Um pensamento
emaranhado
no corpo
Fabio Di Clemente
Um convite à radicalidade
E mais:
Marina Marcondes Machado >> Marcelo Henrique Toledo:
A fenomenologia da infância e a criança Plantação extensiva de
mundocentrada eucalipto X culturas tradicionais
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Ano XI
Verilda Speridião Kluth >> Sergio Mattos:
A tecnologia digital pode e deve ser
Kant e Merleau-Ponty: um debate entre usada para transmitir serviços e
31.10.2011
ISSN 1981-8769 filosofia e matemática conceitos de cidadania
Merleau-Ponty.
Um pensamento emaranhado no corpo
O meio século de falecimento do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) inspira a pre-
sente edição da IHU On-Line, realizada em parceria com a Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.
O PPG em Educação da UFMT promove, em Cuiabá, de 10 a 12 de novembro, o Simpósio Internacional
Merleau-Ponty vivo aos 50 anos de sua morte. Percursos ao redor da fenomenologia aos 90 anos do
nascimento de Paulo Freire.
Inspirada pelos conceitos do pensador francês, a artista plástica Carmen Sylvia Guimarães Aranha,
da Universidade de São Paulo – USP, menciona que a pintura sempre celebra o enigma da visibilidade.
Fabio Di Clemente, filósofo italiano docente na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, acentua
o convite à radicalidade feito por esse autor. A psicopedagoga Maria Alice de Castro Rocha analisa o
corpo como “santuário” em relação ao outro, repositório do pensamento de forma emaranhada. A feno-
menologia da infância e a criança mundocentrada é o tema da psicóloga Marina Marcondes Machado,
analisando os Cursos da Sorbonne, proferidos por Merleau-Ponty. Luiz Augusto Passos, docente na UFMT,
examina a vasta e atual obra merleau-pontyana e estabelece relações entre a fenomenologia do pensa-
dor francês e Paulo Freire nos movimentos sociais brasileiros na década de 1980. O matemático Ubiratan
D’Ambrosio, professor na Universidade Bandeirante – Uniban, situa a fenomenologia e a etnomatemá-
tica “para além das grades da gaiola”. A também matemática Verilda Kluth, da Universidade Federal
de São Paulo – Unifesp e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, analisa o
debate entre filosofia e matemática nas obras de Kant e Merleau-Ponty, enquanto a professora da PUC-
SP, Vitória Espósito, situa “o homem no cerne do acontecimento vivo”. Destacar o sensível das relações
para aprender melhor o sentido das experiências é uma das temáticas abordadas pelo filósofo Reinaldo
Furlan, da Universidade de São Paulo – USP. Uma entrevista com o filósofo italiano Mauro Carbone, edi-
tor da revista Chiasmi Internacional. Trilingual Studies concerning Merleau-Ponty’s Thought, completa
a matéria de capa. Ele frisa que a obra de Merleau-Ponty é um debate com o cartesianismo.
O coordenador do Movimento em Defesa dos Pequenos Agricultores – MDPA, Marcelo Henrique Santos
Toledo fala sobre a plantação extensiva de eucaliptos. Ele estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU
em 03-11-2011, das 17h30min às 19h, debatendo sobre esse tema.
Uma visão sintética do “estado da arte” da implementação do SUS é o tema do artigo de Nelson
Rodrigues dos Santos, da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.
O filósofo Selvino Assmann, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, colabora neste nú-
mero com uma tradução da apresentação do livro Altissima povertà. Regole monastiche e forma di vita.
Homo sacer IV, de Giorgio Agamben.
Mari Margarete dos Santos Forster, professora na Unisinos há cerca de 40 anos, recorda sua traje-
tória pessoal e profissional no depoimento publicado nesta edição.
IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio
dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@uni-
Expediente
sinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação: Márcia
Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br), Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br) e Thami-
ris Magalhães (thamirism@unisinos.br). Revisão: Isaque Correa (icorrea@unisinos.br). Colaboração:
César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CE-
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sítio: Inácio Neutzling, Rafaela Kley e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-
feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h,
na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos
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Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial
A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 06 | Mauro Carbone: Uma obra em debate com o cartesianismo
PÁGINA 11 | Maria Alice de Castro Rocha: O corpo: um “santuário” em relação com o outro
PÁGINA 15 | Marina Marcondes Machado: A fenomenologia da infância e a criança mundocentrada
PÁGINA 18 | Vitória Espósito: “O homem no cerne do acontecimento vivo”
PÁGINA 21 | Verilda Speridião Kluth: Kant e Merleau-Ponty: um debate entre filosofia e matemática
PÁGINA 25 | Carmen Sylvia Guimarães Aranha: O olhar criador a partir de Merleau-Ponty
PÁGINA 28 | Reinaldo Furlan: Destacar o sensível das relações para aprender melhor o sentido das experiências
PÁGINA 31 | Fabio Di Clemente: Um convite à radicalidade
PÁGINA 39 | Ubiratan D’Ambrosio: Fenomenologia e etnomatemática: para além das grades da gaiola
PÁGINA 41 | Luiz Augusto Passos: Um autor em diálogo com o mundo contemporâneo
B. Destaques da semana
» Artigo da Semana
PÁGINA 49 |Nelson Rodrigues dos Santos: Uma visão sintética do “estado da arte” da implementação do SUS
» Coluna do Cepos
PÁGINA 52 | Sergio Mattos: Globalização, tecnologias digitais e os questionamentos éticos
» Destaques On-Line
PÁGINA 54 | Destaques On-Line
C. IHU em Revista
» Eventos
PÁGINA 57 | Marcelo Henrique Santos Toledo: Plantação extensiva de eucalipto X culturas tradicionais
PÁGINA 59 | A trilogia “Homo Sacer”, de Agamben
» IHU Repórter
PÁGINA 62 | Mari Margarete dos Santos Forster
A
pós o grande “boom” da redescoberta dos textos de Merleau-Ponty nos anos 90 do século XX, o
estudo de seu pensamento ganha novo fôlego “em duas das questões às quais a atual reflexão
filosófica internacional resulta mais sensível: de um lado, os desenvolvimentos das ciências neuro-
lógicas e, do outro, o estatuto assumido pelas imagens de nossa época também à luz da revolução
digital”. A constatação é do filósofo italiano Mauro Carbone, na entrevista concedida por e-mail à
IHU On-Line. Quem lê os textos desse pensador fica impressionado com a centralidade e frequência das re-
ferências literárias e artísticas, desde a pintura até o cinema e à música, garante. Carbone examina, ainda, a
influência da Fenomenologia do espírito de Hegel sobre a filosofia de Merleau-Ponty: “Direi que Merleau-Pon-
ty dialoga com a Fenomenologia do espírito sobretudo em torno ao problema de como conceber a filosofia
de modo que ela resulte realmente em condições de conduzir a expressão a experiência humana”. Em sua
opinião, a obra desse pensador francês é, “acima de tudo, um debate sobre o cartesianismo”, que retomou
e atualizou o dualismo platonista e “teve um papel crucial na formação do pensamento da humanidade oci-
dental moderna e, em particular, da cultura francesa, para qual permanece como o ponto de referência e
de confronto inamovível”. Outros temas em discussão foram a “nova ontologia” merleau-pontyana e os seus
escritos políticos, dentre os quais Les aventures de la dialectique.
Mauro Carbone é professor na Faculdade de Filosofia Jean Moulin, Lyon 3, na França. Recebeu seu PhD em
1990, na Universidade Católica de Louvain, Bélgica, com a dissertação La visibilité de l’invisible: Merleau-
Ponty entre Cézanne et Proust, publicada em inglês sob o título The Visibility of the Invisible: Merleau-Ponty
between Cézanne and Proust (Hildesheim: Olms, 2001). Acaba de publicar La chair des images: Merleau-
Ponty entre peinture et cinéma (Paris: Vrin, 2011) e é o fundor e co-editor da revista Chiasmi International.
Trilingual Studies concerning Merleau-Ponty’s Thought. Confira a entrevista.
IHU On-Line - Qual é a importância no do ser. A primeira pergunta a colo- “endo-ontologia”, ou seja, uma onto-
da filosofia de Merleau-Ponty dentro car-se é, então: quando Merleau-Pon- logia que não se pode elaborar senão
do contexto da ontologia ? ty fala de “nova ontologia”, em que do interior do horizonte do ser no qual
Mauro Carbone - Quando Merleau- acepção assume este último termo? A os entes se encontram colocados. Uma
Ponty morre, no mês de maio há cin- esta pergunta poder-se-ia responder ontologia assim concebida não pode-
quenta anos, o centro de sua reflexão que para Merleau-Ponty falar de “nova rá senão configurar-se, então, como
é precisamente o problema da ontolo- ontologia” significa falar de uma nova uma ontologia para a qual o discurso
gia, ou melhor, para usar seus próprios relação com o ser, de modo a não po- em torno à relação com o ser deve-
termos, o problema de uma nova on- der senão fazer tudo uno com uma rá inevitavelmente passar através do
tologia. O primeiro ponto sobre o qual nova relação com o ente. discurso em torno à relação com os
convém dar clareza refere-se, então, Na perspectiva da nova ontolo- entes. Neste sentido, a ontologia só
ao que Merleau-Ponty entende por on- gia que Merleau-Ponty visa formular, poderá ser indireta, ou seja, mediada
tologia, já que sabemos que há quem, portanto, as duas acepções do termo precisamente através da relação com
com este termo, queira rigorosa e es- “ontologia” – como discurso em torno os entes, os quais vêm assim a nive-
tritamente referir-se a uma disciplina ao ente e como discurso em torno do lar-se como espelhos que, a seu modo,
que tem por objeto o ente, enquanto ser – se mantêm juntos, já que aque- refletem a luz (e a sombra) do ser.
para outros ele designa um discurso la perspectiva visa formular quanto
M. Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible,
não já em torno ao ente, e sim em tor- Merleau-Ponty define também como texto estabelecido por C. Lefort, Gallimard,
Paris 1964, p. 279. (Nota do entrevistado)
C
ontrapondo-se ao dualismo cartesiano que cinde corpo e mente, Merleau-Ponty demonstra “que o
pensamento se dá emaranhado no corpo”. A ponderação é da psicopedagoga Maria Alice de Castro
Rocha, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Esse pensador francês “traz o corpo
como um ponto fundamental de apreensão do mundo, ponto que muitas vezes descuidamos na
filosofia, ou mesmo na educação”, completa. Mas não se trata do mesmo enfoque dado ao corpo
atualmente, focado no cumprimento de padrões estéticos. O que está em questão é “um corpo dotado de
uma intencionalidade encarnada”. E acrescenta: “Filosoficamente, Merleau-Ponty aponta para o corpo como
um santuário dotado de ossos, sangue, órgãos, células, que precisa destes para agir, mas que são subsumidos
por uma ordem humana, que é formada na relação com o outro, sobretudo com a cultura”.
Docente nas Faculdades Integradas Rio Branco, em São Paulo, Maria Alice de Castro Rocha é especialista
em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae – Sedes, é mestre em Educação pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Uni-
versidade de São Paulo – USP com a tese Um estudo sobre a percepção: Merleau-Ponty e Piaget. Leciona nas
Faculdades Integradas Rio Branco, em São Paulo, na Faculdade de Pedagogia. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais as maiores ra- mente, procurando mostrar que o pen- uma tarefa dada na escola. Todos os mo-
zões que fazem de Merleau-Ponty samento se dá emaranhado no corpo. vimentos são dotados de significações li-
um filósofo atual? Um corpo dotado de condições físicas, gadas a todo o funcionamento corporal.
