Hanna
jamais o admitiria.
Na realidade, a criada ponderou, ele não passava de um homem sem modos, que não merecia
uma dama encantadora como sua patroa. O capitão Snow ficaria colérico quando se inteirasse daquela
ignomínia, Letty pensou melancolicamente.
Não escapou a Howard sua perturbação. O imediato segurou-lhe o queixo e falou com suavidade:
— Ah, dona, não foi minha intenção deixá-la triste. É uma mulher muito bonita, tão digna de um
capitão quanto sua patroa.
— Se está aludindo ao capitão Colburn, saiba que eu preferiria morrer a desposá-lo. Bem se vê
que ele é um tipo grosseiro e animalesco! — Letty replicou num tom desdenhoso.
— Não me compreenda mal. Sei que o capitão não teria sensibilidade suficiente para
valorizar seus encantos. Mas nem todos os homens são cegos...
Amos então afagou-lhe o rosto. Quase sem fôlego, Letty esquadrinhou o rosto do imediato,
rezando para que estivesse sendo sincero. Nunca os rapazes da rua a haviam elogiado daquela maneira.
E agora, quando um homem que valia mais do que todos eles juntos lhe dizia que era bonita e
encantadora, Letty não cabia em si de contentamento.
— Tenho planos. George Gill prometeu que me daria uma escuna para ir às índias depois desta
viagem — contou Howard.
— Deve ficar orgulhoso por ter caído nas graças de George Gill. A srta. Hanna não se importa
com ele, mas seu pai, sim. E, em se tratando de comércio, o sr. Snow entende do riscado. ― Ela sorriu,
um pouco acanhada, depois quis certificar-se de sua bem-aventurança: ― Será capitão de uma escuna, o
senhor disse?
— Isso mesmo. E é apenas o começo.
Do convés veio o som da campainha que anunciava a troca de vigias. Amos suspirou com
irritação e, antes que Letty pudesse reagir, inclinou-se e beijou-a de leve nos lábios.
— Marque minhas palavras, mulher. Ainda chegará o dia em que não teremos que prestar conta
de nossas ações a ninguém. Que um raio caia sobre minha cabeça se isso não acontecer. Agora, prometa
que me deixará entrar quando eu vier procurá-la de novo.
— Sim, Amos. Farei tudo o que quiser — ela assentiu, sorridente, tocando os próprios lábios.
Sam não tornou a ver Hanna até o cair da tarde seguinte. Estava ao leme, olhando o outro navio
que se recortava contra o horizonte tingido pelas cores do pôr-do-sol. Desde a véspera, quando Lawson
mandara chamá-lo, o navio mantivera-se nas proximidades. Não fizera nenhuma tentativa de ataque, mas
tampouco se afastara.
A incerteza deixou Sam cada vez mais inquieto. Estava sendo um dia duro para ele. Nisso, Hanna
surgiu no convés. Não o abordou, embora Sam tivesse quase certeza de que o vira. Em vez disso,

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avançou para a amurada sem lhe dirigir ao menos um olhar. Devolvera sem abrir duas mensagens que
ele lhe enviara naquela tarde e, finalmente, sem mais alternativa, Sam pedira a Jeremy que a
convencesse a subir para o convés.
Sam ficara bastante desapontado ao retornar à cabine na véspera, só para descobrir que Hanna
partira. Desapontado, mas não surpreso: o que uma dama bem-nascida iria querer com um capitão sem
eira nem beira?
Hanna confiara nele. E ele aproveitara-se de sua boa-fé. Por outro lado... não fora a própria
Hanna que o procurara? Não fora ela mesma que retribuíra seus beijos e se deixara acariciar com total
abandono?
Sam a observou a distância e desejou conhecer o verdadeiro motivo que a levara a ir embora de
sua cabine.
Letty deu o braço à patroa e fez uma careta de reprovação.
— Estou lhe dizendo, srta. Hanna. O capitão só falta devorá-la com os olhos! Nenhum homem
decente ousaria encarar uma dama desse jeito! Não olhe agora, não olhe. Ele não precisa de mais
encorajamentos depois do que a senhorita fez ontem à noite.
— Fique quieta, Letty. Esqueçamos o que aconteceu. Não vai mais se repetir.
— Então não nega o que houve? ― a criada disse, triunfante. ― Vi as marcas em seu corpo
quando a ajudei a vestir a camisola. Ah, se seu pobre pai soubesse!
— Meu pai lhe advertiria para ficar em seu lugar — Hanna replicou com secura.
Letty apertou os lábios. Soltou o braço dela. '
— Não, foi a senhorita quem se esqueceu de ficar em seu lugar. Agora me culpa por lembrá-la de
sua posição. Se precisar de mim, estarei lá embaixo.
— Espere! Não pode me deixar assim...
Mas a outra já havia rumado para a escotilha. Hanna suspirou, desalentada, e nesse momento seu
olhar cruzou com o de Sam. Ele não a chamou nem lhe acenou; ela, no entanto, sentiu um inexplicável
impulso e avançou lentamente em sua direção. De qualquer modo, sabia que estava a salvo ali e Sam não
tentaria tocá-la.
— Aquele navio não é inglês? Não corremos o risco de sermos detidos? ― Hanna perguntou-lhe,
evitando olhá-lo diretamente.
— Não me faria tais perguntas se tivesse lido minhas mensagens. Estamos sendo seguidos, eis
tudo, e ainda não consegui descobrir por que ou por quem.
Ele teve impressão de vê-la enrubescer. Mas talvez fosse apenas uma ilusão criada pelas cores do
crepúsculo. Mesmo assim, as olheiras profundas que exibia eram reais, e Sam experimentou uma
perversa satisfação ao constatar que Hanna também tivera dificuldade em conciliar o sono na véspera.
— Obrigada por me manter a par dos acontecimentos. Os ventos estão a nosso favor? — Hanna
quis saber. Curiosamente, não sentia medo. Ele tinha reputação de driblar quaisquer navios que o
seguissem.
Impaciente, Sam afastou uma mecha rebelde do rosto. Como Hanna podia fitá-lo com tamanha
frieza, ao passo que ele sentia seu corpo inteiro arder de desejo?
— Oh, sim, os ventos estão favoráveis à Truelove. O mesmo não se pode dizer de nós dois.
— O que aconteceu ontem à noite foi um erro ― Hanna murmurou, baixando o rosto.
Antes, Sam tencionara pedir-lhe desculpas. Agora, porém, tremia de frustração.
— Errado? Não diga absurdos! Nunca algo me pareceu tão correto quanto tê-la em meus braços!
Um estranho laço nos une. Não me pergunte o que é, pois eu não saberia responder. Mas, pelo menos,
não o estou negando. Eu poderia ter lhe proporcionado momentos de alegria e prazer...
— Por favor, não diga mais nada! ― ela objetou. Hanna fechou os olhos, escandalizada com a
intensidade das imagens que a assaltavam. Via-se deitada com ele na cabine exígua, seus corpos nus
fundidos em um abraço enquanto Sam a possuía de modo selvagem e febril...
— Foi um erro! — repetiu, transtornada.
— Por que, em nome de Deus?
Ela virou o rosto. Recusava-se a explicar algo que lhe parecia tão óbvio. Com Etienne fora
exatamente assim. Não cairia no mesmo conto duas vezes.

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— Batizou o brigue de Truelove, “amor verdadeiro”, em homenagem a Sofie? — inquiriu
desafiadora.
— Ora, que idéia. Nunca amei Sofie. Nem mesmo quando a pedi em casamento. E só o fiz
porque desejava me ligar à fortuna dos Crowninshields. Não me orgulho disso, mas é tarde para voltar
atrás. Ainda assim, saiba que eu não a trocaria nem por um milhão de Sofies.
— E isso é razão suficiente para que queira se deitar comigo? — Hanna replicou, tomada de
tristeza.
— Não quero me deitar. Quero fazer amor. Entre uma coisa e outra há um abismo.
— O mesmo abismo que separa o amor abençoado pela igreja do amor clandestino?
— Oh, por todos os santos! Pare de falar por meio de enigmas! Já sabe tudo sobre Sofie. Por que
não me conta o que diabo houve com seu precioso casamento?
Ela recuou, desconcertada.
— Certa vez, disse-me que não se importava com meu casamento.
— E fui sincero. Mas o mesmo não ocorre com você. Por isso preciso saber de tudo o que
aconteceu ― Sam declarou com firmeza.
— Oh, vai me odiar quando souber a verdade! — Hanna exclamou com expressão suplicante.
— Não. Juro que não, meu anjo. Não conseguiria odiá-la mesmo que quisesse.
Ela virou-se e mirou a superfície cambiante das águas. Não faria nenhuma diferença se Sam se
inteirasse da história por sua boca ou por intermédio dos outros. A despeito de suas juras, não a olharia
do mesmo modo depois que conhecesse seu passado. E havia ainda o agravante de que era um homem
casado.
O sol mergulhava no horizonte. Com o olhar fixo nos últimos reflexos dourados que se
estendiam sobre o mar, Hanna começou sua história.

CAPÍTULO VIII

— Eu tinha dezenove anos quando minha mãe morreu. Papai me levou para a Martinica, onde
conheci Etienne de Gramont. Ele era um viúvo atraente e cativante. Meu pai o apreciava porque tinha
muitas posses. Dizia que eu era afortunada por conquistar um pretendente como Etienne. Uma aliança
com os Gramonts traria grande honra aos Snows. E não foi difícil gostar de Etienne. Antes que meu pai
partisse, eu já estava casada com ele.
Etienne dissera-lhe que era a mulher mais bonita que jamais conhecera. E Hanna pensara então
que ele era maravilhoso, com seus olhos escuros e expressivos, e os cabelos negros que exibiam uma
mecha branca nas têmporas. Etienne vestia-se com suma elegância, comportava-se como mandava a
etiqueta e era um marido dedicado. Todas as manhãs trazia-lhe rosas do jardim de Beau Coteau e
reiterava suas promessas de amor...
Hanna girou o anel no dedo anular com ar ausente.
— Eu estava feliz porque o amava. Etienne tratava-me com toda delicadeza e respeito. Como eu
queria agradá-lo, e agradar a meu pai também, sempre lhe fazia todas as vontades, mesmo quando...
quando não estava de acordo.
No início, a juventude dela bastara ao marido. Etienne tratara-a com toda gentileza na cama de
madeira entalhada onde costumavam se deitar. Logo, porém, a inocência de Hanna deixou de atrai-lo e
ele começou a exigir-lhe que compactuasse com toda sorte de indecências. Na noite em que tentara
trazer uma das escravas para sua cama, Hanna trancara-se no quarto. Furioso, Etienne gritara-lhe
obscenidades, pressionara a escrava assustada contra a porta e possuíra-a ali mesmo, para que Hanna
pudesse ouvir tudo.
Sam franziu o cenho, notando que ela empalidecia. Não sabia ao certo o que o bastardo francês
lhe fizera, e só lhe restava tecer conjeturas. Por Deus, daria tudo para poder apagar aquela expressão de
dor do semblante dela...
— Se eu fosse mais experiente, desconfiaria de Etienne e tentaria ler as cartas que ele recebia de
Paris. Não teria sido tão crédula e não enfrentaria tamanho choque quando Helene chegou a nossa casa.
Ela calou-se, imersa em tristes recordações.

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— Quem era Helene? A amante de seu marido? — Sam perguntou.
Hanna virou-se para ele e sorriu sem vontade.
— Não. Eu era a amante de Etienne. Helene era sua esposa.
Ela voltara de uma cavalgada para encontrar a outra em seu quarto, cercada pelos escravos
perplexos. Helene de Gramont fora presa durante a revolução em Paris. Apanhara dos guardas,
emagrecera e, sob o pó-de-arroz, ainda se viam cicatrizes em suas faces. Não obstante, ao deparar com a
rival, o ódio lhe conferira forças para se aprumar e cuspir-lhe no rosto. Quanto a Hanna, sentira-se
impotente para revidar, pois reconhecia que a outra estava certa.
Hanna tornou a olhar para longe, temerosa de flagrar o desprezo no semblante de Sam. Falou
depressa, ansiosa por acabar com aquele suplício:
— Etienne havia me dito que Helene morrera na guilhotina. Hoje acredito que sabia o tempo
todo que ela estava viva. Simplesmente não esperava que fosse solta e voltasse à Martinica. Ainda assim,
Etienne não quis me deixar partir. Disse que tudo continuaria como antes e que, após algum tempo,
tornaria a me desposar.
Ele a esbofeteara quando anunciara que ia embora. Batera-a com força e arrastara-a para a cama,
para possuí-la pela última vez. Hanna apertara os lábios e não deixara escapar um só grito. Na calada
daquela noite, porém, enquanto fugia pela estrada deserta, começara a sentir dores e dera-se conta de que
Etienne a havia privado. Pusera-se então a chorar, soluçando alto enquanto passava pelos prados.
— A despeito de tudo, eu parti. Não podia ficar ali. Nunca tornarei a me casar, Sam ― ela
concluiu num fio de voz.
— Ah, meu anjo, não se torture. Não vê que não teve culpa de nada?
Embora Hanna houvesse dito seu nome, Sam sabia que o espírito dela vagava muito longe dali,
nas brumas do passado. Com os olhos desfocados e os ombros curvados, pareceu-lhe mais indefesa do
que nunca. Era a própria imagem do desespero, da derrota. Quis confortá-la, todavia, não imaginava o
que poderia dizer para trazer-lhe alívio.
Sem refletir, soltou o leme para tomá-la nos braços. Por um momento, o brigue ameaçou sair do
rumo. Imediatamente Sam segurou o timão e corrigiu a rota. Olhou em torno de si à procura de alguém
que se incumbisse do leme, mas os poucos marujos que avistou estavam no alto, ajustando o cordame.
Sam então fitou Hanna. Escurecia, e seu vestido branco pareceu flutuar sob a lua quando ela lhe deu as
costas e fez menção de se afastar.
— Hanna, prometa que irá me procurar esta noite. Juro que não a tocarei, se esse for o seu
desejo. Mas não posso deixá-la ir embora assim. Precisamos um do outro, Hanna...
— Não, Sam. Não cometerei o mesmo erro.
— Por Deus, não teve culpa de nada. E não me confunda com Etienne. Será que não percebe? Eu
nunca faria nada que a magoasse. O que preciso fazer para que acredite em mim? Com os diabos, não
fuja de novo!
Ela se imobilizou. Continuava de costas para Sam, mas, pelo menos, agora o ouvia.
— Prometeu a Jeremy que o ensinaria a ler e escrever. Vá à minha cabine amanhã cedo. Ele
estará à sua espera.
Hanna fez um gesto de assentimento e recomeçou a andar, passando por Lawson sem se deter. O
marinheiro observou-a por um momento e foi se juntar a Sam.
— Parece que perdemos nossos amigos ― comentou, inclinando a cabeça na direção do sul.
Sam aquiesceu e, mais do que contente, deixou que o companheiro cuidasse do leme. Massageou
os músculos tensos da nuca, recriminando-se silenciosamente. Como pudera esquecer-se por completo
do outro navio?
— Aposto que não tornaremos a vê-los. Basta de fantasmas rondando a Truelove, não é? — disse
Lawson.
Mas Sam discordava dele. Os fantasmas pareciam estar por toda a parte naquela noite.
— Não, Jeremy. Não é assim que se escreve o y. Veja como se faz... Pronto. Agora tente sozinho
― Hanna encorajou, soltando a mão dele.
— Está certo, madame. Se é o que quer...
O garoto suspirou, mergulhou a pena na tinta e, concentradíssimo, desenhou a letra. As linhas

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saíram um pouco trémulas, mas corretas.
— Muito bem, Jeremy. Agora copie de novo o provérbio que escrevi.
Ele obedeceu. Quando terminou, mostrou-o timidamente a Hanna, que bateu palmas.
— Ótimo! Quando menos esperar, já estará escrevendo suas próprias cartas para Ben. Sim, sim,
ficou excelente!
— O que ficou excelente? ― Sam perguntou, entrando na cabine e afetando uma naturalidade
impossível naquelas circunstâncias.
Agia como se estivesse mais que habituado a ver seu aposento transformado em sala de aula.
Mas faria qualquer coisa para agradar Hanna e ganhar sua confiança. Gostava de vê-la com o menino,
alegre, debruçada sobre uma folha de papel a ensinar-lhe os mistérios da escrita. Ao imaginá-la
alfabetizando o filho deles, não pôde se furtar de sorrir. Quando se tratava de Hanna, seus caprichos e
vontades não mais contavam.
Ela fitou-o com a respiração em suspenso, aguardando o momento em que faria alguma
referência às revelações da véspera. Sabia que Sam acabaria aludindo a seu passado. Afinal, não era
diferente de todos os outros.
As reminiscências que haviam despertado em seu íntimo permaneciam algo distantes, como que
borradas. Era como se seu espírito deliberadamente as ofuscasse para dar tempo de as feridas se
cicatrizarem. Porém, de uma coisa Hanna tinha certeza: confessara a Sam fatos que nunca havia
partilhado com ninguém, e agora ele sabia da ignomínia que ocultara do resto do mundo.
Sam cruzou as mãos às costas e curvou-se sobre a mesa, acompanhando os esforços de Jeremy.
Depois deu um tapinha no ombro do menino.
— Está se saindo muito bem. Melhor do que eu esperava. Seu pai ficaria muito orgulhoso de vê-
lo.
O garoto sorriu, corando de prazer.
— Devo isso à srta. Snow, capitão.
— Então é a ela que precisamos agradecer, certo?
Ao ouvir aquelas palavras, Hanna por fim atreveu-se a encará-lo. Ficou surpresa com a expressão
franca dele. Não havia em seu semblante nada que denunciasse desprezo, censura ou repulsa. Apenas um
par de olhos castanhos que a fitavam com intensidade. E tamanha era essa intensidade, que ela
estremeceu e se viu forçada a desviar o olhar.
— Pois vou lhe dizer uma coisa, Jeremy. A srta. Snow é de longe mais bonita que o velho
bárbaro que me ensinou a ler e fazer contas ― Sam prosseguiu, percebendo a dúvida e o espanto dela.
Não compreendia o que Hanna esperava que dissesse. Que mais poderia fazer além de elogiar sua boa
vontade?
— Pensei que não tinha frequentado a escola — ela comentou, ainda cabisbaixa.
— Não cheguei a me inscrever em nenhuma escola tradicional, claro. A verdade é que, nos quatro anos
em que fiquei preso em Old Mill, tive quarenta companheiros que me ensinaram tudo o que sabiam para
espantar o tédio. Oh, decerto que não foi uma educação formal como a de Cambridge, mas aprendi a ler,
escrever e fazer contas, além de assimilar boas noções de navegação, medicina, geografia e mais um
pouco de espanhol, francês e holandês. Também aprendi quanto os ingleses são idiotas e como
sobreviver comendo plantas e cartilagens, mas não vale a pena falar disso.
Lá estava, Sam se repreendeu, tagarelando como um velho tolo que se anima quando encontra
uma platéia. Ainda acabaria aborrecendo Hanna se não tomasse cuidado. Os olhos dela, entretanto,
brilhavam de interesse, e Sam se deu conta de que, para uma dama criada a salvo dos perigos do mundo,
a alusão a um castelo cheio de prisioneiros de guerra devia ser emocionante. Em todo caso, Hanna não
poderia estar fascinada por ele; sua vida era por demais comum para despertar o interesse de quem quer
que fosse.
— Ben me contou que o senhor foi um herói de guerra, capitão — Jeremy disse.
— Bobagem. Cada batalha é como um jogo de dados. Tive apenas a sorte de sobreviver ― Sam
replicou, dando de ombros.
Ele logo inventou um pretexto para se acercar do baú e resistir ao impulso de acariciar o braço nu
de Hanna. Não podia negar que os franceses tinham criado uma moda que tornava as mulheres

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irresistíveis, pensou, olhando de esguelha para a silhueta esbelta dela.
— Quando estamos em um navio corsário, lutamos por moedas de ouro, não pela glória do
general Washington.
— Oh! ― o menino exclamou decepcionado. Sam afagou-lhe a cabeça.
— Seu pai, sim, Jeremy, é que foi um grande herói.
— Sério? Ben nunca me falou nada sobre isso.
— Talvez ele não saiba das façanhas de seu pai — Sam mentiu. Lembrava-se do pai de Jeremy
antes do acidente, muito antes de o garoto nascer. Agora, praticamente inválido, comia o pão que o diabo
amassou. Não havia nenhum mal em despertar a admiração de seu filho. — Claro que seu pai nunca lhe
contará seus feitos, pois é um homem muito modesto e não gosta de se vangloriar. O fato é que sempre
lutou bravamente contra os ingleses, só pensando na vitória da Nova Inglaterra.
— Papai, um herói! Oh, preciso contar isso a Ben! ―exultou o menino.
Mas uma vez, o olhar de Sam encontrou o de Hanna. Ela claramente não acreditava naquela
história. Seu breve sorriso, porém, mostrou-lhe que guardaria suas dúvidas para si mesma.
— Sabe lidar muito bem com crianças, Sam. Tem filhos? — ela perguntou.
— Quem, eu? Não. Acho que é um pouco cedo para isso.
Hanna ficou embaraçada, imaginando que ele devia ser recém-casado.
— Desculpe-me. Não quis ser indiscreta.
— Sua pergunta me surpreendeu, só isso. É claro que, no momento certo, vou querer um ou dois
filhos, e talvez uma filha para agradar à mãe. Um homem precisa de uma família para encontrar sentido
na vida. E você, já tem filhos?
A tristeza voltou a se estampar no rosto de Hanna, e Sam amaldiçoou sua falta de tato. Além
disso, se ela houvesse concebido um filho de Etienne de Gramont, teria lhe dito na noite anterior.
— Capitão Colburn, não pode perguntar a uma dama como a srta. Snow se já tem filhos, pois ela
não é casada ― Jeremy repreendeu.
— Tem razão. — Sam fez uma breve mesura para Hanna.
— Perdoe-me, madame.
Ela aquiesceu e sorriu de modo maquinal, sem conseguir dissimular totalmente sua tensão. O
momento de empatia entre os dois havia passado. Não devia se importar com o fato de Sam querer
filhos, pois com ela não poderia ter nenhum. Com um suspiro, apanhou o xale e levantou-se.
— Não precisa se retirar por minha causa, madame. Com os ventos a favor, aportaremos na
Inglaterra dentro de quinze dias. Aproveite esse tempo para ficar com Jeremy. — ele pediu-lhe,
segurando-a pelo braço impulsivamente.
Hanna retesou-se, mas não o repeliu. Sam percebeu seu transtorno e decidiu que, a despeito de
seu passado, ela não podia negar a atração que existia entre os dois.
— Chegaremos tão rápido? ― ela perguntou, e em sua voz transpareceu um certo
desapontamento. Sam deixara claro que se separariam logo que aportassem na Inglaterra, pensou, in-
capaz de evitar uma onda de pesar.
Sam Colburn sabia a verdade sobre seu passado e, mesmo assim, não a rejeitava. Ainda a
desejava. E o pior é que ela ainda o desejava também.
Hanna lutou para se controlar. Nada havia mudado. Aquele homem a desejava, mas continuava
casado com outra mulher.
— A Truelove é veloz como o vento, Hanna. Que eu saiba, foi por isso que contratou meus
serviços. Considere esta cabine como sendo sua e continue a dar aulas para Jeremy. Volte para cá à noite,
depois do jantar. Muito me alegraria vê-lo escrever de próprio punho uma carta para o irmão.
Ele forçou-se a falar num tom casual para manter as aparências perante o menino. Soltou o braço
dela, perturbado com o súbito desejo que dominava seu corpo.
— O período da manhã é mais que suficiente para as aulas ― Hanna replicou depressa,
recordando o que acontecera na última vez em que fora àquela cabine durante a noite.
Sam tampouco se esquecera do que havia se passado ali. Como poderia? Nunca mais tornaria a
beber vinho sem relembrar o gosto dos beijos dela.
— Não estarei aqui, se é isso que a incomoda. Em geral, cumpro meu turno de vigilância à noite.

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Ela fez um gesto de entendimento, desviou o olhar, fingiu examinar as próprias mãos respingadas
de tinta.
— Esta noite então, Jeremy. Trarei um livro para praticarmos um pouco de leitura.
Assim dizendo, alisou os cabelos do menino ternamente. Sam sentiu uma pontada de ciúme:
quisera que fossem seus cabelos que Hanna estivesse afagando naquele momento. Ressentiu-se da
presteza com que ela concordara em voltar mais tarde, tão logo soubera que não estaria presente.
Sam prometeu a si mesmo que daria um jeito de terminar seu turno de vigilância um pouco antes
de Hanna concluir a aula. Uma quinzena era um prazo demasiado curto e não podia se dar ao luxo de
desperdiçar nenhum minuto.
Ao anoitecer, o vento mudou e começou a soprar de oeste para nordeste. Um vento inesperado,
que anularia todo o avanço conseguido pelo brigue nos últimos três dias. O mar estava alto e encrespado,
tornando ainda mais lento e tedioso o balanço do navio. O céu, no entanto, continuava límpido, o que
injetou um pouco de ânimo em Sam.
Trabalhou lado a lado com seus homens até tarde e, por volta da meia-noite, estava desgostoso e
exaurido como o resto da tripulação. Nem lhe ocorrera mais a possibilidade de ir encontrar Hanna na
cabine. Ao lembrar-se de sua previsão de que aportariam ao cabo de quinze dias, sorriu sarcasticamente.
Duas semanas, pois sim!
Naquele ritmo, chegariam ao território inglês dentro de dois meses, se não mais.
— O r-r-ato... fu-fugiu pa... para o... o...
— Tente de novo, Jeremy. Não é difícil. Pronuncie o r forte ― Hanna explicou.
O menino franziu o cenho, compenetrado em reler a frase que ela havia escrito no papel. O único
livro que Hanna encontrara em sua bagagem fora Clarissa, de Samuel Richardson, com uma narrativa
altamente imprópria para um garoto de apenas dez anos. Assim, ela decidira escrever uma fábula in-
ventada sobre um gato e um rato.
Contudo, à medida que o tempo passava, Hanna começava a ter sérias dúvidas de que Jeremy
conseguiria ler a pequena história até o fim. O menino persistia para agradá-la, mas era evidente que sua
atenção começava a se dispersar. E ela também estava ficando enfadada. Freqüentemente se pegava com
o pensamento muito longe dali.
Quando Sam lhe assegurara que não estaria na cabine, curiosamente sentira um misto de alívio e
desapontamento. No fundo, não acreditara que ele não viria e, enquanto ajudava Jeremy a ler a fábula,
de tempos em tempos aguçava os ouvidos na esperança de escutar os passos de Sam na escada ou sua
voz no corredor.
O olhar de Hanna vagueou pela cabine à procura de pistas que elucidassem algo mais sobre a
personalidade dele. O recinto era despojado e não continha nada além do essencial, nem sequer um
tapete ou uma almofada. Nada que remetesse aos pequenos luxos a que a maior parte dos capitães se
permitia. Na verdade, só havia ali uma pequena estante com alguns livros, um catre, um baú e uma
cadeira surrada. Na parede pendia uma única gravura desbotada, que retratava uma fileira de navios, e
um diminuto espelho retangular.
Hanna questionou se o aspecto espartano da cabine se devia ao gosto particular de Sam ou às
dificuldades que vinha passando. No lugar de Sofie, ela não permitiria que seu marido viajasse com tão
poucas comodidades. Encontraria maneiras singelas de lembrá-lo do amor que sentia. Tentaria agradá-lo,
mandando-lhe seu tabaco favorito, bordando suas iniciais em um lenço ou presenteando-o com um
talismã. O fato de Sofie omitir-se dessas pequenas atenções a incomodava e fazia-a sentir pena de Sam.
Ele merecia coisa melhor.
— O capitão não descerá agora, madame, se é isso que está esperando. Não que ele não tenha
vontade, mas duvido que vá se arriscar a abandonar o leme com um tempo desses — informou Jeremy,
interrompendo seus devaneios.
— Então o tempo mudou? ― Hanna desviou o assunto mais que depressa, envergonhada por ter
deixado transparecer seus pensamentos íntimos.
— Oh, sim, madame. Está soprando um noroeste muito forte. Bom, se a senhorita não notou a
mudança de tempo, deve ter um estômago de marinheiro.
Na realidade, ela havia percebido muito bem a reviravolta dos ventos. A Truelove cortava as

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águas penosamente com uma oscilação irregular que a forçava a se segurar na mesa para manter o
equilíbrio. A lamparina pendurada no teto descrevia círculos no ar, brincando com sua sombra e a do
menino.
— Nesse caso, é melhor pararmos agora. Aproveite para descansar, porque se o tempo piorar, o
capitão Colburn precisará de ajuda. Caso esteja livre amanhã, continuaremos a aula.
— Está bem. Muito obrigado, madame. Boa noite.
Dito isso, ele levantou-se de um pulo e correu para a porta, contente de ser dispensado. Fez-lhe
uma reverência e desapareceu pelo corredor.
Hanna sorriu com seus botões e saiu também. Espantou-se de ver o passadiço às escuras.
Provavelmente alguma corrente de ar havia apagado a chama da lamparina que pendia da viga sobre a
escada.
Um ténue raio de luar infiltrava-se pela escotilha, e ela esperou um instante para que seus olhos
se acostumassem à penumbra. Lá ém acima, soavam as vozes dos tripulantes e a de Sam. E o rugido do
vento, alto e ameaçador. Ela enrolou-sè no xale, apreensiva. No mar o destino, fosse bom ou mau, vinha
sempre pelas mãos do vento.
Hanna ergueu o rosto e murmurou uma prece pedindo a Deus que conduzisse o brigue a salvo
naquelas águas. Depois avançou hesitante. Tateou o tabique, tentando se lembrar da localização exata de
sua cabine e, o mais importante, da localização da escada que levava ao porão. Um passo em falso, e
poderia rolar pelos degraus.
O balanço do navio não lhe facilitou as coisas. Por duas vezes, quase caiu. A cada vez que se
levantou, ficou mais desorientada. Com crescente aflição, procurou conservar-se calma. Afinal, sua
cabine não podia estar muito longe dali. Bastava ter sangue-frio. A Truelove não era um navio tão grande
assim.
Só que, por mais que tentasse se acalmar, tinha que admitir: estava com medo. Repentinamente,
as sombras lhe traziam um mau pressentimento, e lamentou não ter acompanhado Jeremy enquanto era
tempo.
De súbito, sentiu uma mão calejada tapar-lhe a boca. Hanna se debateu. Seu agressor usou a mão
livre para cingir-lhe a cintura e imobilizá-la. Entrando em pânico, ela quis esmurrá-lo; mas suas mãos
estavam comprimidas contra o peito dele.
O homem era corpulento e forte, e arrastou-a pelo corredor sem nenhuma dificuldade.
Os segundos transcorreram como uma eternidade. Hanna perdeu a noção de tempo e espaço,
tamanho foi seu desespero. E então, com a mesma brusquidão com que a havia atacado, o homem a
soltou. Ela cambaleou, deu dois passos para frente. Por um momento, viu o céu noturno emoldurado
pelo alçapão. Depois o chão faltou a seus pés e ela se lançou numa queda vertiginosa, mergulhando na
mais negra noite.

CAPÍTULO IX

— Menino relapso! Como foi deixar de reacender a lamparina? — Sam resmungou de si para si,
apanhando no bolso a pedra que usava para alumiar o cachimbo.
Ele próprio conhecia cada palmo da Truelove e podia percorrê-la na mais comple ta escuridão,
do topo do mastro principal até as profundezas do porão, sem se desorientar. Desconfiava que o mesmo
acontecia com Jeremy, mas, ainda assim, não via motivo para que o garoto negligenciasse a lamparina,
fazendo com que todos a bordo tivessem que andar na escuridão.
Bastava de condescendência para com Jeremy, decidiu. No dia seguinte, daria uma lição no
menino.
O atrito da pedra produziu uma faísca e o pavio voltou a arder. A lamparina pendeu frouxamente
para cá e para lá, ao sabor do balanço do navio. E, enquanto projetava seu círculo de luz ora num canto,
ora noutro, Sam captou uma mancha dourada e escarlate no soalho. Franziu o cenho e abaixou-se para
apanhar o xale de Hanna. Não era do feitio dela deixar o xale atirado no chão. Impulsivamente, Sam
aproximou-o do rosto e aspirou seu perfume: uma mistura de fragrância de açucenas e do cheiro de
Hanna.

