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Merleau-Ponty.

Um pensamento
emaranhado
no corpo

Fabio Di Clemente
Um convite à radicalidade
E mais:
Marina Marcondes Machado >> Marcelo Henrique Toledo:
A fenomenologia da infância e a criança Plantação extensiva de
mundocentrada eucalipto X culturas tradicionais

378
Ano XI
Verilda Speridião Kluth >> Sergio Mattos:
A tecnologia digital pode e deve ser
Kant e Merleau-Ponty: um debate entre usada para transmitir serviços e
31.10.2011
ISSN 1981-8769 filosofia e matemática conceitos de cidadania
Merleau-Ponty.
Um pensamento emaranhado no corpo
O meio século de falecimento do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) inspira a pre-
sente edição da IHU On-Line, realizada em parceria com a Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT.
O PPG em Educação da UFMT promove, em Cuiabá, de 10 a 12 de novembro, o Simpósio Internacional
Merleau-Ponty vivo aos 50 anos de sua morte. Percursos ao redor da fenomenologia aos 90 anos do
nascimento de Paulo Freire.

Inspirada pelos conceitos do pensador francês, a artista plástica Carmen Sylvia Guimarães Aranha,
da Universidade de São Paulo – USP, menciona que a pintura sempre celebra o enigma da visibilidade.
Fabio Di Clemente, filósofo italiano docente na Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, acentua
o convite à radicalidade feito por esse autor. A psicopedagoga Maria Alice de Castro Rocha analisa o
corpo como “santuário” em relação ao outro, repositório do pensamento de forma emaranhada. A feno-
menologia da infância e a criança mundocentrada é o tema da psicóloga Marina Marcondes Machado,
analisando os Cursos da Sorbonne, proferidos por Merleau-Ponty. Luiz Augusto Passos, docente na UFMT,
examina a vasta e atual obra merleau-pontyana e estabelece relações entre a fenomenologia do pensa-
dor francês e Paulo Freire nos movimentos sociais brasileiros na década de 1980. O matemático Ubiratan
D’Ambrosio, professor na Universidade Bandeirante – Uniban, situa a fenomenologia e a etnomatemá-
tica “para além das grades da gaiola”. A também matemática Verilda Kluth, da Universidade Federal
de São Paulo – Unifesp e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, analisa o
debate entre filosofia e matemática nas obras de Kant e Merleau-Ponty, enquanto a professora da PUC-
SP, Vitória Espósito, situa “o homem no cerne do acontecimento vivo”. Destacar o sensível das relações
para aprender melhor o sentido das experiências é uma das temáticas abordadas pelo filósofo Reinaldo
Furlan, da Universidade de São Paulo – USP. Uma entrevista com o filósofo italiano Mauro Carbone, edi-
tor da revista Chiasmi Internacional. Trilingual Studies concerning Merleau-Ponty’s Thought, completa
a matéria de capa. Ele frisa que a obra de Merleau-Ponty é um debate com o cartesianismo.

O coordenador do Movimento em Defesa dos Pequenos Agricultores – MDPA, Marcelo Henrique Santos
Toledo fala sobre a plantação extensiva de eucaliptos. Ele estará no Instituto Humanitas Unisinos – IHU
em 03-11-2011, das 17h30min às 19h, debatendo sobre esse tema.

Uma visão sintética do “estado da arte” da implementação do SUS é o tema do artigo de Nelson
Rodrigues dos Santos, da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp.

Globalização tecnologias digitais e os questionamentos éticos é o tema do artigo de Sérgio Mattos,


da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB.

O filósofo Selvino Assmann, da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, colabora neste nú-
mero com uma tradução da apresentação do livro Altissima povertà. Regole monastiche e forma di vita.
Homo sacer IV, de Giorgio Agamben.

Mari Margarete dos Santos Forster, professora na Unisinos há cerca de 40 anos, recorda sua traje-
tória pessoal e profissional no depoimento publicado nesta edição.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio
dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769. Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@uni-
Expediente

sinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisinos.br). Redação: Márcia
Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br), Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br) e Thami-
ris Magalhães (thamirism@unisinos.br). Revisão: Isaque Correa (icorrea@unisinos.br). Colaboração:
César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CE-
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sítio: Inácio Neutzling, Rafaela Kley e Stefanie Telles. IHU On-Line pode ser acessada às segundas-
feiras, no sítio www.ihu.unisinos.br. Sua versão impressa circula às terças-feiras, a partir das 8h,
na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos
- Diretor: Prof. Dr. Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.
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Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 06 | Mauro Carbone: Uma obra em debate com o cartesianismo
PÁGINA 11 | Maria Alice de Castro Rocha: O corpo: um “santuário” em relação com o outro
PÁGINA 15 | Marina Marcondes Machado: A fenomenologia da infância e a criança mundocentrada
PÁGINA 18 | Vitória Espósito: “O homem no cerne do acontecimento vivo”
PÁGINA 21 | Verilda Speridião Kluth: Kant e Merleau-Ponty: um debate entre filosofia e matemática
PÁGINA 25 | Carmen Sylvia Guimarães Aranha: O olhar criador a partir de Merleau-Ponty
PÁGINA 28 | Reinaldo Furlan: Destacar o sensível das relações para aprender melhor o sentido das experiências
PÁGINA 31 | Fabio Di Clemente: Um convite à radicalidade
PÁGINA 39 | Ubiratan D’Ambrosio: Fenomenologia e etnomatemática: para além das grades da gaiola
PÁGINA 41 | Luiz Augusto Passos: Um autor em diálogo com o mundo contemporâneo

B. Destaques da semana
» Artigo da Semana
PÁGINA 49 |Nelson Rodrigues dos Santos: Uma visão sintética do “estado da arte” da implementação do SUS

» Coluna do Cepos
PÁGINA 52 | Sergio Mattos: Globalização, tecnologias digitais e os questionamentos éticos

» Destaques On-Line
PÁGINA 54 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista
» Eventos
PÁGINA 57 | Marcelo Henrique Santos Toledo: Plantação extensiva de eucalipto X culturas tradicionais
PÁGINA 59 | A trilogia “Homo Sacer”, de Agamben

» IHU Repórter
PÁGINA 62 | Mari Margarete dos Santos Forster

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 


 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378
Biografia
Merleau-Ponty nasce em 14 de mar- empreende o caminho da “paciência do
ço de 1908, em Rochefort sur Mer, em conceito”, para poder pensar o “concei-
França. Falece em Paris aos 53 anos, em to sem destruí-lo” nas várias áreas, como
3 de maio de 1961, vítima de um ataque as das ciências naturais, sociais e huma-
cardíaco. Estuda e gradua-se em filosofia nas, da literatura, das artes plásticas, do
na École Normal Supérieure em 1930; ins- cinema. Diante do “discurso confuso”
tituição onde conhece Jean Paul Sartre. da história, tanto da história das ideias
Depois de exercer o cargo de professor como dos povos, lida com as descobertas
nos Liceus de Beauvais (1931-1933) e de científicas, reabilitando o diálogo com
Chartres (1934-1935), é nomeado “agré- as “provocações” da ciência; atravessa
gé-répétiteur” na École Normal Supérieu- as promessas contidas num “humanismo
re, onde ensina de 1935 a 1939. Com a em expansão”, contra um “humanismo
eclosão da guerra, serve o exército fran- de compressão”, superando até mesmo o
cês como oficial de infantaria. Desmobili- dualismo excludente interno à alternati-
zado o exército francês por causa da ocu- va entre violência e não violência, entre
pação alemã, volta a ensinar em alguns valores e fatos, na vertente da violência
Liceus em Paris. Durante a Segunda Guer- capitalista e da violência comunista; en-
ra Mundial, com Sartre, forma um peque- fim, persegue um grande projeto antidu-
no grupo chamado “Socialismo e liberdade”, para lutar contra alista e antirreducionista, voltando até a pintura de Leonardo
a ocupação nazista. Terminada a guerra, passa a lecionar na Da Vinci: pensada na obra do gênio italiano explicitamente sob
Universidade de Lyon (1945). Com Sartre, em 1945 funda o forma de filosofia, essa pintura se tornou – ao ver do filosofo
importante periódico político-literário “Les Temps Modernes”; francês – o anúncio de uma frequentação dos inúmeros lados
iniciativa editorial que causa em seguida entre os dois amigos da Natureza, entendida como “solo” (Boden) da nossa relação
tensões, silêncios, afastamentos. Em 1948, novamente com antidualista e antirreducionista com os outros seres e entes. A
Sartre, Merleau-Ponty funda um novo partido político socia- fecundidade contida na abrangência da interrogação merle-
lista, o RDR (Reunião Democrática Revolucionária), com o in- au-pontiana pode ser apreciada hoje não apenas nas questões
tuito de não se identificar nem com o comunismo, nem com centrais da Filosofia, mas também em relação às ciências e
o anticomunismo. O partido teve pouco êxito diante do então a todos os outros saberes. Se, no passado, foi muito menos
dominante PCF (Partido Comunista Francês). conhecido do que o amigo Jean Paul Sartre, sobretudo desde
De 1949 a 1952, leciona na Sorbonne. Desse ensino resul- as últimas três décadas, Merleau-Ponty é unanimemente con-
tam cursos de grande abrangência, com ênfase em questões siderado como uns dos maiores pensadores do século XX pela
de relevância psicológica, psicanalítica, pedagógica, antropo- sua leitura crítica ‘radical’ da condição humana, cujo ‘impen-
lógica e sociológica. Em 1952, obtém a cátedra de filosofia no sado’ ainda precisa ser pensado.
Collège de France, a maior instituição universitária francesa,
onde leciona até o ano de sua morte. A filosofia de Merleau- Autor: Prof. Dr. Fabio Di Clemente (UFMT)
Ponty alimenta-se, entre outras tantas fontes, do diálogo con-
tínuo com a chamada filosofia clássica francesa e com Edmund
Husserl e Martin Heidegger, assim como das pesquisas prove- Obras principais:
nientes de outras áreas, entre as quais cabe destacar a psico-
logia (em particular, os estudos da psicologia da forma e da La structure du comportement (Paris: Presses uni-
psicologia da criança), a psicanálise, a linguística (em particu- versitaires de France, 1953)
lar, a de Fernand de Saussure), as pesquisas da física moderna Phénoménologie de la perception (Paris: Gallimard,
e em âmbito biológico (em particular, os estudos zoológicos de 1945)
Jakob von Uexküll, de anatomia do comportamento de Geor- Humanisme et terreur (Paris: Gallimard, 1947)
ge Ellett Coghill, de embriologia do comportamento de Arnold Les aventures de la dialectique (Paris: Gallimard,
Gesell e Catherine Strunk Amatruda). 1977)
Como muitos outros jovens intelectuais franceses do fi-
nal dos anos 30, interessa-se pela dialética de Hegel e do jo- (fonte: http://gempo.com.br/portal/biografia-do-
vem Marx, cujos escritos conduzem a voltar, após a Primeira filosofo/)
Guerra Mundial, à questão do humanismo. Mas, como poucos,
SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 
Uma obra em debate com o cartesianismo
Legado de Merleau-Ponty é, “acima de tudo”, um debate com a tradição filosófica dualista,
ressalta Mauro Carbone. Referências literárias e artísticas são uma constante ao longo de seus
escritos

Por Márcia Junges / Tradução Benno Dischinger

A
pós o grande “boom” da redescoberta dos textos de Merleau-Ponty nos anos 90 do século XX, o
estudo de seu pensamento ganha novo fôlego “em duas das questões às quais a atual reflexão
filosófica internacional resulta mais sensível: de um lado, os desenvolvimentos das ciências neuro-
lógicas e, do outro, o estatuto assumido pelas imagens de nossa época também à luz da revolução
digital”. A constatação é do filósofo italiano Mauro Carbone, na entrevista concedida por e-mail à
IHU On-Line. Quem lê os textos desse pensador fica impressionado com a centralidade e frequência das re-
ferências literárias e artísticas, desde a pintura até o cinema e à música, garante. Carbone examina, ainda, a
influência da Fenomenologia do espírito de Hegel sobre a filosofia de Merleau-Ponty: “Direi que Merleau-Pon-
ty dialoga com a Fenomenologia do espírito sobretudo em torno ao problema de como conceber a filosofia
de modo que ela resulte realmente em condições de conduzir a expressão a experiência humana”. Em sua
opinião, a obra desse pensador francês é, “acima de tudo, um debate sobre o cartesianismo”, que retomou
e atualizou o dualismo platonista e “teve um papel crucial na formação do pensamento da humanidade oci-
dental moderna e, em particular, da cultura francesa, para qual permanece como o ponto de referência e
de confronto inamovível”. Outros temas em discussão foram a “nova ontologia” merleau-pontyana e os seus
escritos políticos, dentre os quais Les aventures de la dialectique.
Mauro Carbone é professor na Faculdade de Filosofia Jean Moulin, Lyon 3, na França. Recebeu seu PhD em
1990, na Universidade Católica de Louvain, Bélgica, com a dissertação La visibilité de l’invisible: Merleau-
Ponty entre Cézanne et Proust, publicada em inglês sob o título The Visibility of the Invisible: Merleau-Ponty
between Cézanne and Proust (Hildesheim: Olms, 2001). Acaba de publicar La chair des images: Merleau-
Ponty entre peinture et cinéma (Paris: Vrin, 2011) e é o fundor e co-editor da revista Chiasmi International.
Trilingual Studies concerning Merleau-Ponty’s Thought. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a importância no do ser. A primeira pergunta a colo- “endo-ontologia”, ou seja, uma onto-
da filosofia de Merleau-Ponty dentro car-se é, então: quando Merleau-Pon- logia que não se pode elaborar senão
do contexto da ontologia ? ty fala de “nova ontologia”, em que do interior do horizonte do ser no qual
Mauro Carbone - Quando Merleau- acepção assume este último termo? A os entes se encontram colocados. Uma
Ponty morre, no mês de maio há cin- esta pergunta poder-se-ia responder ontologia assim concebida não pode-
quenta anos, o centro de sua reflexão que para Merleau-Ponty falar de “nova rá senão configurar-se, então, como
é precisamente o problema da ontolo- ontologia” significa falar de uma nova uma ontologia para a qual o discurso
gia, ou melhor, para usar seus próprios relação com o ser, de modo a não po- em torno à relação com o ser deve-
termos, o problema de uma nova on- der senão fazer tudo uno com uma rá inevitavelmente passar através do
tologia. O primeiro ponto sobre o qual nova relação com o ente. discurso em torno à relação com os
convém dar clareza refere-se, então, Na perspectiva da nova ontolo- entes. Neste sentido, a ontologia só
ao que Merleau-Ponty entende por on- gia que Merleau-Ponty visa formular, poderá ser indireta, ou seja, mediada
tologia, já que sabemos que há quem, portanto, as duas acepções do termo precisamente através da relação com
com este termo, queira rigorosa e es- “ontologia” – como discurso em torno os entes, os quais vêm assim a nive-
tritamente referir-se a uma disciplina ao ente e como discurso em torno do lar-se como espelhos que, a seu modo,
que tem por objeto o ente, enquanto ser – se mantêm juntos, já que aque- refletem a luz (e a sombra) do ser.
para outros ele designa um discurso la perspectiva visa formular quanto
 M. Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible,
não já em torno ao ente, e sim em tor- Merleau-Ponty define também como texto estabelecido por C. Lefort, Gallimard,
Paris 1964, p. 279. (Nota do entrevistado)

 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


Esta questão da “nova ontologia” “A grande redescoberta leau-Ponty, o trabalho do artista e do
é, dizia, o problema para o qual con- escritor, que ele analisa referindo-se
vergem as pesquisas e as reflexões de do pensamento de em particular a Cézanne e a Proust.
Merleau-Ponty nos últimos anos de sua Ele o faz enquanto isso evidencia como
vida. Em outras palavras, trata-se, de Merleau-Ponty já a passagem do nosso encontro sensí-
um lado, de compreender quais sejam vel com o mundo à sua expressão ar-
os caracteres de tal “nova ontologia”, eclodiu nos anos noventa ticulada se configura como contínua
isto é, de tal nova relação com o ser, “retomada criadora” de um no outro
que não pode se dar senão através de do século passado” e, portanto, como a expressão, tanto
uma nova relação com os entes e, de em suas formas não verbais quanto nas
outro lado, trata-se de dar a tal “nova em duas das questões às quais a atual verbais, mantém com aquele encontro
ontologia” uma formulação filosófica reflexão filosófica internacional resul- uma relação de recíproco envolvimen-
apropriada. ta mais sensível: de um lado, os desen- to. Além disso, na ótica acima delinea-
volvimentos das ciências neurológicas da, através do aspecto de atividade do
IHU On-Line - Dentro da filosofia con- (basta pensar na descoberta dos neu- trabalho expressivo se manifesta aque-
temporânea, qual é sua relevância rônios-espelho) e, do outro, o estatuto la aspecto de passividade que sempre
após meio século de sua morte? É assumido pelas imagens de nossa épo- o duplica e que remete à nossa inscri-
um filósofo que vai sendo “redesco- ca também à luz da revolução digital ção carnal no Ser.
berto” e mais estudado nos últimos (às quais retornarei mais detidamente Na impostação de Merleau-Ponty,
anos? na conclusão desta entrevista). Em nem a produção artística, nem a lin-
Mauro Carbone - A grande redescober- ambos os casos, tende-se a encontrar, guística gozam, portanto, de autono-
ta do pensamento de Merleau-Ponty já nas impostações merleau-pontyanas, mia absoluta, sendo ambas radicadas
eclodiu nos anos noventa do século importantes elementos que prece- na perspectiva ontológica do sensível,
passado. De um lado, de fato, estes dem os desenvolvimentos presentes cuja verdade, precisamente através da
estudos iniciaram na Itália com a pu- daquelas questões e que podem, por- operação expressiva que tem naquelas
blicação de minha tese de doutorado tanto, contribuir a pensá-los. Mais em o seu modelo, se faz caminho, mesmo
intitulada Nos confins do exprimível. geral, o que resulta tanto mais atual, indiretamente.
Merleau-Ponty a partir de Cézanne é o convite do último Merleau-Ponty
e de Proust (1990) e logo depois na a pensar a mutação dos modos pelos IHU On-Line - Em que aspectos se dá
França com a publicação da tese de Re- quais, em nossa época, os homens vão a maior contribuição deste pensador
naud Bárbaras intitulada De l’être du se relacionando consigo próprios, com aos campos da estética e da arte?
phénomène: Sur l’ontologie de Merle- os outros, com as coisas e o mundo no Mauro Carbone - Merleau-Ponty não
au-Ponty (1991): duas teses que rela- referente ao passado. É esta que eu pode ser considerado propriamente
cionaram e renovaram de modo decisi- chamo “a filosofia a ser feita”. um “estetólogo” ou esteticista. De
vo os estudos sobre Merleau-Ponty em fato, não endereça a própria medi-
nível internacional. De outro lado, os IHU On-Line - Qual é o nexo que une tação sobre os problemas teoréticos
anos noventa do século passado con- o visível e o invisível entre Merleau- peculiares à estética. Todavia, len-
cluíram com a fundação de Chiasmi Ponty, Cézanne e Proust? do os seus textos se é impressionado
International. Pubblicazione trilingue Mauro Carbone - Para Merleau-Ponty por quão frequentes e centrais sejam
intorno al pensiero di Merleau-Ponty, o nexo entre visível e invisível desig- as referências literárias e artísticas,
a revista que acompanhou a renovação na, entre outros aspectos, o elo entre onde estas últimas não se referem so-
dos estudos merleau-pontyanos e a in- nossa relação com o mundo e os modos mente à pintura – como por demasiado
tegrou com o ulterior impulso que, em pelos quais o mesmo encontra expres- tempo se sustentou – mas também ao
seguida, lhes foi oferecido pela publi- são. Num certo sentido, esta expressão cinema e à música. A meditação mer-
cação de muitos inéditos e pelas pes- torna visível quanto, na experiência de leau-pontyana sobre a arte e a lite-
quisas da geração de estudiosos que cada um de nós, de outra forma perma- ratura é, em suma, parte integrante,
mais se encarregaram disso, tornando- neceria invisível aos outros. Num outro ou melhor – para usar uma expressão
se agora o ponto de referência impres- sentido, aquela expressão dá uma invi- recorrente nos seus escritos – “parte
cindível para todo aquele que no mun- sível profundidade à nossa experiência total” da meditação filosófica: aquela
do se interesse pelo pensamento de sensível, tornando-a participável aos parte na qual a totalidade se desdo-
Merleau-Ponty e de seus contornos. outros. Tanto num sentido quanto no bra e da qual é tornada visível. Arte e
Hoje o estudo do pensamento de outro – entre si indivisíveis – o modelo filosofia parecem, em suma, entreter
Merleau-Ponty encontra novo alimento da operação de expressão é, para Mer- no pensamento de Merleau-Ponty uma
M. Carbone, Ai confini dell’exprimibile. Mer-
������������� relação “quiasmática” análoga àquela
leau-Ponty a partire da Cézanne e da Proust, �����������������������������������������������
Cf. M. Merleau-Ponty, L”oeil et l’esprit, (da-
Milão, Guerini e Associati, Milão 1990. (Nota tado em 1960, 19611], Paris, Gallimard, 1964,  Paul Cézanne (1839-1906): pintor francês.
do entrevistado) p. 63. (Nota do entrevistado) (Nota da IHU On-Line)
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R.Barbaras, De l’être du phénomène : Sur ����������������������������������������������
Cf. M. Carbone, Sullo schermo dell’estetica.  Valentin Louis Georges Eugène Marcel
l’ontologie de Merlea-Ponty, Grenoble, Mil- La pittura, il cinema e la filosofia da fare, Mi- Proust (1871-1922): escritor francês. ���������
(Nota da
lion, 1991. (Nota do entrevistado) lão, 2008. ����������������������
(Nota do entrevistado) IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 


que ele chega a descrever entre o visí- maior contribuição que Merleau-Ponty
vel e o invisível, onde o segundo termo
“Na perspectiva da nova queria oferecer – através da reflexão
se perfile como o reverso do primeiro. sobre a experiência estético-sensível e
Neste sentido se pode ler o título do
ontologia que a estético-artística – à formulação de
último ensaio merleau-pontyano dedi- uma nova ontologia.
cado à pintura: L’oeil et l’esprit, onde
Merleau-Ponty visa
o olho remete precisamente ao visí- IHU On-Line - É correto afirmar que
vel da estética – a entender-se como
formular, portanto, as a filosofia de Merleau-Ponty é um de-
reflexão tanto sobre o conhecimento bate com o cartesianismo e a tradi-
sensível quanto sobre as artes – e o
duas acepções do termo ção filosófica dualista? Por quê?
espírito ao invisível da filosofia. Esta Mauro Carbone - È realmente corre-
impostação mostra, então, como os
“ontologia” – como to afirmar que a filosofia de Merleau-
motivos pelos quais Merleau-Ponty não Ponty seja acima de tudo um debate
foi, em sentido próprio, um estetó-
discurso em torno ao sobre o cartesianismo. Este último, de
logo sejam profundamente radicados fato, retomando e atualizando o modo
em sua concepção das relações entre
ente e como discurso em de pensar dualista herdado do plato-
arte e filosofia, que impede conside- nismo, teve um papel crucial na for-
rar a estética como campo autônomo.
torno do ser – se mação do pensamento da humanidade
A estética enquanto reflexão sobre o ocidental moderna e, em particular,
conhecimento sensível serve antes, a
mantêm juntas” da cultura francesa, para qual perma-
Merleau-Ponty, para meditar sobre a Ao contrário, o último Merleau-Ponty nece como o ponto de referência e de
ininterrupta relação que nosso corpo soube mostrar que, em nossa experi- confronto inamovível.
entretém com o mundo e a estética ência, as ideias não são separadas e Mas, a pesquisa de uma “nova on-
enquanto filosofia das artes sobre as opostas ao sensível, mas surgem preci- tologia” da parte do último Merleau-
modalidades nas quais aquela relação samente graças ao nosso encontro com Ponty radicaliza o confronto com a
encontra expressão. Neste quadro, isso: certa ideia do amor é inseparável tradição dualista ocidental, procuran-
uma dezena de páginas antes que o para Swann, o protagonista do primei- do pôr em discussão não só a versão
manuscrito do Visible et l’invisble seja ro volume da Recherche, da escuta da cartesiana, e sim os próprios pressu-
interrompido pela morte repentina de “pequena frase” da Sonata de Vinteu- postos platonistas. Escolher Le visible
seu autor, Merleau-Ponty escreve: il que tinha sido “o hino nacional” de et l’invisible como título da grande
“Toca-se aqui no ponto mais difícil, sua história de amor com Odete. Nas obra interrompida pela morte significa
isto é, no elo da carne e da idéia, do páginas em que Proust descreve esta escolher confrontar-se precisamente
visível e da armadura interior que ele experiência de Swann, Merleau-Ponty com aqueles pressupostos, com o fim
manifesta e que ele esconde. Ninguém vê, portanto, o esboço de uma nova de analisar de novo o problema onto-
esteve mais longe do que Proust na fi- concepção das ideias que foi e, por lógico. E descrever o visível e o invisí-
xação das relações do visível e do in- certos aspectos, não cessa de ser a pi- vel em termos de mútua referência e
visível, na descrição de uma idéia que lastra do pensamento ocidental. recíproca implicação bem como de se-
não é o contrário do sensível, mas que Infelizmente, como eu dizia, a ela- paração e oposição recíprocas significa
é sua duplicação e profundidade”. boração da noção de ideia sensível e, procurar oferecer, precisamente, uma
portanto, de uma teoria não platônica nova formulação àquele problema.
O “último” Merleau-Ponty das ideias continua, no entanto, in- Então: revocar a intenção oposito-
Merleau-Ponty começa, portanto, terrompida pela morte repentina de ra com que a metafísica instituiu to-
aqui, a partir da Recherche proustia- Merleau-Ponty. Olhando bem, é até dos os dualismos reassumíveis naquela
na, sua reflexão sobre o “ponto mais muito estranho que os especialistas do ideia de visível e invisível – filosofia
difícil”, para o qual cria a expressão pensamento de Merleau-Ponty não te- e não-filosofia, sensível e inteligível,
“ideias sensíveis”: uma expressão nham quase nunca procurado estudar atividade e passividade, sujeito e ob-
que, por sua vez, sublinha de manei- a noção de ideia sensível que para ele jeto – para nomear o íntimo co-per-
ra potente a dificuldade deste ponto, não era somente “o ponto mais difí- tencimento entre os elementos que a
já que nomeia algo de literalmente cil”, mas também, como bem se pode compõem e, por isso, mudar conduta
impensável para a tradição do pensa- entender, o mais importante. Por isso, e linguagem de modo a corresponder
mento ocidental. Com efeito, esta úl- em meu livro Proust e les idées sensi- à atual mutação nas relações entre o
tima, a partir de Platão, sempre teve bles 10, eu procurei estudar e prolongar homem e o ser: é esta a tarefa que
a tendência de pensar segundo a sepa- a elaboração merleau-pontyana da no- Merleau-Ponty entreviu, assumido e
ração e oposição entre o sensível e o ção de ideia sensível, reconhecendo a deixado aberto. Para a própria dimen-
ideal, ou seja, segundo a separação e são epocal desta tarefa não podia, de
oposição entre o visível e o invisível.  Confira a sonata em http://migre.me/61MUI. resto, ser de outro modo, já que, além
(Nota da IHU On-Line) das vivências biográficas de cada um,
M. Merleau-Ponty, Le visible et l’invisible,
������������������ M. Carbone, Proust et les idées sensibles,
��������������
op.cit., p.193. (Nota do entrevistado) Paris, Vrin, 2008. (Nota do entrevistado) não se trata da tarefa de um pensador,

 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


mas do próprio pensamento. “Les aventures de la ele escritos naquele período em Sens
et non-sens14. Preparando-se para
IHU On-Line - Quais são os principais dialectique não se concluir aquela conferência, Merleau-
pontos de diálogo entre o pensamen- Ponty faz uma afirmação que agradará
to merleau-pontyano e a Fenomeno- limitou a percorrer a muito ao cineasta Jean-Luc Godard15,
logia do espírito de Hegel? o qual a citará em seu filme Masculin
Mauro Carbone - Acima de tudo seja derrota do comunismo Fèminin (1966):
assinalado que o diálogo entre o pensa- “O filósofo e o cineasta têm em co-
mento merleau-pontyano e a Fenome- soviético, nem a escolha mum certa maneira de ser, certa visão
nologia do Espírito (7ª ed. Petrópolis: do mundo que é aquela de uma gera-
Vozes, 2002) de Hegel11 resulta sempre – então raríssima – de ção”16.
mediado pela interpretação que João Hi- Mas, não é só entre filosofia e cinema
pólito deu daquela obra e mais em geral mostrar a ascendência que Merleau-Ponty indica uma conver-
da filosofia hegeliana. Isso já se encon- gência histórica nos escritos deste perí-
tra no artigo de Merleau-Ponty intitulado marxista e mesmo odo. Mais em geral, em Sens et non-sens
L’existentialisme chez Hegel, publicado ele sublinha a profunda convergência de
em “Les Temps modernes” em 194612. A marxiana dos motivos de certas experiências artísticas (a pintura
interpretação fornecida por Hyppolite13 no A dúvida de Cézanne, o cinema no
da relação entre a Fenomenologia do tal falência, sem aportar ensaio a ele dedicado, a literatura no
Espírito e os subsequentes desenvolvi- O romance a metafísica, que comenta
mentos da filosofia de Hegel se confir- por isso a posições A convidada de Simone de Beauvoir17,
mam como centrais no curso intitulado e em Um autor escandaloso, escrito em
Philosophyie depuis Hegel que Merleau- anticomunistas” defesa de Sartre) com aquela que chama
Ponty estava dando no Collège de France preferencialmente “nova psicologia” – e
em 1960-61, no momento de sua morte das a partir de Hegel para elaborar uma tende a identificar na psicologia da for-
repentina. Neste curso, como já naquele ideia de filosofia tal que saiba rejeitar ma – bem como com a filosofia contem-
artigo, Merleau-Ponty retoma, de fato, a própria separação tradicional da “não- porânea. Esta convergência se coagula-
de Hyppolite, a tendência de ler os de- filosofia” e mensurar-se, assim, com ria segundo ele em torno aos temas de
senvolvimentos do pensamento hege- esta reconhecendo-a como o outro lado nossa relação com o mundo e de nossa
liano em termos de contraste entre as de si antes do que o outro de si, para relação com os outros.
posições expressas na Fenomenologia do inaugurar assim uma nova relação com o Até menos de dez anos atrás, acre-
espírito e aquelas assumidas subsequen- Ser: é tal ideia que Merleau-Ponty defi- ditava-se que a conferência Le cinema
temente. ne também como “a-filosofia”. Daquelas et la nouvelle psychologie fosse o único
O intento do curso consiste em traçar tentativas ele reconhece o princípio – no caso de reflexão dedicada por Merleau-
e discutir as diversas tentativas conduzi- duplo sentido de momento inicial e no- Ponty ao cinema. Na realidade, esta re-
11 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo ale- flexão percorre toda a curva de seu pen-
mão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás
ção fundamental – na concepção hege-
de Aquino, tentou desenvolver um sistema fi- liana da fenomenologia, embora julgue M. Merleau-Ponty, Le cinema et la nouvelle
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losófico no qual estivessem integradas todas que daquele princípio Hegel acabe por psychologie, « Les Temps Modernes », n. 7,
as contribuições de seus principais predeces- 1946, p. 1311-1319, agora in Id., Sens et non-
sores. Sua primeira obra, A fenomenologia do
destacar-se. sens, Paris, Gallimard, 1996. (Nota do entre-
espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos Em todo caso, Merleau-Ponty dialoga vistado)
da Europa continental no século XX. Sobre He- com a Fenomenologia do espírito sobre- 15 Jean-Luc Godard (1930): cineasta francês,
gel, confira a edição nº 217 da IHU On-Line, reconhecido por um cinema vanguardista e
de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do
tudo em torno ao problema de como con- polêmico, que tomou como temas e assumiu
espírito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel ceber a filosofia de modo que ela resulte como forma, de maneira ágil, original e quase
(1807-2007), em comemoração aos 200 anos realmente em condições de conduzir a sempre provocadora, os dilemas e perplexida-
de lançamento dessa obra. O material está des do século XX. Além disso, é também um
disponível em http://migre.me/zAON. Sobre
expressão a experiência humana. dos principais nomes da Nouvelle Vague, assim
Hegel, leia, ainda, a edição 261 da IHU On- como Truffaut. Um de seus filmes é Vivre sa vie
Line, de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho IHU On-Line - Como ocorre a relação (Nota da IHU On-Line)
(1962). ���������
Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel, dis- M. Merleau-Ponty, Sens et non-sens, op.cit.,
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ponível em http://migre.me/zAOX. (Nota da
entre filosofia e cinema no pensa- p. 75. (Nota do entrevistado)
IHU On-Line) mento deste autor? 17 Simone de Beauvoir (1908-1986): escrito-
M. Merleau-Ponty, L’existentialisme chez
�������������������� Mauro Carbone - Em 1945 Merle- ra, filósofa existencialista e feminista fran-
Hegel, « Les Temps Modernes », n. 7, 1946, p. cesa. Ligou-se pessoal e intelectualmente ao
1311-1319, agora in Id., Sens et non-sens, Pa-
au-Ponty é convidado ao Institut des filósofo francês Jean-Paul Sartre. Entre seus
ris, gallimard, 1996. (Nota do entrevistado) Hautes Études Cinématographiques de ensaios críticos cabe destacar O Segundo Sexo
�� Jean Hyppolite: filósofo francês conheci- Paris, onde pronuncia uma conferên- (1949), uma profunda análise sobre o papel
do por seu trabalho com Hegel e outros filó- das mulheres na sociedade; A velhice (1970),
sofos alemães. Ele realizou a primeira tradu-
cia com título Le cinema et la nou- sobre o processo de envelhecimento, onde
ção francesa da obra de Hegel Fenomenologia velle psychologie, cujo texto é publi- teceu críticas apaixonadas sobre a atitude da
do Espírito. Foi professor na Universidade de cado dois anos depois em “Les Temps sociedade para com os anciãos; e A cerimônia
Strasbourg, onde escreveu The Genesis and do adeus (1981), onde evocou a figura de seu
Structure of Phenomenology (1947). (Nota da
Modernes” e após coletado em 1948, companheiro de tantos anos, Sartre. (Nota
���������
da
IHU On-Line) com os outros principais ensaios por IHU On-Line)

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samento, como o demonstrou o número fato era então diretor político de “Les anúncios23, já que realmente, como es-
12 da revista “Chiasmi International”, Temps Modernes”, em seu primeiro livro creve Merleau-Ponty criticando a noção
publicado em 2010, e como eu docu- dedicado a tal âmbito – Humanisme et de “fim da história”: “chaque décision
mentei em meu livro intitulado La chair terreur (1947) havia professado “em re- porte des conséquences inatttendues,
des images. Merleau-Ponty entre pein- lação ao comunismo uma atitude prática et comme d’ailleurs l’homme répond à
ture et cinéma [A carne das imagens. de compreensão sem adesão e de livre ces surprises par des inventions qui dé-
Merleau-Ponty entre pintura e cinema], exame sem difamação”21. Nos anos sub- placent le problème (cada decisão traz
saído faz pouco18. sequentes este “livre exame” atravessou consequências inesperadas, e como aliás
a reflexão sobre os campos de deporta- o homem responde a essas surpresas por
Tendências convergentes ção soviéticos e a ruptura com Sartre22, invenções que deslocam o problema)”24.
Com efeito, em alguns dos últimos para desaguar no segundo livro político Eis, então, que retorna a exigência da-
cursos de Merleau-Ponty se pode ler seu de Merleau-Ponty: Les aventures de la quela interrogação filosófica da história
projeto de mostrar como se possam en- dialectique (1955). As conclusões a que e daquela interrogação histórica da filo-
contrar, também nas experiências e nas o mesmo chega – declarando acabada sofia que Merleau-Ponty magistralmente
reflexões desenvolvidas pelo cinema, a credibilidade da ideologia comunista pratica de modo complementar em Les
certas linhas de tendência convergentes sem dever sequer esperar, dezoito me- aventures de la dialectique. Por isso a
com aquelas desenhadas contemporane- ses mais tarde, a revolta da Hungria e reflexão sobre a época presente pode
amente por outras formas expressivas sua sangrenta repressão da parte sovi- encontrar neste livro um pensamento
(como literatura e pintura) no tracejar o ética – antecipavam em 34 anos a que- surpreendentemente precioso.
perfil da “nova ontologia” de que eu fazia da do muro de Berlim. Mas, atenção:
referência na minha primeira resposta. Les aventures de la dialectique não se IHU On-Line - Gostaria de acrescen-
Em particular, era sua intenção indicar limitou a percorrer a derrota do comu- tar algum aspecto não questionado?
tais linhas assumindo, por exemplo, “la nismo soviético, nem a escolha – então Mauro Carbone - Gostaria de falar da
question du mouvement au cinema”19. raríssima – de mostrar a ascendência concepção das imagens que emerge da
Não resulta, então, surpreendente – mas marxista e mesmo marxiana dos motivos reflexão sobre a visão conduzida pelo
parece tanto mais interessante – relevar de tal falência, sem aportar por isso a último Merleau-Ponty. Recentemente
que os outros traços de reflexões dedi- posições anticomunistas. Sua potência pude focar aquela concepção também
cados por Merleau-Ponty ao cinema se prefiguradora consiste mais em haver graças a alguns inéditos seus. Decidi de-
refiram precisamente àquela questão, já procurado impostar os problemas que se dicar àquele tema o livro que acabo de
a partir do primeiro curso por ele dado teriam aberto com a queda do muro de publicar em francês, La chair des images
no Collège de France, o de 1953 intitu- Berlim, ou aqueles problemas que o fim [A carne das imagens], porque pude en-
lado Le monde sensible et le monde de da credibilidade da ideologia comunista contrar no modo pelo qual ele o enfren-
l’expression, cujas notas preparatórias não deixou de colocar. ta algumas noções ainda inexploradas
foram publicadas também elas muito re- Além disso, a queda do muro de Ber- e todavia profundamente inovadoras,
centemente.20 lim e a subsequente dissolução da União tanto para a teoria das imagens quanto
Soviética assinalaram o início do proces- para a ontologia nela implicada. Trata-se
IHU On-Line - O interesse de Merle- so de globalização ainda em andamento, de noções que, do primeiro ponto de vis-
au-Ponty pela ontologia jamais dimi- que foi então saudado por anúncios sobre ta, oferecem elementos de pensamento
nui seu interesse pelo pensamento o fim da história e das ideologias e, por- surpreendentemente à altura das novi-
político, coisa que pode ser atesta- tanto, sobre o próprio fim da filosofia da dades que o estatuto das imagens assu-
da pelas cartas nas quais ocorre seu história. Houve depois quando ocorreu miu nos últimos vinte anos. Por isso, tais
“rompimento” com Sartre. Quais no 11 de setembro de 2001 fazendo des- noções mostram convergir e integrar-se
eram suas principais ideias políticas? moronar também, junto com as Torres com algumas das mais significativas re-
Mauro Carbone - No centro da re- Gêmeas de Nova York, o castelo de tais flexões que os teóricos da assim dita “vi-
flexão política de Merleau-Ponty está M. Merleau-Ponty, Humanisme et Terreur,
�������������������� rada icônica” dirigem à questão do atual
Paris, Gallimard, 1947, p. 160. (Nota do en-
a questão comunista, em particular a trevistado) estatuto das imagens. Do segundo ponto
maneira pela qual tal fora colocada nos 22 Jean-Paul Sartre (1905-1980): filósofo exis- de vista – aquele mais requintadamen-
países da Europa Ocidental após a Se- tencialista francês. Escreveu obras teóricas, te ontológico – aquelas noções sugerem
romances, peças teatrais e contos. Seu primei-
gunda Guerra Mundial. Imediatamente ro romance foi A náusea (1938), e seu princi- uma rede de implicações e de consequ-
após a mesma, Merleau-Ponty, que de pal trabalho filosófico é O ser e o nada (1943). ências em cuja perspectiva a filosofia
M. Carbone, La chair des images. Merleau-
�������������� Sartre define o existencialismo em seu ensaio apenas começou a pensar e a pensar-se.
Pontyh entre peinture et cinéma. Paris, Vrin, O existencialismo é um humanismo, como a
2011. (Nota do entrevistado) doutrina na qual, para o homem, “a existên-
M. Merleau-Ponty, Notes des cours au Col-
�������������������� cia precede a essência”. Na Crítica da razão 23 Discuti este tema em meu volume intitu-
lège de France 1958-1959 et 1960-1961, « Pé- dialética (1964), Sartre apresenta suas teorias lado Essere morti insieme. L’evento dell’11
face » de C. Lefort, texto estabelecido por S. políticas e sociológicas. Aplicou suas teorias setembre 2001[Ter morrido juntos. O evento
Ménasé, Paris, Gallimard, 1996, p. 391. (Nota psicanalíticas nas biografias Baudelaire (1947) de 11 de setembro de 2011], Turim, Bollati Bo-
do entrevistado) e Saint Genet (1953). As palavras (1963) é a ringhieri, 2001. ����������������������
(Nota do entrevistado)
M. Merleau-Ponty, Le monde sensible et le
�������������������� primeira parte de sua autobiografia. Em 1964, M. Merleau-Ponty, Les aventures de la dia-
��������������������
monde de l’expression, Genebra, MêtisPres- foi escolhido para o prêmio Nobel de literatu- letique, Paris, Gallimard, 1955, p. 36. (Nota
ses, 2011. (Nota do entrevistado) ra, que recusou. (Nota da IHU On-Line) do entrevistado)