Maria Alice de Castro Rocha – Mer- anatômicas, fisiológicas, biológicas Isto é, Merleau-Ponty, embasando-
leau-Ponty mostra-se ainda extrema- que permitem ao ser interagir com o se em Husserl, vem destacar a ques-
mente significativo e cada vez que o mundo e ir se constituindo. Vem des- tão da intencionalidade como uma
relemos parece que desvelamos novos tacar que sou o meu corpo, um corpo “consciência de”, um movimento que
aspectos no que se refere à percepção que sente e expressa emoções, senti- se dirige ao mundo e o capta. Não há
e à estrutura do comportamento. Ele mentos, dor, alegria, tristeza... uma ação unilateral dos objetos sobre
traz o corpo como um ponto funda- Hoje o corpo é muito cultuado, mas a mente, como na visão empirista, mas
mental de apreensão do mundo, ponto no sentido de exposição e de preenchi- também não há uma visão intelectua-
que muitas vezes descuidamos na filo- mento de requisitos para padrões de lista de julgamento acima do meio. A
sofia, ou mesmo na educação. beleza. Esquece-se, porém, do corpo de intencionalidade fenomenológica não
Ele vem se contrapor ao pensamen- que fala Merleau-Ponty. Um corpo dota- se refere a uma decisão intelectualis-
to de Descartes que separa corpo e do de uma intencionalidade encarnada. ta a priori, mas a um direcionamento
René Descartes (1596-1650): filósofo, físico Corpo que se constitui, sobretudo na tro- pré-reflexivo que me impulsiona ao
e matemático francês. Notabilizou-se, sobre- ca com o outro, em que os significados mundo e permite captá-lo, em movi-
tudo, pelo seu trabalho revolucionário da Filo-
sofia, tendo também sido famoso por ser o in- de suas ações estão entranhados neste, mentos contínuos.
ventor do sistema de coordenadas cartesiano, nos movimentos, nos pensamentos. Por Edmund Husserl (1859-1938): filósofo ale-
que influenciou o desenvolvimento do cálculo exemplo, pegar um lápis pode ter vários mão, principal representante do movimento
moderno. Descartes, por vezes chamado o fun- fenomenológico. Marx e Nietzsche, até então
dador da filosofia e matemática modernas, ins- sentidos para o corpo, para o ser: porque ignorados, influenciaram profundamente Hus-
pirou os seus contemporâneos e gerações de alguém me pediu (mostro um movimen- serl, que era um crítico do idealismo kantiano.
filósofos. Na opinião de alguns comentadores, to de gentileza ou obrigação); por uma Husserl apresenta como idéia fundamental de
ele iniciou a formação daquilo a que hoje se seu antipsicologismo a “intencionalidade da
chama de racionalismo continental (suposta- ânsia de escrever algo importante; por consciência”, desenvolvendo conceitos como
mente em oposição à escola que predomina- uma obrigação desagradável de cumprir o da intuição eidética e epoché. Pragmático,
va nas ilhas britânicas, o empirismo), posição Husserl teve como discípulos Martin Heidegger,
filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On-Line) Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)
A
futuro, num vir a ser constante.
Este potencial biológico ajuda o criança não é egocentrada, mas mundocentrada. A ideia, tributária
homem a perceber o mundo, mas não a Merleau-Ponty, concebe a infância de modo existencial a partir
isoladamente. A percepção vai se for- de um descentramento. O adulto é “destronado” do centro, assim
mando ao longo da vida do indivíduo, como as teorias do desenvolvimento que criou. A ponderação é da
não no sentido desenvolvimentista de psicóloga Marina Marcondes Machado, em entrevista por e-mail à
Piaget, mas como se embebendo da IHU On-Line. De acordo com a pesquisadora, o ego da criança “não se encon-
cultura, da linguagem, de significados tra formado, desenhado, é, antes, esboço a ser completado, banhado, vesti-
múltiplos que são construídos e des- do e acalantado. É na outridade, na relação eu/outro, que a corporalidade,
construídos.
isto é, a relação eu/corpo se desenha. E o corpo próprio, acompanhado pelo
outro, encontra-se no mundo: adultos e crianças habitam o mesmo mundo,
As palavras fluem do ser
diferem apenas no modo de viver nele, de apreendê-lo”. Essas ideias são
A fala é dos meios de comunicação originárias dos Cursos na Sorbonne, ministrados por Merleau-Ponty entre os
mais ricos do indivíduo, porque ela anos de 1949-1952, quando faz uma fenomenologia da psicanálise e propõe
permite desenvolver a troca de visões um outro olhar sobre a infância – o olhar culturalista. Conforme Marina, “o
entre os homens e a aquisição de lin- mote da fenomenologia da infância é deixar a criança ser o que ela é, sem
guagens que, como já colocamos, nor- nunca deixá-la à deriva”. E alerta, inspirando-se no termo “antiestruturas”,
teiam nosso olhar. Isso não deve ser cunhado pelo antropólogo Victor Turner: é preciso que as “crianças vivam
visto como um aprisionamento, mas suas infâncias de maneira onírica, polimorfa, não representacional, a seu
como abertura para buscas e de signi- tempo, como é seu direito”.
ficados. É um elo operacional entre o Pesquisadora das relações entre infância e cena contemporânea, formadora
ser e o outro, entre o ser e o mundo.
de professores de teatro e docente na Escola Superior de Artes Célia Helena,
A fala é a concretização da lingua-
Marina Marcondes Machado é graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade
gem, ela é para Merleau-Ponty uma
ação encarnada. Ela depende de um Católica de São Paulo – PUC-SP, e mestre em Artes pela Universidade de São Paulo
equipamento anatômico e fisiológico, – USP com a dissertação Cacos de infância/nascimento, vida e morte da persona-
mas transcende-o, dá-se na expressão gem criança em roteiros de improviso. Na PUC-SP cursou doutorado em Educação
com o outro. Para o filósofo, ela per- com a tese A flor da vida – sementeira para a fenomenologia da pequena infância,
mite que o indivíduo se expresse e se e é pós-doutora em Pedagogia do Teatro, pela USP, com a pesquisa Territórios do
constitua, pois ele destaca que as pa- brincar. De sua produção bibliográfica, destacamos O brinquedo-sucata e a crian-
lavras fluem do ser, sem precisar que ça/A importância do brincar – Atividades e Materiais (5. ed. São Paulo: Edições
ele pense e depois fale. Loyola, 1994); A poética do brincar (2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998); Ca-
O falar é uma troca intencional com cos de infância/teatro da solidão compartilhada (São Paulo: Fapesp/ Annablume,
o outro que se dá num mundo-vida, do- 2004) e Merleau-Ponty & a Educação (Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010).
tado de intenções e significados, mas
Confira a entrevista.
que tem objetos com seu potencial
próprio a ser desvelado. Na fala há
uma troca de apreensões que me aju-
dam a descortinar o entorno.
P
ara Vitória Espósito, a “atualidade do pensamento de Merleau-Ponty está em trazer elementos
para a discussão e vivência de questões atuais do mundo contemporâneo, colocando-nos no cer-
ne do acontecimento vivo. De estarmos sempre sendo com o outro na facticidade do mundo, de
nosso corpo próprio e assim conscientes do caráter desse inacabamento, de nos vermos em nossa
incompletude, seres históricos, enredados numa dialética sempre inacabada (homem/mundo)”.
Passamos, então, a nos vermos frente ao abismo, mistério e lugar do sagrado. E completa: “com Merleau-
Ponty apreendemos que a gênese dos atos de conhecimento se faz a partir do ‘corpo próprio’, rompendo a
dicotomia homem/mundo”.
Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santo Tomás de Aquino, Vitória
Espósito é mestre e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP com
a tese A escola. Os processos institucionais e os universos simbólicos. Professora da PUC-SP, escreveu, entre
outros, A escola. Um enfoque fenomenológico (São Paulo: Escuta, 1993) e Construindo o conhecimento da
criança/adulto. Uma perspectiva interdisciplinar? (São Paulo: Martinari, 2006).Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os principais inacabada (noema/noésis/noema). sa nem ideia, mas a inteligibilidade
impactos e implicações da obra de Implica essa perspectiva em resgatar de nascentes estruturações. É o que
Merleau-Ponty nos processos das ci- o sentido original da palavra conhe- possibilita movimentações, apreen-
ências, em geral e da educação, em cimento (do latim cum+gnosco), uma sões diversificadas; torna possível ver
específico? apreensão conjunta, sendo esse o fun- outras formas, apreender interdisci-
Vitória Espósito – Em trabalhos e estu- damento da vida mental e conscien- plinaridades e transdisciplinaridades,
dos por nós desenvolvidos no âmbito do te. No entanto, historicamente temos novas estruturas de conhecimento, o
Grupo de Pesquisa Educação e Produ- contemplado uma interpretação fraca rompimento com ordenações discipli-
ção de Conhecimento (CNPq/PUC-SP), do termo como “informação” ou “re- nadoras. Possibilita recriar... transfa-
e da Cátedra Joel Martins, temos pro- presentação”, em detrimento daquele zer.
curado tornar visível que a fenomeno- considerado forte, pois criador (poié-
logia propõe uma verdadeira viragem tico) construído na “participação” e IHU On-Line – O que é um enfoque
epistemológica ao colocar no centro “realização conjunta”. fenomenológico de currículo? Quais
do inquérito não o conhecimento em si Com Merleau-Ponty apreendemos são os aspectos desse tipo de currí-
mesmo, mas aquele que conhece. Para que a gênese dos atos de conhecimen- culo que “dialogam” com o legado
tanto, interroga como nas situações to se faz a partir do corpo próprio, de Merleau-Ponty?
vividas o conhecimento se mostra de rompendo a dicotomia homem/mun- Vitória Espósito – Em primeiro lugar,
forma significativa para aqueles que os do. Esse movimento torna possível a é preciso deixar claro que a fenome-
experiênciam conhecer. apreensão de diferentes ordenações nologia é um modo de ver o homem,
A fenomenologia propõe, dessa for- de mundo. Desse modo, o distancia- o mundo e as coisas que nele se mos-
ma, uma ordenação qualitativa em di- mento é o elemento que nos permite tram. É uma filosofia que traz em si
reção aos atos de conhecimento. Atos capturar a profundidade. Profundida- um método próprio e visa dar acesso
de conhecimento, na medida em que de que não pode ser confundida com aos fenômenos que investiga – o mé-
eles se dão em situação. No movimen- a terceira dimensão do espaço obje- todo fenomenológico. Consideramos,
to da existência, no tempo e no espaço tivo. Como nos ensina Merleau-Ponty, ainda, que a fenomenologia encontra
e na ação deste ser que face “ao mun- profundidade é o suporte invisível da suas motivações ao buscar um aces-
do” enreda-se numa dialética sempre visibilidade, a estrutura. Não é coi- so direto às estruturas essenciais e à
“N
ão vejo nos pensamentos de Merleau-Ponty os mesmos princípios que regem a expli-
citação dos juízos sintéticos a priori de Kant, pois os juízos são imagens do mundo,
enquanto que os núcleos de significação que compõem o primado do conhecimento em
Merleau-Ponty são presença de mundo corporificada, relações orgânicas entre sujeito e
mundo explicitadas na noção de corpo próprio como sujeito da percepção”. A explica-
ção é da matemática Verilda Speridião Kluth, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E completa:
“O próprio Merleau-Ponty na introdução de seu livro A fenomenologia da percepção faz uma crítica à bilateri-
dade das relações sujeito e mundo posta em Kant, afirmando que a análise reflexiva, a partir da experiência
do mundo, reconstitui a experiência para o sujeito como algo distinto dela e apresenta uma síntese universal
como algo, sem o qual não haveria mundo”.
Licenciada e bacharel em Matemática pela Fundação Educacional de Bauru, Verilda Kluth é mestre e
doutora em Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, com a tese
Estruturas da Álgebra – investigação fenomenológica sobre a construção do seu conhecimento. Docente na
Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
– Unesp, é presidente da Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos - SE&PQ, além de membro da Socie-
dade Brasileira de Educação Matemática – SBEM. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são as maiores con- só as relações comerciais e políticas, esclarecendo-nos um modo de com-
tribuições de Merleau-Ponty ao estudo mas também a construção de conhe- preender a construção desse caminho
da matemática? Por que sua filosofia cimento de outras áreas científicas, de volta ao evidenciar o enraizamento
inspira o estudo dessa ciência? tonificando o obscurecimento de seus do primado do conhecimento na rela-
Verilda Speridião Kluth – A caracterís- conceitos e processos. Muitas vezes as ção homem/mundo, e ao designar a
tica mais conhecida da matemática é dificuldades em matemática afastam percepção como a primeira camada
a sua abstração. E o abstraído é enten- possíveis interessados nos estudos que do sentir.
dido como algo que está fora do alcan- dela dependem, contribuindo para o Isso nos permite dizer de uma con-
ce, fora do campo de percepção, fora aprofundamento da cisão entre ciên- textualização que, embora ainda este-
do campo das sensações. A matemá- cias exatas e ciências humanas. ja em concordância com a aplicabili-
tica torna-se com isso uma disciplina A contextualização da matemática, dade da matemática, não só diz dela,
estranha àquele que não a estuda ou a que une a matemática constituída ao mas também de aspectos ontológicos,
aplica em sua profissão. cotidiano das pessoas, tem sido um dos extremamente necessários para com-
É difícil reconstituir o caminho de recursos didático-pedagógicos utiliza- preendermos a construção do conhe-
volta que a põe no mundo. Muitas ten- dos para a construção da aproximação cimento matemático realizada pelo
tativas educacionais têm sido pensadas entre o sujeito e a matemática. sujeito e para mantermos a autocto-
para apresentá-la ao público em geral nia dessa ciência, tão importante no
de forma a ser compreendida, dada a Núcleos de significação momento de avaliarmos sua aplicabili-
necessidade dessa compreensão que é dade em termos da ética, da estética
imposta pela nossa civilização, prin- Em meu entender, a principal con- e da sustentabilidade.
cipalmente porque o conteúdo mate- tribuição dos pensamentos de Merle- Numa visão fenomenológica hus-
mático traz em seu bojo uma abran- au-Ponty é o aprofundamento que re- serliana e merleau-pontyana, o termo
gente aplicabilidade que perpassa não aliza de algumas ideias husserlianas, contexto não se restringe às condições
“P
ara nos aproximar do olhar que tece o conhecimento criador e objetivando trazê-lo à luz
no seu sistema de correlações, apropriei-me de alguns conceitos refletidos por Merleau-
Ponty nas suas discussões sobre conhecimento estético. Essa apropriação ofereceu ins-
trumentais reflexivos para a escolha de artistas e obras que podem nos dar a visualidade
procurada para os fenômenos interrogados na compreensão e interpretação do olhar
criador”. A declaração é da artista plástica Carmen Sylvia Guimarães Aranha, na entrevista que concedeu por
e-mail à IHU On-Line. E completa: “Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus próprios
fins, o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo e que o restitui ao visível pelos traços
da mão. Seja qual for a civilização em que nasça, sejam quais forem as crenças, os motivos, os pensamentos,
as cerimônias de que se cerquem e, mesmo quando parece fadada a outra coisa, desde Lascaux até hoje,
pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma a não ser o da visibilidade”.