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A lamparina tornou a oscilar, dessa vez lançando sua claridade sobre a escada que levava ao
porão. A luz amarelada denunciou a visão fugaz de musselina branca, cabelos loiros e tez pálida: Hanna
jazia ao pé da escada, completamente inerte, como se morta.
Ele não confiava em ninguém para cuidar dela. Carregou-a para sua cabine e deitou-a no catre.
Como a maioria dos navios mercantes, a Truelove não trazia um médico a bordo, e Sam estava
acostumado a cuidar dos ferimentos da tripulação. Não demorou, porém, a constatar que as condições de
Hanna eram críticas e desafiavam suas habilidades. A pele dela estava lívida e fria; a respiração, fraca e
penosa. Mas ainda vivia. De algum modo vivia. Sam agarrou-se à esperança de que pudesse recuperar-
se. Não queria pensar no pior.
Com todo o cuidado, desabotoou-lhe o vestido e despiu-a. Não se furtou de sorrir amargamente,
relembrando quantas vezes já sonhara em desnudar Hanna. Nunca imaginara que fosse fazê-lo em tais
circunstâncias.
Sob o linho fino da camisa dela, Sam apalpou-lhe os braços, pernas e costelas, à procura de
algum osso fraturado. Por milagre não encontrou nenhum. Contudo, havia horríveis escoriações a cobrir-
lhe o corpo. E uma marca púrpura logo acima de sua têmpora esquerda. Devia ter batido a cabeça ao
rolar pela escada. Ele já vira ferimentos semelhantes àquele em homens que haviam caído do mastro
após um movimento em falso; poucos sobreviveram à queda.
Sam descalçou-lhe os sapatos e as meias. Contemplou-a por um instante com o coração apertado.
No catre largo, feito especialmente para ele, Hanna parecia perdida, como uma marionete desarticulada.
De pálpebras cerradas e lábios entreabertos, dava a impressão de estar dormindo.
Ele afastou uma mecha que lhe caía sobre a fronte, ao mesmo tempo em que se censurava por
haver permitido que Hanna andasse desacompanhada pelo brigue. Não ignorava os perigos do mar.
Depois de vê-la ser quase esmagada pela verga, devia ter zelado melhor por sua segurança.
Cheio de remorso, ajoelhou-se ao lado do catre e escondeu o rosto entre as mãos. Lá fora, o
vento nordeste uivava, e sua frialdade varou a alma de Sam.
Nos três dias que se seguiram, ele deixou o comando do brigue a cargo de Howard e Lawson.
Não arredou pé da cabeceira de Hanna. E, nos três dias que se seguiram, ela não apresentou nenhum
melhora. Permaneceu pálida e inerte. Mas, como s eu estado tampouco piorou, Sam foi levado a crer
que não tinha febre. Velou por ela, manteve-a coberta e aquecida e desejou que pudesse fazer algo mais
para apressar sua cura.
A notícia do acidente não tardou a se espalhar entre a tripulação. Um a um, os marujos bateram à
porta da cabine, sussurrando palavras de incentivo e contando casos de amigos que haviam sobrevivido a
quedas de mastros altos ou escadas compridas. Jeremy fora o primeiro a procurar Sam. O menino
mostrara-se tão triste e arrependido, que Sam não tivera coragem de recriminá-lo por sua negligência.
Depois, três marinheiros portugueses vieram oferecer-lhe solidariedade, insistindo que ele
aceitasse um crucifixo benzido pelo Papa; diziam que a minúscula cruz salvaria a vida da dama enferma.
Sam pendurara o crucifixo na cabeceira do catre. Aceitaria qualquer milagre, desde que restituísse a
saúde a Hanna.
Foi Amos Howard que trouxe Letty para ver a patroa. Sam sentiu-se grato pela preocupação do
imediato, pois, em seu desespero, esquecera-se completamente da criada.
— Oh, Deus, não permita que ela morra! ― Letty exclamou. Virou-se para Howard, à beira das
lágrimas. ― Oh, Deus! O que direi ao pai da srta. Snow?
— Sua patroa não está morta, apenas inconsciente. Não sei quanto tempo levará para recobrar os
sentidos. Só nos resta esperar e rezar.
Letty balançou a cabeça energicamente, as mãos crispadas ao lado do corpo.
— A srta. Hanna precisa de um médico. O Capitão Snow sempre exigiu o melhor para sua filha!
— Estamos no meio do oceano, dona. É impossível chamar um médico. De qualquer forma, um
doutor não poderia fazer muito mais do que já foi feito por ela — atalhou Amos.
— Ah, não conhece o sr. Snow! ― desesperou-se a criada, olhando para Hanna e em seguida
para os dois homens. ― Ele ficará furioso se algo mais acontecer à filha! Dirá que eu nunca deveria ter
deixado a srta. Hanna partir de Providence, e com toda razão! Olhe só para minha pobre patroa...
— Não tem culpa de nada, Letty. Foi apenas um acidente. Ela caiu, bateu a cabeça, eis tudo. Não

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se pode culpar ninguém pelas fatalidades do destino — Amos ponderou com firmeza.
Sam então segurou-a pelos ombros brandamente e falou num tom tranquilizador:
— Não fique assim. Se o capitão Snow a censurar, intervirei a seu favor. Não permitirei que seja
acusada de nada. Mas agora, quem precisa de sua ajuda sou eu. Gostaria que providenciasse os objetos
essenciais para o conforto de sua patroa.
Letty desvencilhou-se bruscamente. Deu um passo à frente e levantou a colcha que cobria Hanna.
Em seguida, virou-se para Sam, tomada de cólera.
— Não tinha direito de despi-la, como se ela não passasse de uma mundana! Oh, não! Só porque
é o capitão, não pode tomar tais liberdades! Não passa de um pervertido, como aquele porco francês que
abusava da srta. Hanna...
— Letty ― Amos advertiu, silenciando-a.
A criada fitou-o boquiaberta por alguns momentos e desatou a chorar, buscando amparo em
Howard.
— Ela se expressou mal, capitão — justificou o imediato. — Ficou em estado de choque, mas vai
acabar se acalmando e fará o que lhe pediu.
Sam observava os dois com crescente desconforto. Não tinha a menor dúvida de que o Howard o
desobedecera e estreitara suas relações com a criada de Hanna. A intimidade entre ambos era óbvia, e só
poderia ter se consolidado à custa da desobediência do imediato.
Por outro lado, em vista de seus próprios sentimentos no tocante a Hanna, Sam se sentiria
hipócrita de punir Amos. Cansado, meneou a cabeça e fitou o mar.
— Leve-a de volta a sua cabine, Howard. Amanhã falarei com ela de novo.

— Acaba de ver por si mesma em que pé estão as coisas entre os dois. O capitão não vacilou em
deitá-la na própria cama, pois ela já está bastante familiarizada com seu catre. Pela natureza das relações
que mantêm, era de esperar que o capitão despisse a srta. Hanna. Mas quem pode culpá-lo por tirar
vantagem do que lhe é oferecido?
— Vi tudo com estes olhos que a terra há de comer. Não tenho como negar o que está dizendo,
Amos. ― Letty fungou, tornou a enxugar as lágrimas. ― Acontece que conheço a srta, Hanna desde que
éramos meninas, e vê-la naquele estado partiu-me o coração.
— Tem um coração bom, Letty, e amo-a ainda mais por isso. Mas sua patroa simplesmente não
merece tamanha consideração. Trouxe-a para cá com o único intuito de manter uma imagem respeitável.
Todavia, não se iluda. Ela não hesitará em dispensá-la quando sua presença não for mais necessária.
Letty encarou-o com consternação.
— Não sei, Amos... A srta. Hanna sempre foi muito boa comigo...
— Boa porque você sempre se curvou a todas as suas vontades, ora! Não percebe? Ela é
exatamente como o capitão Gill descreveu. Ela e seu pai trapaceiro fazem qualquer coisa para obter o
que querem. O próprio casamento de sua patroa com aquele francês foi planejado. Se consentiu em se
vender de modo tão ignóbil, é tão trapaceira quanto o pai. Tem que acreditar em mim, Letty!
Amos segurou-lhe as mãos e fitou-a com ar febril, rezando para que a criada ficasse convencida
do que ele dizia. Caso contrário, jamais conseguiria executar as ordens de George Gill. “Um acidente”,
conforme Gill instruíra-lhe. Um acidente para impedir que Hanna Snow chegasse a Londres e encon-
trasse o pai. Em troca, Howard seria capitão de seu próprio barco. Valia a pena o esforço, especialmente
quando se tratava de tirar do caminho uma criatura vil como Hanna Snow. Ninguém sentiria falta dela
naquele mundo de Deus.
Era tudo simples, muito simples. Um navio era lugar perigoso para uma mulher. Na primeira
tentativa, Howard havia cometido um erro de cálculo e falhara. Mas, na segunda vez seria mais
cuidadoso e teria êxito...
Na verdade, não contara com sua fraqueza diante do terror estampado no rosto de Hanna, dos
olhos vidrados de medo, do som oco que o corpo dela produziu ao rolar pelas escadas e estatelar-se no
porão. E, não obstante isso, agora a vil criatura ainda vivia, ameaçando seus planos para o futuro,
atormentando-o com a possibilidade de vir a recuperar os sentidos e denunciá-lo ao capitão Colburn.

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— Acredita em mim, Letty? ― tornou a perguntar, com uma nota de involuntária ansiedade. ―
Acredita que farei o melhor por nós?
Letty rodeou-lhe a cintura com os braços e repousou a cabeça em seu peito. Nada que os Snows
pudessem lhe oferecer se compararia a ser amada com tanto ardor.
— Confio em você, Amos. Sempre confiarei — murmurou.
Hanna estava de volta à casa de pedra em Beau Coteau. De volta à cama alta com degraus à
direita e à esquerda. Jurara a si mesma que jamais retornaria. Mas, talvez, nunca tivesse sequer chegado
a partir.
Tentou soerguer-se. Sentiu a cabeça pesada. Provavelmente era efeito do vinho que bebera
durante o jantar. Talvez sua partida, a aparição de Helene e todo o resto não passassem de uma ilusão
criada pelo excesso de vinho... Ela fechou os olhos, e uma lágrima quente deslizou por sua face. Ah,
como tinha desejado que seu sonho fosse real!
As portas do balcão achavam-se abertas para receber a brisa noturna. Hanna aspirou o cheiro de
sal que vinha do mar. Aquele cheiro fazia-a se lembrar de um homem que um dia a amara e tratara com
gentileza. Ela descerrou as pálpebras, procurando reavivar a memória. Mesmo que só para recordar
fragmentos de um sonho.
O céu estava de um azul profundo, e nas alturas as estrelas se espraiavam como minúsculas
contas de brilhante...
Cinco estrelas, ela pensou, confusa. Cinco estrelas dentro de um anel...
A porta do quarto abriu-se e tornou a fechar-se com um estrondo. Hanna virou-se, o coração
batendo descompassado. E viu Etienne cruzar o quarto em direção à janela. O tapete felpudo abafou seus
passos.
— Recolheu-se cedo, ma chérie. Lamento que meus amigos a tenham aborrecido ― ele declarou
com voz carregada de sarcasmo, enquanto emborcava uma taça de vinho.
Hanna encolheu-se no leito, trespassada por um calafrio.
— Eu não estava me sentindo bem, Etienne.
Ele atirou a taça no chão.
— Mentirosa. Mas, se meus amigos aaborrecem, ma petite bonne femme, prometo-lhe que o
mesmo não se dará comigo...
Por experiência própria, Hanna sabia que de nada adiantava discutir ou implorar que Etienne a
deixasse em paz. Observou-o abrir a gaveta do toucador e remexer seu conteúdo até encontrar dois
longos cordões de seda com que ela costumava atar seus robes. Esticou-os e virou-se para a cama.
Aproximou-se lentamente. Hanna não podia prever o que o marido tinha em mente, se iria tentar
estrangulá-la, se iria amarrá-la ou se faria algo que nunca havia feito. Ela recuou para a beira da cama. O
tule do mosquiteiro roçou-lhe as costas.
— Hanna? — chamou um homem atrás dela. — Hanna, pode me ouvir?
Era o mesmo homem que aparecera em seu sonho. Virou-se rapidamente na direção de sua voz.
Vislumbrou-o ao lado da cama, imerso na ilusão de uma névoa que o mosquiteiro criava. O homem viera
por sua causa. Hanna precisava encontrar um meio de alcançá-lo...
Ela sentiu o peso de Etienne no colchão de penas quando este se deitou. Desesperada, suspendeu
o cortinado de tule, lutando para alcançar o vulto postado ao lado do leito. O tule envolveu-a em uma
nuvem esgazeada, cegou-a com sua brancura opaca. Hanna foi dominada pelo terror. Temia nunca se
libertar de Etienne... nunca se libertar para poder amar aquele outro homem...
— Hanna, será que não me ouve? ― ele ia dizendo, enquanto a estreitava nos braços. — Eu juro
pelo Todo Poderoso que não deixarei que nada de mal lhe aconteça!
No mesmo instante, Hanna parou de se debater no catre e imobilizou-se. Tinha medo de abrir os
olhos. Mas, em vez dos gritos dos papagaios e de outros pássaros selvagens que se empoleirava nas
árvores ao redor da casa, ela ouviu o estalar das vigas da Truelove e as ondas lambendo seus flancos. O
lençol que a cobria, muito diferente da roupa de cama de linho bordado que costumava usar em Beau
Coteau, era rústico e estava ligeiramente úmido devido à maresia. E o colchão tinha enchimento de
algodão, não de penas.
Hanna convenceu-se de que eram as mãos calejadas de Sam que a afagavam e era a voz dele que

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a chamava com tanta ternura. Sam, não Etienne. Devagar, ela abriu os olhos.
Sam fitou-a com ar ansioso. Seu rosto exibia linhas de exaustão e sua barba estava por fazer.
— Voltou a si afinal... — sussurrou-lhe, com imenso alívio transparecendo na voz grave.
— Eu... estava com Etienne novamente... Eu não... ― Hanna murmurou, e sua voz falhou.
— Fique quieta. Não faça nenhum esforço — Sam interrompeu, roçando a ponta dos dedos em
seus lábios para silenciá-la. — Sofreu uma queda há quatro dias e bateu a cabeça. Desde então, tem
estado aqui comigo o tempo todo.
— Não... me lembro de ter caído...
Ele ensaiou um sorriso cansado. A preocupação, no entanto, persistia em seu olhar.
— Mas lembra quem eu sou, não é, meu anjo?
— Oh, sim. Asseguro-lhe que sim, Samuel Colburn. Nunca me esquecerei de você.
Na manhã seguinte Hanna teve disposição para sentar na cama. À noite, quando Sam trouxe-lhe
o jantar, os dois comeram juntos, ele sentado na única cadeira da cabine, ela com todo o decoro, com o
lençol cobrindo o peito enquanto tentava equilibrar o prato no regaço. O silêncio prolongou-se entre os
dois. Hanna, embora faminta, mal comeu. Só agora se dava conta de como os cuidados de Sam deviam
ter sido íntimos. Isso a embaraçava e ela não era capaz de encará-lo.
— Foi muito gentil em cuidar de mim. Mas agora acho que já posso voltar para minha cabine —
Hanna disse num fio de voz, ruborizando-se.
Sam depôs o prato vazio sobre a mesa e olhou-a longamente.
— Não fique constrangida. Sua presença aqui não está, em absoluto, me estorvando. Passar mais
algumas noites na rede não me fará nenhurn mal.
Dessa vez ela corou violentamente. Sem dúvida, a esposa de Sam não encararia a situação com
tamanha complacência.
— Não, Sam. Eu quis dizer que não é decente eu continuar dormindo em sua... sua cama. Sofie
decerto desaprovaria.
— Para o inferno com Sofie!
Sam tirou as pernas da mesa e colocou-as no chão com um baque seco. Inclinou-se para Hanna.
Sua expressão era indecifrável.
— Já é a segunda vez que escapa por um fio de ser morta neste navio. Da primeira vez, achei que
fosse apenas um acidente. Agora, porém, estou convencido de que há algo mais por trás disso. Ficará
confinada aqui por uma questão de segurança. Ou ficará sob minhas vistas até o final da viagem.
— Por todos os santos! Não diga bobagens! Eu apenas caí...
— Do que mais se lembra?
Hanna franziu o cenho, procurando se concentrar.
— Bem... Eu estava andando pelo corredor depois que Jeremy se recolheu. O resto foi você
mesmo quem me contou.
— Não é o bastante, Hanna. Pense melhor.
— Ora, não seja exagerado. Logo estará vendo duendes e fantasmas rondando a tripulação. Por
que alguém haveria de querer me ferir?
— Cabe a você responder a essa pergunta. Talvez alguém tivesse uma boa razão para empurrá-la
escada abaixo. Só que a única pessoa que a conhecia antes desta viagem era sua criada.
— Letty? Ela tem me servido há anos. Às vezes tende a ser um pouco autoritária. Nem por isso
me desejaria mal.
— Tampouco lhe desejou o bem, pelo que pude notar. Apesar de toda a preocupação que
alardeou, só veio vê-la uma vez, quando ainda estava desacordada.
— Só uma vez? ― Hanna repetiu, sem querer admitir quanto o descaso da criada a magoava.
Ele assentiu, muito sério.
— Se preferir, posso chamá-la, para que ela mesma confirme o que estou dizendo.
— Não... não é necessário.
Houvera um tempo em que Letty lhe dedicara não apenas lealdade, mas também afeição. Ao que
parecia, esse tempo passara, Hanna refletiu com tristeza.
— Tenho quase certeza de que Letty está flertando com um de meus homens. Provocou-o e

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conseguiu fazê-lo desobedecer minhas ordens.
— Oh, não a minha Letty! Eu o aconselharia a analisar melhor a conduta de seu homem antes de
acusar minha criada de seduzi-lo! ― ela protestou veementemente.
Entretanto, mesmo enquanto defendia a criada, recordava-se de como Letty flertará com o
marujo ruivo e como ficara melindrada quando Hanna a repreendera.
— Minha criada foi contra esta viagem desde o princípio — disse por fim. — Sempre achou que
eu deveria permanecer em Providence e esperar que o capitão Gill encontrasse meu pai. Letty é
autoritária, e ficou muito contrariada quando insisti em partir da cidade. Talvez, por essa razão, tenha
procurado a companhia desse homem a quem se refere. Mas daí a afirmar que Letty planejaria minha
morte...
Nesse ponto, a voz de Hanna morreu-lhe nos lábios, e ela mirou o teto melancolicamente. Sam
lembrou-se do dia da partida, quando ninguém viera se despedir de Hanna. Não era de espantar que a
amizade da criada representasse tanto para ela. O engraçado é que Sam sempre acreditara que o dinheiro
conquistava numerosos amigos.
— É o que também espero, meu anjo. Já tenho muitas dúvidas em relação a Amos Howard para
querer que Letty também esteja envolvida nisso. De qualquer forma, trate de ficar sempre perto de mim,
está bem?
Apesar de não ver nenhum motivo para crer que sua vida corria perigo, Hanna achou fácil fazer-
lhe a vontade. Assim, passou o tempo todo junto a ele, enquanto Sam se ocupava do comando do brigue.
Ele, por sua vez, não especulara mais sobre Etienne. Tampouco passara a tratá-la de modo
diferente depois de conhecer os detalhes de seu passado. Não tornara a mencionar Letty, não falara mais
que sua vida corria perigo. Limitava-se a conversar com ela a respeito de assuntos triviais: a direção dos
ventos, o tempo, seu ceticismo em relação ao novo governo francês que, Sam acreditava, não seria
melhor que o inglês para lidar com os marinheiros americanos.
Mas era tudo o que ele não expressava em palavras que a fazia apreciar, cada vez mais, sua
companhia. Hanna não ignorava que Sam a olhava de maneira protetora quando achava que ela estava
distraída. Às vezes dirigia-lhe um sorriso tão inesperado quanto fugaz, um sorriso que lhe transmitia
calor e a deixava comovida com a cumplicidade que sugeria.
Não que aquela situação não pesasse na consciência de Hanna. O que estava fazendo não era
justo, disso tinha plena certeza. Contudo, não trocaria os momentos ao lado de Sam nem por um milhão
de anos de respeitabilidade.
Estavam os dois no convés principal, no momento em que o vigia da gávea anunciou a
aproximação de outro navio.
— Terei que ver isso por mim mesmo. Não consigo enxergar nada daqui — Sam disse,
esquadrinhando o horizonte na direção que o vigia tinha apontado.
— Não seria mais simples afastar-se do outro navio? — Hanna sugeriu.
Ele encolheu os ombros. Deu um sorriso maroto.
— Sim, poderíamos fazer isso. Mas, antes, prefiro certificar-me de quem vem aí. Não se
preocupe. Não vou lhe pedir que suba comigo ao cesto da gávea. Lawson ficará de olho em você durante
minha ausência.
Momentos depois, Sam retornou e ordenou ao companheiro:
— Vamos seguir em direção àquele navio. Sua bandeira traz estampado um diamante branco em
um campo verde.
O outro arregalou os olhos, surpreso.
— Então aquela é a Calliope, do capitão Greene?
— Sim. A menos que Greene esteja morto e enterrado. Ah, já faz três anos que nos encontramos
em Salem! Agora eis que ele surge do nada, como se estivesse à nossa espera!
— Esse capitão é seu amigo? — Hanna quis saber.
— E como! Elihu Greene e eu já passamos por poucas e boas!
Mais tarde, ao debruçar-se na amurada observando o bote da Calliope se avizinhar da Truelove,
Hanna sentiu uma pontada de pânico. Na qualidade de velho amigo de Sam, o tal capitão Greene
certamente conhecia Sofie. E, conhecendo a esposa de Sam, certamente a desprezaria.

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O bote chegou perto do brigue. Os tripulantes das duas embarcações trocaram cumprimentos. Os
marinheiros da Truelove ajudaram os membros da Calliope a subir a bordo.
Hanna viu-se então diante de Elihu Greene. Em sua imaginação, havia esperado encontrar um
homem alto e forte como Sam, não um indivíduo pequeno e magro, que fazia visíveis esforços para se
equilibrar no deque. Sam deu-lhe um tapa nas costas, e ele quase caiu para frente.
De súbito, o olhar do capitão Greene pousou em Hanna. Ele sorriu-lhe com evidente prazer,
fazendo-a descontrair-se um pouco. Fez-lhe uma reverência, e Hanna retribuiu a cortesia com um
gracioso meneio.
— Ah, então essa é sua esposa, hein, Sam? Já não era sem tempo! Venha cá, moça, deixe Elihu
Greene lhe dar um beijo de felicitações!

CAPÍTULO X

— Minha esposa? Quer beijar minha esposa? — Sam perguntou, na mais completa
incredulidade.
O sorriso do outro alargou-se, até que seus olhos se estreitassem e quase desaparecessem sob as
bochechas.
— Sam, Sam... Não me diga que está com ciúme de um velho amigo! Quantas vezes não beijou
minha Sally também?
Sam mordeu o lábio para reprimir uma gargalhada. As notícias viajavam por estranhos caminhos
no mar... mas onde diabo Elihu teria ouvido rumores sobre seu pretenso casamento?
E ali estava seu amigo julgando-o um marido possessivo, quando na verdade ele é que haveria de
rir por último.
— Não seja por isso – replicou — Faço questão de que beije minha esposa... isto é, se conseguir
encontrá-la!
Greene abriu desmesuradamente os olhos. Segurou a mão de Hanna, como quem ergue um
troféu.
— Quem é esta dama então? Se não é a filha mais nova de Elias Crowninshield, confesso que
não compreendo mais nada. Ela certamente herdou os cabelos da mãe, embora tenha ficado bem mais
bonita que da última vez em que a vi, ainda menina.
— Engana-se, senhor. Meu nome é Hanna Snow e estou viajando na condição de passageira da
Truelove. Sou natural de Providence, não de Salem. Meu pai não é Elias Crowninshield e não sou casada
com o capitão Colburn — ela esclareceu num tom gélido.
Não recolheu a mão que Greene segurava. Porém, seu perfil recortado contra o pôr-do-sol
parecia entalhado em pedra. Para desgosto de Sam, Hanna refugiou-se por trás de uma máscara de
formalidade. Ele não entendia por que estava contrafeita com aquele equívoco que tanto o havia
divertido.
Elihu arqueou as sobrancelhas aloiradas por um breve instante e logo dissimulou sua confusão.
Cheio de galanteria, levou a mão enluvada de Hanna aos lábios e beijou-a, fazendo nova mesura a
seguir.
— Perdoe-me, madame. Falei por ignorância, não por malícia. Devo ressaltar, contudo, que a
senhorita é de longe mais encantadora que a jovem Crowninshield.
— Confesse que nunca se esquece de uma mulher — Sam atalhou apressadamente, sem desviar o
olhar da fisionomia rígida de Hanna. — Provavelmente soube que pedi Sofie em casamento. O fato é
que ela me trocou por Rob Pickerihg e seu pai quase me arruinou nesse meio tempo. Continuo o mesmo
celibatário de sempre. Avise Sally que pode prosseguir com suas pequenas conspirações para me arranjar
uma noiva.
Hanna encarou Sam, a princípio atônita demais para dizer qualquer coisa.
— Então... não é casado? Sofie não é sua mulher?
Ele devolveu-lhe um olhar igualmente estupefato.
— A esta altura Sofie já carrega o nome dos Pickerings. Que Deus dê ao pobre Rob a paciência

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necessária para passar o resto de seus dias ao lado dela.
— Então não é casado ― Hanna tornou a dizer, agora não mais em tom de pergunta.
Aquela revelação mudava todos os seus sentimentos para com Sam.
Ele passou a mão nos cabelos, balançou a cabeça.
— Não sou, não, graças a Deus. Mas por que foi pensar que...
Sam emudeceu de repente, lembrando-se das palavras de Justin Forbes na taverna em Newport.
Depois daquele episódio, não tivera oportunidade de se explicar com Hanna. Agora, todas as alusões que
ela fizera a Sofie começavam a ganhar sentido. E também a maneira como tentara repeli-lo. Afinal, após
ser casada com um bígamo, a última coisa que desejava seria envolver-se com um homem
comprometido.
Hanna, por outro lado, havia relaxado. Atirou a cabeça para trás e sorriu. E seu sorriso era de tal
modo radiante, que tocou fundo o coração de Sam.
— Não é casado. — repetiu pela terceira vez, com voz macia, e pôs-se a rir. Cobriu a boca com a
mão, tentando conter a estranha mescla de alegria e alívio que transbordava de seu íntimo. O passado era
passado, e a perspectiva de liberdade que se descortinava dali por diante chegava a ser embriagadora.
— É o que parece, srta. Snow. O capitão Colburn continua livre como um pássaro. Agora, se não
me engano, fui convidado para jantar a bordo, correto? — interveio Greene, recolocando o chapéu.
Sam não conseguia desviar o olhar de Hanna. Seu vestido branco tremulava ao luar, seus cabelos
eram agitados pelo vento, seu sorriso transmitia uma felicidade sem igual. Apesar da afeição que nutria
pelo velho Greene, teria dado tudo para passar a noite a sós com ela.
— Para o diabo com seu jantar, Elihu. Que Deus me ajude se for capaz de lhe negar esse maldito
jantar! — retrucou com jovialidade.
— Ora, Sam, onde está sua hospitalidade? Eu cuidarei de seu convidado. — Hanna interveio,
sempre sorridente.
No final das contas, sentia-se grata pela inesperada aparição de Greene. Pelo menos, a presença
do capitão adiaria o momento em que ficaria sozinha com Sam. Não sabia como, doravante, deveria se
comportar com ele.
Greene olhou para Sam com ar triunfante.
— Quer dizer que trata esse bárbaro pelo primeiro nome, hein, dona? Mesmo depois de ele
passar-lhe a perna e convencê-la de que era casado?
Sam meneou a cabeça, certo de que aquele mal-entendido seria relatado por Elihu em cada
taverna de Salem. No lugar do amigo, ele faria o mesmo, claro. Mas, na presente situação, não sentia
nenhum orgulho pelo ocorrido.
— Bárbaro, é? Pois vou lhe mostrar quem é bárbaro, Greene! Sugiro que fique longe de minhas
botas! — gracejou.
Minutos mais tarde, os três sentaram-se à mesa. Sam já estava bem-humorado de novo. Quando
Jeremy lhes serviu o primeiro prato que Hanna preparara, endereçou um sorriso a ela.
Ansiosa para causar boa impressão junto a Sam e Elihu, Hanna havia se esmerado para cozinhar
uma refeição especial. Usara seu estoque particular de frutas secas para fazer um bolo e sacrificara três
garrafas do precioso vinho de seu pai, enfileirando-as sobre a mesa, ao lado do rum e do sherry de Sam.
Por último, mandara Jeremy vasculhar o brigue atrás de duas cadeiras, a fim de poupar Greene da
ignomínia de se aboletar no baú.
Ademais, Sam tinha razão: ela, com efeito, tinha gostado muito de Elihu. O velho capitão fazia-a
rir com as histórias da infância dele e de Sam, quando ambos tentavam pregar peças nas irmãs e sempre
fracassavam de maneira hilariante. Certa vez, contou Elihu, os dois adormeceram na traseira de uma
carroça, passaram por Salem e só acordaram em Haverhill. Ele narrou outros episódios também,
protagonizados por mulheres conhecidas nos portos.
Enquanto ria dos relatos de Greene, Hanna estava consciente do olhar de Sam fixo nela e, a cada
minuto que passava, maior era sua felicidade.
Porém, sua alegria se desvaneceu por completo quando Elihu lhe perguntou por que estava
viajando para a Inglaterra. Hanna expôs-lhe brevemente seus motivos. Não pôde deixar de pensar que o
pai teria gostado da companhia daqueles dois capitães.

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Greene balançou a cabeça num gesto relutante.
— Não quero destruir suas esperanças, srta. Snow. Mas creio que merece inteirar-se da verdade.
Há poucos ianques nas prisões da Coroa, e duvido que seu pai esteja entre eles. Oh, evidentemente a
marinha inglesa continua detendo nossos mercadores para saquear sua carga, como verdadeiros piratas!
E também prossegue seqüestrando nossos homens para obrigá-los a lutar contra os franceses. Mas
estamos falando de marujos vigorosos e em plena forma física, não de velhos lobos do mar como nós,
que não têm nenhuma serventia para eles. Seis semanas atrás estive em Bristol e não soube de nenhum
navio ianque detido com toda tripulação.
— Bristol não é Londres. E tenho certeza de que meu pai está detido na capital — Hanna
contrapôs com firmeza.
Não lhe passou despercebido o olhar cético que os dois homens trocaram. Mas não queria sua
piedade e não compartilhava seu ceticismo. Ergueu o queixo obstinadamente.
— Eu hei de encontrá-lo e trazê-lo de volta para casa. Ele é meu pai. Não posso abandoná-lo. —
acrescentou.
— E nem estou sugerindo isso, minha querida. Só quis dizer que existem muitos meios de um
homem perder a vida no mar — Elihu esclareceu com suavidade.
— Agradeço-lhe a consideração, sr. Greene, mas ainda prefiro sustentar minhas convicções. ―
Hanna declarou, forçando-se a sorrir. Tornou a encher os copos. ― Este vinho é o favorito de meu pai.
Peço-lhes que façamos um brinde à sua saúde, para que um dia ele também tenha oportunidade de beber
do seu vinho.
Os três então ergueram seus copos com solenidade. Hanna sorveu o vinho num longo trago.
Dessa vez, porém, não sentiu nenhum torpor. Olhou de esguelha para Sam e percebeu que ele fitava seu
copo vazio com expressão perturbada. Hanna teve um aperto no coração. Assim como Elihu Greene,
Sam não tinha a menor esperança de que ela conseguiria resgatar o pai.
Nesse momento, o sino lá no alto badalou marcando o fim da segunda vigília. Elihu enxugou os
lábios, levantou-se e fez uma mesura.
— Já é hora de eu voltar à Calliope. Foi um grande prazer conhecê-la, srta. Snow. Se algum dia
passar por Salem, não deixe de me visitar. Sally haverá de querer retribuir este delicioso jantar. Espero
também que, até lá, o capitão Snow esteja em melhores dias.
Ela assentiu com um meneio, certa de que sua voz trairia as emoções. Quando se sentara à mesa,
estivera mais feliz do que em muitos anos. Agora que se aprontava para deixar aquela mesma mesa, via-
se de súbito à beira das lágrimas.
— Vou acompanhá-lo, Elihu. ― Sam disse.
Ao passar por Hanna, pousou a mão em seu ombro, num pequeno gesto de conforto. Grata por
aquela demonstração de solidariedade, ela segurou-lhe a mão por alguns segundos. E pensou que, apesar
de se conhecerem há pouco tempo, Sam parecia ter o dom de ler seu estado de espírito.
Mas de que isso adiantava? Os dois logo em breve se separariam para nunca mais tornarem a se
ver, Hanna pensou com tristeza.
— Se está querendo casar, Sam, o que há de errado com a moça lá embaixo? — Qreene
perguntou tão logo os dois ficaram a sós no deque.
Sam praguejou baixinho. Enfiou a mão no bolso à procura do cachimbo, enquanto olhava a
silhueta da Calliope sobressair na noite clara, de céu estrelado e quarto crescente.
— Não mudou nada, hein, Elihu? Sempre insistindo em encontrar uma noiva para mim, não é?
— Isso mesmo. Especialmente quando consigo enxergar algo que se recusa a admitir. — Greene
acendeu seu próprio cachimbo e deu algumas baforadas. — Você e sua Hanna fizeram com que eu me
sentisse uma tia velha sentada a um canto da sala para supervisionar os rumos da paixão de dois jovens
enamorados. Que Deus me ajude, mas não conseguiam despregar os olhos um do outro!
— Ora, trate de ficar quieto, seu lobo do mar intrometido. Não há nada entre mim e Hanna. —
Sam negou, sem esconder sua afeição pelo amigo.
Elihu limitou-se a levantar os ombros.
— Pois aposto que daria tudo para que houvesse, companheiro. Seria um completo idiota se não
desse. A moça é bonita e esperta. A julgar pelas safiras de seu colar, dispõe de um dote tão atraente

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quanto seu belo rosto. Como pode sonhar em trocá-la pelas mundanas com que se mete nas tavernas?
Além disso, sabe tão bem quanto eu que as chances de seu pai voltar um dia para persegui-lo, como fez
Elias Crowninshield, são no mínimo remotas.
Sam suspirou, indeciso quanto a partilhar com o amigo suas suspeitas sobre o acidente que
Hanna sofrera. Estava desorientado. Naquela manhã, ao ver Letty e Hanna juntas, achara quase
impossível imaginar a criada no papel de vilã criminosa.
A jovem era por vezes intratável, mas isso certamente não fazia dela uma assassina. Para
complicar a situação, nos últimos dias Amos Howard vinha se portando de modo exemplar. Talvez
Hanna tivesse razão e ele houvesse apenas imaginado coisas, buscando um pretexto para ficar perto dela.
— Suponho que Sally também seja muito prática nos assuntos do coração. Quanto a mim,
sempre achei que deveria haver também um pouco de conversas tolas e beijos ao luar. Fala como se o
casamento fosse tão excitante quanto ir ao mercado comprar víveres. — Sam disse com secura.
O outro riu.
— Pois o casamento pode ser um negócio deveras excitante se ambas as partes demonstrarem
tanto entusiasmo quanto vocês dois manifestaram hoje.
— Entusiasmo não é a chave de tudo. Concordo que ela seja exatamente como descreveu. Mas já
foi casada com um fazendeiro francês que a magoou profundamente. O casamento deixou-lhe muitas
cicatrizes.
— A srta. Snow lhe contou isso? — Elihu indagou, subitamente sério.
— Em parte. O resto eu deduzi. A vergonha fez com que ficasse com o marido para não
desapontar ao pai. Ah, se esse capitão ainda estiver vivo... Se eu um dia encontrá-lo, lhe direi poucas e
boas para que aprenda a não vender a filha ao primeiro bastardo francês que aparecer!
— Pobre criatura. Eu nunca imaginaria... Espero que ao menos tenha enviuvado e encontrado um
pouco de paz.
— Não é tão simples. Elihu. Parece que o sujeito já tinha uma esposa quando se casou com ela.
O pior é que Hanna acha que é a verdadeira culpada de tudo. — Sam, absorto, chutou um pedaço de
cabo. — Às vezes ela simplesmente se esconde atrás de uma máscara e fica inatingível.
E ele temia que, naquela noite, Hanna se recolhesse a sua cabine e se fechasse em si mesma.
Elihu colocou a mão no ombro dele.
— Sou obrigado a concordar. Por mais atraente que a srta. Snow seja, uma mulher com tantos
problemas daria uma esposa difícil.
Sam virou-se para fitá-lo, surpreso diante da frieza com que o amigo encarava a situação.
— Não sabe o que está dizendo! Não posso abandoná-la agora, em um momento tão difícil. Por
Jesus, Elihu, que espécie de homem pensa que eu sou?
— Na minha opinião, continua o mesmo sentimental que quase se afogou para salvar uma
ninhada de gatos no rio Essex. — Greene deu um sorriso. — Case-se com a moça e leve-a para Salem, e
prometo-lhe que Sally lhes preparará uma grande festa de boas-vindas. Agora conte-me como andavam
as vendas quando partiu de Salem.
Bem mais tarde naquela noite, Sam hesitou à porta de sua cabine. Jeremy já devia ter vindo para
limpar a mesa e Hanna provavelmente dormia. Podia imaginá-la encolhida no leito, com os lábios
entreabertos e os cabelos presos numa trança frouxa...
Seus dedos se fecharam sobre o ferrolho de metal polido, mas não fez menção de abrir a porta.
Divisou uma tênue claridade na soleira. Se Hanna estivesse adormecida ali dentro, teria apagado a
lamparina. Talvez houvesse preferido voltar para a própria cabine em vez de encará-lo. Embora
compreendesse suas razões, Sam não podia impedir que uma sensação de vazio o dominasse ante a idéia
de que Hanna fugira dele.
Balançou a cabeça, irritado consigo mesmo. Desde quando tinha medo de entrar em sua própria
cabine? Abriu a porta com determinação e curvou-se um pouco para não bater a cabeça no batente.
Num sobressalto, Hanna levantou-se da cadeira. Era evidente que adormecera enquanto o
esperava. Suas pálpebras estavam pesadas e, onde ela havia descansado o rosto, ficara uma mancha
rósea. Tirara os brincos e o colar de safira, que ainda segurava na mão.
— Pode ficar orgulhoso de mim. Desta vez eu não fugi, Sam ― disse com voz rouca.

