1
MILLER, Jacques-Alain. A transferência de Freud a Lacan. In:______. Percurso de Lacan: uma
introdução. Trad. Ari Roitman. 2.a.ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
2
Idem.
3
Idem.
4
Idem.
caminhar a análise; e 3) aquela identificada à função de sugestão, na função de ingresso
do analista no complexo inconsciente do analisando. Estas três formas de transferência
podem ser claramente vistas em A dinâmica da transferência5, um texto de 1912 de
Freud, mas o sujeito suposto saber não está ali presente; ao contrário, o sujeito suposto
saber, ele só surge com Lacan. Aliás, Miller6 enfatizará que o próprio discurso
psicanalítico mudou a natureza do inconsciente, fazendo parte dele, por conseguinte, o
próprio analista. Dizer hoje que o analisado ama a mãe, por exemplo, não surtirá efeito
algum na terapia; isto se deve ao fato de o discurso psicanalítico ter modificado o
inconsciente.
Em seguida, Miller7 tratará de explicar as três designações de transferência dadas
por Freud. A primeira corresponde à transferência como tropo, no sentido lingüístico
em que há deslize de sentidos. O desejo se apodera de formas, de significantes,
despindo-lhes a significação, para dar uma nova. Por isso, em cada sonho e em cada
significante o significado é idiossincrático. O desejo trata de aglutinar-se aos
significantes sem conteúdo significativo. Esta primeira elaboração freudiana se refere ao
deslocamento de sentido pelo desejo, em que o recalcado é deslocado para uma
representação aceitável para a consciência. Esta elaboração já está presente em A
interpretação dos sonhos. Porém, após o caso Dora esta elaboração adquirirá o sentido
da ligação do desejo à pessoa do terapeuta, ou melhor, ao significante do analista, em
vez de sua pessoa. Por conseguinte, o analista absorvido pelo desejo do analisado
funcionará como aquele que “imanta as cargas liberadas pelo recalque” 8, isto é, como
aquele que dá significação aos significantes emergentes. O analista aparece, então,
como não sendo, simplesmente, algo de fora do inconsciente, o que implica dizer
também que o inconsciente não é algo no âmago de alguém; assim, nos diz Miller que
“o caso Dora é também o caso Freud” 9; ou seja, o psicanalista também faz uma
psicanálise sua, na operação psicanalítica: o psicanalista está implicado; “o analista é
uma formação do inconsciente” 10. Freud, por exemplo, está no centro dos casos que
relatou. O analista ocupando parte da economia psíquica; é daí que se tem o
descobrimento da transferência.
5
FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência. In:_______. Edição Standard Brasileira das
Obras Completas de Sigmund Freud, Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago, 1912/1996.
6
Op. cit. em 1.
7
Idem.
8
Idem, p. 60.
9
Idem, p. 60.
10
Idem, p. 61.
O segundo ponto da transferência é que ela é um obstáculo à cura, funcionando
como uma “tampa” para as associações inconscientes, interrompendo-as. É aqui que a
transferência mostra a sua dupla face: de um lado, a possibilidade de se fazer a análise,
através da repetição, e, de outro, de interrompê-la, através da resistência. Na função de
resistência, a transferência faz o paciente recuar do analisar do analista. Não que a
psicanálise vise manipular o analista; esta “agressão” transborda seus limites. Ao
contrário, o que fica demonstrado com a teoria de Lacan – o teórico da passividade do
analista – de que “compete ao analista ser paciente” 11. A partir deste ponto, em que a
transferência está identificada à função de resistência, estabelece-se um conflito entre a
libido do paciente e a demanda do analista, o que demarcará um (novo) ponto, no qual a
transferência não deverá mais funcionar como obstáculo, mas como alavanca. Assim,
Miller dirá também que, enquanto a transferência negativa não é psicanálise, a
transferência positiva pode ser erótica ou amável 12 – a qual convém ser apoiada. É essa
transferência amável que permite operar no paciente por meio de sugestão. Chega-se,
assim, à terceira forma de transferência: a transferência de sugestão que consiste na in-
fluência do terapeuta no paciente. Podemos ver aqui como a transferência aparece como
um percurso.
Noutro ponto, Miller13 falará da neurose de transferência, que quase pode ser tida
como uma quarta forma de transferência por ser uma doença artificial da psicanálise.
Inventar uma doença talvez tenha sido a melhor tarefa da psicanálise, porque, nela, de
fato, os sintomas são ressignificados, através do inconsciente estruturado como
linguagem. O psicanalista funciona, aqui, como o receptor do sintoma, sendo este o seu
lugar na cura, o qual lhe possibilita operar sobre o sintoma. É mediante o pedido de
associação livre – que não tem nada de livre, pois obedece a processos inconscientes
bem definidos – que o analista solicita a rememoração, a qual é oposta à repetição da
transferência. O psicanalista é, pois, colocado no centro dessa repetição, como o
significante o qual fará guiar os significados; isto só será possível mediante o amor do
analisado por ele. Aliás, o amor da transferência é tão verdadeiro quanto o amor da
11
Idem, p. 64.