Graduada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, Carmen é mestre e doutora
em Educação, respectivamente, pela Universidade de Boston, Estados Unidos, e pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP com a tese A arte visual na sala de aula. É livre-docente pela Universidade de
São Paulo – USP, onde é professora do Museu de Arte Contemporânea. É autor de Exercícios do olhar. Conhe-
cimento e visualidade (São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Unesp/Funarte, 2008). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que consiste uma fe- tese da cultura, poderia tornar visível IHU On-Line – Qual é a influência de
nomenologia do conhecimento visual? essa etérea linha decisiva. O exercício Merleau-Ponty nessa concepção es-
Carmen S. G. Aranha – Consiste numa fundamental seria o exercício do olhar pecificamente?
compreensão dos sentidos da criativi- e a criatividade plástica seria somente Carmen S. G. Aranha – Talvez, possa-
dade artística. Quando o indivíduo é uma das maneiras de codificar a cul- mos, ao definir o olhar criador, com-
criativo? Como deflagrar a criatividade tura, no caso em questão em materia- preender as influências pontyanas
no ser humano? Como situar esse fenô- lidades próprias das artes visuais. As- nesse tipo de pesquisa. Por exemplo,
meno do espírito humano? Nessas per- sim, minha investigação dirigiu-se às sabemos que a visão de algo nem sem-
guntas reside em parte uma resposta relações que o olhar podia criar com pre estrutura um conhecimento visual
na qual a fenomenologia permitirá a os objetos artísticos, ou melhor às re- de mundo. Assim, buscamos em Mer-
aproximação. lações visuais de fenômenos estéticos, leau-Ponty alguns aspectos reflexivos
Ao trabalhar com estudantes de ar- reveladas pelas obras de arte. que pudessem nos ajudar na aproxi-
tes plásticas durante doze anos, per- Para nos aproximar do olhar que mação desse fenômeno. Em primeiro
cebi que a liberdade criadora emer- tece o conhecimento criador e objeti- lugar, o filósofo reflete sobre o olhar o
gia, inúmeras vezes, da inspiração. Na vando trazê-lo à luz no seu sistema de mundo afirmando que é preciso fundar
sua ausência, os alunos apresentavam correlações, apropriei-me de alguns esse olhar em um pensar, ou seja, aliá-
certa dificuldade no desenvolvimento conceitos refletidos por Merleau-Ponty lo a um pensamento que “desmancha
de trabalhos que projetassem inter- nas suas discussões sobre conhecimen- o tecido da tradição da razão, puxan-
rogações próprias e, por decorrência, to estético. Essa apropriação ofereceu do seus fios com argumentos sobre não
produzissem pesquisas artísticas genu- instrumentais reflexivos para a escolha coincidências e irrazões”.
ínas. E então, como deflagrá-la na sala de artistas e obras que podem nos dar Tentando compreender essas coloca-
de aula? Compreendi, pouco a pouco, a visualidade procurada para os fenô- ções, pensamos então em um olhar que
que o exercício fundamental seria en- menos interrogados na compreensão e fizesse correlações visuais no mundo e,
contrar relações no tecido da cultura. interpretação do olhar criador. ao mesmo tempo, se intencionasse lon-
Verificamos também que o olhar, sín- ge das observações absolutas: um olhar
“C
modalidade essencial, pois ela está na
consciência de alguma coisa, ou seja, reio que assistimos a uma crise de pensamento, onde as
na consciência que se intenciona nas filosofias ou determinados saberes das ciências humanas
coisas do mundo. Merleau-Ponty afir- são usados como ferramentas teóricas consolidadas no
ma que o conhecimento humano se dá enfretamento da realidade, quando se deveria fazê-las
com um pensar que não se dirige ao ‘tremer’ com a própria experiência, para o que sempre
mundo como um objeto em si ou como favorece o diálogo crítico com outras perspectivas de pensamento. Se não,
uma impressão que se possa ter dele: para usar um termo de Deleuze-Guattari, o pensamento se torna sedentário,
cogitar é um ato de compreensão-in-
fixo, estratificado, o que vai a contrapelo de sua própria filosofia”, afirma
terpretação dos significados do mun-
Reinaldo Furlan, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ao se
do, de suas estruturas ou de arranjos
espontâneos de suas partes. “Ao nos referir a Merleau-Ponty, o professor destaca que, desde o princípio, Ponty,
dirigirmos aos objetos transcendentes “através de uma filosofia da percepção, e não da consciência, fez a inflexão
não estamos tendo atos de introspec- que tornou possível sua aproximação da noção de inconsciente, sem que ela
ção, atos intuitivos ou fazendo alguma representasse por princípio um impedimento de sua própria filosofia”.
conversão irracional ou ocultista”. Reinaldo Furlan possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade
“Na raiz de todas as nossas ex- Católica de Campinas – PUC-Campinas, mestrado em Filosofia pela Universidade
periências e reflexões encontramos, Federal de São Carlos – UFSCar e doutorado em Filosofia pela Universidade Es-
então, um ser que imediatamente se tadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor da Universidade de São
reconhece, porque é o conhecimen- Paulo – USP. Confira a entrevista.
to de si mesmo e de todas as coisas
que possibilitam conhecer sua própria
existência, não pela observação de um IHU On-Line – Como acontece o en- se revelam sempre num horizonte de
fato dado, nem pela interferência de lace entre expressão, linguagem e mundo. Claro que um “sujeito” se en-
alguma ideia de si mesmo, mas pelo subjetividade na filosofia de Merle- contra implícito ou implicado nas es-
contato direto com o mundo”. au-Ponty? truturas desse aparecer, mas definir o
Esse modo de se situar no mundo Reinaldo Furlan – É tema para uma seu sentido também faz parte da eluci-
de uma maneira una, nascendo nas tese. São noções-chave ou de grande dação do sentido do próprio aparecer.
coisas, traz no seu bojo uma concep- alcance e que sofreram mudanças ao Ora, como destaca Thévenaz, a feno-
ção moderna porque arte e vida esta- longo de sua obra. Posto isso, apenas menologia, enquanto “escola” ou cor-
rão juntas a partir do nascimento da para anunciar de forma mais esquemá- rente de pensamento inaugurada por
linguagem artística pós-idade mimé- tica um princípio de encaminhamento Husserl, consiste mais na retomada su-
tica. A arte moderna será um mani- a essa questão, talvez possamos privi- cessiva dessa tarefa de elucidação da
festo constante do homem ligado aos legiar na filosofia de Merleau-Ponty a experiência originária de mundo (sua
problemas dessa vida que o mundo noção de expressão como referência abertura) do que na instalação de prin-
moderno estava trazendo. Entretan- básica às demais. Afinal, a fenome- cípios básicos comuns a seus autores.
to, determinadas noções pontyanas, nologia, como o próprio nome suge- O próprio Husserl, como destaca Mer-
a meu ver, são perfeitamente atuais e re, implica a investigação do sentido leau-Ponty, sentiu intermitentemente
descrevem com muita pertinência cer- fundamental do fenômeno, isto é, do a necessidade de um novo recomeço,
tos atos de conhecimento na contem- aparecer das coisas ou da abertura de como se a fenomenologia estivesse
poraneidade. mundo para nós – visto que as coisas sempre por se iniciar. Ou seja, como
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diz Merleau-Ponty, nada é mais difícil di- “A literatura, assim como grande interesse em seu cotejamento
zer do que é isso que nós vemos, o que é com a filosofia de Merleau-Ponty en-
outra maneira de afirmar o princípio fun- a pintura, não tem a contra-se sobre a possibilidade ou não
damental de uma teoria da expressão. de um discurso filosófico próprio sobre
Quanto à linguagem, que é uma for- pretensão de possuir a realidade. Grosso modo, Wittgens-
ma privilegiada de expressão e com a tein, assim como Foucault, e na esteira
qual a filosofia se realiza, a questão é sa- qualquer de seus de Kant, entende a atividade filosófica
ber em que medida ela brota nos inters- como um exercício de esclarecimento
tícios da expressão sensível (percepção), sentidos como a um de nossas formas de pensar e ser no
provocada ou estimulada por esta, e em mundo, pois a linguagem, como ele
que medida ela participa da estrutura objeto definido e diz, faz parte de uma forma de vida.
da própria percepção. Essa questão as- Ou seja, os significados da linguagem
sumiu diferentes contornos em sua obra, delimitado” são definidos pelos usos das palavras,
mas é notável a importância crescente pela forma como são empregadas,
da linguagem em sua filosofia. Em que de uma filosofia da percepção, e não da configurando, assim, determinada si-
pese isso, Merleau-Ponty jamais assumiu consciência, fez a inflexão que tornou tuação ou atividade linguística, e por
a exclusividade da linguagem na forma- possível sua aproximação da noção de isso a linguagem é uma forma de viver.
ção de nosso sentido de mundo. Também inconsciente, sem que ela representas- Ora, isso tudo, grosso modo, é bastan-
é notável sua aproximação da linguagem se por princípio um impedimento de sua te coerente com a filosofia de Merleau-
literária, mais apta, segundo ele, para própria filosofia. O que assistimos ao lon- Ponty, e poderíamos, com isso, traçar
expressar nossa relação originária com go de sua obra, então, foi o acolhimento muitos paralelos entre suas filosofias.
as coisas, uma expressão, vale notar, mais radical da noção de inconsciente, Ocorre que Wittgenstein crê que a ati-
que toma o sensível como protótipo ao sem abandonar a prioridade do sentido vidade de esclarecimento de nossos
mesmo tempo em que é a criação do seu percebido. Esquematicamente, se em jogos de linguagem é a própria ativi-
próprio sentido. Isso porque a literatura, Fenomenologia da percepção encontra- dade filosófica, enquanto para Merle-
assim como a pintura, diz Merleau-Pon- mos uma versão bastante mitigada da au-Ponty esse aspecto apenas prepara
ty, não tem a pretensão de possuir qual- noção de inconsciente através da noção ou favorece um discurso mais lúcido
quer de seus sentidos como a um objeto de cogito tácito, isto é, como horizonte da filosofia sobre a realidade. Mais
definido e delimitado. Como se sua ca- de sentido de uma vida, muito mais am- precisamente, Wittgenstein, de modo
pacidade expressiva fosse justamente a plo do que os seus sentidos colocados em geral, enfatiza que a filosofia como
de abrir um campo de pensamento, ser tese, ao final de sua obra encontramos a discurso próprio sobre a realidade não
“matrizes de ideias”, inseparáveis da noção de inconsciente como princípio de passa de um efeito de confusões gra-
maneira de sentir ou ser no mundo. Da organização da própria percepção, não maticais, quando ela retira os signifi-
mesma forma, para ele o Ser (bruto) só separado dela, como se fosse outro lu- cados da linguagem comum de seu uso
se mostra mantendo-se à distância como gar, tal como supõe a psicanálise através próprio, e com eles pensa construir
horizonte inobjetável do sentido das pró- da ideia de divisão do aparelho psíquico, um sentido mais fundamental sobre as
prias coisas, ou ainda, como horizontes mas como armação no próprio sentido coisas. Então, segundo ele, a lingua-
de mundo que se passam entre si, que se percebido. Nesse sentido, Merleau-Ponty gem deixa de funcionar com as coisas
invadem ou se tocam docemente, como diz que o inconsciente não é o que está ou nas atividades dos homens, e passa
um sistema aberto de reenvios de senti- atrás e sim o que está à frente. Ele passa a girar em falso, sobre si mesma. Claro
dos para a configuração de mundos. a ser, assim, padrão perceptivo, estabe- que, assim como a filosofia de Foucault
lecido ou modificado através da práxis ou inovações nos campos da lógica, filosofia da
IHU On-Line – Como situar a filosofia das relações com os outros. Por isso ele linguagem, epistemologia, dentre outros cam-
de Merleau-Ponty entre a psicanálise diz que “as decisões mais fundamentais pos. A maior parte de seus escritos foi publi-
e a filosofia de Wittgenstein? cada postumamente, mas seu primeiro livro
de uma vida não são de momento”, ou foi publicado em vida: Tractatus Logico-Philo-
Reinaldo Furlan – Nesse caso, é mais fácil “que não se decide fazer, mas deixar-se sophicus, em 1921. Os primeiros trabalhos de
estabelecer sua relação com a psicanáli- fazer”, frisando com isso que a mudança Wittgenstein foram marcados pelas idéias de
se, que explicitamente foi incorporada Arthur Schopenhauer, assim como pelos novos
ocorre mais na estrutura ou forma de ver sistemas de lógica idealizados por Bertrand
em sua obra, sempre de maneira crítica. e sentir do que no nível do sentido que Russel e Gottllob Frege. Quando o Tractatus
O grande interesse em se cotejar a filo- se destaca. foi publicado, influenciou profundamente o
sofia de Merleau-Ponty com a psicanálise Círculo de Viena e seu positivismo lógico (ou
empirismo lógico). Confira na edição 308 da
encontra-se, em primeiro lugar, sobre a Um discurso filosófico próprio sobre IHU On-Line, de 14-09-2009, a entrevista O
noção de inconsciente, afinal, a feno- a realidade silêncio e a experiência do inefável em Wit-
menologia se estabeleceu com Husserl tgenstein, com Luigi Perissinotto, disponível
para download emhttp://migre.me/qQYt.