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— Não devia ter me esperado. Por que não se deitou? — ele perguntou, notando que Hanna não
mudara de roupa.
Gostava dela assim, vestida de branco sem qualquer outro artifício. A visão de Hanna naquele
momento transmitiu-lhe tal impressão de despojamento que o comoveu.
— Precisava lhe falar. — ela deixou as jóias sobre a mesa e apoiou ambas as mãos no encosto da
cadeira. — Sinto ter feito papel de tola com o capitão Greene. Na verdade, nunca me deu nenhum
motivo para crer que fosse casado, Sam.
— Ora, não se censure. Como Elihu iria achá-la tola se ele cometeu o mesmo engano? Até hoje
não entendo por que todos ficaram tão ansiosos para me ver casado com Sofie e... bem mais ansiosos do
que ela própria, diga-se de passagem.
Sam despiu o casaco com estudada naturalidade e atirou-o sobre o baú, procurando romper o
clima de encantamento que já começava a se estabelecer entre os dois.
Hanna franziu o cenho e tentou olhá-lo como se o visse pela primeira vez. Admirou seu rosto
bronzeado, os cabelos castanhos revoltos, as grossas sobrancelhas levemente arqueadas de surpresa e os
lábios curvados em um sorriso másculo, a cicatriz em forma de meia lua numa das faces, que lhe con -
feria um certo ar de força... Como uma mulher poderia deixar de amar Sam Colburn?
— Sofie não o amava? ― perguntou, com genuíno espanto.
— A julgar pela rapidez com que encontrou um substituto para mim, creio que não. — ele
arregaçou as mangas da camisa e passou a mão nos cabelos, num gesto típico que revelava embaraço. —
Quando penso no assunto, chego a desconfiar que ela nunca me amou realmente.
Falar de amores passados fazia com que Sam se sentisse um completo idiota. Não sabia como
encarar Hanna, não sabia o que fazer com as próprias mãos ou o que deveria dizer a seguir. Na verdade,
tudo o que queria era estreitá-la nos braços, beijá-la e encerrar toda aquela conversa fiada. Com outra
mulher, já teria tomado uma iniciativa. Contudo, a expressão perdida de Hanna depois do último beijo
que haviam trocado ainda o atormentava. Se ousasse tocá-la agora, não poderia prever como ela reagiria.
Confusa, Hanna deu-lhe as costas. Acercou-se da janela, quedando-se imóvel. Sentiu sobre si a
intensidade do olhar dele e estremeceu.
— Era mais fácil quando eu pensava que era casado. Não precisava me preocupar com a maneira
como deveria me comportar com você. — disse com uma risada tensa.
— E não precisa se preocupar agora — Sam replicou, a voz baixa, traindo todo o seu desejo
frustrado.
Deteve o olhar na curva dos quadris dela. Hanna estava com as pernas ligeiramente afastadas,
oscilando de acordo com o balanço do navio. A saia do vestido moldava as ancas generosas e as nádegas
roliças. Sam se perguntou se Hanna teria consciência de como aquele movimento tão natural era sedutor
para ele. Saberia que a desejava como jamais desejara outra mulher?
— Não é bem assim, Sam. ― Hanna declarou por fim, afetando um tom quase displicente. ―
Quis me iludir a seu respeito, da mesma forma como quis me iludir a respeito de Etienne.
— Por Deus tudo não passou de um equívoco!
Hanna conservou-se imóvel e prosseguiu, como se não o tivesse ouvido:
— E esta noite eu enganei o capitão Greene também, não foi? Ele me considera uma mulher boa
e decente, digna de ser recebida sob seu teto. Mas o que diria se soubesse o que fiz com Etienne?
Ela alisou a saia do vestido, segurou o tecido acetinado e deixou que deslizasse por entre os
dedos.
— Será que esta roupa branca ludibriou seu amigo? O branco simboliza pureza, virtude. Eu
também usava um vestido branco quando o conheci, Sam, e disse-me que eu era um anjo. Meu Deus, um
anjo! — Hanna reprimiu um soluço. — Talvez eu devesse usar somente a cor negra doravante, para
espelhar a essência de minha alma!
— Que diabo, Hanna, não teve culpa de nada!
Ele cobriu a distância que os separava. Segurou-a pelos ombros e sentiu-a retesar-se. Mas não a
soltou. Não a deixaria fugir naquela noite.
— Etienne não pode mais atingi-la. Está tudo acabado. Acabado... — sussurrou com fervor.
— Não, Sam. Não estará acabado enquanto eu viver. O que Etienne fez comigo nunca poderá ser

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esquecido ― Hanna murmurou com um estremecimento.
— O diabo que não pode!
Sam correu as mãos possessivamente pelos braços dela e cingiu-lhe a cintura, trazendo-a de
encontro a si. Sentiu a maciez daquele corpo de mulher. Todo o seu desejo despertou de repente, e teve
que se conter para resistir ao impulso de se mover contra ela. Temia assustá-la. Mas não havia como
negar que seus corpos se amoldavam à perfeição. Como Sam sempre imaginara que se amoldariam...
Hanna virou-se, tentando escapar àquele ardente contato.
— Não compreende, Sam. E como poderia? É um homem bom, bom demais para mim. Pois faça
o que lhe digo! Volte para Salem e case-se com uma mulher digna, encha sua casa de filhos e deixe-me
em paz! ― quase gritou, tremendo incontrolavelmente.
— Não quero outra mulher, Hanna.
Ele afastou-lhe os cabelos da nuca e beijou-a ali, provocando-lhe um arrepio.
— Não, isso não é certo... Pare, por favor... ― Hanna objetou. Mas sua voz soou falsa, sem
convicção, como se quisesse traí-la.
Incapaz de lutar contra as próprias emoções, ela fechou os olhos e reclinou a cabeça. Sam então
encontrou o ponto sensível atrás de sua orelha e atiçou-o com os lábios e a língua. Hanna arquejou.
Devagar, a mão dele afrouxou na cintura esguia, escorregou para o ventre e os quadris, trouxe-a para
mais perto da essência de seu desejo. Depois tornou a deslizar para cima e acariciou-lhe o seio.
Ela sentiu-se arrebatada num turbilhão vertiginoso. As doces sensações que Sam lhe avivava
eram muito diferentes do que experimentara ao lado de Etienne. Se fosse capaz de confiar em Sam,
talvez pudesse enterrar o passado definitivamente.
Renda-se, disse a si mesma. Renda-se e seja livre...
E virou-se para Sam, fitou-o por um breve instante. Seus lábios se uniram. Com um gemido
rouco, Hanna saboreou o desejo dele, pressentiu a urgência que nada mais era do que uma projeção de
sua própria urgência. Enquanto Sam desabotoava-lhe o vestido, puxou a camisa dele para fora do cós da
calça e tateou a pele nua do tórax musculoso.
Sam arquejou, afastou-se um pouco para livrar-se da camisa. E ela, com mãos trémulas, desatou
o último cordão do vestido, que escorregou para o chão com um farfalhar suave. Ficou apenas com a
camisa de linho, que deixava entrever os mamilos escuros dos seios e o triângulo sombreado entre suas
coxas.
Hanna contemplou o corpo de Sam, modelado por trabalho árduo, tisnado de sol e infinitamente
belo. Os ombros eram largos, os quadris, estreitos; e no ventre plano ela divisou outra cicatriz
esbranquiçada.
Lentamente, seu olhar encontrou o de Sam. Não viu nas íris castanhas nenhum vestígio de riso,
nenhuma provocação, e, perplexa, deu-se conta de que ele aguardava sua decisão. A tensão no rosto de
Sam revelava quanto estava lhe custando aquele autocontrole.
Hanna umedeceu os lábios ressequidos. Com um gesto estranhamente formal, estendeu-lhe a
mão.
Ele estreitou-a contra si e conduziu-a ao catre.
Sem mais refletir ou relutar, Hanna sucumbiu à sinfonia de emoções que aquele homem
orquestrava em seu ser. A boca de Sam era ávida e exigente, seu toque era inebriante. Ela mal notou
quando a desnudou por completo e despiu as próprias roupas.
Os dois deitaram-se no catre, os braços e pernas entrelaçados, cada qual explorando o corpo do
outro numa incansável busca. O toque de Sam era como fogo na pele de Hanna. Ela ouviu gemidos
surdos, como gritos primais de prazer e, num dado momento, percebeu que aqueles gemidos eram seus.
Quando Sam lhe acariciou a parte interna das coxas, moveu instintivamente os quadris. Com outro
homem, teria sentido vergonha. Mas agora já não pensava em nada. Seu mundo concentrava-se em Sam
e na doce agonia que crescia em seu âmago.
Renda-se e seja livre...
Sam deitou-a de costas e posicionou-se entre suas pernas, suspendendo-lhe os quadris. Hanna
abriu os olhos ao senti-lo dentro de si, arqueou o corpo para acolhê-lo, moveu-se no seu ritmo. Abraçou-
o febrilmente e rodeou-lhe a cintura com as longas pernas. Sam penetrou-a mais fundo, cada vez mais

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fundo, e de repente Hanna viu-se espiralando em um vórtice sem nome, sem tempo, sem espaço. Longe,
longe, cada vez mais longe.
Renda-se...
Estava presa sob o corpo de Etienne, comprimida contra o mármore frio do chão. Ele não havia
se dado ao trabalho de despir as calças e, ao possuí-la, machucara-a com os fechos das roupas.
Hanna mordeu o lábio para não chorar. Chorar lágrimas de humilhação e vergonha pelo que o
marido havia lhe feito.
— Prostituta barata. Sempre se dá ares de importância e julga-se superior, como se o preço que
paguei a seu pai não fosse digno de seus favores. Não é assim, ma chérie? Mas sei como derrubá-la de
seu pedestal. Não pode se esconder para sempre. — Etienne murmurou, sacudido pelos últimos
espasmos do gozo.
Ele se soergueu e enrodilhou os dedos no colar de pérolas de Hanna. Puxou-o até deixá-la sem ar.
Desesperada, Hanna debateu-se, tentou respirar.
Afinal, Etienne sorriu satisfeito e tombou sobre ela.

CAPÍTULO XI

Hanna deixara escapar um gemido estrangulado que nada tinha a ver com o deleite do gozo. Sam
rolou para o lado, puxando-a sobre si. A última coisa que desejava era machucá-la. Mas sabia que era um
homem grande e, inadvertidamente, podia tê-la assustado.
Ainda ofegante, Hanna apoiou o braço no peito dele e afastou o cabelo do rosto. Seu olhar
continuava vidrado, e só agora o pânico que sentira começava a ceder. Sem que ela dissesse uma só
palavra, Sam constatou, cheio de fúria, que Etienne mais uma vez se interpusera entre os dois.
— Hanna, olhe para mim. Que diabo, marque bem quem eu sou! — exigiu. A raiva e a frustração
transpareceram na aspereza de sua voz.
Ela fitou-o desorientada. Logo a seguir, corou ao perceber que seus corpos ainda estavam unidos.
— Você é Sam, claro. Mas Etienne...
— O diabo carregue Etienne! Está comigo, Hanna. É tão simples quanto dois e dois! Será que
não entende? Está comigo!
Sam estava transtornado. Um misto de ira e volúpia apoderou-se dele, reacendendo-lhe o desejo:
ira, porque lutava contra um adversário desconhecido; e desejo, porque jamais experimentara tamanha
atração por uma mulher. Quando Hanna fez menção de se afastar, prendeu-a nos braços com firmeza.
Não a soltaria enquanto ela não ouvisse tudo o que tinha a lhe dizer.
— Sei que seu marido lhe deixou muitas cicatrizes. Mas não pode permitir que ele continue a
feri-la. Esqueça-o. Com os demônios, eu a farei esquecê-lo!
Sam então beijou-a de modo selvagem, com uma intimidade que reproduzia a intimidade que
seus corpos haviam acabado de compartilhar. As mãos morenas agarraram-lhe os quadris e moveram-
nos, até que Hanna começasse a acompanhar espontaneamente a cadência dele.
Hanna tornou a mergulhar num vórtice onde não havia lugar para a razão. Contorceu-se com uma
sofreguidão delirante, empinou os quadris para recebê-lo, e de repente Sam teve certeza de que não
poderia resistir por muito mais tempo. Insinuou a mão por entre seus corpos e tateou o exato ponto de
junção de ambos. Ela se arqueou, emitiu um grito entrecortado e abraçou-o, escondendo o rosto na curva
do ombro largo.
Sam então possuiu-a com redobrada ânsia, penetrou-a cada vez mais fundo, perdeu-se na
intensidade daquelas sensações que nunca antes experimentara com nenhuma mulher.
Mas ela não era como nenhuma mulher que Sam conhecera. Ela era especial. Sua Hanna. Depois
daquela noite, seria sua para sempre.
Quando finalmente ficaram saciados, aninhou-a nos braços e tentou lembrar-se da última vez em
que sentira tamanha paz de espírito, tamanha serenidade. O brigue seguia seu curso tranquilamente; as
vozes dos marujos, que trabalhavam no convés ao romper da aurora, pareciam muito longínquas. Então
o amor é assim, pensou, sem conter um vago deslumbramento. Quisera proteger Hanna desde o primeiro

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momento e, agora, ela lhe surgia como o porto seguro que almejara a vida inteira. Elihu tinha razão.
Deveria desposá-la, se essa era a condição para conservá-la consigo.
Preguiçosamente, traçou com a ponta dos dedos uma trilha de carícias nas costas e nas nádegas
de Hanna, palmilhou— lhe a pele para decorar sua textura. Ela continuava deitada sobre ele, os cabelos
esparramados no peito largo e a respiração regular, como se estivesse adormecida. Num impulso de pura
alegria, Sam depositou um beijo em seu ombro.
Hanna abriu os olhos, soergueu-se. Sua boca ainda trazia as marcas dos beijos que haviam
trocado, seu rosto estava corado, sua pele guardava o cheiro da pele dele.
Sam achou-a mais linda do que nunca. Roçou o polegar em seus lábios; e Hanna pressionou-os
contra o dedo dele, no mero tremor de um beijo. Sam esboçou um sorriso. Aí viu uma lágrima deslizar
pela face dela.
— Por que está chorando, meu anjo? — perguntou ternamente.
Hanna secou a lágrima, sem nem se dar conta de que o fazia. Teve o ímpeto de dizer-lhe que o
amava, que sempre o amaria. Que sempre o havia amado, desde o primeiro instante.
— Desculpe-me se o magoei, Sam ― murmurou.
— Magoar a mim? Por quê?
— Por mencionar o nome de Etienne em um momento tão... inoportuno. Sei que lhe feri o
orgulho, vi-o estampado em seu rosto. Nenhum homem gosta de ser lembrado de seu predecessor. ―
Hanna conservou-se cabisbaixa. Outra lágrima rolou-lhe pelo canto do olho. ― Quem me dera tê-lo
conhecido antes... Quisera que houvesse sido o primeiro, assim poderia lhe oferecer muito mais...
Sam apertou-a contra si de modo protetor. Nunca se deitara com uma virgem e, pelo que lhe
tocava, pouco se importava com isso.
— Ah, meu anjo! Quisera eu também, pois então a teria poupado do martírio de desposar
Etienne. Mas, quanto a ser o primeiro, é um detalhe irrelevante. Sou eu que a tenho comigo agora, não
ele. E pretendo ficar a seu lado por muito tempo.
— Os ventos que nos levam à Inglaterra hão de determinar por quanto tempo.
— Será apenas um começo.
Ele quis declarar seu amor. Mas a indefinível sombra que passou pelo olhar de Hanna preveniu-o
de que mais valia se calar naquele momento. Ela reagia cheia de cautela ao amor, e não havia nenhuma
surpresa nisso, depois de tudo o que tinha passado com Etienne. Sam decidiu não pressioná-la por ora.
Correu os dedos pela cintura de Hanna e, sem querer, imaginou-a ostentando o ventre
protuberante e redondo enquanto gerava o filho dele. Essa imagem encheu-o de ternura.
— Nós nos damos bem, você e eu. — sussurrou-lhe, sem saber ao certo como exprimir seus
sentimentos. — O fogo que nos une é algo raro.
Ela assentiu. No íntimo, porém, ficou desapontada. Pois era apenas volúpia que o fazia abraçá-la
daquele modo, era apenas o desejo que o fazia prolongar suas carícias. Por isso não se importara com o
fato de não ser virgem. Mas, Hanna ponderou, pelo menos Sam a queria para si, fosse por qual fosse o
motivo. E lhe proporcionara uma espécie de alegria com que jamais ousara sonhar.
— Antes desta noite, eu sempre havia pensado que só os homens encontravam prazer em... em
manter uma conjunção carnal.
— Se um homem quiser usufruir um prazer solitário, existe outro meio para se satisfazer. É
melhor do que molestar uma pobre dama. E não merece isso, Hanna.
Ela recostou a cabeça no peito de Sam e sorriu, ouvindo as batidas de seu coração. Podia não a
amar, mas tinha-lhe consideração. Isso era muito mais do que Etienne um dia se dignara a lhe devotar.
Etienne. Hanna sentiu uma pontada de amargura, sequestrada pelas lembranças amargas que ele
invariavelmente lhe despertava. Lembranças que a perseguiam como um pesadelo. Para testar suas
forças, obrigou-se a rememorar seu casamento. Os sorrisos do marido que, sem aviso, transformavam-se
numa careta de sarcasmo. Os rompantes de fúria. As maneiras elegantes que dedicava somente aos
convidados da casa.
Ela resistiu. E o pesadelo foi afugentado de seu espírito. Ouvia as batidas do coração de Sam,
enquanto a imagem de Etienne ia se tornando mais e mais opaca.
Hanna deixou-se dominar pela proximidade de Sam e acolheu a estranha paz que essa

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proximidade lhe proporcionava.
— O que eu não mereço, Sam, é você. É bom demais comigo. — disse, abraçando-o.
Ele sentiu o corpo reagir aos movimentos lânguidos dela. Começou a penetrá-la lentamente, ao
mesmo tempo em que um sorriso malicioso vinha brincar em seus lábios.
— Mas não sou nenhum santo, meu anjo. — sussurrou-lhe.
— Não, não é — Hanna concordou com uma risada rouca.

— Viu-a sozinha, Letty? Quando? — Amos perguntou estarrecido.


— Esta noite. — a criada respondeu prontamente.
Letty ajeitou o avental sobre os joelhos. Desde que Hanna se transferira para a cabine do capitão
Colburn, ela e Amos haviam passado a fazer as refeições sempre juntos. O imediato trazia comida e
bebida da cozinha, ao passo que Letty surrupiava doces do estoque de Hanna.
Porém, não eram somente laranjas secas e doces que a criada “tomava emprestado” para agradar
Amos. Naquela noite, por exemplo, usava uma touca de renda e brincos de coral da patroa. Se as duas
não tivessem talhes tão distintos, decerto vestiria as roupas de Hanna também.
— Minha patroa quis um penteado especial quando foi jantar com o outro capitão. Mas tem
cabelo muito escorrido, foi dificílimo cacheá-lo. — queixou-se, alisando a própria cabeleira castanha e
esperando por um elogio que Amos não proferiu.
O imediato franziu o cenho enquanto olhava distraidamente para seu prato.
— Achei que o capitão Colburn nunca a deixasse sozinha.
— Dessa vez foi por pouco tempo. Ele logo veio para cá e sentou-se na cama, como se tivesse
todo o direito de vê-la trocar de roupa.
— E provavelmente tem mesmo.
Perdendo o apetite, Amos largou o prato no chão e empurrou-o com o pé. À medida que se
aproximavam da Inglaterra, menores iam se tornando suas chances de executar o plano traçado por Gill.
E não havia nada que pudesse fazer a respeito. A tal Snow nunca ficava sozinha. O capitão Colburn
vigiava-a de perto.
— A srta. Hanna não é da mesma opinião. Prova disso foi que não teve coragem de levantar os
olhos para ele, tão embaraçada estava! Pobre criatura! A culpa é toda do capitão Colburn! — Letty ia
dizendo, alheia aos pensamentos de Amos.
— Sua patroa é uma mulher sem moral. Da próxima vez em que encontrá-la sozinha, vá me
chamar o quanto antes. — Howard pediu, entrelaçando sua mão à dela.
— Mas, afinal, qual é o assunto que tanto deseja lhe falar em particular?
Letty arrematou a pergunta com um muxoxo, fingindo-se contrariada. No íntimo, todavia,
gostava de receber ordens de Amos. Nunca respeitaria um marido que se curvasse a todos os seus
caprichos.
— Já lhe disse, mulher. Isso é coisa do capitão Gill.
— Pois bem, talvez eu possa abordá-la amanhã após o desjejum, quando aquele capitão bárbaro
estiver no convés. — A criada estremeceu e deitou a cabeça no ombro do imediato. — Ele é um
selvagem. Acorda-me todas as manhãs com suas ordens e brados. Nessas ocasiões, é certo que não está
com a srta. Hanna. Poderíamos aproveitar a ocasião para ir ter com ela. Sem dúvida, não hesitaria em
abrir a porta da cabine para mim.
Amos aquiesceu. No íntimo, por trás de sua aparente calma, maquinava furiosamente para
arquitetar a melhor estratégia de ataque. Evidentemente precisaria trancar-se dentro da cabine, deixando
Letty no corredor. O passo seguinte seria sufocar Hanna Snow com o travesseiro. Tal manobra não
deixaria marcas e o livraria de suspeitas. Afinal, Letty já havia comentado que a patroa não vinha se
sentindo muito bem. Atribuiriam sua morte a apoplexia ou a algum mal súbito.
Com um gesto nervoso, ele enxugou as mãos úmidas nas calças. Já previa como sua vítima se
debateria. Rezava para que o martírio não durasse muito. Empurrá-la na escada fora suficientemente
desagradável.
Letty notou-lhe a apreensão e fitou-o preocupada.

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— Não vai lhe fazer mal, vai? É apenas um assunto do capitão Gill, não é?
— Ora, e o que mais haveria de ser, mulher? — Amos replicou, forçando-se a sorrir. — Não me
diga que acredita nas bobagens que o capitão Colburn anda espalhando. Sua patroa não corre nenhum
perigo. De qualquer modo, por que George Gill lhe quereria mal? Ele é um grande amigo do capitão
Snow. Você mesma ouviu o que contou em Newport.
— Tem razão, Amos. A srta. Hanna está se fazendo de tola com o capitão Colburn. Não merecia
sofrer mais do que já sofreu. E um homem como George Gill obviamente não a prejudicaria.
O imediato conservou-se quieto. Cheio de perturbação, ponderou que ele mesmo não sabia até
que ponto aquela afirmação era verdadeira.

— Acorde, meu anjo.


Hanna sorriu de olhos fechados. Virou-se no catre e continuou a dormir.
Sam sacudiu-a de leve.
— Sei que ainda é cedo, mas não há alternativa. Temos visitantes.
Ela tornou a se virar e fitou-o, sonolenta. Em seguida olhou através da janela, de onde se
descortinava o pálido céu das primeiras horas do amanhecer. Definitivamente, era cedo demais para
visitas. Sam, porém, já estava de pé, vestido e barbeado, com os cabelos presos num rabo-de-cavalo.
Por um instante, Hanna achou que os acontecimentos da véspera não haviam passado de um
sonho. E sentiu um princípio de pânico.
Mas Sam debruçou-se sobre o catre e beijou-lhe os lábios. E todos os seus temores se dissiparam
como que por um passe de mágica. Sorrindo, rodeou o pescoço dele com os braços e puxou-o para o
catre.
Sam resistiu-lhe com evidente relutância. Endireitou-se, balançando a cabeça.
— Está me deixando bastante tentado, mulher. Contudo, não me agrada ter um bando de
franceses por platéia.
— Não entendo... Não há um só francês no registro da Truelove...
Ela sentou-se e, num rasgo de pudor, cobriu-se com o lençol. Olhou-o de modo inquisitivo.
— Já lhe disse, Hanna, temos visitantes. Uma fragata surgiu do nada, e tão de repente que não
pudemos nos desviar sem que despertássemos suspeitas.
Enquanto falava, Sam colocou sobre a mesa o cofre que continha moedas e os papéis do brigue.
Tirou o lenço do pescoço e, nele, guardou as moedas e alguns dos papéis. Fez uma pequena trouxa e
tornou a guardar o cofre. A seguir, tateou um nicho oculto sobre a janela, ali escondendo seus preciosos
pertences. Apanhou o vestido branco que ficara estendido na cadeira e entregou-o Hanna.
— Mas não é um horário um tanto estranho para recebermos visitantes? ― ela perguntou.
— Concordo plenamente. Eles já baixaram um bote. Estão mandando um tenente e um bando de
velhacos para subirem a bordo. Não quero que fiquem se engraçando para você.
— Sam, seja mais claro. Esses homens subirão a bordo ou vieram nos abordar? Sou filha de um
capitão e sei muito bem a diferença entre uma coisa e outra.
Os olhos dele encontraram os dela, indecisos, e Hanna percebeu o momento exato em que Sam
decidiu confiar-lhe a verdade.
— Eu lhe direi assim que souber. Sentir-me-ia bem melhor se os patifes não estivessem armados.
Pelo que soube, o Diretório favoreceu a nós, ianques, mas pergunte ao pobre Luís o que a palavra deles
vale. Que o diabo carregue sua fraternidade! Prefiro vê-los arder no fogo do inferno a entregar-lhes a
Truelove como troféu.
Hanna apressou-se em fechar o vestido. Entrementes, Sam carregou duas pistolas e enfiou-as no
cinturão, onde ficaram camufladas sob as dobras de seu casaco.
Ela teve um calafrio. Já vira com os próprios olhos a confusão que Sam podia criar usando
meramente seus punhos. Nem gostava de imaginar do que ele seria capaz com um par de pistolas nas
mãos. Já ouvira muitos relatos da habilidade dos franceses com armas. Se ficassem irados, aniquilariam
a tripulação do brigue sem pestanejar. E não poupariam a vida de Sam.
Nenhum navio do mundo valia a vida dele, Hanna pensou, aterrorizada. Não suportava a idéia de
vir a perdê-lo depois do que acontecera entre os dois na noite anterior.

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— Jure-me que não fará nenhuma tolice. — implorou, lutando para não ceder ao pranto. — Jure-
me ao menos isso, Sam!
Ouviram-se saudações num inglês canhestro. Eram os homens do bote, que já emparelhavam
com o brigue.
Sam emoldurou o rosto dela entre as mãos, encarando-a intensamente.
— Tome cuidado, meu anjo.
— Eu lhe suplico, pelo seu próprio bem...
— Farei o que for necessário. Não posso lhe prometer mais que isso.
Assim dizendo, ele levou sua mão aos lábios e beijou-a. Com aquele simples gesto, reafirmou-
lhe tudo o que havia se passado entre os dois. Depois saiu da cabine sem olhar para trás.
Hanna reteve à flor da pele a sensação daquele beijo. Mas o pânico continuou a crescer em seu
íntimo. Lá em cima, o convés estava estranhamente silencioso. Era como se a tripulação aguardasse a
subida dos franceses. Não se ouviam as costumeiras imprecações. Nem passos estalando nas tábuas ou
canções entoadas para aliviar o trabalho pesado.
A voz de Sam elevou-se no deque, solitária, e suas palavras misturaram-se aos gemidos do vento,
sem que Hanna pudesse discerni-las.
Oh, Sam...
Desesperada, correu a apanhar seu pequeno baú. Remexeu-o freneticamente até encontrar a pasta
de couro que o sr. Morrow lhe dera antes da partida. Ele lhe explicara que ali estavam papéis falsos, a
serem usados numa situação de emergência: um maço de documentos franceses e outro de registros
holandeses. Embora o pai de Hanna nunca viajasse sem tais documentos, muitos capitães julgavam sua
utilização um expediente baixo e desonesto. Dessarte, o sr. Morrow a havia aconselhado a não revelar ao
capitão Colburn a existência daqueles papéis forjados.
Hanna decidiu que a presente situação era um caso de emergência extrema. Portanto, releu os
papéis falsificados rapidamente. Depois, colocou-os junto aos documentos verdadeiros da Truelove,
rezando para que Sam compreendesse por que agia assim.
Ao ouvir os franceses subindo ao convés, atirou o xale sobre os ombros e escancarou a porta da
cabine.
Deparou com Letty. Esta, atônita, bloqueou-lhe a passagem, não se conteve e exclamou:
— Por todos os santos, srta. Hanna! Não posso acreditar em meus olhos! Aí está, com o vestido
todo amassado, usando jóias de festa em plena manhã, enquanto se esgueira para fora da cama de um
homem como se fosse uma rameira! Oh, o que seu pai não diria se estivesse aqui!
Mas Hanna não se dispunha a ouvir os sermões da criada. Precisava alcançar Sam a tempo de
evitar que ele cometesse um desatino.
— Por favor, Letty, deixe-me passar. Tenho que ir ao convés!
— Pois aposto que quer voltar para os braços daquele bárbaro! Não se aflija. Logo estará com
ele. Antes, porém, deve tratar de outro assunto.
Dito isso, Letty espiou o corredor, apreensiva. Por que Amos não aparecia de uma vez por todas?
Aproveitando-se de sua distração, Hanna tentou empurrá-la para o lado. A outra encarou-a,
tomada do mais vivo estupor.
— Nunca encostou um só dedo em mim, srta. Hanna! Nunca, nesses anos todos!
— Perdoe-me, Letty. Conversaremos mais tarde. Mas, agora...
— Não temos mais nada a nos dizer, senhorita. Um dia cheguei a admirá-la e respeitá-la. Mas
vejo que Amos estava certo. Não vale nada! Quando voltarmos para Providence, hei de reconstruir
minha vida. Não conte mais comigo para servi-la!
— Letty!
Todavia, a criada não fez caso de seu chamado: deu-lhe as costas e afastou-se.
Letty sempre estivera ao lado dela. Agora a abandonava. Hanna sentiu-se mais traída e
desamparada do que nunca.
Ainda perplexa, escutou a voz áspera de um dos franceses. Sam dirigiu-lhe uma réplica em tom
colérico. O outro interrompeu-o...
No auge da aflição, Hanna precipitou-se pela escada que levava ao convés. Quando alcançou o

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último degrau, estacou, petrificada. Todos os olhares haviam se voltado para ela.
Os tripulantes do brigue a princípio mostraram-se surpresos com sua repentina aparição, mas
logo se recompuseram. Os marinheiros franceses, porém, com seus uniformes azuis e mosquetes
brilhando ao sol, olharam-na com tal ódio, desdém e obscenidade, que Hanna teve vontade de fugir para
a cabine.
Sam postava-se em meio aos recém-chegados. Seu choque ao vê-la ali não demorou a se
converter em fúria cega, diante dos olhares descarados dos franceses.
— Quem é essa mulher? — inquiriu o tenente estrangeiro, falando um inglês arrastado e
vacilante. Seu tom era simplesmente detestável. — É muito, muito bonita... Irmã de le capitain!
A breve pausa que ele fez foi bastante significativa, sugerindo tanto um insulto quanto uma ironia
acerca da ligação dos dois. Com um aperto no coração, Hanna viu Sam crispar as mãos à altura do
cinturão.
— É uma dama americana, seu bastardo. Dobre a língua antes de sequer mencionar o nome dela!
— A partir do momento em que seu país aliou-se aos ingleses, tenho direito de fazer o que bem
entender. Acaso se esqueceu do acordo que seu concidadão John Jay fez com o rei Jorge? Agora também
é nosso inimigo.
— E desde quando? — Sam vociferou.
Dessa vez, foram os marujos franceses que crisparam as mãos nos cabos dos mosquetes.
Hanna engoliu em seco. Em breve teria que intervir naquela situação. Não falava francês desde
que deixara a Martinica. E ainda hoje vacilava para falar a língua pátria de Etienne.
Mas teria que fazê-lo. Pelo bem de Sam. Teria de fazê-lo.
— De acordo com instruções do capitão Landriot, podemos interceptar e vasculhar quantos
navios americanos quisermos — respondeu o tenente, e fez uma careta de troça.
— O diabo que podem! ― Sam trovejou, atirando-se sobre ele.
Com uma das mãos, agarrou a gola da camisa do tenente. E com o punho fechado da outra,
desferiu um soco no queixo de seu adversário. Quando se preparava para acertá-lo de novo, quatro
marinheiros franceses agarraram-no e libertaram seu tenente.
Sam viu-se então imobilizado por três marujos, enquanto o quarto encostava a ponta do
mosquete em seu ventre.
— Solte o capitão americano, tenente! — Hanna gritou. Sem que precisasse se esforçar, as
palavras fluíram de sua boca com o sotaque francês que assimilara na Martinica. E, juntamente com elas,
fluíram as mentiras que o sr. Morrow a fizera decorar: — Não tocará em nada neste brigue e não causará
nenhum dano à sua tripulação. Sou Hanna de Gramont, esposa de Etienne de Gramont, cidadão da
República. Este navio, bem como sua carga, pertencem a mim!