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O corpo: um “santuário” em relação com o outro
Dotado de intencionalidade encarnada, o corpo abriga o pensamento de forma emaranhada.
Vivemos o presente banhados no passado e lançados no futuro, num vir a ser constante, de
forma relacional com a alteridade, aponta Maria Alice de Castro Rocha

Por Márcia Junges

C
ontrapondo-se ao dualismo cartesiano que cinde corpo e mente, Merleau-Ponty demonstra “que o
pensamento se dá emaranhado no corpo”. A ponderação é da psicopedagoga Maria Alice de Castro
Rocha, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. Esse pensador francês “traz o corpo
como um ponto fundamental de apreensão do mundo, ponto que muitas vezes descuidamos na
filosofia, ou mesmo na educação”, completa. Mas não se trata do mesmo enfoque dado ao corpo
atualmente, focado no cumprimento de padrões estéticos. O que está em questão é “um corpo dotado de
uma intencionalidade encarnada”. E acrescenta: “Filosoficamente, Merleau-Ponty aponta para o corpo como
um santuário dotado de ossos, sangue, órgãos, células, que precisa destes para agir, mas que são subsumidos
por uma ordem humana, que é formada na relação com o outro, sobretudo com a cultura”.
Docente nas Faculdades Integradas Rio Branco, em São Paulo, Maria Alice de Castro Rocha é especialista
em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae – Sedes, é mestre em Educação pela Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo – PUC-SP e doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Uni-
versidade de São Paulo – USP com a tese Um estudo sobre a percepção: Merleau-Ponty e Piaget. Leciona nas
Faculdades Integradas Rio Branco, em São Paulo, na Faculdade de Pedagogia. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as maiores ra- mente, procurando mostrar que o pen- uma tarefa dada na escola. Todos os mo-
zões que fazem de Merleau-Ponty samento se dá emaranhado no corpo. vimentos são dotados de significações li-
um filósofo atual? Um corpo dotado de condições físicas, gadas a todo o funcionamento corporal.
Maria Alice de Castro Rocha – Mer- anatômicas, fisiológicas, biológicas Isto é, Merleau-Ponty, embasando-
leau-Ponty mostra-se ainda extrema- que permitem ao ser interagir com o se em Husserl, vem destacar a ques-
mente significativo e cada vez que o mundo e ir se constituindo. Vem des- tão da intencionalidade como uma
relemos parece que desvelamos novos tacar que sou o meu corpo, um corpo “consciência de”, um movimento que
aspectos no que se refere à percepção que sente e expressa emoções, senti- se dirige ao mundo e o capta. Não há
e à estrutura do comportamento. Ele mentos, dor, alegria, tristeza... uma ação unilateral dos objetos sobre
traz o corpo como um ponto funda- Hoje o corpo é muito cultuado, mas a mente, como na visão empirista, mas
mental de apreensão do mundo, ponto no sentido de exposição e de preenchi- também não há uma visão intelectua-
que muitas vezes descuidamos na filo- mento de requisitos para padrões de lista de julgamento acima do meio. A
sofia, ou mesmo na educação. beleza. Esquece-se, porém, do corpo de intencionalidade fenomenológica não
Ele vem se contrapor ao pensamen- que fala Merleau-Ponty. Um corpo dota- se refere a uma decisão intelectualis-
to de Descartes que separa corpo e do de uma intencionalidade encarnada. ta a priori, mas a um direcionamento
 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico Corpo que se constitui, sobretudo na tro- pré-reflexivo que me impulsiona ao
e matemático francês. Notabilizou-se, sobre- ca com o outro, em que os significados mundo e permite captá-lo, em movi-
tudo, pelo seu trabalho revolucionário da Filo-
sofia, tendo também sido famoso por ser o in- de suas ações estão entranhados neste, mentos contínuos.
ventor do sistema de coordenadas cartesiano, nos movimentos, nos pensamentos. Por  Edmund Husserl (1859-1938): filósofo ale-
que influenciou o desenvolvimento do cálculo exemplo, pegar um lápis pode ter vários mão, principal representante do movimento
moderno. Descartes, por vezes chamado o fun- fenomenológico. Marx e Nietzsche, até então
dador da filosofia e matemática modernas, ins- sentidos para o corpo, para o ser: porque ignorados, influenciaram profundamente Hus-
pirou os seus contemporâneos e gerações de alguém me pediu (mostro um movimen- serl, que era um crítico do idealismo kantiano.
filósofos. Na opinião de alguns comentadores, to de gentileza ou obrigação); por uma Husserl apresenta como idéia fundamental de
ele iniciou a formação daquilo a que hoje se seu antipsicologismo a “intencionalidade da
chama de racionalismo continental (suposta- ânsia de escrever algo importante; por consciência”, desenvolvendo conceitos como
mente em oposição à escola que predomina- uma obrigação desagradável de cumprir o da intuição eidética e epoché. Pragmático,
va nas ilhas britânicas, o empirismo), posição Husserl teve como discípulos Martin Heidegger,
filosófica dos séculos XVII e XVIII na Europa. (Nota da IHU On-Line) Sartre e outros. (Nota da IHU On-Line)

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Merleau-Ponty, em A estrutura do a atualidade é seu apontar para uma Merleau-Ponty mostra-se atual para
comportamento (São Paulo: Martins percepção que se dá em situação, que possamos refletir sobre vários
Fontes, 2006) e na Fenomenologia da frente à história, em meio à cultura pontos das relações do homem com o
percepção (São Paulo: Martins Fontes, e, sobretudo por meio do corpo que mundo. Ele traz para as artes muitas
1999), estuda este corpo em “direção à” se movimenta, que sente, amor, ódio, contribuições refletindo sobre a re-
pormenorizadamente. Ele se debruça so- respeito, atração. Não há percepção lação entre percepção e expressão.
bre a neurologia de sua época e começa acabada, fechada, mas é sempre um Conjuntamente com Husserl, ele é im-
por meio da análise de lesões cerebrais processo que se dá em meio a hori- prescindível, a nosso ver, para a pes-
a mostrar um cérebro que possui especi- zontes. Isso é dependente dos limites quisa qualitativa, evitando distorções
ficidades e que, ao mesmo tempo, fun- e condições que se oferecem em um na percepção e sabendo considerar a
ciona em rede onde determinadas lesões dado momento. Do ponto de vista que subjetividade como estando sempre
precisam ser compreendidas à luz do olho para um objeto, por exemplo, da presente na apreensão do objetivo.
sentido da ação. Uma lesão pode trazer luz que incide sobre ele. Vemos sem-
danos não necessariamente a movimen- pre partes dos objetos e o pressenti- IHU On-Line – Qual a relevância de
tos ou sensações específicas, mas para a mos como um todo por uma operação Merleau-Ponty especificamente para
expressão de determinados sentidos na intencional. a Educação?
relação da pessoa com aquilo que lida. A percepção está sempre ligada aos Maria Alice de Castro Rocha – Primei-
Merleau-Ponty dá o exemplo de um indi- horizontes que se apresentam; estes ramente, pode-se destacar a importân-
víduo cuja lesão tirou-lhe a capacidade dependem tanto das possibilidades dos cia de se considerar o homem como um
de agir com parcimônia, mas não lhe im- objetos de se mostrarem para nós. Mer- ser em situação que vive em um espa-
pediu de pensar racionalmente sobre as leau-Ponty, por exemplo, destaca que ço, em um tempo, dotado de uma lin-
decisões morais. podemos expressar uma cor para um guagem e de uma cultura que na sua
cego, pela sensação que pode provocar correlação com o outro e com o mundo
O corpo como santuário por meio de uma música. Mas isso tam- vai atribuindo significados às coisas.
bém é banhado nas nossas vivências cul- É importante se considerar que o
Isso pode permitir um avanço na turais e dos significados que vamos atri- homem não sofre influências causais
compreensão da relação do homem com buindo. Cada ser é único, capaz de ter que irão determinar seu comporta-
o mundo. Vemos hoje esse assunto sen- uma identidade, mas por intermédio do mento, mas que há uma operaciona-
do estudado por autores significativos da outro. A linguagem é aqui fundamental lidade que permite o entrelaçamento
neurologia, como Antônio Damásio. Em porque não só nos permite a comunica- do espaço e tempo vivido pelo indiví-
seu livro O erro de Descartes - emoção, ção, mas também, para o filósofo, abre duo e os significados que ele atribui
razão e o cérebro humano (São Paulo: ao próprio conhecimento do mundo. Diz a isso. Hoje, é muito comum que se
Companhia das Letras, 1996) há uma que uma criança apreende o que é ca- busquem causas lineares ou culpados
análise de casos que nos faz lembrar in- deira, por exemplo, não por uma compa- para dificuldades escolares de cada
terpretações de Merleau-Ponty. A obra ração entre objetos, mas que encontra a criança. Um pai ausente, uma família
mostra como as lesões alteram as formas semelhança pela palavra. desestruturada, ou mesmo uma doen-
de ação do sujeito, mesmo quando o ra- Corpo, cultura, palavra, o outro ça. Não que tais aspectos não sejam
ciocínio se mostra intacto. abrem-me para percepções diversas. importantes, mas não podem ser ge-
Filosoficamente, Merleau-Ponty Pelo grupo que vivo, pela língua que neralizados pontualmente. O ser hu-
aponta para o corpo como um santu- falo sou capaz de olhar para as coisas mano é mais rico do que isso, como
ário dotado de ossos, sangue, órgãos, de uma dada maneira. Sou capaz de nos mostra Merleau-Ponty.
células, que precisa destes para agir, me iludir, por meio delas, mas tam- Cada aluno precisa ser compreen-
mas que são subsumidos por uma or- bém de me “desiludir”, isto é, chegar dido na sua relação com o outro, com
dem humana, que é formada na rela- mais próximo do fenômeno. Hoje ve- o aprendizado, de uma forma ampla,
ção com o outro, sobretudo com a cul- mos uma troca muito grande entre os em que se dê espaço para cada ser se
tura. Em sua visão, não podemos ver povos, entre as pessoas, mas muitas expressar. Merleau-Ponty nos fala que
ora o homem como uma mente que vezes com visões distorcidas que dão uma criança ao nascer modifica seu lar.
pensa, ou como um corpo que obede- destaque a determinados pontos, cau- A educação precisa dar espaço para
ce. Com este o ser vai percebendo o sando intolerância. É necessário apren- que cada sujeito amplie seus conhe-
mundo e se constituindo, formando dermos com Merleau-Ponty a procurar cimentos, possa olhar as coisas sobre
uma identidade em meio ao outro. ver as coisas por pontos diversos. Para outros ângulos, mas também para que
Outro fator importantíssimo para isso precisamos saber olhar por ângu- se manifeste, expresse seu caminhar,
 António Rosa Damásio (1944): médico neu- los diferentes, refletir sobre eles, mo- troque ideias com os outros, de forma
rologista, neurocientista português que tra- ver nossos olhares para outros pontos que as pessoas não sejam encurraladas
balha nos estudo do cérebro e das emoções
humanas. Atualmente é professor de Neuro- diversos, procurando por novas apre- em horizontes pobres, ou então sejam
ciência na University of Southern California. ensões. O perceber é algo que não se obrigadas a ver por meio de binóculos
Entre os anos de 1996-2005 Damásio trabalhou esgota e se elucida também pelo olhar deformantes do professor.
no hospital da University of Iowa. (Nota da IHU
On-Line) do outro.

12 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


Outros olhares “Ele vem se contrapor de encarnada; trata-se, portanto, de
pessoas dotadas de sentimentos, emo-
Aprender a olhar o aluno, buscar ao pensamento de ções, significados que estão sempre
sempre se despir de ideias pré-con- presentes no processo de percepção e
cebidas; procurar trazê-lo para a Descartes que separa de conhecimento. É preciso respeitá-
construção do conhecimento; procu- las e ajudar cada ser a saber lidar com
rar fazer com que ele saiba escolher, corpo e mente, o caso. É necessário pesquisar dados e
ter uma percepção mais apurada, são ir além deles, criando, dando opiniões
elementos fundamentais nos dias de procurando mostrar que e construindo uma identidade.
hoje. Em Merleau-Ponty a linguagem A linguagem está aqui presente o
é um ponto fundamental para a per- o pensamento se dá tempo todo e precisa também ser am-
cepção. Aqui podemos nos lembrar de pliada para que possa captar formas e
Paulo Freire ao trabalhar por meio do emaranhado no corpo” noções diferentes. A linguagem mate-
diálogo, do dar possibilidades ao aluno mática, por exemplo, vem permitir ao
para ter outro olhar sobre o mundo, indivíduo fazer cálculos, resolver pro-
sos a dados e trocas empreendidas em
o que Merleau-Ponty poderia dizer a blemas, que afetam a si e ao mundo;
redes sociais.
outros olhares. A linguagem também mas a linguagem poética poderá lhe
Merleau-Ponty torna-se contempo-
tem o poder de direcionar nosso olhar, abrir para formas mais significativas de
râneo ao mostrar a necessidade de a
como coloca Merleau-Ponty. Para ele, sentir e usar seus cálculos. Cada forma
educação se focar na compreensão da
como vimos, a criança aprende a dar de linguagem abre a possibilidade ou
apreensão de significados, que depen-
nome às coisas não por encontrar se- pode mesmo fechá-la. Ela precisa ser
dem do horizonte enfocado em cada
melhanças entre elas, mas por procu- trabalhada.
momento. Nosso olhar para a realida-
rar semelhanças diante de um nome.
de depende do ângulo do qual parti-
Dessa forma, a educação é funda- Corpo e complexidade
mos. Por exemplo, se vemos uma casa
mental no processo de alfabetização,
apenas por um de seus lados, podemos
que permita uma leitura crítica, signi- Merleau-Ponty nos traz um ser do-
nos enganar em relação a seu real ta-
ficativa, e que favoreça o desenvolvi- tado de um corpo, o que nos aproxima
manho. Ao mesmo tempo, quando se
mento de competências e o uso de di- da ideia de complexidade trazida por
olha por este ângulo podemos captar
versas linguagens e análises de pontos alguns filósofos, na atualidade, como
elaborações anteriores, que podem vir
de vista diferentes. Morin. Há o ultrapassar da dialética
da capacidade de cálculo do engenhei-
dos contrários para entrar na correla-
ro; do ecologista que valoriza ou não
IHU On-Line – Sob quais aspectos a ção circular de várias possibilidades.
aquela ocupação; da recordação da in-
filosofia desse pensador é importan- O homem na complexidade é visto
fância de um quintal semelhante com
te para se repensar a educação em como um ser múltiplo que vai se hu-
experiências gostosas.
tempos de globalização e de comple- manizando por meio do cérebro, mão,
A cultura de um povo é um dos
xidade? linguagem, espírito, cultura e socie-
grandes fatores que direcionam, for-
Maria Alice de Castro Rocha – A glo- dade. Há sempre a presença do lógi-
mam e deformam nossa percepção.
balização traz com ela a grande troca co, do racional em meio a emoções,
Essa elaboração perceptiva precisa ser
entre as pessoas, as várias culturas, sentimentos, sentidos. A lucidez se
conhecida e ampliada. Para isso não
uma fluidez imensa de informações e confronta no homem, segundo Morin,
bastaria numa visão fenomenológica
a necessidade de construção de novos com a demência. Ordem, desordem,
apenas ensinamentos racionais, mas
conhecimentos. A educação precisa es- interações e organização fazem parte
vivências, trocas de visões, ampliação
tar atenta a esta diversidade de aces- da complexidade. Merleau-Ponty mos-
dos dados.
 Paulo Freire (1921-1997): educador bra- tra que o conhecimento, a percepção,
A educação precisa mostrar ângulos
sileiro. Como diretor do Serviço de Extensão nunca se fecham, mas se aproximam,
Cultural da Universidade de Recife, obteve su- diferentes de direcionamento ao mun-
cesso em programas de alfabetização, depois do, o sentido e o respeito a cada cul-  Edgar Morin (1921-): sociólogo francês, au-
adotados pelo governo federal (1963). Esteve tura, para que seja possível compre- tor da célebre obra O Método. Os seis livros da
exilado entre 1964 e 1971 e fundou o Instituto série foram tema do Ciclo de Estudos sobre “O
de Ação Cultural em Genebra, Suíça. Foi tam- ender o sentido de tomada de posições Método”, promovido pelo Instituto Humanitas
bém professor da Unicamp (1979) e secretário diferentes. Voltando àquela casa do Unisinos em parceria com a Livraria Cultura, de
de Educação da prefeitura de São Paulo (1989- exemplo acima, pensemos que pode- Porto Alegre, em 2004. Embora seja estudioso
1993). No II Ciclo de Estudos sobre o Brasil, do da complexidade crescente do conhecimento
dia 30-09-2004, o professor Dr. Danilo Streck, ríamos ter uma imagem negativa dela; científico e suas interações com as questões
do PPG em Educação da Unisinos, apresentou o mas quando de repente se me apre- humanas, sociais e políticas, se recusa a ser
livro A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire. sentam crianças brincando e sentimos enquadrado na Sociologia e prefere abarcar
Sobre a obra, publicamos um artigo de autoria um campo de conhecimentos mais vasto: filo-
do professor Danilo na 117ª edição, de 27-09- um cheiro de bolo caseiro, isso pode sofia, economia, política, ecologia e até bio-
2004. Confira, ainda, a edição 223 da revista se transformar. logia, pois, para ele, não há pensamento que
IHU On-Line, de 11-06-2007, intitulada Pau- A educação precisa considerar o su- corresponda à nova era planetária. Além de O
lo Freire. Pedagogo da esperança, disponível Método, é autor de, entre outros, A religação
para download em http://migre.me/2peDT. jeito como tendo uma intencionalida- dos saberes. O desafio do século XXI (Bertrand
(Nota da IHU On-Line) do Brasil, 2001). (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 13


se complementam, ilusão e desilusão “Merleau-Ponty traz o mas que ela é extremamente rica e in-
são possibilidades humanas. teligente, pois a criança está corporal-
Merleau-Ponty destaca que o ho- corpo como fundamental mente construindo noções que a aju-
mem possui condições físicas, fisio- darão a perceber o mundo de forma
lógicas, biológicas que são funda- na percepção por uma mais rica e organizada. Merleau-Ponty,
mentais, mas que se subsumem pela por outro lado, nos chamará a aten-
ordem humana, dotada de significa- troca com o meio, mas ção para outros fatores norteadores
dos existenciais. A educação precisa da percepção, como os sentimentos, a
formar pessoas que saibam racioci- coloca em evidência a linguagem, a emoção, a cultura. Or-
nar, mas que ao mesmo tempo sai- ganização, desorganização e reorgani-
bam fazer uma leitura da relativida- força da zação fazem parte do pensamento da
de, que se vejam como humanos e complexidade, e nesse ponto Merleau-
que também se voltem para uma so- intencionalidade, em Ponty nos ajuda.
ciedade que exista no confronto en-
tre diferenças e aproximações, entre que se evidência o IHU On-Line – Em que consiste a fe-
incertezas e planejamentos. Merle- nomenologia da percepção? Nesse
au-Ponty nos mostra este caminho existencial” sentido, como podemos compreen-
da apreensão do mundo, mas não de der o falar como expressão do ser na
forma absoluta e fechada, que está tando movimentos e sensações, vai or- visão de Merleau-Ponty?
sempre aberta a novas visões. Quan- ganizando-os. Por meio deles ela cria Maria Alice de Castro Rocha – A fe-
do mostra que a linguagem e a cul- formas de organização; é capaz até, nomenologia tem por característica a
tura direcionam nosso olhar, mostra mais ou menos, 18 meses de ter elabo- busca do fenômeno, mas de uma forma
também que a educação é uma das rado as relações de causa e efeito, a contínua e aberta, por meio da “cons-
responsáveis por ele, osso olhar, em- temporalidade, a espacialidade, a no- ciência de”. Como já destacamos, é
bora não a única, podendo abri-la ou ção de que o objeto pode permanecer uma consciência intencional que se
fechá-la mais. Caberia à educação em sua ausência. direciona ao mundo. Esta consciência
aqui oferecer formas de perceber a Merleau-Ponty traz o corpo como pode abranger o racional, mas não é
inexatidão de uma única visão. fundamental na percepção por uma racional em sua essência. Há aqui um
troca com o meio, mas coloca em evi- forte componente pré-reflexivo. O ser
IHU On-Line – Em que medida Mer- dência a força da intencionalidade, quando faz algo tem uma intenciona-
lau-Ponty e Piaget contribuem para em que se evidência o existencial. lidade na relação com o objeto, mas
os estudos sobre a percepção? Suas Dá o exemplo de um trem em movi- não necessariamente é capaz de te-
ideias sobre o tema são complemen- mento: se estamos no trem e olhamos matizar isso ou saber que o faz.
tares e convergentes? distraidamente pela janela a paisagem O objeto, o mundo, estão lá; dão-
Maria Alice de Castro Rocha – Ambos corre em disparada. Por outro lado, se se de uma forma própria. A coisa em si
trazem uma visão interacionista para prestamos atenção à paisagem, somos nunca pode ser conhecida, mas se doa
a percepção. Ela não é vista nem por capazes de percebê-la inerte. Na per- de uma dada maneira e pode ser apre-
meio de uma construção racional, nem cepção há sempre um movimento in- endida por um ser em situação. Esse
como uma ação empirista, em que as terativo, em que entram significados ser tem uma intencionalidade formada
sensações exerceriam uma função do- humanos que abrangem e subsumem o na sua corporeidade, em meio à his-
minante sobre a percepção. Há sem- cultural. tória, à cultura, à linguagem. A feno-
pre uma troca entre homem e mundo Para Merleau-Ponty, a linguagem é menologia da percepção vai estudar a
e esta vai se transformando ao longo um dos fatores organizadores da per- relação entre o homem capaz de cap-
do vida do indivíduo. cepção; ela nos ensina a ordenar as tar o mundo ao seu redor e as coisas
O corpo é fundamental para a per- coisas e olhá-las de forma diferente. em seu entorno que se doam de uma
cepção em Merleau-Ponty – é o corpo Podemos dizer que ela nos orienta, maneira múltipla e própria.
que se movimenta, que tem sentimen- em um primeiro momento, a organizar Merleau-Ponty vai estudar essa
tos, emoções, que sente tristeza, ale- objetos, uni-los, separá-los, abstraí- apreensão, como já foi destacado, por
gria, dor. Há sempre um movimento de los. Para Merleau-Ponty, o intelectu- meio de um homem encarnado, isto é,
busca numa intencionalidade encarna- al é um dos fatores organizadores da um homem dotado de um corpo, dota-
da. Piaget mostra o corpo, sem usar percepção, mas não o único. Piaget já do de uma natureza física e biológica
esta expressão, sobretudo ao analisar- destaca este como principal ao lado do que abrange o neurológico, mas que é
mos o primeiro período de desenvol- biológico. subsumido pela ordem humana. Essa or-
vimento da criança, no estágio sensó- A nosso ver, os dois podem ser olha- dem humana é o que caracteriza o ser
rio motor. A criança tem um potencial dos como complementares, pois é im- em sua existência como homem, como
de desenvolvimento, mas ela precisa portante vermos que a criança precisa tendo uma intencionalidade, uma cor-
agir para construir essa percepção e o ser estimulada a agir sobre o meio e poreidade, como vivendo no presente,
conhecimento. A criança, experimen- que esta ação não é pré-determinada, banhado no passado e se lançando ao

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“O falar é uma troca
intencional com o outro
que se dá num A fenomenologia da infância
mundo-vida, dotado de e a criança mundocentrada
intenções e significados, Habitantes do mesmo mundo, adultos e crianças o vivenciam e
o apreendem de modos distintos. Nos seus Cursos da Sorbonne,
mas que tem objetos Merleau-Ponty analisa a infância sob um prisma existencial,
com seu potencial assinala Marina Marcondes Machado

próprio a ser desvelado” Por Márcia Junges

A
futuro, num vir a ser constante.
Este potencial biológico ajuda o criança não é egocentrada, mas mundocentrada. A ideia, tributária
homem a perceber o mundo, mas não a Merleau-Ponty, concebe a infância de modo existencial a partir
isoladamente. A percepção vai se for- de um descentramento. O adulto é “destronado” do centro, assim
mando ao longo da vida do indivíduo, como as teorias do desenvolvimento que criou. A ponderação é da
não no sentido desenvolvimentista de psicóloga Marina Marcondes Machado, em entrevista por e-mail à
Piaget, mas como se embebendo da IHU On-Line. De acordo com a pesquisadora, o ego da criança “não se encon-
cultura, da linguagem, de significados tra formado, desenhado, é, antes, esboço a ser completado, banhado, vesti-
múltiplos que são construídos e des- do e acalantado. É na outridade, na relação eu/outro, que a corporalidade,
construídos.
isto é, a relação eu/corpo se desenha. E o corpo próprio, acompanhado pelo
outro, encontra-se no mundo: adultos e crianças habitam o mesmo mundo,
As palavras fluem do ser
diferem apenas no modo de viver nele, de apreendê-lo”. Essas ideias são
A fala é dos meios de comunicação originárias dos Cursos na Sorbonne, ministrados por Merleau-Ponty entre os
mais ricos do indivíduo, porque ela anos de 1949-1952, quando faz uma fenomenologia da psicanálise e propõe
permite desenvolver a troca de visões um outro olhar sobre a infância – o olhar culturalista. Conforme Marina, “o
entre os homens e a aquisição de lin- mote da fenomenologia da infância é deixar a criança ser o que ela é, sem
guagens que, como já colocamos, nor- nunca deixá-la à deriva”. E alerta, inspirando-se no termo “antiestruturas”,
teiam nosso olhar. Isso não deve ser cunhado pelo antropólogo Victor Turner: é preciso que as “crianças vivam
visto como um aprisionamento, mas suas infâncias de maneira onírica, polimorfa, não representacional, a seu
como abertura para buscas e de signi- tempo, como é seu direito”.
ficados. É um elo operacional entre o Pesquisadora das relações entre infância e cena contemporânea, formadora
ser e o outro, entre o ser e o mundo.
de professores de teatro e docente na Escola Superior de Artes Célia Helena,
A fala é a concretização da lingua-
Marina Marcondes Machado é graduada em Psicologia pela Pontifícia Universidade
gem, ela é para Merleau-Ponty uma
ação encarnada. Ela depende de um Católica de São Paulo – PUC-SP, e mestre em Artes pela Universidade de São Paulo
equipamento anatômico e fisiológico, – USP com a dissertação Cacos de infância/nascimento, vida e morte da persona-
mas transcende-o, dá-se na expressão gem criança em roteiros de improviso. Na PUC-SP cursou doutorado em Educação
com o outro. Para o filósofo, ela per- com a tese A flor da vida – sementeira para a fenomenologia da pequena infância,
mite que o indivíduo se expresse e se e é pós-doutora em Pedagogia do Teatro, pela USP, com a pesquisa Territórios do
constitua, pois ele destaca que as pa- brincar. De sua produção bibliográfica, destacamos O brinquedo-sucata e a crian-
lavras fluem do ser, sem precisar que ça/A importância do brincar – Atividades e Materiais (5. ed. São Paulo: Edições
ele pense e depois fale. Loyola, 1994); A poética do brincar (2. ed. São Paulo: Edições Loyola, 1998); Ca-
O falar é uma troca intencional com cos de infância/teatro da solidão compartilhada (São Paulo: Fapesp/ Annablume,
o outro que se dá num mundo-vida, do- 2004) e Merleau-Ponty & a Educação (Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010).
tado de intenções e significados, mas
Confira a entrevista.
que tem objetos com seu potencial
próprio a ser desvelado. Na fala há
uma troca de apreensões que me aju-
dam a descortinar o entorno.

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IHU On-Line – Em que consistem os ramos o adulto do centro – bem como as foi publicado em uma excelente revista
Cursos na Sorbonne, oferecidos por teorias do desenvolvimento que o adulto de divulgação, vendida em bancas de
Merleau-Ponty, e em que período ocor- criou. Assim o filósofo formula, por meio jornal. No texto da “fenomenologia do
reram? Quais são as abordagens e rela- de uma imagem feliz, que a criança não rabisco” proponho que nunca se diga:
ções que o pensador faz nesses cursos é egocentrada, ela é mundocentrada. “Carlinhos ainda não desenha” (pois
sobre a criança? Seu “ego” não se encontra formado, “apenas” rabisca). Trata-se, noutra pers-
Marina Marcondes Machado – Os Cursos na desenhado, é, antes, esboço a ser com- pectiva, de positivar o ato de rabiscar de
Sorbonne aconteceram entre 1949 e 1952 pletado, banhado, vestido e acalantado. Carlinhos, da seguinte maneira: Como
e tematizaram a psicologia da criança e a É na “outridade”, na relação eu/outro, Carlinhos rabisca? Como escolhe as co-
pedagogia. Como publicação, não são tex- que a corporalidade, isto é, a relação res? Em que situação gosta de rabiscar?
tos de autoria de Merleau-Ponty, e sim a eu/corpo se desenha. E o corpo próprio, Conversa com seu rabisco? Como se mos-
compilação dos apontamentos de seus alu- acompanhado pelo outro, encontra-se tra sua corporalidade e sua relação com
nos, reunidos em livro a partir de boletins no mundo: adultos e crianças habitam os materiais durante o seu rabiscar? E as-
publicados pelo Centro de Documentação o mesmo mundo, diferem apenas no sim por diante. Escrevi esse texto a par-
Universitária da Sorbonne. No Brasil, foram modo de viver nele, de apreendê-lo. Es- tir do que Merleau-Ponty nos ensina, nos
editados em dois volumes pela Editora Pa- ses modos inserem-se num dado tempo, Cursos na Sorbonne, sobre o desenho: a
pirus, com os seguintes títulos e subtítulos: num dado espaço, em uma dada cultura: criança, ela mesma, não é representa-
Merleau-Ponty na Sorbonne – Resumo de temporalidade, espacialidade, munda- cional. Ela não pretende, em absoluto,
Cursos; subtítulo para o volume 1: Filosofia neidade. O uso dessas palavras, na pers- reproduzir o mundo – ela, ao desenhar,
e linguagem (1990a), e subtítulo para o vo- pectiva da fenomenologia, comunica a expressa, exprime e vive o momento de
lume 2: Psicossociologia e filosofia (1990b). não existência de separação eu/tempo, desenhar: uso dos materiais, prazer e
Mais tarde os dois volumes viraram apenas eu/espaço, eu/mundo. Portanto, dizer desprazer, mergulho na experiência.
um, na edição da Editora Martins Fontes mundaneidade não é sinônimo de dizer A leitura não representacional da in-
(2006) sob o título Psicologia e pedagogia a relação da criança com o mundo, pois fância é o aspecto mais original e con-
da criança. A compilação dos Cursos na ela encontra-se no mundo, mergulhada temporâneo dos Cursos na Sorbonne.
Sorbonne foi revisada por Merleau-Ponty nele, de tal forma que a criança está no Sessenta anos atrás Merleau-Ponty já
quando vivo. mundo tanto quanto o mundo está nela. afirmava que a criança não representa,
Nos Cursos na Sorbonne Merleau-Pon- Ela é ser no mundo: não há, nessa leitu- mas presentifica; noutras palavras, a
ty nos presenteia com uma espécie de ra, divisões nem distinções de fronteiras criança encontra-se no aqui-agora e está
desconstrução filosófica do raciocínio entre “indivíduo” e “ambiente”. banhada e mergulhada em um caldo
desenvolvimentista que desdobra a in- pré-reflexivo. Isso é algo extremamen-
fância em fases, etapas e faixas etárias. IHU On-Line – Como se imbricam a fe- te próximo do que se quer chegar, em
Ele procura trabalhar a partir de uma nomenologia e a infância? Nesse sen- arte contemporânea, nas performances
fenomenologia da psicanálise. O filóso- tido, como podemos compreender a em dança-teatro, por exemplo. Daí meu
fo não propõe “outra teoria”, mas “ou- “fenomenologia do rabisco”? trabalho atual nomear a criança como
tro olhar” para as teorias; esse “outro Marina Marcondes Machado – É meu pon- performer.
olhar” para a infância pode ser nomea- to de vista que a fenomenologia é uma
do, inicialmente, de culturalista. ótima via para compreender a primeira IHU On-Line – Essa abordagem foi
Merleau-Ponty afirma que estaria infância, especialmente a criança muito uma novidade na filosofia e na peda-
por ser inventada uma psicanálise cul- pequena: trata-se de positivar o que a gogia? Por quê?
turalista, em que as interpretações não criança é, como ela está, como ela se Marina Marcondes Machado – Digamos
mais irão se pautar, por exemplo, em apresenta a si mesma, a nós, ao mundo que esta abordagem não seria “novi-
fatos, teorias do trauma ou fases da li- – em vez de tentar modelar seu “quem” dade”, mas antes, uma leitura possível
bido, mas, antes, nos modos de vida das por meio de uma teoria e defini-la pelo – a fenomenológica – da psicanálise e da
crianças inseridas em suas culturas; o que ela ainda não tem, esperando que psicologia do desenvolvimento já exis-
caminho para esta mudança é relacional chegue em outro “patamar”. Nesse sen- tentes. Merleau-Ponty é muito elegante
e observacional, e será papel do adulto tido a fenomenologia da criança é feita em suas críticas aos sistemas já estabe-
perscrutar as relações da criança/corpo, de um trabalho antropológico bastante lecidos, e deixa claro que as psicologias
criança/outro, criança/tempo, criança/ cuidadoso, denso, significativo. É preciso mais próximas ao pensamento ao qual se
espaço, criança/língua, criança/mundo. focar na criança mesma, descentrando o refere nos Cursos na Sorbonne são as de
Isso levará à reflexão filosófica e exis- olhar adulto e seus contextos teóricos. Henri Wallon e dos gestaltistas. Ele, por-
tencial sobre o ser criança e seu ser no Podemos pensar que a fenomenologia é
0 “A criança é performer” (2010) é um artigo
mundo. uma atitude frente ao outro, uma atitu- que resume meu pensamento atual, disponível
de pacienciosa, algo que não vemos nas em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/
Criança mundocentrada disciplinas mais técnicas, imbuídas da article/view/11444. (Nota da entrevistada)
 Henri Paul Hyacinthe Wallon (1879-1962):
“cura” e da “extinção do sintoma”. filósofo, médico, psicólogo e político francês,
Pensar a infância de modo existencial Você faz menção a um artigo meu, e marxista convicto. Foi neto do político fran-
parte de um descentramento, ou seja, ti- Fenomenologia do rabisco (2002), que cês Henri-Alexandre Wallon. (Nota da IHU On-
Line)