através de uma nova concepção de cons- Leia, também, a entrevista A religiosidade
No caso da filosofia de Wittgenstein, o
ciência, ou como uma filosofia da cons- mística em Wittgenstein, concedida por Paulo
ciência. Ora, como nota Nelson Coelho, Ludwig Wittgenstein (1889-1951): �������
filóso- Margutti, concedida à revista IHU On-Line 362,
fo austríaco, considerado um dos maiores do de 23-05-2011, disponível em http://bit.ly/lU-
desde o princípio Merleau-Ponty, através século XX, tendo contribuido com diversas (Nota da IHU On-Line)
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titui a própria relação perceptiva, vi-
sando sua integração. O importante é ara o filósofo italiano Fabio Di Clemente, “com Merleau-Pon-
não confundir essa tentativa de inte- ty, podemos combater o corpo que foi e é objeto da biopolítica.
gração como fusão com o outro (mun- Como reconstruiu o filósofo italiano Roberto Esposito, trata-se de
do), o que seria a morte, mas como um corpo destinatário de uma ‘intenção imunitária’ da política,
intensificação da presença do fora no enquanto considerado ‘lugar privilegiado do desdobramento da
dentro ou do dentro no fora. Sobre vida’, de um ‘binarismo’ entre crescimento e consumação, vida e morte”. E
esse tema vale a pena conferir a feno- completa: “podemos dizer que há ressonâncias de uma antropologia filosó-
menologia de Renaud Barbaras. fica no referencial da obra de Merleau-Ponty, mas é preciso logo esclarecer
que a obra merleau-pontyana não desliza em certas tentações. Além disso,
IHU On-Line – Qual a importância da diante da profunda atenção para as pesquisas biológicas reservada por esses
filosofia de Merleau-Ponty no pensa-
representantes da antropologia filosófica, a leitura merleau-pontyana sobre
mento contemporâneo?
o nexo entre vida, organismo, meio ambiente, procede, ultimamente, na
Reinaldo Furlan – Vou me ater ape-
nas a um aspecto, o qual me parece direção de uma resistência da mesma biologia a cada formalização transcen-
essencial. Somos ainda muito cartesia- dental, última, eidética”.
nos, como dizia Merleau-Ponty. Nesse Estudioso italiano, Fabio Di Clemente é graduado em Filosofia pela Universi-
ponto, destacam-se dois sentidos de dade de Urbino (Itália), especialista em Antropologia e Filosofia da Ciência pela
existência, como coisa ou como pen- mesma instituição. Na Universidade La Sapienza, em Roma, cursou Filosofia do
samento. Ora, resgatar o valor expres- Direito. É doutor em Filosofia pela Universidade de Urbino com a tese A percep-
sivo do corpo me parece fundamental ção entre fenomenologia e dialética em Merleau-Ponty. Colaborou com o “Istitu-
para resgatar a própria presença do to italiano per gli Studi filosofici” de Nápoles e, na Universidade de Urbino, com
outro e do mundo, em nós e para nós. o filósofo italiano Domenico Losurdo, presidente da Internationalen Gesellschaft
Em outros termos, nós temos o hábito Hegel-Marx für Dialektisches Denken. No Brasil obteve o pós-doutorado em Fi-
de valorizar as ideias ou pensamentos,
losofia na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, trabalhando sobre as
e, ao mesmo tempo, olhar para as coi-
implicações fenomenológicas do corpo em âmbito biopolítico e bioético. Atu-
sas como objetos de um ponto de vis-
ta causal. Isso favoreceu e favorece o almente é professor adjunto na Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT.
desenvolvimento da técnica, mas por Nessa instituição liderou em 2011 o Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e
outro lado coloca à margem todo um Educação - GPMSE, ministrando um curso sobre o pensamento de Merleau-Ponty.
campo de experiência de sentidos que De suas publicações, destacamos La perception et l’histoire dans la pensée de
tecemos com as coisas e os outros, e Maurice Merleau-Ponty (In: Losurdo, D; Tosel, A. Org.). L’idée d’époque histori-
que encontramos, de forma privilegia- que. Die Idee der historischen Epoche. Annalen der Internationalen Gesellschaft
da, nas artes, em particular na pintura Hegel-Marx für Dialektisches Denken. Band 12. Frankfurt a.M., Peter Lang, 2004,
e na literatura. Na verdade, é aí que a p. 419-432). Está preparando um livro de reconstrução crítica do pensamento de
maior parte de nossas vidas se passa. Merleau-Ponty e outro sobre questões fenomenológicas. Confira a entrevista.
Então, destacar o aspecto sensível des-
sas relações é uma forma de apreender
melhor o sentido das nossas experiên-
cias, o que, aliás, era o mote inicial
da fenomenologia, “voltar às coisas
mesmas”.
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IHU On-Line – Em que aspectos prin- implica não apenas o fato de conjugar maravilhoso espetáculo do “nascimen-
cipais reside a atualidade da obra de a instância do todo com as partes, da to continuado”. Em substância, já os
Maurice Merleau-Ponty 50 anos após unidade com a diferença, do universal organismos chamados de inferiores
sua morte? com o particular, da imanência com a não se definem por sua “existência
Fabio Di Clemente – Falar de atuali- transcendência, e das outras correla- pontual”; consequentemente, eles
dade de um pensador e, ainda mais, tas, mas, ultimamente, a necessidade não existem “como uma coisa dotada
de um pensador “radical” como foi de saber fazer tudo isso sem pressupor de propriedades absolutas, como frag-
Merleau-Ponty, é insidioso, traiçoeiro. princípios do exterior e do interior de mentos de espaço cartesiano”, nem
Ele escreve no ensaio O filósofo e a um determinado fenômeno, sem jus- como uma forma absoluta, pela qual
sua sombra (1959), falando da heran- tapor “movimentos contraditórios”, a morfogenia seria um “trabalho de
ça de Edmund Husserl aos 100 anos de sem, enfim, fazer uso de “diplopias” copista” ou uma “força que avança”.
seu nascimento: “toda comemoração reflexionantes. O fato é que se trata O fato é que o “ideal” que desejamos
é traição, seja porque lhe prestamos a de saber conjugar tudo isso sem poder colocar no organismo não pode ser se-
homenagem supérflua de nossos pen- estacionar num lado ou noutro da re- parado da sua atividade.
samentos, como se quiséssemos forne- lação. Dessa maneira, a filosofia é re-
cer-lhe uma garantia a que não tem conduzida à ordem da “interrogação”, Dilema parmenidiano
direito, seja porque, ao contrário, não da solução “lógica” de um dado
com um respeito cheio de distância, o problema. A partir disso, acredito, ra- Escreveu magistralmente o filósofo
reduzimos muito estritamente ao que mifica-se a “atualidade” de Merleau- francês: “Não há nenhuma estimula-
ele próprio quis e disse”. Logo depois, Ponty. ção vinda de fora que não tenha sido
ele esclarece que essas dificuldades provocada pelo movimento próprio
pertencem à comunicação entre “os IHU On-Line – Quais são os desafios do animal”. Nessa tensão irredutível,
egos”, como já tinha entendido Hus- da corporeidade no legado da feno- o real, vivido e observado, comporta
serl. Entre uma história ‘objetiva’ da menologia desse pensador? sempre “o mais ou menos”. Destarte,
filosofia, que mutilaria os grandes fi- Fabio Di Clemente – Limito-me a foca- o organismo supõe “um Ser não par-
lósofos naquilo que deram aos outros lizar a abordagem merleau-pontyana menidiano”, uma “forma que escapa
para pensar, e uma meditação disfar- da corporeidade que pode nos aproxi- ao dilema do ser e do não ser”. O que
çada de diálogo, onde colocaríamos mar aos inúmeros desafios nela conti- os organismos nos ensinam a pensar é
as questões e daríamos as respostas, dos. Cabe retomar a lógica do secre- a vida como “uma totalidade que está
deve haver um algo de intermédio, to natal apontada precedentemente. por toda parte e em nenhuma parte”.
onde o filósofo de que se fala e aquele Merleau-Ponty procurou a relação “em Merleau-Ponty utiliza a analogia da
que fala estão presentes juntos, em- duplo sentido”, voltando ou descen- melodia para apontar essa totalidade,
bora, de direito, seja impossível re- do até a vida dos animais chamados que acaba sendo pensada ultimamente
partir a cada instante o que é de cada de máquinas. Os organismos, desde como totalidade prenha de partes que
um. Levando em conta essa sagacida- os chamados inferiores, não são – ele agem como “partes totais”. Deixemos
de, o “algo de intermédio” exprime declara – uma máquina, nem algo de- a palavra ao filósofo: “A melodia nos
a impossibilidade de repartir, a todos rivado de um princípio posto a tergo, dá uma consciência particular do tem-
os níveis de vida e conhecimento, en- porque exibem uma “estabilidade in- po […]. No momento em que começa
tre o que é dado e o que é recebido. cessantemente reconquistada e com- a melodia, a última nota está lá, à sua
Ora, nessa impossibilidade aninha-se prometida”, segundo uma relação de maneira. Numa melodia, ocorre uma
a tarefa imensa que alimenta a inter- abraço entre a atividade que cria os influência recíproca entre a primeira e
rogação do filósofo francês. Ele nos órgãos e a atividade de comportamen- a última nota, e devemos dizer que a
ensina a ser “radicais”. Trabalhando to. Já o caso dos animais-máquinas, primeira nota só é possível pela última
sobre o retorno husserliano ao “mun- como a água-viva, ensina-nos que não e reciprocamente. É assim que as coi-
do da vida” (Lebenswelt), ele pensa o temos uma unidade do ponto de vista sas se passam na construção de um ser
“aparecimento” da vida e do mundo estritamente fisiológico, mas apenas vivo. Não há, em absoluto, prioridade
(natural, social, histórico) sem ne- uma unidade presente gradativamen- do efeito sobre a causa. Assim como
nhum resíduo dualista e reducionista. te em relação às funções que ela rea- não se pode dizer que a última nota
A esse resguardo, podemos falar de um liza, apesar de serem repetitivas; essa seja o fim da melodia, e que a primei-
“secreto natal” que a natureza exibe, unidade não se desdobra no exterior. ra seja o seu efeito, tampouco se pode
qual “solo” (Boden) da vida, “englo- Ademais, os “animais inferiores orga- distinguir o sentido à parte do sentido
bante” de circularidades dialéticas. nizadores”, como as amebas, não têm onde ela se exprime”. Como diz Proust,
Em virtude dessa Natureza, os órgãos definidos, mas exibem plastici- a melodia é uma ideia platônica que
animais chamados de máquina, até dade: como destaca Merleau-Ponty: “a não se pode ver à parte. É impossível
os seres humanos, estabelecem uma cada momento, no meio, a ameba faz- distinguir nela o meio e o fim, a essên-
relação “em duplo sentido” (Fundie- se pseudópodes (pernas) ou vacúolos cia e a existência. Nesse caminho anti-
rung) entre fundante e fundado, de (estômago), depois os faz desaparecer dualista e antirreducionista, a cair são,
descendência husserliana; relação que para recriá-los”. Elas nos oferecem o entre outras formas de pensamentos, o
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realismo (mecanicista, causalista, vita- “Merleau-Ponty za afirma-se como um Englobante de
lista, finalista) e o idealismo, nas suas circularidades dialéticas representado
várias declinações. procurou a relação ‘em pela “carne” (chair).