CAPÍTULO XII

O tenente virou-se para encará-la. Metade de seu rosto estava coberta por um lenço manchado de
sangue.
— O que disse, minha menina?
— Não sou “sua menina”, caro tenente. Não se esqueça disso, ou terei que falar com seu capitão.
— Hanna retrucou num tom ácido.
Ela sabia que conseguiria imitar as mulheres abastadas que conhecera na Martinica. Bastava não
olhar para Sam, e sua máscara resistiria.
O tenente hesitou. Coçou a testa.
— Perdoe-me, madame, mas é meu dever vasculhar este brigue. Passamos por tempos difíceis.
Não foi minha intenção ofendê-la, apenas cumpri ordens. Se a senhora pudesse explicar-me o que faz
aqui...
Ele estava se sentindo cada vez mais desconfortável. Hanna deliberadamente demorou a
responder, na esperança de que o tenente interpretasse sua atitude como um capricho burguês. Na
verdade, ela tentava pensar em um pretexto plausível que justificasse sua presença ali.
Pela primeira vez Hanna percebeu o vulto da fragata flutuando sobre as águas, bem maior que o

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do brigue. Duas fileiras de canhões negros pontuavam seu flanco amarelo. Cabia a ela manter aqueles
canhões em silêncio.
— Como o senhor mesmo disse, tenente, são tempos difíceis. Quando expressei desejo de visitar
minha irmã em Boulogne-sur-Mer, meu marido decidiu que seria mais seguro contratar um americano
neutro para levar-me e a esta carga. É evidente que, se estivéssemos a par da nova orientação para deter
embarcações americanas, haveríamos de escolher um navio de outra nacionalidade. — mentiu,
lembrando-se de quantas vezes seu pai contara histórias semelhantes àquela.
— Sim, evidentemente. — murmurou o tenente.
Hanna odiou sua pretensa solicitude, pois não ignorava que era tão falsa quanto os papéis
forjados que o sr. Morrow lhe entregara.
— O mundo dá muitas voltas. — observou, encolhendo os ombros com descaso e ao mesmo
tempo rezando para que Sam não compreendesse o que dizia em francês. — O senhor encontrará todos
os documentos pertinentes na cabine do capitão, embora eu duvide que ele seja capaz de lê-los. Há tam-
bém papéis que determinam Providence, em Rhode Island, como nosso porto natal. Mas estes são
destinados meramente a iludir oficiais britânicos que porventura venham a cruzar nosso caminho.
Com um gesto abrupto, o tenente ordenou que dois de seus tripulantes fossem buscar os referidos
documentos.
Às suas costas, Hanna ouviu Sam praguejar contra os homens que o seguravam.
— Hanna, que diabo está acontecendo? Com todos os demônios, olhe para mim!
Mas ela não esboçou reação. Teve que recorrer a toda a sua força de vontade para não se virar e
correr para Sam. Ouvi-lo interpelá-la, sem nada poder fazer, partia-lhe o coração. Todavia, precisava
manter-se firme: se traísse qualquer sentimento por ele, o tenente desconfiaria do embuste e passariam o
resto de seus dias como prisioneiros.
O oficial sorriu. Quanto mais Sam imprecava, mais o francês tendia a acreditar na história de
Hanna.
— Ao que parece, esse ianque lhe é muito afeiçoado, madame de Gramont. E quem poderia
culpá-lo de estimar tão encantadora companhia?
Hanna teve vontade de esbofeteá-lo para arrancar aquele odioso sorriso de seus lábios.
Lembrava-se perfeitamente de como as damas de Fort-de-France zombavam dela porque não tinha
nenhum amante. No entanto, mesmo que Etienne houvesse se mostrado mais permissivo, a educação
rígida de Hanna jamais lhe permitiria quebrar os votos do sagrado matrimônio com tamanha
casualidade. O pior de tudo era o que se via forçada a dizer agora àquele tenente, rebaixando-se a cada
palavra e aviltando o precioso tesouro que Sam lhe legara.
— Pelo amor de Deus, Hanna, o que esse bastardo está dizendo? ― ele tornou a perguntar.
Estou fazendo isso porque o amo, Sam...
— Uma travessia nesta época do ano costuma ser longa e tediosa. Imagino que tenha encontrado
passatempos para espantar o tédio. — o tenente ia dizendo, enquanto arqueava a sobrancelha para
indicar que notara o desalinho dela.
Hanna viu-se sem alternativa. Aquele francês detestável a pressionava a dar uma explicação para
o fato de estar usando um vestido de gala amarfanhado em plena luz do dia.
— Meu marido é um cavalheiro idoso e compreende certas questões. — replicou com um sorriso
displicente. Contudo, sua aparente futilidade ocultava uma contrariedade muito além das palavras. Ela
olhou para o leste, onde o céu se apresentava escuro, com nuvens que se adensavam. Depois encarou o
francês. — Esse ianque tem temperamento explosivo, mas já provou seu valor. Peço-lhe que não o trate
com rudeza.
— Pois ele é que poderia ter me tratado com menos rudeza! — desgostoso, o tenente pressionou
o lenço contra o queixo, olhando também para o horizonte.
Não escapou a Hanna sua inquietude. Renovaram-se as esperanças dela. Estava quase certa de
que o tenente aceitara sua explicação. Tudo de que precisava eram provas que convencessem seu
capitão. Como o tempo estava mudando, desejaria retornar quanto antes à fragata. Era provável que exa-
minasse apressadamente a documentação do brigue e nem se desse conta da falsificação.
Por baixo das pontas do xale, Hanna girava o anel no dedo, rogando para que os franceses

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fossem embora quanto antes.
O aspirante que fora buscar os papéis voltou com o companheiro. Vinha trotando com os papéis
na mão e relatou, animado:
— A dama disse a verdade, senhor. E encontramos também outra mulher.
O segundo marujo francês surgiu no convés logo em seguida, arrastando Letty consigo. A criada
estava pálida e trêmula, e ele teve que ampará-la. Hanna sentiu a boca ressequida. Esquecera-se
completamente de Letty. O que fazer? A criada nada sabia de sua farsa e poderia cair em contradição.
— Letty, sua ignorante! Não vê que esses homens são franceses, não ingleses? Eles não irão
machucá-la! — ralhou mais que depressa. Esperava que a outra captasse sua mensagem.
A criada, porém, permaneceu calada, os olhos arregalados de medo.
Hanna temeu que ela fosse pôr tudo a perder.
— Devia tê-la deixado em Beau Coteau com monsieur de Gramont, Letty. — prosseguiu. — Que
serventia terá para mim em Boulogne se continuar nesse estado?
A criada continuou imóvel, sem proferir uma palavra. Para Hanna, seu silêncio era mais funesto a
cada minuto que passava. Por um momento, julgou-se ingênua por sequer haver pensado que poderia
salvar a tripulação do brigue. Presa de pânico, olhou para Sam buscando conforto.
E sentiu um aperto no coração. O semblante dele estava rígido, sua boca apertada. Os olhos
castanhos não demonstravam nada além de frieza. Podia não falar francês com perfeição, mas era óbvio
que compreendera o que ela dissera ao oficial da fragata.
O tenente leu os documentos, tornou a dobrá-los. Aí segurou o queixo de Letty com uma
familiaridade que não se atreveria a demonstrar com Hanna.
— Preste atenção ao que sua ama diz. — O oficial limitou-se a rir quando Letty virou o rosto. —
Ela tem um coração assaz generoso. No seu lugar, eu lhe daria umas boas palmadas para ensiná-la a ser
mais obediente. — Ele piscou para Hanna. — Não é, madame?
Os marinheiros que o rodeavam olharam-no de forma interrogativa. O tenente meneou a cabeça
para seus homens, que soltaram Sam, e devolveu-lhe os documentos.
— Está livre para prosseguir viagem, capitaine Colburn. Se houvesse dito que levava uma
cidadã francesa, teria evitado esse mal-entendido. ― declarou num inglês trôpego.
Como Sam não fizesse menção de agredi-lo, sentiu-se encorajado e dispensou seus
companheiros. Os franceses então começaram a descer para o bote.
— Adieu, capitaine. Possui um belo brigue. E uma bela dama também. — O tenente fez uma
mesura para Hanna. — Adieu, madame, et bonne chance!
Sam não se dignou a despedir-se dele. Dando de ombros, enfiou os papéis no bolso sem lê-los e
afastou-se na direção do leme.
— Preparar para prosseguir! Não quero ser apanhado de surpresa quando a tempestade vier! —
bradou, e todos os tripulantes correram para seus postos.
Hanna acompanhou melancolicamente a movimentação no convés. Olhou para Letty,
tencionando esclarecer o episódio com o oficial francês. A criada, no entanto, já fora buscar consolo
junto a Howard. Soluçava, escondendo o rosto no ombro dele, enquanto o imediato lhe afagava os
cabelos.
Num dado momento, Amos fitou Hanna com tamanho ódio, que ela instintivamente recuou.
Todos a condenavam. Mas agira movida pelos mais nobres sentimentos e sua consciência estava limpa.
Ainda assim, a incompreensão de que era vítima deixava-a mortificada.
Respirando fundo, dirigiu-se ao leme. Sam ocupava-se pessoalmente do timão e, de tempos em
tempos, gritava ordens para os outros.
O vento se intensificava, as ondas se elevavam. As nuvens cinzentas moviam-se no céu com
rapidez. O convés inclinou-se, dificultando o avanço de Hanna. Ela não se intimidou. Amarrou o xale
firmemente à volta dos ombros e prosseguiu.
— Vá para baixo, senhorita. O capitão não gostaria que sofresse mais um acidente. — Lawson
advertiu-a.
Ela balançou a cabeça, fingindo não ouvi-lo, e avançou para a popa. Discordava de Lawson:
naquele momento, Sam pouco se importaria se o vento a carregasse para a França. Mas tinha que falar

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com ele. Ou pelo menos tentar falar-lhe.
Parou ao lado do mastro principal, agarrando-se a ele com ambas as mãos.
— Que diabo faz aqui? — Sam repreendeu-a, os cabelos soltos ao vento, rebrilhando como fogo
acobreado contra o fundo de nuvens escuras. — Volte lá para baixo, do contrário mandarei um de meus
homens levá-la à força... ou acaso prefere que eu dê minhas ordens em francês, madame de Gramont?
— Está sendo injusto, Sam. Eu odeio Etienne de Gramont e nunca mais falei francês desde que o
abandonei. Até esta manhã...
— Como espera que eu acredite nisso? Pois se é tão traiçoeira, que até documentos forjados
arranjou! Ou pensou que eu “não seria capaz de lê-los”?
Os dois falavam aos gritos para se fazerem ouvir. O vento carregava para longe suas palavras,
mas não seu ressentimento.
— O sr. Morrow instruiu-me a escondê-los, pois achou que os desaprovaria. E bem que tinha
razão!
— Com todos os demônios, pouco me importo com o sr. Morrow! São as suas trapaças, Hanna,
que me deixam furioso! Bancou uma rameira francesa, orgulhando-se de plantar um par de chifres em
seu marido e fazendo-me parecer um mero garanhão sem nenhuma dignidade! Oh, deve ter se divertido
muito ao reencarnar o papel da dama voluntariosa que consegue tudo o que quer, não?
Hanna fitou-o perplexa. Nunca imaginou que ele fosse deturpar de tal forma suas intenções.
Sam olhou para o mar, enquanto tentava manter o leme estável.
— Não confiou em mim, nem quando jurei protegê-la. Oh, não, precisava resolver tudo à sua
maneira e fazer-me passar por tolo! Mal saiu de minha cama, e já estava se comportando como uma
meretriz das docas, agitando as saias para o porco francês! — ele vociferou, transido de raiva.
— Está enganado! Redondamente enganado! ― Hanna objetou, cada vez mais angustiada.
Sam desviou os olhos do mar e encarou-a cheio de ira.
— Então por que fez isso, Hanna?
Naquele momento, uma vaga mais alta fez o brigue oscilar, lavou o convés com água salgada e
encharcou Hanna dos pés à cabeça.
As lágrimas dela misturaram-se à água do mar e passaram despercebidas. Tremendo, gritou:
— Eu o fiz por sua causa, Sam Colburn! Para que sua preciosa Truelove não caísse nas mãos dos
franceses... para que não morresse em um confronto que não poderia vencer... Que Deus me ajude, Sam,
mas se agi assim, foi porque o amo!
Hanna então perscrutou-lhe o rosto. Ele continuou impassível. Seu olhar pareceu-lhe ainda mais
desaprovador. Sam não acreditava nela.
Nesse momento, Lawson postou-se ao lado de Hanna e segurou-lhe o braço.
— Venha comigo, senhorita. Não é aconselhável que fique no convés com esta tempestade.
Ela viu que Sam meneava a cabeça para o amigo, ignorando-a. Derrotada, deixou-se conduzir
pelo marinheiro.
Uma vela solitária irradiava fraca claridade na cabine. Devagar, Hanna despiu o vestido
encharcado e atirou-o ao chão. Apagou a vela e deitou-se no catre. Fechou os olhos, sentiu o cheiro de
Sam no travesseiro. Era quase como se ele ainda estivesse ali.
Mas não estava.
Nos vinte e quatro anos em que Sam passara no mar, nunca presenciara uma tempestade tão
terrível. Uma cortina de água envolvia o brigue, apagava o sol e as estrelas. Só os sinos que anunciavam
a troca de vigia separavam o dia da noite. O vento era incessante, implacável, esculpia as ondas como
montanhas gigantescas cujo topo era coroado de espuma branca, empurrava o navio como se este não
passasse de uma casca de noz.
Ao final do segundo dia, a vela mestra se rompeu. Na manhã seguinte, a vela do traquete se
rasgou e foi levada pelo vento. Sam não teve alternativa senão ordenar à tripulação exaurida que
recolhesse o que restara do velame e enfrentasse a tormenta com os mastros nus. A Truelove fendia as
águas turbulentas penosamente, com seu capitão ao leme. Com a ajuda de outro marujo, ele agarrava o
timão e lutava para conduzir o navio a salvo dos perigosos vales que se abriam entre as vagas.
Sem as estrelas e o sol para se nortear, seu único guia era a bússola. Se houvessem conseguido se

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manter na rota traçada, àquela altura já teriam avistado as primeiras terras inglesas. Desorientado, Sam
não sabia até que ponto haviam se desviado de seu destino.
No quinto dia os marinheiros estavam completamente esgotados. Seu medo era silencioso e
generalizado. A água se infiltrara até as acomodações dos tripulantes. Impossibilitados de fazer fogo, já
não podiam mais preparar alimentos ou bebidas quentes. Mas, apesar de alguns ferimentos e
escoriações, até o momento todos resistiam incólumes. Ninguém havia sido carregado pelas águas. Os
mais pessimistas diziam que se achavam todos a salvo para naufragarem juntos. Agora, quando os
marujos portugueses faziam suas preces, os companheiros ficavam cabisbaixos e, pela primeira vez, se
punham a escutar.
Sam compreendia o medo e as superstições de seus homens. Fazia o máximo para poupá-los.
Não podia se omitir da responsabilidade que lhe pesava sobre os ombros: a tripulação confiava nele para
conduzir o brigue a salvo através da tempestade.
E Sam não arredou pé do leme, resgatando suas últimas energias para resistir ao desespero e ao
cansaço. Não dormia mais que uma hora a cada noite, mal se lembrava de comer. Se aquele suplício era
uma punição, que se cumprisse a vontade divina.
Nas incontáveis horas que passava no timão, ia refletindo sobre o episódio com os franceses.
Repetia para si mesmo que o uniforme dos franceses haviam lhe trazido lembranças amargas da guerra a
que assistira quando era menino. Repetia para si mesmo que sua cólera na verdade era dirigida àqueles
inimigos e não contra Hanna. Perdera o controle e fora injusto para com ela.
O fato é que Hanna tivera presença de espírito e arriscara tudo porque o amava. E ele, em
retribuição, chamara-a de meretriz. A mulher que amava, que admirava e respeitava. Em poucos
minutos, numa explosão de fúria, ele havia destruído o frágil elo que os unia.
A visão do rosto de Hanna vinha assombrá-lo. Recordava o semblante dela fustigado pelo vento e
pela dor. Sam jurara-lhe que não era um canalha como Etienne. E, na noite em que Hanna consentira em
se entregar, acreditara nele. Agora não mais acreditava.
Não havia um só homem a bordo que não soubesse por que o capitão insistia em ficar ao leme
em vez de se recolher a sua cabine. Contudo, nenhum dos tripulantes tinha coragem suficiente para
expressar seus pensamentos em voz alta diante de Sam. Até que, no sexto dia, Lawson foi ter com ele à
mesa. Sam, que bebia uma caneca de café preto, sorriu-lhe debilmente.
Lawson sentou-se defronte dele e relatou-lhe as condições do brigue. Os dois se entreolharam em
silêncio. Navegavam juntos há muito tempo, e sabiam que as chances de encontrarem um porto seguro
eram remotas. A menos que a tormenta cessasse, a Truelove submergiria com o peso da água que se
acumulava em suas entranhas.
— E então? Quando é que vai falar com a dama? — Lawson perguntou-lhe brandamente.
— Não tenho nada a lhe dizer.
— Ora, não se faça de desentendido comigo. Sabe perfeitamente o que a srta. Snow quer ouvir.
Sam levantou-se bruscamente.
— Isso não é da sua conta, Lawson.
O outro meneou a cabeça.
— Não, meu amigo. Em outras circunstâncias, eu lhe daria razão. Mas se não falar com a srta.
Snow agora, talvez nunca mais tenha essa oportunidade.
— Com os diabos, vire essa boca para lá! Nós ainda não naufragamos!
— Então volte para a cabine e diga isso à dama. Ela deve estar aterrorizada. — Lawson
tamborilou os dedos na mesa. — Depois do que a srta. Snow fez por nós, mereceria mais consideração.
Sabe disso tão bem quanto eu, Sam Colburn.
— O que ela não merece sou eu. Depois do que lhe fiz, duvido que me receba, mesmo que eu
me ajoelhe a seus pés.
— Cabe à dama decidir.
— Estátudo acabado com Hanna, Bob. Não vê? Esqueça isso. — Sam replicou com olhar
distante.
Lawson não se deu por vencido:
— Nunca fui um rato de igreja e tampouco sei o que acontece depois que deixamos esta vida.

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Seja lá como for, não gostaria de sofrer o castigo eterno por uma injustiça cometida na terra. No seu
lugar, eu esclareceria a situação com a srta. Snow. Só então poderá afirmar que tudo está acabado.
Sam, no entanto, fez um gesto negativo.

Jeremy e Hanna estavam sentados lado a lado no catre. Apoiavam as costas à parede para não
serem lançados ao chão. Após seis dias de tormenta, já não faziam caso do balanço do navio. A água
invadia a cabine e vinha lamber as pernas da mesa e da cadeira. Pequenas ondas se formavam,
reproduzindo as imensas vagas que agitavam o brigue lá fora.
Os dois sentavam-se de pernas cruzadas, à moda índia, para não molhar os pés. Hanna, com o
Velho Testamento aberto sobre o regaço, prosseguia o aprendizado do garoto. Devido à sua pouca idade,
ele fora dispensado de trabalhar no convés e passara aqueles dias às voltas com os textos sagrados. Já era
capaz de ler a maior parte das palavras. Contente consigo mesmo, Jeremy antecipava a surpresa de Ben
quando este recebesse sua primeira carta.
Hanna, por sua vez, rogava silenciosamente que o menino sobrevivesse para escrever aquela
carta.
Foi quando bateram à porta. Imediatamente os dois se imobilizaram, sobressaltados.
— Quem poderá ser? — Jeremy sussurrou com os olhos fixos na porta.
— Espere-me aqui ― disse-lhe ela, levantando-se. ― Não é preciso que nós dois molhemos os
pés.
Hanna há muito desistira de usar meias e sapatos em virtude da inundação no brigue.
Suspendendo o vestido até os joelhos, cruzou a cabine sem se atrever a olhar para a água suja e gelada.
Quando abriu a porta, deparou com um marinheiro chamado Stimson.
— O sr. Howard mandou-me vir buscá-la, senhorita. Disse que o capitão quer vê-la lá em cima
— o rapaz anunciou, passando a mão nos cabelos ensopados.
O coração de Hanna disparou. Ela retrocedeu até o catre e apanhou o xale às pressas.
— Vai voltar, não vai? ― Jeremy indagou com voz temerosa, apertando a bíblia contra o peito.
— Claro que voltarei. Não saia daqui.
Hanna fitou-o de modo tranquilizador. Mas sua calma era apenas aparente. Não era necessário
que ninguém lhe dissesse que estavam em maus lençóis. E suspeitava que Jeremy também pressentisse a
gravidade da situação. Mas não havia mal em prolongar sua farsa mais um pouco. Assim, ensaiou um
sorriso e estendeu os braços para o garoto. Ele abraçou-a com força. Depois, lembrando que já passara
da idade para tais demonstrações de fraqueza, tentou desvencilhar-se. Hanna beijou-lhe a testa antes que
tivesse tempo de se retrair.
— Não se aflija, Jeremy. O capitão Colburn está lá em cima se desdobrando por nós. Voltarei
assim que falar com ele.
Stimson se fora, e Hanna subiu sozinha a escada para o convés. O vento açoitou-a com uma
ferocidade inesperada. Teve que se segurar nos cabos que haviam sido presos de um mastro a outro.
Chocada, ela observou os estragos que a tempestade fizera no brigue. Boa parte do cordame se
partira. Um segmento da amurada a bombordo fora arrancado. E, lá no alto, os farrapos da vela mestra
tremulavam tristemente. À distância, Hanna discerniu sons vagos que não soube definir.
O brigue estava pesado. As ondas passavam sobre o convés, a despeito dos esforços dos
marinheiros que enchiam barricas e mais barricas, atirando a água de volta ao mar. Era uma luta
desigual. Não havia como negar: a Truelove era um navio com as horas contadas.
Hanna vislumbrou a silhueta de Sam ao leme. Naqueles dias todos, chegara a pensar que jamais o
veria novamente.
— Srta. Snow?
Ela virou-se para ver quem a chamava. Nisso, levou um soco e foi empurrada para o chão. Caída
de costas, deslizou pelo deque escorregadio. Estendeu as mãos desesperadamente, tentando se segurar
em algo. Não encontrou nada. À sua frente, só havia o trecho falhado da amurada.

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CAPíTULO XIII

Sam não quis acreditar no que via: Hanna atravessava o convés, o xale amarelo destacando-se
contra o céu nublado. Ele pensou em mandá-la voltar para a cabine, pensou que mais tarde iria lhe dizer
que a amava e dar-lhe um beijo de adeus. Um derradeiro beijo. Mas, então, tudo aconteceu muito rápido.
Um homem veio por trás de Hanna, que se virou na expectativa. Tarde demais, Sam reconheceu
Howard. O imediato ergueu o braço. Sua mão desceu sobre Hanna. Ela perdeu o equilíbrio, rolou pelo
deque.
No momento seguinte, já estava sendo tragada pelas águas.
— Hanna, não! — Sem refletir, Sam soltou o leme, deixando-o para Lawson, e precipitou-se para
a amurada.
O brigue já começava a se distanciar do ponto onde ela havia caído. Sam tornou a chamá-la,
gritou a plenos pulmões, esquadrinhou a superfície revolta do mar. E nem sinal de Hanna.
Tarde demais.
Lawson perdeu o controle do leme e a Truelove adernou bruscamente, como um palhaço bêbado
que cambaleia na madrugada. Nisso, Sam avistou o xale de Hanna. Num ímpeto desatinado, passou por
cima da amurada e mergulhou na turbulência das águas.
Mesmo para um bom nadador como ele, aquele ato temerário poderia representar a morte. Por
duas vezes, as vagas arrastaram-no para longe. E, de súbito, Sam divisou o xale amarelo à sua frente.
Nadou freneticamente até conseguir agarrar uma das pontas do xale e puxá-lo para si. O corpo de Hanna
emergiu.
Sam passou o braço por seu peito e tentou manter seus ombros acima da água. Contudo, a cabeça
dela descaía para os lados e os braços continuavam inertes.
— Que diabo! Não vou deixá-la ir embora assim, meu anjo... — ele murmurou, engasgando,
enquanto apertava-lhe o peito na tentativa de fazê-la voltar a respirar.
Não sabia quanta água Hanna engolira ou quanto tempo ficara submersa, mas se recusava a crer
que estava morta, reduzida a um mero corpo desarticulado em seus braços.
— Vamos, mulher, respire!
Outra vaga se elevou, empurrando-os para frente. Sam segurou Hanna firmemente. A Truelove já
desaparecera na tormenta, e ele procurou não pensar no desespero da tripulação. De qualquer forma,
seus homens já não poderiam salvá-los.
Sam conseguiu livrar-se das botas, mas, ainda assim, isso de pouco lhe adiantou naquelas circunstâncias.
Mais adiante, viu uma barrica, depois um caixote destroçado. Nadou em sua direção. Alcançou-o e,
desajeitadamente, apoiou-se nele. Logrou equilibrar-se sobre a madeira e puxou Hanna.
Arquejante, ele se deu conta de sua exaustão. Mal comera e dormira durante aquela semana. Suas
energias estavam se esgotando. Olhou para Hanna, que jazia sobre a tábua. Afastou-lhe os cabelos do
rosto com suavidade.
— Perdoe-me, meu anjo. — sussurrou, tateando-lhe o pescoço para sentir sua débil pulsação. —
A desgraça abateu-se sobre nós, mas eu ainda a amo...
Sam cobriu os lábios dela com os seus e tentou fazê-la respirar. Sem desanimar, forçou o ar para
dentro de seus pulmões. Hanna continuou desacordada, com o rosto lívido e os lábios exangues.
— Vamos, mulher, reaja. É tudo o que me restou nesta vida...
De repente, os olhos dela se abriram. Começou a tossir de modo convulsivo. Sam segurou-a pela
cintura, enquanto Hanna regurgitava toda a água que havia ingerido. Por fim, pôde respirar livremente,
inspirando de forma entrecortada, quase soluçando.
— Ficará bem, meu anjo. Ficará bem agora. — Sam disse-lhe ao ouvido.
— Estou... com frio. ― ela gaguejou.
— Eu também, meu amor. Mas não há nada que possa fazer.
Sam reacomodou-a sobre a tábua, de maneira que ficasse mais perto dele e compartilhasse um
pouco de seu calor. Hanna livrara-se do afogamento, porém, o risco de que sofresse hipotermia ainda a
ameaçava. Por quanto tempo os dois sobreviveriam expostos ao frio e à chuva, sem agasalho, comida ou
bebida, Sam não saberia dizer.

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Outra onda levantou-os em sua crista. Ele tornou a avistar a barrica flutuando. E, num átimo,
percebeu que não estavam à deriva, mas, sim, estavam sendo empurrados para frente.
Agora se recordava do som indistinto que captara a bordo do navio. Ondas rebentando. Isso só
podia significar uma coisa: terra próxima. Com um pouco de sorte, seria solo espanhol. Ou português, se
a correnteza os houvesse levado mais para o sul. Tanto Espanha quanto Portugal tinham fama de acolher
bem os náufragos. Hanna e ele então seguiriam para Londres dentro de poucos dias.
Se a correnteza não mudasse e tábua em que se apoiavam resistisse, se não surgissem rochedos e
a maré não recuasse, então talvez tivessem uma chance de sobreviver...
— Estamos chegando, Hanna. — prometeu-lhe, sem muita convicção. — Estamos quase
chegando.
Ela sentia-se por demais atordoada para perguntar aonde estavam chegando. Sam sabia o que
fazia. Hanna escondeu o rosto no peito largo e, por baixo da água, entrelaçou suas pernas às dele. Sorriu
debilmente.
— Eu também ainda o amo, Sam.
Mas suas palavras foram abafadas pelo rugido das ondas.
Quando Hanna despertou, o sol já começava a ascender no céu. Viu-se estendida em um tapete de areia
úmida, que ainda conservava a frialdade da noite anterior. Afastou o xale que lhe servia de coberta e,
sentindo o corpo inteiro protestar, ficou de joelhos. Espanou a areia que se aferrava a suas faces e olhou
em torno de si. A despeito do sol que brilhava no céu sem nuvens, o mar continuava agitado.
— Sam?
A seu lado, na areia, ficara a marca do corpo dele e uma sucessão de pegadas. A praia larga e
plana estava pontilhada de destroços: aqui e ali, avistavam-se garrafas, gravetos, tábuas carcomidas,
barricas, vergas quebradas e pranchas estraçalhadas.
Hanna rememorou a noite da véspera. Sam e ela haviam sido carregados até a praia e, sob o
manto da escuridão, cambalearam para fora da água, tombando naquele abençoado pedaço de chão.
Ela ergueu-se com dificuldade e se encaminhou para a beira d'água. Embora tivesse dormido,
estava exausta.
— Sam?
Seu chamado viajou na paisagem deserta, sem resposta. A praia terminava abruptamente em um
penhasco e, lá, Hanna não conseguia enxergar nada. Nem arbustos nem relva ou trilhas. A terra não lhe
remetia a nenhuma descrição da Inglaterra. Talvez estivessem na França.
Com as mãos em concha, ela tornou a gritar:
— Sam Colburn!
Foi então que o viu, sentado perto de um amontoado de rochas. Chamou-o de novo, mas ele não
se virou. As pernas flexionadas e os braços descansando sobre os joelhos, Sam mirava o horizonte.
Hanna aproximou-se. Ofegante, sentou-se a seu lado. Bastou-lhe olhá-lo para perceber sua
expressão desolada.
— Estão todos mortos, Hanna. Bob Lawson, Israel Martin, Daniel Evans e todos os outros.
Mortos. Até mesmo Jeremy e sua criada — disse sem desviar os olhos do mar.
— Como pode ter certeza disso? Nós sobrevivemos, não?
— Sabia que naveguei dezesseis anos com Lawson? Ele renunciou a ser seu próprio mestre para
me seguir. Dezesseis anos! Foi mais tempo do que passei com meu próprio pai. — Sam falou, como se
pensasse em voz alta.
— A Truelove suportou a tempestade por uma semana. Os ventos começaram a amainar ainda
ontem, e nada prova que seu brigue tenha afundado. — Hanna argumentou.
— Provas? Deseja mais provas que esses destroços espalhados pela praia?
Sam apanhou uma vara partida, cuja extremidade exibia listras verdes.
— Isto é... era um remo dianteiro de estibordo. A pequena marca que vê bem aqui indica o ponto
em que o tolete se afrouxou, desgastando a madeira. Foi Evans quem o consertou antes de partirmos de
Salem, em junho. Jesus, Evans era casado e pai de três meninas. Agora suas filhas jamais tornarão a vê-
lo...
Ele emudeceu. Atirou à água o fragmento do remo. Seu pesar era indescritível. Hanna sentiu-se

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impotente para aliviar sua dor.
— Talvez eles nos encontrem em breve e possamos deixar este lugar juntos — ponderou sem
convicção.
— Vã ilusão. Os botes se perderam já na primeira noite da tempestade. A Truelove jaz sepultada
no oceano, e com ela seus tripulantes. Os corpos não chegaram até aqui por causa dos peixes, que se
adiantaram e os devoraram. Agora estão todos mortos porque confiaram em mim, seu capitão!
Hanna fungou enquanto as lágrimas banhavam-lhe o rosto. O horror que Sam lhe descrevia era
grande demais para que pudesse suportá-lo. Recusava-se a acreditar que os tubarões haviam se
banqueteado com a carne de Letty, Jeremy e dos outros.
— Pois eu também lhe depositei confiança. E estou viva graças a sua ajuda.
— Ah, sim, e aposto que me agradecerá por isso até o fim de seus dias!
Sam fitou-a longamente, os olhos fundos e injetados. A amargura o torturava, e sentia tamanho
vazio, que não sabia como sobrevivera até ali. Perdera seus amigos e tripulantes. Perdera seu navio, que
não era simplesmente um ganha-pão, mas também a única coisa que o legitimava como marinheiro e
como homem. Nada mais lhe restava. E, não obstante, Hanna insistia em olhá-lo com uma espécie de
devoção da qual não era digno.
— Veja só para onde eu a trouxe! Tem alguma noção de onde estamos, Hanna?
Ela hesitou, tomada de incerteza.
— Não. França? ― arriscou.
— Oh, claro. E aquele é o palácio de Maria Antonieta, lá no alto dos rochedos! — Sam replicou
com amargo sarcasmo. Doía-lhe ver o otimismo dela. Hanna recusava-se a aceitar a perda da Truelove,
assim como se negava a acreditar que o pai estivesse morto. — Estamos na África, madame, na mesma
costa miserável que desgraçou todos os que vieram antes de nós. Marrocos, a costa bárbara. Areia e
rochas. Não há por aqui água ou algum maldito cristão que nos possa oferecer sua caridade. Os navios
que porventura passarem por aqui não se aventurarão a se aproximar, com temor de que o mesmo
destino lhes suceda. Nunca mais encontrará seu pai, do mesmo modo como nunca mais a encontrarão.
Eu teria feito melhor se a deixasse submergir nas águas. Aí, pelo menos, não teria que suportar isto.
Hanna afastou os cabelos cobertos de sal do rosto.
— O que quer que eu diga, Sam? Que lamento que tenha me salvado? Que preferiria morrer com
os outros? Coube-lhe, e não a mim, tomar essa decisão.
Ele nada disse e tampouco a olhou. Continuou a fitar o mar. Hanna tinha razão. Decidira salvá-la
e, por mais egoísta que aquela atitude lhe parecesse, tornaria a salvá-la se fosse preciso. Mais um motivo
para que ela o desprezasse e deixasse de amá-lo.
Para Hanna, porém, seu silêncio implicava que preferiria ter morrido no brigue a viver com ela.
Sentiu-se rejeitada, ferida no fundo de sua alma. Encolheu-se, dobrando as pernas. Descansou o rosto
nos joelhos e fechou os olhos. Sam proferira uma grande verdade: não havia restado nada para ela
naquela vida.
— Maldito seja, Sam Colburn! — desabafou intempestivamente. Com os olhos inundados de
lágrimas, pôs-se de pé. — Que se danem suas decisões e sua confiança! Por que se deu ao trabalho de
salvar minha vida se me odeia tanto?
Ela girou sobre os calcanhares e desatou a correr na areia.
— Hanna!
Sam alcançou-a e segurou-lhe o braço.
— Hanna, por favor...
O coração dela falhou uma batida. Sam era um capitão. E capitães nunca diziam “por favor”.
Fitou-o por um longo instante, notando como seus cílios eram espessos e negros, notando como a pele
bronzeada mascarava algumas sardas em suas faces...
Ele afrouxou a pressão em seu braço. Hanna sabia que, se lhe pedisse, Sam a deixaria ir.
— Por favor, Hanna, eu...
Sam então se calou, procurando em seu olhar a resposta para uma pergunta que ele não ousava
fazer. Agora tomava consciência de que poderia perdê-la de vários modos, e não somente pelas mãos do
mar.