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tanto, não “joga fora” as teorias, apenas a fenomenologia sofre de um “sono volvidos para o consumo infantil impe-
as coloca entre parênteses, como requer antropológico”. Todavia, esta é uma ram, encontramos também a melhor
o método fenomenológico, para procu- compreensão de um dos aspectos da teoria sobre a infância e faz-se neces-
rar a criança tal qual ela se apresenta no propositiva fenomenológica, o aspecto sária uma contracultura, uma cultura
mundo. Ele não trabalha com essencia- descritivo, e adormecer a avidez adul- da infância que propicie o surgimen-
lismos, mas antes, com o modo de ser e ta para intervir na vida da criança, mo- to de antiestruturas – termo cunhado
estar da criança pequena. Merleau-Pon- delá-la, curá-la, etc. parece uma boa pelo antropólogo Victor Turner – para
ty destaca três principais modos de ser: atitude para o século XXI, que apenas que as crianças vivam suas infâncias
o onirismo, o polimorfismo e a não re- começou e que certamente revela- de maneira onírica, polimorfa, não
presentacionalidade. O polimorfismo nos rá uma enorme indústria da infância, representacional, a seu tempo, como
faz compreender a inteligência da crian- como já acontece: o melhor brinque- é seu direito. Mas para chegarmos lá
ça pequena, inteligência vivida no corpo do, a melhor papinha e a melhor co- a comunidade adulta de intelectuais
cuja capacidade plástica lhe possibilita lher para não deixar cair a papinha, o que pensam a infância precisaria de-
concentrar-se e encontrar-se simultane- melhor sapato, a melhor pasta de den- sapegar-se de seus referenciais mais
amente em diferentes ações, algo que te e assim por diante. Num mundo em arraigados, especialmente aqueles
o adulto muitas vezes lê noutra chave, que os objetos tecnicamente desen- que fazem foco na cognição e nas
como desatenção e imaturidade; o modo se dentro de uma filosofia do conhecimento. formas de inteligência, bem como na
onírico revela sua capacidade para mes- Suas teorias sobre o saber, o poder e o sujeito metodologia baseada nos conceitos de
clar realidade e fantasia, especialmen- romperam com as concepções modernas des- projeção e na representacionalidade,
tes termos, motivo pelo qual é considerado
te em desenhos, pensamentos e senti- por certos autores, contrariando a sua própria para que o estudo da obra de Merleau-
mentos, e no brincar de faz de conta; opinião de si mesmo, um pós-moderno. Seus Ponty ganhe seu espaço nas disciplinas
a não representacionalidade nos revela primeiros trabalhos (História da Loucura, O da educação infantil, psicologia e psi-
Nascimento da Clínica, As Palavras e as Coi-
uma criança mergulhada na experiência sas, A Arqueologia do Saber) seguem uma li- copedagogia.
de vida e incapaz de distanciar-se para nha estruturalista, o que não impede que seja
“representar”. Se pensarmos em sinto- considerado geralmente como um pós-estrutu- IHU On-Line – Gostaria de acrescen-
ralista devido a obras posteriores como Vigiar
nia com o pensamento sobre a infância e Punir e A História da Sexualidade. Foucault tar algum aspecto não questionado?
de Merleau-Ponty, diversas prerrogativas trata principalmente do tema do poder, rom- Marina Marcondes Machado – Sim.
sólidas da psicologia clássica se desman- pendo com as concepções clássicas deste ter- Gostaria de terminar dizendo que a fe-
mo. Para ele, o poder não pode ser localizado
cham, especialmente tudo que foi cons- em uma instituição ou no Estado, o que torna- nomenologia nos leva a uma via longa
truído com base na noção projetiva e re- ria impossível a “tomada de poder” proposta do conhecimento acerca das crianças.
presentacional de um “mundo interno”. pelos marxistas. O poder não é considerado Ou seja, é um tipo de pensamento e
como algo que o indivíduo cede a um sobe-
Também “o mundo da criança” é ques- rano (concepção contratual jurídico-política), ação que não nos leva rapidamente
tionado pelo filósofo: adultos e crianças mas sim como uma relação de forças. Ao ser a nenhum lugar; não promove saúde
convivem no mesmo mundo, o que dife- relação, o poder está em todas as partes, uma nem tampouco cura; não quer gerar,
pessoa está atravessada por relações de poder,
re são nossas apreensões dele. não pode ser considerada independente delas. de jeito nenhum, pedagogias eficien-
Para Foucault, o poder não somente reprime, tes ou edificantes. A via longa se recu-
IHU On-Line – Como se dá atualmente mas também produz efeitos de verdade e sa- sa a responder “por quê?”, em nome
ber, constituindo verdades, práticas e subjeti-
a apropriação e atualidade desse fi- vidades. Em três edições a IHU On-Line dedi- de compreender o “como?”. Isso, so-
lósofo nas práticas pedagógicas? cou matéria de capa a Foucault: edição 119, mado à noção merleau-pontiana do ser
Marina Marcondes Machado – Hoje, é de 18-10-2004, disponível para download em em situação, desbanca muitas das pro-
http://migre.me/vMiS, edição 203, de 06-11-
bastante evidente a aproximação das 2006, disponível em http://migre.me/vMj7, messas de resultados de transforma-
noções fenomenológicas propostas por e edição 364, de 06-06-2011, disponível em ção de comportamento, saltos, giros
Merleau-Ponty e os grupos de pesquisa http://bit.ly/k3Fcp3. Além disso, o IHU orga- desenvolvimentistas e outras formas
nizou, durante o ano de 2004, o evento Ciclo
em Estudos Sociais da Infância, propo- de Estudos sobre Michel Foucault, que também de psicologia e pedagogia centrados
nentes do que se está usualmente cha- foi tema da edição número 13 dos Cadernos no adulto e que não levam em conta
mando de Culturas da Infância, o que IHU em Formação, disponível para download processos existenciais, nem tampouco
em http://migre.me/vMjd sob o título Michel
reafirma o arejamento e pioneirismo Foucault. Sua contribuição para a educação, a “a dor e a delícia” de sermos o que
de Merleau-Ponty no início da década política e a ética. Confira, também, a entre- somos. A infância é uma temporalida-
de 1950. No entanto, minha percepção vista com o filósofo José Ternes, concedida à de deste tipo – de dores e delícias – e
IHU On-Line 325, sob o título Foucault, a socie-
é de que ainda há pouco interesse pela dade panóptica e o sujeito histórico, disponí- as crianças têm o direito de experien-
fenomenologia da infância; esse modo vel em http://migre.me/zASO. De 13 a 16 de ciá-la em seu ritmo e em seu estilo
de fazer filosofia inserido na psicologia setembro de 2010 aconteceu o XI Simpósio In- próprio. O mote da fenomenologia da
ternacional IHU: O (des)governo biopolítico da
e na pedagogia muitas vezes é asso- vida humana. Para maiores informações, aces- infância é deixar a criança ser o que
ciado ao ato de “apenas” descrever; se http://migre.me/JyaH. Confira a edição ela é, sem nunca deixá-la à deriva.
Foucault, por exemplo, afirmou que 343 da IHU On-Line, intitulada O (des)governo Trata-se de uma espécie de arte zen a
biopolítico da vida humana, publicada em 13-
 Michel Foucault (1926-1984): filósofo fran- 09-2010, disponível em http://bit.ly/bi5U9l, e ser praticada em cada gesto e palavra,
cês. Suas obras, desde a História da Loucu- a edição 344, intitulada Biopolitica, estado de a cada acontecimento entre adultos e
ra até a História da sexualidade (a qual não excecao e vida nua. Um debate, disponível em crianças, cotidiana e ordinariamente.
pôde completar devido a sua morte) situam- http://bit.ly/9SQCgl. (Nota da IHU On-Line)

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 17


“O homem no cerne do acontecimento vivo”
A partir da fenomenologia de Merleau-Ponty, o ser humano rompe com a inexperiência do
mundo das “verdades prontas” e da “bidimensionalidade aprisionadora” para desvelar a pro-
fundidade, acentua Vitória Espósito

Por Márcia Junges

P
ara Vitória Espósito, a “atualidade do pensamento de Merleau-Ponty está em trazer elementos
para a discussão e vivência de questões atuais do mundo contemporâneo, colocando-nos no cer-
ne do acontecimento vivo. De estarmos sempre sendo com o outro na facticidade do mundo, de
nosso corpo próprio e assim conscientes do caráter desse inacabamento, de nos vermos em nossa
incompletude, seres históricos, enredados numa dialética sempre inacabada (homem/mundo)”.
Passamos, então, a nos vermos frente ao abismo, mistério e lugar do sagrado. E completa: “com Merleau-
Ponty apreendemos que a gênese dos atos de conhecimento se faz a partir do ‘corpo próprio’, rompendo a
dicotomia homem/mundo”.
Graduada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Santo Tomás de Aquino, Vitória
Espósito é mestre e doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP com
a tese A escola. Os processos institucionais e os universos simbólicos. Professora da PUC-SP, escreveu, entre
outros, A escola. Um enfoque fenomenológico (São Paulo: Escuta, 1993) e Construindo o conhecimento da
criança/adulto. Uma perspectiva interdisciplinar? (São Paulo: Martinari, 2006).Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os principais inacabada (noema/noésis/noema). sa nem ideia, mas a inteligibilidade
impactos e implicações da obra de Implica essa perspectiva em resgatar de nascentes estruturações. É o que
Merleau-Ponty nos processos das ci- o sentido original da palavra conhe- possibilita movimentações, apreen-
ências, em geral e da educação, em cimento (do latim cum+gnosco), uma sões diversificadas; torna possível ver
específico? apreensão conjunta, sendo esse o fun- outras formas, apreender interdisci-
Vitória Espósito – Em trabalhos e estu- damento da vida mental e conscien- plinaridades e transdisciplinaridades,
dos por nós desenvolvidos no âmbito do te. No entanto, historicamente temos novas estruturas de conhecimento, o
Grupo de Pesquisa Educação e Produ- contemplado uma interpretação fraca rompimento com ordenações discipli-
ção de Conhecimento (CNPq/PUC-SP), do termo como “informação” ou “re- nadoras. Possibilita recriar... transfa-
e da Cátedra Joel Martins, temos pro- presentação”, em detrimento daquele zer.
curado tornar visível que a fenomeno- considerado forte, pois criador (poié-
logia propõe uma verdadeira viragem tico) construído na “participação” e IHU On-Line – O que é um enfoque
epistemológica ao colocar no centro “realização conjunta”. fenomenológico de currículo? Quais
do inquérito não o conhecimento em si Com Merleau-Ponty apreendemos são os aspectos desse tipo de currí-
mesmo, mas aquele que conhece. Para que a gênese dos atos de conhecimen- culo que “dialogam” com o legado
tanto, interroga como nas situações to se faz a partir do corpo próprio, de Merleau-Ponty?
vividas o conhecimento se mostra de rompendo a dicotomia homem/mun- Vitória Espósito – Em primeiro lugar,
forma significativa para aqueles que os do. Esse movimento torna possível a é preciso deixar claro que a fenome-
experiênciam conhecer. apreensão de diferentes ordenações nologia é um modo de ver o homem,
A fenomenologia propõe, dessa for- de mundo. Desse modo, o distancia- o mundo e as coisas que nele se mos-
ma, uma ordenação qualitativa em di- mento é o elemento que nos permite tram. É uma filosofia que traz em si
reção aos atos de conhecimento. Atos capturar a profundidade. Profundida- um método próprio e visa dar acesso
de conhecimento, na medida em que de que não pode ser confundida com aos fenômenos que investiga – o mé-
eles se dão em situação. No movimen- a terceira dimensão do espaço obje- todo fenomenológico. Consideramos,
to da existência, no tempo e no espaço tivo. Como nos ensina Merleau-Ponty, ainda, que a fenomenologia encontra
e na ação deste ser que face “ao mun- profundidade é o suporte invisível da suas motivações ao buscar um aces-
do” enreda-se numa dialética sempre visibilidade, a estrutura. Não é coi- so direto às estruturas essenciais e à

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descrição dos fenômenos que são ex- “A fenomenologia nos nos estudos educacionais. Referia Joel
perienciados pela consciência, sem Martins que a reação parecia ligada
teorias sobre a sua explicação causal abre para a necessidade ao medo e à hostilidade em direção
e tão livre quanto possível de pressu- ao desconhecido, portanto, ainda não
postos e preconceitos. Visa chegar à de busca constante de compreensível, uma pré-disposição
compreensão ou a um conhecimento cultural a ser superada. Consideramos
de primeira ordem. Seu estudo, com apreender o mundo no que hoje já é consensual não se ver
Husserl, se faz contrastando-o ao posi- currículo apenas como um instrumen-
tivismo, concepção filosófica hegemô- seu movimento próprio” to preestabelecido em decorrência de
nica na segunda metade do século XIX. objetivos, métodos, conteúdos, ava-
Este busca tal acesso investigando os ciência como atribuidora de signifi- liações. Currículo na acepção fenome-
“fatos objetivamente dados” a partir cados, em resgatar o mundo-vida tal nológica fala de vida; de uma situação
da ordenação proposta pelos métodos como este se apresenta para cada um de mundo; o mundo da educação, lu-
científicos; portanto um conhecimento de forma inalienável, em ver como ele gar onde estão localizadas a escola,
de segunda ordem, pois não visa uma se mostra “aí” (mundo), antes que a a comunidade, a natureza, as coisas
apreensão direta ao conhecimento, reflexão incida sobre ele. dentro da natureza mesma. Tudo isso
mas mediada. Dessa forma, difere da Trata-se de buscar a essência do lembra Martins, dentro de sua concep-
fenomenologia que interroga pelos fe- comportamento e da percepção inte- ção de consciência de e da atribuição
nômenos tal como eles se mostram nas rior presente nas experiências vividas de significados por essa consciência.
descrições daqueles que o vivenciam e de considerar que a intencionalida- Constitui-se na produção de conheci-
(pré-reflexivo). de operativa pode nos oferecer ‘uma mento a partir do experienciado, isto
Retomando a questão da fenome- certa textura’ que emerge das signi- é, do mundo vivido pelo sujeito, con-
nologia e currículo, consideramos que ficações já dadas, um aspecto funda- siderado como um ser transformador
fazer currículo, à luz da fenomenolo- mental da consciência que opera com (MARTINS, 1992, p. 88).
gia, implica em não considerá-lo como o mundo no conjunto de seus diversos
um meio para determinado fim, e, movimentos. A questão básica será, IHU On-Line – Qual é a atualidade da
sim, ver como este poderá ser cons- então, compreender qual é, em nós e fenomenologia desse educador para
truído pela escola ao qual se destina. no mundo, a relação entre sentido e a educação do século XXI?
Em apreender o mundo daqueles que não senso, uma vez que é visão comum Vitória Espósito – Consideramos que a
lá estão, em interrogar pelos valores, aos fenomenólogos que a consciência atualidade do pensamento de Merleau-
crenças e desejos, enfim em ter aces- use signos para expressar os significa- Ponty está em trazer elementos para a
so à realidade daqueles que lá estão. dos que atribui. Nesse sentido, a ma- discussão e vivência de questões atuais
Currículo será então um projeto peda- neira pela qual a consciência atribui do mundo contemporâneo, colocando-
gógico, caminho a ser percorrido, que significados indica que ela o faz a par- nos no cerne do acontecimento vivo.
poderá gerar compreensões e vir a tir da forma como se relaciona com as De estarmos sempre sendo com o ou-
partir destas se constituir em elemen- estruturas já construídas pelos sujei- tro na facticidade do mundo, de nosso
to da estrutura e de uma cultura em tos investigados. Assim, uma estrutu- corpo próprio e assim conscientes do
desenvolvimento. Para subsidiar essa ra mínima de crenças passa a existir, caráter desse inacabamento, de nos
construção, poderão ser usadas des- momento este em que há um desper- vermos em nossa incompletude, seres
crições ingênuas, relatos das histórias tar da consciência para alguma coisa históricos, enredados numa dialética
de vida, de observação de movimen- (MARTINS, 1992, p. 92). sempre inacabada (homem/mundo).
tos e corpos, de forma a capturar os Considerando a pergunta: qual é o Essa inconsistência, ao ser sentida e
significados do mundo daqueles que lá enfoque fenomenológico de currículo? vivida como consciência de, inquie-
estão. Significa ver a escola no mundo, Lembramos que Joel Martins publicou ta-nos, amedronta e exige respostas,
no tempo e no espaço, numa certa cul- em 1992 o livro: Um enfoque fenome- faz proposições, age, interfere. Essa
tura em transformação. nológico de currículo. Currículo como forma de situar-se no mundo solicita
poíesis, que no Brasil parece ser o pri- o apoio de uma ética que considere a
Despertar da consciência meiro volume na área, considerada até incessante busca de sentidos para o
então, pouco precisa entre os educa- que há. Implica em se saber habitando
Conforme nos traz Joel Martins, à dores. Este livro hoje, um clássico em o “entre”, o hiato que separa e une
luz da fenomenologia de Merleau-Pon- currículo, oferece-nos a oportunidade o mundo e as coisas que nele estão.
ty, esse modo de construir currículo de situar uma visão de curriculum à Em ver-se frente ao abismo, ao mis-
implica em romper com o ideário de luz da fenomenologia, um registro da tério, ao lugar do sagrado. Colocando
uma concepção causal e/ou idealiza- resistência à tal concepção, conside- o homem no cerne do acontecimento
da, pois objetiva recuperar a crença rada na época, pouco significativa por vivo pela mediação do corpo próprio,
na importância da consciência subje- não apresentar uma perspectiva polí- a fenomenologia de Merleau-Ponty
tiva e no valor da intersubjetividade. tica. Mais ainda, tal livro ilustra a re- aponta para a possibilidade de rompi-
Solicita também, compreender a cons- sistência encontrada à fenomenologia mento com a inexperiência do mundo
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de evadir-se de verdades prontas e Dessa forma, em Fenomenologia da próprio”.
da bidimensionalidade aprisionadora, percepção, Merleau-Ponty contrasta
de desvelar a profundidade. Profun- o pensamento do empirista inglês de Corporeidade do corpo
didade, berço do entre-si que, ao se Bacon (1561-1626) ao idealismo ra-
mostrar, permite capturar outros per- cionalista de Descartes (1596-1650). E como ocorre tal síntese? Mer-
fis, perspectivas, deixando ver não só Vale lembrar que o empirismo dessa leau-Ponty considera que o mundo-
figuras, mas também formas que se época considerava que o conhecimen- vida (Lebenswelt) traz uma estrutu-
mostram e se ocultam. Essa percepção to advinha da experiência, enfatizan- ra significativa que lhe é própria e
de dimensões diferenciadas traz con- do nesse pensar o método indutivo, fundada nas ordens humana, física
sigo também a percepção de valores, pelo qual os fatos particulares são ob- e biológica. Coloca ainda a ideia de
suscita o desejo de novas formas de jeto de agrupamentos, experiências e corpo próprio, corpo que é “carne”
ser e existir no mundo com o outro. comprovação para se chegar aos con- e que habita a “carne do mundo”.
Gera responsabilidades. ceitos gerais, ao conhecimento. Ainda Considera ainda, que é com o cor-
Na esteira do pensamento fenome- que esse modo de explicar as coisas po encarnado que o homem passa a
nológico nasce a possibilidade de nos se assentava em um modo de compre- ser visto como fundamento de uma
depararmos com o princípio da res- ender o “mundo como algo já dado”. espacialidade (síntese espacial). Ao
ponsabilidade e da necessidade, en- Dessa forma, o comportamento huma- reconhecer-se um corpo próprio, si-
quanto seres humanos e educadores, no era visto como uma simples reação tuado num determinado lugar do es-
de nos posicionarmos no mundo e atu- a estímulos externos captados pelos paço (o presente), é que se viabiliza
ar com cautela, tendo discernimento órgãos dos sentidos e registrados no um afastamento. Afastamento como
necessário. Solicita cuidados e uma cérebro como percepções. Nesse ra- elemento decisivo que lhe permite
séria disposição para mantermos o dis- ciocínio, homem e mundo estão in- projetar um duplo horizonte (o pas-
cernimento possível, pois nosso ver é delevelmente separados. Nessa con- sado e o futuro), produzir movimen-
incompleto, em perspectivas. Disposi- cepção, o comportamento humano e tos, reversibilidades. Dessa forma,
ção em manter uma atitude de inves- o psiquismo reduzem-se às suas ma- situado na corporeidade do corpo – o
tigação, de análise e reflexão sobre si nifestações objetivas, a reações pas- corpo encarnado – passa a ser assu-
e o mundo como sendo (co-)respon- síveis de verificação. O resultado, o mido como ponto referencial; o es-
sáveis pela própria morada humana e homem deixando de ser responsável paço aberto, o vazio a ser habitado
pela existência do planeta. pelo mundo e, dele, irremediavel- pelo corpo em movimento, o que lhe
Nessa perspectiva, a fenomenologia mente separado. possibilita o existir dialético (ho-
nos abre para a necessidade de busca No segundo caso, o pensamento mem-mundo).
constante de apreender o mundo no cartesiano estabelecia a primazia Apreender esses três grandes mo-
seu movimento próprio. Lembrando daquele que pensa sobre o objeto mentos do pensamento filosófico e
que é o mundo percebido o que nos si- pensado, utilizando para isso o mé- científico de Merleau- Ponty e seus
tua em nossa existência. Busca assim, todo indutivo. O mundo é algo a ser desmembramentos foi crucial e serviu
como consciência de, que nos veja- considerado pelo sujeito que o pen- como ponto de referência para leitura
mos situados no entrecruzamento, no sa; o comportamento humano é o que trazemos nesse momento.
quiasma entre o visível e o invisível, resultante de uma consciência cons-
habitando o mistério. tituinte de natureza externa (divina) IHU On-Line – Você delinearia algu-
ao sujeito. ma proximidade entre Paulo Freire e
IHU On-Line – Como avalia a questão A partir dessas duas correntes do Merleau-Ponty? Por quê?
do corpo e do mundo percebido a pensamento, considerou Merleau- Vitória Espósito – Penso que, se não
partir da obra de Merleau-Ponty? Ponty que dadas as especificidade de há uma proximidade, não há também
Vitória Espósito – Retomando a obra cada concepção, embora diferentes, nada que a contradiga. Naturalmen-
Fenomenologia da percepção, lembra- estas se completavam. Em ambas, o te, Merleau-Ponty foi um filósofo de
mos que Merleau-Ponty coloca alguns mundo era considerado algo que está grande expressão no seu tempo. Seu
pontos os quais consideramos funda- aí. O homem, um ser não participan- compromisso político, assim como o
mentais para apreender a questão te dessa construção, pois ele era algo de Paulo Freire, foi uma caracterís-
corpo e mundo percebido. Nela encon- “já dado”, e a existência em ambos tica que o marcou e a toda sua obra
tramos os elementos para a viragem ocorria de forma independente. Dessa projetando-o no cenário de sua épo-
epistemológica que se coloca como maneira, perdia-se de vista a experi- ca. O mesmo se deu com nosso que-
ponte indispensável para compreen- ência perceptiva concreta, conexão rido e sempre mestre Paulo Freire.
são, na sequência de seus estudos, de imprescindível entre homem e mundo, Considero que a relação de proximi-
certos termos como movimento, pro- síntese que somente seria encontrada dade entre ambos constitui-se um
fundidade, reversibilidade, quiasma, o posteriormente, por meio do “corpo tema a ser estudado com o carinho e
visível e o invisível e o de carne como respeito que ambos merecem.
 Francis Bacon (1561-1626): político, filósofo
matéria comum entre corpos videntes e ensaísta inglês. Sua principal obra filosófica
e corpos visíveis. é o Novum Organum. (Nota da IHU On-Line)

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Kant e Merleau-Ponty: um debate entre filosofia e matemática
Contribuições de Merleau-Ponty à matemática são um de seus legados mais importantes, pon-
tua Verilda Speridião Kluth. De acordo com a pesquisadora, a matemática pode “ser pensada
como presença no momento de percepção”

Por Márcia Junges

“N
ão vejo nos pensamentos de Merleau-Ponty os mesmos princípios que regem a expli-
citação dos juízos sintéticos a priori de Kant, pois os juízos são imagens do mundo,
enquanto que os núcleos de significação que compõem o primado do conhecimento em
Merleau-Ponty são presença de mundo corporificada, relações orgânicas entre sujeito e
mundo explicitadas na noção de corpo próprio como sujeito da percepção”. A explica-
ção é da matemática Verilda Speridião Kluth, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. E completa:
“O próprio Merleau-Ponty na introdução de seu livro A fenomenologia da percepção faz uma crítica à bilateri-
dade das relações sujeito e mundo posta em Kant, afirmando que a análise reflexiva, a partir da experiência
do mundo, reconstitui a experiência para o sujeito como algo distinto dela e apresenta uma síntese universal
como algo, sem o qual não haveria mundo”.
Licenciada e bacharel em Matemática pela Fundação Educacional de Bauru, Verilda Kluth é mestre e
doutora em Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp, com a tese
Estruturas da Álgebra – investigação fenomenológica sobre a construção do seu conhecimento. Docente na
Universidade Federal de São Paulo – Unifesp e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
– Unesp, é presidente da Sociedade de Estudos e Pesquisa Qualitativos - SE&PQ, além de membro da Socie-
dade Brasileira de Educação Matemática – SBEM. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as maiores con- só as relações comerciais e políticas, esclarecendo-nos um modo de com-
tribuições de Merleau-Ponty ao estudo mas também a construção de conhe- preender a construção desse caminho
da matemática? Por que sua filosofia cimento de outras áreas científicas, de volta ao evidenciar o enraizamento
inspira o estudo dessa ciência? tonificando o obscurecimento de seus do primado do conhecimento na rela-
Verilda Speridião Kluth – A caracterís- conceitos e processos. Muitas vezes as ção homem/mundo, e ao designar a
tica mais conhecida da matemática é dificuldades em matemática afastam percepção como a primeira camada
a sua abstração. E o abstraído é enten- possíveis interessados nos estudos que do sentir.
dido como algo que está fora do alcan- dela dependem, contribuindo para o Isso nos permite dizer de uma con-
ce, fora do campo de percepção, fora aprofundamento da cisão entre ciên- textualização que, embora ainda este-
do campo das sensações. A matemá- cias exatas e ciências humanas. ja em concordância com a aplicabili-
tica torna-se com isso uma disciplina A contextualização da matemática, dade da matemática, não só diz dela,
estranha àquele que não a estuda ou a que une a matemática constituída ao mas também de aspectos ontológicos,
aplica em sua profissão. cotidiano das pessoas, tem sido um dos extremamente necessários para com-
É difícil reconstituir o caminho de recursos didático-pedagógicos utiliza- preendermos a construção do conhe-
volta que a põe no mundo. Muitas ten- dos para a construção da aproximação cimento matemático realizada pelo
tativas educacionais têm sido pensadas entre o sujeito e a matemática. sujeito e para mantermos a autocto-
para apresentá-la ao público em geral nia dessa ciência, tão importante no
de forma a ser compreendida, dada a Núcleos de significação momento de avaliarmos sua aplicabili-
necessidade dessa compreensão que é dade em termos da ética, da estética
imposta pela nossa civilização, prin- Em meu entender, a principal con- e da sustentabilidade.
cipalmente porque o conteúdo mate- tribuição dos pensamentos de Merle- Numa visão fenomenológica hus-
mático traz em seu bojo uma abran- au-Ponty é o aprofundamento que re- serliana e merleau-pontyana, o termo
gente aplicabilidade que perpassa não aliza de algumas ideias husserlianas, contexto não se restringe às condições

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externas, como, por exemplo, juros mentada na hermenêutica filosófica não se trata absolutamente de um jogo,
de um empréstimo, tampouco apenas de Gadamer posto em Verdade e mé- de uma articulação lógico-matemática
ao potencial intelectivo particular da- todo e no texto de Husserl intitulado de regras; ou de uma articulação pura-
quele que vive o acontecimento, saber Die Urstiftung und das Problem der mente interpretativa/associativa de uma
calcular o juro ou ser capaz de apren- Dauer. Der Ursprung der Geometrie linguagem desvinculada da compreensão
der a calcular o juro. O contexto tem (O estabelecimento e o problema da que é: presença das estruturas da álge-
como fundante uma situação de acon- duração. A origem da geometria). Os bra em sua características fundamentais
tecimento que possibilite a presen- textos citados possibilitam a realiza- e presença do ser humano em seu po-
ça do núcleo de significação, do qual ção de uma análise intencional retros- tencial intuitivo/criativo. Ele diz de um
emerge a estrutura do juro. O contex- pectiva de obras sobre as estruturas olhar que o ser humano lança sobre o já
to, assim entendido, caracteriza-se matemáticas. conhecido, os números, que é novo por-
como coexistência de valores, como que vislumbra novos horizontes; porém,
aquilo que legitima uma aplicabilida- Novos horizontes esses novos horizontes contemplam e
de compatível dos objetos matemáti- têm raízes no conhecimento matemáti-
cos na vida das pessoas e nas ciências Através dessa análise constatamos co historicamente instituído.
em geral. que os números complexos constituem
A meu ver, os educadores matemá- um cirscunstancial propulsor das no- IHU On-Line – O que acontece no en-
ticos fenomenológicos que se orien- ções de estruturas matemáticas. Com contro sujeito-matemática? Há uma
tam pelas ideias de Merleau-Ponty isso pudemos evidenciar os números problematização de Merleau-Ponty
têm como uma de suas preocupações complexos como uma ontologia formal, sobre essa intersecção?
buscar a compreensão dos núcleos de descrição realizada por Husserl, como Verilda Speridião Kluth – No texto
significação que deram e dão, ainda o primado das estruturas da álgebra. Fenomenologia da percepção, Merle-
hoje, origem aos objetos matemáti- A descrição da análise intencional au-Ponty traz alguns exemplos mate-
cos, fazendo jus à contribuição que o retrospectiva torna-se, como parte dos máticos para esclarecer a elaboração
autor nos deixou. Porque aí temos a procedimentos da investigação, o texto- de seu pensamento, mas ele não pro-
possibilidade de conhecermos não só solo para compreendermos o movimen- blematiza de forma direta o encontro
aspectos dos objetos matemáticos, to da construção do conhecimento das sujeito-matemática.
mas também o que é sentido e pensa- estruturas da álgebra. Desse segundo Em meu entender, ele descreve o
do por aqueles que os vivenciam. momento de análise, chegamos a três encontro sujeito-mundo. Esse encontro
categorias abertas: os modos de doação se dá na percepção, momento em que
IHU On-Line – Em que consiste a in- das estruturas da álgebra; as estruturas temporalidade e espacialidade se fazem
vestigação fenomenológica sobre a das presenças: estrutura da álgebra e ser presentes; é o tempo-lugar onde o sujei-
construção do conhecimento das es- humano; e o modo de ser matemático do to está, em que o sujeito é sendo. Dessa
truturas da álgebra? ser humano. forma, o encontro é abertura e doação
Verilda Speridião Kluth – As investiga- Com a compreensão até aí elabo- de sentido (Sinngebung) de mundo. Nele
ções sobre O que acontece no encon- rada sobre o movimento da constru- se colocam presenças: homem e mundo.
tro sujeito-matemática? e Estruturas ção do conhecimento das estruturas Presenças que se dão perfiladas. Perfis ou
da álgebra – investigação fenomeno- da álgebra tecemos uma articulação núcleos de significação de mundo que,
lógica sobre a construção do seu co- inspirada em Husserl, utilizando uma ao serem incorporados no momento da
nhecimento, ambas acessíveis em: complementação à obra A crise das percepção, tecerão a primeira camada
http://www.sepq.org.br/61.asp, se ciências europeias e a fenomenologia de sentir o mundo, tendo como fundo o
entrelaçam. transcendental intitulada Schichten mundo percebido, entendido aqui como
Enquanto a primeira foca o mo- des Weltbewustsein – em português: o mundo natural, o mundo cultural, os
mento em que a matemática se faz Camadas da consciência de mundo e seres – semelhantes ou não – e o mundo
presente para o sujeito na relação nos pensamentos de Merleau-Ponty so- em construção.
homem/mundo e estuda como se dá o bre o cogito, em torno da interroga- E como o real é um tecido sólido que
primado do conhecimento das noções ção: Como se revela o pensar no movi- não espera os nossos juízos ou nossas as-
de formas matemáticas, a segunda mento da construção do conhecimento serções para juntar a si os fenômenos,
questiona como acontece a construção das estruturas álgebras? esse encontro é também um encontro
do conhecimento matemático formal Resumidamente, o pensar que se do sujeito com os objetos da nossa cul-
ao longo do tempo, inserida em uma revela no movimento da construção do tura, com tudo aquilo que se põe como
tradição. Nela as estruturas algébricas conhecimento das estruturas da álgebra presença doando-se enquanto sentido
são colocadas em epoché pela inter-  Hans-Georg Gadamer: filósofo alemão, au- de mundo. A matemática poderá, então,
rogação: Como se revela o pensar no tor de Verdade e método (Petrópolis: Vozes, ser pensada como presença no momento
1997), faleceu no dia 13-03-2002, aos 102
movimento da construção do conheci- anos. Por essa razão, dedicamos a ele a maté- de percepção. E a interrogação se colo-
mento das estruturas álgebras? ria de capa da IHU On-Line número 9, de 18- ca, pondo o encontro sujeito-matemá-
Ela é uma investigação teórica que 03- 2002, Nosso adeus a Hans-Georg Gadamer, tica em epoché. Essa problematização,
disponível em http://migre.me/DtiK. (Nota da
tece uma metodologia própria funda- IHU On-Line) pensada aqui como pergunta norteado-

22 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


ra, é levantada e pesquisada na minha “Para Merleau-Ponty, do pensar filosófico como um pensar
dissertação de mestrado. interrogativo, analítico, crítico e re-
Respondendo à questão “o que acon- a forma é uma flexivo sobre ocorrências, textos, pro-
tece no encontro sujeito-matemática?”, postas, realizações que permeiam as
numa interpretação inspirada nas ideias configuração, é a própria atividades humanas.
de Merleau-Ponty, de depoimentos sobre Em particular, na filosofia da educa-
atividades vividas por participantes de aparição de mundo e não ção matemática, as ocorrências, os tex-
um curso para formação de professores tos, as propostas e as realizações estão
de escolas Waldorf”: a matemática ma- sua condição de contextualizadas no movimento que vai
nifesta-se no corpo próprio e no mundo. se dando e se pondo como constituído
O sujeito percebe-se como formas: ge- possibilidade; com ela no seio da educação matemática; e de
ométrica e numérica, ora como formas seus efeitos para a sociedade. Ao ser te-
percebidas, ora como formas sentidas e nasce uma norma; ela é a cida uma reflexão sobre essa realidade,
ora como formas produzidas. poderá vir a ocorrer não só um diálogo
Dá-se a percepção de estruturas identidade entre exterior entre perguntas levantadas pela filo-
de mundo que podem estar presentes sofia, mas também por compreensões
tanto na matemática como na música, e interior” elaboradas por ela que iluminam cami-
ou ainda no mundo natural, que reafir- nhos de busca e que fornecem respostas
mam as possibilidades doadas à cria- métrico, criador, prazeiroso, revelador, ou parte delas às perguntas formuladas
tividade humana, engendradas pelos de equilíbrio e imaginativo que revelam pela educação matemática, como num
núcleos de significação de mundo. a fisionomia da forma sentida. A forma círculo hermenêutico sustentado por um
produzida, aquela que é construída ou pensar filosófico.
Sentido e existência posta em desenho, revela uma fisiono- Por exemplo, a pergunta “o que
mia de desafio, favorável a abdução e acontece no encontro sujeito-mate-
Perceber e sentir os núcleos de sig- imaginação cinética. Por outro lado, na mática?” já tem em sua constituição
nificação no já conhecido pelo sujeito unidade do sujeito revela-se uma unida- a afirmação de que tal encontro acon-
– o retorno “às coisas mesmas”, como de que não é real. Ela está no horizon- tece. A legitimação dessa afirmação
anunciado por Husserl e explicitado por te da experiência e a subjetividade só é vai ser explicitada numa perspectiva
Merleau-Ponty – abrem-se à compreen- encontrada em estado nascente na tem- filosófica para que a própria pergunta
são em várias perspectivas; a constru- poralidade, que é a camada primordial ganhe peso e profundidade.
ção da realidade vai se pondo conco- em que nascem as ideias. Ao vivê-las o Por outro lado, ao estarmos inseri-
mitante à construção do conhecimento sujeito sente-se seguro. dos no contexto da educação matemá-
no sentido de que a realidade não está tica, imbuídos do modo filosófico de se
descolada da aparência das coisas: ela IHU On-Line – Como se dá o diálogo aproximar do mundo, poderemos for-
é a armação de relações que diz respei- entre a filosofia da educação mate- mular perguntas filosóficas referentes
to a todas as aparências. mática em relação às grandes per- às ocorrências desse contexto especí-
Disso temos que, no mundo real, guntas ontológicas e epistemológicas fico indagando: o que elas são, como
o sentido coincide com a existência, da filosofia? elas se dão; por que são o que são, o
contraem-se relações a todos os mo- Verilda Speridião Kluth – Embora per- que fazer ou ainda perguntas de cunho
mentos. Nas palavras de Merleau-Pon- ceba laços entre as perplexidades des- filosófico sobre os sujeitos que viven-
ty: “o real distingue-se de nossas fic- tacadas nas interrogações da filosofia ciam essas ocorrências. Portanto, é o
ções porque nele o sentido investe e e da filosofia da educação matemática modo de pensar filosófico que coorde-
penetra profundamente a matéria”. que se referem a perguntas ontológi- na a investigação e que se revela no
Como último destaque desta pesqui- cas, epistemológicas – principalmente modo de perguntar e de buscar.
sa, ao analisarmos o encontro sujeito- aquelas que procuram elucidar a cons-
matemática, emergem modos de sentir trução do conhecimento matemático IHU On-Line – É possível apontar uma
a própria percepção da matemática. É tanto do ponto de vista da construção influência de Immanuel Kant e seus
nessa camada da construção do conheci- que o sujeito realiza nos processos juízos sintéticos a priori, possíveis
mento, seguindo o pensar merleau-pon- educacionais como a construção rea- na matemática, no pensamento de
tyano da exploração sensorial, que se lizada no movimento das tradições –, Merleau-Ponty?
constitui da vivência da unidade do su- eu penso que o principal elemento que Verilda Speridião Kluth – Bem, essa é
jeito e da unidade intersensorial do ob- une as duas áreas de forma significati- uma pergunta interessante e bastante
jeto, que temos a possibilidade de com- va e que sustenta os diálogos possíveis complexa. Para respondê-la terei que
preender o objeto matemático vivido – a é o modo como elaboram a busca de retomar alguns aspectos da teoria kan-
unidade do objeto – na dimensão tempo- compreensão ou explicitação do per- tiana tecendo um paralelo com a teoria
ral e na dimensão espacial, ou seja, por guntado. merleau-pontyana. Não há como negar
em evidências seus aspectos humanos Evidencio aqui o modo de construir que Kant deixa um legado muito impor-
em termos de comportamento rítmico, trajetórias de compreensão que diz  Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia-