Finalmente, diante de tudo isso, há ou descendo até a vida A noção de carne recolhe essa cir-
evidentemente um secreto natal tam- cularidade na forma melhor. Ela con-
bém pelo caso do corpo humano. Não dos animais chamados siste “no enovelamento do visível so-
há qualquer fronteira precisa entre bre o corpo vidente, do tangível sobre
organização do corpo e comportamen- de máquinas” o corpo tangente”, constatável no
to: “o corpo é o lugar do comporta- fato de que “o corpo se vê, se toca
mento”. Um bebê prematuro só possui o mundo da vida e com a correlata vendo e tocando as coisas”. A carne
“um sono hesitante, difícil de distin- concepção da Natureza, recupera-se o não pode ser mais “matéria”, “espíri-
guir da vigília”: ele acaba adquirindo “aparecimento” da vida e do mundo to”, substância. A “atividade – declara
“o talento de dormir”. Temos, numa (natural, social, histórico) sem qual- o filósofo francês – é identicamente
palavra, a maturação do seu compor- quer resíduo dualista e reducionista. A passividade”: afirma-se uma ideia de
tamento simultaneamente ao caráter tutela desse secreto natal é conduzida ‘estrutura’ como nervatura do mun-
orgânico, uma relação inextricável en- até o nível ontológico. O “Ser bruto”, do, sendo juntura operativa de passi-
tre “o que é recebido e o que é dado”. dito também “selvagem” e “vertical”, vidade e atividade. O Leib vira ponto
Nessa dinâmica, há a conquista de uma conceito sobre o qual se assenta o pro- “cego”, em que a carne do sensível se
aptidão, da superação de uma simples jeto da ontologia merleau-pontyana, faz sentiente. Por consequência, o ver
repetição de um gesto, ponto de par- expressa novamente a relação entre não é exatamente o ver de quem está
tida da complexidade do mundo tan- o dado e o recebido, mas na forma “em movimento perspektivisch, como
to animal como humano. No caso da mais “radical” possível: o Ser verti- as outras coisas”, ou em um “espaço
existência humana, o corpo volta a ser cal ou selvagem, diz o filósofo, é “o geométrico”, mas apenas em relação
– depois de uma longa história de in- tecido comum de que somos feitos”. “vertical”, em relação de abraço com
feriorização – o lugar “eminente” des- Um exemplo, entre outros, do próprio o Ser. A “segregação”, com a qual te-
sa circularidade de relações, de uma filósofo: o cubo de seis faces iguais “só mos que lidar como uma espécie de
vida e de uma interrogação sobre a existe para um olhar não situado, para ‘fenômeno de espelho’, com o fato de
vida que se formam e se desenvolvem uma operação ou inspeção do espírito ser vidente e ao mesmo tempo de ser
“em espiral”, segundo uma “ascensão que ocupe o centro do cubo, para um objeto de visão, testemunha que “exis-
no próprio local”, como dizia sugesti- campo do Ser”. Contra essa presunção te uma visão total ou absoluta, fora da
vamente o filósofo. É à luz dessa abor- de um espírito portador do Ser que qual nada permanece”. Conduzindo
dagem “radical” que Merleau-Ponty exclui cada não ser, cada pertença, a fenomenologia ao seu extremo, ele
deve ser considerado um autor que ou seja, contra a “análise do pensa- declara: “Não somos nós que percebe-
prossegue a mudança da relação que mento reflexivo” que procede para a mos, é a coisa que se percebe lá em
passa entre o Ser e o homem, cujos “depuração” do Ser, é preciso voltar baixo”. Como não existe uma relação
vários “sintomas culturais” ele indivi- a descrever o Ser “já aí, pré-crítico”. ‘frontal’ entre corpo e mundo, temos
duava desde Descartes. Tutelando uma Assim, rebuscamos a “abertura para que rejeitar – diz Merleau-Ponty – “os
relação de abraço “radical” de Ser e o próprio cubo que é distanciamen- preconceitos seculares que colocam o
homem, segundo écart, Merleau-Ponty to, transcendência”: “dizer que tenho corpo no mundo e o vidente no corpo
tentou lidar com a complexa passagem uma visão do cubo é dizer que, per- ou, inversamente, o mundo e o corpo
das ordens físico-química e vital para cebendo-o, vou de mim a ele, saio de do vidente, como em uma caixa”.
a ordem humana, sem poder recair mim nele. Eu, minha visão, estamos A mesma coisa acontece natural-
em reducionismos e dualismos, nem com ele presos ao mundo carnal”. Isso mente a um nível de maior complexida-
simples sobreposições entre níveis, que dizer que “também minha visão e de, com a percepção de outrem. Com
formas, sistemas, fatores de relação. meu corpo emergem do mesmo ser que a segregação do sentiente e do sensí-
Na procura dessas novas relações, que é, entre outras coisas, cubo”. Estamos vel, os órgãos do meu corpo entram
passam de forma eminente entre Ser em face do fenômeno da “imbricação” em comunicação segundo uma “transi-
e homem, podemos nos aproximar aos (empiètement), a partir de um recí- tividade de um corpo a outro”. Saindo
inúmeros desafios da corporeidade. proco exceder do cubo e da percepção do modelo dualista e reducionista de
que tenho dele: “não me vejo vendo, sujeito e objeto, essa transitividade
IHU On-Line – Como se imbricam o mas por imbricação realizo o meu cor- marca a abertura de uma relação com
espírito selvagem e o ser bruto de po visível, prolongo meu ser-visto para o outro e o mundo não mais ‘frontal’,
Merleau-Ponty? O que significam es- além do meu ser-visível para mim”. mas ‘lateral’, ‘oblíqua’, ‘indireta’. O
ses conceitos? Em virtude do secreto natal, a Nature- Ser vertical é, portanto, a abertura
Fabio Di Clemente – Com a volta para de um “ambiente pré-espiritual sem o
SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 33
qual nada é pensável, nem mesmo o de uma vida que afirma um Ser não
espírito, e pelo qual nos interpenetra- parmenidiano, uma forma que escapa É preciso evitar dois erros, afirma
mos uns nos outros, e nós próprios em ao dilema do ser e do não ser, indu- Merleau-Ponty: “colocar detrás dos fe-
nós para possuirmos o nosso tempo”. zindo-nos a rever, dizia Merleau-Ponty, nômenos um princípio positivo (ideia,
Quer dizer que esse Ser vertical funda a “história confusa” da psyché, assim essência, enteléquia) e não ver de for-
o Espírito selvagem, o “princípio selva- como o “discurso confuso da história”. ma alguma um princípio regulador”.
gem do Logos”, o princípio que realiza Não há lugar para um dualismo metafí- Contra a duplicação da realidade sob
a lógica do sensível sob forma de uma sico alma/corpo, conforme pensamen- nossos olhos, que tanto o sistema de
coesão aconcentual. Abordado do lado to de Platão, apesar da complexidade Platão como de Aristóteles produz, é
da reabilitação da Natureza (acesso e da evolução que acompanha o pen- preciso “introduzir no organismo um
privilegiado à ontologia), o Ser selva- samento do fundador da Academia. Pa- princípio que seja negativo ou ausên-
gem vai ser o fundamento do ‘espíri- ralelamente, não há lugar sequer para cia”. A forma, como a vida, do animal
to’, a apresentação deste último na a visão teleológica de Aristóteles. Nos “não é a manifestação de uma finalida-
sua ‘pré-história’. Diante desse nível cursos sobre a Natureza, Merleau-Pon- de, mas, antes, de um valor existencial
de radicalidade, não surpreende que, ty comentava as pesquisas que mos- de manifestação, de apresentação”.
para Merleau-Ponty, só a filosofia nos tram como os animais expressam uma Trata-se de acompanhar a “instaura-
dá de volta tal pertença ontológica e força maleável, fazendo desvios, regu- ção de uma dimensão”, radicalizan-
que, ao mesmo tempo, as ciências (fí- lando e instituindo relações inéditas. do a ‘negação da negação’ diante do
sica, psicologia, biologia etc.) sejam Deve-se, portanto, criticar a assimila- próprio legado da dialética hegeliana,
compenetradas com questões “trans- ção da noção de vida à noção de utili- resgatando sempre o resíduo, o resto,
cendentais” e “ontológicas”. dade e de finalidade. Para um ser vivo, a excedência, a não coincidência, no
diz Merleau-Ponty, “condições exte- interior de uma relação. Entretanto,
IHU On-Line – Quais são os principais riores idênticas acarretam diferentes ressaltado tudo isso, eu não falaria de
pontos de ruptura desse pensador possibilidades de comportamento”. O pontos de ruptura. Cabe lembrar que a
com a filosofia grega? caranguejo, ele nota, utiliza o mesmo sagacidade merleau-pontyana, capaz
Fabio Di Clemente – Merleau-Ponty objeto (a anêmona do mar) para fins de buscar a excedência crítica numa
volta a falar de “elemento”, lembran- diferentes: “ora para camuflar sua ca- obra (filosófica, literária, artística,
do-nos a filosofia iônica. Isso também rapaça e proteger-se assim dos peixes, etc.), é fundamentada numa visão on-
não deve nos surpreender. O elemen- ora para alimentar-se, ora, se lhe re- tológica bem determinada. Nas notas
to, para os filósofos iônicos, tinha o tirarem a carapaça, para substituí-la”. preparatórias de um dos dois cursos
estatuto de pars totalis, que, como Consequentemente, “no organismo que ministrou no Collège de France,
tal, ultrapassava as divisões entre a vivo não podemos nem ‘platonizar’, o de 1960-1961, interpretando a tex-
parte e o todo, o individual e o uni- nem ‘aristotelizar’”. to de Heidegger, Introdução à meta-
versal, a existência e a essência, entre física (Lisboa: Instituto Piaget, 2000),
outras; ademais, para Merleau-Ponty, Sagacidade Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
não diferentemente da carne, ele não alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. (1927). A problemática heideggeriana é am-
é matéria, não é espírito, nem subs- Criador de sistemas filosóficos influentes até pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas
tância. O conceito de mundo merleau- hoje, como a Teoria das Idéias e a Dialética. sobre o humanismo (1947), Introdução à meta-
pontyano acaba representando tudo Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de física (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line
Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A publicou na edição 139, de 2-05-2005, o artigo
isso, enquanto “conjunto em que cada República e o Fédon. Sobre Platão, confira e O pensamento jurídico-político de Heidegger
‘parte’, quando a tomamos em si mes- entrevista As implicações éticas da cosmolo- e Carl Schmitt. A fascinação por noções fun-
ma, abre de súbito dimensões ilimita- gia de Platão, concedida pelo filósofo Prof. dadoras do nazismo, disponível para download
Dr. Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU em http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger,
das – torna-se parte-total”. Impõe-se On-Line, de 04-09-2006,disponível em http:// confira as edições 185, de 19-06-2006, intitula-
o “vínculo secreto” de uma relação migre.me/uNq3. Leia, também, a edição 294 da O século de Heidegger, disponível para do-
que atravessa, por exemplo, as asso- da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, inti- wnload em http://migre.me/uNtv, e 187, de
tulada Platão. A totalidade em movimento, 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
ciações do sonho. Esse vínculo secre- disponível em http://migre.me/uNqj. (Nota trução da metafísica, que pode ser acessado
to, complementar à lógica do secreto da IHU On-Line) em http://migre.me/uNtC. Confira, ainda, o
natal, do nascimento continuado, nos Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. nº 12 do Cadernos IHU Em Formação intitula-
C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira, um do Martin Heidegger. A desconstrução da me-
tutela da presuntiva realidade plena dos maiores pensadores de todos os tempos. tafísica, que pode ser acessado em http://mi-
e determinada, resgatando novamen- Suas reflexões filosóficas — por um lado ori- gre.me/uNtL. Confira, também, a entrevista
te o resíduo, o resto, a excedência, ginais e por outro reformuladoras da tradição concedida por Ernildo Stein à edição 328 da
grega — acabaram por configurar um modo de revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponí-
a não coincidência, a saber, a trans- pensar que se estenderia por séculos. Prestou vel em http://migre.me/FC8R, intitulada O
cendência no interior de uma relação. inigualáveis contribuições para o pensamento biologismo radical de Nietzsche não pode ser
Merleau-Ponty tenta, assim, garantir humano, destacando-se nos campos da ética, minimizado, na qual discute ideias de sua con-
política, física, metafísica, lógica, psicologia, ferência A crítica de Heidegger ao biologismo
a autonomia da ordem do vivido, do poesia, retórica, zoologia, biologia, história de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte
fenomenal. natural e outras áreas de conhecimento. É integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da
Ora, em face dessa autonomia, considerado, por muitos, o filósofo que mais diferença - Pré-evento do XI Simpósio Inter-
influenciou o pensamento ocidental. (Nota da nacional IHU: O (des)governo biopolítico da
compreende-se ainda melhor a tese IHU On-Line) vida humana. (Nota da IHU On-Line)
“H
á um diálogo entre a maneira fenomenológica de ver o mundo e a maneira etnomate-
mática de ver o mundo. Ambas essas maneiras são transdisciplinares, isto é, não estão
‘engaioladas’ nos preceitos das disciplinas tradicionais”. A afirmação é do matemático
Ubiratan D’Ambrosio na entrevista, concedida por e-mail, à IHU On-Line. Segundo o
pesquisador, Merleau-Ponty, um de seus grandes referenciais intelectuais, “aproxima
fenomenologia e existência”. E acentua: “De Merleau-Ponty apreendi principalmente que o real é o comple-
xo de fatos e fenômenos muitos surpreendentes”. D’Ambrosio aponta que um aspecto pouco explorado na
matemática é a psicanálise, amplamente estudada por Merleau-Ponty: “Gostaria de estimular filósofos da
matemática a darem mais atenção à psicanálise. A matemática é a expressão de uma forma de ver o mundo,
de uma visão pessoal e de experiências próprias, e pode não estar subordinada à formalização que é, muitas
vezes, equivocadamente identificada com matemática”.