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Hanna esperou. Estava desconcertada com o medo que viu nos olhos de Sam. Ela, sim, tinha
motivos para ter medo. Sam nunca temeria a nada.
Os dedos dele deslizaram por seu braço, pelas veias azuladas que carregavam a matéria da vida
para seu coração. Graças ao amor que ele lhe devotava, Hanna estava viva. Os olhos verdes ainda se
toldavam com lágrimas, os cabelos loiros estavam desgrenhados e seu vestido transformara-se em
trapos. Mas Sam achou-a mais linda do que nunca. Porque a amava e ela estava viva.
— Nunca mais diga isso, Hanna. Eu a amo, ouviu bem? Eu a amo! — quase gritou, a voz rouca
de emoção. Uma emoção que não conseguia definir ao certo.
Antes que ela tivesse tempo de replicar, curvou-se e beijou-a com toda a crueza de sua paixão.
Hanna abraçou-o febrilmente, passou as mãos por baixo de sua camisa para cingir-lhe a cintura.
Havia urgência e desespero em suas carícias. Beijavam-se quase com selvageria, tocavam-se com
mãos trémulas. O amor parecia ser a única maneira de reafirmar a vida que miraculosamente
compartilhavam. O amor os uniria para sempre, não importando quanto tempo lhes restava naquele
mundo.
Desenfreados, rolaram na areia, despiram os farrapos que os cobriam. A espuma branca das
ondas dançava ao redor dos dois, avançava e recuava de volta ao mar. O fogo que ardia em suas veias
não lhes deu tempo para preliminares ou demonstrações de ternura. Quando Sam a possuiu, Hanna
gemeu alto e circundou-lhe a cintura com as pernas, trazendo-o para mais perto. Arranhou-lhe os ombros
enquanto ele se movia com crescente ímpeto, com crescente entrega. E chegou o momento em que a
razão os abandonou por completo, o momento em que seu prazer se alçara ao limite máximo. E o clímax
os colheu como um turbilhão, deixando-os prostrados na areia.
Depois ficaram deitados em silêncio, sem coragem de macular com palavras a paz que sua união
lhes havia proporcionado. Com as pálpebras semicerradas, Hanna correu a ponta dos dedos pelas costas
musculosas de Sam. Acompanhou a linha de seu maxilar, afagou-lhe os cabelos ternamente. Sob o céu
azul, sentiu-se mais ligada a ele do que jamais se ligara a qualquer pessoa. A força de seu amor por
aquele homem era algo indizível.
— O que faremos, Sam? ― perguntou por fim.
— Quisera eu saber.
Ele rolou para o lado e apoiou-se no cotovelo. Perdido no prazer que haviam experimentado
juntos, chegara até a olvidar a lamentável situação em que se encontravam.
— Eu conseguiria pensar melhor se pudesse beber um pouco de água ― acrescentou com
desgosto, pondo-se a trançar o cabelo para que as mechas não mais lhe caíssem sobre o rosto.
À menção de água, Hanna percebeu pela primeira vez como estava sedenta. Com um suspiro,
sentou-se e colocou o vestido.
— Talvez haja algum veio d'água atrás daquelas rochas — sugeriu.
— Não, não. Já vasculhei toda a área. Esta é a terra mais árida em que jamais pisei. Não se vêem
gaivotas ou outros pássaros em parte alguma. Não há vegetação nem lagoas. Só areia, rochas e os peixes
que eu tiver a sorte de pescar. Sam arrematou seu pessimismo com um sorriso desalentado.
— Talvez eu acabe encontrando uma garrafa do vinho de seu pai e possamos beber à nossa
saúde.
Hanna pousou a mão em seu ombro. Sabia como era duro para ele referir-se à Truelove como um
navio naufragado.
— Sinto muito, Sam. Sinto muito por tudo isto.
Ele cobriu-lhe a mão com a sua. Por mais terrível que fosse sua perda, o simples fato de ter
Hanna consigo já lhe aliviava o coração. Inclinou-se para ela e beijou-lhe os lábios com fervor,
saboreando toda a sua doçura.
— Jesus, o sol está forte e a tarde ainda nem chegou! – exclamou.
Sam vestiu-se com movimentos vagarosos e enxugou a testa com a manga da camisa.
Esquadrinhou o céu. Depois olhou para o mar. A maré baixara, e a areia começava a se aquecer.
Hanna tentou pentear os cabelos com o auxílio dos dedos. Cabisbaixa, fitava a areia a seus pés. A
paixão ainda pulsava dentro de si. Sabia que o mesmo acontecia com Sam. Se trocassem mais um beijo,
todo o seu desejo viria à tona novamente.

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— Deixe-me ajudá-la. — ele ofereceu-se, ajoelhando-se atrás de Hanna e começando a
desembaraçar-lhe a cabeleira.
Ela cerrou as pálpebras e deixou a cabeça pender para trás. Sam passou a mão por baixo dos
cabelos loiros e tateou a corrente de ouro que Hanna sempre usava.
— Não acredito que não perdeu sua corrente.
Ele sopesou o pingente de safira. Pareceu retroceder no tempo. O brilho da pedra levou-o de
volta ao jardim dos Browns, onde a conhecera.
— Eu também não acredito. — Hanna limpou a areia que aderia à safira. — Era de minha mãe.
Talvez ela tenha me protegido ontem à noite.
— Pois espero que continue zelando por você. Nós vamos precisar de toda a ajuda possível para
nos safar desta enrascada.
Sam terminou de trançar seus cabelos. Separou uma mecha fina e amarrou-a na ponta da trança, à
guisa de fita. Absorto, já planejava construir um abrigo para ambos e tentava descobrir o melhor meio de
usar o xale de Hanna para atrair a atenção de algum navio que passasse por ali.
Mas, antes de tudo, era preciso encontrar água. Enquanto Hanna estivera dormindo, vistoriara
todas as garrafas e barricas que haviam chegado à praia. Duas delas ainda estavam cheias. A julgar por
seu rótulo, continham vinho ou conhaque. Não era o ideal, porém, se àquela altura não estivessem
misturados a água salgada, Sam já se daria por satisfeito.
Ele debruçou-se sobre Hanna e beijou-lhe a ponta do nariz.
— Agora vá para a sombra dos rochedos, do contrário ficará com a pele cheia de bolhas.
Enquanto isso, vou ver o que a maré trouxe para nós.
— Não, Sam. Posso ajudá-lo a procurar água — ela obstinou-se, levantando-se depressa.
— Nada disso. Já sofreu o bastante e, ademais, não está habituada a esse sol forte. Lembre-se de
que não estamos em Rhode Island.
— Aqui é tão quente quanto a Martinica. Não pense que sou uma boneca de porcelana que deve
ser mantida em uma redoma de vidro!
Ele franziu o cenho. Ao vê-la com o vestido em frangalhos à altura das coxas e os cabelos presos
naquela patética trança, achou que ela se parecia exatamente com uma frágil boneca de porcelana.
— A menos que me amarre às rochas, não pode me impedir de ajudá-lo ― Hanna insistiu
teimosamente, e ergueu o queixo com determinação.
— Como me ajudou no episódio da fragata francesa?
— Oh, Sam, não vamos mais falar disso, está bem? Se os franceses houvessem se apoderado da
Truelove, o que seria de nós agora?
— O mais provável é que tenham naufragado também. Nunca conheci um francês que se
aguentasse no vento forte. — A expressão dele suavizou-se e sorriu com ar travesso. — Mas tem razão.
Isso já passou. Só lhe peço que me avise quando decidir me ajudar de novo. E outra coisa...
Ele não completou a frase. Rasgou o vestido de Hanna, deixando-a apenas Com a camisa de
baixo. Ela olhou-o espantada e quis protestar, mas Sam calou-a com um gesto. Amarrou o vestido à
cabeça dela, como um turbante, e apreciou o resultado com olhar crítico.
— Se pretende me acompanhar, deve se prevenir. Não quero que fique com insolação. E trate de
buscar seu xale. Sentirá calor com ele, mas isso é preferível a queimaduras na nuca e nos ombros.
Hanna ajeitou o turbante improvisado. Riu.
— Será que vamos lançar uma nova moda, monsieur le capitaine!
Sam sorriu-lhe de volta.
— Deixe de lado o francês, Hanna. Já me dá muito trabalho falando apenas o inglês.
Sam conseguiu romper a tampa da última barrica com o auxílio de uma pedra. Um líquido
vermelho e malcheiroso espirrou em sua mão.
Hanna torceu o nariz. Ele praguejou baixinho.
— Não adianta, mulher. Essa era nossa última esperança. O conteúdo das barricas não presta para
beber. Mas talvez não haja outra saída.
— Não creio que eu conseguiria tomar sequer um gole desse vinho estragado ― Hanna objetou,
meneando a cabeça.

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— Vamos rezar para não termos que chegar a tal extremo. Talvez ainda consigamos encontrar
outra barrica antes de a maré subir.
A busca prosseguiu. O desânimo abateu-se sobre eles, enquanto percorriam a praia a esmo.
Acharam uma caixa de biscoitos ainda comestíveis. Mas o problema da água permanecia sem solução.
Até que, num dado momento, Hanna tropeçou em algo. Olhou para os próprios pés e viu uma
circunferência de madeira enterrada na areia. Caiu de joelhos e pôs-se a escavar com movimentos
ansiosos. Foi aí que viu o selo da marinha de Sua Majestade.
— Sam, depressa! Encontrei uma barrica!
Na verdade, não se tratava de uma barrica qualquer. O achado revelou-se uma pipa com cento e
quarenta galões de cerveja inglesa intacta.
Sam fez uma fenda na pipa. Os dois beberam parcimoniosamente e brindaram a Sua Majestade, o
rei Jorge III.
Naquela noite, eles estiraram-se sob as estrelas. Ficaram admirando o firmamento, perdidos em
divagações. Hanna deitou a cabeça no ombro de Sam e perguntou:
— Será que nenhum deles se salvou?
— Duvido muito ― Sam murmurou.
— O destino é tão injusto!
— A vida é essencialmente injusta, Hanna. Do contrário, estaríamos agora deitados em um
colchão de penas, no melhor hotel de Londres. — Ele deu um suspiro. — Também não consigo esquecê-
los. Minha única esperança é que tenham morrido depressa, sem muita agonia, e que estejam em um
lugar melhor agora. Todos, exceto Howard, claro. Que o diabo o carregue pelo que lhe fez.
— Como assim? Lembro-me de que me abordou no convés, mas asseguro-lhe que não...
— Howard a empurrou propositalmente. Aposto que também foi ele que a atirou pelas escadas
do porão.
Hanna soergueu-se e apoiou-se nos cotovelos.
— Por que, Sam? Eu mal o conhecia!
— Não sei. E é provável que nunca venha a saber.
Ele afagou-lhe a face e tentou sorrir.
— Sam... Não acredita que meu pai ainda esteja vivo, não é? — Sem dar-lhe chance de
responder, Hanna prosseguiu: — Sei que me considera uma tola por ir ao encalço de um homem morto.
Mas nunca tentou me deter. E sua atitude só me faz amá-lo ainda mais.
Sam ficou sem jeito. Não a merecia mais que o velho patife do capitão Snow.
— Olhe para si mesma, srta. Snow. — desconversou. — O que seu pai diria se a visse assim,
com manchas de cerveja na camisa e deitada ao lado de um marinheiro náufrago? Algum dia imaginou
que fosse se rebaixar tanto?
Um sorriso iluminou o semblante dela.
— Não, Sam. Eu nunca imaginei que fosse me elevar tanto. — sussurrou, beijando-o com
paixão.

CAPÍTULO XIV

Na manhã seguinte, os dois sentaram-se à sombra de um abrigo improvisado com tábuas e


gravetos. Sam começou a traçar um mapa da costa na areia.
— A julgar por esses rochedos, aposto que estamos ao sul de Tânger, nos arredores de Mogador.
― explicou ele. ― A distância exata eu não saberia precisar. Quando era menino, passei certa vez por
Cabo Verde. Lembro que o capitão era muito cauteloso e em nenhum momento nos acercamos desta
costa... Mas, então, o velho mestre Norwich era um homem sábio. Muito mais sábio que qualquer
capitão de Salem.
Sam apressou-se em prosseguir a explicação antes que Hanna pudesse discordar e, assim, aliviar-
lhe a consciência. Ansiando por uma compreensão de que se julgava pouco merecedor, intencionalmente
elogiara o outro capitão para que ela saísse em sua defesa. E depois, perversamente, punira-se a si
mesmo ao lhe negar uma chance de falar.

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Hanna fingiu concentrar-se no mapa, como se não houvesse percebido a manobra de Sam. Na
véspera, os dois tinham sido dominados por uma estranha euforia, partilhando a simples alegria de estar
vivos. Naquela manhã, porém, ele voltara a ficar apreensivo.
— O que acha de construirmos um bote ou uma jangada para viajar pela água? Afinal, não
consigo imaginar um marinheiro caminhando quando pode navegar — ela propôs.
— Está se esquecendo de que sou um marinheiro destituído de tudo. — Sam disse de modo
cortante, pensando que Hanna zombava dele.
— O que não esqueci é que não tem culpa de nosso infortúnio. — Hanna revidou no mesmo tom.
— Não se esqueça disso também. Sinto muito se minha pergunta lhe soa descabida. De qualquer forma,
eu apreciaria se me desse uma resposta civilizada.
Sam franziu o cenho, surpreso com a réplica dela. Presas numa praia deserta, muitas mulheres
teriam caído em pranto e lamentado sua sina. Já Hanna parecia se fortalecer à medida que os empecilhos
surgiam.
Ao vê-la com os olhos brilhando desafiadores e as faces rubras de indignação, Sam teve que
reavaliar o juízo que fazia dela. O ar frágil de Hanna sempre o cativara. Agora, para seu espanto,
descobria que também gostava dessa outra faceta dela. Poucas pessoas tinham coragem de contradizê-lo
tão abertamente.
A fisionomia dele se abrandou ao estudá-la. Com o rosto tisnado de sol, Hanna parecia-lhe muito
resoluta e ao mesmo tempo muito jovem. Talvez tivesse esse espírito combativo antes de Etienne de
Gramont desposá-la e transformá-la numa criatura apática e amargurada.
Pelo que constatara, o fantasma do marido não havia perturbado Hanna desde o naufrágio. Fora o
único benefício trazido pela perda da Truelove... Não, ele corrigiu-se. Havia algo mais: confessara seu
amor a Hanna e, surpreendentemente, ela declarara que também o amava.
Sam afagou-lhe o rosto com infinita ternura.
— Tem razão, meu amor. Merece uma resposta. — concedeu. Ela fitou-o de modo inquisitivo.
Aquela admissão era mais do que poderia esperar de Sam. Porém, teve tato suficiente para não fazer
qualquer comentário.
— Além dessas rochas, existe uma corrente profunda que se move na direção contrária à da
corrente de superfície. Ela é traiçoeira e nos arrastaria para o fundo antes mesmo de iniciarmos a
jornada. Já naufraguei uma vez e não tenciono repetir a experiência. Foi um milagre termos chegado a
salvo aqui e é melhor não abusarmos da sorte.
Hanna assentiu. Acompanhou o desenho do mapa com a ponta do indicador.
— Mogador é uma cidade grande? ― quis saber.
— Isso não é relevante. Mogador dispõe de um bom porto. De lá poderemos partir por mar. E há
um cônsul também... um sujeito de Baltimore, se não me engano, que poderá nos providenciar as
passagens.
— Não tem nenhuma ideia da distância até lá?
— Não. Mas aposto que, além desses rochedos, deve existir uma aldeia ou uma cidade, um lugar
com cavalos e água fresca. Só precisamos achar um meio de escalá-los.
Ela levantou o rosto e contemplou o penhasco que se avultava no canto da praia. Devia ter
aproximadamente seis metros de altura, e sua base apresentava falhas onde o mar a havia corroído.
Aquela falésia seguramente não podia ser comparada ao muro da casa dos Browns...
A perspectiva de escalá-la, com pontos de apoio tão precários, fez o sangue de Hanna gelar. Mas
iria até as últimas consequências por Sam. Se ele acreditava que conseguiria, então haveria de se
empenhar ao máximo.
Antes que fraquejasse, pôs-se de pé e espanou a areia dos joelhos.
— Partamos sem demora, Sam.
— Espere, mulher. Não é tão simples quanto imagina. — Ele segurou-lhe a mão e fez com que
tornasse a se sentar. — Não sei quantos dias de jornada teremos pela frente. Só poderemos levar
provisões limitadas e rezar para que sejam suficientes.
Sam olhou para os pés descalços dela. Balançou a cabeça.
— Quisera que tivesse um par de sapatos apropriados.

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— Que está a dizer? Tampouco tem sapatos. — Hanna dobrou as pernas e escondeu os pés. De
repente, era-lhe muito importante provar sua força de vontade a ele. — Mas prometo-lhe que não me
queixarei de nada e não o estorvarei.
— Ficaremos aqui mais dois dias. Deve descansar e beber quanta cerveja puder. — Sam
declarou, categórico.
Não compreendia por que ela tinha tanta pressa em partir. Chegou mesmo a considerar a idéia de
explicar-lhe todas as dificuldades que ainda enfrentariam. Não que isso fizesse alguma diferença: se
permanecessem ali, era quase certo que acabariam morrendo de fome ou desidratação.
Hanna olhou-o com desconfiança:
— E o que fará nesse meio tempo?
— Oh, com os diabos! Por que é tão implicante? ― Ele passou o braço por sua cintura e atraiu-a
para si. — Ficaremos aqui mais um par de dias para que eu possa descansar. Ponto final.
Prepararam-se para partir numa aurora cinzenta, antes que o sol surgisse no horizonte.
Transportavam um pequeno estoque de garrafas que haviam recolhido na praia e enchido de cerveja,
tampando-as com trapos do vestido de Hanna. Ela insistira em levar uma parte das provisões, com o
argumento de que, assim, disporiam de mais víveres. Terminara por persuadir Sam e, embora lhe
pesassem as quatro garrafas que carregava presas numa corda improvisada, sentia-se orgulhosa por sua
contribuição.
Ao final do dia, porém, a corda havia lhe ferido os ombros. Inutilmente, procurava amortecer os
ombros com a ajuda do xale. Parecia-lhe que a caminhada pelas areias escaldantes já durava uma
eternidade. A cada curva da praia, os dois olhavam cheios de expectativa para o penhasco. Mas ainda
não tinham encontrado uma passagem através da parede de rocha.
Quando Sam decidiu parar, Hanna já cambaleava de cansaço. Deixou-se cair na areia e,
reprimindo um gemido, depôs as garrafas no solo. Sam aconchegou-a nos braços, e ela fechou os olhos,
incapaz de se mover. Para acomodá-la melhor, ele tirou-lhe o xale. Foi aí que viu os feios vergões em
seus ombros.
— Por Deus, Hanna! Por que não me disse que a corda a havia ferido?
— Eu lhe jurei que não me queixaria. — ela encolheu-se na defensiva. ― Não está doendo
muito. Pela manhã já estarei bem.
— Não creio. Com este calor, um arranhão pode se tornar uma inflamação grave em questão de
horas.
Sem vacilar, Sam apanhou uma das garrafas e despejou um pouco da preciosa cerveja nos
ombros de Hanna. Quando ela mordeu o lábio para não gritar, a admiração dele só fez crescer. Ao
terminar, beijou-lhe os lábios de leve, como que a pedir desculpas. Hanna abriu os olhos e sorriu-lhe.
Sam notou que tocava o pingente de safira num gesto inconsciente. Perguntou-se cinicamente por
que a mãe de Hanna não a protegia agora. Logo a seguir, pensou com amargura que também ele não
estava sendo de grande serventia naquele particular.
No terceiro dia, finalmente encontraram a brecha que tanto haviam procurado no rochedo. O que
de longe parecera-lhes uma parede lisa, na verdade revelava-se uma falésia com uma trilha irregular de
reentrâncias que iam ziguezagueando até o topo do penhasco.
— Ainda quer subir aí, mulher? ― Sam indagou-lhe ao pé do rochedo.
Ele levava nos ombros as últimas duas garrafas de cerveja. No bolso do casaco, guardara o que
havia restado dos biscoitos encontrados na praia.
Hanna ergueu o rosto para o topo do rochedo. À distância, tivera a impressão de que a escalada
não seria tão difícil, pois as reentrâncias pareciam formar degraus. Agora que as via de perto, percebia
que se espalhavam longe umas das outras. E sua determinação arrefeceu.
Ela então olhou para Sam. Os olhos castanhos brilhavam com intensidade sob as sobrancelhas
grossas. Uma barba escura cobria-lhe o semblante, mas não escondia as faces magras. À noite, quando
Hanna se aninhava em seus braços, sentia suas costelas sob os músculos rijos. Durante aquela jornada,
não tinham mais achado nenhuma barrica de bebida ou caixote de comida. Ela mesma acabara por se
habituar à fome e à sede.
Os dois estavam chegando ao termo de suas provações, e não queria perder Sam daquela forma.

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Sem uma palavra, Hanna deu-lhe a mão. Juntos, iniciaram a árdua escalada.
— Não olhe para baixo! — Sam instruiu, segurando-a pelo braço.
Tinham se sentado em um ponto onde a rocha recuava. Hanna endireitou-se depressa, mas não
tão depressa que não pudesse ver a faixa de areia lá embaixo. Não se dera conta de quão alto haviam
chegado, e teve um princípio de vertigem.
Sam não se impressionava com alturas; afinal, passara vinte anos galgando mastros e
dependurando-se em cabos. Mas logo notou o pavor de Hanna, que se retesava pálida como um
fantasma. Ele pressionou-a de modo protetor contra a parede rochosa e sentiu-a estremecer.
— Não imaginei que tivéssemos alcançado tal altura. — Hanna comentou com uma risada
nervosa. — É muito fácil cair daqui, não?
— É tão fácil cair de uma altura de um metro quanto de dez. Ou tão difícil quanto, se preferir ser
otimista. Mas não se inquiete. Está fazendo progressos. Ainda vou promovê-la a vigia da gávea um dia
— Sam gracejou, tentando aliviar-lhe o mal-estar.
Hanna aceitou o elogio e a garrafa que ele lhe ofereceu. O ar estava quente e parado. À sua frente
estendia-se o mar que cintilava sob o sol tórrido, ela sentia os pés doloridos e a garganta seca. Mas
bebeu apenas um pouco de cerveja, o suficiente para molhar a boca, e devolveu a garrafa a Sam. Aí
recostou a cabeça na pedra e fechou os olhos.
Seus dedos resvalaram em algo pequeno e seco. Hanna descerrou as pálpebras e examinou seu
achado. Por pouco não perdeu o equilíbrio.
Sam amparou-a prontamente.
— Calma, mulher. Não comece a...
— Não, Sam, olhe! Olhe! — Exultante, ela lhe mostrou um gafanhoto seco na palma da mão. —
Este inseto deve ter vindo de algum lugar com árvores e frutos e água... Oh, Sam, estamos quase
chegando lá!
Hanna sonhou com as aldeias erigidas ao redor de oásis no deserto, cuja descrição lera tantas
vezes na Bíblia. Sonhou com poços e fontes de água cristalina, onde poderiam matar a sede e se banhar.
Imaginou mulheres e homens exóticos, vestindo longas túnicas com o rosto velado, que lhes ofereceriam
laranjas e tâmaras e depois lhes emprestariam cavalos para a jornada até a casa do cônsul americano.
Sam e ela estavam muito próximos da realização daquele sonho. Muito próximos...
O sol era uma bola vermelha pairando no horizonte quando atingiram a última etapa da escalada.
Hanna, extenuada, deu impulso e terminou de subir a parede íngreme. Rastejando para o cume, buscou
ansiosamente a aldeia que os acolheria.
Porém, não havia nada.
Ela olhou em todas as direções. Não viu mais que um vasto tapete de areia branca e imaculada,
tingida com as cores do entardecer. Não havia povoado ou gente.
E nem água.
Nem comida.
Nem esperança.
Sam abraçou-a e praguejou com uma amargura que ela compreendeu muito bem. Mas
conservou-se calada. Não lhe restava nada a dizer.
Horas mais tarde, ainda estavam sentados ali, de mãos dadas, fitando a imensidão vazia que era
seu destino.
Ela adormeceu. E de repente despertou. Sam ainda a tinha aninhada nos braços, com uma das
pernas descansando sobre a sua. Hanna sentiu seu hálito morno na nuca e sentiu um arrepio.
O céu, de um azul profundo, ostentava uma textura aveludada. Em torno do quarto crescente,
milhares de estrelas faiscavam. Desorientada, Hanna aconchegou-se a Sam, enquanto seu olhar vagava
pelo deserto.
Longe, muito além das colinas de areia, avistou uma centelha de luz: o inconfundível brilho de
uma tocha varando a noite. Ela sacudiu o ombro de Sam, que acordou no mesmo instante. Contudo,
antes que Hanna pudesse relatar-lhe o que vira, o silêncio foi subitamente rasgado por um coro de gritos
e guinchos agudos. Alerta, Sam rolou para a frente dela, escudando-a com o próprio corpo.
Um bando de homens despontou no alto de uma duna e lançou-se sobre os dois. Suas vestes eram

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espectrais, seus rostos pareciam máscaras negras na escuridão. Naqueles momentos de pavor, tudo o que
Sam vislumbrou foram cimitarras. Lâminas prateadas como o luar, que emanavam cintilações mortais e
desciam sobre sua cabeça.
Hanna tentou entender o que se passava. Ouviu passos ao seu redor, viu pés descalços
executando uma dança macabra enquanto os brados selvagens se elevavam mais e mais.
Sam lutava incansavelmente, mas foi separado dela. Com um grito de pânico, Hanna sentiu que a
puxavam e a colocavam de pé. Uma dezena de mãos agarraram-lhe os braços e pernas.
Chamou por Sam, desesperada. Onde estava ele? Por que não respondia? Ocorreu-lhe que
poderia ter sido morto, e seu desespero atingiu as raias da histeria.
Um homem alto, de barba longa, postou-se diante de Hanna. Os outros empurraram-na para a
frente. O homem alto segurou-lhe o queixo e forçou-a a encará-lo.
Seu colo ficou exposto. Ela captou um lampejo prateado quando a cimitarra tocou-lhe o pescoço.
Gritou, apertou os olhos e esperou que a lâmina afundasse em sua carne. A lâmina afiada passou por
baixo de sua corrente e rompeu-a.
O pingente de safira soltou-se. O homem aparou-o com a mão aberta. Aí repeliu Hanna com um
gesto de desdém. Sorriu-lhe, disse-lhe palavras ininteligíveis num tom gutural. E, mais uma vez com a
lâmina da cimitarra, suspendeu-lhe a trança. Cortou a corda que a prendia e enterrou os dedos nos
cabelos loiros, até que esvoaçassem ao redor dos ombros dela.
Os outros membros do bando aproximaram-se para tocar sua cabeleira. Menearam a cabeça e, a
exemplo do homem alto, sorriram também. Para Hanna, seus sorrisos eram funestos. Num rasgo de
coragem, esquivou-se deles e retrocedeu, gritando o nome de Sam.
Quando a recapturaram, os desconhecidos já não a trataram com brandura. Obrigaram-na a se
ajoelhar perante o homem alto. Amarraram-lhe as mãos às costas, ao mesmo tempo em que o homem
barbado lhe puxava os cabelos e forçava-a a levantar o rosto. Ele tornou a sorrir. E Hanna reviveu todo o
terror que carregava dentro de si.
Nunca vira um árabe até aquela noite. Mas a crueldade que pressentiu no olhar dele e o modo
como se comprazia com sua dor já eram velhos conhecidos de Hanna: Etienne a iniciara nas tortuosas
sendas da malevolência.
Agora, a areia onde ela se ajoelhava transformava-se no assoalho encerado de Beau Coteau. E o
semblante do árabe desvanecia-se na névoa, para reaparecer como o semblante embotado de Etienne.
— Misericórdia... Je vous demande pardon, monseigneur. Je vous demande miséricorde, mon
maître! ― implorou com voz trémula, como fizera tantas vezes para aplacar a cólera do marido. Sabia
que seu padecimento seria menor se mostrasse obediência.
De onde estava, cercado por vários homens, Sam escutou as súplicas dela e flagrou seu olhar
transfixado de horror. Teve medo de que, confrontada com uma situação limite, Hanna perdesse a razão.
Mais do que nunca, precisava dele agora.
Sem fazer caso das lâminas que apontavam para seu peito, Sam desvencilhou-se de seus
captores, arrancou a mordaça e correu para Hanna.
Cingiu-a depressa e disse, num tom imperioso:
— Esposa. Mi esposa!
Reconhecera na linguagem dos árabes palavras que guardavam certa similaridade com o
espanhol. Arriscara uma manobra temerária, supondo que fossem entendê-lo. Abraçou Hanna com um
gesto protetor. Ela ficou rígida, perdida nos pesadelos do passado.
Os homens quedaram-se indecisos. Embora estivessem em vantagem numérica, perceberam que
Sam não lhes entregaria a mulher sem resistência. Consultaram seu líder com um olhar interrogativo.
— Minha mulher. — Sam repetiu em inglês. E, para não deixar dúvida quanto às suas palavras,
pousou uma das mãos sob o seio de Hanna, apertando a carne tenra, enquanto com a outra cobria-lhe o
sexo, numa demonstração de intimidade que transporia quaisquer barreiras linguísticas. — Esta mulher é
minha esposa, seus desgraçados, e não permitirei que lhe toquem num só fio de cabelo.
O homem alto fitou-o sombriamente. Dirigiu-lhe ameaças, brandiu a cimitarra e recolocou-a na
bainha. Depois deu-lhe costas. Os outros rodearam Sam e Hanna, cutucando-os para que se pusessem em
marcha.

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Sam deixou-se conduzir. Eram prisioneiros, mas ele tinha certeza de que os árabes os queriam
vivos. Isso já era mais do que poderia desejar em semelhantes circunstâncias.
Foram levados para um acampamento, onde Hanna divisou a luz que vira brilhar na distância.
Deram-lhes uma mistura morna de leite de camelo e água salobra. A despeito do sabor
desagradável da beberagem, os dois tomaram tudo de bom grado. O olhar de Hanna se reavivou e,
imensamente aliviado, Sam constatou que ela se recobrava de choque. Por um momento, não tivera
muita certeza de que se refaria lá, nas profundezas de si mesma onde Hanna costumava se refugiar, devia
ser bem menos terrível que a realidade presente.
Como ainda fosse noite, ordenaram-lhes que se deitassem na areia e dormissem. Não tentaram
separa-los novamente, dois guardas limitaram-se a vigiá-los com a mão no cabo das cimitarras.
— O que farão conosco? — Hanna sussurrou ao ouvido de Sam.
Ela tremia, pois os árabes haviam lhe tirado o xale. Confiscaram também o casaco de Sam, e os
dois se abraçavam para se aquecer e para confortar seu espírito desolado.
— Nada, eu acho. — ele respondeu, afetando uma despreocupação que estava longe de ter.
Os árabes jamais haviam visto cabelos loiros como os de Hanna e, com o peito oprimido, Sam
ponderou que o valor dela no mercado escravo aumentaria. Mulheres européias e americanas eram uma
raridade naquelas paragens. Com um pouco de sorte, Hanna seria vendida a algum mercador obeso que a
elegeria como segunda esposa. Na pior das hipóteses, se tornaria a atração principal de um bordel em
Tânger. Em ambos os casos, seria o mesmo que a morte para ela.
Mas Sam não permitiria que nada disso lhe acontecesse. Ainda encontraria um meio de salvá-la.
— Mortos não temos nenhum valor para eles — disse baixinho.
— Pedirão um resgate para nos libertar, não é? ― Hanna perguntou, num tom esperançoso que o
deixou arrasado. ― Meu pai me falou de tripulações e capitães da Nova Inglaterra que foram mantidos
cativos na Tunísia, porque não temos acordo com os Estados da Barbaria. Mas, uma vez pago o resgate,
foram libertados e puderam retornar para casa.
Sam aquiesceu, preferindo omitir seus pensamentos.
— Teremos que nos fiar no sr. Morrow para pagar nosso resgate. Oh, por Deus... Talvez
fiquemos aqui durante meses! — Ela suspirou desanimada. Entrelaçou a mão na dele. — O que disse aos
árabes quando me abraçou?
— Não pensei que tivesse notado.
— Creio que salvou minha vida mais uma vez. Como pôde achar que não notei?
Sam apertou-lhe a mão.
— Pois saiba que demonstrei mais caridade para com sua pessoa diante desses bárbaros do que
demonstrou para comigo perante os franceses. Eu lhes disse que era minha esposa.
— Oh, Sam...
Hanna tornou a suspirar. Como desejaria que aquilo fosse verdade!
Ele se soergueu, apoiando-se nos cotovelos, e encarou-a demoradamente. Um dos guardas
grunhiu em sinal de advertência.
— Ouça-me, minha querida. Eu a amo de todo coração e não posso mais imaginar minha vida
sem a sua presença. Não sei me expressar muito bem com palavras, mas juro-lhe que estou sendo
sincero.
— Sam...
— Ouça-me. Quero que se case comigo. Pertencemos um ao outro e não admitirei nenhuma
recusa. Por Deus, Hanna, pense só nos filhos maravilhosos que teremos juntos... – ele beijou-a
docemente, comovido com as lágrimas que viu em seus olhos. ― Case-se comigo, Hanna Snow.
Quando tudo isto estiver terminado, prometo-lhe que será minha esposa.
— Eu também o amo de todo coração. Mas não posso desposá-lo — ela murmurou com voz
sumida.
— Por que diabos não? Porque é rica e eu não tenho nada?
— Não! Não se trata disso, Sam! Os dias que passei a seu lado foram os mais felizes de minha
vida... Mas merece uma mulher melhor do que eu. Nada mudará o passado...
Hanna se pôs a chorar convulsivamente, lamentando a impossibilidade de compartilharem o

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futuro. Chorou até gastar todas as suas lágrimas. Sam embalou-a, sem saber o que dizer para reconfortá-
la, até que ela finalmente adormeceu.
Mas, em nenhum momento, ele acreditou que Hanna o tivesse realmente rejeitado.