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tante para o desenvolvimento da feno- quer análise que possamos fazer dele. conceitos e asserções, são sintéticos,
menologia ao distinguir a coisa em si do O real deve ser descrito, e não podem ou seja, aqueles que não são analíticos,
fenômeno. Ele nos faz ver que não po- ser incorporadas à percepção as sín- nos quais a ideia denotada pelo sujeito
demos apreender nenhuma coisa como teses que são da ordem do juízo, dos contém a ideia representada pelo pre-
existente se nós não nos experimentar- atos ou de predicação. dicado; e também são a priori, ou seja,
mos existentes ao apreendê-la. Assim, Nas palavras de Merleau-Ponty, no prescindem de dados empíricos. Sua te-
o ato de ligação é visto como o funda- texto acima referido, “A percepção não oria não dá conta de explicitar toda a
mento do ligado, portanto a unidade de é uma ciência do mundo, não é nem mes- matemática. Como, por exemplo, uma
consciência é contemporânea à unidade mo um ato, uma tomada de posição deli- figura de muitos lados ou um número
de mundo. Com isso podemos entender berada; ela é o fundo sobre o qual todos muito grande.
que em Kant o primado da construção do os atos se destacam e ela é pressuposta
conhecimento é a experiência. por eles. O mundo não é um objeto do Distanciamento
Quando não consideramos a descri- qual possuo comigo a lei de constituição;
ção kantiana de como se dá a experi- ele é o meio natural e o campo de to- Para Merleau-Ponty, a forma é uma
ência, poderíamos dizer que aí haveria dos os meus pensamentos e de todas as configuração, é a própria aparição de
uma confluência entre aquilo que Kant minhas percepções explicitadas. (...), o mundo e não sua condição de possibili-
compreende por experiência e aquilo homem está no mundo, é no mundo que dade; com ela nasce uma norma; ela é a
que Merleau-Ponty vai descrever como ele se conhece”. identidade entre exterior e interior. Es-
vivência; aquilo que Kant descreve como ses pensamentos quando assumidos para
juízos sintéticos a priori e os núcleos de Juízos sintéticos a priori explicitar a construção do conhecimen-
significação, oriundos da descrição da to matemático leva-nos a afirmar que
percepção em Merleau-Ponty, que estão Vejamos agora, por meio de exem- o triângulo, é uma configuração cujos
em sintonia com a unidade primordial plos, como essas duas formas de pensar elementos: lados, ângulos e vértices
posta na “reflexão noemática” de Hus- o como se dá a experiência de mundo possuem valores sensoriais que são de-
serl. vão constituir seus esquemas explicati- terminados por suas funções no conjun-
O próprio Merleau-Ponty, na intro- vos do como se dá a construção do co- to. Assim, os três segmentos de reta tor-
dução de seu livro a Fenomenologia nhecimento matemático, em particular nam-se lados do triângulo ao fundar três
da percepção, faz uma crítica à bila- como se “chega” ao triângulo ou ao nú- vértices, e os pontos de encontro dos
teridade das relações sujeito e mundo mero. segmentos de reta tornam-se vértices ao
posta em Kant, afirmando que a análi- Para Kant, podemos traçar um tri- fundar lados. Dá-se assim, o nascimento
se reflexiva, a partir da experiência do ângulo na nossa imaginação sem nenhu- de uma norma. O triângulo, agora como
mundo, reconstitui a experiência para ma interferência essencial dos sentidos um objeto percebido é a identidade en-
o sujeito como algo distinto dela e externos, ou seja, sem qualquer inter- tre aquele que percebe e o mundo que
apresenta uma síntese universal como ferência do mundo. Precisamos apenas se mostra.
algo, sem o qual não haveria mundo. [da intuição] espaço que nos é dado O mesmo se dá ao pensarmos as for-
Em contrapartida, para Merleau- pela sensibilidade pura. Como qualquer mas numéricas, uma explicitação já pos-
Ponty, o mundo está ali antes de qual- triângulo traçado é imperfeito, é a ima- ta em Husserl a partir da ideia de ser os
ginação, faculdade intelectual, que nos números uma pluralidade determinada.
no, considerado como o último grande filósofo
dos princípios da era moderna, representante permite obter a imagem do conceito de Não vou me ater a isso. Ao articularmos
do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus triângulo, que é uma imagem idealmen- as ideias de Merleau-Ponty com o corpo
pensadores mais influentes da Filosofia. Kant te perfeita. O conceito de triângulo é, de conhecimento matemático, vemos
teve um grande impacto no Romantismo ale-
mão e nas filosofias idealistas do século XIX, assim, o de uma figura plana limitada ser explicitada a percepção de mundo
tendo esta faceta idealista sido um ponto de por três segmentos de reta, apresentada como o primado de seu conhecimento
partida para Hegel. Kant estabeleceu uma dis- no espaço, por meio de uma construção numa concepção fenomenológica de ho-
tinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que
chamou noumenon), isto é, entre o que nos temporal, um exemplo arbitrário de tri- mem e de mundo.
aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa- ângulos. Não vejo nos pensamentos de Mer-
em-si não poderia, segundo Kant, ser objeto Da mesma maneira nós nos represen- leau-Ponty os mesmos princípios que
de conhecimento científico, como até então
pretendera a metafísica clássica. A ciência se tamos os conceitos numéricos na intuição regem a explicitação dos juízos sinté-
restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, pura do tempo. Por exemplo, o conceito ticos a priori de Kant, pois os juízos
e seria constituída pelas formas a priori da sen- de sete (7) é intuitivamente representa- são imagens do mundo, enquanto que
sibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias
do entendimento. A IHU On-Line número 93, do por uma sequência de sete instantes os núcleos de significação que com-
de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à em sucessão temporal. Há a possibilida- põem o primado do conhecimento em
vida e à obra do pensador com o título Kant: de de espacializarmos essa representa- Merleau-Ponty são presença de mun-
razão, liberdade e ética, disponível para do-
wnload em http://migre.me/uNrH. Também ção, ao imaginarmos os instantes como do corporificada, relações orgânicas
sobre Kant foi publicado este ano o Cadernos pontos. Representando assim os momen- entre sujeito e mundo explicitadas na
IHU em formação número 2, intitulado Emma- tos de retenção dos instantes na memó- noção de corpo próprio como sujeito
nuel Kant - Razão, liberdade, lógica e ética,
que pode ser acessado em http://migre.me/ ria, obtendo o número cardinal. da percepção.
uNrU. (Nota da IHU On-Line) Para Kant as verdades matemáticas,
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O olhar criador a partir de Merleau-Ponty
Conceitos do filósofo francês inspiraram o trabalho da artista plástica Carmen Sylvia Guima-
rães Aranha, que afirma que a pintura sempre celebra o enigma da visibilidade

Por Márcia Junges

“P
ara nos aproximar do olhar que tece o conhecimento criador e objetivando trazê-lo à luz
no seu sistema de correlações, apropriei-me de alguns conceitos refletidos por Merleau-
Ponty nas suas discussões sobre conhecimento estético. Essa apropriação ofereceu ins-
trumentais reflexivos para a escolha de artistas e obras que podem nos dar a visualidade
procurada para os fenômenos interrogados na compreensão e interpretação do olhar
criador”. A declaração é da artista plástica Carmen Sylvia Guimarães Aranha, na entrevista que concedeu por
e-mail à IHU On-Line. E completa: “Instrumento que se move por si mesmo, meio que inventa seus próprios
fins, o olho é aquilo que foi comovido por um certo impacto do mundo e que o restitui ao visível pelos traços
da mão. Seja qual for a civilização em que nasça, sejam quais forem as crenças, os motivos, os pensamentos,
as cerimônias de que se cerquem e, mesmo quando parece fadada a outra coisa, desde Lascaux até hoje,
pura ou impura, figurativa ou não, a pintura jamais celebra outro enigma a não ser o da visibilidade”.
Graduada em Artes Plásticas pela Fundação Armando Álvares Penteado – FAAP, Carmen é mestre e doutora
em Educação, respectivamente, pela Universidade de Boston, Estados Unidos, e pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP com a tese A arte visual na sala de aula. É livre-docente pela Universidade de
São Paulo – USP, onde é professora do Museu de Arte Contemporânea. É autor de Exercícios do olhar. Conhe-
cimento e visualidade (São Paulo/Rio de Janeiro: Editora Unesp/Funarte, 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que consiste uma fe- tese da cultura, poderia tornar visível IHU On-Line – Qual é a influência de
nomenologia do conhecimento visual? essa etérea linha decisiva. O exercício Merleau-Ponty nessa concepção es-
Carmen S. G. Aranha – Consiste numa fundamental seria o exercício do olhar pecificamente?
compreensão dos sentidos da criativi- e a criatividade plástica seria somente Carmen S. G. Aranha – Talvez, possa-
dade artística. Quando o indivíduo é uma das maneiras de codificar a cul- mos, ao definir o olhar criador, com-
criativo? Como deflagrar a criatividade tura, no caso em questão em materia- preender as influências pontyanas
no ser humano? Como situar esse fenô- lidades próprias das artes visuais. As- nesse tipo de pesquisa. Por exemplo,
meno do espírito humano? Nessas per- sim, minha investigação dirigiu-se às sabemos que a visão de algo nem sem-
guntas reside em parte uma resposta relações que o olhar podia criar com pre estrutura um conhecimento visual
na qual a fenomenologia permitirá a os objetos artísticos, ou melhor às re- de mundo. Assim, buscamos em Mer-
aproximação. lações visuais de fenômenos estéticos, leau-Ponty alguns aspectos reflexivos
Ao trabalhar com estudantes de ar- reveladas pelas obras de arte. que pudessem nos ajudar na aproxi-
tes plásticas durante doze anos, per- Para nos aproximar do olhar que mação desse fenômeno. Em primeiro
cebi que a liberdade criadora emer- tece o conhecimento criador e objeti- lugar, o filósofo reflete sobre o olhar o
gia, inúmeras vezes, da inspiração. Na vando trazê-lo à luz no seu sistema de mundo afirmando que é preciso fundar
sua ausência, os alunos apresentavam correlações, apropriei-me de alguns esse olhar em um pensar, ou seja, aliá-
certa dificuldade no desenvolvimento conceitos refletidos por Merleau-Ponty lo a um pensamento que “desmancha
de trabalhos que projetassem inter- nas suas discussões sobre conhecimen- o tecido da tradição da razão, puxan-
rogações próprias e, por decorrência, to estético. Essa apropriação ofereceu do seus fios com argumentos sobre não
produzissem pesquisas artísticas genu- instrumentais reflexivos para a escolha coincidências e irrazões”.
ínas. E então, como deflagrá-la na sala de artistas e obras que podem nos dar Tentando compreender essas coloca-
de aula? Compreendi, pouco a pouco, a visualidade procurada para os fenô- ções, pensamos então em um olhar que
que o exercício fundamental seria en- menos interrogados na compreensão e fizesse correlações visuais no mundo e,
contrar relações no tecido da cultura. interpretação do olhar criador. ao mesmo tempo, se intencionasse lon-
Verificamos também que o olhar, sín- ge das observações absolutas: um olhar

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que interpretasse esse mundo sem dis- arte como para o professor da área e correlações entre os fenômenos visuais
tanciamentos entre seus sujeitos e obje- até mesmo para o artista plástico. apreendidos nas coisas do mundo: as
tos, sem modelos pré-dados e, acima de luzes modificam formas, a linha modi-
tudo, longe de interpretações inadequa- O corpo reflexivo fica sua primitiva direção, os materiais
das à descrição do conhecimento visual oferecem outras materialidades. Essas
de mundo. Outro aspecto da organização Os conceitos existem através das correlações de fenômenos situam, por
de um olhar livre para criar é que esse experiências que temos deles. Uma exemplo, a ideia de que “um gesto di-
não se oferece com uma clareza imedia- experiência significativa aloja-se no fere de uma soma de movimentos”.
ta, nem é reconhecido diretamente na ser como um acontecimento, diz Mer- O fenômeno da vida aparece no mo-
obra artística. Na construção da lingua- leau-Ponty. mento em que a extensão de um corpo,
gem criadora, num primeiro momento, “Um corpo humano aí está quando pela disposição de seus movimentos e
só temos indícios de fenômenos esté- entre vidente e visível, entre tocante pela alusão que cada um faz a todos os
ticos percebidos no mundo, de forma e tocado, entre um olho e outro, entre outros, volta-se sobre si mesmo e come-
que o ato de olhar deve ser um ato de a mão e a mão se produz uma espécie ça a expressar alguma coisa, a manifes-
construção motivador: “como numa ta- de recruzamento, quando se acende a tar um interior sendo exteriorizado”.
peçaria, numa renda, num quadro ou faísca do sensciente-sensível, quando Podemos dizer que o sentido apre-
numa fuga, nos quais o motivo puxa, se- se inflama o que não cessará de quei- endido é um fenômeno desvelado pelo
para, une, enlaça e cruza os fios, traços mar, até que um acidente do corpo ser que se dirige às relações entre os
e sons, configura um desenho ou tema a desfaça o que nenhum acidente teria diversos movimentos do corpo ou mes-
cuja volta se distribuem os outros fios, bastado para fazer”. mo ao intervalo das positividades do
traços ou sons, e orienta o trabalho do Esse acidente se dá no “corpo-refle- mundo. De acordo com Merleau-Pon-
artesão e do artista”. xivo” e constituirá o lugar que aloja mo- ty, a ideia refere-se à consciência que
Situada por Merleau-Ponty, a ori- tivações vividas e refletidas no discurso projeta um novo meio em direção ao
gem criadora é uma “racionalida- da consciência, ou seja, essas movimen- mundo e, assim, passa a ser integrada
de alargada: não o que é razão, mas tações formam um solo sensível como à dialética das ações e reações.
aquilo que é antes da razão”. Quando um panorama de percepções que, no “Enquanto que um sistema físico
o filósofo fala em um olhar que é pen- caso da apreensão estético-visual, são se equilibra em relação às forças da-
samento, está referindo-se a um olhar cifradas em visualidades. Merleau-Ponty das pelo meio e um organismo animal
junto a “um pensar não como a posse situa o conhecer fenomenológico na mo- constrói um meio estável para si mesmo
da ideia, mas como a circunscrição de vimentação do corpo-reflexivo, operan- correspondendo às necessidades e ins-
um campo de pensamento”. Isso quer te, habitado por uma consciência com tintos, o trabalho humano inaugura uma
dizer que, nessa construção, os mo- janelas para o mundo, os olhos: “Meu terceira dialética que projeta objetos de
vimentos da criação visual pairam na olhar se move, meu corpo se move, me uso - roupas, mesas, jardins - e objetos
matéria como estruturas do olhar-pen- aproximo do mundo por essas movimen- culturais - livros, instrumentos musicais,
sar em exercício. tações e vejo que o movimento é par- língua -, que constituem o próprio meio
te da visão”. Nessa movimentação, “o do homem e trazem novos ciclos de
IHU On-Line – Quais são as grandes vidente vai se abrindo para o visível”. comportamentos: situação percebida-
proposições desse autor para o diálo- Mas, ao mesmo tempo, “o ser é viden- trabalho, diferentemente de comporta-
go entre filosofia, arte e educação? te e visível, olha para todas as coisas e mentos relativos ao par situação vital/
Carmen S. G. Aranha – É uma ques- seres e é olhado. Nessa troca, acaba se reação instintiva.
tão que envolve um poder de síntese reconhecendo no que está vendo, como No momento em que forças físicas
que teríamos que ter mais tempo para se as coisas pudessem despertar-lhe em chegam ao corpo, em vez de passarem
construí-lo, mesmo porque Merleau- um eco de visualidades”. O que é olhado através dele e liberarem respostas au-
Ponty cria um sistema filosófico em re- transforma-se em um desenho no ser e tomáticas, são acompanhadas por uma
lação à arte, à linguagem, à política, e, todas as qualidades das coisas do mun- consciência de si mesmas que as dissi-
ao refletir sobre esses aspectos, entre- do passam a reverberar no indivíduo que pa num centro de indeterminação que
laçá-os com a movimentação filosófica se expressa com a arte, olha o mundo e torna o ser capaz de ação própria. A
do seu pensamento. Ao adentrarmos a vê o que lhe falta para ser obra. O fazer zona dessas possíveis ações será mar-
dimensão, percebemos uma visão de artístico criador busca o olhar com um cada em detalhe pela percepção. En-
mundo, um modo de estar aqui. Não pensar que recorta o mundo. Isso defla- tretanto, a compreensão da dimensão
poderia realizar essa tarefa neste espa- grado, a linguagem nos permite inter- da percepção fenomenológica ainda
ço. Entretanto, parece-nos que alguns ceptar a criatividade na obra. demanda uma reformulação da noção
instrumentais da filosofia fenomenoló- de consciência.
gica na construção da aproximação do Aproximação do fenômeno
fenômeno criatividade e visualidade Cogito fenomenológico
podem ser pontuados. A noção de percepção fenomenoló-
Cito a seguir três aspectos escla- gica oferece os movimentos da consci- Merleau-Ponty, ao final da Fenome-
recedores tanto para o estudante de ência no corpo reflexivo que possibilita nologia da percepção, diz que “sua vida,

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constantemente, se dirigiu às coisas como cifras do visível. Nessa formação, a percepção car-
transcendentais: os objetos do mundo Instrumento que se move por si mes- rega-se de sentidos visuais, ou seja,
tornam-se transcendentais à medida que mo, meio que inventa seus próprios fins, as tensões e inquietações codificam-se
se oferecem para ser compreendidos e o olho é aquilo que foi comovido por um em elementos formais das artes visu-
interpretados em seus sentidos e em certo impacto do mundo e que o restitui ais: linhas, formas, cores-luzes, mate-
suas correlações. Mas, mesmo assim, ao ao visível pelos traços da mão. Seja qual riais e técnicas. Essa codificação em
situar os objetos em relações significati- for a civilização em que nasça, sejam cifras visuais são os próprios indícios
vas, muitas vezes, fazemos afirmativas quais forem as crenças, os motivos, os para que um sistema de correlações
vagas sobre sua existência”. pensamentos, as cerimônias de que se se estabeleça como possibilidade de
O filósofo evoca, então, o cogito car- cerquem e, mesmo quando parece fa- construção da linguagem, ou seja, or-
tesiano em contraponto ao cogito feno- dada a outra coisa, desde Lascaux até dene as linhas para engendrar as for-
menológico afirmando que, ao estrutu- hoje, pura ou impura, figurativa ou não, mas, ordene as formas e cores-luzes
rar o conhecimento humano, o primeiro a pintura jamais celebra outro enigma a para engendrar os espaços, os espaços
provoca uma divisão entre percepção e não ser o da visibilidade. para engendrar as espacialidades, vo-
razão porque descarta, diferentemen- luminosidades e profundidades; os ma-
te do último, a experiência-vivida pelo IHU On-Line – De que forma esse diá- teriais e as técnicas para engendrar as
ser como gênese de um conhecimento logo se dá em sala de aula? materialidades e as novas técnicas, as
que, ao mesmo tempo, é contato com Carmen S. G. Aranha – Parte da investi- novas expressividades, as novas linhas,
a coisa, é consciência e é construção do gação sobre o olhar se funda na procu- novas formas, novas cores-luzes, novos
imaginário. ra de estruturas que contribuam para a espaços, novas espacialidades...
Razão e percepção precisam neces- formação do conhecimento visual genu-
sariamente serem tomadas simultane- íno e repercutam nos processos do fazer Ver é dialogar
amente e serem apresentadas uma a artístico do estudante. Assim, nossa pes-
outra sem nenhuma distância interme- quisa levou-nos a algumas ideias-guias A possibilidade da construção da
diária, numa intenção indivisível. Todo que auxiliam a compreensão de como o expressão visual-plástica atual reflete-
pensamento de alguma coisa é, ao olhar se constrói em processos da edu- se em muitos diálogos, um deles, nas
mesmo tempo, consciência de si mes- cação e arte. Sob as asas de algumas linguagens artísticas nas mais diversas
mo; isso falhando não se pode ter ob- frases-síntese, apontamos para algumas formas e nos mais variados conteúdos
jeto. A experiência humana não é uma orientações baseadas em nossa própria da arte. Ou seja, a visão e o corpo
coleção de eventos psicológicos dos experiência em relação à expressão cria- operante movimentam-se com as ori-
quais o “eu” é meramente um nome dora que pende das movimentações do gens da linguagem artística caracteri-
ou uma causa hipotética. “A experiên- “ver-pensar-fenomenológico”. zando seus elementos espelhados em
cia humana deve ao evento”. transformações da própria arte.
Na raiz de todas as nossas experi- Ver é habitar o corpo e cifrar expe- A codificação do ver se dá com a
ências e reflexões encontramos, en- riências aproximação dos elementos da lingua-
tão, um ser que imediatamente se gem por meio do fazer artístico como
reconhece, porque é o conhecimento O corpo operante se movimenta no uma possibilidade de construção de
de si mesmo e de todas as coisas que espaço da experiência. O ver se move expressão genuína. A codificação tor-
possibilita conhecer sua própria exis- no movimento do corpo, e os desloca- na-se olhar com sua movimentação no
tência, não pela observação de um mentos tencionam e inquietam o ser, fazer artístico de sínteses das tensões
fato dado, nem pela interferência de penetram na atmosfera da consciência e inquietações visuais.
alguma ideia de si mesmo, mas pelo projetando traçados essenciais ou ci- A origem do olhar criador com a
contato direto com o mundo. fras visuais da vivência própria. É nesse expressão criadora atual se dá no fa-
Consciência de si é a própria essên- movimento tencionado e inquietante zer artístico de correlações entre as
cia da mente em ação. O ato pelo qual que a ordem vicária vai se dissolven- tensões da razão construtiva, razão
me torno consciente de alguma coisa do, que um princípio de desordem se conceitual, expressividade perceptiva
precisa ser apreendido no próprio mo- instala para logo adiante se recompor e simbólica.
mento no qual está sendo realizado; em nova ordem, mais pessoal, reflexo
de outro modo, sofreria um colapso. de uma experiência visual genuína. IHU On-Line – Em que medida a filo-
Em síntese, a percepção é um ato do sofia de Merleau-Ponty nos ajuda a
conhecimento que se origina com os sen- Ver é perceber os códigos e correla- compreender a arte moderna?
tidos apreendidos na experiência vivida cioná-los Carmen S. G. Aranha – Segundo alguns
pelo sujeito com os objetos de uso cria- autores, a filosofia de Merleau-Ponty
dos pelo homem. O campo perceptivo é  Lascaux: complexo de cavernas ao sudoeste está somente adequada às interpre-
da França, famoso pela suas pinturas rupes-
composto por correlações, e essa com- tres. A disposição da caverna, cujas paredes tações que envolvem a arte moderna.
preensão, de acordo com Merleau-Ponty, estão pintadas com bovídeos, cavalos, cervos, Seus preceitos se formam baseados em
é própria do pintor. Sendo seu mundo de cabras selvagens, felinos, etc., permite pen- estruturas de pensamento que querem
sar tratar-se de um santuário. (Nota da IHU
visualidades, a experiência fica gravada On-Line) superar o distanciamento entre o sujeito

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e o objeto, legado esse que as ciências
humanas tomaram das ciências exatas a
partir de certos modelos baseados na fí-
sica do século XVII com desdobramentos
para o positivismo que assola todas as Destacar o sensível das relações
ciências no final do século XIX.
A superação da divisão sujeito/ob-
jeto em Merleau-Ponty se dará por
para aprender melhor o sentido
meio de algumas perguntas radicais
que situarão o ser em um corpo que das experiências
reflete sua consciência. Afirma seu
conhecimento com os sentidos ad- Esse era, aliás, o lema inicial da fenomenologia, “voltar às
vindos de suas vivências e afirmará coisas mesmas”, frisa Reinaldo Furlan
que o ato que não se coloca à parte
do fim ao qual está dirigido é o ato
perceptivo, ou seja, a percepção e o Por Márcia Junges e Thamiris Magalhães
percebido necessariamente têm uma

“C
modalidade essencial, pois ela está na
consciência de alguma coisa, ou seja, reio que assistimos a uma crise de pensamento, onde as
na consciência que se intenciona nas filosofias ou determinados saberes das ciências humanas
coisas do mundo. Merleau-Ponty afir- são usados como ferramentas teóricas consolidadas no
ma que o conhecimento humano se dá enfretamento da realidade, quando se deveria fazê-las
com um pensar que não se dirige ao ‘tremer’ com a própria experiência, para o que sempre
mundo como um objeto em si ou como favorece o diálogo crítico com outras perspectivas de pensamento. Se não,
uma impressão que se possa ter dele: para usar um termo de Deleuze-Guattari, o pensamento se torna sedentário,
cogitar é um ato de compreensão-in-
fixo, estratificado, o que vai a contrapelo de sua própria filosofia”, afirma
terpretação dos significados do mun-
Reinaldo Furlan, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. Ao se
do, de suas estruturas ou de arranjos
espontâneos de suas partes. “Ao nos referir a Merleau-Ponty, o professor destaca que, desde o princípio, Ponty,
dirigirmos aos objetos transcendentes “através de uma filosofia da percepção, e não da consciência, fez a inflexão
não estamos tendo atos de introspec- que tornou possível sua aproximação da noção de inconsciente, sem que ela
ção, atos intuitivos ou fazendo alguma representasse por princípio um impedimento de sua própria filosofia”.
conversão irracional ou ocultista”. Reinaldo Furlan possui graduação em Filosofia pela Pontifícia Universidade
“Na raiz de todas as nossas ex- Católica de Campinas – PUC-Campinas, mestrado em Filosofia pela Universidade
periências e reflexões encontramos, Federal de São Carlos – UFSCar e doutorado em Filosofia pela Universidade Es-
então, um ser que imediatamente se tadual de Campinas – Unicamp. Atualmente é professor da Universidade de São
reconhece, porque é o conhecimen- Paulo – USP. Confira a entrevista.
to de si mesmo e de todas as coisas
que possibilitam conhecer sua própria
existência, não pela observação de um IHU On-Line – Como acontece o en- se revelam sempre num horizonte de
fato dado, nem pela interferência de lace entre expressão, linguagem e mundo. Claro que um “sujeito” se en-
alguma ideia de si mesmo, mas pelo subjetividade na filosofia de Merle- contra implícito ou implicado nas es-
contato direto com o mundo”. au-Ponty? truturas desse aparecer, mas definir o
Esse modo de se situar no mundo Reinaldo Furlan – É tema para uma seu sentido também faz parte da eluci-
de uma maneira una, nascendo nas tese. São noções-chave ou de grande dação do sentido do próprio aparecer.
coisas, traz no seu bojo uma concep- alcance e que sofreram mudanças ao Ora, como destaca Thévenaz, a feno-
ção moderna porque arte e vida esta- longo de sua obra. Posto isso, apenas menologia, enquanto “escola” ou cor-
rão juntas a partir do nascimento da para anunciar de forma mais esquemá- rente de pensamento inaugurada por
linguagem artística pós-idade mimé- tica um princípio de encaminhamento Husserl, consiste mais na retomada su-
tica. A arte moderna será um mani- a essa questão, talvez possamos privi- cessiva dessa tarefa de elucidação da
festo constante do homem ligado aos legiar na filosofia de Merleau-Ponty a experiência originária de mundo (sua
problemas dessa vida que o mundo noção de expressão como referência abertura) do que na instalação de prin-
moderno estava trazendo. Entretan- básica às demais. Afinal, a fenome- cípios básicos comuns a seus autores.
to, determinadas noções pontyanas, nologia, como o próprio nome suge- O próprio Husserl, como destaca Mer-
a meu ver, são perfeitamente atuais e re, implica a investigação do sentido leau-Ponty, sentiu intermitentemente
descrevem com muita pertinência cer- fundamental do fenômeno, isto é, do a necessidade de um novo recomeço,
tos atos de conhecimento na contem- aparecer das coisas ou da abertura de como se a fenomenologia estivesse
poraneidade. mundo para nós – visto que as coisas sempre por se iniciar. Ou seja, como
28 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378
diz Merleau-Ponty, nada é mais difícil di- “A literatura, assim como grande interesse em seu cotejamento
zer do que é isso que nós vemos, o que é com a filosofia de Merleau-Ponty en-
outra maneira de afirmar o princípio fun- a pintura, não tem a contra-se sobre a possibilidade ou não
damental de uma teoria da expressão. de um discurso filosófico próprio sobre
Quanto à linguagem, que é uma for- pretensão de possuir a realidade. Grosso modo, Wittgens-
ma privilegiada de expressão e com a tein, assim como Foucault, e na esteira
qual a filosofia se realiza, a questão é sa- qualquer de seus de Kant, entende a atividade filosófica
ber em que medida ela brota nos inters- como um exercício de esclarecimento
tícios da expressão sensível (percepção), sentidos como a um de nossas formas de pensar e ser no
provocada ou estimulada por esta, e em mundo, pois a linguagem, como ele
que medida ela participa da estrutura objeto definido e diz, faz parte de uma forma de vida.
da própria percepção. Essa questão as- Ou seja, os significados da linguagem
sumiu diferentes contornos em sua obra, delimitado” são definidos pelos usos das palavras,
mas é notável a importância crescente pela forma como são empregadas,
da linguagem em sua filosofia. Em que de uma filosofia da percepção, e não da configurando, assim, determinada si-
pese isso, Merleau-Ponty jamais assumiu consciência, fez a inflexão que tornou tuação ou atividade linguística, e por
a exclusividade da linguagem na forma- possível sua aproximação da noção de isso a linguagem é uma forma de viver.
ção de nosso sentido de mundo. Também inconsciente, sem que ela representas- Ora, isso tudo, grosso modo, é bastan-
é notável sua aproximação da linguagem se por princípio um impedimento de sua te coerente com a filosofia de Merleau-
literária, mais apta, segundo ele, para própria filosofia. O que assistimos ao lon- Ponty, e poderíamos, com isso, traçar
expressar nossa relação originária com go de sua obra, então, foi o acolhimento muitos paralelos entre suas filosofias.
as coisas, uma expressão, vale notar, mais radical da noção de inconsciente, Ocorre que Wittgenstein crê que a ati-
que toma o sensível como protótipo ao sem abandonar a prioridade do sentido vidade de esclarecimento de nossos
mesmo tempo em que é a criação do seu percebido. Esquematicamente, se em jogos de linguagem é a própria ativi-
próprio sentido. Isso porque a literatura, Fenomenologia da percepção encontra- dade filosófica, enquanto para Merle-
assim como a pintura, diz Merleau-Pon- mos uma versão bastante mitigada da au-Ponty esse aspecto apenas prepara
ty, não tem a pretensão de possuir qual- noção de inconsciente através da noção ou favorece um discurso mais lúcido
quer de seus sentidos como a um objeto de cogito tácito, isto é, como horizonte da filosofia sobre a realidade. Mais
definido e delimitado. Como se sua ca- de sentido de uma vida, muito mais am- precisamente, Wittgenstein, de modo
pacidade expressiva fosse justamente a plo do que os seus sentidos colocados em geral, enfatiza que a filosofia como
de abrir um campo de pensamento, ser tese, ao final de sua obra encontramos a discurso próprio sobre a realidade não
“matrizes de ideias”, inseparáveis da noção de inconsciente como princípio de passa de um efeito de confusões gra-
maneira de sentir ou ser no mundo. Da organização da própria percepção, não maticais, quando ela retira os signifi-
mesma forma, para ele o Ser (bruto) só separado dela, como se fosse outro lu- cados da linguagem comum de seu uso
se mostra mantendo-se à distância como gar, tal como supõe a psicanálise através próprio, e com eles pensa construir
horizonte inobjetável do sentido das pró- da ideia de divisão do aparelho psíquico, um sentido mais fundamental sobre as
prias coisas, ou ainda, como horizontes mas como armação no próprio sentido coisas. Então, segundo ele, a lingua-
de mundo que se passam entre si, que se percebido. Nesse sentido, Merleau-Ponty gem deixa de funcionar com as coisas
invadem ou se tocam docemente, como diz que o inconsciente não é o que está ou nas atividades dos homens, e passa
um sistema aberto de reenvios de senti- atrás e sim o que está à frente. Ele passa a girar em falso, sobre si mesma. Claro
dos para a configuração de mundos. a ser, assim, padrão perceptivo, estabe- que, assim como a filosofia de Foucault
lecido ou modificado através da práxis ou inovações nos campos da lógica, filosofia da
IHU On-Line – Como situar a filosofia das relações com os outros. Por isso ele linguagem, epistemologia, dentre outros cam-
de Merleau-Ponty entre a psicanálise diz que “as decisões mais fundamentais pos. A maior parte de seus escritos foi publi-
e a filosofia de Wittgenstein? cada postumamente, mas seu primeiro livro
de uma vida não são de momento”, ou foi publicado em vida: Tractatus Logico-Philo-
Reinaldo Furlan – Nesse caso, é mais fácil “que não se decide fazer, mas deixar-se sophicus, em 1921. Os primeiros trabalhos de
estabelecer sua relação com a psicanáli- fazer”, frisando com isso que a mudança Wittgenstein foram marcados pelas idéias de
se, que explicitamente foi incorporada Arthur Schopenhauer, assim como pelos novos
ocorre mais na estrutura ou forma de ver sistemas de lógica idealizados por Bertrand
em sua obra, sempre de maneira crítica. e sentir do que no nível do sentido que Russel e Gottllob Frege. Quando o Tractatus
O grande interesse em se cotejar a filo- se destaca. foi publicado, influenciou profundamente o
sofia de Merleau-Ponty com a psicanálise Círculo de Viena e seu positivismo lógico (ou
empirismo lógico). Confira na edição 308 da
encontra-se, em primeiro lugar, sobre a Um discurso filosófico próprio sobre IHU On-Line, de 14-09-2009, a entrevista O
noção de inconsciente, afinal, a feno- a realidade silêncio e a experiência do inefável em Wit-
menologia se estabeleceu com Husserl tgenstein, com Luigi Perissinotto, disponível
para download emhttp://migre.me/qQYt.
através de uma nova concepção de cons- Leia, também, a entrevista A religiosidade
No caso da filosofia de Wittgenstein, o
ciência, ou como uma filosofia da cons- mística em Wittgenstein, concedida por Paulo
ciência. Ora, como nota Nelson Coelho,  Ludwig Wittgenstein (1889-1951): �������
filóso- Margutti, concedida à revista IHU On-Line 362,
fo austríaco, considerado um dos maiores do de 23-05-2011, disponível em http://bit.ly/lU-
desde o princípio Merleau-Ponty, através século XX, tendo contribuido com diversas (Nota da IHU On-Line)
Copl. ���������

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 29


(esta muito voltada para o aspecto po-
lítico de nossas relações), pode-se ga-
“Creio que assistimos propriamente ditos (conforme os pa-
râmetros da metafísica cartesiana),
nhar muito com o esclarecimento dos
nossos jogos de linguagem, na medida
a uma crise de mas expressão encarnada de sentido.
Com o sentido da experiência do cor-
em que se revela uma forma de vida,
ou, como diz Foucault, que a crítica
pensamento, em que po próprio, constata-se que o sujeito
é um extensivo-intensivo no mundo,
do presente abre ou favorece possi-
bilidades futuras. Na verdade, essa é
as filosofias ou identificando, pois, o que a metafí-
sica cartesiana separou. E com essa
uma questão muito complicada para
ser tratada nos limites dessa respos-
determinados saberes operação, todo o sentido do mundo
objetivo também se desfaz, ou se tor-
ta, que em última instância significa a
possibilidade de uma ontologia geral,
das ciências humanas são na segundo ou derivado de um sentido
de mundo cuja expressão primeira é
no caso de Merleau-Ponty, ou apenas
histórica, conforme Foucault ou Wit-
usados como ferramentas mais fisionômica e afetiva. Ora, a no-
ção de carne visa o aprofundamento
tgenstein. Ou ainda, trata-se de uma
questão sobre o alcance ou os limites
teóricas consolidadas ontológico dessas primeiras obras,
pois nelas ainda se partia das noções
da razão. no enfretamento da de consciência e objeto, como ele re-
conhece em O visível e o invisível, o
IHU On-Line – Ainda nesse sentido,
como se dá o diálogo entre a feno-
realidade” que inviabilizava a sua intenção. Tra-
ta-se, então, de recuar mais ou desco-
menologia e a esquizoanálise na psi- samento. Se não, para usar um termo de brir sob a experiência do corpo próprio
cologia? Que avanços transdisciplina- Deleuze-Guattari, o pensamento se tor- uma noção mais fundamental do que
res surgem a partir desses debates? na sedentário, fixo, estratificado, o que esta, e será essa a função da noção de
Reinaldo Furlan – Grosso modo, não vai a contrapelo de sua própria filosofia. carne. Ela representa, ao mesmo tem-
creio que haja diálogo entre a fenome- po, a abertura de sentidos no seio do
nologia e a esquizoanálise na psicologia, IHU On-Line – Em que consiste o “úl- próprio sensível, e o princípio de suas
ou, de modo geral, nas ciências huma- timo Merleau-Ponty”? Como compre- relações, inaugurando a possibilidade
nas. Se tenho escrito alguma coisa nesse ender esse período de sua filosofia de uma experiência de mundo através
sentido, é justamente para romper um no conjunto de sua obra? da reversibilidade. Ela será o tecido
isolamento que em geral constitui a re- Reinaldo Furlan - O “último Merle- de nossas relações com as coisas e os
gra em nossas pesquisas universitárias, e au-Ponty” se encaminhou para uma outros, a sua trama conjuntiva, não
que não se limita ao caso dessas filoso- filosofia da “carne”, sob a necessida- havendo, pois, limites definidos entre
fias. Por exemplo, como diz José de Sou- de de fundar de forma mais radical o eu e o outro, nós e o mundo, senão
za Martins (A Política do Brasil, lúmpen movimento iniciado em suas primeiras esses do próprio sentir, como condição
e místico. São Paulo: Contexto, 2011) a obras. Desde o princípio, sua filosofia de nossas relações.
respeito do marxismo universitário ao tratou da necessidade de revisão da
longo de sua história, faltou diálogo e dis- metafísica cartesiana, fundada na re- IHU On-Line – Como compreender o
cussão crítica com as outras abordagens lação entre sujeito e objeto. Em sínte- “desejo da carne” a partir de sua fi-
sociológicas, o que não só empobreceu se, tratava-se de unir sensibilidade e losofia?
o marxismo ensinado nas universidades inteligibilidade, aquém da separação Reinaldo Furlan – Essa expressão faz
como também favoreceu sua transfor- entre corpo e espírito, ou pensamento um trocadilho com a concepção cristã
mação em uma nova ideologia. Ou seja, e coisa, como estabelecido por Des- de carne. Mas não se trata em abso-
há a tendência perniciosa nas pesquisas cartes. Ou ainda, se Descartes reco- luto de uma conotação moral sobre a
universitárias de se assumir determina- nhece de fato a união substancial en- dimensão do homem, como queda ou
da perspectiva teórica de modo mais tre corpo e alma na Sexta Meditação, pecado. Se a carne, como iniciamos
ideológico do que de pensamento ou após havê-las separado de direito na acima, é princípio de reflexividade
atividade crítica. Cito esse autor para Segunda Meditação, fundando, assim, do sensível (sentir é sentir-se), isto
indicar que o caso da fenomenologia e sua distinção metafísica, podemos di- é, princípio de expressão no sensível,
da esquizoanálise não é um fato isolado. zer que a filosofia de Merleau-Ponty e por isso expressão sensível, de tal
Ou seja, creio que assistimos a uma cri- iniciou onde Descartes parou (Lebrun, forma que o corpo vê porque é vis-
se de pensamento, em que as filosofias em nota para a tradução brasileira das to, toca porque é tocado, ou sente
ou determinados saberes das ciências Meditações, de Descartes). Ora, em porque se sente, a noção de desejo
humanas são usados como ferramentas Fenomenologia da percepção, é atra- vem para se revelar como a anima-
teóricas consolidadas no enfretamento vés da noção da experiência do cor- ção fundamental da própria carne. O
da realidade, quando se deveria fazê- po próprio que Merleau-Ponty procura desejo surge justamente da abertura
las “tremer” com a própria experiência, encaminhar essa questão, pois a expe- do sensível a si mesmo através do mo-
para o que sempre favorece o diálogo riência do corpo próprio mostra que vimento da percepção ou da própria
crítico com outras perspectivas de pen- ele não é nem coisa nem pensamento, experiência de sentir, porque sentir

