Ao refletir sobre o cotidiano de um trabalhador, Zé Geraldo inicia a canção
“Cidadão” proferindo os seguintes versos:
Tá vendo aquele edifício, moço?
Ajudei a levantar Foi um tempo de aflição Eram quatro condução Duas pra ir, duas pra voltar Hoje depois dele pronto Olho pra cima e fico tonto Mas me chega um cidadão E me diz desconfiado, tu tá aí admirado Ou tá querendo roubar? Meu domingo tá perdido Vou pra casa entristecido Dá vontade de beber E pra aumentar o meu tédio Eu nem posso olhar pro prédio Que eu ajudei a fazer
A leitura desses versos faz-me refletir sobre as precarizações e desigualdades
presentes nas relações de trabalho. Alguma vez reconhecemos a importância do trabalho daqueles que, na maioria das vezes, são ignorados socialmente? As empregadas domésticas, as faxineiras, os pedreiros, os operários, os garis, os motoristas de ônibus, dentre outros, são profissionais cujos frutos do trabalho alicerçam diversas atividades em nossa sociedade. Apesar disso, seus esforços e contribuições não são reconhecidos, sendo, pelo contrário, vistos como uma categoria inferior. Você já ouviu alguém desejar tornar-se uma empregada ou um pedreiro? Dificilmente, não! Agora, imagine um mundo onde existam apenas médicos, advogados, empresários e engenheiros. Quem iria construir os edifícios, conduzir os transportes públicos e limpar os ambientes, tornando-os locais agradáveis para se está?
Do que adianta ter pessoas capazes de elaborarem projetos extraordinários se não
há alguém que possa torná-los reais? Por que o trabalho daqueles que gastam suas forças, que suam arduamente para concretizar os projetos arquitetados por outros profissionais é considerado inferior? Eles trabalham duramente, porém seu salário é bem menor que o dos demais. Seria, por acaso, seu saber inferior? Acredito que não! Os resultados de seus trabalhos são, geralmente, desfrutados por outras pessoas. Seu criador, porém, dificilmente terá a possibilidade de consumi-lo algum dia. Assim como o trabalhador da música de Zé Geraldo, muitos profissionais não podem sequer contemplar sua obra-prima, fruto de seu trabalho. O interessante é que essa rejeição ao trabalho braçal não é própria da sociedade contemporânea. Desde tempos remotos, há um repúdio a esse tipo de trabalho, o qual ficava a cargo das pessoas consideradas inferiores, quais sejam servos, escravos, mucamas e camponeses, os quais foram modernizados pela figura dos operários, das domésticas, dentre outros.
Vinícius de Moraes retrata, em seu poema O Operário em Construção, as
contradições que circundam o trabalho de um operário que vivia alienadamente, aceitando as injustiças praticadas em seu emprego. Um dia, porém, este operário passou a notar acontecimentos que até então não notava. Ele passou a refletir criticamente sobre sua posição diante desses fatos, deixando de enxergar apenas, como diria Platão, as sombras dos fenômenos. Como proclama Vinicius:
[...] foi assim que o operário
Do edifício em construção Que sempre dizia sim Começou a dizer não. E aprendeu a notar coisas A que não dava atenção:
Notou que sua marmita
Era o prato do patrão Que sua cerveja preta Era o uísque do patrão Que o casebre onde morava Era a mansão do patrão Que seus dois pés andarilhos Eram as rodas do patrão Que a dureza do seu dia Era a noite do patrão Que sua imensa fadiga Era amiga do patrão.
Ao refletir sobre essas contradições presentes no mundo do trabalho, Marx expõe
que o trabalho deixou de representar sua função de criação, isto é, de transformação dos fenômenos da natureza. A categoria fundante do ser social passa a ser um meio de acumulação, isto é, de produção exacerbada, visando à mais-valia. Nessa concepção, o trabalhador e o trabalho passam a ser coisificados. Não é a toa que, muitas vezes, o labor causa dor e temor. Apesar de muitos defenderem que o trabalho dignifica o homem, comumente, estes o associam ao sofrimento e ao cansaço. A música Capitão de indústria, do Paralamas, expressa esta situação ao pronunciar a seguinte estrofe: Eu acordo prá trabalhar Eu durmo prá trabalhar Eu corro prá trabalhar Eu não tenho tempo de ter O tempo livre de ser De nada ter que fazer É quando eu me encontro perdido Nas coisas que eu criei
É importante ressaltar que, no mundo hipermoderno no qual vivemos, as pessoas
não trabalham arduamente apenas pelo acúmulo de dinheiro, como fazia João Romão, personagem de O Cortiço, de Aluízio de Azevedo. A lógica hodierna mudou! A sociedade deixou de ser sólida e passou a ser líquida, como nos lembra Bauman, em seu livro Vida para o Consumo. Segundo essa lógica, não basta ter, é preciso ostentar. Essas relações afetam diretamente no modo das pessoas encararem o trabalho, o qual passa a ser visto como um meio para obter os objetos almejados. O consumo ostentado desses objetos transmite uma sensação passageira de prazer.
Outro fator presente na hipermodernidade seria a transformação das pessoas em
mercadoria. Os indivíduos não apenas consomem os objetos, eles se transformaram em mercadorias e buscam tornarem-se vendáveis, isto é, serem objetos atrativos, desejáveis aos olhos dos outros. Nessa concepção, o “ter” se sobrepõe ao “ser”. Essa ideologia afeta as pessoas, até mesmo, durante a escolha do curso que desejam fazer. Existe uma cobrança extrema em relação aos jovens, quando eles pensam sobre a carreira que exercerão. Apesar de haver exceções, a norma é: “escolha um curso que possibilite um bom emprego”. Mas o que é qualificado como “bom emprego”? Obviamente, um emprego é considerado bom dependendo do status social e da quantidade monetária que ele oferece. A qualidade de trabalho, a identificação e o bem-estar também são considerados, mas o dinheiro é o principal parâmetro. Trabalhamos para conseguir dinheiro, que possibilita consumir objetos, que por sua vez nos transformam, pelo menos aparentemente, em mercadorias atrativas, interessantes e vendáveis. Por trás desses objetos, tão desejados, existe o trabalho de profissionais que os elaboraram, apesar de eles dificilmente serem lembrados, permanecendo em sua invisibilidade.