CAPÍTULO XV

Mais uma vez Hanna sentiu que escorregava da cela. Agarrou-se depressa à corcova do camelo
para não cair. O sol estava muito forte, e o ritmo regular com que o animal marchava embalava-a como
se ela fosse uma criança no berço.
Espreguiçou-se e endireitou-se, tentando espantar o sono. Se caísse do camelo, a caravana
inteira, com seus quinze animais e dez homens, seria obrigada a parar e esperar até que ela tornasse a
montar. Hamet não ficaria nada satisfeito.
Ele era seu amo. Ia à frente de Hanna, as costas curvadas sobre o lombo de seu camelo. Ao lado
da perna dele balançava um mosquete. E, debaixo dE sua túnica, via-se a curvatura da lâmina da
cimitarra.
Fora assim durante cinco dias. Depois da primeira noite, Hamet não mais usara de violência para
com ela. Não obstante, deixara bem claro que era sua propriedade. Valiosa propriedade: suas feridas nos
ombros e os cortes nos pés haviam sido tratados. As amarras foram retiradas de seus pulsos e teve
permissão para transitar onde quisesse durante as paradas. Seu xale fora-lhe devolvido para que
protegesse a cabeça e os ombros do sol.
Ao cair do dia, ela recebia seu quinhão de água com leite de camelo e raízes secas para comer.
Hamet convidara-a a dormir em um canto de sua tenda, mas Hanna declinara, preferindo deitar-se com
Sam do lado de fora. O árabe surpreendentemente não fizera nenhuma objeção e, assim, os dois
dormiam abraçados ao relento, sob o céu estrelado. Nessas horas, não trocavam muitas palavras. Mas
Hanna só se sentia segura ao lado de Sam.
Ela torceu o corpo na cela, esforçando-se para vê-lo. Sam ia mais atrás, e seus cabelos
acobreados reluziam ao sol, muito diferentes dos cabelos negros dos árabes.
Hanna deu um suspiro e tornou a olhar para frente. Mal podia esperar para que a noite chegasse e
pudessem ficar juntos novamente. Embora tivessem permissão para dormir juntos, Hamet havia proibido
que estabelecessem qualquer contato durante o dia, e o amo de Sam fizera-lhe a vontade.
Sam estava sob o jugo de um homem baixo e enrugado, chamado Seid. Os dois filhos deste
tinham sido os primeiros a tocar em Sam e, segundo o antigo costume, clamaram a posse dele para si.
Mas Hanna, na qualidade de mercadoria rara, fora prontamente cedida a Hamet.
Como se lesse os pensamentos dela, Hamet virou-se e endereçou-lhe um olhar frio, desdenhoso,
Hanna sustentou o olhar sem se intimidar. Ele tinha maneiras majestosas e ostentava o turbante de
algodão manchado qual uma coroa. Involuntariamente, Hanna estremeceu ante seu olhar, envergonhada
pelo modo como o árabe lhe examinava as pernas nuas, estiradas nos flancos do camelo.
Hamet puxou a corda que servia de rédea ao animal e o fez parar. O camelo de Hanna deteve-se
também. Hamet falou de modo ríspido com ela, resmungou palavras incompreensíveis, e por fim
levantou a voz irritado. Depois realinhou seu camelo com os outros.
Hanna protegeu os olhos com a mão e avaliou o ângulo do sol. A manhã ia avançada, mas ainda
não era hora de pararem para o habitual descanso. Tampouco havia ali qualquer vestígio de poços, que
em geral assinalavam os locais de parada. Curiosa, Hanna inclinou-se para acompanhar os movimentos
de Hamet.
Ele estava falando a Seid e seus dois filhos. As mãos morenas cortavam o ar em gestos zangados,
enquanto Seid meneava a cabeça numa atitude respeitosa.
Hanna então inclinou-se do outro lado da sela a fim de olhar para Sam.
Sentado muito rígido sobre camelo, ele sobressaía entre os membros da caravana. O tórax e os
braços nus estavam tão bronzeados quanto os de um árabe, mas sobrepujava a todos em força e tamanho.
Com toda razão, Seid o receava e, a cada manhã, atava-lhe os pulsos à sela e prendia-lhe os pés ao redor
do peito do camelo. Hanna ficava imensamente pesarosa de vê-lo naquelas humilhantes condições e

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sempre buscava conforto evocando a lembrança do cônsul que os libertaria em Mogador.
Sam exercitou os ombros para aliviar os músculos tensos e atirou os cabelos para trás. Seu olhar
encontrou o dela. Ergueu o rosto e afugentou o cansaço para não preocupá-la. Sorriu-lhe, a barba escura
contrastando com os dentes alvos e conferindo-lhe uma expressão quase travessa. Por um instante,
Hanna esqueceu Hamet e o sol inclemente. Por um instante, só pensou em Sam. Nunca poderia ser sua
esposa. Mas amava-o mais do que a si própria.
A voz de Seid se alterou enquanto ele discutia com Hamet. O filho de Seid pousou a mão no cabo
da cimitarra. Seu gesto não passou despercebido a Hamet, que logo sacou sua cimitarra também.
Ninguém se moveu. Ninguém falou. O único som que se ouvia ali era da carga rangendo no
lombo dos camelos e o tilintar dos sinos presos em seus arreios.
O olhar fixo e a cimitarra ainda erguida, Hamet procurou a pequena bolsa de couro que carregava
sob a túnica. Seid esperou com a mão estendida. Hamet deitou cinco moedas de ouro em sua palma. Seid
não se mexeu. Hamet resmungou e juntou o pingente de safira às moedas. Imediatamente Seid fechou a
mão. Sem uma palavra, fez sua montaria dar meia-volta e avançou rumo ao norte, distanciando-se dos
outros. Seus filhos o acompanharam, cada qual puxando um camelo cheio de carga.
Agastado, Seid agarrou as rédeas do camelo de Sam e guiou o animal. Só então Hamet voltou
para a vanguarda da coluna.
— Não, Hamet, espere! ― Hanna gritou, dando-se conta do que se passava. ― Aonde eles estão
indo? Oh, por favor, não deixe que o levem embora! Por Deus, não pode fazer isso!
O árabe ignorou-a, impassível. Hanna puxou as rédeas de seu camelo para fazê-lo virar, porém,
o animal seguiu obstinadamente atrás da montaria de Hamet.
— Sam, espere por mim! — ela desesperou-se.
Não podia separar-se de Sam. Sabia que, se isso acontecesse, nunca mais tornaria a vê-lo. Fora
de si, contorceu-se na corcova do camelo para apear. Segurou-se na barra das mantas que acolchoavam a
sela, tentando alcançar o chão. O camelo surpreendeu-se com a repentina transferência de peso. Grunhiu
e deu uma guinada brusca. Hanna foi atirada ao solo, mal tendo tempo de se desviar das patas do animal.
Ela levantou-se depressa e desatou a correr atrás de Sam.
Ao ouvi-la chamar por seu nome, ele jogou o corpo sobre Seid. Derrubou-o com o tranco, em
seguida olhou para trás, tentando divisar Hanna. Só viu seu camelo a dar voltas com as rédeas soltas.
— Aqui, Sam! — ela gritou, arfante, enquanto corria na areia. Seus pés afundavam tropegamente
a cada passo. Estava no auge do desespero.
Ele virou-se em sua direção. E seu semblante iluminou-se quando a viu. Naquele momento, a
despeito de toda urgência, Hanna soube o que era ser amada.
— Hanna, meu amor, não permita que a vendam...
O aviso de Sam morreu-lhe nos lábios. O cabo de um mosquete caiu-lhe pesadamente sobre a
cabeça, e o filho de Seid sorriu vitorioso ao vê-lo tombar para frente com os olhos a fitar o vazio.
Mais uma vez Hanna gritou. Nisso, agarraram-na pela cintura. Debateu-se como um animal
enfurecido, recusando-se a capitular. Aí um pesado objeto abateu-se sobre sua nuca. Ela então conheceu
a mesma escuridão que havia obliterado os sentidos de Sam.
— Não devia ter resistido, senhora. O amo ficou furioso ― disse a mulher, com um
inconfundível sotaque escocês.
Hanna abriu os olhos lentamente. A primeira coisa que vislumbrou foi o forro da tenda
tremulando ao sopro da brisa noturna. Lá fora, captou as vozes guturais de homens que falavam entre si,
a risada de uma mulher e o choro sonolento de uma criança. Os sons eram entrecortados pelo suave
toque dos sinos que balançavam no pescoço dos camelos, enquanto estes se abaixavam para comer
musgo seco e testar o comprimento de suas correias. Pela abertura da tenda, chegava o cheiro de carne
assada.
Hanna fez menção de se soerguer. A mulher debruçou-se sobre ela e deteve-a com um gesto
manso. Seus olhos delineados de negro abriram-se desmesuradamente.
— Descanse agora. Não deve, em hipótese alguma, desafiar a ira de Hamet.
— Fala inglês? — Hanna perguntou atarantada. Com a pele escura e os cabelos muito negros, a
outra tinha a aparência típica das mulheres árabes.

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— Meu nome é Ezimah. Quando eu era bem jovem, antes de Hamet me comprar, fui escrava de
um mercador escocês em Tânger. Servi-o o melhor que pude e até aprendi sua língua para agradá-lo.
Mas o dia chegou em que partiu e não me levou consigo. — A mulher sentou-se apoiada nos joelhos e
suspirou. — A senhora tem os mesmos traços dele. Talvez conheça o mestre Henry Cronan?
— Sou da Nova Inglaterra, não da Escócia. — Hanna esclareceu. Deduziu que se achava numa
aldeia, pois não havia mulheres na caravana. — Onde estamos?
Ezimah não fez caso de sua pergunta. Desviou o olhar evasivamente.
— Então é americana como os outros — murmurou.
— Que outros? O capitão Colburn também está aqui? Ele é alto, tem os cabelos e olhos
castanhos...
— Ah, não. Aquele estrangeiro seguiu para o norte com Seid. Hamet não queria um bruto em
nossas tendas. Hamet disse que ele era seu marido.
— Ele era... uma pessoa muito querida para mim. — Hanna replicou, duvidando que jamais
tornasse a vê-lo.
— Pois deve esquecê-lo. Doravante terá que se curvar à vontade de Hamet. Até que ele a venda,
será seu único senhor.
— Vender-me? Saiba que sou uma americana livre e não uma reles mercadoria! Em meu país,
sou uma mulher rica. Posso conseguir uma boa soma para pagar um resgate.
Ezimah meneou a cabeça.
— Hamet a capturou e agora lhe pertence. Seu passado não conta. É uma mulher jovem e bela.
Seus cabelos agradariam a qualquer sultão. Hamet ganhará mais dinheiro vendendo-a do que pedindo
um resgate para libertá-la.
De repente, Hanna lembrou-se das últimas palavras de Sam. Não permita que a vendam. Seu
sangue gelou. Enquanto estivera ingenuamente a falar do resgate que o sr. Morrow pagaria, Sam sabia o
tempo todo do cruel destino que lhe era reservado: escravizada, ficaria para sempre presa naquele país.
Nunca mais tornaria a ver o pai. Nem Sam. E ele soubera disso o tempo todo. Não era de admirar que
houvesse lutado com tanto afinco para permanecer a seu lado.
Ela sentiu um nó na garganta, esmagada pelo peso da fatalidade que lhe cruzara o caminho.
— Hamet precisa saber. — Ezimah ia dizendo. — Carrega no ventre a semente de seu marido?
Um homem como ele decerto gerará rebentos saudáveis e fortes. Se estiver esperando um filho dele, seu
preço subirá no mercado.
Hanna fechou os olhos, consciente da terrível ironia do destino.
— Não há nenhuma criança — declarou num fio de voz.
— Como pode ter tanta certeza? Um homem como ele por certo...
— Não. Não há nenhuma criança -. Hanna repetiu com convicção.

Paciência. Mais do que nunca, Sam precisava ter paciência para sobreviver. Paciência. Com os
diabos, justamente ele, que não tivera paciência em um único minuto de sua existência...
O primeiro dia fora o pior de todos. Amarrado ao camelo como um fardo, suportara o
desconforto e engolira seu orgulho.
O cheiro acre de couro de camelo parecera então impregnar-lhe a pele, a carne, os ossos, a alma.
Sua cabeça latejara sem parar, sua boca ficara seca como o próprio deserto. E os miseráveis árabes que
se julgavam seus donos não haviam lhe dado uma única gota de água para beber o dia todo. Aos pri-
meiros sinais do crepúsculo, quando apearam, Sam mal se aguentava de pé. Do contrário, não teria
hesitado em estrangulá-los.
Nos dias que se seguiram, forçaram-no a caminhar. Com os pulsos amarrados a uma longa corda,
tinha que acompanhar o passo dos camelos. Caso falhasse, Abdallah, o filho mais jovem, praguejaria e o
açoitaria com o mesmo chicote que usava nos animais.
Paciência, Sam não se cansava de repetir para si mesmo. E reprimia as blasfêmias que lhe
vinham à boca, aceitando as vergastadas sem se queixar.
Pacientemente, memorizou o caminho que seguiam para poder refazê-lo e resgatar Hanna.

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Examinava os poços onde se detinham e os extensos vales onde montavam acampamento. Aqueles
pontos de referência seriam seu único guia quando chegasse o momento de voltar para ela. Nem por um
segundo duvidava que fosse reencontrá-la. Só rezava para que não retornasse tarde demais.
À noite, quando a exaustão o deixava prostrado, recordava-se de Hanna correndo em sua direção,
com o olhar tão cheio de amor que aquela lembrança o torturava até as profundezas de seu ser.
Como ter paciência quando um bárbaro como Hamet mantinha cativa sua Hanna?
Mas a paciência era a única arma que lhe restara.
A paciência faria com que seus captores se descuidassem. Já agora achavam que levavam
vantagem sobre ele por estar em maior número. E relaxavam sua vigilância. Deixaram-no ver os objetos
que encontraram certa noite ao longo da costa: mercadorias trazidas pelas águas, que haviam singrado os
mares em navios tão desafortunados quanto a Truelove. Vinho francês, que Seid e seus filhos se
apressaram em guardar para vender no mercado. Um caixote de lenços bordados, um machado
enferrujado, três facas. E uma pequena caixa de madeira trabalhada, repleta de moedas espanholas de
prata, as quais Seid contou ansiosamente. Sam prestou muita atenção ao lugar onde o árabe guardou as
facas e as moedas. Ainda precisaria delas, com toda certeza.
Fingia não compreender o que os árabes diziam. Fingia que o golpe em sua cabeça havia lhe
atordoado a razão. Em breve, Seid e os filhos não mais se importaram com ele. Até mesmo Abdallah
perdeu o interesse em fustigá-lo com o chicote. Para os três homens, Sam passou a ser encarado como
um mero animal.
Falavam sem reservas diante dele, e foi assim que soube que estavam se dirigindo a Mogador.
Na véspera da chegada à cidade, Abdallah não dissimulou seu entusiasmo por uma certa
dançarina que encontraria lá. Seid, exasperado, repreendeu-o e ordenou aos dois filhos que tratassem de
se deitar.
E, então, Sam foi enfim recompensado por sua longa espera.

O fuso grosseiro rodou devagar enquanto a crina de camelo se convertia num único fio. Hanna
alisou-o cuidadosamente e pegou mais um punhado de crina. Para espantar o tédio, pedira a Ezimah que
a ensinasse a tecer. A outra a princípio se negara a ensiná-la, temendo a reação de Hamet. Mas, afinal,
acabara cedendo à insistência dela e arranjara-lhe um fuso velho. Hanna pusera-se então a confeccionar
febrilmente o rústico tecido com que se fabricavam as tendas e as roupas dos membros da caravana.
Ezimah era a única que tinha permissão para falar com ela. As demais mulheres da aldeia
mantinham-se a distância, porém, era evidente que apreciavam os esforços de Hanna. Ela, por sua vez,
não via nenhum mérito nisso. Fiar era apenas um modo que encontrara de conservar sua sanidade. Seu
isolamento naquele deserto era tão grande quanto o que sentira no meio do oceano. Se estivesse na
cidade, cercada de outras pessoas, ao menos poderia tentar pedir socorro.
Não que fosse maltratada. Agasalhada sob a proteção de Hamet, não tinha nenhuma
responsabilidade e ficava ociosa enquanto as mulheres cozinhavam, cuidavam dos camelos e vigiavam
as crianças. Quando as tendas eram sacudidas a cada manhã, nunca lhe pediam ajuda. Recebeu uma
longa túnica para substituir o vestido esfarrapado e os melhores bocados de carne nas refeições. Podia
também beber leite de camelo à vontade.
Sentia-se como um porco sendo engordado para o abate. De certa forma, não deixava de ter
razão.
Numa ocasião, sentada na tenda com Ezimah, não resistiu e perguntou:
— Se Hamet pretende me vender, por que me mantém aqui?
— Essa é a vontade dele e devemos respeitá-la. Quando julgar que está em condições de viajar,
então a levará consigo.
Ezimah sorriu-lhe com simpatia. Não obstante, Hanna ficou inconformada com a submissão da
árabe.
— Continua a pensar em seu marido, não é? Bobagem. Ele logo a esquecerá, se é que Seid o
deixará viver. Um homem sempre procura outra mulher quando está sozinho. — Ezimah declarou.
— Não o capitão Colburn. — Hanna replicou tristemente. Lembrava-se de quantas vezes Sam

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arriscara a vida para salvá-la. Assim como acreditava que ainda estava vivo, acreditava que ainda lhe
devotava os mais puros sentimentos.
O mais trágico é que jamais conseguiria encontrá-la. Nas três semanas qué haviam decorrido
desde sua separação, Hamet deslocara o acampamento uma dúzia de vezes. O vento se encarregara de
apagar as marcas deixadas pela caravana.
Alheia a sentimentalismos, Ezimah torceu a boca com ar de censura.
— Devia sentir-se grata pelo tratamento que Hamet lhe dispensa. Ele quer que fique gorda e
saudável para vendê-la a um amo rico. Vai fazer o máximo para beneficiá-la.
Vai fazer o máximo para beneficiar os próprios bolsos, isso sim!, Hanna pensou de si para si.
Mas nada disse. A outra jamais compreenderia por que odiava tanto Hamet. E como poderia? Fora
escravizada a vida inteira. Como concubina de Hamet, tudo o que conhecia do amor eram as cópulas
destituídas de carinho que Hanna ouvia a cada noite, na tenda que compartilhavam. Ezimah nunca
conheceria o sentimento que ela havia descoberto com Sam, ou a dor de sua perda, provocada pela
ganância de Hamet.
E, falando no diabo, eis que ele surgiu na tenda. Sem se preocupar em saudá-las, entrou e chutou
para o lado o novelo de Ezimah. A árabe murmurou desculpas por sua falta de jeito, correndo a apanhar
o novelo.
Hanna encarou Hamet, que se acomodara nas esteiras que lhes serviam de assento e cama.
— Devia tratar Ezimah melhor. Não é justo que ela se sinta culpada quando, na verdade, não fez
nada de mais. — repreendeu-o com brandura, falando o árabe que assimilara naquelas semanas.
A coragem nascida do fatalismo impelia-a a manifestar suas opiniões. Ao separá-la de Sam,
Hamet já lhe fizera a pior coisa que poderia fazer. Hanna não tinha nada a perder, e a cada dia nutria
menos temor ao árabe.
— No lugar de Ezimah, eu apanharia o chicote e o açoitaria com minhas próprias mãos. —
completou.
— Cuidado com o que diz, rameira!
Ele se levantou abruptamente e se pôs a gritar, enervado. Como punição, empurrou uma caçamba
para as mãos de Hanna e ordenou-lhe que fosse buscar água.
A ela não restou senão obedecer. Encaminhou-se para o poço, contente de sair da tenda. Perto
dali, viu um árabe punindo seu escravo com duras palavras. Foi empurrando-o, até que o escravo
tropeçou e caiu bem aos pés de Hanna.
Com os dedos trêmulos, o homem se segurou na barra da túnica dela e se levantou.
— Annie, minha menina... Annie!
Hanna deixou a caçamba rolar para o chão e, mal cabendo em si de alegria, abraçou o pai.

CAPÍTULO XVI

— Não lhe bata! Se tocar nele, Hamet o punirá! ― Hanna gritou em árabe. O homem fitou-a
vacilante, o braço erguido, o chicote na mão. Ela não passava de uma insignificante mulher, uma fo-
rasteira sem fé. Hamet, porém, deixara bem claro que a estrangeira estava sob sua proteção.
— O miserável me desobedeceu. Ele me pertence e deve ser punido por sua insolência! —
argumentou.
— Esse homem é meu pai e não haverá de agredi-lo nunca mais!
Gentilmente, Hanna amparou o pai e ajudou-o a se levantar. Da última vez em que o vira, quando
se despediram em Providence, seus cabelos ainda eram loiros. Agora haviam se tornado grisalhos. Sua
compleição robusta transformara-se em magreza, e ele se curvava como um ancião. Todavia, sob as
sobrancelhas prateadas, os olhos claros permaneciam como ela se lembrava: resolutos e penetrantes.
— Eu gostaria de puni-lo pessoalmente. Esse árabe de maus bofes merece uma surra muito bem
dada! — o capitão Snow falou, brandindo o punho ao mesmo tempo em que usava a outra mão para se
apoiar na filha.
— Fique quieto, pai. Agora não é hora de resmungar. Vou levá-lo comigo para que possa

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descansar.
Hanna passou o braço pela cintura dele. Sentiu-lhe os ossos sob a pele.
Seu pai poderia ter mirrado, mas continuava tão teimoso e mordaz quanto antes:
— Agora também quer me dar ordens, hein, menina? Houve um tempo em que me respeitava! —
o capitão queixou-se, com toda a irritação que sua fraqueza lhe permitia.
— Os tempos mudaram. Agora venha comigo. A tenda de Hamet não fica longe daqui.
Uma pequena aglomeração de árabes quedara-se para assistir à cena. O homem que segurava o
chicote continuou a olhá-los, indeciso.
Nisso, Hamet em pessoa apareceu. Vinha a passo rápido, com Ezimah em seus calcanhares. Sua
túnica dava impressão de flutuar ao redor do corpo esguio e alto. E sua mão estava pousada no cabo da
cimitarra que trazia à cintura.
Para completo desespero de Hanna, o pai esquivou-se de seu amparo. Ela teve a terrível
premonição de que ele se exaltaria e sua cabeça ainda rolaria por aquelas areias ardentes.
— Deixe que eu fale com esse bárbaro, Annie — disse sem papas na língua.
Hanna meneou a cabeça. Avançou e ficou na frente dele.
— Hamet, ouça-me! Rogo-lhe que seja generoso! ― suplicou.
— Não tem direito de me pedir nada. Não tem nem mesmo o direito de se atirar a meus pés para
implorar misericórdia! Vagabunda desleal! Mandei-a buscar água e, em vez de me servir, intrometeu-se
em assuntos que não lhe dizem respeito. Não percebe que esse velho escravo não vale nada?
Ele levantou a mão para estapeá-la. Por um terrível momento, Hanna achou que tivesse ido longe
demais. Forçou-se a encará-lo firmemente, sem demonstrar o medo que sentia. Atrás dela, o capitão
Snow imprecou.
— Esse homem vale muito para mim. — Hanna respondeu pausadamente, para causar maior
impacto e para que pudesse escolher as palavras certas naquele idioma que não dominava muito bem. ―
Esse homem é meu pai.
Hamet franziu o cenho com incredulidade. Olhou para Hanna, depois para o capitão, buscando
semelhanças entre ambos. E elas eram indubitáveis.
Hanna rezou silenciosamente. Da mercê daquele árabe dependiam siias vidas.
— Deixei minha terra natal para procurá-lo — prosseguiu. — Agora, finalmente, o encontrei.
Pela honra que devo a meu pai, imploro-lhe que o retire do jugo de um amo que o maltrata, Hamet.
— Só lhe bati porque ele merecia! É velho demais e imprestável para o trabalho pesado. Embora
tenha me prometido quinhentas moedas em troca de sua liberdade, até o momento só me ludibriou,
comendo e bebendo às minhas custas! ― o homem do chicote retrucou com indignação.
O capitão Snow adiantou-se.
— Amaldiçoado seja, vil criatura! Escrevi seis cartas a George Gill pedindo que me mandasse as
malditas moedas. Por ora, não me foi enviado nem um tostão furado. Que hei de fazer? Se meu amigo
em Providence não recebeu as cartas, foi porque você, grande tolo, não soube encaminhá-las a um navio
americano.
Hanna agarrou-lhe o braço e postou-se à frente dele novamente.
— Pelo amor de Deus, pai, fique quieto! Se não se calar, vão matá-lo! ― alertou-o.
Contrafeito, o capitão se calou. Hanna então se virou para Hamet.
— Admito que meu pai seja um homem idoso, rabugento e inútil para as tarefas mais árduas.
Porém, pode lhe render um bom resgate. Se aceitá-lo, prometo que cuidarei dele e não permitirei que se
meta em encrencas até o dinheiro chegar às suas mãos. Aí lhe caberá uma parte do pagamento do
resgate.
Hamet coçou o queixo, pensativo.
— Está bem. ― Dito isso, ele gesticulou acaloradamente para os outros homens, que logo
trataram de se aquietar. ― Mas se seu pai perturbar a paz mais uma vez que seja, cortar-lhe-ei a
garganta. E ficarei com o dinheiro do resgate para compensar meus aborrecimentos.
— Para o diabo com os seus aborrecimentos — o capitão Snow murmurou.
Hanna puxou-o depressa e conduziu-o à tenda, antes que Hamet decidisse cumprir sua promessa.
— Com todos os demônios, por que não ficou em Providence, onde a deixei? ― John Snow

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perguntou depois que esvaziou a cuia com leite de camelo.
Já era noite. Só agora estavam a sós e podiam falar com mais liberdade. Hanna sorriu-lhe,
contente de revê-lo a despeito das tristes circunstâncias em que o tão ansiado reencontro se dera.
— Parti no seu encalço, pai. Todos afirmavam que havia morrido, mas não lhes dei ouvidos...
Ela hesitou. Chegou a considerar a possibilidade de falar-lhe de Sam. Desistiu. Não era o
momento adequado para isso. Seu pai era muito austero. E perspicaz. Se lhe contasse o mínimo que
fosse sobre Sam, ele adivinharia a natureza de suas relações e a recriminaria com dureza.
— Eu estava certa em seguir minha intuição. Consegui encontrá-lo, ainda que à custa de um
naufrágio! ― arrematou.
— Foi uma grande asneira de sua parte, filha — o capitão replicou num tom áspero.
O sorriso dela se desvaneceu. A esperança que tivera de agradá-lo caiu por terra.
— Pensei que os ingleses o houvessem capturado. Dispunha-me a interceder em seu favor para
libertá-lo.
— Mesmo assim, teria sido uma tolice. Os cães ingleses quase conseguiram me pegar, confesso.
Mas, em vez de nos prender, encurralaram-nos nesta maldita costa. — A claridade do crepúsculo, os
olhos dele luziram de raiva. — Não obstante, eu cairia em desgraça sozinho. Agora, olhe só a enrascada
que arranjou, atravessando o oceano como uma tresloucada! Aquele árabe sujo ousou tocá-la?
Hanna fez sinal negativo e ele torceu o nariz com desgosto.
— Provavelmente a está poupando para vendê-la no mercado escravo. Acabará no harém de
algum sultão, dançando nua para uma plateia imunda, e não haverá nada que eu possa fazer para impedir
essa desgraça!
Ela baixou o rosto para que o pai não visse suas lágrimas. Ah, imaginara que aquele reencontro
seria tão diferente! Antevira a si mesma e a ele abraçando-se num dos elegantes salões dos lordes
ingleses, enquanto todos em volta se enterneciam com sua devoção filial.
— O que aconteceu ao resto de sua tripulação? — perguntou, querendo desviar o assunto e
aplacar a cólera do pai. — Também foram feitos prisioneiros?
— Ao que consta, os covardes morreram todos afogados. Abandonaram o navio, contrariando
minha determinação. Nunca mais tornei a vê-los. Se algum deles ainda estiver vivo, não desembolsarei
um centavo para libertá-lo. Já sofri perdas demais com o naufrágio da Commerce.
Hanna sempre ouvira o pai se vangloriar de ser um capitão severo. Pois aí estava a prova. A
reação dele em nada se comparava à maneira como Sam pranteara a perda da Truelove e de sua
tripulação.
John Snow inclinou-se sobre as pernas dobradas.
— Aposto minha cabeça como George Gill nem sonhava que pretendia deixar Providence não é,
Hanna?
— O capitão Gill me seguiu até Newport. Tentou me persuadir a voltar com ele. Disse que estava
de partida para a Inglaterra, onde iria procurá-lo, meu pai.
— Eu não acreditava mesmo que George compactuaria com suas trapalhadas. Mas sabe-se lá por
que resolveu ir para Londres. Enviei-lhe uma porção de cartas indicando meu paradeiro e pedindo-lhe
que mandasse o dinheiro do resgate para esses bandidos árabes.
— Talvez preferisse conservar o dinheiro para si próprio. Sei que é seu melhor amigo, mas não
confio nele.
— Ora, Gill é seu melhor amigo também. Oh, sei que se portou de modo desagradável quando
você rejeitou aquele filho frouxo dele. Contudo, devemos reconhecer que lhe teve muita consideração ao
segui-la até Newport. Não nos esqueçamos que lucraria mais se você desaparecesse da face da terra!
Hanna franziu o cenho.
— E por que ele lucraria com isso?
— Porque herdaria todos os nossos bens, eis o motivo. A fim de evitar que Gramont pusesse as
mãos em meu dinheiro, fiz um testamento para que, no caso de nós dois morrermos, Gill seja meu
herdeiro universal. Obviamente nunca imaginei que ficaríamos fadados a perecer juntos no deserto...
— Ainda não estamos mortos, pai — Hanna contrapôs. Não pôde deixar de pensar em quantas
vezes, desde que ela partira de Providence, George Gill estivera prestes a se tornar um homem muito,

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muito rico.
Para sua surpresa, o pai apertou-lhe a mão afetuosamente.
— Quem diria que acabaríamos assim, hein, Annie? Não sabe como me entristece vê-la nesse
estado. Usando trapos, com o rosto bronzeado como se fosse uma bárbara, e sujeitando-se a Hamet para
salvar a pele de seu velho pai... Ah, se sua mãe fosse viva, o coração dela se partiria de dor!
Os dois se fitaram mudamente. Hanna percebeu o olhar de infinito amor dele. Emocionada, não
resistiu mais e se pôs a chorar. O capitão Snow então abraçou-a. Naquele canto da modesta tenda de
Hamet, Hanna percebeu que a realidade de seu reencontro superava tudo o que jamais havia imaginado.
Levantou-se o acampamento pela manhã. Ao cabo de mais um dia de árdua jornada, a caravana
fez uma parada num vale, nas proximidades de um velho poço. Por entre as rochas brotavam arbustos
mirrados, cujos galhos retorcidos foram imediatamente devorados pelos camelos.
As tendas mal haviam sido erguidas quando três desconhecidos surgiram. Sua pele era mais
escura que a dos árabes e suas roupas, de longe mais luxuosas. Usavam calçados de couro amarelo,
turbantes brancos e, atirados sobre os ombros, mantos de lã. O mais alto dos três trazia o manto sobre o
turbante, à maneira de um capuz que lhe escondia o rosto.
Porém, o que mais chamou a atenção de Hamet e dos outros foram as armas que os estranhos
portavam. Cada qual carregava um mosquete novo e uma bolsa a tiracolo com munição, uma cimitarra e
dois punhais compridos à cintura, além de um par de pistolas acomodadas sobre a sela de sua montaria.
— Mouros — o capitão Snow concluiu, aliviado. — Agora Hamet e sua corja vão pular
miudinho.
Hanna, postada com o pai à entrada da tenda, não compartilhou seu entusiasmo. Pouco à
vontade, esfregou o polegar na base do dedo anular, fazendo tenção de girar o anel que agora estava em
poder de Hamet. A visão das armas que os desconhecidos traziam deixavam-na alarmada, pois só pode-
riam significar morte e violência.
— Até parecem três cavalheiros da Rua Prospect desafiando um bando de fazendeiros sulistas,
hein, Annie? ― comentou o capitão.
Entrementes, Hamet ia dar as boas-vindas aos recém-chegados. A lei de hospitalidade no deserto
ditava que não se podia negar água a quem estivesse com sede.
Os camelos dos mouros ajoelharam-se na areia, e eles desmontaram. Os dois primeiros
demonstraram polido interesse às queixas de Hamet que, receoso de sofrer pilhagens, proclamava
veementemente a própria pobreza. O terceiro mouro, porém, nem se deu ao trabalho de ouvi-lo:
conduziu seu camelo até o poço sem olhar para trás.
Inclinando a cabeça intrigado, John Snow relanceou Hanna.
— Vá lá e mostre-se para eles, Annie. Não ganharemos nada se ficar aí escondida, e asseguro-lhe
que esses mouros preferirão olhar para seu belo rosto do que para minha velha carcaça. Ah, tenho
certeza de que esses aí não perderiam uma nota de resgate como os asnos árabes!
— Oh, não, pai! Não posso simplesmente passar diante deles sem nenhum motivo ― ela objetou
com relutância. Não gostava daqueles homens, com suas negras barbas e longas facas.
— Pode, sim, se deseja voltar para Providence algum dia. — O capitão deu-lhe uma palmadinha
no ombro que mais parecia um empurrão. — Finja que vai buscar água ou invente algum pretexto.
Por mais que detestasse Hamet, Hanna ao menos sabia o que esperar dele. E tinha a garantia de
que o árabe não a maltrataria. O mesmo não acontecia com os mouros. No entanto, talvez seu pai tivesse
razão. Com um suspiro, ela apanhou a caçamba e encaminhou-se para o poço.
O mouro encapuzado parecia mais preocupado em dar de beber ao camelo do que em admirar os
encantos de dela. Resignada, desceu o balde até o fundo do poço e puxou-o. Quando encheu a caçamba,
a água espirrou em sua túnica. Hanna praguejou em árabe. O mouro riu.
Ela pousou a caçamba no chão e lançou-lhe um olhar exasperado. Nisso, algo caiu dentro do
receptáculo. Reprimindo uma exclamação de espanto, Hanna viu reluzir no fundo do balde o pingente de
safira que pertencera à sua mãe.
— Não demonstre surpresa, meu anjo. Derrube a água e encha a caçamba de novo. Mas, por
Deus, não olhe para mim. ― Sam sussurrou-lhe.
Hanna ficou momentaneamente sem ação. Depois, com gestos de autômato, fez o que ele dizia.