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“A noção de desejo vem
para se revelar como a
animação fundamental Um convite à radicalidade
A partir do pensamento desse filósofo, “podemos combater
da própria carne”
o corpo que foi e é objeto da biopolítica”, pontua Fabio Di
Clemente. Ressonâncias de uma antropologia filosófica podem
pressupõe a relação entre o dentro e
o fora do corpo, que significa a pre- ser encontradas em sua obra, onde há um convite a sermos
sença do corpo ao fora (mundo), atra- radicais
vés de sua distância, sem a qual não
haveria relação perceptiva. Então, o
desejo surge dessa separação entre o Por Márcia Junges e Thamiris Magalhães
dentro e o fora de um corpo que cons-

P
titui a própria relação perceptiva, vi-
sando sua integração. O importante é ara o filósofo italiano Fabio Di Clemente, “com Merleau-Pon-
não confundir essa tentativa de inte- ty, podemos combater o corpo que foi e é objeto da biopolítica.
gração como fusão com o outro (mun- Como reconstruiu o filósofo italiano Roberto Esposito, trata-se de
do), o que seria a morte, mas como um corpo destinatário de uma ‘intenção imunitária’ da política,
intensificação da presença do fora no enquanto considerado ‘lugar privilegiado do desdobramento da
dentro ou do dentro no fora. Sobre vida’, de um ‘binarismo’ entre crescimento e consumação, vida e morte”. E
esse tema vale a pena conferir a feno- completa: “podemos dizer que há ressonâncias de uma antropologia filosó-
menologia de Renaud Barbaras. fica no referencial da obra de Merleau-Ponty, mas é preciso logo esclarecer
que a obra merleau-pontyana não desliza em certas tentações. Além disso,
IHU On-Line – Qual a importância da diante da profunda atenção para as pesquisas biológicas reservada por esses
filosofia de Merleau-Ponty no pensa-
representantes da antropologia filosófica, a leitura merleau-pontyana sobre
mento contemporâneo?
o nexo entre vida, organismo, meio ambiente, procede, ultimamente, na
Reinaldo Furlan – Vou me ater ape-
nas a um aspecto, o qual me parece direção de uma resistência da mesma biologia a cada formalização transcen-
essencial. Somos ainda muito cartesia- dental, última, eidética”.
nos, como dizia Merleau-Ponty. Nesse Estudioso italiano, Fabio Di Clemente é graduado em Filosofia pela Universi-
ponto, destacam-se dois sentidos de dade de Urbino (Itália), especialista em Antropologia e Filosofia da Ciência pela
existência, como coisa ou como pen- mesma instituição. Na Universidade La Sapienza, em Roma, cursou Filosofia do
samento. Ora, resgatar o valor expres- Direito. É doutor em Filosofia pela Universidade de Urbino com a tese A percep-
sivo do corpo me parece fundamental ção entre fenomenologia e dialética em Merleau-Ponty. Colaborou com o “Istitu-
para resgatar a própria presença do to italiano per gli Studi filosofici” de Nápoles e, na Universidade de Urbino, com
outro e do mundo, em nós e para nós. o filósofo italiano Domenico Losurdo, presidente da Internationalen Gesellschaft
Em outros termos, nós temos o hábito Hegel-Marx für Dialektisches Denken. No Brasil obteve o pós-doutorado em Fi-
de valorizar as ideias ou pensamentos,
losofia na Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC, trabalhando sobre as
e, ao mesmo tempo, olhar para as coi-
implicações fenomenológicas do corpo em âmbito biopolítico e bioético. Atu-
sas como objetos de um ponto de vis-
ta causal. Isso favoreceu e favorece o almente é professor adjunto na Universidade Federal do Mato Grosso - UFMT.
desenvolvimento da técnica, mas por Nessa instituição liderou em 2011 o Grupo de Pesquisa em Movimentos Sociais e
outro lado coloca à margem todo um Educação - GPMSE, ministrando um curso sobre o pensamento de Merleau-Ponty.
campo de experiência de sentidos que De suas publicações, destacamos La perception et l’histoire dans la pensée de
tecemos com as coisas e os outros, e Maurice Merleau-Ponty (In: Losurdo, D; Tosel, A. Org.). L’idée d’époque histori-
que encontramos, de forma privilegia- que. Die Idee der historischen Epoche. Annalen der Internationalen Gesellschaft
da, nas artes, em particular na pintura Hegel-Marx für Dialektisches Denken. Band 12. Frankfurt a.M., Peter Lang, 2004,
e na literatura. Na verdade, é aí que a p. 419-432). Está preparando um livro de reconstrução crítica do pensamento de
maior parte de nossas vidas se passa. Merleau-Ponty e outro sobre questões fenomenológicas. Confira a entrevista.
Então, destacar o aspecto sensível des-
sas relações é uma forma de apreender
melhor o sentido das nossas experiên-
cias, o que, aliás, era o mote inicial
da fenomenologia, “voltar às coisas
mesmas”.
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IHU On-Line – Em que aspectos prin- implica não apenas o fato de conjugar maravilhoso espetáculo do “nascimen-
cipais reside a atualidade da obra de a instância do todo com as partes, da to continuado”. Em substância, já os
Maurice Merleau-Ponty 50 anos após unidade com a diferença, do universal organismos chamados de inferiores
sua morte? com o particular, da imanência com a não se definem por sua “existência
Fabio Di Clemente – Falar de atuali- transcendência, e das outras correla- pontual”; consequentemente, eles
dade de um pensador e, ainda mais, tas, mas, ultimamente, a necessidade não existem “como uma coisa dotada
de um pensador “radical” como foi de saber fazer tudo isso sem pressupor de propriedades absolutas, como frag-
Merleau-Ponty, é insidioso, traiçoeiro. princípios do exterior e do interior de mentos de espaço cartesiano”, nem
Ele escreve no ensaio O filósofo e a um determinado fenômeno, sem jus- como uma forma absoluta, pela qual
sua sombra (1959), falando da heran- tapor “movimentos contraditórios”, a morfogenia seria um “trabalho de
ça de Edmund Husserl aos 100 anos de sem, enfim, fazer uso de “diplopias” copista” ou uma “força que avança”.
seu nascimento: “toda comemoração reflexionantes. O fato é que se trata O fato é que o “ideal” que desejamos
é traição, seja porque lhe prestamos a de saber conjugar tudo isso sem poder colocar no organismo não pode ser se-
homenagem supérflua de nossos pen- estacionar num lado ou noutro da re- parado da sua atividade.
samentos, como se quiséssemos forne- lação. Dessa maneira, a filosofia é re-
cer-lhe uma garantia a que não tem conduzida à ordem da “interrogação”, Dilema parmenidiano
direito, seja porque, ao contrário, não da solução “lógica” de um dado
com um respeito cheio de distância, o problema. A partir disso, acredito, ra- Escreveu magistralmente o filósofo
reduzimos muito estritamente ao que mifica-se a “atualidade” de Merleau- francês: “Não há nenhuma estimula-
ele próprio quis e disse”. Logo depois, Ponty. ção vinda de fora que não tenha sido
ele esclarece que essas dificuldades provocada pelo movimento próprio
pertencem à comunicação entre “os IHU On-Line – Quais são os desafios do animal”. Nessa tensão irredutível,
egos”, como já tinha entendido Hus- da corporeidade no legado da feno- o real, vivido e observado, comporta
serl. Entre uma história ‘objetiva’ da menologia desse pensador? sempre “o mais ou menos”. Destarte,
filosofia, que mutilaria os grandes fi- Fabio Di Clemente – Limito-me a foca- o organismo supõe “um Ser não par-
lósofos naquilo que deram aos outros lizar a abordagem merleau-pontyana menidiano”, uma “forma que escapa
para pensar, e uma meditação disfar- da corporeidade que pode nos aproxi- ao dilema do ser e do não ser”. O que
çada de diálogo, onde colocaríamos mar aos inúmeros desafios nela conti- os organismos nos ensinam a pensar é
as questões e daríamos as respostas, dos. Cabe retomar a lógica do secre- a vida como “uma totalidade que está
deve haver um algo de intermédio, to natal apontada precedentemente. por toda parte e em nenhuma parte”.
onde o filósofo de que se fala e aquele Merleau-Ponty procurou a relação “em Merleau-Ponty utiliza a analogia da
que fala estão presentes juntos, em- duplo sentido”, voltando ou descen- melodia para apontar essa totalidade,
bora, de direito, seja impossível re- do até a vida dos animais chamados que acaba sendo pensada ultimamente
partir a cada instante o que é de cada de máquinas. Os organismos, desde como totalidade prenha de partes que
um. Levando em conta essa sagacida- os chamados inferiores, não são – ele agem como “partes totais”. Deixemos
de, o “algo de intermédio” exprime declara – uma máquina, nem algo de- a palavra ao filósofo: “A melodia nos
a impossibilidade de repartir, a todos rivado de um princípio posto a tergo, dá uma consciência particular do tem-
os níveis de vida e conhecimento, en- porque exibem uma “estabilidade in- po […]. No momento em que começa
tre o que é dado e o que é recebido. cessantemente reconquistada e com- a melodia, a última nota está lá, à sua
Ora, nessa impossibilidade aninha-se prometida”, segundo uma relação de maneira. Numa melodia, ocorre uma
a tarefa imensa que alimenta a inter- abraço entre a atividade que cria os influência recíproca entre a primeira e
rogação do filósofo francês. Ele nos órgãos e a atividade de comportamen- a última nota, e devemos dizer que a
ensina a ser “radicais”. Trabalhando to. Já o caso dos animais-máquinas, primeira nota só é possível pela última
sobre o retorno husserliano ao “mun- como a água-viva, ensina-nos que não e reciprocamente. É assim que as coi-
do da vida” (Lebenswelt), ele pensa o temos uma unidade do ponto de vista sas se passam na construção de um ser
“aparecimento” da vida e do mundo estritamente fisiológico, mas apenas vivo. Não há, em absoluto, prioridade
(natural, social, histórico) sem ne- uma unidade presente gradativamen- do efeito sobre a causa. Assim como
nhum resíduo dualista e reducionista. te em relação às funções que ela rea- não se pode dizer que a última nota
A esse resguardo, podemos falar de um liza, apesar de serem repetitivas; essa seja o fim da melodia, e que a primei-
“secreto natal” que a natureza exibe, unidade não se desdobra no exterior. ra seja o seu efeito, tampouco se pode
qual “solo” (Boden) da vida, “englo- Ademais, os “animais inferiores orga- distinguir o sentido à parte do sentido
bante” de circularidades dialéticas. nizadores”, como as amebas, não têm onde ela se exprime”. Como diz Proust,
Em virtude dessa Natureza, os órgãos definidos, mas exibem plastici- a melodia é uma ideia platônica que
animais chamados de máquina, até dade: como destaca Merleau-Ponty: “a não se pode ver à parte. É impossível
os seres humanos, estabelecem uma cada momento, no meio, a ameba faz- distinguir nela o meio e o fim, a essên-
relação “em duplo sentido” (Fundie- se pseudópodes (pernas) ou vacúolos cia e a existência. Nesse caminho anti-
rung) entre fundante e fundado, de (estômago), depois os faz desaparecer dualista e antirreducionista, a cair são,
descendência husserliana; relação que para recriá-los”. Elas nos oferecem o entre outras formas de pensamentos, o
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realismo (mecanicista, causalista, vita- “Merleau-Ponty za afirma-se como um Englobante de
lista, finalista) e o idealismo, nas suas circularidades dialéticas representado
várias declinações. procurou a relação ‘em pela “carne” (chair).

Abordagem radical duplo sentido’, voltando Ser vertical

Finalmente, diante de tudo isso, há ou descendo até a vida A noção de carne recolhe essa cir-
evidentemente um secreto natal tam- cularidade na forma melhor. Ela con-
bém pelo caso do corpo humano. Não dos animais chamados siste “no enovelamento do visível so-
há qualquer fronteira precisa entre bre o corpo vidente, do tangível sobre
organização do corpo e comportamen- de máquinas” o corpo tangente”, constatável no
to: “o corpo é o lugar do comporta- fato de que “o corpo se vê, se toca
mento”. Um bebê prematuro só possui o mundo da vida e com a correlata vendo e tocando as coisas”. A carne
“um sono hesitante, difícil de distin- concepção da Natureza, recupera-se o não pode ser mais “matéria”, “espíri-
guir da vigília”: ele acaba adquirindo “aparecimento” da vida e do mundo to”, substância. A “atividade – declara
“o talento de dormir”. Temos, numa (natural, social, histórico) sem qual- o filósofo francês – é identicamente
palavra, a maturação do seu compor- quer resíduo dualista e reducionista. A passividade”: afirma-se uma ideia de
tamento simultaneamente ao caráter tutela desse secreto natal é conduzida ‘estrutura’ como nervatura do mun-
orgânico, uma relação inextricável en- até o nível ontológico. O “Ser bruto”, do, sendo juntura operativa de passi-
tre “o que é recebido e o que é dado”. dito também “selvagem” e “vertical”, vidade e atividade. O Leib vira ponto
Nessa dinâmica, há a conquista de uma conceito sobre o qual se assenta o pro- “cego”, em que a carne do sensível se
aptidão, da superação de uma simples jeto da ontologia merleau-pontyana, faz sentiente. Por consequência, o ver
repetição de um gesto, ponto de par- expressa novamente a relação entre não é exatamente o ver de quem está
tida da complexidade do mundo tan- o dado e o recebido, mas na forma “em movimento perspektivisch, como
to animal como humano. No caso da mais “radical” possível: o Ser verti- as outras coisas”, ou em um “espaço
existência humana, o corpo volta a ser cal ou selvagem, diz o filósofo, é “o geométrico”, mas apenas em relação
– depois de uma longa história de in- tecido comum de que somos feitos”. “vertical”, em relação de abraço com
feriorização – o lugar “eminente” des- Um exemplo, entre outros, do próprio o Ser. A “segregação”, com a qual te-
sa circularidade de relações, de uma filósofo: o cubo de seis faces iguais “só mos que lidar como uma espécie de
vida e de uma interrogação sobre a existe para um olhar não situado, para ‘fenômeno de espelho’, com o fato de
vida que se formam e se desenvolvem uma operação ou inspeção do espírito ser vidente e ao mesmo tempo de ser
“em espiral”, segundo uma “ascensão que ocupe o centro do cubo, para um objeto de visão, testemunha que “exis-
no próprio local”, como dizia sugesti- campo do Ser”. Contra essa presunção te uma visão total ou absoluta, fora da
vamente o filósofo. É à luz dessa abor- de um espírito portador do Ser que qual nada permanece”. Conduzindo
dagem “radical” que Merleau-Ponty exclui cada não ser, cada pertença, a fenomenologia ao seu extremo, ele
deve ser considerado um autor que ou seja, contra a “análise do pensa- declara: “Não somos nós que percebe-
prossegue a mudança da relação que mento reflexivo” que procede para a mos, é a coisa que se percebe lá em
passa entre o Ser e o homem, cujos “depuração” do Ser, é preciso voltar baixo”. Como não existe uma relação
vários “sintomas culturais” ele indivi- a descrever o Ser “já aí, pré-crítico”. ‘frontal’ entre corpo e mundo, temos
duava desde Descartes. Tutelando uma Assim, rebuscamos a “abertura para que rejeitar – diz Merleau-Ponty – “os
relação de abraço “radical” de Ser e o próprio cubo que é distanciamen- preconceitos seculares que colocam o
homem, segundo écart, Merleau-Ponty to, transcendência”: “dizer que tenho corpo no mundo e o vidente no corpo
tentou lidar com a complexa passagem uma visão do cubo é dizer que, per- ou, inversamente, o mundo e o corpo
das ordens físico-química e vital para cebendo-o, vou de mim a ele, saio de do vidente, como em uma caixa”.
a ordem humana, sem poder recair mim nele. Eu, minha visão, estamos A mesma coisa acontece natural-
em reducionismos e dualismos, nem com ele presos ao mundo carnal”. Isso mente a um nível de maior complexida-
simples sobreposições entre níveis, que dizer que “também minha visão e de, com a percepção de outrem. Com
formas, sistemas, fatores de relação. meu corpo emergem do mesmo ser que a segregação do sentiente e do sensí-
Na procura dessas novas relações, que é, entre outras coisas, cubo”. Estamos vel, os órgãos do meu corpo entram
passam de forma eminente entre Ser em face do fenômeno da “imbricação” em comunicação segundo uma “transi-
e homem, podemos nos aproximar aos (empiètement), a partir de um recí- tividade de um corpo a outro”. Saindo
inúmeros desafios da corporeidade. proco exceder do cubo e da percepção do modelo dualista e reducionista de
que tenho dele: “não me vejo vendo, sujeito e objeto, essa transitividade
IHU On-Line – Como se imbricam o mas por imbricação realizo o meu cor- marca a abertura de uma relação com
espírito selvagem e o ser bruto de po visível, prolongo meu ser-visto para o outro e o mundo não mais ‘frontal’,
Merleau-Ponty? O que significam es- além do meu ser-visível para mim”. mas ‘lateral’, ‘oblíqua’, ‘indireta’. O
ses conceitos? Em virtude do secreto natal, a Nature- Ser vertical é, portanto, a abertura
Fabio Di Clemente – Com a volta para de um “ambiente pré-espiritual sem o
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qual nada é pensável, nem mesmo o de uma vida que afirma um Ser não
espírito, e pelo qual nos interpenetra- parmenidiano, uma forma que escapa É preciso evitar dois erros, afirma
mos uns nos outros, e nós próprios em ao dilema do ser e do não ser, indu- Merleau-Ponty: “colocar detrás dos fe-
nós para possuirmos o nosso tempo”. zindo-nos a rever, dizia Merleau-Ponty, nômenos um princípio positivo (ideia,
Quer dizer que esse Ser vertical funda a “história confusa” da psyché, assim essência, enteléquia) e não ver de for-
o Espírito selvagem, o “princípio selva- como o “discurso confuso da história”. ma alguma um princípio regulador”.
gem do Logos”, o princípio que realiza Não há lugar para um dualismo metafí- Contra a duplicação da realidade sob
a lógica do sensível sob forma de uma sico alma/corpo, conforme pensamen- nossos olhos, que tanto o sistema de
coesão aconcentual. Abordado do lado to de Platão, apesar da complexidade Platão como de Aristóteles produz, é
da reabilitação da Natureza (acesso e da evolução que acompanha o pen- preciso “introduzir no organismo um
privilegiado à ontologia), o Ser selva- samento do fundador da Academia. Pa- princípio que seja negativo ou ausên-
gem vai ser o fundamento do ‘espíri- ralelamente, não há lugar sequer para cia”. A forma, como a vida, do animal
to’, a apresentação deste último na a visão teleológica de Aristóteles. Nos “não é a manifestação de uma finalida-
sua ‘pré-história’. Diante desse nível cursos sobre a Natureza, Merleau-Pon- de, mas, antes, de um valor existencial
de radicalidade, não surpreende que, ty comentava as pesquisas que mos- de manifestação, de apresentação”.
para Merleau-Ponty, só a filosofia nos tram como os animais expressam uma Trata-se de acompanhar a “instaura-
dá de volta tal pertença ontológica e força maleável, fazendo desvios, regu- ção de uma dimensão”, radicalizan-
que, ao mesmo tempo, as ciências (fí- lando e instituindo relações inéditas. do a ‘negação da negação’ diante do
sica, psicologia, biologia etc.) sejam Deve-se, portanto, criticar a assimila- próprio legado da dialética hegeliana,
compenetradas com questões “trans- ção da noção de vida à noção de utili- resgatando sempre o resíduo, o resto,
cendentais” e “ontológicas”. dade e de finalidade. Para um ser vivo, a excedência, a não coincidência, no
diz Merleau-Ponty, “condições exte- interior de uma relação. Entretanto,
IHU On-Line – Quais são os principais riores idênticas acarretam diferentes ressaltado tudo isso, eu não falaria de
pontos de ruptura desse pensador possibilidades de comportamento”. O pontos de ruptura. Cabe lembrar que a
com a filosofia grega? caranguejo, ele nota, utiliza o mesmo sagacidade merleau-pontyana, capaz
Fabio Di Clemente – Merleau-Ponty objeto (a anêmona do mar) para fins de buscar a excedência crítica numa
volta a falar de “elemento”, lembran- diferentes: “ora para camuflar sua ca- obra (filosófica, literária, artística,
do-nos a filosofia iônica. Isso também rapaça e proteger-se assim dos peixes, etc.), é fundamentada numa visão on-
não deve nos surpreender. O elemen- ora para alimentar-se, ora, se lhe re- tológica bem determinada. Nas notas
to, para os filósofos iônicos, tinha o tirarem a carapaça, para substituí-la”. preparatórias de um dos dois cursos
estatuto de pars totalis, que, como Consequentemente, “no organismo que ministrou no Collège de France,
tal, ultrapassava as divisões entre a vivo não podemos nem ‘platonizar’, o de 1960-1961, interpretando a tex-
parte e o todo, o individual e o uni- nem ‘aristotelizar’”. to de Heidegger, Introdução à meta-
versal, a existência e a essência, entre física (Lisboa: Instituto Piaget, 2000),
outras; ademais, para Merleau-Ponty, Sagacidade  Martin Heidegger (1889-1976): filósofo
não diferentemente da carne, ele não alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo
 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. (1927). A problemática heideggeriana é am-
é matéria, não é espírito, nem subs- Criador de sistemas filosóficos influentes até pliada em Que é Metafísica? (1929), Cartas
tância. O conceito de mundo merleau- hoje, como a Teoria das Idéias e a Dialética. sobre o humanismo (1947), Introdução à meta-
pontyano acaba representando tudo Discípulo de Sócrates, Platão foi mestre de física (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line
Aristóteles. Entre suas obras, destacam-se A publicou na edição 139, de 2-05-2005, o artigo
isso, enquanto “conjunto em que cada República e o Fédon. Sobre Platão, confira e O pensamento jurídico-político de Heidegger
‘parte’, quando a tomamos em si mes- entrevista As implicações éticas da cosmolo- e Carl Schmitt. A fascinação por noções fun-
ma, abre de súbito dimensões ilimita- gia de Platão, concedida pelo filósofo Prof. dadoras do nazismo, disponível para download
Dr. Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU em http://migre.me/uNtf. Sobre Heidegger,
das – torna-se parte-total”. Impõe-se On-Line, de 04-09-2006,disponível em http:// confira as edições 185, de 19-06-2006, intitula-
o “vínculo secreto” de uma relação migre.me/uNq3. Leia, também, a edição 294 da O século de Heidegger, disponível para do-
que atravessa, por exemplo, as asso- da Revista IHU On-Line, de 25-05-2009, inti- wnload em http://migre.me/uNtv, e 187, de
tulada Platão. A totalidade em movimento, 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A descons-
ciações do sonho. Esse vínculo secre- disponível em http://migre.me/uNqj. (Nota trução da metafísica, que pode ser acessado
to, complementar à lógica do secreto da IHU On-Line) em http://migre.me/uNtC. Confira, ainda, o
natal, do nascimento continuado, nos  Aristóteles de Estagira (384 a C. – 322 a. nº 12 do Cadernos IHU Em Formação intitula-
C.): filósofo nascido na Calcídica, Estagira, um do Martin Heidegger. A desconstrução da me-
tutela da presuntiva realidade plena dos maiores pensadores de todos os tempos. tafísica, que pode ser acessado em http://mi-
e determinada, resgatando novamen- Suas reflexões filosóficas — por um lado ori- gre.me/uNtL. Confira, também, a entrevista
te o resíduo, o resto, a excedência, ginais e por outro reformuladoras da tradição concedida por Ernildo Stein à edição 328 da
grega — acabaram por configurar um modo de revista IHU On-Line, de 10-05-2010, disponí-
a não coincidência, a saber, a trans- pensar que se estenderia por séculos. Prestou vel em http://migre.me/FC8R, intitulada O
cendência no interior de uma relação. inigualáveis contribuições para o pensamento biologismo radical de Nietzsche não pode ser
Merleau-Ponty tenta, assim, garantir humano, destacando-se nos campos da ética, minimizado, na qual discute ideias de sua con-
política, física, metafísica, lógica, psicologia, ferência A crítica de Heidegger ao biologismo
a autonomia da ordem do vivido, do poesia, retórica, zoologia, biologia, história de Nietzsche e a questão da biopolítica, parte
fenomenal. natural e outras áreas de conhecimento. É integrante do Ciclo de Estudos Filosofias da
Ora, em face dessa autonomia, considerado, por muitos, o filósofo que mais diferença - Pré-evento do XI Simpósio Inter-
influenciou o pensamento ocidental. (Nota da nacional IHU: O (des)governo biopolítico da
compreende-se ainda melhor a tese IHU On-Line) vida humana. (Nota da IHU On-Line)

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Merleau-Ponty ressaltou a tese segun- está na necessidade de conceber a expressa a “superação no próprio lu-
do a qual Platão, com toda a história vida apenas como uma “dobra”, como gar” (em espiral), não uma “negação
da filosofia, não é “simples ‘decadên- “a realidade de uma passagem”, e não lógica”, com a consequente impossibi-
cia’ respeito aos Pré-Socráticos”, que- como “uma espécie de quase interio- lidade de pensar o Aufheben sem “res-
rendo dizer que a “filosofia é a história ridade”. to”. Isso induziu o filósofo francês a
do ser e não a história das concepções Como mostra emblematicamente pensar como produzir uma autocrítica
do Ser”. o caso do axolotl, conforme pesquisas que fosse interna à dialética, falando
da anatomia do comportamento de de “hiperdialética”. Assim, em rela-
IHU On-Line – Qual é a relação entre George Ellett Coghill, Merleau-Ponty ção à dialética de Hegel e também de
fenomenologia e dialética hegeliana nota que “a maturação do organismo Marx, cujos escritos conduziam a vol-
no pensamento de Merleau-Ponty? e o surgimento do comportamento tar, após Primeira Guerra Mundial, à
Fabio Di Clemente – De um lado, con- constituem um só fenômeno. Para o questão do humanismo, Merleau-Ponty
siderando as primeiras pesquisas da axolotl, existir da cabeça até a cau- empreendeu o caminho da “paciên-
estrutura do comportamento (a época da e nadar são uma só e mesma coisa. cia do conceito”, para poder pensar o
em que Merleau-Ponty não tinha ainda Trata-se de “um duplo fenômeno que “conceito sem destruí-lo” - conforme
um conhecimento da obra de Husserl), não passa de um único”: de um lado, pensamento de Husserl - nas várias
a dialética hegeliana serviu para en- “no início, o animal não habita todo áreas (da ciência até as artes plásti-
tender o surgimento das várias formas seu corpo e só pouco a pouco a con- cas, a literatura, o cinema).
de comportamento, na relação não duta se desenvolve através do corpo
totalizada de ordem física, vital e psí- todo. De outro lado, ao mesmo tem- IHU On-Line – Até que ponto pode-
quica; ademais, em nível ontológico, po em que o padrão (pattern) total se mos dizer que somente a partir dos
a dialética tornou-se um instrumento propaga através de todo o organismo, ensaios de Signos e do livro póstumo
útil à crítica do Ser como “positividade as partes do organismo adquirem uma O visível e o invisível encontramos
simples” e do “Ser posto de um pensa- uma ontologia radical que acertou as
mento”. De outro lado, trabalhando contas com a fenomenologia husser-
sobre a fenomenologia, em particular, “Com Merleau-Ponty, liana e a ontologia heideggeriana?
sobre a ‘impossibilidade de uma re- Fabio Di Clemente – A questão é mui-
dução completa’, o filósofo consolida podemos combater o to complexa. Em primeiro lugar, como
e radicaliza a tese de uma vida e de expliquei, não convém falar de “acer-
uma interrogação sobre a vida que são corpo que foi e é objeto tamentos de contas” na abordagem
sempre ‘mais ou menos integradas’. merleau-pontyana da história da filo-
Se a percepção vira visão, marcando o da biopolítica” sofia, das ciências e dos outros sabe-
quiasma sentiente-sensível; se a noção res, e tampouco em face da grande
de carne nos deixa sair radicalmente existência que lhes é própria e isso na herança husserliana e heideggeriana.
da relação cognoscitiva sujeito/obje- mesma ordem em que elas são inva- Em relação a Husserl, paralelamente à
to e, especificamente, da relação ple- didas pelo padrão total. A vida escon- radicalização da dialética hegeliana, a
na, determinada entre o “para si” e o de-se na mesma medida em que se re- fenomenologia é interpretada à luz da
“em si”, assim como entre o “Ser” e o aliza”. Essa dificuldade, que se torna impossibilidade de uma redução com-
“Nada”, a dialética hegeliana precisa ao mesmo tempo uma necessidade de pleta. Em O visível e o invisível, com
ser abordada de forma ‘radical’. Que- situar-se no nível do axolotl, a saber, a crítica das filosofias de Espinosa e de
rendo-se permanecer no âmbito da de apreender o mistério da vida, con- Kant, a tutela da ordem antidualista
interpretação filosófica das pesquisas duz a criticar, depois da distinção aris- e antirreducionista define a “análi-
biológicas, o “trabalho do negativo” totélica de potência e ato, também a se reflexionante” como “ingênua” na
não faz mais da negação um “sujeito”, distinção hegeliana do “em si” e do medida em que “dissimula seu pró-
no sentido – esclarece o filósofo – em “para si”: como testemunha o axolotl, prio movente”: a evidência segundo a
que Hegel diz que “‘o Absoluto é sujei- esclarece Merleau-Ponty, “a vida não qual é preciso pressupor a “noção do
to [...]. A negação não seria sinônimo é ainda Espírito em si. Reencontramos mundo” para constituí-lo como mundo
de irrealidade ou de princípio que se em Hegel a mesma ilusão retrospecti- pré-constituído. Por trás do originário
possa fazer trabalhar, mas de princípio va que em Aristóteles”. O fato é que, e do derivado, “há um pensamento em
que teria de ser, antes, reconhecido para Merleau-Ponty, o Absoluto hege- círculo onde condição e condicionado,
como desvio”, como um “deslizamento liano, pensado ainda “nos termos de reflexão e irrefletido estão em uma
do princípio regulador”. A dificuldade, Bewusstsein”, não alcança o Ser como relação recíproca, senão simétrica,
declara Merleau-Ponty, mencionando “manifestação de Si, desvendamento, e onde o fim está no começo como o
nesse contexto crítico Whitehead, no ato de fazer-se”. Procedendo além começo está no fim”. Dessa ‘origina-
 Alfred North Whitehead (1861-1947): fi-
do Absoluto hegeliano, a ontologia da riedade’, desse ‘paradoxo’ do conhe-
lósofo e matemático inglês. Com Bertrand carne, refinada com a noção de écart, cimento, deve responder também e,
Russel, escreveu Principia Mathematica. Ele sobretudo, a fenomenologia husserlia-
também desenvolveu a chamada Teologia do � George E. Coghill (1872-1941): anatomista
Processo. (Nota da IHU On-Line)
��������� americano. (Nota da IHU On-Line)
na: o fato de obter-se por meio da me-

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 35


todologia fenomenológica (como nos da prisioneiro do plano da correlação cia Max Scheler, Helmuth Plessner,
lembra a epoché, a redução, a inten- noético/noemática. Ademais, como Arnold Gehlen, alimentou-se da cons-
cionalidade) a revalorização de uma acrescentei em meu ensaio Corpo e ciência de dever entender o âmbito
teoria transcendental que, ao mesmo conhecimento em Merleau-Ponty, é do orgânico para poder entender tam-
tempo, não pode perder a tensão com preciso interrogar-se se no pensamen- bém a especificidade da vida humana.
o sujeito que está radicado no mun- to husserliano permanece um resíduo De Scheler, Merleau-Ponty sublinha a
do, isto é, com o sujeito que reproduz de atitude egológica, diante das sen- tentativa de superar o dualismo entre
intrinsecamente a impossibilidade de sações de movimento pensadas sob a consciência de si e consciência de ou-
ser ‘reduzido’ completamente, total- forma meramente egológica. Como trem. Plessner toma o tema do corpo
mente a uma formalização transcen- escreve Husserl em Ding und Raum, as humano para superar as oposições de
dental. sensações de movimento “pertencem alma/corpo, espírito/vida e marcar
ao elemento imediatamente egológi- uma diferença com o corpo do animal,
Estrabismo fenomenológico co”, a saber, elas são a condição de chegando a falar de “excentricidade”
possibilidade para a passagem da pas- da vida do homem. Mesma tentativa
Essa instância crítica, que Merleau- sividade à atividade sem representar de superação desses dualismos temos
Ponty tutela com a ideia de ‘estrutu- uma componente hilética. em Gehlen. Como sabemos, trata-se
ra’, juntura operativa de passividade de temas centrais na obra merleau-
e atividade, produtora de uma “inte- Polimorfismo do Ser pontyana, conjuntamente às questões
ligibilidade ao estado nascente” (con- mais amplas da análise científica da na-
forme releitura da noção de Gestalt), Em relação à filosofia de Heideg- tureza e da abordagem das chamadas
pode medir a relação crítica instituída ger, restrinjo-me a destacar que, além ciências do homem. Entretanto, cabe
com Husserl. Segundo o filósofo francês da possível confrontação crítica sobre destacar que esses temas são alimen-
(veja-se o Curso do Collège de Fran- temas específicos (vida, animalidade, tados também por uma ‘reação’ contra
ce sobre a Natureza de 1956-1957), relação entre corpo e linguagem, ci- o surgimento das ciências do homem,
o Husserl das Ideen II oscilaria entre ência e filosofia, entre outras) e da re- com as tentações, apontadas por Ha-
“duas direções: de um lado, a ruptu- visitação de alguns temas heideggeria- bermas, de subordinar essas proble-
ra com a atitude natural ou, de outro nos (Seinsfrage, Ereignis, Aletheia) na máticas ao destino do ser (Heidegger),
lado, a compreensão desse fundamen- interrogação de Merleau-Ponty, este à redenção divina (Bultmann10), à ab-
to pré-filosófico do homem. O irrefleti- último qualifica a ontologia de Heide-  Max Scheler (1874-1928): conhecido como
do, nele, não é nem mantido tal qual, gger nos termos de uma ontologia cur- o filósofo dos valores. Nasceu em uma famí-
lia judaica. Na sua juventude converteu-se ao
nem suprimido, continua sendo um ta, criticando-a por ser uma “expres- catolicismo, do qual se foi gradualmente dis-
peso e um trampolim para a consciên- são direta do ser”. A ‘ambiguidade’ tanciando depois de 1923, aproximando-se de
cia”. O problema é que temos, confor- da subjetividade merleau-pontyana um panteísmo inspirado em Spinoza e Hegel.
Ensinou nas Universidades de Iena, Munique e
me palavra do próprio Merleau-Ponty, requalifica-se como lugar eminente da Colônia. De suas obras destacamos O lugar do
certo “estrabismo” na fenomenologia. ordem do ‘paradoxo’: a incorporação, homem no mundo. (Nota da IHU On-Line)
O “irrefletido desempenha o papel de o fato que no corpo se forma a “não  Helmuth Plessner (1892-1985): filósofo e so-
ciólogo alemão, um dos fundadores da antro-
um fundante e de um fundado; refletir coincidência”, a relação de “trans- pologia filosófica. (Nota da IHU On-Line)
é, então, desvelar o irrefletido”. Por- cendência” entre o organismo e o am-  Arnold Gehlen (1904-1976): sociólogo e filó-
tanto, “a fenomenologia denuncia a biente, significa que o corpo mesmo se sofo alemão. (Nota do IHU On-Line)
 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão,
atitude natural e, ao mesmo tempo, torna lugar da “intraontologia”, do de- principal estudioso da segunda geração da Es-
faz mais do que qualquer outra filoso- senvolvimento da “topologia do Ser”. cola de Frankfurt. Herdando as discussões da
fia por reabilitá-la”. Nessa sede, não Por consequência, é preciso entender Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação
comunicativa como superação da razão ilumi-
podemos entrar na correlata relação que a ontologia merleau-pontiana é nista transformada num novo mito que enco-
problemática entre as duas ‘reduções’ uma ontologia ‘indireta’, que tutela, bre a dominação burguesa (razão instrumen-
husserlianas, nem na atribuição de a meu ver, uma ‘vocação ontológica da tal). Para ele, o logos deve contruir-se pela
troca de idéias, opiniões e informações entre
prioridade às sensações táteis em Hus- subjetividade’ capaz, como tal, de re- os sujeitos históricos estabelecendo o diálogo.
serl – prioridade que Merleau-Ponty alizar o “polimorfismo” do Ser. Seus estudos voltam-se para o conhecimento e
não aceita. a ética. Confira no site do IHU, www.unisinos.
br/ihu, editoria Notícias do dia, o debate en-
Sem poder abordar tudo isso e le- IHU On-Line – É correto apontar tre Habermas e Joseph Ratzinger, o Papa Bento
vando em conta o fato de que Husserl, ressonâncias de uma antropologia XVI. Habermas, filósofo ateu, invoca uma nova
ao ver do filósofo francês, seria “cada filosófica no referencial de Merleau- aliança entre fé e razão, mas de maneira di-
versa como Bento XVI propôs na conferência
vez mais consciente da identidade des- Ponty? Por quê? que realizou em 12-09-2006 na Universidade
sas duas direções”, assim como seria Fabio Di Clemente – Em extrema sínte- de Regensburg. (Nota da IHU On-Line)
consciente do caráter englobante da se, a antropologia filosófica do século 10 Rudolf Bultmann (1884-1976): teólogo ale-
mão. Ocupou-se com muitos temas da teolo-
Natureza, contemplado até mesmo as XX, que teve como pontos de referên- gia, filologia e arqueologia. Levantou questões
“sínteses não egológicas”, cabe frisar importantes que dominaram a discussão teo-
que, na ótica merleau-pontyana, o pai lógica do século passado e são relevantes até
hoje, como, por exemplo, o famoso problema
da fenomenologia permaneceria ain- da demitologização. Entre suas obras está