Ubiratan D’Ambrosio é doutor em Matemática pela Universidade de São Paulo – USP e professor emérito
da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Foi internacionalmente agraciado com a “Medalha Felix
Klein” (Educação Matemática/ICMI/IMU), com a “Medalha Kenneth O. May” (História da Matemática/ICHM/
IMU). Foi presidente da Sociedade Brasileira de História da Matemática - SBHMat e do International Study
Group on Ethnomathematics - ISGEm além de ser presidente de honra da Sociedade Brasileira de História da
Ciência - SBHC. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Univer-
sidade Bandeirante – Uniban e professor credenciado nos programas de pós-graduação em Educação Matemá-
tica da Faculdade de Educação da USP e da Universidade Estadual Paulista/Rio Claro – Unesp e em História
da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Dentre suas publicações, destacam-se
Transdiciplinariedade (São Paulo: Palas Athena, 1997); Etnomatemática. Elo entre as Tradições e a Moder-
nidade (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001); Uma história concisa da matemática no Brasil (Petrópolis:
Vozes, 2008); e Educação para uma Sociedade em Transição (Natal: UFRN, 2011). Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como se deu o conta- ras, constituíram o caldo intelectual meu modelo de conhecimento, que
to e a aproximação de seus estudos inconsciente, uma expressão usada, chamo “Da realidade à ação”, cada
com a obra de Merleau-Ponty? num contexto semelhante, por Pier- indivíduo é parte da realidade e é
Ubiratan D’Ambrosio – Nos meus re Lévy, no qual minhas ideias fo- impactado e informado por fatos e
anos de formação, em matemática, a ram sendo “cozidas”. Destaco ideias fenômenos. Como cada indivíduo
leitura de Husserl foi muito natural. sobre necessidades e vontade, sobre processa essa informação, como age
Daí ler Heidegger e Merleau-Ponty viver, observar, sentir, desejar. No e com quais objetivos, qual sua in-
foi consequência e me levou a outros Pierre Lévy (Tunísia, 1956) é um filósofo da
tenção, são as perguntas diretrizes
autores na linha da fenomenologia e informação que se ocupa em estudar as intera- desse modelo. Claramente, esse en-
do existencialismo, em sentido am- ções entre a Internet e a sociedade. É autor de foque tem muito a ver com aquilo
inúmeras obras, como Cibercultura (São Pau-
plo. Naturalmente, essas leituras não lo: Editora 34, 1999); O que é o Virtual (São
que foi acumulado no que eu chamei
tinham um objetivo imediato, mas, Paulo: Editora 34, 1996) e As Tecnologias da de caldo intelectual.
juntamente com muitas outras leitu- Inteligência (Rio de Janeiro: Editora 34, 1993).
(Nota da IHU On-Line)
U
m autor a ser revisitado e que estabelece diálogos entre diversas correntes filosóficas e cientí-
ficas. Assim é Merleau-Ponty, assinala o professor Luiz Augusto Passos, em entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line. Esse autor denuncia a pedagogia “adultocêntrica” e que não tem
ouvidos e olhos para entender a criança, apontando que os pequenos vivem o mundo nele mergu-
lhados por todos os poros. Merleau-Ponty “cultiva teimosia quase obsessiva de voltar sempre ao
início, de fazer perguntas instigantes e de promover tremores de terra nas áreas já pacificadas, na suspeita
de que é necessário uma hipercrítica. Nesse sentido, numa época em que se retornam a evidências ‘esta-
belecidas’ ou à deificação das ‘incertezas’ como caminho e prática individuais ou sociais, é bom revisitar
Merleau-Ponty”.
Passos possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Nossa Senhora Me-
dianeira, São Paulo; graduação em Teologia pelo Colégio Máximo Cristo Rei, de São Leopoldo, RS; mestrado
em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; doutorado em Educação Pública pela Universidade
Federal de Mato Grosso; e doutorado em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Atualmente leciona na UFMT e é um dos organizadores do Simpósio Internacional Merleau-Ponty vivo
aos 50 anos de sua morte. Percursos ao redor da fenomenologia aos 90 anos do nascimento de Paulo Freire
(http://gempo.com.br/portal/), que ocorre de 10 a 12 de novembro nessa universidade. É um dos autores
de O eu e o outro na escola: contribuições para incluir a história e a cultura dos povos indígenas na escola
(Cuiabá: EdUFMT, 2010) e escreveu Filosofia para educadores (Cuiabá: EdUFMT, 2008). Seu site pessoal é
http://gempo.luizaugustopassos.com.br/ Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais são os maiores mercado. Ignora-se a fragilidade da atmosfera de justicialismo vazio. Não
motivos para se relembrar Merleau- vida, e as correções produzem um nível será possível a felicidade humana, sem
Ponty 50 anos após sua morte? de exclusão das sociedades empobre- que se afirme a esperança na vida em
Luiz Augusto Passos – Os maiores mo- cidas e em situação de vulnerabilida- face da dissociação de nossa condição
tivos desta memória é o fato de Mer- de ambiental. O pretendido progresso de seres políticos e voltados à comu-
leau-Ponty se constituir num autor impõe a destruição dos meios de vida, nicação e à comunhão, encarnado em
que costura consensos no diálogo de de sobrevivência com destruição de estruturas políticas. Singulares e úni-
distintas correntes filosóficas e cientí- padrões ético-políticos, aniquilação cos, particulares como membros de
ficas. Grandes problemas da humani- das pessoas pela hipertrofia de parti- comunidades específicas, universais
dade, pelos processos de globalização, dos e de estado, ou o seu contrário, a não apenas enquanto gênero humano,
se agudizam por tratamentos sempre afirmação do individualismo e absolu- somos seres planetários em comunhão
localizados e parciais, pois são com- tização do narcisismo solitário contra através de uma relação inextrincável
preendidos como dissociados da rede processos de solidariedade e convivên- de todos/as com tudo e todos/as com
de interações que compõe a pessoa, cia. Sobrevive um materialismo práti- todas as criaturas animadas e inanima-
as sociedades, o mundo e as questões co destituído de espiritualidade pesso- das do universo.
do universo. Às crises globais respon- al e sem mística; ou o seu contrário
demos com tratamentos periféricos ou grandes corporações religiosas que so- Eu-outro-mundo
sintomáticos. Buscam-se intervenções brevivem de sacrifícios humanos, por
eficazes mediante tecnologias de alto interesses monopolistas. Mantém-se Isso corresponde a um programa
impacto exclusivamente voltadas ao a diluição dos direitos humanos numa geral da filosofia de Merleau-Ponty?
Data: 7/11/2011
Informações em www.ihu.unisinos.br
D
ando continuidade ao debate levantado na IHU On-Line número 376, de 17-10-2011, publicamos,
nesta edição, o artigo que segue, enviado pelo professor Nelson Rodrigues dos Santos, da Uni-
camp. Ele escreveu este texto inspirado pelas perguntas enviadas pela redação da IHU On-Line.
Com a finalidade de contribuir para a reflexão sobre a complexidade sociopolítico-econômica que
envolve o desenvolvimento do SUS, e que usualmente são expostas à opinião pública sob ângulos
parciais ou unilaterais, Nelson propõe cinco questões centrais, “polêmicas para os gestores e o controle
social, e que são usualmente expostas à opinião pública sob ângulos unilaterais, o que limita e fragiliza o
debate democrático e a mobilização da sociedade”.
Nelson Rodrigues dos Santos é professor colaborador da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, presi-
dente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – Idisa e consultor do Conselho Nacional de Secretarias Municipais
de Saúde – Conasems. Confira o artigo.
Todos sabemos que é responsabi- tão descentralizada que incluiu, em federal no financiamento do SUS, os
lidade constitucional do poder Exe- uma década, metade da população fortes e contínuos subsídios federais
cutivo implementar o disposto na antes excluída, a efetivação da di- aos planos e seguros privados de saú-
Constituição e na Lei e, para tanto, reção única em cada ente federado de, hoje equivalentes a mais de 40%
valer-se da prerrogativa de formular com extinção do Inamps, a criação do orçamento do Ministério da Saúde
e realizar as estratégias necessárias. dos fundos de saúde nos entes fe- e 25% do faturamento das respecti-
Sabemos também da grande conquis- derados e o repasse fundo a fundo, vas operadoras privadas, a resistên-
ta democrática das entidades e movi- a contínua e acentuada elevação da cia pétrea à reforma democrática da
mentos sociais na saúde, da criação, parcela municipal no financiamento estrutura administrativa do Estado,
pela lei n. 8142/90, das Conferências do SUS, revelando que somente os adequando-o ao atendimento eficien-
e Conselhos de Saúde, esses tendo municípios rompem com a cultura de te, qualitativo e eficaz das demandas
como primeira atribuição legal atuar adotar o “mínimo” como “teto”, a sociais na saúde, e a imutabilidade
na formulação de estratégias. Des- assunção da Atenção Básica como a na relação público/privado antirre-
de então, os colegiados de gestores grande estratégia para efetivação da publicana, promíscua e antissocial
e os conselhos de saúde formulam universalidade, integralidade e equi- vigente.
estratégias decisivas para o bom de- dade com qualidade em todo o siste- Por fim, não há como não reconhe-
senvolvimento do SUS, congruentes ma, e mais recentemente, a criação cer que o imbricamento das estra-
com os princípios e diretrizes cons- dos colegiados regionais, hoje, as co- tégias congruentes e incongruentes
titucionais, como intensiva criação e missões intergestores regionais. com os princípios e diretrizes do SUS,
funcionamento dos conselhos e con- Torna-se inabdicável o reconhe- além da grande tensão e angústia dos
ferências de saúde nos municípios cimento de que nesses mais de 20 gestores e conselhos de saúde, vão
e estados, a criação dos colegiados anos foram formuladas e vêm sendo deixando um saldo amargo: toda a
intergestores nacional e estaduais, realizadas outras estratégias, incon- classe média e todos os trabalhado-
a pactuação de normas básicas or- gruentes com os princípios e diretri- res privados e públicos da economia
denadoras da descentralização, a zes constitucionais, como a contínua formal afiliam-se aos planos privados
surpreendente produtividade da ges- e pronunciada retração da parcela e usam complementarmente o SUS; a
Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis Encontro de Assis: uma “viagem fraterna” rumo a um
nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) horizonte maior
de 24-10-2011 a 30-10-2011. Entrevista especial com Faustino Teixeira, teólogo
Confira nas Notícias do Dia de 27-10-2011
Acesse no link http://bit.ly/upNdTE
COP-17 e o impasse de Kyoto O teólogo comenta a 3ª edição da Jornada Mundial de
Entrevista especial com Maureen Santos, assessora do Oração pela Paz, realizada semana passada em Assis, na
Núcleo Justiça Ambiental e Direitos da FASE Itália, e define: “uma ‘viagem fraterna’ visando a meta
Confira nas Notícias do Dia de 24-10-2011 misteriosa e transcendente que Deus estabeleceu para
Acesse no link http://bit.ly/r5kg8N todos”.
Segundo assinala a assessora do Núcleo Justiça Ambiental
e Direitos da FASE, “o Protocolo de Kyoto, apesar de ser BNDES tem discurso verde e prática cinza
extremamente reducionista, não está sendo valorizado”. Entrevista especial com João Roberto Lopes Pinto, inte-
grante da Plataforma BNDES
“A flagrante discriminação da mulher na Igreja é um es- Confira nas Notícias do Dia de 28-10-2011
cândalo” Acesse no link http://migre.me/61MQu
Entrevista com Teresa Forcades, monja benedetina O integrante da Plataforma BNDES constata que “assiste-se
Confira nas Notícias do Dia de 25-10-2011 a um processo de financeirização das políticas ambientais e
Acesse no link http://bit.ly/tx941D da própria natureza, esvaziando dramaticamente o sentido
A monja benedetina constata que “nenhum papa se público do direito”.
atreveu a proclamar ex-cathedra a proibição da orde-
nação de mulheres”. ‘‘As redes sociais e a internet deram ao mundo um novo
fôlego em termos de cidadania’’
Transgênicos contaminam as sementes crioulas Entrevista especial com Paulo Faustino
Entrevista especial com Magda Zanoni, bióloga Confira nas Notícias do Dia de 29-10-2011
Confira nas Notícias do Dia de 26-10-2011 Acesse no link http://bit.ly/tXkuHZ
Acesse no link http://bit.ly/rMSOUc O debate brasileiro em torno da criação de um marco regu-
Segundo declaração da bióloga, “há risco de consumo de latório para a mídia “está desfocado e não é esclarecedor”,
transgênicos porque inexistem estudos epidemiológicos adverte o pesquisador português.
que comprovem a não existência de riscos”.