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Tinha medo de estar sonhando. Sam viera até ali para salvá-la... Fora esperto ao esconder o rosto, pois,
se o tivesse reconhecido, ela não conseguiria dissimular sua alegria. O coração batendo descompassado,
Hanna olhou de soslaio para as mãos morenas dele, que afagavam o pescoço do camelo.
— Como me encontrou? — indagou com voz quase inaudível. — Que fim levaram Seid e os
outros?
— Mais tarde lhe contarei tudo. Agora preciso saber se Hamet não lhe fez nenhum mal.
— Oh, não. Sou valiosa demais para ele.
— E é ainda mais valiosa para mim. Esta noite, quando todos estiverem dormindo, virei
encontrá-la.
— Não, não se aproxime da tenda. Hamet poderá ouvi-lo. Eu o esperarei atrás daquela duna —
Hanna segredou-lhe, enquanto escondia o pingente de safira na barra da túnica.
— Tem certeza de que é seguro? ― Sam perguntou apreensivo.
Hanna sorriu involuntariamente ao notar sua preocupação.
— Sim, tenho certeza.
Ela tornou a mergulhar o balde na cacimba, tentando aparentar naturalidade.
— Mas não virei sozinha. Trarei meu pai também ― ajuntou.
— Seu pai? Do que diabo está falando?
— Não vai acreditar, mas ele também é prisioneiro de Hamet. Olhe para a segunda tenda à
direita. Meu pai é aquele homem de barba grisalha que nos olha.
— Jesus... — foi tudo o que Sam conseguiu dizer.
— Não posso deixá-lo para trás. ― Hanna replicou, desesperando-se ao perceber o
desapontamento dele.
— E nem eu sugeri isso. — Sam suspirou. — Eu não deixaria sequer um cão à mercê de Hamet,
quanto mais seu pai. Traga-o consigo esta noite. Atrás da duna, combinado?
— Sim. Atrás da duna.
O camelo, saciado, levantou a cabeça. Balançou-a de um lado para outro, lançando gotículas de
água em todas as direções. Hanna recuou, ciente de que já se demorara demais. Mesmo assim, relutava
em retornar à tenda. Segurou a caçamba cheia e disfarçadamente acompanhou Sam com o olhar, en-
quanto ele se afastava, puxando o camelo pelas rédeas, para ir se reunir aos mouros.
— Eu o amo, Sam — ela murmurou.
Depois, manteve a cabeça baixa para ocultar seu júbilo. Foi andando devagar, pensando que
naquela noite finalmente ganharia a liberdade. E ficaria ao lado de Sam.
— Poderia ter sido um pouco mais simpática, menina ― seu pai admoestou-a quando ela entrou
na tenda. ― Julguei que, após seu desastroso casamento com Etienne, havia ao menos aprendido a
cativar um homem, ainda que um mouro sanguinário.
— Não se iluda. Ele não é mouro — Hanna retorquiu sem se deter.
A alusão a seu casamento abalou-a. O pai nem desconfiava dos motivos que realmente a tinham
levado a separar-se de Etienne.
— Pois ele tampouco se parece com o presidente dos Estados Unidos. Como pode saber que não
é mouro? Nem lhe dirigiu a palavra! ― o capitão ia dizendo, cheio de irritação.
Lá fora, Sam e os dois companheiros preparavam-se para prosseguir viagem. Hamet,
visivelmente satisfeito com sua partida, dava-lhes adeus. Hanna pousou o balde no chão e torceu as
mãos. Sabia que lhe restava pouco tempo a sós com o pai. O momento de revelar-lhe toda a verdade
chegara muito antes do que ela previra.
— Ocorre que eu o conheço, meu pai. Chama-se Samuel Colburn e é o capitão do brigue que me
trouxe para cá.
John Snow encarou-a de modo penetrante.
— E por que ele cruzou nosso caminho?
— Sam veio nos resgatar.
— Isso eu já percebi. Mas por que ele veio libertá-la? Prometeu-lhe uma recompensa?
— Nem um centavo. Não que tivesse me pedido tampouco. — Hanna apertou os lábios e engoliu
em seco. — Ele me ama. Foi o bastante para que se arriscasse para me tirar das garras de Hamet.

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— Está dizendo que o sujeito vai arriscar o próprio pescoço só para salvá-la? Ah, não, Annie.
Nenhum homem faz isso, exceto nos enredos das estúpidas novelas inglesas que insiste em ler, minha
filha. E qual é a sua posição? Pretende fingir que retribui esse amor?
Ela meneou a cabeça, sentindo-se miserável.
— Não preciso fingir. Eu o amo mais que tudo.
— Se Hamet não levar a melhor, talvez tenha oportunidade de provar suas palavras. — O capitão
meditou um pouco e acrescentou: — Bem, pelo menos esse Colburn demonstrou-lhe afeição, ao
contrário daquele chacal francês com quem desafortunadamente se casou.
— Sam não é como Etienne! — ela protestou.
Num gesto inesperado, o pai segurou-lhe os ombros brandamente, com um enigmático sorriso a
pairar nos lábios.
— É melhor que não seja mesmo. Só desejo a sua felicidade, Annie. Sempre lhe dei tudo o que
estava a meu alcance, sabe disso. Nunca teria arranjado seu casamento com Etienne de Gramont se não
achasse que ele a agradava. Pois muito bem, se quer ficar com esse tal Colburn, não me oporei. Sei que
ele não é um patife francês.
Hanna, incapaz de falar, forçou-se a sorrir. O pai fazia tudo parecer tão simples! Ela rogava a
Deus que assim fosse.

Já era quase hora. Hanna e o capitão Snow esgueiraram-se sorrateiramente para fora da tenda.
Com passos furtivos e a respiração presa, acercaram-se do local combinado.
A lua minguante derramava sua tênue claridade sobre o acampamento, e seus pés afundavam
maciamente na areia. Hamet dispensara as sentinelas, confiando que cada homem protegeria sua tenda e
chamaria os outros em caso de ataque.
Hanna e o pai contornaram a duna e começaram a escalá-la. Quando já iam alcançando o cume,
ele se deteve.
— Prossiga, Annie. Preciso voltar ao acampamento, mas será apenas por alguns instantes.
Antes que ela pudesse objetar, John Snow pôs-se a descer a duna.
— Hanna! — Sam chamou baixinho, vindo ao seu encontro e abraçando-a.
Trêmula, ela tocou-lhe a face, ainda sem acreditar que estavam juntos.
— Oh, meu amor... Tive medo de nunca mais tornar a vê-lo!
Sam beijou-a com paixão. Houvera muitos dias e muitas noites em que também ele vivera sob o
domínio da incerteza. Receara tê-la perdido para sempre. Agora que Hanna estava de novo em seus
braços, nada no mundo os separaria. De súbito, ela retesou-se.
— Meu pai!
Ainda embriagado pelo beijo que haviam trocado com tanto ardor, Sam apertou-a contra si. Mal
a ouviu.
— Meu pai! — Hanna repetiu. — Disse-me que precisava voltar por alguns minutos e que logo
em seguida se juntaria a nós.
— Não poderemos esperá-lo por muito tempo. Quando Hamet souber da fuga, virá no nosso
encalço. Precisamos tomar-lhe a dianteira, do contrário correremos o risco de ser apanhados. E ai de
nós! Hamet não nos poupará!
Ele olhou, inquieto, para os companheiros mouros, Rais bei Cossim e Bei Mooden. Os dois os
aguardavam sem nada dizer. Sua expressão apática quase fez Sam rir.
— Quem são eles? — Hanna perguntou.
— Amigos. Sua lealdade foi regiamente paga. Mas não são maus como parecem. Algumas
moedas de Seid bastaram para contratá-los e comprar os camelos. O restante do dinheiro ficou com um
mercador banqueiro de Santa Cruz.
— Como sabe que esses homens não vão nos trair e nos vender como escravos?
Sam sorriu, seguro de si.
— Se fizerem isso, nunca receberão a outra metade do pagamento. Para tanto, devem nos levar a
salvo até Mogador.

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Hanna fez sinal de assentimento. Esfregou os braços nus, estremecendo.
— Talvez seja melhor eu ir buscar meu pai.
— Não. É muito arriscado. Vamos esperá-lo mais alguns minutos. Se ele não...
Nesse momento, o capitão Snow apareceu no alto da duna. Os dois mouros, de sobreaviso,
apontaram as cimitarras para ele. Sam tranquilizou-os com um gesto.
Entrementes, Hanna viu a mancha púrpura na túnica do pai e deixou escapar um grito
estrangulado.
— O que houve com o senhor?
Com as mãos trêmulas, o velho capitão mostrou-lhe uma cimitarra manchada de sangue. A
cimitarra de Hamet.
— Precisava ajustar contas com aquele árabe desgraçado. Depois de tudo o que ele a fez passar,
eu não poderia me omitir.

CAPÍTULO XVII

— Nesse caso, o senhor merece meu reconhecimento também. – disse Sam.


Ele pousou a mão no ombro de John Snow. Matar o árabe devia ter drenado o que lhe restava das
energias. O velho homem parecia pequeno e frágil, e era notório que tinha dificuldade de se sustentar de
pé. Sem perceber, deixou a cimitarra escorregar para a areia.
Sam amparou-o discretamente.
— Pode montar um camelo, capitão Snow?
— Claro que sim. Não tenho nenhuma intenção de ficar aqui, se quer saber. — Ele encarou Sam,
temperamental como sempre a despeito de sua fraqueza. A seguir, dirigiu-se à filha: — Hanna, vá buscar
um agasalho para mim. Esses cães árabes deixam um homem cozinhar durante o dia e congelar-se à
noite!
— Partamos quanto antes — Sam urgiu, ajudando-o a caminhar até um dos camelos ajoelhados
na areia. — Hamet não tardará a dar por nossa falta. O senhor e sua filha podem dividir a montaria.
— Então você é Colburn.
Sam fitou-o constrangido. Não sabia exatamente o que Hanna revelara ao pai, e decidiu que seria
mais sábio usar de franqueza:
— Sim, sou Samuel Colburn. Fui capitão do brigue Truelove de Salem. Quando naufragamos,
perdi uma carga que lhe pertencia, no valor de sete mil dólares americanos. Tudo o que consegui salvar
foi sua filha. Nós nos tornamos grandes amigos.
— Pois é melhor que Hanna seja muito mais que uma amiga, se essa brincadeira já me custou
sete mil dólares. Sete mil! Dessa vez exagerou, hein, minha filha?
— Oh, pai, fique quieto. O sr. Morrow contou-me que sempre fez seguros altos para lucrar
mesmo com as perdas. — ela repreendeu-o com suavidade.
Hanna envolveu o pai em um haick mourisco. Esperou que se acomodasse na sela do camelo,
depois montou também. Instruiu-o a segurar-se em sua cintura. Mas o capitão tinha as mãos frias e
tremia incontrolavelmente. Encostou-se a ela, suas mãos tombaram para os lados. Hanna não soube dizer
se estava inconsciente ou se dormia. Envolveu-o mais firmemente com o haick, amarrando as pontas
deste à própria cintura. A carga que ia presa na parte traseira da sela seria o bastante para mantê-lo a
salvo de uma queda.
Ela viu Sam limpar com cuidado a cimitarra de Hamet. Deu um suspiro. Apesar de seu pai ser
um homem de grande resistência, tendo suportado seis anos de guerra, Hanna não conseguia se conciliar
com a idéia de que ele havia matado um homem durante o sono. Mesmo que esse homem fosse o
detestável Hamet... E Ezimah? Que fim teria levado?
— Acha que meu pai realmente matou Hamet por minha causa? — Hanna perguntou a Sam.
— A julgar pelo que vi, creio que sim. — Ele aprumou-se. Enfiou a cimitarra no cinturão,
tentando esquecer o sangue de Seid e dos filhos, que derramara para salvar a própria vida. — O amor
muitas vezes nos leva a fazer coisas que nunca imaginaríamos. Você mesma não veio de tão longe só
para encontrar seu pai?

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Sam montou seu camelo rapidamente. Os quatro animais endireitaram-se. Ele então prendeu as
rédeas da montaria de Hanna na sua própria sela e puseram-se em movimento. Rais bei Cossim e Bei
Mooden iam à frente, os pesados mosquetes atravessados na sela.
Sam lançou um último olhar ao acampamento adormecido.
Hanna, ao contrário, deliberadamente não se voltou. Não poderia fazê-lo sem imaginar a trágica
cena que havia se desenrolado na tenda de Hamet.
— A cidade mais próxima fica a quantos dias de viagem? — quis saber.
— Oito, talvez nove. — Os olhos dele brilharam sob o turbante. — Hanna, seu pai talvez tenha
salvado nossas vidas esta noite. Juro-lhe que farei tudo para salvá-lo também. Mas lembre-se de que é
um homem de idade e padeceu de maus tratos nos últimos meses.
— Eu sei. Todavia, depois de finalmente encontrá-lo...
— Não falemos mais, meu anjo. Devemos deixá-lo repousar. Talvez seja disso que mais precise.
Pela manhã, é bem provável que já esteja refeito, amaldiçoando todos os Colburns que jamais pisaram
na Terra.
— É bem provável mesmo. Afinal, sete mil dólares são sete mil dólares... — Hanna concordou,
sorrindo.
Viajaram sem descanso durante toda a noite. Hanna começou a sentir as costas tensas e doloridas
por servirem de anteparo ao pai. Porém, não se queixou. Só rezava para que John Snow recuperasse as
forças e sobrevivesse.
Contudo, sua força de vontade não bastava para curá-lo. Em diversas ocasiões, ele murmuraria
palavras sem sentido e se mexeria na sela, procurando uma posição menos incômoda. Seu corpo ardia
em febre e, quando a manhã chegou, as costas de Hanna já estavam ensopadas com a transpiração dele.
Fizeram uma parada. Antes mesmo que o camelo de Hanna se abaixasse, Bei Cossim e Sam
desamarraram o capitão Snow e tiraram-no, ainda inconsciente, da sela. O mouro desandou a falar em
espanhol. Sam praguejou.
Hanna apeou, olhando de um para outro.
— O que houve? O que o mouro está dizendo?
Ela emudeceu ao ver o corpo inerte do pai, que os dois mantinham a custo de pé. Levou a mão à
boca para suprimir um grito de horror. O pesado haick de seu pai estava tingido de vermelho, as pontas
de seus cabelos grisalhos já endurecidas com o sangue seco.
Hanna soube então que não havia mais esperança para ele. Sam deitou John Snow na areia. Com
expressão pesarosa, concluiu:
— Ao que parece, Hamet não morreu sem luta. Atacou-o pelas costas. Não sei como seu pai
conseguiu resistir por tanto tempo.
Hanna caiu de joelhos ao lado do pai. Molhou a ponta do xale numa cuia de água que Bei
Mossem lhe deu e limpou o rosto macilento dele. Se sua pele não queimasse de febre, já o teria julgado
morto.
Soluçando, segurou-lhe a mão ternamente. Um dia, o pai lhe prometera o mundo. Doía-lhe vê-lo
em tal estado.
— Oh, meu pai, por que não me disse que estava ferido?
Para sua surpresa, ele abriu os olhos.
— Não queria atrasá-los... por minha causa. Não teria me deixado... no acampamento... nem que
eu lhe ordenasse. — balbuciou com a voz entrecortada.
— Sinto muito. Agora não diga mais nada. Deve preservar suas forças — Hanna murmurou,
recostando a cabeça ao peito dele.
— E para quê?
John tentou rir, mas acabou tossindo. Um filete de sangue escorreu-lhe pelo canto da boca.
— Case-se com esse homem. — disse num fraco murmúrio.
Hanna levantou os olhos para Sam. Ele conservava-se à distância, concedendo-lhe aquele
momento para ficar a sós com o pai. Sentava-se de pernas cruzadas, e em seu olhar refietia-se a dor que
ela própria estava sentindo.
Seu pai tomou a falar. Apertou-lhe a mão. E, tão tênues soaram suas palavras, que Hanna teve

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que se inclinar para ouvi-lo.
— Esse homem a salvou. Case-se com ele. Dê-me um neto.
— Pai...
— Se for um menino, prometa-me que o batizará com meu nome, Annie... Prometa-me...
John Snow não pôde prosseguir. Teve um violento espasmo. Seus olhos focaram-se no vazio. Sua
cabeça pendeu para trás. Estava tudo acabado.
Numa atitude patética, Hanna limpou-lhe os lábios mais uma vez e fechou-lhe os olhos.
Continuou a apertar a mão dele, prolongando a dolorosa despedida.
Não fizera nenhuma promessa. Por que o pai pedira a única coisa no mundo que não poderia lhe
dar?
Hanna soluçou. Mas as lágrimas que poderiam ajudá-la a desabafar sua dor não vieram.
Encolheu-se, abraçando o próprio corpo para sufocar o sofrimento.
Sam aproximou-se e afagou-lhe os cabelos.
— Hanna, meu amor...
— Não posso, Sam. Não posso! Ele me fez um único pedido antes de morrer e não pude
prometer-lhe nada!
— Hanna, ouça...
— Não!
Aquela palavra reboou no deserto com uma força inesperada. Ela foi falando aos borbotões:
— Não sabe de nada, Sam! E como haveria de sabê-lo? Meu pai disse-me para desposá-lo.
Queria que lhe prometesse um filho. Seu neto. Queria que eu o batizasse com seu nome. Para que
continuasse a viver através desse rebento.
E Hanna finalmente se pôs a chorar, com indescritível desolação.
— Quando Helene de Gramont voltou, eu já esperava um filho de Etienne havia três meses. Na
última noite... na última noite ele... me usou com violência para me obrigar a ficar. As dores começaram
logo que transpus os portões. Não obstante, não podia permanecer ali... não podia... Um casal de ingleses
me encontrou na estrada, na manhã seguinte. Mais tarde, contaram-me que quase morri. Quem me dera...
Quando a febre baixou, o bebe já havia morrido. A parteira me avisou que eu nunca teria outro. Nunca!
Ela fez uma pausa, o rosto retorcido de angústia, as mãos crispadas nas pontas do xale. Mal
distinguia o rosto de Sam por entre o véu de lágrimas que lhe banhava as faces.
— Eu o amo de todo coração, Sam, mas nunca serei sua esposa. Nunca lhe darei os filhos que lhe
trarão orgulho e felicidade, da mesma maneira como não fui capaz de fazer nenhuma promessa a meu
pai. Nunca, Sam, nunca...
— Não diga mais nada. Não me separarei de você!
— Será que não entende? Não podemos mudar o que aconteceu e não permitirei que se iluda! —
Hanna quase gritou.
Tentou se desvencilhar, mas Sam apertou-a contra si. Ela enfim cedeu e soluçou contra o peito
largo.
Sam correu a mão por suas costas enquanto sussurrava-lhe vãs palavras de conforto. Ele próprio
tentava compreender as emoções que aquela revelação lhe havia despertado. Sempre sonhara em
constituir uma família com Hanna. Agora compreendia que seu sonho jamais se concretizaria. Não podia
dizer a ela que isso não lhe importava, pois importava, e muito. Assim como fora importante para John
Snow em seu derradeiro pedido. Assim como era importante para Hanna, que agora chorava tudo o que
perdera naquela vida.
Inconformado, Sam pensou na crueldade sem par que Etienne lhe impingira. No entanto, ela
sobrevivera. Fora sua vulnerabilidade que primeiramente o atraíra e o impelira a protegê-la. E fora sua
força que o fizera amá-la.
Hanna era parte dele agora. Não conseguia imaginar uma vida separada da mulher que amava.
Fora por Hanna que cruzara o deserto, não por causa do fantasma de crianças não nascidas.
Sam deu um suspiro. Ela ergueu o rosto para fitá-lo.
— Por favor, não me odeie, meu querido! — suplicou, alarmada com seu silêncio. — Por favor,
eu não suportaria!

PROJETO REVISORAS 88
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— Jamais poderia odiá-la, Hanna. Eu a amo e continuarei a amá-la a despeito de tudo.
Ela esboçou um sorriso e fechou os olhos, apertando-os como se aquele simples gesto lhe
provocasse dor. Sam enxugou-lhe as lágrimas gentilmente. Queria ouvir de sua boca que ficaria para
sempre com ele.
Por ora, entretanto, sabia que Hanna não estava em condições de lhe fazer nenhuma promessa
para o futuro. Sam contentou-se em abraçá-la e senti-la perto de si.
Enrolaram o corpo do pai de Hanna no haick e enterraram-no nas profundezas da areia,
oferecendo-lhe preces fervorosas. Ela odiava ter que deixá-lo para trás, sem a bênção de um padre e sem
um funeral cristão; contudo, seria impossível carregar seu corpo durante uma semana, no calor do
deserto.

Os dias que se seguiram foram estranhamente iguais para Hanna. Viajavam à noite e paravam
para descansar de manhã, quando o sol ficava mais forte. Embora não houvesse sinal de que haviam sido
seguidos pela gente de Hamet, Rais bei Cossim insistiu que agissem com cautela. Assim, não acendiam
fogueiras nem cozinhavam, limitando-se a comer figos secos e pão. Os dois mouros orgulhavam-se de
ser bravos guerreiros e não menosprezavam a força de Sam que, elogiavam, era valente como um leão.
Porém, argumentavam que três homens dificilmente sobreviveriam a um ataque dos inimigos na
vastidão do deserto. Era preciso ter cautela.
— A força e a coragem de um leão. — Hanna repetiu, gostando especialmente daquela descrição
de Sam porque, quando ele lhe traduzira as palavras dos mouros, assumira um ar tão inofensivo que lhe
dera até vontade de rir.
O riso que fez menção de pairar em seus lábios foi fugaz. Ela relanceou-o, notando o modo como
a longa túnica branca enfatizava a pele morena e como os olhos castanhos exibiam um brilho enigmático
sob o turbante. Aqueles eram os olhos irresistíveis de um leão... Sam tinha carisma, não havia como
negar, e amava-o mais que a si própria. Ao pensar que se separaria dele quando chegassem a Mogador,
sentiu o peito oprimido. Sam desapareceria de sua vida. Como se fora um sonho. Hanna retornaria à casa
do pai em Rhode Island e passaria o resto de seus dias lá. Ignorava os planos de Sam e não ousava fazer-
lhe indagações, pois já se martirizava de antemão por saber que seria excluída deles.
Esperaram pelo pôr-do-sol para entrar na cidade de Santa Cruz. Rais bei Cossim frisara que,
assim, chamariam menos atenção.
Ou assim ele conjeturava. Entretanto, mal haviam transposto os portões da cidade e enveredado
pela rua principal, foram seguidos por uma pequena multidão de homens e meninos, uns meramente
curiosos, outros escarnecendo-os. Rais e Bei Mooden revidaram aos brados, agitando as cimitarras. A
multidão, sem se dar por vencida, continuou a segui-los de perto. Hanna obrigou-se a permanecer
impassível.
Avançaram pela rua estreita, ladeados por grosseiras casas de pedra. De repente, um pedregulho
arremessado por algum dos circunstantes atingiu o flanco de seu camelo.
— Cubra o rosto rápido! Use seu xale, as mãos, qualquer coisa! — Sam ordenou-lhe.
Ela pôs o xale na cabeça e ocultou a parte inferior do rosto com as pontas, imitando o
procedimento que Ezimah adotava perante estranhos. Um homem aproximou-se dirigindo-lhe im-
propérios e tentou agarrar seu o tornozelo. Hanna instintivamente chutou-lhe a cabeça. Seu agressor
cambaleou para trás. A cimitarra de Rais então desceu sobre a multidão. Quando o mouro tornou
aguardá-la, estava manchada de sangue. Gritos de terror ecoaram na rua estreita. Outra pedra foi lançada
sobre Hanna e não a atingiu por pouco. Mas agora o grosso da multidão já retrocedia. Em breve, os
quatro viajantes viram-se sozinhos.
Bei Mooden sorriu para Hanna, os dentes brancos resplandecendo em contraste com sua barba
muito negra. Trocou algumas palavras com Sam e apontou para ela.
— Bei está dizendo que é uma mulher muito valente. — Sam traduziu. — Ora, isso eu mesmo
poderia ter lhe dito.
Ela riu nervosamente.
— Diga-lhe que os homens de Santa Cruz precisam aprender a mostrar boas maneiras para com

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as damas.
— Não têm nenhuma experiência com damas, quanto mais com boas maneiras. Não notou que
era a única mulher na rua?
Mooden falou algo para Rais. Este fez um gesto de assentimento e riu.
— E agora, o que estão dizendo? — Hanna perguntou a Sam.
— Mooden afirmou que tem a coragem de uma leoa. Acha que é uma companheira ideal para
mim, e Rais concordou com ele. Mas isso eu também poderia ter-lhes dito.
A frágil alegria dela se desvaneceu. Na verdade, não tinha tanta confiança na própria coragem.
Os quatro seguiram em silêncio até a extremidade norte de Santa Cruz, onde foram procurar um
primo distante de Rais. O homem, um ferreiro sem papas na língua, indicou os fundos de sua oficina a
Hanna e Sam, dizendo-lhes que poderiam dormir ali. Depois, como que para se redimir de não tê-los
convidado a ficar sob seu teto, mandou servir-lhes uma farta refeição: peixe assado, pão e carneiro
temperado com especiarias.
Hanna, apesar de faminta, não comeu muito. As semanas de alimentação parca haviam feito
diminuir seu apetite. Satisfeita, pousou o prato de madeira no chão.
— Devia comer mais, meu amor. Quando formos procurar o sr. Peterson em Mogador, ele vai
pensar que eu a submeti a uma dieta de fome.
Ela não respondeu. Quando chegassem a Mogador, não demorariam a se separar. Não gostava de
pensar no doloroso futuro que a aguardava. Olhou-o por sob as longas pestanas. Sam sorriu-lhe
preguiçosamente. Aquele pequeno quintal parecia-lhes muito acolhedor depois de enfrentarem os
espaços abertos do deserto. Agora que seus companheiros estavam ceando no interior da casa, os dois
tinham oportunidade de ficar sozinhos pela primeira vez em semanas.
Sam cutucou a fogueira, empunhando um graveto com ar ausente.
— Quando a vi no jardim dos Browns, usava roupas finas e brincos de brilhantes. Agora suas
roupas se reduziram a uma túnica empoeirada. Quem me dera nunca tê-la deixado ultrapassar os limites
daquele jardim!
Hanna retraiu-se, melindrada.
— Fala como meu pai. Ele também achava que errei em sair de Providence.
— Seu pai era um homem admirável. Sabe, no começo eu lhe tinha muita prevenção. Depois,
acabei concluindo que partilhávamos certos pontos em comum. Ele a amava. E eu também.
— O que meu pai disse sobre nos casarmos, Sam... Eu não devia ter lhe contado nada. Não quero
que se sinta obrigado a ficar comigo ou que me olhe com piedade. O mais provável é que meu pai
tencionava passar a perna em George Gill.
Ele fitou-a longamente. Não lhe passara despercebido que Hanna tentava mudar de assunto, e
perguntou-se por quê. Fora paciente e dera-lhe um tempo para que superasse o trauma da morte do pai.
Mas agora seu prazo se esgotara.
— O que diabo George Gill tem a ver com eu me sentir na obrigação de desposá-la?
Aliviada por desviar o rumo da conversa, Hanna emendou rapidamente:
— Meu pai temia que Etienne tentasse se apoderar de nossa fortuna. Nomeou a mim sua
herdeira. E, se eu morresse, George Gill ficaria com tudo.
— Compreendo. — ele murmurou, pensativo. Sua fisionomia tornou-se subitamente dura. —
Sim, compreendo. Bem que estranhei a solicitude de Amos Howard para com Gill. Talvez tivesse se
mancomunado com ele desde o começo. Talvez, aquela verga que caiu...
— Isso já faz parte do passado. — Hanna interrompeu. — Howard está morto, eu estou viva.
Nunca gostei do capitão Gill, mas duvido que chegasse ao ponto de querer me matar. Afinal, era muito
amigo de meu pai.
— Estranho amigo, se me permite dizer.
Sam absteve-se de insistir no assunto. Hanna tinha razão. A Truelove e sua tripulação faziam
parte do passado.
Os olhos dela pareciam contas de safira às luz do fogo. Seus lábios cheios entreabriam-se num
convite mudo. Sam pousou a mão sob a manga de sua túnica e acariciou-lhe a pele abrasada.
— Minha leoa. — murmurou, fazendo com que Hanna se sentasse em seu colo.

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Ele roçou a boca em seu pescoço, provocando-lhe um arrepio. Com gestos ansiosos, acariciou-
lhe o corpo inteiro. Hanna afagou-lhe os cabelos, enquanto reprimia um gemido. Quase havia se
esquecido das sensações que Sam tinha o dom de lhe despertar. Devagar, muito devagar, inclinou-se e
beijou-o na boca. E seu beijo era tão impregnado de doçura e de dor, que ela quis chorar.
— Case-se comigo, Hanna. Se me ama, case-se comigo.
Ela recuou, rígida como uma estátua, os olhos perscrutando o rosto de Sam ansiosamente.
— Já lhe disse que não tem obrigação de me desposar.
— Pois eu insisto que tenho. Nunca amei uma mulher como a amo.
— E eu nunca amarei outro homem com tamanha intensidade. — Hanna vacilou, ainda sem
coragem de acreditar no que Sam lhe oferecia. — Estaria disposto a ficar comigo? Mesmo sabendo de
tudo?
— Sim. Se concordar, poderemos nos casar logo que chegarmos a Mogador... Com os diabos, o
que devo fazer para convencê-la a me aceitar como marido?
Sam beijou-a quase com brutalidade, como que para puni-la de fazê-lo sofrer com sua indecisão.
Seus corpos se fundiram num abraço, enquanto as mãos dele deslizavam sob a túnica de Hanna,
tateando-lhe as curvas suaves. Por baixo das roupas de algodão, segurou-lhe os quadris e penetrou-a. Os
gemidos dela foram abafados por seus beijos. Aqueles gemidos de prazer, ele os interpretou como uma
aceitação.

O trajeto de Santa Cruz a Mogador transcorreu sem percalços. Ademais, depois de atravessar o
deserto, nada mais haveria de abalá-los.
Nas cercanias da cidade, puseram-se a subir numa colina. Bei Mooden foi o primeiro a chegar ao
cume. Ergueu-se nos estribos e gritou:
— Mogador! Mogador!
Momentos mais tarde, os outros três foram juntar-se a ele no topo da colina. Do outro lado, lá
embaixo, espraiava-se a cidade de Swearah, com a ilha de Mogador protegendo o porto. As águas da
baía lembravam um espelho prateado, em cuja superfície repousavam serenamente navios europeus e
americanos.
As habitações de pedra tinham pintura branca descorada. Os telhados eram todos verdes.
Pareciam fazer parte de uma cidade de brinquedo.
Mas aquela cidade era real, felizmente, Hanna pensou. E, nisso, avistou uma bandeira americana
tremulando contra o mar de telhados verdes.
— Veja, Sam! A casa do cônsul!
Ele, porém, não olhou nem para ela nem para a bandeira. Imóvel, com o rosto contraído, Sam
fixava insistentemente os navios no porto. Tinha receio até mesmo de piscar e descobrir que o que via
não passava de uma miragem.
Pois, ancorada placidamente ao lado das outras embarcações, com todas as veias e mastros em seu
devido lugar, lá estava a Truelove.
— Eu sabia que eles tinham sobrevivido à tempestade! Oh, Sam, mal posso acreditar! Letty,
Jeremy e o sr. Lawson... todos se salvaram! — Hanna exultou, contemplando o brigue que ele lhe
apontara.
— E minha Truelove continua inteira — Sam completou. Também ele estava exultante.
Agradavelmente perplexo, dir-se-ia. Ali, diante de seus olhos, surgia-lhe o milagre por que sempre havia
esperado. Da última vez em que vira o navio, calculara que lhe restava apenas mais uma hora de
flutuação. Agora, seu brigue lhe surgia em perfeito estado, sem nenhum vestígio dos danos causados
pela tormenta. O conserto devia ter sido obra de Lawson, pensou, cheio de gratidão.
Todo o seu pesar, fora, em resumo, vão. A tripulação da Truelove havia de estar a salvo. E ele
ainda era seu capitão. Quando desposasse Hanna, não seria mais na condição de um homem totalmente
destituído de posses.
— Preciso ver meu brigue. Bei Mooden a levará ao consulado, meu anjo. Irei encontrá-los logo
que for possível.

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Dito isso, Sam preparou-se para prosseguir a toda pressa. À distância, o navio parecia-lhe em
perfeito estado, mas precisava verificar suas condições com mais atenção. Queria saber a quanto
montava a tripulação e como todos haviam chegado a Mogador. Ah, tantas perguntas fervilhavam em
seu espírito!
Hanna, contudo, o deteve:
— Não, Sam! Não o deixarei ir sozinho! Comemos juntos o pão que o diabo amassou, e não será
agora que nos separaremos!
Ele se imobilizou, estarrecido com o súbito rompante de indignação dela. Lentamente, sorriu. Por
mais que amasse seu navio, nada se comparava ao amor que sentia por Hanna. Por um instante, quedou-
se embriagado de felicidade pela boa sorte que a colocara em seu caminho, enchendo sua vida de luz.
Hanna, alheia a seu devaneio sentimental, atirou os cabelos para trás com expressão obstinada.
— Não é justo! Eu me recuso a acompanhar Bei Mooden!
— Se o mundo fosse justo, meu anjo, eu não poderia sequer sonhar em ter uma mulher como
você.
A verdade era que Sam tampouco desejava separar-se dela. Mas não havia como ignorar que
Hanna estava vestindo roupas altamente impróprias para circular em um porto. A túnica mal cobria suas
pernas nuas, e o xale esfarrapado dificilmente lhe conferiria um ar de decência.
— Se estivesse com roupas adequadas, eu não hesitaria em levá-la comigo. — justificou,
inclinando-se sobre a sela para segurar-lhe a mão. — Sou um homem ciumento e não quero ver os
marujos devorando-a com os olhos. Conheço muito bem esses marinheiros que andam por aí.
— Eu também. Afinal, não estou prestes a me casar com um? — ela gracejou.
— Quanto a este marinheiro, não terá do que se queixar. Fique sossegada.
Hanna não pôde se furtar de sorrir, imaginando como Sam causaria sensação junto às damas de
Rhode Island. Com seu porte imponente, a barba cerrada e o sabre no cinturão, certamente faria muitas
moças suspirarem ao vê-lo passar... Não que ela fosse lhes permitir qualquer atrevimento: mulheres
apaixonadas eram tão ciumentas quanto seus pares.