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solutização ou ao necessaritarismo de
categorias (Gehlen) que, ao invés, se-
“O fato é que o ‘ideal’ regras, as normas que a política, a éti-
ca e o direito expressam devem voltar
riam apenas historicamente determi-
nadas. Há também em Scheler, pensa
que desejamos colocar a ser essencialmente a tentativa de
tradução, constitutivamente inesgo-
o próprio Merleau-Ponty, a subordina-
ção das “particularidades fisiológicas
no organismo não pode tável e imperfeita, da nossa pertença
ontológica, em que se afirma a neces-
ou históricas individuais” ao conheci-
mento de uma essência.
ser separado da sua sidade de conceber a vida - nos ensina
o caso do axolotl - como uma “dobra”,
Então, podemos dizer que há resso-
nâncias de uma antropologia filosófica
atividade” como “a realidade de uma passagem”,
onde tutelar nexo irredutível de vida e
no referencial da obra de Merleau-Pon- leau-pontiana libera a autonomia do norma (em sentido amplo).
ty, mas é preciso logo esclarecer que “fenômeno vida”, com a tentativa de
a obra merleau-pontyana não desliza pensar uma norma (tanto do lado in- IHU On-Line – A partir das concep-
nas tentações apontadas acima. Além traorgânico como do comportamento, ções de biopolítica e bioética, quais
disso, diante da profunda atenção para tanto do campo observado como do são as possíveis críticas que pode-
as pesquisas biológicas reservada por observador) conjuntamente ao sur- mos levantar à reflexão de Foucault
esses representantes da antropologia gimento e desenvolvimento da vida. e Agamben?
filosófica, a leitura merleau-pontyana Produz-se uma ótica radicalmente an- Fabio Di Clemente – Como notou Rober-
sobre o nexo entre vida, organismo e tirreducionista e antidualista também to Esposito, na obra Bíos. Biopolítica e
meio ambiente procede, ultimamen- pela relação de vida e política, assim filosofia (Lisboa: Edições 70, 2010), de
te, na direção de uma resistência da como de vida e ética. A lógica do se- um lado, o mérito de Foucault foi ter
mesma biologia a cada formalização creto natal, que deixa a vida como re- recuperado a centralidade do viver em
transcendental, última, eidética. Isso fratária a uma normativização, ‘plena’ si mesmo, na sua ‘exposição’ ao poder,
se reflete na ideia de organismo. Sa- e ‘determinada’, sendo ‘não coinci- quebrando os ‘binarismos’ do pensa-
lientamos que o organismo animal dência’, lugar de uma ‘ausência’, nos mento filosófico, político, jurídico, éti-
não é somente Körper diante do Leib dá de volta uma ideia de comporta- co e liberando os efetivos mecanismos
humano. Também os animais, afirma mento como “oscilação” ao redor de de funcionamento do poder frente à
Merleau-Ponty nas notas preparatórias uma norma (conforme pensamento de vida; de outro lado, a retomada desse
do primeiro curso do Collège de Fran- George Canguilhem11), veículo de uma âmbito da vida, que procede além das
ce de 1958-1959, são “portadores de ‘abertura de ser’, segundo empiète- correspondentes “alternativas topoló-
Psyché”: nós “praticamos Einfühlung ment e écart. Então, com Merleau- gicas que definiam a dialética interna
em direção a eles”. De forma mais ex- Ponty, podemos combater o corpo que à relação entre súditos e soberano”,
tensa, afirma-se uma relação como di- foi e é objeto da biopolítica. Como não é acompanhada de uma reflexão
ferença, diferença que se realiza sob reconstruiu o filósofo italiano Roberto estritamente epistemológica e ontoló-
forma de “Einfühlung generalizada” Esposito12, trata-se de um corpo desti- gica sobre o conceito de vida. Na falta
entre o nosso corpo, os animais, as natário de uma “intenção imunitária” desse ganho crítico, Foucault perma-
plantas, as coisas; uma relação como da política, enquanto considerado “lu- neceria prisioneiro da oscilação entre
Ineinander, “relação lateral, oblíqua”. gar privilegiado do desdobramento da uma “política da vida” e uma “política
Com essa topologia do Ser, ‘universal vida”, de um “binarismo” entre cres- sobre a vida”. Ora, o conceito de vida
vertical’, o filósofo francês quis reco- cimento e consumação, vida e morte. merleau-pontyano escapa, como vi-
locar a formação do conhecimento a Correlativamente, o corpo da bioéti- mos, dessa alternativa; ademais, aju-
partir de um ‘nível de ser operante’, ca, a meu ver, também foi e é objeto da-nos a entender que o poder sobre a
em que o problema da “Filogenia” é o de uma paralela intenção imunitária: vida’ (“biopolítica crítico-negativa”),
problema da “arquitetônica”, de uma trata-se de uma proteção e de um de- a biopolitização que produziria até
arquitetônica “não só do indivíduo, senvolvimento da vida que produzem mesmo a indistinção, a indiferencia-
mas da biosfera ou do mundo da vida: novamente uma proteção negativa da ção de zoé e bíos (do fato biológico de
é ainda mais claramente um problema vida, a saber, de um mecanismo que, viver e do viver modalizado dentro do
ontológico do que embriológico. com o escopo de proteger a vida, aca- mesmo fato biológico de viver), con-
ba negando-a em relação à sua per- forme pensamento de Agamben, seria
IHU On-Line – Qual é o enlace entre tença ontológica. expressão de uma forma de reducio-
biopolítica e bioética na fundamen- Pelo contrário, o Ser merleau-pon- nismo entre o fenômeno biológico da
tação do conceito de vida merleau- tyano entra na dimensão interrogati- vida e a juntura de saber e poder.
pontyano? va, em virtude da qual princípios, as Aproveito para frisar também os li-
Fabio Di Clemente – Sem poder entrar mites de uma ‘biopolítica afirmativa’
11 Georges Canguilhem (1904-1995): filósofo
em detalhes sobre toda essa ampla francês, membro do Collège de France, espe- (o ‘poder na forma da vida’), defen-
questão, lembro que a reflexao mer- cializado em filosofia da ciência e no estudo da dida por Roberto Esposito em alterna-
normatividade. (Nota da IHU On-Line) tiva a essa biopolítica negativa. Res-
Jesus Cristo e mitologia (São Paulo: Editora. da IHU
������������������������������������������
em filosofia moral e política. (Nota
���������
Novo Século, 2000). (Nota da IHU On-Line) On-Line) salvado o mérito de Esposito de ter

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 37


pensado a norma não “sobre a vida” ao falar de “sujeito encarnado” (Sub- nomenologia da percepção: o sujeito é
e nem mesmo “a partir da vida”, mas jektleib), Merleau-Ponty não acaba “originariamente consciência motriz”,
sim “na vida”, acredito, contudo, que liberando sequer “dois movimentos” enquanto no corpo está o “mover-se
se deva respeitar a perspectiva endo- que permaneceriam “contraditórios”, a si mesmo”. Se a carne consiste “no
ontológica merleau-pontyana: trata-se focados, ao invés, por uma outra litera- enovelamento do visível sobre o cor-
de proceder além do mesmo retorno à tura crítica (veja-se Renaud Barbaras): po vidente, do tangível sobre o corpo
vida, que, ao afirmar a dimensão ‘im- um relativo a um “sujeito mensurante tangente, constatável – como desta-
política’ da carne (conforme palavra as coisas” (“abordagem transcenden- quei precedentemente – no fato que
de Esposito), acaba deixando, a meu tal”), outro de um “sujeito encarnado “o corpo se vê, se toca vendo e tocan-
ver, o corpo privado de um ‘vínculo como testemunho ontológico” (“an- do as coisas”, então – afirma coeren-
transcendental’. Com efeito, a ques- tropomorfismo ontológico”). Essas di- temente o filósofo francês – é o corpo
tão central merleau-pontyana é aquela ficuldades de interpretação da relação que acaba de “descer entre as coisas
de enraizar a ‘exposição’ constitutiva “em duplo sentido” entre fundante e como tangível e, ao mesmo tempo,
da vida dentro do écart estabelecido fundado abarcam também a literatura dominá-las”, no sentido de “extrair de
entre a carne do corpo e a carne do dominante, que pretende confinar o si próprio essa relação” e “mesmo essa
mundo, assim como entre seres e Ser, Merleau-Ponty da década de 1940 den- dupla relação”, por “deiscência ou fis-
e não apenas dentro da carne como tro da insatisfação pelos seus escritos, são da sua massa”. Se é essa a correla-
noção última (ontológica, histórica, para poder dar brilho aos outros es- ção buscada entre o sensível em geral
cultural, etc.). critos da década de 1950. Trata-se de e o sentiente, “incorporada” no Leib,
um primeiro período de escritos que enquanto sensível que sente sentir e,
IHU On-Line – Gostaria de acrescen- pressupuseram – conforme palavra dessa forma, enquanto “interioridade”
tar algum aspecto não questionado? do mesmo Merleau-Ponty, remarcada carnal, o sentiente pertencente a um
Fabio Di Clemente – Gostaria de des- até as Notas de trabalho – a distinção nível de ser é, como dissemos, ainda
tacar, sinteticamente, que o conceito “cosciência/objeto”, como ‘ponto de ‘subjetividade’.
de corpo merleau-pontyano não se partida’, e de um segundo período de
presta à preocupação derivante da escritos direcionados para as noções Arquitetônica da biosfera
definição de Leib como ‘corpo vivo’, ontológicas de visão, Natureza, carne,
contra a de ‘corpo próprio’; preocu- Ser, entre outras. Ora, se é evidente e A fecundidade da posição de Merle-
pação que tiveram alguns ilustres pen- dominante a ‘novidade’ da radicaliza- au-Ponty pode ser abordada dentro da
sadores (Jacques Derrida13, Jean-Luc ção ontológica das pesquisas da Estru- capacidade de recuperar o pertenci-
Nancy14, entre outros), levantando tura do comportamento e da Fenome- mento do homem ao Ser, remontando
também críticas à instância de ‘unida- nologia da percepção, entre outras, a até a arquitetônica da biosfera ou do
de’ merleau-pontyana. Igualmente, o partir dos escritos da década de 1950, mundo da vida, acabando por recupe-
Leib merleau-pontiano não padece de menos evidente e dominante é a pri- rar, ao final, o vínculo ‘transcendental’
um dualismo de volta de corpo vivido/ mazia do Ser, que esses escritos deve- da mesma ‘subjetividade’, sem dua-
corpo objetivo, alimento de uma ideia riam fundamentar em detrimento do lismos e sem reducionismos, sem so-
corpocêntrica, reducionística (em sen- corpo (reduzido emblematicamente breposições, nem diplopias. Portanto,
tido amplo), segundo a qual o corpo ou a um ser ‘passivo’, ou a um objeto a ‘fenomenologia da percepção’ não
seria, maçica ou unilateralmente, a de dois ‘movimentos contraditórios’). é superada sem ‘resto’, sem eminen-
condição de possibilidade da ‘apari- Se quisermos entender o que está temente o vínculo transcendental do
ção’ e ‘medida’ das coisas. Além disso, efetivamente em jogo com um corpo Leib nas obras marcadamente ontoló-
13 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo fran- que precisa escapar não apenas ao re- gicas. Levando em conta a quantidade
cês, criador do método chamado desconstru-
ção. Seu trabalho é associado, com frequência, ducionismo e dualismo que emprenha de folhas (mais de 4000) que o filósofo
ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. a noção de Körper (corpo-coisa), mas francês nos deixou (apenas uma parte
Entre as principais influências de Derrida en- também a alternativa entre ‘o pró- resulta publicada), indicadora também
contram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger.
Entre sua extensa produção, figuram os livros prio’ e o ‘vivido’, ou, de forma exten- de um consistente amadurecimento da
Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 1973), sa, entre o fundado e o fundante, é sua interrogação, sinto-me propenso a
A farmácia de Platão (São Paulo: Iluminuras, preciso levar a sério toda a espessura afirmar que a passagem da ‘fenomeno-
1994), O animal que logo sou (São Paulo:
UNESP, 2002), Papel-máquina (São Paulo: Esta- crítica contida na análise fenomenal- logia da percepção’ para a ‘ontologia
ção Liberdade, 2004) e Força de lei (São Paulo: ontológica do corpo: ao colocar todos da carne’ não pode ser lida como uma
WMF Martins Fontes, 2007). Dedicamos a Der- os seus órgãos em relação a uma “in- ruptura, nem como um ‘ultrapassar
rida a editoria Memória da IHU On-Line edição
119, de 18-10-2004, disponível para download fraestrutura” ontológica, de um nível sem resto’, em que cada grau não per-
em http://migre.me/s8bA. Em 09-06-2011, MS de Ser, em que tudo opera de forma manece pressuposto. Evidentemen-
Verónica Pilar Gomezjurado Zevallos, da Uni- carnal concêntrica, e não mais em te, cabe aplicar ao desenvolvimento
versidade de Caxias do Sul – UCS falou no IHU
Idéias sobre Derrida e a Educação: o aconteci- termos de meras “funções”, nem de da obra merleau-pontyana a ideia de
mento do impossível. Maiores informações em relação entre “o conteúdo e a forma”, dialética rumo à hiperdialética, tão
http://bit.ly/k0ffe9. (Nota da IHU On-Line) Merleau-Ponty não esquece, coerente- defendida pelo próprio pensador fran-
14 Jean-Luc Nancy (1940): filósofo francês.
(Nota da IHU On-Line) mente, o que tinha intuído desde a Fe- cês.

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Fenomenologia e etnomatemática: para além das
grades da gaiola
Formas transdisciplinares não redutíveis aos “preceitos das disciplinas tradicionais”, essas
duas maneiras de ver o mundo são examinadas por Ubiratan D’Ambrosio. A Merleau-Ponty
cabe a aproximação entre fenomenologia e existência, pondera

Por Márcia Junges

“H
á um diálogo entre a maneira fenomenológica de ver o mundo e a maneira etnomate-
mática de ver o mundo. Ambas essas maneiras são transdisciplinares, isto é, não estão
‘engaioladas’ nos preceitos das disciplinas tradicionais”. A afirmação é do matemático
Ubiratan D’Ambrosio na entrevista, concedida por e-mail, à IHU On-Line. Segundo o
pesquisador, Merleau-Ponty, um de seus grandes referenciais intelectuais, “aproxima
fenomenologia e existência”. E acentua: “De Merleau-Ponty apreendi principalmente que o real é o comple-
xo de fatos e fenômenos muitos surpreendentes”. D’Ambrosio aponta que um aspecto pouco explorado na
matemática é a psicanálise, amplamente estudada por Merleau-Ponty: “Gostaria de estimular filósofos da
matemática a darem mais atenção à psicanálise. A matemática é a expressão de uma forma de ver o mundo,
de uma visão pessoal e de experiências próprias, e pode não estar subordinada à formalização que é, muitas
vezes, equivocadamente identificada com matemática”.
Ubiratan D’Ambrosio é doutor em Matemática pela Universidade de São Paulo – USP e professor emérito
da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Foi internacionalmente agraciado com a “Medalha Felix
Klein” (Educação Matemática/ICMI/IMU), com a “Medalha Kenneth O. May” (História da Matemática/ICHM/
IMU). Foi presidente da Sociedade Brasileira de História da Matemática - SBHMat e do International Study
Group on Ethnomathematics - ISGEm além de ser presidente de honra da Sociedade Brasileira de História da
Ciência - SBHC. Atualmente é professor do Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática da Univer-
sidade Bandeirante – Uniban e professor credenciado nos programas de pós-graduação em Educação Matemá-
tica da Faculdade de Educação da USP e da Universidade Estadual Paulista/Rio Claro – Unesp e em História
da Ciência da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Dentre suas publicações, destacam-se
Transdiciplinariedade (São Paulo: Palas Athena, 1997); Etnomatemática. Elo entre as Tradições e a Moder-
nidade (Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001); Uma história concisa da matemática no Brasil (Petrópolis:
Vozes, 2008); e Educação para uma Sociedade em Transição (Natal: UFRN, 2011). Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como se deu o conta- ras, constituíram o caldo intelectual meu modelo de conhecimento, que
to e a aproximação de seus estudos inconsciente, uma expressão usada, chamo “Da realidade à ação”, cada
com a obra de Merleau-Ponty? num contexto semelhante, por Pier- indivíduo é parte da realidade e é
Ubiratan D’Ambrosio – Nos meus re Lévy, no qual minhas ideias fo- impactado e informado por fatos e
anos de formação, em matemática, a ram sendo “cozidas”. Destaco ideias fenômenos. Como cada indivíduo
leitura de Husserl foi muito natural. sobre necessidades e vontade, sobre processa essa informação, como age
Daí ler Heidegger e Merleau-Ponty viver, observar, sentir, desejar. No e com quais objetivos, qual sua in-
foi consequência e me levou a outros  Pierre Lévy (Tunísia, 1956) é um filósofo da
tenção, são as perguntas diretrizes
autores na linha da fenomenologia e informação que se ocupa em estudar as intera- desse modelo. Claramente, esse en-
do existencialismo, em sentido am- ções entre a Internet e a sociedade. É autor de foque tem muito a ver com aquilo
inúmeras obras, como Cibercultura (São Pau-
plo. Naturalmente, essas leituras não lo: Editora 34, 1999); O que é o Virtual (São
que foi acumulado no que eu chamei
tinham um objetivo imediato, mas, Paulo: Editora 34, 1996) e As Tecnologias da de caldo intelectual.
juntamente com muitas outras leitu- Inteligência (Rio de Janeiro: Editora 34, 1993).
(Nota da IHU On-Line)

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IHU On-Line – Qual é a relação da “A fenomenologia e a ção da pulsão de sobrevivência, e de
fenomenologia com a etnomatemá- ir além da sobrevivência, transcen-
tica? etnomatemática são dendo necessidades e incorporando
Ubiratan D’Ambrosio – A etnoma- explicações e desejos. Os saberes
temática depende inicialmente de
descrever as coisas para, em segui-
maneiras nas tradições orientais ou ocidentais,
ou setentrionais ou meridionais, ou
da, explicar e entender. O descrever
é tipicamente fenomenológico. A et-
transdisciplinares, isto equatoriais, são resultados da res-
posta às pulsões de sobrevivência e
nomatemática reconhece que o ser
humano procede, na construção de
é, além das disciplinas, de transcendência, de necessidades
e vontades, e esses saberes e faze-
sistemas teóricos, a partir do reco-
nhecimento de fatos e fenômenos à
além das grades de uma res refletem, numa relação simbió-
tica, experiências e memórias, que
ação com alguma intenção. gaiola, de reconhecer, são naturalmente fenomenológicas e
existenciais.
IHU On-Line – Em que aspectos há entender e explicar
um diálogo transdisciplinar entre IHU On-Line – Gostaria de acres-
esses saberes e o que eles apontam fatos e fenômenos” centar algum aspecto não questio-
de positivo sobre a intersecção do nado?
conhecimento? Ubiratan D’Ambrosio – Vou comen-
Ubiratan D’Ambrosio – A pergunta tudo o quero dizer sobre a maneira tar justamente sobre a questão an-
revela uma concepção de transdisci- de ser no mundo. Por isso uma das terior. Há duas dicotomias insusten-
plinaridade como uma disciplina ou leituras que recomendo aos meus táveis numa questão que deveria ser,
uma metodologia. A fenomenologia alunos é Merleau-Ponty. O básico é fenomenológica e existencialmente,
e a etnomatemática são maneiras que ele nos dá a mensagem que no muito abrangentes. De fato, esta-
transdisciplinares, isto é, vão além mundo, onde quer que estejamos in- mos falando de humanidade – toda
das disciplinas, além das grades de seridos, há sempre algo para se ver e uma espécie – e de experiências e
uma gaiola, de reconhecer, entender se dizer. Melhor que qualquer outro, memórias individuais que, sociali-
e explicar fatos e fenômenos. Merleau-Ponty aproxima fenomeno- zadas, constituem saberes e fazeres
logia e existência. de grupos, muitas vezes formados
IHU On-Line – A transdisciplinari- por apenas dois indivíduos e outras
dade entre fenomenologia e et- IHU On-Line – Que outras contribui- vezes por populações. Esses saberes
nomatemática representa uma ções a filosofia de Merleau-Ponty e fazeres estão presentes em uma
alternativa para as “gaiolas epis- oferece para o diálogo com a ma- variedade de tradições orientais e
temológicas”, às quais o senhor se temática? ocidentais, mas também setentrio-
referiu em entrevista concedida à Ubiratan D’Ambrosio – Uma verten- nais, meridionais e equatoriais, sim-
nossa revista em 2005? Por quê? te pouco explorada na matemática plificando para cinco essas classifi-
Ubiratan D’Ambrosio – Não faz sen- tem sido a psicanálise, que foi trata- cações. De Merleau-Ponty apreendi
tido a expressão “transdisciplinari- da exemplarmente por Merleau-Pon- principalmente que o real é o com-
dade entre”. Há um diálogo entre ty. Gostaria de estimular filósofos da plexo de fatos e fenômenos muitos
a maneira fenomenológica de ver o matemática a darem mais atenção à surpreendentes. O indivíduo procura
mundo e a maneira etnomatemática psicanálise. A matemática é a ex- descrevê-los conforme sua percep-
de ver o mundo. Ambas essas ma- pressão de uma forma de ver o mun- ção e seu imaginário. O homem está
neiras são transdisciplinares, isto é, do, de uma visão pessoal e de expe- nesse real e é nesse real que ele
não estão “engaioladas” nos precei- riências próprias, e pode não estar se conhece. Esse real é planetário,
tos das disciplinas tradicionais. subordinada à formalização que é, como são, consequentemente, os sa-
muitas vezes, equivocadamente beres e fazeres distintos. É impreci-
IHU On-Line – Qual é a importância identificada com matemática. so, incompleto e pode causar muita
da compreensão de Merleau-Ponty confusão reduzir essa complexidade
de que é preciso considerar o or- IHU On-Line – Como percebe o di- simplesmente falando em tradições
ganismo como um todo para se des- álogo entre esses dois saberes nas oriental e ocidental.
cobrir o que se seguirá a um dado tradições ocidental e oriental?
conjunto de estímulos? Quais são os principais pontos de
Ubiratan D’Ambrosio – Compreen- aproximação entre filosofia e ma- Leia Mais...
der Merleau-Ponty é compreender temática?
>> Confira outra entrevista concedida por
 Confira a entrevista concedida por Ubiratan
Ubiratan D’Ambrosio – Acredito que Ubiratan D’Ambrosio à IHU On-Line
D’Ambrosio intitulada A visão engaiolada do o pensamento é uma somatória de * A visão engaiolada do mundo. Edição número
mundo. Edição número 153, de 29-08-2005, experiências, de busca de satisfação 153, de 29-08-2005, disponível em http://migre.
disponível em http://migre.me/600Vq. (Nota me/600Vq
da IHU On-Line)
de necessidades, isto é, da satisfa-

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Um autor em diálogo com o mundo contemporâneo
Perseguido junto com Sartre por apoiar a Guerra da Argélia contra a França, Merleau-Ponty
tem obra vasta e atual. Luiz Augusto Passos conta quais são as relações entre a fenomenologia
do pensador francês e Paulo Freire nos movimentos sociais brasileiros na década de 1980

Por Márcia Junges

U
m autor a ser revisitado e que estabelece diálogos entre diversas correntes filosóficas e cientí-
ficas. Assim é Merleau-Ponty, assinala o professor Luiz Augusto Passos, em entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line. Esse autor denuncia a pedagogia “adultocêntrica” e que não tem
ouvidos e olhos para entender a criança, apontando que os pequenos vivem o mundo nele mergu-
lhados por todos os poros. Merleau-Ponty “cultiva teimosia quase obsessiva de voltar sempre ao
início, de fazer perguntas instigantes e de promover tremores de terra nas áreas já pacificadas, na suspeita
de que é necessário uma hipercrítica. Nesse sentido, numa época em que se retornam a evidências ‘esta-
belecidas’ ou à deificação das ‘incertezas’ como caminho e prática individuais ou sociais, é bom revisitar
Merleau-Ponty”.
Passos possui graduação em Filosofia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Nossa Senhora Me-
dianeira, São Paulo; graduação em Teologia pelo Colégio Máximo Cristo Rei, de São Leopoldo, RS; mestrado
em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; doutorado em Educação Pública pela Universidade
Federal de Mato Grosso; e doutorado em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo. Atualmente leciona na UFMT e é um dos organizadores do Simpósio Internacional Merleau-Ponty vivo
aos 50 anos de sua morte. Percursos ao redor da fenomenologia aos 90 anos do nascimento de Paulo Freire
(http://gempo.com.br/portal/), que ocorre de 10 a 12 de novembro nessa universidade. É um dos autores
de O eu e o outro na escola: contribuições para incluir a história e a cultura dos povos indígenas na escola
(Cuiabá: EdUFMT, 2010) e escreveu Filosofia para educadores (Cuiabá: EdUFMT, 2008). Seu site pessoal é
http://gempo.luizaugustopassos.com.br/ Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são os maiores mercado. Ignora-se a fragilidade da atmosfera de justicialismo vazio. Não
motivos para se relembrar Merleau- vida, e as correções produzem um nível será possível a felicidade humana, sem
Ponty 50 anos após sua morte? de exclusão das sociedades empobre- que se afirme a esperança na vida em
Luiz Augusto Passos – Os maiores mo- cidas e em situação de vulnerabilida- face da dissociação de nossa condição
tivos desta memória é o fato de Mer- de ambiental. O pretendido progresso de seres políticos e voltados à comu-
leau-Ponty se constituir num autor impõe a destruição dos meios de vida, nicação e à comunhão, encarnado em
que costura consensos no diálogo de de sobrevivência com destruição de estruturas políticas. Singulares e úni-
distintas correntes filosóficas e cientí- padrões ético-políticos, aniquilação cos, particulares como membros de
ficas. Grandes problemas da humani- das pessoas pela hipertrofia de parti- comunidades específicas, universais
dade, pelos processos de globalização, dos e de estado, ou o seu contrário, a não apenas enquanto gênero humano,
se agudizam por tratamentos sempre afirmação do individualismo e absolu- somos seres planetários em comunhão
localizados e parciais, pois são com- tização do narcisismo solitário contra através de uma relação inextrincável
preendidos como dissociados da rede processos de solidariedade e convivên- de todos/as com tudo e todos/as com
de interações que compõe a pessoa, cia. Sobrevive um materialismo práti- todas as criaturas animadas e inanima-
as sociedades, o mundo e as questões co destituído de espiritualidade pesso- das do universo.
do universo. Às crises globais respon- al e sem mística; ou o seu contrário
demos com tratamentos periféricos ou grandes corporações religiosas que so- Eu-outro-mundo
sintomáticos. Buscam-se intervenções brevivem de sacrifícios humanos, por
eficazes mediante tecnologias de alto interesses monopolistas. Mantém-se Isso corresponde a um programa
impacto exclusivamente voltadas ao a diluição dos direitos humanos numa geral da filosofia de Merleau-Ponty?

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Absolutamente não. Ele, contudo, ja- contemporâneo. Ora, a fenomenologia
mais ignorou todas essas dimensões
“Merleau-Ponty se sempre quis ser um âmbito de interlo-
em conjunção e se empenhou também cução entre os múltiplos olhares das
em sua vida com todas as questões que
constitui num autor que ciências e das filosofias. O plural que
dissesse respeito à guerra, ao terror, à uso é imprescindível, posto que o fato
desumanização, à hegemonia, à domi-
costura consensos no de haver algum meio de campo con-
nação, à emancipação política, à bele- sensual nessas ciências e nas filosofias,
za e ética, à diferença cultural. O que
diálogo de distintas mas nenhuma das duas deve ser redu-
ocorre é que Merleau-Ponty examinou zir ao campo do consenso.
e tematizou todas essas coisas da vida,
correntes filosóficas Penso que não se possa e não se
da existência, dando-lhes o estatuto deva restringir conhecimentos, sabe-
filosófico, tratando-as em sua origem
e científicas” res, às grandes narrativas, que pre-
primordial: a indissociabilidade do professores, mestrandos, doutoran- tendiam englobar em visões sistêmicas
eu-outro-mundo; do espaço, tempo, dos, professores das redes públicas e e orgânicas uma visão de mundo que
da sexualidade. A fenomenologia da particulares. pretendesse dar conta de tudo. Mer-
percepção registra o equívoco do di- leau-Ponty abriu um diálogo ampliado
vórcio entre as polaridades dialéticas Grandes narrativas com as posições filosóficas clássicas, o
pelas quais, diz Merleau-Ponty, todas positivismo e o idealismo; debruçou-se
as filosofias falam de sujeito e obje- Relembro, ainda, uma avaliação também sobre a tradição existencialis-
to, e não raro ou jogam fora o objeto de Creusa Capalbo, companheira de ta e marxista, com as ciências humanas
para salvar o sujeito, ou jogam fora o estudos do professor Antonio Joaquim de modo geral: psicologia, pedagogia,
sujeito para garantir a objetividade. Severino, na Universidade Católica da antropologia, psicanálise, psiquiatria,
Proclama até o fim de que não se ne- Bélgica, que foi uma das primeiras bra- ciências políticas, ética, dimensões da
guem as contradições, articulando até sileiras, junto com Joel Martins, a es- guerra, da violência, do terror, do re-
o fim os polos contrários, sem eliminar tudar com afinco a fenomenologia de conhecimento. Isso tornou possível a
as contradições, trabalhadas na pers- Husserl e Merleau-Ponty. Antonio Joa- busca de cotejar diferenças, buscando
pectiva da vida. quim Severino trará da Bélgica também reiteradamente trazer às luzes invisi-
Adauto Novaes, em entrevista à o apreço acerca da obra de Emmanuel bilidades e promover um conjunto de
revista IHU On-Line, menciona uma Mounier, que se inspirava na fenome- dimensões que permitissem evitar es-
das contradições que se tenta driblar. nologia de Husserl, e é sobre Mounier colha entre a produção das ciências e
Diz ele, “suspeitamos que nosso maior que Severino fará sua tese doutoral na aquela das filosofias.
problema, hoje, está no descompasso PUC-SP. Pode parecer às pessoas que
da relação entre ciência e pensamen- possuam menos contato com a obra de IHU On-Line – Por que sua obra é ins-
to”. Ou, para usar os termos do filóso- Merleau-Ponty que ela seja uma obra piração crescente para todas as áre-
fo francês Maurice Merleau-Ponty, no superada ou secundária. as do conhecimento?
surgimento da rivalidade entre o co- É preciso lembrar que a professo- Luiz Augusto Passos – Merleau-Ponty
nhecimento científico e o saber meta- ra Marilena Chauí produziu sua tese possui – vou utilizar a expressão do
físico, entendendo por metafísico “não na Sorbonne sobre as anotações desse nosso poeta maior mato-grossense Ma-
a construção de conceitos através dos autor, nos últimos anos de sua exis- noel de Barros – uma ampliada noção
quais tentaríamos tornar menos sen- tência, quando ministrava aulas no dos (des-) limites do conhecimento
síveis nossos paradoxos”, mas como a Collège de France. E nesse lugar Mer- humano e da produção da cultura e
experiência de todas as situações da leau-Ponty produziu um projeto ambi- das ciências. Cultura e ciência ficaram
história pessoal e coletiva, “e de todas cioso de revisão em todas as áreas da empobrecidas quando se fecharam
as ações que, assumindo-as, as trans- filosofia com reverberações para todo em dogmas, definitivos e conclusivos,
formem em razão”. A conclusão de o conjunto das ciências a partir de ba- sob pretensos saberes que delimitam
Merleau-Ponty no ensaio O Metafísico lisas inéditas, e quais delas “dariam a região do “conhecimento compe-
no Homem define bem nossa condição, o que pensar”, menciona Chauí. Seu tente”, reservando, como sugere Ma-
hoje: “Uma ciência sem filosofia não diálogo era um diálogo com o mundo rilena Chauí, áreas circunscritas para
saberia dizer literalmente do que fala; os discursos desautorizados. Merleau-
uma filosofia sem exploração metódica  Emmanuel Mounier (1905-1950): filóso- Ponty, a cada achado, debruçava-se
dos fenômenos só chegaria a verdades fo francês, fundador da revista Esprit. Suas outra vez a perguntar pelo “fundo de
obras influenciaram a ideologia da democracia
formais, isto é, a erros”. Estas são al- cristã. A edição 155 de 12-09-2005 tem como silêncio que recorta as palavras”. Cul-
gumas razões que norteiam o evento tema de capa Emmanuel Mounier: por uma re- tiva teimosia quase obsessiva de voltar
da UFMT: retomar o caminho difícil de volução personalista e comunitária, disponível sempre ao início, de fazer perguntas
em http://migre.me/30s2O. (Nota da IHU On-
explicitar as ambiguidades, difundir a Line) instigantes e de promover tremores
literatura do filósofo francês, torná-la  Marilena Chauí: filósofa brasileira reconhe- de terra nas áreas já pacificadas, na
inspiração teórico-metodológica das cida pela sua ativa participação no contexto suspeita de que é necessário uma hi-
do pensamento e política brasileira. (Nota IHU
pesquisas, e responder ao interesse de On-Line) percrítica. Nesse sentido, numa épo-

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ca em que se retornam a evidências “A criança vive o mundo, passava pela sinestesia de cada um e
“estabelecidas” ou à deificação das de todos os sentidos em simultaneida-
“incertezas” como caminho e prática mergulhada por todos os de, produzindo significações, que im-
individuais ou sociais, é bom revisitar plicavam num conhecimento sensível,
Merleau-Ponty. poros nele, numa relação do qual inclusive Merleau-Ponty suge-
ria a necessidade de reaprender a ver
Incapacidade de sínteses visceral, intuitiva, cheia um mundo impossível de se explicar,
e que fugia e se recolhia em dobras,
Ele se situa numa conexão pouco de significados, sem que envolto em mistério.
visível, na interface entre o moderno
clássico e o pós-moderno: dialoga com nos seus primeiros anos, Adultocentrismo
Descartes, Kant e Hegel; com Marx,
Scheller, Freud e Kafka; com Mauss e possa concebê-lo e Piaget não ignorou Merleau-Pon-
Lévi-Strauss; com Nietzsche, Foucault ty. Leu-o e respondeu desautorizando
e Derrida. Inaugurou áreas de estudos expressá-lo como que isso fosse falado em nome da ci-
pré-anunciadas por suas teorias que ência, entendendo na aporia de “em
receberam confirmações de importan- ‘objeto’ do pensamento” toda parte e em parte alguma” como
tes descobertas, o circuito da sineste- licença poética absurda, antirracio-
sia corporal, a aprendizagem corpo- nal, que poderia até atribuir-se a uma
reidade, a transcendência cotidiana; melhor por alguns abalos sísmicos nas sabedoria de senso comum, mas não
da impossibilidade de ver figura-fundo ciências contemporâneas, causados ao conhecimento das ciências. Merle-
(a mulher idosa não poderá jamais ser por Merleau-Ponty. Ele contribuiu para au-Ponty está longe de ser considera-
percebida, ao mesmo tempo, com a alguns consensos, pelo rigor, precisão do, por sua complexidade, na grande
moça): testemunha nossa incapacida- e linguagem poético-literária que o maioria dos cursos de psicologia e
de de síntese: a “fé perceptiva” sobre ajuda a criar conceitos adequados à pedagogia. Sua obra A pedagogia e a
o outro lado do cubo que não vemos e compreensão dos fenômenos. Ora, as psicologia da criança denuncia a pe-
dizemos que está lá. Percepções cor- ciências contemporâneas, obcecadas dagogia como “adultocêntrica”. Há
porais vividas produzem um conheci- com o fato de que algumas coisas vão uma forma prepotente e injusta dos
mento do mundo mais adequado, por mal, trabalham compulsivamente para pressupostos do desenvolvimento do
vezes, que aqueles das ciências mo- evitar o naufrágio. O que ocorrerá, conhecimento da criança, que a mal-
dernas. caso não forem revistas algumas ina- trata e, sobretudo, a ignora. A criança
Meu filho Matheus tinha menos de dequações acerca da compreensão do vive o mundo, mergulhada por todos
vinte dias, eu assobiava e via a atenção mundo, do ser humano, das relações os poros nele, numa relação visceral,
quase estática como ele me observava. nossas com os/as outros/as e com o intuitiva, cheia de significados, sem
De súbito, cada vez que eu assobiava mundo? Muitos aspectos da fenomeno- que nos seus primeiros anos possa con-
ele produzia um biquinho como se fos- logia merleau-pontyana não causaram cebê-lo e expressá-lo como “objeto”
se imitar. Minha mulher dissera que era ainda o imprescindível “espanto aris- do pensamento. Cada um de nós viveu
impressão minha. Comecei a assobiar e totélico”, essencial para a crítica de isso. Somos capazes de vivê-lo com in-
ele se encantou por ver a comunicação paradigmas, das pesquisas. Vou sair de tensidade e de compreendê-lo senso-
que havia entre ele e eu. O professor Di generalidade e exemplificar, avisando rial e intuitivamente, um mundo mais
Clemente (Grupo de Estudos, Educação que me aventuro, sem a intenção de verdadeiro do que aquele expresso
& Merleau-Ponty – Gempo/UFMT) men- que se ponha Merleau-Ponty nisso. pela razão moderna.
ciona a existência, em Merleau-Ponty, Piaget está imortalizado na coleção A epistemologia genética tem sido
do que se pode chamar um “cérebro” Os pensadores, como filósofo, irritado preferencialmente o modelo tanto da
antes do cérebro. Os progressos na com textos de Merleau-Ponty que di- pedagogia como da psicologia, que se
neurociência, na saúde, no urbanismo, ficultavam alguns princípios da epis- difunde sem considerar a crítica do
na estética têm partido de contribui- temologia genética. O ponto de dis- Merleau-Ponty. Há na epistemologia
ções significativas. córdia desencadeador era o texto Em genética um sutil etnocentrismo ali-
toda a parte e em parte alguma, pelo mentado por um evolucionismo linear
IHU On-Line – Quais são as principais qual Merleau-Ponty contrapõe o devir – duramente atacado por Hobsbawm
contribuições desse pensador para a e o tornar-se, e a localização, como
processo vivo. Assim o autor comenta  Eric Hobsbawm: historiador marxista do sé-
filosofia, em específico à fenomeno- culo XX. Autor de inúmeros livros, entre os
logia e à educação? que a filosofia está em todo lugar e em quais A Era dos Extremos (São Paulo: Compa-
Luiz Augusto Passos – Convocávamos lugar algum, tanto quanto a vida esta- nhia das Letras, 1995), A Era do Capital (Rio
va em todo lugar e em lugar nenhum, de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A Era das Re-
nosso encontro falando da existência voluções (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982), A
de fissuras, mas talvez se expresse não havia um local estático, um cére- Era dos Impérios (Rio de Janeiro: Paz e Terra,
bro, que desse conta da abrangência 1988), Bandidos (Rio de Janeiro: Forense Uni-
 Leia uma entrevista com ele publicada nesta da produção do conhecimento que versitária, 1976) e sua autobiografia, Tempos
edição. (Nota da IHU On-Line) Interessantes: uma vida no século XX (São Pau-