Data: 3/11/2011
Prof. MS Marcelo Henrique Santos Toledo – Universidade de Taubaté/SP
Informações em www.ihu.unisinos.br
Dia 03-11-2011
Evento: IHU ideias
Palestrante: Prof. MS Marcelo Henrique Santos Toledo – Universidade de Taubaté-SP
Tema: O impacto da plantação extensiva de eucalipto nas culturas tradicionais
Horário: 17h30min às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU
Maiores informações: http://bit.ly/sAXpQa
Dia 07-11-2011
Evento: Ciclo de Estudos: Repensando os Clássicos da Economia
Palestrante: Prof. Dr. Flavio Comim - UFRGS
Tema: Amartya Sen: o desenvolvimento como liberdade para a superação da fome, da miséria e do
mal-estar social
Horário: 20h às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU
Maiores informações: http://bit.ly/ndTF3S
Q
uinta-feira, dia 3 de novembro, o coordenador do Movimento em Defesa dos Pequenos Agricultores
– MDPA, Marcelo Henrique Santos Toledo, estará na Unisinos debatendo o tema “O impacto da plan-
tação extensiva de eucalipto nas culturas tradicionais”, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O
evento ocorre das 17h30 às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.
Toledo concedeu a entrevista a seguir por e-mail à IHU On-Line, e frisa que “as plantações ex-
tensivas de eucalipto têm um reflexo avassalador nos valores culturais e religiosos das comunidades ‘caipiras’.
A monocultura do eucalipto suprimiu diversos sítios de devoção popular não respeitando seus bens simbólicos”.
Segundo ele, as empresas eucaliptoras derrubaram diversas capelas, ermidas e em outros casos impediram o
acesso da população a esses bens. “Os interesses econômicos das grandes empresas de celulose detonaram o
catolicismo rústico e mataram o bairro tradicional rural. O povo teve que ir embora para nunca mais voltar”.
Marcelo Henrique Santos Toledo é formado em História pela Universidade de Taubaté, em São Paulo–SP,
mestre em Ciência da Religião, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Participa de um
Núcleo de Pesquisa sobre religiosidade popular na Universidade de Taubaté e coordena o Movimento em Defesa
dos Pequenos Agricultores - MDPA por ele criado em São Luís do Paraitinga-SP, que luta contra a monocultura do
eucalipto. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Quais os riscos que a lipto têm um reflexo avassalador nos Luís do Paraitinga já foi considerado
plantação extensiva de eucalipto valores culturais e religiosos das comu- como município celeiro do Vale do Pa-
causa nas comunidades e culturas nidades “caipiras”. A monocultura do raíba, ou seja, mantinha uma produ-
tradicionais? eucalipto suprimiu diversos sítios de ção agrícola voltada para a policultura
Marcelo Henrique Santos Toledo – O devoção popular não respeitando seus de alimentos que abastecia diversas
primeiro é o risco do desmantelamen- bens simbólicos. A população rural de cidades dessa região, litoral norte e
to das comunidades tradicionais e de- São Luís do Paraitinga, em sua grande até mesmo o sul de Minas. No entanto,
pois a sua extinção. A cultura tradicio- maioria é formada por católicos tradi- atualmente boa parte do seu território
nal de um bairro, de uma localidade, cionais diretamente ligados aos seus encontra-se invadido por milhares de
acaba quando as comunidades deixam santos de fé e devoção. As empresas hectares de árvores exóticas de euca-
de existir. Isso já aconteceu em alguns eucaliptoras derrubaram diversas ca- lipto e, se não fosse a resistência da
bairros. O impacto das monoculturas pelas, ermidas e em outros casos im- sociedade civil, especificamente a do
de eucaliptos não é só ambiental, so- pediram o acesso da população a esses meio rural, a sua articulação e resis-
cial e/ou econômico, mas é também bens. Os interesses econômicos das tência representados pelo Movimento
cultural. A chegada das grandes em- grandes empresas de celulose detona- em Defesa dos Pequenos Agricultores –
presas de celulose, no processo de ram o catolicismo rústico e mataram MDPA, a situação seria muito pior. São
aquisição de terras, acabou por in- o bairro tradicional rural. O povo teve Luís do Paraitinga estava se tornando
corporar diversos sítios de produção que ir embora para nunca mais voltar. um grande celeiro de eucalipto.
tradicional e consequentemente essa As plantações extensivas de mono-
aquisição implicou na desagregação da IHU On-Line – Quais os impactos da cultivos de eucalipto usurpam terras
agricultura familiar, que culmina com plantação de eucalipto em larga es- de boa qualidade destinadas à agri-
o fim dos grupos de vizinhanças. A ma- cala à agricultura familiar? cultura e, até mesmo, à pecuária de
nutenção desses elementos de forma Marcelo Henrique Santos Toledo – Os leite. A cada dia que passa querem
coesa é imprescindível para a manu- danos causados pela monocultura in- plantar mais e mais eucalipto. Ao se
tenção da cultura “caipira”. dustrial de eucalipto sobre a agricul- instalarem, muda tudo nos bairros/co-
As plantações extensivas de euca- tura familiar é enorme, violento. São munidades e o primeiro fator negativo
Data: 22/11/2011
Informações em www.ihu.unisinos.br
E
ncerrou-se, no dia 24 de outubro, o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica
e o governo da vida humana”. Ministrado pelo professor Castor Bartolomé Ruiz, do PPG em Filosofia da
Unisinos, o curso teve como objetivo estudar o pensamento de Giorgio Agamben na sua trilogia Homo
Sacer.
A revista IHU On-Line publicou uma série especial com artigos inéditos do professor Castor sobre
os temas trabalhados nos oito encontros (acompanhe nos links ao final deste artigo). Para encerrar o curso,
publicamos nesta edição a tradução da apresentação do novo livro de Giorgio Agamben, publicado na Itália em
setembro de 2011: AGAMBEN, Giorgio. Altissima povertà. Regole monastiche e forma di vita. Homo sacer IV,
1. [Altíssima pobreza. Regras monásticas e forma de vida]. Vicenza, Neri Pozza, 2011 , realizada pelo professor
Selvino Assmann, do Departamento de Filosofia da UFSC.
Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Imaculada Conceição, de Viamão, e em
Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Selvino Assmann é mestre em Teologia por essa mesma
instituição. É mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Lateranense com a tese A Filosofia da
História de Leopoldo Zea - A América Latina e a História. Um de seus livros é Filosofia e ética (Florianópolis-Bra-
sília: UFSC/CAPES-UAB, 2009). Eis o texto, apontado como subsídio de estudo.
Orelha do livro - O que é uma regra, são entre a vida e a norma, mas sim na plicado acúmulo de minuciosos preceitos
se ela parece confundir-se sem resíduos descoberta de uma nova dimensão, na e de técnicas ascéticas, de claustros e
com a vida? E o que é uma vida humana, qual, talvez pela primeira vez, a “vida” horologia, de tentações solitárias e de
se em cada gesto seu, em cada palavra como tal se afirma na sua autonomia e liturgias corais, de exortações fraternas
sua, em cada silêncio seu, já não conse- a reivindicação da “altíssima pobreza” e e de punições ferozes mediante os quais
gue ser distinta da regra? do “uso” lança para o direito um desafio o cenóbio se constitui, tendo em vista a
É a estas perguntas que o novo livro com que o nosso tempo ainda deve fazer salvação em relação ao pecado e ao mun-
de Agamben procura dar uma resposta, as contas. do, como uma “vida regular”, quanto de
através de uma apaixonada releitura do Como pensar uma forma de vida, ou compreender, antes de tudo, a dialética
fenômeno fascinante e interminável que seja, uma vida humana totalmente sub- que dessa maneira se instaura entre os
é o monasticismo ocidental, desde Pacô- traída à tomada pelo direito e um uso dois termos “regra” e “vida”. Tal dia-
mio até S. Francisco. Se o livro recons- dos corpos e do mundo que não se subs- lética é tão densa e complexa que, aos
trói nos seus detalhes a vida dos mon- tancie jamais numa apropriação? Como olhos dos estudiosos modernos, às vezes
ges na sua obsessiva atenção à escansão pensar a vida como aquilo de que nunca parece resultar numa perfeita identida-
temporal e à regra, às técnicas ascéticas se dá propriedade, mas apenas um uso de: vita vel regula [vida ou regra], se-
e à liturgia, a tese de Agamben consiste, comum. gundo a introdução à Regra dos Padres,
porém, em que a verdadeira novidade ou, nas palavras da Regula non bullata
do monasticismo não reside na confu- Prefácio - O objeto desta investiga- [Regra não ornada com bula] de Fran-
São Pacômio (c. 292-348): também conhe- ção é a tentativa – feita no caso exem- cisco: haec est regula fratrum minorum
cido como Abba Pacômio, é geralmente re- plar do monasticismo – de construir uma [esta é a regra dos frades menores]...
conhecido como o fundador do monasticismo
cenobita. Seu dia é celebrado em 9 de maio. forma de vida, ou seja, uma vida que se Aqui, no entanto, preferiu-se ao vel e ao
(Nota da IHU On-Line) vincule tão estreitamente à sua forma et toda a sua ambiguidade semântica, a
São Francisco de Assis (1181-1226): frade a ponto de resultar inseparável dela. É fim de olhar para o cenóbio muito mais
católico, fundador da “Ordem dos Frades Me-
nores”, mais conhecidos como Franciscanos. nessa perspectiva que a investigação se como a um campo de forças percorrido
Foi canonizado em 1228 pela Igreja Católica. confronta, sobretudo, com o problema por duas intensidades contrapostas e, ao
Por seu apreço à natureza, é mundialmente da relação entre regra e vida, que defi- mesmo tempo, entrelaçadas, em cuja
conhecido como o santo patrono dos animais
e do meio ambiente. Sobre Francisco de Assis ne o dispositivo através do qual os mon- recíproca tensão algo de inaudito e de
confira a edição �����������������������������
238 da IHU On-Line, de 01-10- ges tentaram realizar o seu ideal de uma novo, ou seja, uma forma de vida, obsti-
2007, intitulada Francisco. O santo, disponível forma de vida comum. Tratava-se não nadamente se aproximou da sua própria
para download em http://migre.me/61MbS.
(Nota da IHU On-Line) tanto – e não só – de investigar o com- realização e, com idêntica obstinação,
SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 59
veio a falhar. A grande novidade do mo-
nasticismo não é a confusão entre vida
“Como pensar uma vida totalmente subtraída à prisão do di-
reito e um uso dos corpos e do mundo
e norma, nem uma nova declinação da
relação de fato e de direito, mas sim a
forma de vida, ou seja, que não acabe sempre numa apropria-
ção? Ou seja, ainda pensar a vida como
identificação de um plano de existência,
impensado e talvez ainda hoje impensá-
uma vida humana aquilo de que nunca se dá propriedade,
mas apenas um uso comum.
vel, que os sintagmas vita vel regula, re-
gula et vita, forma vivendi, forma vitae
totalmente subtraída à Tal tarefa exigirá a elaboração de
uma teoria do uso a respeito da qual
buscam com esforço nomear, e nos quais
tanto a “regra” quanto a “vida” perdem
tomada pelo direito e um faltam, na filosofia ocidental, os prin-
cípios mais elementares, e, a partir
o seu significado familiar para apontar
em direção a um terceiro, que se trata
uso dos corpos e do dela, uma crítica daquela ontologia
operativa e governamental que, sob
precisamente de trazer à luz.