— Pobre criatura! — a sra. Peterson exclamou escandalizada. Cruzou a sala e segurou Hanna
pelos ombros, com tal impulsividade que Bei Mooden logo levou a mão ao cabo da cimitarra. — Mas
não compreendo... O sr. Peterson recebeu a notícia de que a srta. Hanna Snow, de Providence, havia
morrido afogada no meio do oceano!
— Com efeito, o navio em que eu viajava naufragou. Porém, graças a Deus escapei com vida.
Depois fui feita escrava pelos árabes e consegui fugir.
Ela notou que a esposa do cônsul fizera menção de abraçá-la, mudara repentinamente de idéia e
agora retrocedia alguns passos para ficar fora do alcance de Bei Mooden.
— Realmente, muitos de nossos compatriotas já foram capturados e escravizados pelos árabes. O
sr. Peterson precisou se esfalfar para conseguir libertá-los. Mas é a primeira vez que isso ocorre com
uma dama! — disse a sra. Peterson, enxugando delicadamente a testa com um lenço rendado.
A exemplo de todas as mulheres inglesas e americanas que viviam na cidade, a esposa do cônsul
insistia em se vestir como se estivesse em sua terra natal, usando pesado cetim de algodão, armação de
barbatana de baleia e um sem-número de saiotes. Hanna sentia calor só de olhar para ela.
— O sr. Peterson terá que dar tratos à bola para resolver este assunto. — prosseguiu a outra. —
No momento, ele está tendo uma audiência com o paxá. Quando retornar, cuidará do seu caso.
Realmente, srta. Snow, foi um milagre que tenha escapado dos árabes!
— Na verdade, madame, devo minha vida ao capitão Samuel Colburn, de Salem. Foi ele quem
me libertou. Nós pretendemos nos casar ainda hoje, se for possível. — Hanna revelou, sorrindo
timidamente.
— Hoje! Minha criança, isso é um disparate! Não se pode fazer os preparativos para um
matrimônio em apenas um dia! Antes de mais nada, precisa descansar e providenciar o vestido. Depois,
daremos um baile em sua homenagem. Só então haverá a cerimônia de casamento.
Hanna, no entanto, não estava preocupada com uma cerimônia cercada de pompa. Tudo o que

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queria era Sam.
— É muito gentil, madame. Mas prefiro que o casamento se realize hoje. Seria o mais
recomendável, pois já passei muitas semanas na companhia do capitão Colburn. Muitas semanas, e
completamente a sós com ele. — Hanna declarou, com deliberada ênfase.
Para um bom entendedor meia palavra basta, e a mulher do cônsul lançou-lhe um olhar crítico,
medindo-lhe a cintura para ver se detectava algum vestígio de gravidez.
— Naturalmente, tem razão, senhorita. A celebração pode vir depois do casamento também.
Onde está o noivo?
— O capitão Colburn foi ao porto. Até o dia de hoje, ignorava que seu brigue havia escapado da
tempestade que quase o destroçou. Ele virá me encontrar assim que vistoriar a Truelove e certificar-se de
que está tudo em ordem com o navio.
A despeito de sua euforia, ela não deixou de notar que a esposa do cônsul empalidecia à menção
do nome do brigue, pressionando nervosamente o lenço nas faces para dissimular seu desconforto.
Finalmente, a sra. Peterson desviou o olhar e disse:
— O sr. Peterson haverá de solucionar essa questão. Agora venha comigo. Precisa se lavar e
vestir roupas decentes.

A coragem de Rais bei Cossim perante um inimigo jamais fora questionada. Só que ele não sabia
nadar e, por isso, negara-se a entrar no bote que cruzava a baía. Sozinho, Sam foi com o barqueiro até o
ponto onde a Truelove estava ancorada. Sorriu satisfeito, apreciando a sensação de estar num barco
novamente. Passara três meses em terra e, exceto pelo período em que fora prisioneiro de guerra, nunca
havia ficado tanto tempo longe do mar.
Examinou a Truelove com ansiedade à medida que o bote ia se aproximando do brigue. Viu o
velame novo, os mastros reluzentes e a amurada impecável. Um pouco intrigado, perguntou-se como
Lawson havia conseguido pagar a restauração do navio. Talvez Peterson tivesse lhe feito um
empréstimo. Em todo caso, o que restara das moedas de Seid seria suficiente para pagar as despesas da
reforma.
Lembrou-se de Howard e sentiu o sangue ferver. Precisaria de todo o autodomínio para não
matar o imediato com as próprias mãos depois do que ele fizera a Hanna.
Havia apenas um vigia cumprindo seu turno, um homem careca que Sam não reconheceu. Não
era incomum se empregarem novos tripulantes em um navio. Porém, ele receou que o marujo tivesse
sido contratado para substituir algum amigo morto na tormenta.
Franziu o cenho ao avistar a escada de corda pendendo num dos flancos do brigue. Tratava-se de
uma atitude negligente demais em um porto estranho, especialmente quando a maior parte da tripulação
encontrava-se em seus alojamentos.
Atirando um par de moedas ao barqueiro, Sam trepou na escada e começou a subi-la.
— Alto lá, seu bárbaro! — gritou-lhe uma voz pouco familiar.
Sam pulou no convés. Um homem atarracado e forte postou-se ameaçadoramente diante dele
com um cassetete na mão.
— Alto lá! Não admitimos ladrões a bordo deste navio!
Tarde demais, Sam lembrou-se de que ainda usava roupas mouriscas. Não podia culpar o outro
por não reconhecê-lo como um capitão americano. Ainda assim, aquela, acolhida não era exatamente a
que havia esperado. Tirou o turbante e encarou o marujo.
— Se não quer receber visitas inesperadas a bordo, deve puxar a escada. Como se chama,
homem?
O outro ficou visivelmente desconcertado ao ouvi-lo falar em inglês.
— Meu nome não é da sua conta. Agora desapareça! O capitão deu ordens para que eu arrebentar
a cabeça de quem nos causar problemas!
— E eu ordeno que fale direito comigo, ou lhe arrebentarei a cabeça antes que dê um passo! —
Sam, transtornado, cerrou os punhos. — Sou Samuel Colburn, capitão e dono deste brigue. Estou
disposto a ser complacente por causa de sua ignorância. Mas não espere que eu seja condescendente uma

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segunda vez!
— Se é o capitão, eu sou um mico de circo. Suma-se daqui!
Nisso, Jeremy precipitou-se para Sam de braços abertos.
— Capitão Colburn! Oh, disseram que o senhor e a srta. Snow tinham morrido afogados, mas eu
sabia que um dia ainda iria retornar!
Sam curvou-se para abraçar o menino. Manteve o olhar fixo no marujo.
— Parece que esse sujeito não acredita que eu sou o capitão, Jeremy.
— Esse é o sr. Clagget. E esse é o capitão Colburn, sr. Clagget. — O garoto fez as apresentações,
sem se dar conta da crescente tensão entre os dois homens. E dirigiu-se ao marujo, esclarecendo: — O
capitão Colburn não está mentindo, não. Eu o conheço de Salem e trabalhei muito tempo para ele. Meu
irmão Ben e meu pai também o conhecem.
Foi aí que Amos Howard entrou em cena. A primeira coisa que fez foi repreender Jeremy.
— Maldito seja, garoto preguiçoso! Por que não está trabalhando? Vou lhe dar uma surra para
que aprenda a...
Naquele momento, Amos viu Sam e empalideceu, como se deparasse com um fantasma.
Sam, por sua vez, viu diante de si o homem que havia tentado matar Hanna e que usurpara seu
lugar no comando do brigue.
Clagget cuspiu no deque com desprezo.
— Esse patife diz ser o dono do navio, capitão Howard. E o menino confirma as palavras dele.
Não entendo mais nada.
— O garoto não sabe o que fala. — Amos replicou, fazendo um esforço para manter a
compostura. — Não tem direito de voltar para a Truelove, Colburn. Abandonou o brigue e deixou a
tripulação entregue à própria sorte. Não fosse por mim, que o trouxe a salvo para o porto, todos nós
estaríamos mortos a esta altura. Eu salvei a Truelovel O sr. Gill providenciou sua restauração e agora ela
me pertence!
— Gill! — Sam repetiu, agastado.
Mais uma vez aquele maldito homem se punha em seu caminho. O amigo do capitão Snow que
se beneficiaria com a morte de Hanna. O mesmo homem que, agora, também queria tirar-lhe seu brigue.
Percebendo sua agitação, Amos ficou mais seguro de si e ajuntou:
— Sim, George Gill. Um cidadão respeitável e honesto. Veio para cá com o nobre intuito de
escoltar o corpo de seu amigo John Snow até a América. Foi graças ao dinheiro dele que a Truelove pôde
ser restaurada. Depois o sr. Gill declarou-me capitão. Não tem mais nenhuma autoridade neste navio,
Colburn.
— O diabo que não tenho! E sabe disso!
Sam perdeu a paciência. Empurrou Jeremy para o lado, não querendo envolver o menino que no
estava prestes a acontecer. E era inevitável que algo acontecesse. Ao lado de Howard estavam o dinheiro
de Gill e sua influência junto às cortes marroquinas. Provavelmente, o cônsul também compactuara com
o embuste. Diante disso, a situação de Sam era assaz precária: tudo o que tinha a seu favor era a
convicção de que o brigue ainda lhe pertencia e a determinação de lutar para reconquistá-lo.
— Então esse foi o seu preço, hein, Howard? Mataria Hanna e, em troca, receberia a Truelove!
— Não tem provas de nada! — o outro contrapôs.
Mas, mesmo enquanto ele falava, um suor frio banhava-lhe a testa. Os outros homens
gradualmente vieram rodeá-los no deque e puderam notar o desespero de seu suposto capitão. Até,
Clagget, o imediato, juntara-se aos companheiros para assistir ao confronto entre os dois.
Sam afastou as pernas para se equilibrar melhor e oscilou o corpo para acompanhar o balanço do
brigue. A brisa que lhe agitava os cabelos soltos e sua túnica branca enfatizavam a tensão que se
irradiava de seu corpo.
— Eu vi tudo com meus próprios olhos, Howard. Eu o vi empurrá-la para a amurada. Não
abandonei a Truelove e seus tripulantes. Lancei-me ao mar para salvar a srta. Snow. Quanto aos outros
acidentes... a queda dela e a verga quebrada... Aposto que foram obra sua, não?
— Aquela prostituta merecia morrer! Se não acredita, pergunte ao sr. Gill! A despudorada se
entregou ao francês no próprio leito conjugal dele!

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Sam apertou os maxilares, os olhos castanhos lançando chispas de cólera.
— Ela ainda está viva. E em breve será minha esposa.
Howard entrou em pânico. Enfiou a mão por baixo do casaco e sacou o punhal que trazia à
cintura.
Sem dar-lhe tempo de reagir, Sam desembainhou a cimitarra. O sol incidiu na lâmina curva
quando ele a ergueu e encostou sob o queixo de Howard.
O imediato ficou lívido e largou o punhal, que caiu no deque com um ruído seco.
— Nunca terá a Truelove de volta! Gill não o permitirá! E a vida daquela prostituta não valerá
nada quando ele descobrir que se encontra em Mogador! — Howard soltou uma gargalhada nervosa. —
O que vai fazer, hein, Colburn? Acaso pretende assassinar-me como o pagão por quem se faz passar
agora? Aqui, em meu convés, com toda a tripulação por testemunha?
— Por três vezes tentou matar minha Hanna. — acusou Sam. Depois, por um longo momento,
não disse mais nada. O rosto do imediato pareceu-lhe estranhamente distorcido, como se o olhasse
através de uma lente grossa. Em um de seus braços, estavam tatuadas cinco estrelas. As mesmas estrelas
que Hanna vira antes de ser atirada pelas escadas do porão.
Ele sentiu como o cabo do sabre se encaixava bem em sua mão. Era uma arma muito leve, cuja
lâmina silvava no ar enquanto ia retalhando pele, carne e ossos. Sam odiava aquele homem por todas as
maldades que praticara. Poderia matá-lo agora. Sim, poderia...
Mas, em vez disso, tornou a recolher o sabre. Se tirasse a vida de um homem desarmado, não
passaria de um covarde.
Já matara por patriotismo e pela própria sobrevivência. Não mataria por amor. Hanna não
gostaria que fizesse isso.
Prometa-me que vai se cuidar. Lembre-se de quanto eu o amo, ela dissera-lhe quando se
despediram no alto da colina.
Sam tirou a cimitarra e sua bainha do cinturão e atirou-os no deque. O cordão vermelho da
bainha lembrou vagamente um filete de sangue escoando-se na madeira. Supersticiosos, os tripulantes
recuaram com medo de tocá-la. Além disso, o estranho olhar do antigo mestre os intimidava, e um deles
chegou até a fazer o sinal-da-cruz. Muitos recordavam que o capitão Colburn jamais virava as costas a
um embate. Por que então desfizera-se do sabre?
Howard também fitou a cimitarra caída no deque. Quedou-se boquiaberto, na mais completa
incredulidade. Porém, no momento seguinte se refez do susto e apressou-se em agarrar o punhal que
jazia aos pés de Sam. Aí se endireitou, flexionando ligeiramente as pernas em posição de ataque,
enquanto passava o punhal de uma mão para a outra.
— O que aconteceu, Colburn? Perdeu a coragem? — provocou. — Talvez tenha passado muito
tempo com essas roupas árabes. Acabou gostando da coisa, não foi? Túnicas como essa lembram muito
os saiotes das mulheres, hein, Colburn?
Sam permaneceu imóvel. Ouviu o canto da brisa que roçava as velas. Ouviu os gritos das
gaivotas que planavam sobre suas cabeças. Prestou atenção às batidas de seu coração. Então sorriu
lentamente para Howard. O imediato continuou a balançar o corpo de um lado para outro, o punhal
rebrilhando na mão. Quando atacou, Sam estava preparado para revidar.
Ele agarrou o pulso de Howard antes que este pudesse atingi-lo. Torceu-o com força, obrigando o
imediato a se ajoelhar.
O outro era mais baixo que Sam, e também mais troncudo. Jogou todo o peso do corpo sobre
Sam, que oscilou mas manteve-se firme e não o soltou. Numa derradeira manobra, Howard usou a mão
livre para puxar-lhe a perna.
Os dois rolaram pelo convés. Num dado momento, Sam sentiu a extremidade da amurada
pressionar-lhe as costas. Segurou-se nela com uma das mãos; usou a mão livre para acertar um soco no
queixo de Howard. O rosto do imediato bateu contra o deque. Quando tornou a virar a cabeça, seu nariz
sangrava. Mas, ainda assim, não largou o punhal.
Sam golpeou-o outra vez. Atordoado, Howard relaxou a pressão no cabo do punhal. Sam
arrebatou-o e arremessou-o ao mar. Aí pôs-se de pé, obrigando o outro a se levantar também. Segurou-o
contra a amurada, ofegante.

PROJETO REVISORAS 95
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— Seu cão imundo... irá se haver com Peterson... será julgado... preso...
Howard balançou a cabeça, os olhos desfocados.
— Vá para o inferno, Colburn! — vociferou, contorcendo-se furiosamente.
Sam soltou-o e abaixou-se para escapar ao soco que ele lhe endereçava. Howard perdeu o
equilíbrio, oscilou por cima da amurada e, por fim, caiu no mar. Ainda agitava o punho e gritava,
zangado e confuso, quando as águas se fecharam sobre ele.
Mãos fortes agarraram Sam e afastaram-no da amurada. Mas, antes, ele ainda pôde ver Howard
emergir à superfície, debatendo-se e engasgando, enquanto sua camisa manchada de sangue espalhava
um rastro avermelhado na água. No mesmo instante, uma sombra acinzentada passou a seu lado: um
tubarão, atraído pelo sangue que se escoava. O imenso peixe abriu as mandíbulas, pondo à mostra as
múltiplas fileiras de dentes afiados. Abocanhou Howard e arrastou-o para o fundo do mar. Do imediato,
restou um grito de terror e a espuma branca coalhada de sangue púrpura.
— O que está havendo? — Letty perguntou, precipitando-se para o convés. — Amos, onde se
meteu?
Lawson segurou-lhe o braço gentilmente e guiou-a de volta à escada.
— Acalme-se, dona. Preciso lhe falar. Vamos lá para baixo. O verdadeiro capitão voltou e
aconteceu um terrível acidente...
Entrementes, Sam abraçou Jeremy e não permitiu que o garoto assistisse ao triste espetaculo.
Fechou os olhos, tentando se esquecer, do que acabara de presenciar. Rais bei Cossim tivera razão em
temer as águas da baía de Mogador.
Agora, pensou exaurido, só lhe restava ir buscar Hanna antes que George Gill a encontrasse.

CAPÍTULO XIX

Hanna sentou-se na borda de uma cadeira estofada de linho adamascado, na sala de estar do
consulado. À sua frente, repousava um prato intocado de guloseimas e uma xícara de chá.
Mal prestava atenção às tagarelices da sr. Peterson, que tecia mexericos sobre um punhado de
gente que ela nem ao menos conhecia. Hanna, no fundo, sentia falta de Bei Mooden. Lamentava que ele
tivesse sido banido para o pátio da casa. Ah, como tudo aquilo parecia-lhe irreal! Era esquisito instalar-
se numa cadeira depois de passar meses montando em camelos e sentando-se na areia. E sentir a pele
limpa novamente, cheirando a lavanda. Estranho também usar sapatos apertados, meias presas por ligas
e um vestido da sra. Peterson reformado às pressas. Os grampos de tartaruga enterravam-se nos cabelos
loiros, penleados no alto de sua cabeça, causando-lhe um vago desconforto. As guloseimas em seu prato,
pão branco, presunto, rosbife fatiado e geléia de laranja, eram-lhe ao mesmo tempo fascinantes e
inesperadas.
Mas o mais estranho de tudo era a ausência de Sam. Ela ouviu a porta da frente se abrir. Depois,
vozes masculinas no vestíbulo. A sra. Peterson cruzou as mãos no regaço e olhou cheia de expectativa
para o corredor.
O cônsul surgiu à porta da sala. Homem afável, vestia-se em trajes de gala por força da audiência
no palácio do paxá. Sorriu para a esposa, com o rosto corado devido ao calor. Hanna apressou-se em
estender a mão para cumprimentá-lo.
O cônsul lhe inspirou confiança. Quando lhe segurou a ponta dos dedos, Hanna logo achou que,
com efeito, encontraria rapidamente uma solução para seu caso.
— Que bom que chegou cedo, meu querido! — a sra. Peterson ia dizendo. — Temos uma visita
inesperada. Permita-me que o apresente à srta...
— Hanna Snow. — completou George Gill, parando ao lado do batente com uma expressão ao
mesmo tempo condenatória e desdenhosa. — Se tivesse o mínimo senso de decência, Hanna, ficaria para
sempre longe da civilização.
Estupefata, ela se levantou, derrubando o guardanapo.
— Capitão Gill. Não esperava encontrá-lo aqui. — disse, com uma súbita onda de náusea.
Mas Gill ignorou-a. Cruzou o aposento e postou-se diante dos Petersons.

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— Esta é a jovem que descrevi ao paxá ainda há pouco. Uma vergonha para o pai, uma desgraça
para sua família! Sinto-me grato que seus pais não estejam vivos para ouvirem quando a acusarem de
traidora. A relação de seus pecados já é demasiado longa para comportar mais essa aberração.
A sra. Peterson encarou-o friamente, como que a lembrá-lo de que aqueles não eram modos
apropriados em sua sala de visitas.
— Sr. Gill, tenho que lhe pedir que me dê uma explicação para esta cena desagradável.
— Sugiro-lhe que fale diretamente com a rapariga. — Ele então virou-se para Hanna. — Entre os
papéis que encontrei em meu novo brigue, havia documentos em francês, descrevendo a carga como
propriedade de um certo homem da Martinica, ex-amante da srta. Snow.
— Sr. Gill, veja como fala! — a esposa do cônsul exclamou.
— Perdoe-me por ser tão direto, senhora. Mas não posso lhe esconder a verdade dos fatos. Essa
criatura que acolheu sob seu teto não merece consideração. O capitão de meu navio jurou que, quando
foi abordado por uma fragata francesa, essa mulher iludiu o outro capitão. Declarou simpatia à França da
forma mais vergonhosa e lasciva, pouco se importando que seu país e a França estivessem em guerra!
Traição e patifaria, eis no que se resume seu comportamento!
— Por Deus, não foi assim que as coisas se passaram! Papéis forjados não constituem traição à
pátria. Quanto ao resto... o senhor deturpou tudo! — Hanna protestou, crispando as mãos no encosto da
cadeira.
Gill fez uma careta de desgosto.
— Eu não esperava mesmo que reconhecesse sua culpa.
— Por que está me caluniando? Não se dizia tão amigo de meu pai?
— É um pouco tarde para demonstrar devoção filial, não acha, Hanna? Eu jurei que encontraria
seu pobre pai e cumpri minha promessa. Vim para cá à custa de meu próprio dinheiro, mas, infelizmente,
recebi a notícia de que ele pereceu no deserto meio ano atrás.
— Mentira! Eu o encontrei há menos de dez semanas, e ele estava vivo!
— Seu pai está vivo, srta. Snow? — o sr. Peterson indagou com interesse.
Uma sombra de tristeza cruzou o olhar de Hanna.
— Não. — respondeu. — Ele morreu me defendendo dos árabes que nos mantinham cativos.
— Uma história deveras comovente, senhorita. Como pode provar o que está dizendo? E onde
está corpo? — Gill troçou.
— Nós o enterramos obviamente.
Gill cruzou os braços impaciente. Hanna contornou a cadeira, sentindo que começava a perder
terreno naquela discussão.
— Agora ouça-me! Meu pai contou que lhe enviou seis cartas, pedindo-lhe que o libertasse.
— Isso é o que a senhorita diz. Eu não recebi nem uma carta dele sequer.
— Então por que veio justamente para Mogador? Quando o vi pela última vez em Newport,
parecia tão convencido quanto eu de que meu pai se achava numa prisão em Londres. — Ela aproximou-
se de Gill, rubra de cólera, os olhos verdes dardejando. — Mas é claro que já sabia que ele fora
capturado pelos árabes. E, deliberadamente, ignorou suas súplicas para que lhe pagasse o resgate! Sabia
de tudo, não é?
— O raciocínio da srta. Snow é bastante lógico, Gill. — o cônsul declarou. — Quando chegou
aqui, parecia já saber que o capitão Snow fora capturado e havia morrido nas mãos dos árabes. Como se
inteirou disso antes da chegada da srta. Snow? Para tanto, precisaria ter mantido algum tipo de
comunicação com o pai dela. Os árabes são muito eficientes no envio de suas mensagens, pois, sem o
pagamento de um resgate, os prisioneiros não lhes tem nenhuma serventia.
Gill bateu a mão no peito, afetando ressentimento.
— É a minha palavra contra a dela, senhor!
— Perfeitamente. — Peterson sorriu e virou-se para Hanna. — A srta. lembra o nome de seus
captores?
— O líder do grupo que me aprisionou atendia pelo nome de Hamet. Isso é tudo o que sei.
Lágrimas afloraram nos olhos dela quando recordou quão breve fora seu reencontro com o pai.
Baixou o rosto para que os outros não notassem sua desolação.

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— Ainda me pergunto como, em todo o vasto deserto, pudemos ser capturados pelo mesmo
homem. Antes de fugirmos, meu pai matou Hamet e sofreu o ferimento que lhe custou a vida.
Hanna mal tomou consciência de que a sra. Peterson parara a seu lado e pousara a mão em seu
ombro para consolá-la. Tinha vontade de chorar, mas obrigou-se a ficar firme. Não daria a Gill a
satisfação de vê-la cair em pranto.
— Na verdade, seu encontro não foi uma coincidência tão grande como pensa. São sempre as
mesmas tribos que costumam raptar estrangeiros para pedir resgate. Conheci Hamet. Era um dos líderes
mais pobres. Teria se contentado com cinqüenta dólares para libertar seu pai. — o sr. Peterson explicou.
— Cinquenta dólares? — ela gritou, fora de si, fulminando Gill com o olhar. — Deixou meu pai
padecer durante meio ano por causa de uns míseros cinquenta dólares! Deixou-o morrer porque queria
para si essa quantia irrisória? Por todos os santos! Ele o considerava seu melhor amigo!
O semblante dele ficou transfigurado de raiva.
— Nesse caso, nunca deveria ter permitido que a filha se tornasse amante daquele francês!
Hanna sentiu as faces queimarem de vergonha ante as palavras maldosas de Gill. Seu
constrangimento só não foi maior porque a sra. Peterson apiedou-se dela e deu-lhe uma palmadinha
tranquilizadora no ombro.
— Por que diz isso? Acaso me tem rancor porque não aceitei casar com seu filho? Tom nunca me
quis como esposa, da mesma forma como nunca me ocorreu recebê-lo como marido. Simplesmente não
existia amor entre nós. — Hanna replicou pausadamente.
— A despeito de seu romantismo barato, asseguro-lhe que viveria muito feliz com a união de
nossas fortunas!
— Basta, Gill! — o sr. Peterson interveio, segurando-lhe o braço.
— Se não pretende fazer nada para detê-la, então tomarei minhas próprias providências! — ele
gritou, e esquivou-se com um safanão.
Gill empurrou a sra. Peterson violentamente e agarrou Hanna. Segurou-a contra o próprio corpo,
pressionando o braço contra o peito dela qual uma barra de ferro. Aí dirigiu-se ao cônsul com voz
alterada:
— Essa mulher é uma criatura ardilosa! Enganou-o assim como enganou a todos os outros!
Ela enterrou as unhas em seu braço, tentando se libertar. Gill apanhou depressa uma faca sobre a
mesa de chá e encostou-a em sua garganta. Com um gemido, Hanna deixou as mãos caírem. Sentiu a
ponta da lâmina machucar-lhe a pele e se encolheu.
O braço de Gill exercia tal pressão em seu peito que ela mal podia respirar. A sua frente, os rostos
estarrecidos do sr. e da sra. Peterson começaram a ficar borrados, e Hanna foi tomada de vertigem.
Fechou então os olhos, quase a ponto de desfalecer.
Os dedos de Etienne fecharam-se em torno de seu pescoço. O anel que ele usava afundou em sua
carne.
— Olhe para mim, ma chére.
Hanna sentiu que o marido era sacudido por espasmos e soube que o gozo dele estava quase
terminado.
-Maldita seja, abra os olhos, sua cadela! — ele vociferou...
— Solte-a, Gill! — Sam trovejou, precipitando-se para a sala.
Atrás dele vinham Bei Mooden e Rais bei Cossim, cada qual empunhando a respectiva cimitarra.
Com um grito inarticulado, a sra. Peterson escondeu-se atrás do marido e implorou:
— Solte a moça, pelo amor de Deus!
— Colburn! — O rosto de Gill era uma máscara de ódio. — Howard garantiu-me que também
estava morto. Meu Deus, será que é tão difícil eliminá-los?
— Faça essa pergunta diretamente a Howard... se é que conseguirá encontrá-lo. Agora deixe
Hanna em paz. Eu disse e repito: não admitirei que a ameace. Solte-a de uma vez por todas! — Sam
exigiu.
— A despeito do que possa achar, o paxá acredita em mim. Não se arriscará a acolher uma
traidora só porque ela finge inocência! Providenciará para que seja enforcada como merece!
— Assim se apropriará da herança dela, como fez com meu brigue? Com os diabos, solte-a, Gill!

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O outro fitou-o com olhar desvairado. Estava desesperado, talvez enlouquecido. Sam deu um
passo. Gill retrocedeu, a faca encostada ao pescoço de Hanna.
Ela parecia mais indefesa do que nunca, como se fosse uma boneca de trapo nos braços de Gill.
Sam e os dois mouros bloqueavam a porta da sala. O outro capitão não poderia fugir pelas
janelas tampouco, pois estavam no segundo andar da casa.
Enquanto Gill examinava freneticamente a sala para encontrar um meio de escapar, Hanna
escorregou em seus braços. Se se abaixasse mais um pouco, Sam e os companheiros poderiam dar cabo
de Gill.
Ele jamais se sentira tão impotente com uma arma na mão.
Os olhos de Hanna estavam vidrados, e Sam relembrou as ocasiões em que mergulhara em seu
pesadelo particular com Etienne. Talvez estivesse sendo assombrada pelo fantasma do marido agora.
Talvez ele ainda conseguisse trazê-la de volta.
— Hanna, meu amor. — disse suavemente, como se falasse a uma criança. — Hanna... Sou eu,
Sam. Olhe para mim, anjo.
Olhe para mim, anjo.
Aquela era a voz de Sam, não de Etienne. Sam, que a amava e que em breve seria seu marido.
Sam, o homem que ela amava de todo coração.
Sorrindo, Hanna abriu os olhos para contemplá-lo. Nunca vira aquela expressão no semblante
dele. O rosto de Sam revelava medo e uma terrível apreensão. Hanna quase riu ao flagrar o contraste
entre sua fisionomia aterrada e a ameaçadora lâmina do sabre que ele empunhava. O que poderia
provocar medo em Sam Colburn, o homem mais destemido que jamais conhecera?
Não, Hanna pensou. Na verdade, já o vira uma vez com aquela mesma expressão. Fora quando
ela pudera-se a correr na praia. Pois muito bem, hoje não tinha intenção de fugir: hoje haveria de
desposá-lo.
Ela desvencilhou-se do homem que a segurava e deu um passo na direção de Sam.
Mas o homem tornou a agarrá-la e derrubou-a no chão, imobilizando-a com o peso de seu corpo.
Hanna ouviu sons estranhos. Silvos agudos. Um gemido. Um grito de mulher.
— Não olhe agora. — Sam sussurrou, abraçando-a. — Pelo amor de Deus, não olhe para o chão!
Por sobre o ombro dele, Hanna vislumbrou Bei Mooden parado ao lado da mesa de chá. Sangue
rubro pingava de sua cimitarra, maculando a impecável toalha de linho da sra. Peterson. Só então Hanna
caiu em si e adivinhou o que havia acontecido. Com uma exclamação de horror, escondeu o rosto no
peito de Sam.
— Acalme-se, meu anjo. A única coisa que importa agora é que eu a amo. — ele sussurrou-lhe ao
ouvido.

Providence Agosto de 1797

O sol do final de verão infiltrava-se pelas janelas altas do dormitório. As cortinas estavam presas
por longos cordões, para que a brisa que vinha do rio refrescasse o aposento. Uma abelha gorda entrou
por uma das janelas e voou ao redor das rosas vermelhas dispostas sobre o consolo da lareira. Nisso, o
carrilhão do corredor badalou as três horas.
Hanna espreguiçou-se indolentemente e puxou o lençol sobre as ancas nuas. Apoiou-se no
cotovelo, afastou os cabelos da nuca de Sam e beijou-lhe a orelha. Riu suavemente ao vê-lo sorrir em
meio ao sono.
Três horas da tarde, em plena terça-feira, não era um horário muito comum para um casal de
recém-casados ficar na cama. De qualquer modo, desde o seu regresso a Providence, o capitão e a sra.
Samuel Colburn deixaram claro que não eram um casal comum.
— Já passa das três, Sam. Letty ficará chocada se encontrar nossa porta trancada de novo. —
Hanna disse.
— Esqueça Letty. — Sam respondeu com voz sonolenta. Virou-se e puxou-a para si. — Lawson
já não a mantém suficientemente ocupada?

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— Ele a manteria se você não o mantivesse tão ocupado com a Truelove.
Hanna debruçou-se sobre ele e depositou um beijo em seus lábios. Sam trouxe-a para mais perto,
até que seus seios se comprimissem contra o peito musculoso dele. Os dois riram de puro contentamento
e tornaram a se beijar.
As mãos de Sam deslizaram sob o lençol e apalparam os quadris de Hanna. O riso dela então se
transformou em um gemido rouco.
Foi aí que o choro de uma criança soou no quarto. Hanna esticou-se até a beira da cama.
— Já acordou, meu bem? Não dormiu quase nada.
— Eu também dormi muito pouco. — Sam observou num tom malicioso. Levantando-se,
curvou-se sobre o berço e pegou o bebê, que começou a agitar os bracinhos excitadamente. — Como
vai, Jack?
— Não o chame assim. Meu pai sempre foi conhecido por John. Ninguém jamais se atreveu a
chamá-lo de Jack. — Hanna replicou.
Sam acomodou-se na cama com o filho nos braços.
— Está bem, meu anjo. Quando ele crescer e singrar os mares para a China, também poderá ser
chamado de capitão John.
Hanna afagou a cabeça do menino. Ele tinha os mesmos olhos escuros e expressivos do pai.
— Capitão John Colburn. — murmurou com brandura, ainda sem acreditar no miraculoso ser
que nascera do amor dos dois. — Eu o deixarei livre para navegar à vontade, contanto que volte para
casa.
Sam segurou-lhe a mão e sorriu.
— No seu lugar, eu não me preocuparia com isso, meu amor. Nós, Colburns, sempre voltamos
para casa.

***

MIRANDA JARRETT é uma premiada designer e


diretora de arte que concilia sua paixão por história e
por leitura. Suas viagens sempre incluem visitas a
velhos casarões e restaurações históricas. Miranda e seu
marido moram perto de Filadélfia, com dois filhos
pequenos e dois gatos grandes. Ela ainda está tentando
descobrir como escrever livros ao mesmo tempo em que
aparta as brigas dos filhinhos espevitados no quintal de
sua casa.

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