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 43


em seu prefácio às Formações pré-ca- “Merleau-Ponty censura te e ratifica essa dimensão em suas
pitalistas de Marx e Engels. Tese de críticas de Mauss a Lévi-Strauss, cujo
que a humanidade e os sujeitos huma- uma pedagogia que não olhar datado da modernidade não tem
nos são estrutural e substancialmente consciência de que seu olhar datado
os mesmos; a diferença cultural com tem ouvidos, olhos para invisibiliza o que ela própria não pode
distâncias astronômicas de um grupo e não quer ver. Além disso, reduz as
humano para outro mostra – na ex- entender a criança, e outras sociedades pela transposição
pressão de Clifford Geertz – “fósseis da epistemologia moderna, cientifi-
humanos” ainda contemporâneos que tem dela os estereótipos cista, de reduzir o desconhecido ao
sobrevivem nas sociedades sem esta- conhecido, de tomar emprestado o
do, de sorte que essa condição ‘primi- gerados por uma cultura modelo das ciências da natureza e das
tiva’ mostra a nós que eles hoje são o suas sociedades para uma leitura con-
que éramos ontem. Do outro lado esta- tutelar, autoritária que trastante e comparativa – não se com-
mos nós, no plano civilizatório cultural param sem injustiça coisas diferentes!
mais complexo. No mais alto patamar pretende saber e oprime – impedidas de reconhecer o outro por
de desenvolvimento, obtido pela su- ele mesmo, e olhá-lo como dependen-
perioridade do pensamento abstra- a diferença” te, tutelado e “menor”. Não era raro
to, lógico-matemático, que permitiu afirmar que os nativos fazem rituais e
às sociedades capitalistas, brancas, conduzem cerimônias com alta densi-
criar esta sociedade que representa cas do tempo do que na noção de tempo dade simbólica, mas precisam recor-
a melhor humanidade possível à qual considerado, à maneira científica, como rer ao antropólogo para dizer-lhes o
todas as outras sociedades (atrasadas) uma variável da natureza em si ou, à que estão mesmo fazendo. Reduz-se,
deveriam ser estimuladas a diminuir maneira kantiana, (...) isso porque en- assim, as sociedades à mesmidade, e
a diferença através de processos tec- fim há no coração do tempo um olhar, ou como negativo e faltante nelas, daqui-
nológicos de impacto, em curto pra- (...) alguém para quem a palavra possa lo que possuímos em excesso.
zo, acelerado diminuir as distâncias, ter sentido”.
posto que todas as sociedades estão Professor Fabio Di Clemente, no IHU On-Line – Como se articulam os
destinadas universalmente a esse de- seminário “Corpo Carne e Ser” que conceitos da fenomenologia de Mer-
senvolvimento, por justiça. nos ministrava, comentava a severa leau-Ponty e Paulo Freire nos movi-
crítica feita por Merleau-Ponty quan- mentos sociais na década de 1980?
Pedagogia sem ouvidos do perante um desenho uma criança Luiz Augusto Passos – Somente no
que expressara a imagem de sua mãe, doutorado da UFMT, por provocação de
Isso legitimaria, diz Hobsbawn, a e a proporção da lágrima excedia em Maria de Lurdes Bandeira de Lamonica
intervenção do grupo em condições de espaço, o desenho. Para Piaget trata- Freire, fui desafiado a ler a Fenomeno-
superioridade de justificar intervenções va-se de uma incapacidade e falta de logia da percepção em diálogo com a
por meio de aceleração qualificada, para maturidade para expressar a harmonia descrição densa de Clifford Geertz. Isso
fazê-lo amanhã o que somos nós hoje, da proporção objetiva do conjunto que se constituiu num privilégio e compro-
permitindo-os o desenvolvimento má- se apresentava no real; para Merleau- misso que herdei de levar adiante este
ximo acenado aos humanos, os moldes Ponty era por excesso de entendimen- diálogo. Paulo Freire, ao contrário, era
da civilização ocidental. Isso se chama, to; a leitura preponderante naquela trabalhado na Paróquia Nossa Senhora
no melhor português, assimilação! Per- cena era expressa pelo que interes- do Rosário, de Cuiabá, MT, dos jesuí-
versão do nosso autoconhecimento que sava agora: o sofrimento da mãe. Ela tas, da qual participei desde o final de
nega efetivamente o outro como o ou- se atinha ao essencial colhido por sua 1979. O trabalho acontecia numa pers-
tro, e busca homogeneizar não os reco- percepção. pectiva freiriana no que dizia respeito
nhecendo como humanidades universais, Merleau-Ponty censura uma peda- às ações educacionais e políticas, as-
mas, ao mesmo tempo, diversas. Merle- gogia que não tem ouvidos, olhos para pecto indivisível de Freire. A paróquia
au-Ponty diz na Fenomenologia da per- entender a criança, e tem dela os es- mantinha movimentos populares e cír-
cepção sobre o tempo o que se poderia tereótipos gerados por uma cultura tu- culos de cultura, um deles sistemático
dizer em todos os outros âmbitos: “Há telar, autoritária que pretende saber no bairro Quarta-Feira, com crianças
mais verdade nas personificações míti- e oprime a diferença concebendo-a, e adolescentes que faziam uma hor-
lo: Companhia das Letras, 2002). (Nota da IHU como expressara Dussel, que conside- ta comunitária na casa da Ir. Dineva
On-Line) ra os oprimidos como exterioridade, Vanuzzi, falecida há pouco, e se or-
 Clifford James Geertz (1926-2006): antro- apêndice e adereço de mau gosto,
pólogo estadunidense, professor emérito da ganizavam contra os processos de re-
Universidade de Princeton em Nova Jérsei. destituídos de centralidade, entendi- pressão conduzidos pelo Estado e pelo
Seu trabalho no Institute for Advanced Stu- mento e interioridade. aparato policial militar que realizava
dy de Princeton se destacou pela análise da Merleau-Ponty, ao tratar ainda, o
prática simbólica no fato antropológico, foi execuções. A paróquia se inspirava na
considerado, por três décadas, o antropólogo outro, denuncia o processo excluden- teologia da libertação e foi importan-
mais influente nos Estados Unidos. (Nota da  Merleau-Ponty, 1979, p. 425. (Nota do en-
IHU On-Line) trevistado) tíssima a presença do padre João Ma-

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noel Lima Mira que iniciara em Cuiabá
o trabalho com universitários impro-
“O mundo só era natural mistério que somos, contudo, não nos
conduz a um epistemicídio. Leonardo
visando um restaurante naturalista e
macrobiótico, bem como aulas livres
no período precedente Boff diz de maneira feliz que mistério
não é o que não podemos conhecer,
de kung fu. Tratava-se, pela teologia
da libertação, de convergência com os
à nossa entrada nele. A mas que ao conhecer somos impelidos
muito além, mostrando-nos outra vez
mesmos caminhos da “gentificação”
– isto é, a arte de contribuir na feitura
partir daí temos a nossa impotência da abraçar a totali-
dade. Merleau-Ponty fala de horizon-
das pessoas pela comunhão, propor-
cionando autonomia e emancipação, e
inauguração de uma tes que aos nossos passos recuam sem-
pre mais.
atuação de denúncia e anunciação, na
perspectiva do reino de justiça, que já
confusão – assim
Captando invisibilidades
estava em parte entre nós, reino de
paz, liberdade, justiça e de vida em
chamada por Merleau-
Nossas pesquisas se voltam a inves-
plenitude. O projeto de humanização
plena, as dimensões da justiça, da
Ponty entre eu, outro, tigar os sentidos que movem as pesso-
as, e priorizamos pessoas e movimen-
liberdade estão todos presentes em
Merleau-Ponty.
mundo, com certa tos coletivos dos setores populares por
razão de justiça. Professor Di Clemen-

Contato com o marxismo


reversibilidade te busca em Merleau-Ponty a relação
do “sistema dos objetos” com “o sis-

Tivemos em vista em nossos tra-


inconclusiva” tema humano”, “abraçados”. Nossas
pesquisas não comunicam apenas o
balhos de pesquisa no GPMSE algumas que percebemos, mas de onde e como
mantemos a ambiguidade – conceito
orientações teórico-metodológicas que percebemos. Não nos negamos como
merleau-pontyano – até o fim. Ambigui-
fomos buscar na fenomenologia de Mer- autores/as, pois a interpretação só é
dade que só pode ser suprimida por má
leau-Ponty. Sabíamos que havia uma plausível na intersubjetividade. Deixar
fé, ou admitindo uma preponderância
imensa comunhão de Paulo Freire com explícito que nossos escritos possuem
de um dos polos sobre o outro. O mundo
o pensador francês. Tenho sobre isso interesses, o que vemos, compreende-
só era natural no período precedente à
um verbete no Dicionário Paulo Freire mos e interpretamos não é de imacu-
nossa entrada nele. A partir daí temos
em que expresso mais extensamente a lada conceição. Não pretendemos que
a inauguração de uma confusão – assim
relação entre fenomenologia de Merle- o que vimos e interpretamos seja pon-
chamada por Merleau-Ponty entre eu,
au-Ponty e Freire. Freire se dizia dialé- to de chegada, síntese universalmente
outro, mundo, com certa reversibilida-
tico e fenomenológico. Desde a Peda- válida, conclusiva acerca do mundo:
de inconclusiva. Buscar enxergar todos
gogia do oprimido, Paulo Freire possui não é. Buscamos captar invisibilidades,
os sentidos possíveis, posto que a reali-
a consciência da relação visceral entre sentidos ocultos. Não nos debruçamos
dade é polissêmica e inesgotável.
esta pedagogia e a fenomenologia. Mas sobre dados significativos estatistica-
Muniz Rezende dizia: há sentido, e
implica, como em Merleau-Ponty, mui- mente, mas aqueles que quebram e
alguns só percebidos por outros olha-
tos pontos de contato com o marxis- que, apesar da globalização e da ho-
res. É preciso, reincidentemente, rea-
mo. Alguns princípios nos impulsionam, mogeinização - aquela singularidade
lizar uma interlocução de perspectivas
como a inseparabilidade entre sujeito ali circunscrita -, permite um mundo
e de olhares e dos lugares experimen-
e objeto que coexistem, ainda que o mais oxigenado e menos petrificado.
tados por outras humanidades que
mundo nos preceda. Merleau-Ponty Não pretendemos que nossos trabalhos
lhe permitiram conhecer o mundo só
pergunta: “Quando minha mão direita e pesquisas tenham aderência univer-
acessível por sua carne e naquele lu-
toca meu braço esquerdo, quem é que sal e sirvam como receita de bolo a
gar donde nós não poderemos estar.
toca e quem é tocado?” Na verdade, outras pesquisas.
Compartilhar desarmadamente senti-
sujeito e objeto se fundem naquele
dos significa acrescer outros sentidos
momento e adquirem uma coincidência IHU On-Line – Quais são as proximi-
plausíveis que permitam ampliar o co-
inclusive sofisticada, na qual estou ao dades entre o pensamento de Merle-
nhecimento do mundo e nos aproximar
mesmo tempo dentro e fora de mim, au-Ponty e Mounier?
do sentido humano e histórico, antes
imanente e transcendente a mim, vi- Luiz Augusto Passos – Mounier teve
invisíveis. Saber que a realidade é mis-
dente e sensiente ao mesmo tempo. duas faces muito decisivas. Era um
tério, como nós mesmos somos misté-
Não aplainamos polos de contradição; filósofo de rara envergadura intelec-
rios, parcialmente revelados pela face
 João Manuel Lima Mira: padre jesuíta, mor-
do outro que me diz, em parte, o que tual, um mestre e raro comunicador.
reu aos 61 anos de idade, em janeiro de 2010.
Conhecido como Padre Mira, foi o primeiro es- sou. Vale Manoel de Barros: “O melhor Possuía uma coerência e envergadura
trangeiro, depois de 1400 anos, a ser acolhido, de mim são os outros!” Não damos ética que respaldava abrir diálogo com
no Japão, no grupo xintoísta Yamabushi. Sobre
conta de nós! Somos incompletudes. O todas as correntes políticas e ideológi-
sua vida e morte, leia a notícia publicada no
sítio do IHU em 12-01-2010, disponível no link  Fenomenologia da percepção, p. 518. (Nota
cas e com os governos. Além disso, era
http://bit.ly/urmiKl (Nota da IHU On-Line) do entrevistado) um místico: cristão ativista, corporifi-
SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 45
cava, diria Freire, o que acreditava. rismo é uma tara. Sai do Partido Co- ty: cinquenta anos da morte do au-
As proximidades entre Merleau-Ponty munista ao qual se filiara quando da tor, organizado pela UFMT?
e Mounier vinham da atuação de am- invasão da Hungria. Sofre perseguição Luiz Augusto Passos – Esperamos um
bos no campo da cátedra. No campo junto com Jean-Paul Sartre por apoio público em torno de 450 pessoas no
do diálogo político face às situações à Guerra da Argélia contra a França. Teatro Universitário da UFMT. O clima
injustas, emprestava sua voz. Ambos Mounier é o grande criador da pedago- é de exposição de telas inspirados no
eram homens de partido, com ideais gia da alternância retomada pelo Movi- tema Quiasma, do artista plástico de
democráticos e de justiça social muito mento dos Sem Terra – MST, e estendia renome internacional Claudyo Casa-
definidos. As questões epistemológicas a educação não somente aos jovens, res, uma delas realizada para a arte
de Merleau-Ponty são ressaltadas na mas às suas famílias. Ao contrário do do evento, a releitura de A dança de
entrevista de Adauto Novaes. Di Cle- que parece, Merleau-Ponty tinha um Matisse. Começaremos com a execu-
mente desenvolve as questões da bio- simpatia pela Igreja, mas sofria crí- ção da Sonata de Viteuil que Merleau-
ética e da biopolítica em Merleau-Pon- ticas por parte dela, pois pontuava a Ponty tinha por referência. Ela rompe
ty em sua livre docência. Referência ausência da democracia interna, e as com o sentido clássico, tanto quanto a
decisiva é aquela hoje expressa pela questões “enciclopedistas” que toma- estética merleau-pontyana, e terá ar-
ética da libertação do argentino En- ram a moral sexual da igreja. Estava ranjo do professor pesquisador e ma-
rique Dussel, para Mounier e Freire: nas ruas de Paris nas grandes mani- estro Abel Santos, que a executará na
o princípio categórico e absoluto de festações políticas, como Mounier e Viola de Cocho cuiabana junto à came-
qualquer ética é a vida, e a resistên- Freire. rata formada pela Orquestra Sinfônica
cia e luta contra tudo que conduza à Mounier estabelecera grande cor- da UFMT. Conferencistas de âmbito
morte, como o terrorismo de Estado, rente de diálogo onde vigia intolerân- internacional, como Serge Latouche,
os totalitarismos e qualquer opressão cia. Merleau-Ponty o fazia escrevendo. Fabio Di Clemente, Creusa Capalbo,
aos mais oprimidos. Em suas aulas era muito expressivo, que circula nos ambientes merleau-
mas tímido fora delas. Ambos consi- pontyanos na Europa, e Edebrande
Perseguições deravam ser a educação um direito, Cavalieri (UFES) são conferencistas
como tarefa política cuja centralida- do encontro. Outras presenças serão
Merleau-Ponty fala que o totalita- de era a própria o educando, fosse ele Gabriel Mograbi (UFMT), Jovino Pizzi
 Enrique Dussel (1934): filósofo argentino
criança, adolescente ou adulto. Havia (UFPEL), Regina Célia Popim (Unesp),
radicado (exilado) desde 1975 no México. É em ambos um conceito das crianças Reinaldo Matias Fleury (Mover/UFSC),
um dos maiores expoentes da filosofia da li- como seres de direitos inalienáveis e Diélcio Moreira e Celso Prudente (Cine-
bertação e do pensamento latino-americano
em geral. Autor de uma grande quantidade de
como cidadãos plenos. E toda a educa- ma Negro, Comunicação e Linguagem)
obras, seu pensamento discorre sobre temas ção era voltada para a vida com uma e Guilherme Romanelli, pesquisador,
como: filosofia, política, ética e teologia. Tem perspectiva de conhecimento em pro- maestro, e violinista da UFPR. O even-
se colocado como crítico da pós-modernidade
chamando por um novo momento denominado
fundidade e não em extensão, herança to terá oficinas, rodas de conversa,
transmodernidade. Tem mantido diálogos com da Escola Nova de Dewey. apresentação de trabalhos, conferên-
filósofos como Apel, Gianni Vattimo, Jürgen cias comentadas e ampliadas. Portan-
Habermas, Richard Rorty, Lévinas. É um crítico
do pensamento eurocêntrico contemporâneo.
IHU On-Line – Quais são as atividades to, uma festa no coração da América
(Nota da IHU On-Line) previstas no Simpósio Merleau-Pon- Latina, seu marco geodésico.

Ciclo de Estudos: Repensando os Clássicos da Economia – Edição 2011

Amartya Sen: o desenvolvimento como liberdade para a superação da


fome, da miséria e do mal-estar social

Data: 7/11/2011

Prof. Dr. Flavio Comim - UFRGS

Informações em www.ihu.unisinos.br

46 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


Confira as publicações do
Instituto Humanitas Unisinos - IHU

Elas estão disponíveis na página eletrônica


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48 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378
Artigo da semana

Uma visão sintética do “estado da arte” da implementação


do SUS
Por Nelson Rodrigues dos Santos

D
ando continuidade ao debate levantado na IHU On-Line número 376, de 17-10-2011, publicamos,
nesta edição, o artigo que segue, enviado pelo professor Nelson Rodrigues dos Santos, da Uni-
camp. Ele escreveu este texto inspirado pelas perguntas enviadas pela redação da IHU On-Line.
Com a finalidade de contribuir para a reflexão sobre a complexidade sociopolítico-econômica que
envolve o desenvolvimento do SUS, e que usualmente são expostas à opinião pública sob ângulos
parciais ou unilaterais, Nelson propõe cinco questões centrais, “polêmicas para os gestores e o controle
social, e que são usualmente expostas à opinião pública sob ângulos unilaterais, o que limita e fragiliza o
debate democrático e a mobilização da sociedade”.
Nelson Rodrigues dos Santos é professor colaborador da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp, presi-
dente do Instituto de Direito Sanitário Aplicado – Idisa e consultor do Conselho Nacional de Secretarias Municipais
de Saúde – Conasems. Confira o artigo.

Todos sabemos que é responsabi- tão descentralizada que incluiu, em federal no financiamento do SUS, os
lidade constitucional do poder Exe- uma década, metade da população fortes e contínuos subsídios federais
cutivo implementar o disposto na antes excluída, a efetivação da di- aos planos e seguros privados de saú-
Constituição e na Lei e, para tanto, reção única em cada ente federado de, hoje equivalentes a mais de 40%
valer-se da prerrogativa de formular com extinção do Inamps, a criação do orçamento do Ministério da Saúde
e realizar as estratégias necessárias. dos fundos de saúde nos entes fe- e 25% do faturamento das respecti-
Sabemos também da grande conquis- derados e o repasse fundo a fundo, vas operadoras privadas, a resistên-
ta democrática das entidades e movi- a contínua e acentuada elevação da cia pétrea à reforma democrática da
mentos sociais na saúde, da criação, parcela municipal no financiamento estrutura administrativa do Estado,
pela lei n. 8142/90, das Conferências do SUS, revelando que somente os adequando-o ao atendimento eficien-
e Conselhos de Saúde, esses tendo municípios rompem com a cultura de te, qualitativo e eficaz das demandas
como primeira atribuição legal atuar adotar o “mínimo” como “teto”, a sociais na saúde, e a imutabilidade
na formulação de estratégias. Des- assunção da Atenção Básica como a na relação público/privado antirre-
de então, os colegiados de gestores grande estratégia para efetivação da publicana, promíscua e antissocial
e os conselhos de saúde formulam universalidade, integralidade e equi- vigente.
estratégias decisivas para o bom de- dade com qualidade em todo o siste- Por fim, não há como não reconhe-
senvolvimento do SUS, congruentes ma, e mais recentemente, a criação cer que o imbricamento das estra-
com os princípios e diretrizes cons- dos colegiados regionais, hoje, as co- tégias congruentes e incongruentes
titucionais, como intensiva criação e missões intergestores regionais. com os princípios e diretrizes do SUS,
funcionamento dos conselhos e con- Torna-se inabdicável o reconhe- além da grande tensão e angústia dos
ferências de saúde nos municípios cimento de que nesses mais de 20 gestores e conselhos de saúde, vão
e estados, a criação dos colegiados anos foram formuladas e vêm sendo deixando um saldo amargo: toda a
intergestores nacional e estaduais, realizadas outras estratégias, incon- classe média e todos os trabalhado-
a pactuação de normas básicas or- gruentes com os princípios e diretri- res privados e públicos da economia
denadoras da descentralização, a zes constitucionais, como a contínua formal afiliam-se aos planos privados
surpreendente produtividade da ges- e pronunciada retração da parcela e usam complementarmente o SUS; a

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Atenção Básica não consegue apontar I.2. Crescimento da capacidade Saúde, conferindo-lhe prerrogativas
rumo à universalidade, à alta resolu- de arrecadação - Nossa capacidade para o ordenamento das linhas de
tividade, à porta de entrada prefe- arrecadatária vem crescendo acen- cuidado integral e na construção da
rencial e à estruturação/ordenação tuadamente: em pesquisa de 1995 regionalização. Valiosíssimos proje-
do conjunto do sistema; a inclusão a 2004, a Receita Corrente da União tos elaborados pelas comissões inter-
social (inabdicável) processa-se sob cresceu de 19,7% para 26,7% do PIB, gestores ao nível nacional, estadual
a vigência e hegemonia do modelo mantendo a curva de crescimento e regional encontram-se em plena
“da oferta” e não das necessidades e até o momento, apesar da extinção fase de pactuação, além do Pacto
direitos da população. da CPMF no final de 2007. No mesmo de Fev./2006, do Decreto 7508/2011
Com a finalidade de contribuir período da pesquisa (1995 a 2004), e da Lei N. 12.466/2011. Por isso,
para a reflexão sobre a complexidade os gastos do Ministério da Saúde caí- torna-se inequívoca a imperiosa a
sociopolítico-econômica que envol- ram de 9,6% para 7,5% da mesma Re- alocação de recursos novos, volu-
ve o desenvolvimento do SUS, e que ceita Corrente da União, tendência mosos o necessário para impactar,
usualmente são expostas à opinião que também continua. por etapas e estratégias definidas
pública sob ângulos parciais ou uni- junto aos conselhos de saúde, a re-
laterais, seguem-se cinco questões I.3. Porcentagem do PIB com tomada do rumo da universalidade,
centrais, polêmicas para os gestores gastos em saúde - os gastos totais integralidade, equidade, incluindo
e o controle social, e que são usu- (públicos e privados) oscilam entre 9 gestão pública do pessoal de saúde
almente expostas à opinião pública e 10% nos países mais desenvolvidos, com participação e adesão de todos
sob ângulos unilaterais, o que limita incluindo os que apresentam os me- os trabalhadores de saúde. Vale res-
e fragiliza o debate democrático e a lhores sistemas públicos de saúde, saltar que o acréscimo de 32,5 bi-
mobilização da sociedade. Após as e esta porcentagem vem refletindo lhões de reais correspondentes a 10%
cinco questões centrais, seguem-se o limite de sustentabilidade pelas da RCB aos valores atuais colocará
seis recomendações de ação política respectivas sociedades. No Brasil es- nosso país em patamar de quase 500
pelo SUS, iniciando pelas relações tamos com 8,4% próximo a esse limi- dólares públicos habitantes-ano e
dos conselhos de saúde com as enti- te, mas o centro da questão está nos pouco mais de 4% do PIB para o setor
dades e movimentos da sociedade. gastos públicos que compõem estas público de saúde, ainda muito baixo,
porcentagens: nos referidos países porém seguramente suficiente para a
Cinco questões polêmicas e cen- estão entre 6 e 8% do PIB, enquanto retomada do rumo constitucional do
trais para os gestores e o controle o Brasil está com 3,5%, abaixo da Ar- desenvolvimento do SUS aqui expos-
social no SUS gentina, Chile, Uruguai e Costa Rica. to.
Para nos equipararmos à Argentina e
I. Ênfase nos valores - Na divul- Chile, precisaríamos um acréscimo III. Tamanho da carga tributária
gação dos gastos públicos na saúde, de 45 bilhões de reais no orçamento (porcentagem do volume da arreca-
chama atenção a ênfase dada aos va- do Ministério da Saúde, bem acima dação no PIB) - encontra-se no Brasil,
lores numéricos – milhões e bilhões dos 32,5 bilhões estimados pelos 10% por volta de 35,5% e objeto de per-
de reais que, apesar do impacto na da Receita Corrente Bruta, um dos manente crítica e pressão de setores
opinião pública, pouco revelam e pleitos da regulamentação da EC-29. empresariais e da elite social, e seus
mobilizam sobre sua suficiência pe- agentes na mídia, como excessiva
rante a capacidade arrecadatória do II. Instalação de recursos novos e antissocial. Quais os destinos dos
Estado e as necessidades da popula- - A ênfase dada para um salto na gastos públicos consequentes à ar-
ção. Novas ênfases e novas questões capacidade gestora e gerencial com recadação. Informação: pesquisa do
centrais devem estar nas divulgações base nas tecnalidades produtivistas Instituto Brasileiro de Planejamento
e nos debates como: de custo/efetividade, no âmbito do Tributário em 2009 analisou o Cana-
I.1. Per capita anual dos recur- modelo de atenção hoje predomi- dá, Inglaterra, Espanha, Itália, Fran-
sos públicos com base na compara- nante, com porta de entrada prefe- ça e Dinamarca em 2007, com cargas
ção internacional por meio do dólar rencial nos serviços assistenciais de tributárias entre 33,3% e 48,9% dos
padronizado pelo poder e compra média densidade tecnológica -eleti- seus PIBs, e que dispõem a toda a po-
(OMS) - O Brasil está em torno de 340 vos e de urgência - onde predomina o pulação, sistemas públicos de quali-
dólares públicos, enquanto a média pagamento por produção em rede la- dade e gratuitos de saúde, educação
dos países mais ricos e os europeus boratorial e hospitalar privada com- e previdência, segurança pública e
com os melhores sistemas públicos plementar, implementa na prática ausência de pedágio, e sem carga
de saúde está em torno de 2 mil dó- outro sistema público anti-SUS. Mas tributária na agenda dos pleitos da
lares públicos. Na América do Sul, o centro da questão do imprescindí- sociedade. No Brasil, por compara-
temos a Argentina, Chile e Uruguai vel e inadiável salto deve enfatizar ção, a população com renda mensal
com per capita público para a saúde a adequação e realização das refe- entre 3 e 10 mil reais, trabalhou em
acima do nosso. A Argentina, 42% aci- ridas tecnalidades, com exclusivida- 2008, em média, 117 dias para poder
ma e Chile 27% acima. de à cobertura da Atenção Básica à adquirir no mercado aquela relação

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de serviços básicos, e reformar nosso na imposição de caráter substitutivo no OGU).
sistema tributário, que recolhe 54% à CPMF (1996), na “virada” de última — Vinculação prospectiva de re-
da renda familiar dos que recebem hora das negociações de 10% de cada cursos como os do pré-sal.
até dois salários mínimos mensais, e esfera pela EC-169, impondo 15% aos — Obrigar em Lei que o valor de-
29% dos que recebem acima de 30 sa- municípios, 12% aos estados e a VNP clarado da terra para pagamento do
lários-mínimos, além de penalizar a à União (2000), o que significou na ITR seja o valor assumido pela União
produção e folha em 25,3% e a renda prática, prosseguir retraindo a par- nos processos de desapropriação.
e patrimônio em apenas 7,9%. cela federal, que caiu de 75% em — Tributar a remessa de lucros ao
1980 para 44% em 2010, tendência exterior, hoje isenta. Somente em
IV. Peso da “fatia” saúde no Or- que permanece. E, por final, o de- agosto/2011, foram remetidos mais
çamento Geral da União – OGU - é safio da regulamentação desde 2003. de 5 bilhões de reais.
apresentado pelo atual “pensamento Merece lembrar que esta mesma polí- — Tachação das grandes fortunas.
econômico” e seus agentes na mí- tica de Estado é responsável também — E criação de uma contribuição so-
dia, como privilegiado por compri- pelo crescimento ininterrupto, há cial para o Sistema Público de Saúde.
mir os orçamentos de outras áreas, mais de 20 anos, de várias formas de
como educação, assistência social, subsídios públicos às empresas ope- Desafio
transporte, segurança pública, ener- radoras de planos e seguros privados
gia, saneamento, etc., estimulando, de saúde, e hospitais de grande por- Vale lembrar que o projeto de n.
inclusive, disputas orçamentárias te por elas credenciados, estimados 121/2007 do ex-senador Tião Viana,
entre esses setores. As respectivas hoje em mais de 25% do faturamento que contempla o critério dos 10% da
porcentagens podem criar essa fal- anual do conjunto dessas empresas. RCB, com acréscimo de 32,5 bilhões
sa ideia quando avaliadas isolada- Essa questão é a central e estrutu- de reais e implementação escalona-
mente. Em 2010, foram: 3,9%, 2,8%, rante porque expõe um forte indica- da, iniciando com 16,9 bilhões no
2,7%, 0,7%, 0,5%, 0,04% e 0,04%. dor de responsabilidade na política primeiro ano, representa a vitória
Acima desses setores básicos, estão pública: qualquer que seja o tama- do critério de cálculo e de nova res-
a Previdência com 22,12% e as trans- nho da arrecadação, esse critério é ponsabilidade da política pública de
ferências obrigatórias aos estados e definidor por si, o que é testado na Estado, significando certamente uma
municípios, também básicas. Porém, prática pelos municípios, estados e postura “estadista” dos atuais pode-
acima de todas, está a dívida públi- Distrito Federal desde 2000. res legislativo e executivo. Por outro
ca com 44,93% (juros, amortizações, O escalonamento anual da aplica- lado, o projeto n. 306/2008, oriundo
refinanciamento e outros serviços ção dos 10% da Receita Corrente Bru- do projeto inicial n. 01/2003, dos
financeiros), totalizando em 2010, ta e a introdução de medidas incre- ex-deputados Roberto Gouveia e Gui-
635 bilhões, dos quais, por volta de mentadoras da arrecadação podem e lherme Menezes, mas revertido pos-
200 bilhões só de juros. A nova ên- devem ser negociadas e pactuadas, teriormente para a continuidade do
fase deve ser na democratização da mas sem constituírem condições sine critério VNP, acrescentará somente
informação e do debate sobre os cri- qua non para a regulamentação com 8,2 bilhões de reais, caso aprovada
térios de por que e como os setores os 10% da RCB, com pena da política a CSS (sem o Fundeb e com a DRU),
são básicos ou não, e quem compri- pública constitucional continuar re- e perderá 7 bilhões (sem o Fundeb),
me quem. fém do equívoco estrutural de onde sem aprovação da CSS. Diferentes
está a questão central. alternativas poderão ser propostas e
V. Regulamentação da EC-29 - Exemplos de medidas incrementa- negociadas. Mas, para a sua avalia-
além do grande avanço na definição doras da arrecadação a serem nego- ção e posicionamento, permanece o
do que são as ações e serviços de ciadas e pactuadas em curto e médio desafio de qual é a questão central.
saúde a serem financiados pelo SUS, prazos:
formulado pelo Conselho Nacional — Incremento da taxação sobre
de Saúde e encampado e aprimora- itens danosos à saúde ou que geram
do no Congresso Nacional, o debate alto custo para o SUS.
econômico encontra-se centrado na — Redução efetiva e parcelada dos Leia Mais...
criação ou não de novo imposto ou gastos tributários (renúncias fiscais)
Confira outras edições da Revista IHU On-
contribuição social, quando deveria e demais formas de subsídio público Line sobre o SUS:
ser decorrência ou na sequência. A ao mercado na saúde. * Sistema Único de Saúde. Uma conquista brasileira.
questão central está na inflexibilida- — Tributar os jatinhos, helicóp- Revista IHU On-Line, edição 376, de 17-10-2011, dis-
ponível em: http://migre.me/61LN8;
de da política de Estado de não vin- teros, iates e lanchas de luxo, hoje * SUS: 20 anos de curas e batalhas. Revista IHU On-
cular porcentagem da arrecadação isentos, sob o mesmo critério do IPVA Line, edição 260, de 02-06-2008, disponível em:
à saúde, demonstrada na rejeição para os carros. http://migre.me/61LuL;
* Saúde Coletiva. Uma proposta integral e trans-
dos 30% do OSS (1990), na retirada — Redução da taxa de juros da dí- disciplinar de cuidado. Revista IHU On-Line, edição
da contribuição previdenciária da vida pública (cada 1% que cai corres- 233, de 27-08-2007, disponível em: http://migre.
base de cálculo para o SUS (1993), ponde a 10 bilhões de reais ganhos me/61Lww.

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 51


Globalização, tecnologias digitais
e os questionamentos éticos
A tecnologia digital pode e deve ser usada
para transmitir serviços e conceitos de cidadania
Por Sergio Mattos�*

O intenso processo de globalização, ção como sendo a intensificação das


no qual todos os países e suas estru- relações sociais, mundiais que ligam
turas internas, inclusive as de comu- localidades distantes, de tal modo
nicação, estão envolvidos, começa a que acontecimentos locais podem ser
refletir mudanças e novos desafios de- influenciados por eventos que estão
vido às tendências já constatadas da ocorrendo a centenas de quilômetros
globalização versus regionalização. O de distância e vice-versa. Dessa for-
termo globalização, em si, sugere que ma, a globalização está relacionada
as atividades políticas, econômicas também com a interseção de presen-
e sociais estão se transformando em ça e ausência, o entrelaçamento dos
escala mundial, como fenômeno uni- eventos sociais e relações sociais à dis-
versal que atinge, ao mesmo tempo e tância com contextualidades locais.
por igual, todos os cantos do planeta. Segundo as interpretações de Gabriel
Anthony Giddens define globaliza- Bar-Haim, a mídia parece sugerir a
� Anthony Giddens: sociólogo inglês, foi di- existência de uma cultura global que
retor da “London School of Economics and não se constitui numa entidade em si
Political Science” (LSE). ���������������������
É autor de 34 obras, mesma, mas é um conglomerado de
publicadas em 29 línguas, e de inúmeros ar-
tigos. Em 1985 foi co-fundador da “Academic eventos culturais internacionais que
Publishing House Polity Press”. É também co- refletem a multiplicidade de todas as
nhecido como o mentor da idéia da Terceira sociedades, cujas diferenças culturais
Via. Entre suas obras publicadas em português
citamos As Consequências da modernidade podem ser minimizadas, mas suficien-
(Oeiras: Celta, 1992); Capitalismo e moderna temente caracterizadas para serem
teoria social: uma análise das obras de Marx, percebidas como exóticas.
Durkheim e Max Weber (Lisboa: Editorial Pre-
sença, 1994); Transformações da Intimidade É inegável que o acesso a informa-
– Sexualidade, amor e erotismo nas socieda- ções por meio da mídia pode influen-
des modernas (Oeiras: Celta Editora, 1996). (Nota da IHU On-Line)

* Sérgio Mattos é jornalista diplomado, mestre e doutor em Comunicação pela Universidade do


Texas, em Austin, Estados Unidos, e professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia - UFRB. É autor de vários livros de comunicação dentre os quais se destacam: História da Te-
levisão Brasileira: uma visão econômica, social e política (Vozes, 5. ed. 2010); O guerreiro midiático
– Biografia de José Marques de Melo (Vozes/Intercom, 2010); Mídia controlada: a história da censura
no Brasil e no mundo (Paulus, 2005), e O contexto midiático (IGHB, 2009) entre outros. Participa e
contribui regularmente das atividades do Grupo Cepos. E-mail: <sasmattos@gmail.com>.