Contudo, no decurso da investiga-
mundo que não se os disfarces mais diversos, continua
determinando os destinos da espécie
ção, aquilo que apareceu como obstá-
culo para a emergência e para a com-
substancie jamais numa humana. Isso fica reservado ao último
volume de Homo Sacer (p. 7-10).
preensão deste terceiro não foi tanto a
insistência sobre dispositivos que podem
apropriação?” Limiar - O que faltou à doutrina
parecer jurídicos para os modernos, franciscana do uso é precisamente a
como acontece com o voto e a profissão, a experiência, ao mesmo tempo muito tentativa de pensar o nexo com a ideia
quanto um fenômeno absolutamente próxima e remota, que estava em ques- de forma de vida, que o texto de Olivi
central na história da Igreja e ao mesmo tão na forma de vida. parece implicitamente exigir. É como se
tempo opaco para os modernos, que é a Se a compreensão da forma de vida a altíssima pobreza, que deveria defi-
liturgia. A grande tentação dos monges monástica podia ocorrer unicamente nir, segundo o fundador, a forma de vida
não foi aquela que a pintura dos século como persistente contraponto ao para- franciscana como vida perfeita (e que
XV fixou nas figuras femininas seminuas digma litúrgico, o experimento talvez noutros textos, como no Sacrum com-
e nos monstros informes que importu- crucial da investigação não poderia mercium Sancti Francisci cum Domina
nam Antônio no seu eremitério, mas a deixar de se situar na análise dos mo- Paupertate, tem de fato esta função),
vontade de construírem a sua vida como vimentos espirituais dos séculos XII e vinculando-se ao conceito de usus facti,
uma liturgia integral e incessante. Por XIII, que culminaram no franciscanis- perdesse sua centralidade e acabasse ca-
isso a investigação, que inicialmente se mo. Enquanto já não situam a sua ex- racterizando-se apenas de forma negati-
propunha definir, através da análise do periência central no plano da doutrina va com relação ao direito. Certamente,
monasticismo, a forma de vida, teve que e da lei, mas no da vida, os mesmos graças à doutrina do uso, a vida francis-
haver-se com a tarefa, de forma algu- se apresentam, sob essa perspectiva, cana pôde afirmar-se sem reservas como
ma óbvia e, pelo menos aparentemente, como o momento de toda forma deci- a existência que se situa fora do direito,
desviante e estranha, de uma arqueolo- sivo na história do monasticismo, em ou seja, que, para ser, deve abdicar do
gia do ofício (cujos resultados são publi- que a sua força e a sua fraqueza, os direito – e este certamente é o legado
cados em volume separado sob o titulo seus sucessos e os seus fracassos alcan- que a modernidade se mostrou incapaz
Opus Dei. Archeologia dell’ufficio). çaram a sua tensão extrema. de enfrentar e que o nosso tempo nem
Só mesmo uma definição preliminar O livro encerra-se, por isso, com uma sequer parece capaz de pensar. Mas o
do paradigma ontológico e prático ao interpretação da mensagem de Francis- que é uma vida fora do direito, se ela se
mesmo tempo, tecido conjuntamente co e dos teóricos franciscanos sobre a define como a forma de vida que faz uso
de ser e de agir, de divino e de humano, pobreza e sobre o uso, que, por um lado, das coisas sem nunca delas se apropriar?
que a Igreja nunca parou de modelar e uma precoce lenda e uma interminável E o que é o uso, se cessamos de o definir
articular no decurso de sua história, des- literatura hagiográfica recobriram com apenas negativamente com respeito à
de as primeiras e incertas prescrições a máscara humana demais do pazzus propriedade?
das Constituições Apostólicas até a mi- [louco] e do giullare [menestrel] ou com É, pois, o problema do nexo essencial
nuciosa arquitetura do Rationale divino- aquela, não mais humana, de um novo entre uso e forma de vida que nesta altura
rum officiorum de Guilherme de Mende Cristo, e, por outro, uma exegese atenta
OLIVI, Quaestio octava de altíssima pauper-
(séc. XIII) e à calculada sobriedade da mais aos fatos do que às suas implica- tate. ��������������������������
Em: SCHLAGETER, Johannes. Das Heil
encíclica Mediator Dei (1947), poderia ções teóricas fechadas nos confins disci- der Armen und das Verderben der Reichen.
de fato permitir que se compreendesse plinares da história do direito e da Igre- Petrus Johannis Olivi OFM. Die Frage nach der
höchsten Armut. Franziskanische Forschun-
Opus Dei. A arqueologia do ofício. Obra cuja
ja. Em ambos os casos, o que continuava gen, 34, Werl, Dietrich-Goelde, 1989. (Nota
publicação, pela mesma editora, está anuncia- desconsiderado era o legado talvez mais do Tradutor)
da para janeiro de 2012 (Nota do Tradutor) precioso do franciscanismo, com o qual, A tradução portuguesa pode ser encontrada
Esta obra é um tratado sobre os significados em São Francisco de Assis. Escritos e biografias
simbólicos dos elementos arquitetônicos ecle-
sempre de novo, o Ocidente deverá vol- de São Francisco de Assis. Crônicas e outros
siais e sobre as celebrações litúrgicas. O autor tar a medir-se como se fosse sua tarefa testemunhos do primeiro século franciscano
também é conhecido como Guillaume Durand indeferível: como pensar uma forma de (Petrópolis: Vozes, 1981, p. 1045-1078). (Nota
(1230-1296) (Nota do Tradutor). da IHU On-Line)
Leia Mais...
>> Confira os outros artigos de Castor Bar-
tolomé Ruiz sobre o evento Giorgio Agamben: “O
Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo
da vida humana”
* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revis-
ta IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011, disponí-
vel em http://bit.ly/naBMm8.
* O campo como paradigma biopolítico moderno.
Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011,
disponível em http://bit.ly/nPTZz3;
* O estado de exceção como paradigma de governo.
Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011,
disponível em http://bit.ly/nsUUpX;
* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos
e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista
IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011, disponível
em http://bit.ly/pDpE2N;
* A testemunha, um acontecimento. Revista IHU
On-Line, edição 375, de 03-10-2011, disponível em
http://bit.ly/q84Ecj;
* A testemunha, o resto humano na dissolução pós-
metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição
376, de 17-10-2011, disponível em http://bit.ly/
qQHeua.
S
orridente. Assim a professora Mari Margarete dos Santos Forster
recebeu a IHU On-Line em sua sala para contar um pouco sua
história de vida. Trabalhando há quase 40 anos na Unisinos, Mari
se anima ao dizer que foi nessa universidade que aprendeu muitas
coisas. Alegre, ela afirma ser confiante, amiga, solidária, além de
acreditar saber respeitar as diferenças. Seus maiores sonhos são continuar
tendo saúde, ver a neta crescer e poder ainda fazer coisas que lhe deem
prazer. Conheça um pouco mais de sua história.
Origem – Nasci e moro em Por- que eles fazem parte do sujeito, pois blica. O centro de minha pesquisa é
to Alegre. Por muitos anos resido no este não é só A ou B. Ele é A e B. a relação universidade/escola. Reputo
mesmo bairro, em Petrópolis. Troco de que hoje, fazendo isso, eu de alguma
casa, mas não de bairro. Gosto muito Trabalhos – Dedico-me à Pós- forma devolvo um pouco do que recebi
dali. Graduação desde 1998, na linha de da instituição estatal.
pesquisa chamada Formação de Pro-
Família – Sou viúva, tenho uma fi- fessores, que é algo que eu venho in- Ingresso na Unisinos – Tive uma
lha, a Gabriela, casada, e uma neta, vestigando. Até 1998, fiquei mais na professora que trabalhava na Unisinos,
de seis meses, a Francesca. Minha filha graduação aqui e em outros lugares. mas precisou se ausentar por algum
escolheu esse nome para homenagear Sempre trabalhei muito, mas desde período e indicou meu nome para atu-
meu pai. Ela diz que quer terminar 2000 estou lecionando só na Unisinos. ar na universidade. Vim para cá nessas
com uma dinastia, a de mulheres de fi- Trabalho também na graduação, cur- condições e acabei ficando. Nessa épo-
lhas únicas, porque eu sou filha única, so de Pedagogia, que é onde eu gosto ca, estava me formando na graduação,
ela é filha única e agora nasceu a Fran- muito de atuar. Toda minha formação pois não havia exigência de ter mes-
cesca. Então, a ideia dela é ter outra básica foi na instituição pública. Tive trado e doutorado para atuar no ensino
criança, para não ficar só repetindo... uma boa formação. No entanto, quase superior. Então, eu estava terminando
Meus pais são falecidos. Moraram co- toda minha atuação profissional é na a graduação quando ela me convidou
migo depois que minha filha casou. instituição privada. Por algum tempo, para substituí-la e, chegando aqui,
trabalhei na instituição pública, como 99% dos meus alunos eram mais velhos
Formação – Sou pedagoga. Formei- no Colégio de Aplicação, da UFRGS; que eu. À época, os professores já ti-
me na Universidade Federal do Rio foi uma experiência maravilhosa. Logo nham longa experiência profissional,
Grande do Sul - UFRGS. Tenho mestra- que comecei a trabalhar, lecionei por mas eles vinham fazer sua formação na
do, pela mesma universidade, e dou- muito pouco tempo no ensino público universidade, porque eles não tinham
torado, realizado na Pontifícia Univer- estadual. Além disso, fui Secretária de passado pela academia. Foi uma expe-
sidade Católica do Rio Grande do Sul Educação Substituta aqui no Rio Gran- riência muito rica para mim. Aprendi
– PUC-RS, em Educação. de do Sul, nos anos de 1989 e 1990. muito com aqueles professores. A par-
Foi na época que trabalhei diretamen- tir dali, comecei a me dar conta que,
Autodefinição – Sou confiante. te na rede pública. Hoje, pesquiso a ensinando, nós aprendemos. E muito.
Amiga. Solidária e acredito que sei formação de professores ainda nesse Às vezes, até aprendemos mais do que
respeitar as diferenças. Tenho alguns ramo. Acredito que tenho um compro- ensinamos. Essa experiência me ensi-
defeitos, os reconheço. Mas acredito misso muito grande com a escola pú- nou isso, porque saí da universidade e
62 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378
vim com referenciais teóricos, à Acho mes-
época, bem norte-americanos, mo que
achando que iria ser o máximo. irá conseguir fazer um bom gover- mais direto com as pessoas, por-
Cheguei aqui, deparei-me com no. A presidente está tendo bas- que por muito tempo se conhe-
pessoas que tinham longa experi- tante clareza sobre esse momen- cia quase todo mundo que era
ência prática, de atuação, e pre- to e, mesmo as pessoas dizendo professor daqui. E eu trabalhei
cisávamos dialogar sobre isso. que ela não tem tanta autonomia também em um setor pedagógico
em relação ao nosso ex-presiden- que existia, que era o Núcleo de
Lazer – Ir ao cinema, ler, pas- te Lula, eu acredito que sim. Vejo Apoio Pedagógico - NAP. Então,
sear, ir à praia, viajar. Sempre que que Dilma tem feito coisas boas e eu tinha chance de circular por
posso viajo bastante. Teatro gosto acredito efetivamente que possa toda a instituição, nos diferen-
muito também. Reservo o meu sá- fazer um bom governo. tes espaços, e essa foi uma bela
bado para cinema e teatro. experiência. Mas, mesmo que ela
Religião – Sou batizada, cris- tenha crescido, consegui me loca-
Cinema – Gosto de dramas, fil- mada, tudo pela Igreja Católica. lizar em um espaço menor, que é
mes latino-americanos, do Pedro Sou uma pessoa que acredita em a pós-graduação, para poder criar
Almodóvar, Woody Allen. Aprecio Deus. Acho que Ele está em mui- junto, discutir junto. Eu acredito
o filme que assisti recentemente, tos lugares. Mas posso me consi- muito nisso: na possibilidade de
Um Conto chinês. Maravilhoso. derar católica não praticante. construir com o outro. E creio que
Vale a pena assistir. aqui, nesse espaço, eu tenho essa
Sonho – Continuar tendo saú- possibilidade.
Livros – Leio muita coisa ao de. Acredito que isso é efetiva-
mesmo tempo. Agora, estou len- mente importante; ver a minha IHU – É o oásis na Unisinos.
do duas coisas que adoro. Um é o neta crescer; poder ainda fazer Acredito que o trabalho do Insti-
Ética para meus pais, de Yves de coisas que me deem prazer, e tuto representa, de alguma for-
La Taille; o outro é O tempo entre acredito muito também na pos- ma, um espaço de liberdade, de
costuras, um romance, de María sibilidade de ter um mundo cada produção. Um lugar que tem uma
Dueñas, que é uma espanhola ma- vez melhor, mais solidário na re- autonomia, pelo menos é como eu
ravilhosa, de um texto belo. lação com os outros. Meus sonhos enxergo; e é um ambiente que se
são simples, porém genuínos, eu projeta, não fica só dentro des-
Autor – Gosto muito da Isabel diria. se espaço Unisinos. Ele tem uma
Allende, chilena; o nosso Jorge projeção para além da universi-
Amado, tenho lido quase tudo Unisinos – Estou desde agos- dade; creio que provoca também,
dele; e do português José Sara- to de 1972 na Unisinos. Já tenho dentro da instituição universitá-
mago. 39 anos aqui. Ela foi um dos pri- ria, uma série de reflexões. É um
meiros espaços de trabalho que espaço privilegiado. Além disso,
Política – Acredito que estamos tive. Aprendi muito. É um espaço precisa ser prestigiado e apoiado
vivendo um momento importante. que abre possibilidades para nós, porque, de fato, faz toda a dife-
Gosto muito da Dilma. Acho que professores, como profissionais. rença aqui dentro. Vejo que, de-
está acertando bastante. Claro A instituição cresceu muito! Tive pois da entrada do Instituto, mui-
que ela está se deparando com chance de acompanhar os seus tas coisas são diferentes. Não tem
pressões de várias ordens, mas diferentes momentos e, às ve- como não saber o que é o IHU.
acredito que está conseguindo dar zes, sinto falta de algumas coisas, Representado em diferentes veí-
conta a contento desses desafios. como, por exemplo, o contato culos, ele tem uma marca boa.
Destaques
Serge Latouche e a economia de baixo carbono
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