12
Podemos ver essa distinção mesmo em Freud (Op. cit. em 5). Freud dirá que os sentimentos
carinhosos da transferência, que favorecem a análise, em última análise, têm sua gênese me fontes
eróticas, isto é, na sexualidade, porém os impulsos eróticos reprimidos funcionam como resistência, assim
como a transferência negativa.
13
Op. cit. em 1.
existência, tendo ambos seus protótipos na infância. A psicanálise nos proporciona,
assim, o saber de que “a vida é fundamentalmente uma repetição” 14.
Com Freud, em Além do princípio do prazer, figura o termo compulsão à
repetição, a qual está presente no inconsciente. Relembrará, então, Miller15 que o
inconsciente não oferece resistência contra a rememoração, mas que, ao contrário, as
resistências provêm do eu (moi), o qual, pela liberação do recalcado, sofre desprazer.
Assim, pode-se dizer que a resistência do eu se contrapõe à compulsão à repetição do
recalcado.
Miller16 dirá que não há, propriamente, o sujeito suposto saber no polimorfismo
da transferência, que engloba repetição, resistência e sugestão, estando até mesmo sobre
o conjunto da cura. Na verdade, o sujeito suposto saber é transfenomênico, ou seja, “o
sujeito suposto saber não é algo que se observe” 17; ao contrário, ele é
[...] um princípio que toca na própria lógica da psicanálise, uma lógica
que depende desse princípio posto no início pelo analista, que tem a
ver com convite que se faz ao paciente para dizer tudo em desordem,
sem reter nada, sem ser detido pela decência ou pelo desprazer18.
Pode-se retomar agora uma frase de Lacan citada por Miller, a qual pode, então,
ser plenamente entendida: “o sujeito suposto saber é [...] o pivô no qual se articula tudo
o que se relaciona com a transferência” 19; isto é, ele é o fundamento ou alicerce de toda
a diversidade dos fenômenos da transferência, a saber, como tropo, como resistência,
como sugestão e como repetição. De fato, ela está fundada no próprio dispositivo de
cura. Poder-se-ia até mesmo fazer uma representação gráfica do sujeito suposto saber
como pivô:
- Transferência
como resistência.
- Transferência
- Transferência como tropo.
como repetição. - O sujeito
suposto saber
(categoria lógica
- Transferência dos fenômenos
como sugestão. da transferência).
14
Idem, p. 67.
15
Idem.
16
Idem.
17
Idem, p. 69.
18
Ibidem.
19
Op. cit. em 1, Lacan apud p. 56.
Assim, vemos o funcionamento do sujeito suposto saber proposto por Jacques
Lacan, para articular, como transfenômeno, os fenômenos plurais da transferência na
clínica. O sujeito suposto saber é essa engrenagem central (ressignificando o termo
pivô) sobre a qual giram todos os fenômenos da transferência; é essa engrenagem
central e, ao mesmo tempo, virtual, que, por ser assim, atualiza-se nos fenômenos da
transferência. E, para finalizar, como dirá Miller, “[o] psicanalista está lá para garantir
ao paciente que esse exercício sem lucro quer dizer alguma coisa, mesmo antes que se
saiba o quê” 20.
20
Op. cit. em 1, p. 71.
21
BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Trad.
Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2008.
22
Cf. BRUM, Evanisa Helena Maio de. Patologias do vazio: um desafio à prática clínica
contemporânea, Psicologia: ciência & profissão, v.24, n.2, Brasília, pp. 48-53, jun. 2004. Disponível em:
<http://scielo.bvs-psi.org.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932004000200006>. Acesso
em: 18 dez. 2009.
Cf. MONTI, Mario Rossi. Contrato narcisista e clínica do vazio, Revista Latinoamericana de
Psicopatologia Fundamental, v.11, n.2, Rio de Janeiro, pp. 239-253, jun. 2008. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/rlpf/v11n2/a06v11n2.pdf>. Acesso em: 18 dez. 2009.
23
MONTI, Mario Rossi. Op. cit. em 22.
24
Idem.
25
Idem.
26
BRUM, Evanisa. Op. cit. em 22.
27
Idem.
clínicos e não mais são descritos meramente problemas relacionados a um conflito28. Já
que, segundo Brum29 e Monti30, os pacientes da clínica do vazio (com patologias do
vazio) não falam e já que eles estão intimamente voltados para si mesmos (contrato
narcisista), como pensar, então, a transferência de Freud a Lacan hoje, em referência a
esta clínica e à patologia ou ao conjunto de patologias que a define, de modo a garantir
o funcionamento da análise?
28
BRUM, Evanisa. Op. cit. em 22.
MONTI, Mario Rossi. Op. cit. em 22.
E cf. o interessante caso relatado por Levi Leonel de Souza:
SOUZA, Levi Leonel. A clínica do vazio e o amor gelado. São Paulo, Outubro 2000. Disponível em:
<http://www.levileonel.com.br/pdf/CLINICA.pdf>. Acesso em: 18 dez. 2009.
29
Op. cit. em 22.
30
Op. cit. em 22.