52 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


ciar no nosso modo de viver. A globali- cer mais de um serviço. mais democrática?
zação é avassaladora e pode provocar Alicerçada em alto nível de quali- 2) Como minimizar ou superar o
padronização cultural. Trata-se de dade técnica que lhe permite competir processo de exclusão digital?
uma realidade diante da qual precisa- no mercado internacional, exportando 3) Qual é o tipo de inclusão digi-
mos tomar uma atitude, uma vez que seus programas para dezenas de países, tal que desejamos para o país?
ela tem eliminado diferenças entre participando assim das novas tendên- Respostas a estas perguntas devem
produtos, cuja diferenciação passou a cias de um mercado cada vez mais glo- ser dadas, num futuro próximo, pelos
ser a ética da massa, ou seja, a ima- balizado, a televisão brasileira come- estudos e debates que já estão sendo
gem institucional da empresa. Por isso çou este milênio em plena maturidade. realizados por acadêmicos, grupos de
os efeitos imediatos da globalização Em contrapartida, as novas perspecti- estudo dos ministérios e organizações
são considerados predatórios. Ao mes- vas mundiais que lhe são impostas le- não governamentais preocupados com
mo tempo, entretanto, o processo da vam a televisão também a enfrentar e a inclusão social e digital.
globalização pode levar a países e pes- se adaptar a esta nova etapa, na qual a A tecnologia digital pode e deve ser
soas benefícios ainda não totalmente própria tecnologia que tanto ajudou no usada para transmitir serviços e concei-
dimensionados, como o acesso a mi- seu desenvolvimento passou a competir tos de cidadania, além de abrir pers-
lhares de informações e de produtos com ela mesma, devido ao avanço da pectivas para o aumento e veiculação
das regiões mais distantes do planeta. informática, da internet, da televisão da produção televisiva independente.
Nos últimos onze anos o cenário paga, da tecnologia digital e das novas Com a interatividade permitida pela
das comunicações sofreu significativa aspirações e conceitos que impulsio- tecnologia, grupos comunitários de
mudança estrutural devido ao desen- nam a humanidade neste milênio. cultura poderão facilmente se transfor-
volvimento tecnológico que contribuiu O avanço das novas tecnologias di- mar em produtores de conteúdo, forta-
para o surgimento de um ambiente de gitais permite o desenvolvimento de lecendo a diversidade cultural.
convergência midiática e para a pro- novos instrumentos de comunicação, Espera-se que a tecnologia digital
dução de conteúdos multimídia. Isso mas ao mesmo tempo em cria uma aumente a democratização dos canais
foi possível graças ao desenvolvimen- série de questionamentos de ordem comunitários (de rádio e TV) e que
to da internet e da digitalização dos ética, além de contribuir para trans- eles possam atingir a massa da popu-
conteúdos de áudio, vídeo e texto. Por formar o homem num ser cada vez lação, cumprindo com sua função de
meio da internet pode-se transpor- mais individualista. Outro aspecto a se prestar informações e cultura e con-
tar, armazenar e redistribuir produtos considerar é que as novas tecnologias tribuindo para transformar os usuá-
audiovisuais, dados e voz (Voip – voz digitais podem facilitar ainda mais o rios em produtores de conteúdos. Isso
sobre protocolo de internet). A con- processo da globalização da cultura e porque, com a tecnologia digital, o
vergência permitiu uma mudança na da política, contribuindo diretamente usuário deixa de ser um telespecta-
relação entre as redes de produtores para a construção de um “pensamento dor passivo e passa a ser um sujeito
e transmissores de conteúdos com os único”. Diante dessa perspectiva sur- ativo. A tendência, portanto, é que o
prestadores de serviços. Antes, uma gem perguntas básicas com as quais cidadão deixe de ser apenas um re-
rede atuava como suporte para a pres- devemos nos preocupar: ceptor e consumidor da programação
tação de um único serviço. Agora, com 1) Como as tecnologias digitais televisiva e se transforme também
o avanço da tecnologia, constata-se a podem trabalhar em favor da interati- em um produtor de conteúdo e trans-
tendência de uma mesma rede ofere- vidade, viabilizando uma comunicação missor de ideias.

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 53


Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponíveis Encontro de Assis: uma “viagem fraterna” rumo a um
nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br) horizonte maior
de 24-10-2011 a 30-10-2011. Entrevista especial com Faustino Teixeira, teólogo
Confira nas Notícias do Dia de 27-10-2011
Acesse no link http://bit.ly/upNdTE
COP-17 e o impasse de Kyoto O teólogo comenta a 3ª edição da Jornada Mundial de
Entrevista especial com Maureen Santos, assessora do Oração pela Paz, realizada semana passada em Assis, na
Núcleo Justiça Ambiental e Direitos da FASE Itália, e define: “uma ‘viagem fraterna’ visando a meta
Confira nas Notícias do Dia de 24-10-2011 misteriosa e transcendente que Deus estabeleceu para
Acesse no link http://bit.ly/r5kg8N todos”.
Segundo assinala a assessora do Núcleo Justiça Ambiental
e Direitos da FASE, “o Protocolo de Kyoto, apesar de ser BNDES tem discurso verde e prática cinza
extremamente reducionista, não está sendo valorizado”. Entrevista especial com João Roberto Lopes Pinto, inte-
grante da Plataforma BNDES
“A flagrante discriminação da mulher na Igreja é um es- Confira nas Notícias do Dia de 28-10-2011
cândalo” Acesse no link http://migre.me/61MQu
Entrevista com Teresa Forcades, monja benedetina O integrante da Plataforma BNDES constata que “assiste-se
Confira nas Notícias do Dia de 25-10-2011 a um processo de financeirização das políticas ambientais e
Acesse no link http://bit.ly/tx941D da própria natureza, esvaziando dramaticamente o sentido
A monja benedetina constata que “nenhum papa se público do direito”.
atreveu a proclamar ex-cathedra a proibição da orde-
nação de mulheres”. ‘‘As redes sociais e a internet deram ao mundo um novo
fôlego em termos de cidadania’’
Transgênicos contaminam as sementes crioulas Entrevista especial com Paulo Faustino
Entrevista especial com Magda Zanoni, bióloga Confira nas Notícias do Dia de 29-10-2011
Confira nas Notícias do Dia de 26-10-2011 Acesse no link http://bit.ly/tXkuHZ
Acesse no link http://bit.ly/rMSOUc O debate brasileiro em torno da criação de um marco regu-
Segundo declaração da bióloga, “há risco de consumo de latório para a mídia “está desfocado e não é esclarecedor”,
transgênicos porque inexistem estudos epidemiológicos adverte o pesquisador português.
que comprovem a não existência de riscos”.

O impacto da plantação extensiva de eucalipto


nas culturas tradicionais

Data: 3/11/2011
Prof. MS Marcelo Henrique Santos Toledo – Universidade de Taubaté/SP
Informações em www.ihu.unisinos.br

54 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 55
Agenda da Semana
Confira os eventos desta semana realizados pelo IHU.
A programação completa dos eventos pode ser conferida no sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).

Dia 03-11-2011
Evento: IHU ideias
Palestrante: Prof. MS Marcelo Henrique Santos Toledo – Universidade de Taubaté-SP
Tema: O impacto da plantação extensiva de eucalipto nas culturas tradicionais
Horário: 17h30min às 19h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU
Maiores informações: http://bit.ly/sAXpQa
Dia 07-11-2011
Evento: Ciclo de Estudos: Repensando os Clássicos da Economia
Palestrante: Prof. Dr. Flavio Comim - UFRGS
Tema: Amartya Sen: o desenvolvimento como liberdade para a superação da fome, da miséria e do
mal-estar social
Horário: 20h às 22h
Local: Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros - IHU
Maiores informações: http://bit.ly/ndTF3S

Acesse a página do IHU no Facebook em


www.facebook.com/InstitutoHumanitasUnisinos

56 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


Plantação extensiva de eucalipto X culturas tradicionais
O impacto das monoculturas de eucaliptos não é só ambiental, social e/ou econômico, mas
é também cultural, aponta Marcelo Henrique Santos Toledo

Por Thamiris Magalhães

Q
uinta-feira, dia 3 de novembro, o coordenador do Movimento em Defesa dos Pequenos Agricultores
– MDPA, Marcelo Henrique Santos Toledo, estará na Unisinos debatendo o tema “O impacto da plan-
tação extensiva de eucalipto nas culturas tradicionais”, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU. O
evento ocorre das 17h30 às 19h, na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU.
Toledo concedeu a entrevista a seguir por e-mail à IHU On-Line, e frisa que “as plantações ex-
tensivas de eucalipto têm um reflexo avassalador nos valores culturais e religiosos das comunidades ‘caipiras’.
A monocultura do eucalipto suprimiu diversos sítios de devoção popular não respeitando seus bens simbólicos”.
Segundo ele, as empresas eucaliptoras derrubaram diversas capelas, ermidas e em outros casos impediram o
acesso da população a esses bens. “Os interesses econômicos das grandes empresas de celulose detonaram o
catolicismo rústico e mataram o bairro tradicional rural. O povo teve que ir embora para nunca mais voltar”.
Marcelo Henrique Santos Toledo é formado em História pela Universidade de Taubaté, em São Paulo–SP,
mestre em Ciência da Religião, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP. Participa de um
Núcleo de Pesquisa sobre religiosidade popular na Universidade de Taubaté e coordena o Movimento em Defesa
dos Pequenos Agricultores - MDPA por ele criado em São Luís do Paraitinga-SP, que luta contra a monocultura do
eucalipto. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os riscos que a lipto têm um reflexo avassalador nos Luís do Paraitinga já foi considerado
plantação extensiva de eucalipto valores culturais e religiosos das comu- como município celeiro do Vale do Pa-
causa nas comunidades e culturas nidades “caipiras”. A monocultura do raíba, ou seja, mantinha uma produ-
tradicionais? eucalipto suprimiu diversos sítios de ção agrícola voltada para a policultura
Marcelo Henrique Santos Toledo – O devoção popular não respeitando seus de alimentos que abastecia diversas
primeiro é o risco do desmantelamen- bens simbólicos. A população rural de cidades dessa região, litoral norte e
to das comunidades tradicionais e de- São Luís do Paraitinga, em sua grande até mesmo o sul de Minas. No entanto,
pois a sua extinção. A cultura tradicio- maioria é formada por católicos tradi- atualmente boa parte do seu território
nal de um bairro, de uma localidade, cionais diretamente ligados aos seus encontra-se invadido por milhares de
acaba quando as comunidades deixam santos de fé e devoção. As empresas hectares de árvores exóticas de euca-
de existir. Isso já aconteceu em alguns eucaliptoras derrubaram diversas ca- lipto e, se não fosse a resistência da
bairros. O impacto das monoculturas pelas, ermidas e em outros casos im- sociedade civil, especificamente a do
de eucaliptos não é só ambiental, so- pediram o acesso da população a esses meio rural, a sua articulação e resis-
cial e/ou econômico, mas é também bens. Os interesses econômicos das tência representados pelo Movimento
cultural. A chegada das grandes em- grandes empresas de celulose detona- em Defesa dos Pequenos Agricultores –
presas de celulose, no processo de ram o catolicismo rústico e mataram MDPA, a situação seria muito pior. São
aquisição de terras, acabou por in- o bairro tradicional rural. O povo teve Luís do Paraitinga estava se tornando
corporar diversos sítios de produção que ir embora para nunca mais voltar. um grande celeiro de eucalipto.
tradicional e consequentemente essa As plantações extensivas de mono-
aquisição implicou na desagregação da IHU On-Line – Quais os impactos da cultivos de eucalipto usurpam terras
agricultura familiar, que culmina com plantação de eucalipto em larga es- de boa qualidade destinadas à agri-
o fim dos grupos de vizinhanças. A ma- cala à agricultura familiar? cultura e, até mesmo, à pecuária de
nutenção desses elementos de forma Marcelo Henrique Santos Toledo – Os leite. A cada dia que passa querem
coesa é imprescindível para a manu- danos causados pela monocultura in- plantar mais e mais eucalipto. Ao se
tenção da cultura “caipira”. dustrial de eucalipto sobre a agricul- instalarem, muda tudo nos bairros/co-
As plantações extensivas de euca- tura familiar é enorme, violento. São munidades e o primeiro fator negativo

SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 57


é o da migração dos moradores rurais, da não foram utilizadas para o plantio
entre outras mazelas.
“As plantações indiscriminado de eucalipto. Animais
como lobo-guará, veado, anta, entre
IHU On-Line – De que maneira o plan-
extensivas de eucalipto outros, estão em extinção devido à
tio excedente de eucalipto compro- perda de seu habitat natural.
mete a pesca, a qualidade e a quanti-
têm um reflexo
dade da água potável, por exemplo? IHU On-Line – Gostaria de acrescen-
Marcelo Henrique Santos Toledo – A
avassalador nos valores tar algo?
pesca em São Luís do Paraitinga acon- Marcelo Henrique Santos Toledo – Em
tece de forma amadora. Porém, em
culturais e religiosos das quase quarenta anos de plantios inin-
alguns ribeirões que cortam as grandes terruptos de monocultivos de euca-
fazendas de eucalipto, a fauna aquáti-
comunidades ‘caipiras’” liptos no município de São Luís do Pa-
ca praticamente foi extinta. No bairro raitinga não houve o desenvolvimento
do Alvarenga, que já há quase 40 anos IHU On-Line – Quais os principais im- econômico do município e muito me-
convivem com a plantação de eucalipto pactos ambientais que a plantação nos melhora na qualidade de vida da
em grande escala, os moradores mais de eucalipto acarreta? população. Gerou lucros para poucos
antigos contam que era comum encon- Marcelo Henrique Santos Toledo – Em empresários. Por outro lado, os impac-
trar peixes boiando “com a barriga para diversos bairros da zona rural de São tos sociais, econômicos, ambientais e
cima”. Isso aconteceu após os funcio- Luís do Paraitinga é possível observar culturais promovidos nos municípios
nários das firmas terceirizadas baterem que córregos e riachos, e um número em que essas malsinadas monocultu-
agrotóxico (mata-mato) para o plantio praticamente incontável de nascen- ras se encontram são irreversíveis para
de eucalipto. Quando chove, o veneno tes, além de veios d’água, secaram; a população, para o meio ambiente.
é levado pelas águas das chuvas para os ribeirões com o volume hídrico dimi- Os municípios do Brasil impactados
córregos que, por sua vez, desaguarão nuído estão contaminados por agrotó- por plantações extensivas de euca-
nos ribeirões e estes, por sua vez, no xicos. Rios assoreados causados pela lipto devem seguir o exemplo dos
rio Paraitinga. No bairro Ribeirão, ou- exclusão das matas ciliares, no lugar pequenos agricultores de São Luís do
trora piscoso, tanto que os peixes fa- plantaram eucalipto. Matas nativas Paraitinga, que fizeram leis populares
ziam parte da dieta alimentar da popu- habitat de uma rica fauna não mais e promoveram ações civis públicas e
lação local, hoje parece um rio morto, existem, sendo substituída por exten- conseguiram no poder Judiciário pau-
sem vida. A água é considerada pelos sas fazendas de eucalipto. O reflores- lista barrar o avanço dos eucaliptais.
moradores remanescentes dos bairros tamento de eucalipto não contribui Na região do Vale do Paraíba, muni-
como imprópria ao consumo humano e em nada para a manutenção da fauna cípios como Guaratinguetá e Piquete
até mesmo animal. Os moradores rurais nativa, não produz alimentos, abrigos seguiram o exemplo de Paraitinga e
têm cacimbas em suas casas; não cap- e força à migração o deslocamento das barraram novos plantios de eucalipto
tam água dos ribeirões, córregos. espécies silvestres para áreas que ain- em seus territórios.

Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites


e Possibilidades
Por outro modo de consumir: descrição de algumas
experiências alternativas

Prof. Dr. Serge Latouche - Professor de Economia na


Universidade de Paris XI - Sceaux/Orsay

Data: 22/11/2011
Informações em www.ihu.unisinos.br

58 SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378


A trilogia “Homo Sacer”, de Agamben

E
ncerrou-se, no dia 24 de outubro, o evento Giorgio Agamben: “O Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica
e o governo da vida humana”. Ministrado pelo professor Castor Bartolomé Ruiz, do PPG em Filosofia da
Unisinos, o curso teve como objetivo estudar o pensamento de Giorgio Agamben na sua trilogia Homo
Sacer.
A revista IHU On-Line publicou uma série especial com artigos inéditos do professor Castor sobre
os temas trabalhados nos oito encontros (acompanhe nos links ao final deste artigo). Para encerrar o curso,
publicamos nesta edição a tradução da apresentação do novo livro de Giorgio Agamben, publicado na Itália em
setembro de 2011: AGAMBEN, Giorgio. Altissima povertà. Regole monastiche e forma di vita. Homo sacer IV,
1. [Altíssima pobreza. Regras monásticas e forma de vida]. Vicenza, Neri Pozza, 2011 , realizada pelo professor
Selvino Assmann, do Departamento de Filosofia da UFSC.
Graduado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia Nossa Senhora Imaculada Conceição, de Viamão, e em
Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), Selvino Assmann é mestre em Teologia por essa mesma
instituição. É mestre e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Lateranense com a tese A Filosofia da
História de Leopoldo Zea - A América Latina e a História. Um de seus livros é Filosofia e ética (Florianópolis-Bra-
sília: UFSC/CAPES-UAB, 2009). Eis o texto, apontado como subsídio de estudo.

Orelha do livro - O que é uma regra, são entre a vida e a norma, mas sim na plicado acúmulo de minuciosos preceitos
se ela parece confundir-se sem resíduos descoberta de uma nova dimensão, na e de técnicas ascéticas, de claustros e
com a vida? E o que é uma vida humana, qual, talvez pela primeira vez, a “vida” horologia, de tentações solitárias e de
se em cada gesto seu, em cada palavra como tal se afirma na sua autonomia e liturgias corais, de exortações fraternas
sua, em cada silêncio seu, já não conse- a reivindicação da “altíssima pobreza” e e de punições ferozes mediante os quais
gue ser distinta da regra? do “uso” lança para o direito um desafio o cenóbio se constitui, tendo em vista a
É a estas perguntas que o novo livro com que o nosso tempo ainda deve fazer salvação em relação ao pecado e ao mun-
de Agamben procura dar uma resposta, as contas. do, como uma “vida regular”, quanto de
através de uma apaixonada releitura do Como pensar uma forma de vida, ou compreender, antes de tudo, a dialética
fenômeno fascinante e interminável que seja, uma vida humana totalmente sub- que dessa maneira se instaura entre os
é o monasticismo ocidental, desde Pacô- traída à tomada pelo direito e um uso dois termos “regra” e “vida”. Tal dia-
mio até S. Francisco. Se o livro recons- dos corpos e do mundo que não se subs- lética é tão densa e complexa que, aos
trói nos seus detalhes a vida dos mon- tancie jamais numa apropriação? Como olhos dos estudiosos modernos, às vezes
ges na sua obsessiva atenção à escansão pensar a vida como aquilo de que nunca parece resultar numa perfeita identida-
temporal e à regra, às técnicas ascéticas se dá propriedade, mas apenas um uso de: vita vel regula [vida ou regra], se-
e à liturgia, a tese de Agamben consiste, comum. gundo a introdução à Regra dos Padres,
porém, em que a verdadeira novidade ou, nas palavras da Regula non bullata
do monasticismo não reside na confu- Prefácio - O objeto desta investiga- [Regra não ornada com bula] de Fran-
 São Pacômio (c. 292-348): também conhe- ção é a tentativa – feita no caso exem- cisco: haec est regula fratrum minorum
cido como Abba Pacômio, é geralmente re- plar do monasticismo – de construir uma [esta é a regra dos frades menores]...
conhecido como o fundador do monasticismo
cenobita. Seu dia é celebrado em 9 de maio. forma de vida, ou seja, uma vida que se Aqui, no entanto, preferiu-se ao vel e ao
(Nota da IHU On-Line) vincule tão estreitamente à sua forma et toda a sua ambiguidade semântica, a
 São Francisco de Assis (1181-1226): frade a ponto de resultar inseparável dela. É fim de olhar para o cenóbio muito mais
católico, fundador da “Ordem dos Frades Me-
nores”, mais conhecidos como Franciscanos. nessa perspectiva que a investigação se como a um campo de forças percorrido
Foi canonizado em 1228 pela Igreja Católica. confronta, sobretudo, com o problema por duas intensidades contrapostas e, ao
Por seu apreço à natureza, é mundialmente da relação entre regra e vida, que defi- mesmo tempo, entrelaçadas, em cuja
conhecido como o santo patrono dos animais
e do meio ambiente. Sobre Francisco de Assis ne o dispositivo através do qual os mon- recíproca tensão algo de inaudito e de
confira a edição �����������������������������
238 da IHU On-Line, de 01-10- ges tentaram realizar o seu ideal de uma novo, ou seja, uma forma de vida, obsti-
2007, intitulada Francisco. O santo, disponível forma de vida comum. Tratava-se não nadamente se aproximou da sua própria
para download em http://migre.me/61MbS.
(Nota da IHU On-Line) tanto – e não só – de investigar o com- realização e, com idêntica obstinação,
SÃO LEOPOLDO, 31 DE OUTUBRO DE 2011 | EDIÇÃO 378 59
veio a falhar. A grande novidade do mo-
nasticismo não é a confusão entre vida
“Como pensar uma vida totalmente subtraída à prisão do di-
reito e um uso dos corpos e do mundo
e norma, nem uma nova declinação da
relação de fato e de direito, mas sim a
forma de vida, ou seja, que não acabe sempre numa apropria-
ção? Ou seja, ainda pensar a vida como
identificação de um plano de existência,
impensado e talvez ainda hoje impensá-
uma vida humana aquilo de que nunca se dá propriedade,
mas apenas um uso comum.
vel, que os sintagmas vita vel regula, re-
gula et vita, forma vivendi, forma vitae
totalmente subtraída à Tal tarefa exigirá a elaboração de
uma teoria do uso a respeito da qual
buscam com esforço nomear, e nos quais
tanto a “regra” quanto a “vida” perdem
tomada pelo direito e um faltam, na filosofia ocidental, os prin-
cípios mais elementares, e, a partir
o seu significado familiar para apontar
em direção a um terceiro, que se trata
uso dos corpos e do dela, uma crítica daquela ontologia
operativa e governamental que, sob
precisamente de trazer à luz.
Contudo, no decurso da investiga-
mundo que não se os disfarces mais diversos, continua
determinando os destinos da espécie
ção, aquilo que apareceu como obstá-
culo para a emergência e para a com-
substancie jamais numa humana. Isso fica reservado ao último
volume de Homo Sacer (p. 7-10).
preensão deste terceiro não foi tanto a
insistência sobre dispositivos que podem
apropriação?” Limiar - O que faltou à doutrina
parecer jurídicos para os modernos, franciscana do uso é precisamente a
como acontece com o voto e a profissão, a experiência, ao mesmo tempo muito tentativa de pensar o nexo com a ideia
quanto um fenômeno absolutamente próxima e remota, que estava em ques- de forma de vida, que o texto de Olivi
central na história da Igreja e ao mesmo tão na forma de vida. parece implicitamente exigir. É como se
tempo opaco para os modernos, que é a Se a compreensão da forma de vida a altíssima pobreza, que deveria defi-
liturgia. A grande tentação dos monges monástica podia ocorrer unicamente nir, segundo o fundador, a forma de vida
não foi aquela que a pintura dos século como persistente contraponto ao para- franciscana como vida perfeita (e que
XV fixou nas figuras femininas seminuas digma litúrgico, o experimento talvez noutros textos, como no Sacrum com-
e nos monstros informes que importu- crucial da investigação não poderia mercium Sancti Francisci cum Domina
nam Antônio no seu eremitério, mas a deixar de se situar na análise dos mo- Paupertate, tem de fato esta função),
vontade de construírem a sua vida como vimentos espirituais dos séculos XII e vinculando-se ao conceito de usus facti,
uma liturgia integral e incessante. Por XIII, que culminaram no franciscanis- perdesse sua centralidade e acabasse ca-
isso a investigação, que inicialmente se mo. Enquanto já não situam a sua ex- racterizando-se apenas de forma negati-
propunha definir, através da análise do periência central no plano da doutrina va com relação ao direito. Certamente,
monasticismo, a forma de vida, teve que e da lei, mas no da vida, os mesmos graças à doutrina do uso, a vida francis-
haver-se com a tarefa, de forma algu- se apresentam, sob essa perspectiva, cana pôde afirmar-se sem reservas como
ma óbvia e, pelo menos aparentemente, como o momento de toda forma deci- a existência que se situa fora do direito,
desviante e estranha, de uma arqueolo- sivo na história do monasticismo, em ou seja, que, para ser, deve abdicar do
gia do ofício (cujos resultados são publi- que a sua força e a sua fraqueza, os direito – e este certamente é o legado
cados em volume separado sob o titulo seus sucessos e os seus fracassos alcan- que a modernidade se mostrou incapaz
Opus Dei. Archeologia dell’ufficio). çaram a sua tensão extrema. de enfrentar e que o nosso tempo nem
Só mesmo uma definição preliminar O livro encerra-se, por isso, com uma sequer parece capaz de pensar. Mas o
do paradigma ontológico e prático ao interpretação da mensagem de Francis- que é uma vida fora do direito, se ela se
mesmo tempo, tecido conjuntamente co e dos teóricos franciscanos sobre a define como a forma de vida que faz uso
de ser e de agir, de divino e de humano, pobreza e sobre o uso, que, por um lado, das coisas sem nunca delas se apropriar?
que a Igreja nunca parou de modelar e uma precoce lenda e uma interminável E o que é o uso, se cessamos de o definir
articular no decurso de sua história, des- literatura hagiográfica recobriram com apenas negativamente com respeito à
de as primeiras e incertas prescrições a máscara humana demais do pazzus propriedade?
das Constituições Apostólicas até a mi- [louco] e do giullare [menestrel] ou com É, pois, o problema do nexo essencial
nuciosa arquitetura do Rationale divino- aquela, não mais humana, de um novo entre uso e forma de vida que nesta altura
rum officiorum de Guilherme de Mende Cristo, e, por outro, uma exegese atenta
 OLIVI, Quaestio octava de altíssima pauper-
(séc. XIII) e à calculada sobriedade da mais aos fatos do que às suas implica- tate. ��������������������������
Em: SCHLAGETER, Johannes. Das Heil
encíclica Mediator Dei (1947), poderia ções teóricas fechadas nos confins disci- der Armen und das Verderben der Reichen.
de fato permitir que se compreendesse plinares da história do direito e da Igre- Petrus Johannis Olivi OFM. Die Frage nach der
höchsten Armut. Franziskanische Forschun-
 Opus Dei. A arqueologia do ofício. Obra cuja
ja. Em ambos os casos, o que continuava gen, 34, Werl, Dietrich-Goelde, 1989. (Nota
publicação, pela mesma editora, está anuncia- desconsiderado era o legado talvez mais do Tradutor)
da para janeiro de 2012 (Nota do Tradutor) precioso do franciscanismo, com o qual,  A tradução portuguesa pode ser encontrada
 Esta obra é um tratado sobre os significados em São Francisco de Assis. Escritos e biografias
simbólicos dos elementos arquitetônicos ecle-
sempre de novo, o Ocidente deverá vol- de São Francisco de Assis. Crônicas e outros
siais e sobre as celebrações litúrgicas. O autor tar a medir-se como se fosse sua tarefa testemunhos do primeiro século franciscano
também é conhecido como Guillaume Durand indeferível: como pensar uma forma de (Petrópolis: Vozes, 1981, p. 1045-1078). (Nota
(1230-1296) (Nota do Tradutor). da IHU On-Line)

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se torna inadiável. Como pode o uso – ou
seja, uma relação com o mundo enquanto
inapropriável – traduzir-se em um ethos e

Confira outras edições


em uma forma de vida? Quais são a ontolo-
gia e a ética que corresponderão a uma vida
que, no uso, se constitui como inseparável
da sua forma? A tentativa de responder a
estas perguntas exigirá necessariamente
da IHU On-Line
um confronto com o paradigma ontológi-
co operativo em cuja moldura a liturgia,
através de um processo secular, acabou por
prender a ética e a política do Ocidente.
Uso e forma de vida são os dois dispositivos
através dos quais os franciscanos procura-
ram, de maneira certamente insuficiente,
quebrar essa moldura e confrontar-se com
aquele paradigma. Mas é certo que só a
partir da retomada do confronto numa
perspectiva nova que se poderá eventual-
mente decidir se e em que medida aquela
que se apresenta em Olivi como a extrema
forma de vida do Ocidente cristão ainda
tem, para isso, um sentido, ou se, pelo con-
trário, o domínio planetário do paradigma
da operatividade exige que se desloque o
confronto decisivo para um outro terreno
(p. 177-178).

Leia Mais...
>> Confira os outros artigos de Castor Bar-
tolomé Ruiz sobre o evento Giorgio Agamben: “O
Homo Sacer I, II, III. A exceção jurídica e o governo
da vida humana”
* Homo sacer. O poder soberano e a vida nua. Revis-
ta IHU On-Line, edição 371, de 29-08-2011, disponí-
vel em http://bit.ly/naBMm8.
* O campo como paradigma biopolítico moderno.
Revista IHU On-Line, edição 372, de 05-09-2011,
disponível em http://bit.ly/nPTZz3;
* O estado de exceção como paradigma de governo.
Revista IHU On-Line, edição 373, de 12-09-2011,
disponível em http://bit.ly/nsUUpX;
* A exceção jurídica e a vida humana. Cruzamentos
e rupturas entre C. Schmitt e W. Benjamin. Revista
IHU On-Line, edição 374, de 26-09-2011, disponível
em http://bit.ly/pDpE2N;
* A testemunha, um acontecimento. Revista IHU
On-Line, edição 375, de 03-10-2011, disponível em
http://bit.ly/q84Ecj;
* A testemunha, o resto humano na dissolução pós-
metafísica do sujeito. Revista IHU On-Line, edição
376, de 17-10-2011, disponível em http://bit.ly/
qQHeua.

Confira também textos publicados nas Notícias do


Dia sobre Giorgio Agamben
* Giorgio Agamben: Política da profanação versus

Elas estão disponíveis na página eletrônica


religião do consumo. Notícias do Dia 19-10-2011,
disponível em http://migre.me/61Mul
* Em que cremos? Redescubramos a ética. Entrevista
com Giorgio Agamben. Notícias do Dia 02-05-2011,
disponível em http://migre.me/61Mya
* Em ‘’O Reino e a Glória’’, Agamben analisa liturgias
www.ihu.unisinos.br
do poder. Notícias do Dia 26-04-2011, disponível em
http://migre.me/61MAC

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IHU Repórter
Mari Margarete dos Santos Forster
Por Thamiris Magalhães | Fotos Arquivo pessoal

S
orridente. Assim a professora Mari Margarete dos Santos Forster
recebeu a IHU On-Line em sua sala para contar um pouco sua
história de vida. Trabalhando há quase 40 anos na Unisinos, Mari
se anima ao dizer que foi nessa universidade que aprendeu muitas
coisas. Alegre, ela afirma ser confiante, amiga, solidária, além de
acreditar saber respeitar as diferenças. Seus maiores sonhos são continuar
tendo saúde, ver a neta crescer e poder ainda fazer coisas que lhe deem
prazer. Conheça um pouco mais de sua história.

Origem – Nasci e moro em Por- que eles fazem parte do sujeito, pois blica. O centro de minha pesquisa é
to Alegre. Por muitos anos resido no este não é só A ou B. Ele é A e B. a relação universidade/escola. Reputo
mesmo bairro, em Petrópolis. Troco de que hoje, fazendo isso, eu de alguma
casa, mas não de bairro. Gosto muito Trabalhos – Dedico-me à Pós- forma devolvo um pouco do que recebi
dali. Graduação desde 1998, na linha de da instituição estatal.
pesquisa chamada Formação de Pro-
Família – Sou viúva, tenho uma fi- fessores, que é algo que eu venho in- Ingresso na Unisinos – Tive uma
lha, a Gabriela, casada, e uma neta, vestigando. Até 1998, fiquei mais na professora que trabalhava na Unisinos,
de seis meses, a Francesca. Minha filha graduação aqui e em outros lugares. mas precisou se ausentar por algum
escolheu esse nome para homenagear Sempre trabalhei muito, mas desde período e indicou meu nome para atu-
meu pai. Ela diz que quer terminar 2000 estou lecionando só na Unisinos. ar na universidade. Vim para cá nessas
com uma dinastia, a de mulheres de fi- Trabalho também na graduação, cur- condições e acabei ficando. Nessa épo-
lhas únicas, porque eu sou filha única, so de Pedagogia, que é onde eu gosto ca, estava me formando na graduação,
ela é filha única e agora nasceu a Fran- muito de atuar. Toda minha formação pois não havia exigência de ter mes-
cesca. Então, a ideia dela é ter outra básica foi na instituição pública. Tive trado e doutorado para atuar no ensino
criança, para não ficar só repetindo... uma boa formação. No entanto, quase superior. Então, eu estava terminando
Meus pais são falecidos. Moraram co- toda minha atuação profissional é na a graduação quando ela me convidou
migo depois que minha filha casou. instituição privada. Por algum tempo, para substituí-la e, chegando aqui,
trabalhei na instituição pública, como 99% dos meus alunos eram mais velhos
Formação – Sou pedagoga. Formei- no Colégio de Aplicação, da UFRGS; que eu. À época, os professores já ti-
me na Universidade Federal do Rio foi uma experiência maravilhosa. Logo nham longa experiência profissional,
Grande do Sul - UFRGS. Tenho mestra- que comecei a trabalhar, lecionei por mas eles vinham fazer sua formação na
do, pela mesma universidade, e dou- muito pouco tempo no ensino público universidade, porque eles não tinham
torado, realizado na Pontifícia Univer- estadual. Além disso, fui Secretária de passado pela academia. Foi uma expe-
sidade Católica do Rio Grande do Sul Educação Substituta aqui no Rio Gran- riência muito rica para mim. Aprendi
– PUC-RS, em Educação. de do Sul, nos anos de 1989 e 1990. muito com aqueles professores. A par-
Foi na época que trabalhei diretamen- tir dali, comecei a me dar conta que,
Autodefinição – Sou confiante. te na rede pública. Hoje, pesquiso a ensinando, nós aprendemos. E muito.
Amiga. Solidária e acredito que sei formação de professores ainda nesse Às vezes, até aprendemos mais do que
respeitar as diferenças. Tenho alguns ramo. Acredito que tenho um compro- ensinamos. Essa experiência me ensi-
defeitos, os reconheço. Mas acredito misso muito grande com a escola pú- nou isso, porque saí da universidade e
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vim com referenciais teóricos, à Acho mes-
época, bem norte-americanos, mo que
achando que iria ser o máximo. irá conseguir fazer um bom gover- mais direto com as pessoas, por-
Cheguei aqui, deparei-me com no. A presidente está tendo bas- que por muito tempo se conhe-
pessoas que tinham longa experi- tante clareza sobre esse momen- cia quase todo mundo que era
ência prática, de atuação, e pre- to e, mesmo as pessoas dizendo professor daqui. E eu trabalhei
cisávamos dialogar sobre isso. que ela não tem tanta autonomia também em um setor pedagógico
em relação ao nosso ex-presiden- que existia, que era o Núcleo de
Lazer – Ir ao cinema, ler, pas- te Lula, eu acredito que sim. Vejo Apoio Pedagógico - NAP. Então,
sear, ir à praia, viajar. Sempre que que Dilma tem feito coisas boas e eu tinha chance de circular por
posso viajo bastante. Teatro gosto acredito efetivamente que possa toda a instituição, nos diferen-
muito também. Reservo o meu sá- fazer um bom governo. tes espaços, e essa foi uma bela
bado para cinema e teatro. experiência. Mas, mesmo que ela
Religião – Sou batizada, cris- tenha crescido, consegui me loca-
Cinema – Gosto de dramas, fil- mada, tudo pela Igreja Católica. lizar em um espaço menor, que é
mes latino-americanos, do Pedro Sou uma pessoa que acredita em a pós-graduação, para poder criar
Almodóvar, Woody Allen. Aprecio Deus. Acho que Ele está em mui- junto, discutir junto. Eu acredito
o filme que assisti recentemente, tos lugares. Mas posso me consi- muito nisso: na possibilidade de
Um Conto chinês. Maravilhoso. derar católica não praticante. construir com o outro. E creio que
Vale a pena assistir. aqui, nesse espaço, eu tenho essa
Sonho – Continuar tendo saú- possibilidade.
Livros – Leio muita coisa ao de. Acredito que isso é efetiva-
mesmo tempo. Agora, estou len- mente importante; ver a minha IHU – É o oásis na Unisinos.
do duas coisas que adoro. Um é o neta crescer; poder ainda fazer Acredito que o trabalho do Insti-
Ética para meus pais, de Yves de coisas que me deem prazer, e tuto representa, de alguma for-
La Taille; o outro é O tempo entre acredito muito também na pos- ma, um espaço de liberdade, de
costuras, um romance, de María sibilidade de ter um mundo cada produção. Um lugar que tem uma
Dueñas, que é uma espanhola ma- vez melhor, mais solidário na re- autonomia, pelo menos é como eu
ravilhosa, de um texto belo. lação com os outros. Meus sonhos enxergo; e é um ambiente que se
são simples, porém genuínos, eu projeta, não fica só dentro des-
Autor – Gosto muito da Isabel diria. se espaço Unisinos. Ele tem uma
Allende, chilena; o nosso Jorge projeção para além da universi-
Amado, tenho lido quase tudo Unisinos – Estou desde agos- dade; creio que provoca também,
dele; e do português José Sara- to de 1972 na Unisinos. Já tenho dentro da instituição universitá-
mago. 39 anos aqui. Ela foi um dos pri- ria, uma série de reflexões. É um
meiros espaços de trabalho que espaço privilegiado. Além disso,
Política – Acredito que estamos tive. Aprendi muito. É um espaço precisa ser prestigiado e apoiado
vivendo um momento importante. que abre possibilidades para nós, porque, de fato, faz toda a dife-
Gosto muito da Dilma. Acho que professores, como profissionais. rença aqui dentro. Vejo que, de-
está acertando bastante. Claro A instituição cresceu muito! Tive pois da entrada do Instituto, mui-
que ela está se deparando com chance de acompanhar os seus tas coisas são diferentes. Não tem
pressões de várias ordens, mas diferentes momentos e, às ve- como não saber o que é o IHU.
acredito que está conseguindo dar zes, sinto falta de algumas coisas, Representado em diferentes veí-
conta a contento desses desafios. como, por exemplo, o contato culos, ele tem uma marca boa.
Destaques
Serge Latouche e a economia de baixo carbono

No próximo mês de novembro, estará no Brasil o Prof. Dr.


Serge Latouche, professor de Economia na Universidade de
Paris XI. Ele participará do Ciclo de Palestras: Economia de
Baixo Carbono. Limites e Possibilidades, promovido pelo IHU,
com o objetivo de debater e refletir sobre os desafios socio-
ambientais e econômicos atuais.

Confira a programação de Latouche no Brasil:

Dia 12-11 Latouche estará no Centro Cultural da UFMT em


parceria com Centro Burnier - Cuiabá/Mato Grosso, falando
sobre Decrescimento sustentado, bioética e biopolítica: con-
versas com Merleau-Ponty;

Dia 18 na Faculdade de Administração e Economia – FAE em


parceria com CEPAT/Curitiba-PR, abordando o tema Uma
sociedade do decrescimento. Uma utopia ou uma necessidade?

Dia 21 Latouche estará no Campus da Unisinos em Porto Alegre, ministrando a palestra


Desenvolvimento Humano, Decrescimento e a Sociedade Convivial;

Dias 22, 23, 24 e 25 de novembro o


pesquisador estará na Sala Ignacio Ella-
curía e Companheiros, no IHU, tratando
dos seguintes temas, respectivamente
“Por outro modo de consumir: descrição
de algumas experiências alternativas”
(Das 16h às 18h); “Sociedade convivial e
economia de baixo carbono: uma re-
lação convivial?” (Das 20h às 22h); “A
atualidade da obra de Ivan Illich” (Das
17h30min às 19h); e “Sociedade convivial:
uma perspectiva eco-teológica” (Das 15h
às 17h).

Mais informações sobre o evento podem


ser obtidas em http://bit.ly/fmmTpa

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E também no (http://bit.ly/ihufacebook)

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